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12/05/23, 22:35

Decisões Sumárias

DECISÃO SUMÁRIA N.º 13/2023

Processo n.º 1026/2022


1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano

DECISÃO SUMÁRIA
(Artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)

I – RELATÓRIO

1. No processo então pendente no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira


do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, o arguido A. foi condenado “pela prática do
crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo art. 387.º n.º 3 e 4 do
Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 8,00€ (oito euros),
num total de 960,00€ (novecentos e sessenta euros)” e “na pena acessória de privação do
direito de detenção de animais de companhia, prevista no art. 388.-A n.º 1 alínea a) do Código
Penal, pelo período de 2 (dois) anos”, tendo o arguido recorrido dessa sentença para o
Tribunal da Relação do Porto (TRP).

2. No TRP foi proferido acórdão, datado de 19.10.2022, em que se decidiu


“julgar provido o recurso do arguido A. e, em consequência: a) revogam a decisão
condenatória recorrida; b) determinam a absolvição do arguido pela prática de um crime de
maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º n.º3 e 4 do Código
Penal, por reconhecerem que esta norma jurídica é materialmente inconstitucional, por
violação do número 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa”, escrevendo o
seguinte, na parte que aqui releva:

“[…]
B - Do bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime e da sua relevância
constitucional:
O tipo legal de crime pelo qual o arguido recorrente foi condenado encontra-se
previsto no artigo 387 nº 3 e 4 do CP na redação dada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de
agosto:
“TÍTULO VI
Dos crimes contra animais de companhia
Artigo 387.º
Morte e maus tratos de animal de companhia
1-(...)

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2-(...)
3- Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus
tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1
ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a
privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua
capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem
especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6
meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não
couber por força de outra disposição legal.
Ao legislador parlamentar incumbe a «definição dos crimes, penas, medidas de
segurança e respetivos pressupostos» (artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da CRP).
No entanto, o legislador não tem uma liberdade absoluta para criminalizar
condutas (ou omissões), por força da limitação prevista no número 2 do artigo 18.º
da CRP, devendo os tipos legais de crime «limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Por conseguinte, os bens jurídicos protegidos por tipos legais de crime não
podem ser protegidos apenas pelo legislador ordinário devendo, antes, emergir de um
valor jurídico previamente reconhecido pelo legislador constitucional. A acuidade
desta limitação compreende-se, particularmente, em períodos de avanços
civilizacionais, em que a sensibilidade da comunidade – leia-se a cultura dominante
– evolui mais rapidamente do que o ritmo das revisões constitucionais, podendo
gerar potenciais tensões, senão mesmo conflitos, entre as alterações das leis penais e
o texto constitucional, devendo ser sempre assegurada a prevalência deste último, em
resultado de uma saudável hermenêutica jurídica, de modo a respeitar o Estado de
Direito Democrático tal como o mesmo se encontra configurado na Constituição da
República Portuguesa.
Dito isto compreende-se, assim, o interesse em determinar o bem jurídico
protegido pela norma incriminatória ao abrigo da qual o arguido foi condenado e
proceder ao seu confronto com os direitos e interesses constitucionalmente
protegidos, de modo a decidir a primeira questão controvertida no recurso. Não se
ignoram a este respeito as divergências doutrinárias já anteriormente assinaladas,
quer na fundamentação jurídica da sentença recorrida, como do acórdão do Tribunal
Constitucional também já citado.
Para a identificação do bem jurídico, interessa proceder a um saudável exercício
de hermenêutica jurídica que não se limite à letra da lei – considerando o significado
literal mais próximo da norma penal – mas proceda à uma interpretação sistemática,
histórica e teleológica, revelando a intenção do legislador – e este plano é
extremamente importante para a devida solução do caso concreto, uma vez que se
tem de concluir que a letra da lei não é suficientemente clara, uma vez que deu azo a
diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais –.
Os elementos objetivos do tipo legal de crime (letra da lei) sugerem que os bens
jurídicos protegidos sejam a integridade e o bem-estar físico de um animal de
companhia (nº 3 do artigo 387º, 3, do CP) e a sua vida ou integridade física (nº 4 do
mesmo artigo).
Para se perceber a intenção do legislador em toda a sua extensão, importa
concretizar o conceito legal de “animal de companhia” prevista no artigo 389.º do
Código Penal, que informa, inclusivamente, a caracterização sistemática do tipo
legal de crime, por estar incluído no Título VI da Parte Especial do Código Penal,
relativo aos «crimes contra os animais de companhia».
Artigo 389.º
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Conceito de animal de companhia


1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia
qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente
no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a
utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial,
assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins
de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto
no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de
Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.
Numa aproximação de análise teleológica desse conceito articulado com o tipo
legal de crime em discussão nos autos, percebe-se que o legislador ordinário revela
uma conceção marcadamente antropocêntrica"» da regulação da proteção dos
animais neste âmbito penal: apenas protege a integridade e o bem-estar físico e a
vida dos animais, desde que os mesmos sejam detidos por pessoas, ou sejam
destinados a serem detidos por pessoas, no seu lar, para seu entretenimento e
companhia.
Contrariamente ao que muitas pessoas intuem, os animais de companhia não
apresentam, forçosamente, os mais elevados níveis de senciência – logo, com uma
estrutura neurológica mais desenvolvida – do que a de outras espécies, nem serão
mais importantes para a conservação e desenvolvimento sustentável do ambiente –
contrariamente ao que sucede em relação aos insetos polinizadores (abelhas,
borboletas, vespas, moscas, escaravelhos e formigas), as espécies que dispersam as
sementes, controlam pragas, regulam as populações das suas presas (aves) e aquelas
que, por exemplo, fertilizam os solos, diminuem a carga combustível nos pastos
(borregos, cabras e gado bovino, que desempenham um papel importante para a
preservação e desenvolvimento dos ecossistemas –.
Por outro lado, também se reconhece que o legislador ordinário se preocupou em
defender de forma acrescida o bem-estar, a integridade física e a vida dos animais
mais dependentes dos seres humanos e com os quais estes estabelecem fortes laços
de afetividade – e que não sejam afetos a atividades económicas como, por exemplo,
os da pecuária, que são objeto de outros instrumentos de regulação, por opção do
legislador –, tendo estes, assim, um especial dever de proteção e de assistência em
relação aos animais de companhia, pelo seu papel de garante – o que legitima, à
partida, a responsabilidade penal por crimes de resultado cometidos por omissão ao
abrigo de normas penais que estejam em conformidade com a Constituição da
República Portuguesa.
Depreende e compreende-se assim, de forma bastante impressiva, que os bens
jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime em causa sejam o bem-estar, a
integridade física e a vida dos animais de companhia.
Quanto aos animais em geral, o legislador ordinário já tinha estabelecido no
artigo 7º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de outubro, um conjunto de «princípios
básicos para o bem-estar dos animais»:
«1 - As condições de detenção e de alojamento para reprodução, criação,
manutenção e acomodação dos animais de companhia devem salvaguardar os seus
parâmetros de bem-estar animal, nomeadamente nos termos dos artigos seguintes.
2 - Nenhum animal deve ser detido como animal de companhia se não estiverem
asseguradas as condições referidas no número anterior ou se não se adaptar ao
cativeiro.
3 - São proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais
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os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões


a um animal.
4 - É proibido utilizar animais para fins didáticos e lúdicos, de treino, filmagens,
exibições, publicidade ou atividades semelhantes, na medida em que daí resultem
para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de
comprovada necessidade e justificada nos termos da lei».
No entanto, tais preocupações pelo bem-estar animal não foram, ainda, objeto de
ponderação expressa por parte do legislador constitucional português, contrariamente
ao sucedido noutros países, não sendo os bens jurídicos associados a tais interesses
contemplados no conjunto de interesses garantidos pela Constituição.
O artigo 1º da CRP consagra Portugal enquanto «República soberana, baseada
na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de
uma sociedade livre, justa e solidária».
O princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º da CRP e o
direito ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º do mesmo
texto legal não podem servir de suporte constitucional à incriminação dos maus
tratos a animais de companhia, na medida em que tal entendimento viabilizaria a
criminalização de praticamente qualquer conduta que o legislador ordinário
considerasse relevante sancionar, de modo a assegurar ou mesmo forçar a
implementação de certas conceções morais ou políticas – mesmo as mais
controversas –, potenciando a aprovação irrestrita de leis penais, por exemplo, em
resposta à pressão mediática e social gerada por determinados casos mediáticos, em
nome de uma pretensa preocupação de proteção da dignidade da pessoa humana,
sem que os bens jurídicos em causa estivessem relacionados com qualquer direito ou
interesse constitucionalmente salvaguardado. Certas correntes da criminologia,
também suportadas por estudos científicos, associam as condutas integradoras do
tipo legal de crime de maus tratos contra animais de companhia como um possível
sintoma de perigosidade e desumanidade do agente do crime (perfil psicológico e de
personalidade), reconhecendo nessas condutas a revelação de uma personalidade
com propensão para gerar também um perigo abstrato de ofensa à vida ou à
integridade de seres humanos. No entanto, os crimes de perigo abstrato têm
particulares exigências de tipicidade, impondo que a conduta típica seja descrita de
modo especialmente preciso, existindo um nexo causal de perigosidade entre a
conduta que é proibida e a lesão do bem jurídico que sustenta a proibição –o que não
é manifestamente o caso do tipo legal de crime em discussão –, o que afasta essa
referência constitucional – o direito à vida humana e à integridade física (artigos 24º,
1 e 25º, 1, da CRP) – enquanto suporte da incriminação em discussão neste recurso.
Além das teses acima expostas, alguns autores – além da própria decisão
recorrida e do Ministério Público nos presentes autos – reconhecem no artigo 66º da
CRP o suporte constitucional para o tipo legal de crime em discussão nos presentes
autos, por prever um direito fundamental ao ambiente, cuja proteção ativa é também
imposta ao Estado como sua tarefa fundamental pelo artigo 9.º, e), do mesmo texto
legal.
Porém, resulta claro pela configuração ontológica das realidades em discussão,
que o direito fundamental ao ambiente não protege diretamente os animais “qua
tale”, enquanto seres individuais, mas apenas na medida da sua relevância para o
ambiente como um todo, o que retira fundamento legal à tese propugnada pelo
Ministério Público, uma vez que o ser que é a vítima do crime de maus tratos de
animal doméstico é um animal doméstico concreto, individual: neste sentido, tal
como também reconhecido no acórdão nº 867/2021 do Tribunal Constitucional, que
«um mesmo animal beneficiará ou não da proteção decorrente de um crime como o
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de dano consoante seja ou não propriedade de alguém. Já se houver lugar a proteção


por razões de ordem ambiental, o animal será protegido independentemente de
qualquer outro laço de natureza jurídica que o ligue diretamente a um ser humano».
Do mesmo modo, o direito internacional e o direito da União Europeia (UE),
recebidos pela Constituição nos termos do seu artigo 8.º, também não oferecem
tutela suplementar ao bem-estar animal relativamente aos decorrentes da própria
Constituição: seguindo também neste ponto a fundamentação do citado aresto do
Tribunal Constitucional, «(...) A principal possibilidade seria o artigo 13.º do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que atualmente reconhece os
animais enquanto «seres sensíveis» e impõe o respeito pelo seu «bem-estar».
Contudo, essa norma, conquanto constitua mais um relevante sinal de
aprofundamento da tutela do bem-estar dos animais, tem um âmbito de aplicação
claramente circunscrito às políticas da UE «nos domínios da agricultura, da pesca,
dos transportes, do mercado interno, da investigação e desenvolvimento tecnológico
e do espaço». (...). Isto mesmo fora já sustentado pelo Tribunal de Justiça da UE em
Jippes e Outros. c. Minister van Landbouw, Natuurbeheer em Visserij (C-189/01)
(cf. sobretudo os parágrafos 71 ss.), onde o Tribunal «concluiu, de modo restritivo,
que estas exigências não constituem um objetivo geral nem um princípio geral de
Direito Comunitário» (...).”.
Nestes termos, não existindo suporte constitucional bastante para criminalizar as
condutas (ou omissões) tipificadas no artigo 387º, 3 e 4, do Código Penal, esta norma
é materialmente inconstitucional, por violação do número 2 do artigo 18.º da
Constituição da República Portuguesa, não podendo ser aplicada.
Impõe-se, por conseguinte, revogar a decisão condenatória recorrida e absolver
o arguido da acusação, mostrando-se prejudicada a apreciação das demais questões
suscitadas pelo recorrente.
[…]”.

3. O Ministério Público, notificado dessa decisão, veio interpor recurso para o


Tribunal Constitucional (TC), “ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a) e b) e
n.º 3 e 219.º da Constituição Política da República Portuguesa em cotejo com a disciplina
normativa prevista no programa do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.° da Lei do
Tribunal Constitucional aprovada e editada pela Lei n.° 28/82 de 15 de setembro”, sendo a
“NORMA CUJA APLICAÇÃO FOI RECUSADA E QUE DEVERÁ SER OBJETO DE
APRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: ARTIGO 387.º, n.º 3 e 4,
DO CÓDIGO PENAL”.

4. O recurso foi admitido no TRP, com efeito devolutivo.

5. Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

6. O presente recurso foi interposto nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do


artigo 280.º da CRP. Não obstante, a referência ao n.º 3 desse mesmo artigo 280.º, e,
bem assim, a referência apenas à alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15.11, na
redação que lhe foi dada, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 04.01 – LTC),
leva-nos a crer que a referência à alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP representa
mero erro de escrita. Assim, e no que se refere especificamente à alínea a) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC, a mesma dispõe que “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em
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secção, das decisões dos tribunais: a) Que recusem a aplicação de qualquer norma, com
fundamento em inconstitucionalidade”, sendo que “O recurso é obrigatório para o
Ministério Público quando a norma cuja aplicação haja sido recusada, por
inconstitucionalidade ou ilegalidade” (artigo 72.º, n.º 3, 1.ª parte, da LTC).

7. Quanto ao objeto deste recurso, temos que a decisão recorrida recusou a


aplicação do “artigo 387.º n.º 3 e 4 do Código Penal”, na redação da Lei n.º 39/2020, de
18.08, já então em vigor.
Ora, cabe referir, prima facie, que esta norma (quer na sua redação original,
resultante da Lei n.º 69/2014, de 29.08, quer na posteriormente introduzida pela Lei n.º
39/2020, de 18.08) foi já objeto de várias decisões do TC, todas no sentido da sua
inconstitucionalidade material (embora, como se verá infra, com fundamentos diversos),
concluindo-se, a final e também por remissões parciais para esses arestos e para o aí
expendido, nesse mesmo sentido. Por assim ser, conclui-se, deste modo, que se justifica
a prolação de decisão sumária nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, considerando
“que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão
anterior do Tribunal”.

8. A decisão recorrida fundou-se, além do mais, no Acórdão do TC n.º 867/2021,


que decidiu “Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código
Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação,
conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição”, sendo que, como se pode
constatar, são duas as questões de constitucionalidade que se suscitam nestes autos
(sendo certo que uma resposta negativa a esta primeira questão levará, por inútil, à não
apreciação da segunda, como sucedeu, de resto, no Acórdão do TC n.º 867/2021 e na
própria decisão recorrida, que não se debruçaram, consequentemente, sobre essa
segunda questão):

- o saber se esta incriminação visa tutelar algum bem jurídico


constitucionalmente protegido (e qual);

- o apurar se a consagração legal deste crime viola o princípio da legalidade, nas


suas várias vertentes, em especial no que diz respeito ao princípio da tipicidade da lei
penal, resultante do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

E, como se alcança, a 1.ª Secção do TC já apreciou, igualmente por referência à


atual redação destes dois preceitos legais, estas duas questões de constitucionalidade –
no Acórdão n.º 843/2022, relatado, de resto, pela aqui Relatora.
Nesse aresto escreveu-se, assim e a esse respeito, o seguinte:

“[…]
Em suma, uma sociedade justa e solidária será necessariamente uma sociedade
que se preocupa com o bem-estar animal. «A visão que as normas relativas à
crueldade animal procuram prevenir danos aos animais é normativamente apelativa e
descritivamente iluminadora. De um ponto de vista normativo, conferir proteção
legal aos seres sencientes não-humanos é um desenvolvimento bem-vindo. Se todos
podemos concordar que experimentar dor é algo que vale a pena evitar e que os
animais não humanos têm a capacidade de ter consciência dessas sensações, segue-se
que devemos também protegê-los da inflição injustificada de sofrimento» (v. LUIS
E. CHIESA, “Why is it a Crime to Stomp on a Goldfish? - Harm, Victimhood and
the Structure of Anti-Cruelty Offenses”, p. 64, consultado
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em https://digitalcommons.law.buffalo.edu/cgi/ viewcontent.cgi?
article=1725&context=journal_articles). Por assim ser, a criminalização dos maus
tratos a animais, rectius, de alguns animais, é um imperativo ético e civilizacional,
ainda que a mesma, pelo menos num primeiro momento, esteja dirigida aos casos
mais graves («Estando sempre em causa um agir ético do homem no sentido de
evitar ou mitigar o sofrimento (mais ou menos humanamente percetível) e/ou de
respeitar as diversas formas de vida (por longínquas que sejam da forma humana de
vida) – com as quais nós, humanos, inevitavelmente partilhamos dependências,
contingências e vulnerabilidades – compreende-se que a tutela penal (subsidiária,
fragmentária e de ultima ratio) se deva restringir aos casos ético-socialmente
insuportáveis, além de evidentemente atentatórios da vida, integridade física ou
saúde dos animais» – cfr. TERESA QUINTELA DE BRITO, “O abandono de
animais de companhia», p. 94
https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/2/2019_02_0077_0095.pdf).
Mas, para que haja uma proteção efetiva do bem-estar dos animais, é necessário
que existam normas constitucionais que tenham os animais, na sua condição de seres
sencientes, como fim último. Ao Estado, e em primeira linha ao legislador,
constituinte/de revisão ou ordinário, cabe contribuir para essa proteção: «O tipo da
crueldade com animais protege o animal, e não a nós; e a proteção de animais é
tarefa do Estado, porque os animais possuem uma ainda que restrita capacidade de
autodeterminação, sendo portanto irrestritamente vulneráveis a heterodeterminação.
E minimizar a heterodeterminação está entre as tarefas primordiais do Estado
liberal» – LUÍS GRECO, «Proteção de bens jurídicos e crueldade com animais»,
consultado em https://www.ibccrim.org.br/publicacoes/edicoes/443/7237).
Com efeito, ainda que, como atrás se disse, se possa admitir, a custo, numa
leitura atualista e dinâmica do texto constitucional, que o bem jurídico ‘tutela do
bem-estar dos animais de companhia’ ainda encontra arrimo em normas
constitucionais, como as que se referem à dignidade da pessoa humana, à
solidariedade ou à proteção do ambiente – a custo, uma vez que qualquer
interpretação atualista do texto constitucional sempre terá como limite o princípio da
certeza jurídica, sendo certo que não há propriamente consenso, entre nós, de onde
derivar a tutela jurídico-constitucional dos animais de companhia –,
consubstanciando a criminalização dos maus tratos a animais uma restrição a direitos
fundamentais da pessoa humana, dificilmente, numa ponderação de bens em conflito,
o interesse dos animais, assegurado de forma tão ténue a nível constitucional, se
imporá. E, a impor, será sempre em casos contados e em situações delimitadas com
todo o rigor e cautela. Fora de questão está a ideia de fazer derivar das normas
respeitantes à dignidade humana ou à tutela do ambiente posições jurídicas
subjetivas de que seriam titulares os animais de companhia. Mas não é este, apenas,
o motivo pelo qual a tutela dos animais de companhia deverá ser contemplada de
forma autónoma no texto constitucional – sendo sempre ao legislador constituinte/de
revisão que cabe decidir sobre a necessidade ou oportunidade de uma tal opção. É
certo que o legislador ordinário e a jurisprudência têm um papel fundamental no
desenvolvimento e concretização da disciplina jurídica relacionada com a proteção
dos animais (de companhia). Mas, para isso, seria importante perceber em que
moldes se deve dar essa proteção. A verdade é que a proteção jurídica dos animais
pode enraizar-se em distintos fundamentos (v.g., na antropomorfização dos animais,
considerados os mesmos como seres sencientes, inteligentes, capazes de demonstrar
emoções e necessidades afetivas, ou na não discriminação dos animais em relação
aos seres humanos, gerando fenómenos próximos do racismo ou do sexismo).
Acresce a isto que, porventura, a proteção jurídica dos animais se justifica
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atualmente mais com base «na valorização das recentes descobertas científicas que
demonstraram a natureza senciente do animal, em particular daquele de companhia
ou afeição» do que «na relação ancestral que liga o homem ao animal». Ora, todas
estas diferenças poderão ter implicações relevantes em termos da disciplina jurídica
da tutela dos animais. Mais ainda, serão determinantes na escolha do tipo de tutela
adequada da dignidade animal: através do reconhecimento de subjetividade jurídica
aos animais e da sua consideração como centro de imputação de direitos ou, ao
invés, mediante a criação de normas jurídicas que prescrevam deveres aos seres
humanos, em especial, aos donos dos animais (v. FIORE FONTANAROSA, “I diritti
degli animali in prospettiva comparata”, pp. 192-3 – consultado em
www.dpceonline.it/index.php/ dpceonline//view/1243).
[…]”.

E,

“[…]
Será, assim, necessário apurar se o teor destes dois artigos cumpre (ou não) o
princípio da tipicidade enquanto dimensão do princípio da legalidade, mais
concretamente, se se verifica uma suficiente determinabilidade deste tipo penal.
Antes de mais, começando pelo “Conceito de animal de companhia” constante
do artigo 389.º do CP, resulta evidente que se pretende abranger todo e qualquer
animal desde que seja “detido” ou “destinado a ser detido por seres humanos” (o que
levanta logo a questão de saber se abrange também – ou não – um animal selvagem
detido ou domesticado, dado que não está, efetivamente, “destinado a ser detido por
seres humanos”), “designadamente no seu lar, para seu entretenimento e
companhia”, o que se afigura ser de uma amplitude e falta de concretização que pode
levantar múltiplas questões e interrogações, deixando aqui algumas das mesmas.
Desde logo, todos os animais podem ser animais de companhia ou apenas aqueles
capazes de demonstrar afeição em relação aos seres humanos? Ou só os animais que
usualmente e tradicionalmente são animais domésticos? Assim, por exemplo, podem
formigas num terrário ser consideradas como animais de companhia? E os animais
destinados a outras funções, como de guarda, não são também animais de companhia
ou não são abrangidos por esse conceito? Os ‘animais de companhia’ devem ser
encarados como uma categoria genérica ou deve atender-se à singularidade de cada
espécie? E em que consiste, em concreto, esse “entretenimento” (aparentemente
humano)? E o que é “lar” neste âmbito? É o mesmo que residência ou domicílio? E
o “designadamente” pretende estender este tipo legal a todos e quaisquer espaços em
que se encontrem esses animais? E se for assim qual a necessidade
desse “designadamente” (e até do “lar”)?
Por sua vez, o n.º 3 do artigo 389.º pouco ou nada esclarece quanto à
abrangência da noção em apreço, dado que remete para o Sistema de Informação de
Animais de Companhia, criado pelo Decreto-Lei n.º 82/2019, de 27 de junho, que
determina que «aplica-se à identificação de animais de companhia das espécies
referidas no anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e
do Conselho, de 12 de junho de 2013, e no anexo I do Regulamento (UE) n.º
2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, nascidos
ou presentes no território nacional”. Este normativo remete, pois, para esses anexos,
em que consta uma série de animais que poderão ser objeto deste crime mesmo “que
se encontrem em estado de abandono ou errância», estendendo, no fundo, a
abrangência do n.º 1 a esses animais, mas não servindo para clarificar ou esclarecer o
conceito de “animal de companhia” constante nesse primeiro normativo.
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Aliás, recorde-se que, nos termos do artigo 4.º do citado Decreto-Lei n.º
82/2019, «1 - A identificação de animais de companhia é obrigatória para cães, gatos
e furões, nos termos da parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do
Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I
do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de
março de 2016, sendo facultativa para as espécies abrangidas na parte B do anexo I
dos referidos Regulamentos. 2 - Por despacho do diretor-geral de Alimentação e
Veterinária, pode ser determinada a obrigatoriedade de identificação, nos termos do
presente decreto-lei, de qualquer das espécies referidas na parte B do anexo I dos
Regulamentos mencionados no número anterior ou de outras espécies de animais
detidos para fins de companhia, com fundamento na necessidade de implementar
medidas de natureza sanitária para combate a surtos de doenças epizoóticas ou
zoonoses», pelo que essa remissão, além de nada adiantar quanto à delimitação do
conceito de ‘animal de companhia’, ainda parece permitir que algumas outras
espécies sejam sujeitas a registo e abrangidas, por intermédio de um ato
administrativo, por este tipo penal, redundando numa ainda maior indefinição desse
conceito (que é, recorde-se, essencial neste tipo-de-ilícito, dado que só os “animais
de companhia”, tal como definidos no artigo 389.º podem ser objeto da ação ilícita),
que, como acabado de ver, pode ser ampliado, a qualquer momento, por via
administrativa.
Quanto ao artigo 387.º do CP, o mesmo tem como epígrafe “Morte e maus tratos
de animal de companhia”, parecendo, à primeira vista, uma versão ‘animal’ do antigo
crime de maus tratos tout court (cfr. o artigo 152.º do CP, agora designado crime de
violência doméstica, sendo natural que, dentro em breve e se se mantiver a
orientação do TC no sentido da sua inconstitucionalidade, este crime ‘renasça’ agora
com a epígrafe “Morte e violência animal”). De resto, para parte da doutrina, será
necessário, para a interpretação e preenchimento deste tipo-de-ilícito, recorrer aos
múltiplos acórdãos e doutrina relativos ao crime de maus tratos/violência doméstica
e a outros crimes afins – «Trata-se de conceitos indeterminados que se encontram
desenvolvidos na Doutrina e na Jurisprudência no âmbito dos crimes contra as
pessoas. No entanto, o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial que lhes é dado
vale, mutatis mutandis, para os animais, pois o sofrimento é igual, só se altera a
espécie da vítima que, aliás, é em regra especialmente vulnerável» (cfr. MARIA DA
CONCEIÇÃO VALDÁGUA, “Animais no Direito Penal. Os crimes de lesão contra
animais de companhia na Lei 39/2020, de 18 de agosto”, p. 1868, disponível em
https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2021/5/2021_05_1843_1881.pdf). Mas trata-se de
opção discutível, quanto mais não seja porque se afigura sobremaneira
problemático transpor, mesmo que com adaptações e alguma cautela, a doutrina e
jurisprudência relativas ao crime de maus tratos/violência doméstica para este crime,
dado que esse tipo-de-ilícito é bem mais descritivo e pormenorizado. Ainda que
empregue uma cláusula geral que também existe no crime de maus tratos a animais
(“maus tratos físicos”), vai mais longe especificando: «infligir maus tratos físicos ou
psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou
impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou
comuns» – artigo 152.º, n.º 1, do CP). Já o n.º 3 do artigo 387.º utiliza a fórmula mais
genérica “infligir dor, sofrimento” e completa-a com uma fórmula ainda mais
genérica: “ou quaisquer outros maus tratos físicos”. Acresce a isto que o paralelismo
traçado entre violência doméstica e violência contra animais de companhia pode
sugerir uma paridade entre a dignidade humana e a dignidade animal (a qual sempre
se depararia com a dificuldade lógica de equiparar os seres humanos aos animais),
que, com toda a certeza, não resulta da Constituição, não podendo sequer ser
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defendida por quem admite uma tutela constitucional indireta ou reflexa dos animais.
Prosseguindo com a análise do n.º 3 do artigo 387.º do CP, as questões e dúvidas
relacionadas com a descrição legal do tipo-de-ilícito objetivo são muitas. Infligir dor
é diferente de infligir sofrimento? A alusão a “sofrimento” quererá significar que a
criminalização abrange maus tratos psicológicos ou emocionais? Toda a inflição de
dor constitui, sem mais, maus-tratos? Deverá atender-se à resistência da concreta
espécie à dor (por outras palavras, deverá ter-se em conta as caraterísticas etológicas
do animal) ou será toda e qualquer dor animal sempre equiparável e integrará logo
este tipo legal? A tutela criminal é uma tutela contra a dor e o sofrimento ou protege,
de igual modo, de forma mais ampla, o bem-estar físico e psíquico (pode, por
exemplo, defender-se existirem maus-tratos naqueles casos em que aos animais de
companhia não seja proporcionada uma dieta alimentar tida como adequada para
evitar o sobrepeso?)? As condutas omissivas – deixar o animal sofrer – também são
punidas? Em caso afirmativo, apenas as omissões conscientes? E podem considerar-
se circunstâncias atenuantes? (pode uma pessoa que vive abaixo do limiar de pobreza
ser acusada de não providenciar um tratamento caro ao seu animal de companhia?).
As tradições culturais, nacionais ou locais, podem ser excecionadas, sendo a cultura
um valor constitucional?
Aliás, as dúvidas são ainda maiores quando se procura apurar o que seja
um “motivo legítimo”, que parece ser um elemento negativo do tipo-de-ilícito,
delimitando, portanto, pela negativa, a respetiva fattispecie – se existir esse motivo
legítimo, mesmo que se verifiquem as restantes componentes do tipo-de-ilícito
objetivo, este tipo legal não estará nunca integralmente preenchido. Como
refere MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA (ob. cit., p. 1854), «Outro elemento
comum aos vários crimes previstos no art. 387º é o “motivo legítimo”. E motivos
legítimos para a prática de maus tratos a um animal de companhia infelizmente há
muitos». Ocorre que o legislador não concretizou sequer o que é “motivo” e porque
deve ser (ou não) “legítimo”.
Efetivamente, se é possível, como o fazem vários autores, encontrar uma série
múltipla (e nem sempre coincidente entre autores) de motivos que devem ser
considerados motivos legítimos para efeitos de impedir o preenchimento integral
deste tipo legal objetivo, a verdade é que nada consta a esse respeito do texto legal,
havendo sempre, necessariamente, dúvidas sobre o que são esses “motivos” e em que
consiste essa legitimidade (e em que radica a falta dela). Será legítimo alterar a voz
dos cães de companhia para assegurar a tranquilidade e o bem-estar emocional e
físico dos vizinhos? Será legítimo cortar a causa ou as orelhas a um cão com o
intuito de o embelezar, ou, em todo o caso, de o fazer atuar em espetáculos,
invocando-se, para o efeito, a liberdade artística? Vejamos mais dois exemplos que
patenteiam as dificuldades com que se podem debater os operadores
jurídicos: «Existem ainda duas outras questões que não se encontram legalmente
tratadas, mas que cabe trazer à discussão nesta sede. A primeira questão encontra-se
diretamente relacionada com a existência do chamado dever de correção do animal,
face ao dever legal de vigilância que impende sobre o seu detentor. Pese a legislação
nacional nada dizer, a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de
Companhia refere, no seu art.º 7.º, a propósito do treino do animal, que «Nenhum
animal de companhia deve ser treinado de modo prejudicial para a sua saúde ou o
seu bem-estar, nomeadamente forçando-o a exceder as suas capacidades ou força
naturais ou utilizando meios artificiais que provoquem ferimentos ou dor, sofrimento
ou angústia inúteis». A outra questão prende-se com a utilização de animais na
manutenção de práticas sexuais. Ao contrário de outros países, Portugal ainda não
pune de forma expressa tais comportamentos, afigurando-se que apenas poderão ser
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punidos no âmbito desta norma quando inflijam dor, sofrimento ou outras formas de
maus tratos físicos ao animal» (cfr. RAUL FARIAS, “Dos crimes contra animais de
companhia – Breves notas”, in MARIA LUÍSA DUARTE/CARLA AMADO
GOMES (coord.), Animais: Deveres e Direitos, Lisboa, 2015, p. 145).
Tantas são as dúvidas que suscita a atual tutela jurídico-penal do bem-estar dos
animais de companhia que é legítimo perguntar: se é duvidoso, para autores que se
dedicam a estas matérias específicas e com formação jurídica, o que deve (ou não)
constituir um “motivo legítimo” e o que cai (ou não) no âmbito desta fattispecie,
questionando-se se abrange (ou não ou até, previamente, se existe esse dever) o
dever de correção do animal (e também o seu treino e os castigos a que pode ser
sujeito nesse âmbito ou até na sua própria vida diária) e a segunda prática
mencionada, com ampla tradição histórica (que se manterá, aparentemente,
atualmente) e já punida, por exemplo, nas várias Ordenações portuguesas,
comummente designada de bestialidade (onde, em Espanha e Portugal, o animal, na
expressão constante das Ordenações, “a alimária”, era queimado juntamente com o
homem que praticava esse crime), não se vê como o destinatário ‘comum’ desta
norma – o vulgarmente designado bonus pater familias – pode ‘ler’ esta norma e
saber, sem mais, quando poderá (ou não), v.g., infligir dor ou sofrimento
(pressupondo que são algo de diverso no âmbito deste crime) a um animal sem
cometer este crime (e até, desde logo, saber o que é – ou não – um animal de
companhia), sendo antes indeterminável o conteúdo e, consequentemente, também o
âmbito impositivo e punitivo resultante deste tipo penal.
Em síntese, considera-se, na esteira dos dois votos de vencido já amplamente
mencionados, que esta norma penal não cumpre as exigências mínimas de
determinabilidade da lei penal decorrentes do princípio da legalidade acolhido no
artigo 29.º, n.º 1 da CRP, concluindo-se, assim, pela sua inconstitucionalidade,
devendo, por esse motivo, improceder o presente recurso de constitucionalidade.
[…]”.

Deste modo, face a estas decisões do TC, que, embora com votos de vencido e
fundamentos diversos, coincidiram sempre no entendimento de que esta norma (nas suas
duas redações) é materialmente inconstitucional (a que seguiram também já idênticos
acórdãos e decisões sumárias que remeteram para o já mencionado Acórdão do TC n.º
867/2021, como sucedeu com o Acórdão do TC n.º 781/2022 e as Decisões Sumárias do
TC n.os 248/2022, 344/2022 e 772/2022), entende-se ser de decidir, pelos fundamentos
constantes do já citado Acórdão n.º 843/2022, nesse mesmo sentido, improcedendo este
recurso de constitucionalidade e confirmando-se, embora por fundamentos não
coincidentes, a decisão recorrida.

III – DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:


a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade resultante do
artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma que tipifica o crime
de maus tratos de animal de companhia contida no artigo 387.º n.os 3 e 4 do Código
Penal, na redação da Lei n.º 39/2020, de 18.08;
e, em consequência,
b) Julgar improcedente o presente recurso.

Sem custas, nos termos do artigo 84.º, n.os 1 e 2 (este último a contrario sensu),
da LTC.
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Lisboa, 9 de janeiro de 2023 - Maria Benedita Urbano

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