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A METRÓPOLE
CONTEMPORÂNEA
EM MEDIANERAS*
Resumo: o presente artigo objetiva analisar o filme argentino Medianeras: Buenos Aires na
era do amor virtual, dirigido por Gustavo Taretto, lançado em 2011. Esse longa-metragem
apresenta discussões sobre as relações sociais contemporâneas na era digital dentro do cenário
complexo e multifacetado das grandes metrópoles. Discutiremos a noção de “medianera”
dentro do universo conceitual da arquitetura e de que forma o filme utiliza tal perspectiva
para construir sua narrativa..
E
m uma das primeiras cenas do filme Medianeras: Buenos Aires na área do amor vir-
tual, o personagem Martín pondera que “é certeza que as separações e os divórcios;
a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de
desejo; a apatia, a depressão, os suicídios; as neuroses, os ataques de pânico, a obesidade, a
tensão muscular; a insegurança, a hipocondria; o estresse e o sedentarismo... São culpa dos
METRÓPOLES CAÓTICAS
A figura 1 mostra uma discussão abordada pelo personagem Martín. “O que espe-
rar de uma cidade que dá as costas ao seu rio?”. Refere-se à conformação urbana de Buenos
Aires em relação ao Rio da Prata. Representa uma negação da fonte da vida, a água, sem a qual
a cidade não seria possível. Se o Egito é uma dádiva do Nilo, podemos aferir que para Martín
os habitantes de Bueno Aires desdenham o presente que lhe couberam.
A cidade se desenvolve e expande proporcionalmente às mudanças das tecnolo-
gias informacionais e de comunicação. “Hoje, a cidade não pode mais ser considerada um
espaço delimitado, nem um espaço em expansão; ela não é mais considerada espaço constru-
ído e objetivado, mas um sistema de serviços, cuja potencialidade é praticamente ilimitada”
(ARGAN, 2005, p. 215). Segundo Rocha (2006), os espaços urbanos latino-americanos são
responsáveis por uma profusão de informações – imagens, mensagens – que tornam cada
vez mais caótica a experiência visual de quem está presente nos grandes centros. Consequ-
ência desse crescimento acelerado e caótico são edifícios não devidamente pensados a partir
da relação com seu entorno, mas implantados sem nenhuma preocupação com o resultado
de seu impacto no tecido urbano. Servem apenas para exercer sua função. O lar passa a ser
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somente o dormitório. Ao mesmo tempo, “a linguagem do poder ‘se urbaniza’, mas a cidade
se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder
panóptico” (DE CERTEAU, 2007, p. 174),
Martín-Barbero (2002) descreve o contexto de urbanização das cidades latino-ame-
ricanas como inseridas em três dinâmicas distintas: onde existe o desejo por uma melhor con-
dição de vida, a necessidade do consumo e a influencia das novas tecnologias informacionais
que são cada vez mais impostas. As novas tecnologias de informação/comunicação tornam-se
processos transformadores na configuração da cidade.
Lemos (2004) caracteriza as cidades contemporâneas que vivenciam esse processo
como cibercidades, onde ela própria pode ser analisada como mídia, como suporte por meio
do qual circulam inúmeras linguagens junto aos seus sentidos.
Cibercidades nada mais é do que um conceito que visa colocar o acento sobre as for-
mas de impacto das novas redes telemáticas no espaço urbano. [...] A cibercidade é a
cidade contemporânea e todas as cidades contemporâneas estão se transformando em
cibercidades. Podemos entender por cibercidades as cidades nas quais a infraestrutura
de telecomunicações e tecnologias digitais já é uma realidade (LEMOS, 2004, p. 20).
Esta ficando claro que a plataforma do mundo plano, embora tenha potencial para ho-
mogeneizar culturas, também tem, eu diria, um potencial ainda maior para aumentar a
diversidade a um nível que o mundo jamais viu [...]. Graças à internet e à TV por satélite,
as forças da particularização parecem agora tão fortes quanto as forças da homogeneização
(FRIEDMAN, 2007, p. 473-5).
A medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia “global” de telecomunica-
ções e uma espaçonave planetária de interdependências econômicas e ecológicas – para
usar apenas duas imagens familiares e cotidianas – e a medida em que os horizontes
temporais se encurtam até ao ponto em que o presente é tudo que existe, temos que
Essa dor que se traduz muitas vezes em solidão. Sendo a grande cidade mega-urba-
nizada, tomada pelos efeitos da Conurbação, o cenário perfeito para sua difusão.
A SOLIDÃO URBANA
Segundo Masi (2000, p. 276), “dada a atual situação das pesquisas, daqui a quinze
anos um chip terá as dimensões de um neurônio humano, custará poucos reais e terá uma
potência maior que a de todos os atuais computadores do Vale do Silício juntos”. Essa decla-
ração dada na virada do século XIX para o XX deveria ter se tornado realidade. Ainda não é,
mas, certamente, é possível vislumbrá-la em um futuro próximo.
A discussão acerca do que a tecnologia causou no cotidiano das pessoas é bem en-
fatizada em inúmeras cenas do filme. Para Martín, “a internet me aproximou do mundo, mas
me distanciou da vida. Entro no banco pela internet, leio revistas pela internet, baixo musica,
ouço radio pela internet, compro comida pela internet, alugo vídeos pela internet, converso
pela internet, estudo pela internet, jogo pela internet e faço sexo pela internet...” (00:23:43).
De fato a web trouxe facilidades para os relacionamentos. Na pós-modernidade solitária, a
internet foi a salvação para a covardia e individualismo do homem do século XXI. Os víncu-
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los humanos, portanto, se tornaram extremamente frágeis: fáceis de serem criados e fáceis de
serem rompidos. São relações líquidas.
A palavra “rede” sugere momentos nos quais “se está em contato” intercalados por períodos
de movimentação a esmo. Nela, as conexões são estabelecidas e cortadas por escolha. A
hipótese de um relacionamento “indesejável, mas impossível de romper” é o que torna
“relacionar-se a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar”. Mas uma “conexão inde-
sejável” é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se
comece a detestá-las (BAUMAN, 2004, p. 12).
Bauman investiga em seu livro Amor liquido de que forma nossas relações tornaram-se
cada vez mais “flexíveis”, gerando níveis de insegurança sempre maiores, uma vez que damos prio-
ridade a relacionamentos em “redes”, as quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual fa-
cilidade e frequentemente sem que isso envolva nenhum contato além do virtual. Laços de longo
prazo são mais difíceis de serem mantidos nos dias atuais e, por isso mesmo, muitas vezes, evitados.
O filme constrói-se nesse sentido. Como exemplo, podemos citar a cena em que Ma-
riana exclui as fotos do último relacionamento do perfil que mantêm em uma rede social. A per-
sonagem conta que o início do relacionamento coincidiu com a época da explosão da era digital,
quando adquiriu uma máquina fotográfica. Ela compara os estágios do relacionamento com a
quantidade de fotos do casal. A cada ano era menor o número de fotos. E conclui, ao apagá-las
da memória de seu computador: “num ato simples e irreversível me desprendo de 38,9Mb de
história. Quem dera minha cabeça funcionasse bem como o Mac” (00:36:27).
Mariana simula um relacionamento erótico com um dos manequins que reforma.
A cena, entre lírica e patética, mostra a necessidade do ser humano de relações sociais, porém,
contraditoriamente demonstra o distanciamento entre os mesmos. Ironicamente, fumando
após copular com o manequim, numa cena sugerida que o espectador pode apenas imaginar,
diz para seu parceiro inanimado que “não tenha ilusões, foi apenas sexo”. O sexo casual atinge
o extremo ao fazer até mesmo de objetos sexuais de fato (que bem poderia ser um vibrador
elétrico ou uma boneca inflável) elementos descartáveis.
A arquiteta também tenta um relacionamento com um colega de natação chamado
Rafael, que, após um episódio de impotência sexual, humilhado, foge dela. Certamente por
receio de que a “notícia” se espalha no ambiente social que partilham. Ironicamente, Rafael
é um psicólogo, pessoa que em função da natureza de sua profissão deveria saber lidar com
fraquezas. A insegurança e a dificuldade de lidar com situações reais do homem moderno são
aqui destacadas. O datado “o que vão pensar de mim” colide com a necessidade de parecer
sempre feliz e satisfeito nas redes sociais. “O objetivo de libertar o corpo da resistência
associa-se ao medo do contato, evidente no desenho urbano moderno” (SENNETT, 2001,
p. 18). Marina chora, mas chora menos por Rafael do por si mesma. Por sua solidão.
Martín, após um rápido quase-namoro com uma estudante de teatro, possivelmente
bissexual, tenta um relacionamento digital. A ação é naturalizada, embora gere indisfarçável cons-
trangimento para o personagem. Ao mesmo tempo ele sabe que é sinal dos tempos apelar para
essa possibilidade.
Infelizmente, para Martín, o encontro com uma psicóloga poliglota não se mostrou
tão interessante como ele imaginava que seria. A persona difundida pela parceira nas redes
sociais gerou expectativas não satisfeitas. A passagem do virtual para o real não foi feliz. Mais
uma vez, “as relações entre os corpos humanos no espaço é que determinam suas reações mú-
tuas, como se veem e se ouvem, como se tocam ou se distanciam” (SENNETT, 2001, p. 17).
Martín compara essas decepções com a que tem quando recebe seu Big Mac: o sanduíche real
nunca é tão bonito e apetitoso quando o do anúncio.
Lamentamos a pouca sorte do casal e somos levados a torcer para que, finalmen-
te, se encontrem. Na condição de observadores externos, de fora da área de ação do filme,
sabemos que eles são feitos um para o outro, dois nerds que escutam as mesmas músicas e
assistem aos mesmos filmes. Sendo que um deles é justamente Manhattan, de Woody Allen,
uma ode ao amor vivido em Nova Iorque. “O espectador de cinema tende a se identificar
com o herói por um processo psicológico que tem como consequência a conversão da sala
em ‘multidão’ e a uniformização das emoções” (BAZIN, 2014, p. 176). De fato, é em meio a
essa atmosfera de decepção que Martín e Mariana conversam pela primeira vez pela internet.
Chamam atenção um dos outro por usarem o idioma espanhol elegantemente, não o dialeto
tosco, monossilábico e gutural típica da Rede.
Mas não é essa conversa virtual que define o encontro definitivo dos dois. Uma
queda de energia os desconectam. Um exemplo da facilidade das conexões e desconexões
do mundo virtual. Logo depois, Mariana e Martín chegam a ficar um ao lado do outro
numa lojinha, comprando velas. Só trocam algumas palavras educadas sem se reconhece-
rem. Trata-se da gentileza pasteurizada que torna possível a vida nas grandes cidades, mas
que não geram intimidade.
A era digital aparece como elemento gerador de discussões e problemáticas. Me-
nos uma solução do que problema. É a conseqüência de uma configuração social que tem
como base as tecnologias de informação e comunicação. “Toda tecnologia tem suas próprias
regras básicas, por assim dizer. Ela determina todos os tipos de arranjos em outras esferas”
(MCLUHAN, 2005, p. 91). Essas tecnologias têm seus significados atrelados à velocidade,
tempo e espaço, estando constantemente fazendo alterações nos mesmos e classificando as
novas metrópoles, como é o caso de Buenos Aires de Medianeras.
Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez
que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas
pela presença - por uma atividade localizada... A modernidade separa, cada vez mais, o
espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão “ausentes”, distantes (em termos
de local), de qualquer interação face-a-face. Nas condições da modernidade..., os locais são
inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes deles. O que
estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a “forma visível” do
local oculta às relações distanciadas que determinam sua natureza (GIDDENS, 1990, p.18).
O filme não aponta como positivo as mudanças geradas com o advento dessa nova
era. Apesar da funcionalidade que vem com esse período, onde as informações são transmi-
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tidas rapidamente e distancias são diminuídas, Gustavo Taretto leva nossos olhos ao caos em
que está se transformando as grandes metrópoles, sendo este desde aos espaços urbanos às
relações sociais.
Figura 5: Cenas variadas do filme Medianeras, 2011. À esquerda Mariana e seu manequim, à direita apresenta-
ções de uma mulher para Martín na web.
Torello (2001) afirma que as inovações são determinantes nas mudanças culturais e
sociais rápidas e que por, consequência dessa velocidade, o indivíduo não consegue assimilar o
novo ambiente, gerando desequilíbrios que serão contínuos. O curto tempo para assimilação
não é suficiente para que a sociedade sedimente os novos valores da cultura.
um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
existência. Aí se acha portanto excluída a possibilidade para duas coisas, de ocuparem o
mesmo lugar. [...] O espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida
por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres.
Sendo a co-presença o que caracteriza a vida urbana, cada elemento desse tecido in-
fluencia o outro mutuamente, sendo o mesmo o reflexo de uma geração cibernética, que tem
sede de informação rápida e, muitas vezes, ilusória, mas que já está sofrendo as consequências
negativas desse processo. E, na condição de web designer, Martín encarna justamente essa
mão técnica que possibilita que esses “desvios virtuais” ocorram. Mas, ao mesmo tempo, é
o urbanizado e tecnológico Martín que gosta de observar as pequenas plantas que nascem
rompendo o asfalto e o cimento da cidade. Portanto, nada está perdido.
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São os próprios Martín e Mariana que resolvem modificar o cotidiano esmagador no
qual estão submersos. O primeiro sinal dessa mudança ocorre, não por acaso, quando na primave-
ra, resolvem, ao mesmo tempo, abrir janelas, “medianeras”, em seus apartamentos. Inundam suas
penumbras de luz. Os ambientes que até então eram filmados em ângulos escuros e fechados, qua-
se claustrofóbicos, passam a ser registrados em planos médios, com muita profundidade de campo
e altamente iluminados. Olhando por suas janelas recém abertas, Martín (na altura de um anún-
cio de roupa intima masculina) e Marina (apontada por uma imensa seta) se vêem sem perceber.
Apenas alguns dezenas de metros de nada (espaço ainda não ocupado por construções) o separam.
Medianeras é uma comédia romântica e as convenções do gênero são obedecidas.
“Assim como todo produto cultural, toda ação política, toda indústria, todo filme tem uma
história que é História, com sua rede de relações pessoais, seu estatuto dos objetos e dos ho-
mens, onde privilégios e trabalhos pesados, hierarquias e honras encontram-se regulamenta-
dos” (FERRO, 2010, p. 19). Por isso, depois da queda de energia, as conexões entre Mariana
e Martin são reativadas e a aproximação real acontece, favorecendo o final feliz tradicional.
Antes disso o quase casal precisa crescer e abraçar a maturidade. Mariana se desfaz de seu
amante manequim. Martín abre a embalagem de seu boneco Astro Boy raro. Ele, junto do
boneco, “sai da caixa”, e é, finalmente, visto por Mariana de sua janela. Se destaca dos outros
passantes por estar “vestido” de Wally. Camisa branca com listras vermelhas (ou o inverso),
calça azul, bolsa, óculos e gorro. Quase um cosplay. Ela encontrou seu Wally perdido na
cidade. Não pode perdê-lo de novo. Para ir a seu encontro mais rápido desce de elevador.
A urgência do momento a fez esquecer a fobia.
Esse encontro faz com que os personagens, assim como a cidade, que é também um
personagem, revivam. Ganham, literalmente, cores e formas de desenho animado. De fato,
“as cidades monótonas, inertes, contêm, na verdade, as sementes de sua própria destruição
e um pouco mais. Mas as cidades vivas, diversificadas e intensas contêm as sementes de sua
própria regeneração, com energia de sobra para os problemas e as necessidades de fora delas”
(JACOBS, 2011, p. 499). Diferente dos espectadores, Mariana e Martín não sabem que
conversaram anteriormente pele internet. Não importa. Parece que serão felizes para sempre.
Vídeos encontrados no Google, que passam durante os créditos finais, sugerem isso. E como
diz o ditado irônico: se está no Google deve ser verdade.
Indo ainda mais adiante, é possível interpretar que o encontro do casal parece su-
blinhar e sugerir que o necessário encontro entre a arquitetura e o designe representa a possi-
bilidade de repensar a cidade contemporânea. Dessa união podem surgir cidades sem paredes
mal planejadas que gerem janelas, reais e virtuais, igualmente impensadas. Uma cidade sem
“medianeras”, que encare de frente seu rio. O rio da vida.
Abstract: the purpose of this article is to analyze the Argentinian film Medianeras: Buenos Aires in
virtual love age directed by Gustavo Taretto, released in 2011. This feature film presents discussions
on contemporary social relations in the digital age within the complex and multifaceted scenario of
big cities. We will discuss the notion of “Medianera” within the conceptual universe of architecture
and how the film uses this perspective to build its narrative.