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| Maria Lucia Silva Barroco cereal” | ETICAE arene SERVICO SOCIAL Etica e servigo social : fundamentos ontol6gicos / Maria Lucia Fundamentos Ontoldgicos Silva Barroco. ~3. ed. - io Paulo, Cortez, 2008. Bibliografia ISBN 85-249-0813-0 1. Btica 2. Servigo social 3. Servigo social ~ Filosofia 1 Thule | 3* edigdo 01-5068 cbb361301 Indices para catélogo sistematico: | 1. Eticae servigo social 361.301 2. Servigo socal ica 361.301 ' | CORTEZ | ‘EDITORA a ncaesercosocut precisamente como 6; nem todos esto obrigados a identifi- car-se com as formas alienadas de comportamento” (Heller, 1977: 55). As atividades propiciadoras da conexao dos indivi- duos com o género humano explicitam capacidades como: criatividade, escolha consciente, deliberagao em face de conflitos entre motivagées singulares e humano-genéri- cas, vinculagéo consciente com projetos que remetem ao humano-genérico, superagao de preconceitos, participa- Gao civica e politica. Todas elas esto vinculadas com valores; a maior parte exemplifica a capacidade ética do ser social. 1.4. A capacidade ética do ser social 1.41. natureza das objetvagies morais A moral origina-se do desenvolvimento da sociabil dade; responde & necessidade pratica de estabelecimento de determinadas normas ¢ deveres, tendo em vista a socia- izagao © a convivéncia social. Faz parte do processo de socializacao dos individuos, reproduzindo-se através do habito e expressando valores e principios socioculturais dominantes, numa determinada época histérica. Pussibili- ta que os individuos adquiram um “senso” moral (referido a valores, por exemplo, a justiga), ou seja, tornem-se cons- cientes de valores e principios éticos. Ao serem interna- lizados, transformam-se em orientagio de valor para o prd- prio sujeito e para juizos de valor em face dos outros e da sogiedade. O senso moral ou moralidade 6 uma medida para jul- ar se os individuos estao socializados, ou seja, se sao res- ponsdveis por seus atos e comportam-se de acordo com as 84." moral ao contririo do diteto, passa por um momento subjetivo de ‘eeieho Individual” (Simdos, 1990: 57). (cae wDASOCAL o normas e os valores socialmente determinados. Por isso, a moral tem uma fungao integradora; estabelece uma media- cao de valor entre 0 individuo e a sociedade; entre ele e os outros, entre sua consciéncia e sua pratica. Ao mesmo tem- po, produz novas mediacées; influi, por exemplo, nos sen- timentos, na medida em que valora os comportamentos @ se reproduz por deveres. Quando um indivfduo nao cum- pre um dever estabelecido, ou quando vai contra uma nor- ma moral, é julgado moralmente e sente-se “envergonha- do”, Ou, ao contrario, quando se comporta conforme o de- ver, é “admirado” e sente-se “orgulhoso” de si mesmo. A moral interfere nos “papéis” sociais, donde sua ca~ racterizacéo como um modo de ser, um ethos que expressa aidentidade cultural de uma sociedade, de uma classe, de um estrato social, num determinado momento hist6rico. Por sua perspectiva consciente, ou seja, pelo fato de o indi viduo aceitar intimamente os valores, passa a fazer parte do seu “cardter"; por sua fungGo integradora, estabelecen- do vinculos sociais, esta presente em todas as atividades humanas.” Ontologicamente considerada, a moral 6 uma relagao entre oindividuo singular e as exigéncias'genérico-sociais i exhac “Uma relagao entre as atividades humanas. Essa relagao 6 — para empregarmos uma expresso bastante abstrata —a conexao da particularidade com a universalidade generica- mente humana. A portadora dessa universalidade do géne- 0 6 sempre alguma estrutura social concreta, alguma co- munidade, organizacao ou idéia, alguma exigéncia social” (Heller, 1972: 5). 32. “Jénas primeirissimas operagéos laborativas, as mais primordiais con- seqdéncias da incipiente divisto de trabalho colocam aos homens tarefas cuja asticia e engenhosidade, no altruismo em certostrabalhos executads cletiva- mente). As posigbes teleoldgicas quo af intervém, por isso, esto — tdo mais 30 socal do trabalho — diro- tamonto no imodiato a despertar, corroborate consolidar nos homens estes gen- mentos tornados indispensivols" (Lukécs, 1981: XXIV). « tmeneserncosoca Ao converter as necessidades imediatas em exigéncias internas, conscientes, a moral propicia a suspensao da sin- gularidade; porém, pela sua forma peculiar de submeter 0 individuo as exigéncias socioculturais através de normas ¢ deveres, pode se configurar como uma forma de alienacao, Isso depende das exigéncias, da forma como elas se objetivam e.do seu produto objetivo, isto 6, de sua direcio social, Considerada em seus fundamentos ontolégicos, a moral é parte da praxis interativa; 6 fundada sobre posi- des teleolégicas que nao se vinculam diretamente a esfera econémica, mas dependem dessa base para se reproduzir.” Sob essa perspectiva, contém uma série de potencialidades emancipadoras: 6 uma expréssio da capacidade auto- legisladora do ser sogial; supe a adogo de valores, a esco- ha entre eles; torna o individuo responsével pelos seus atos, amplia sua consciéncia, estabelece vinculos sociais, propicia um exercicio de autonomia, entre outros. Porém, tais potencialidades, em determinadas condi- gées sociais, podem ser direcionadas para o seu oposto. Por um lado, isso ¢ facilitado na sua insergao na vida coti- diana; por outro, pela sua natureza normativa. A moral 6 parte fundamental da vida cotidiana, pois a reprodugéo das normas depende do espontaneismo ¢ da repetigao para que elas se tornem hébitos e se transformem ‘em costumes que respondam as necessidades de integracao. social. A legitimagao das prescrigdes morais implica uma_ aceitagao subjetiva, pois, se nao forem intimamente valo- rizadas elas nao se reproduzem diante das siluagées coli- dianas — em que a necessidade de escolha entre uma ou mais alternativas se faz presente. A partir do momento em que os individuos incorporam determinados papéis ¢ com- portamentos, reproduzem-nos espontaneamente, donde a tendéncia da vida cotidiana: as escolhas nem sempre sig- nificam um exercicio de liberdade. 4, Vale lembrar que nfo se 6 ontologica ia de wma hierarquia de valor; prioridade caevonsocaL 6 E preciso distinguir consciéncia e subjetividade; no Ambito da cotidianidade, os valores morais tendem a ser interiorizados acriticamente. Por forga da tradigao e dos costumes e pela constante repeticao tornam-se hébitos; a assimilacao espontanea néo significa, necessariamente, uma adesao consciente. No nivel da cotidianidade, as nor- mas podem ser aceitas interiormente, defendidas social mente.sem que, no entanto, possamos afirmar que essa ace’ tago tenha ocorrido de maneira-livre, porque a escolha livre pressupée a existéncia de alternativas e seu conheci- mento critico. Sendo assim, a consciéncia implicaa subje- tividade, mas esta pode legitimar determinadas normas e valores sem que seja um ato consciente, isto é, livremente escolhido, a partir do conhecimento las alternativas e da responsabilidade pelas escolhas. Na sociedade de classes, a moral cumpre uma funga0 ideol6gica precisa: contribui para uma integracao social labllizadata de nacsssidades privades, alheias eestranhas &s capacidades emancipadoras do homem. Pela sua natu- Teza normaliva e pela sua estrutura de “subordinagio das, necessidades, desejos, aspiracdes particulares as exigéncias sociais” (Heller, 1977: 133), ainda que ndo diretamente, mas através de mediagdes complexas, a moral é perpassada por interesses de classee por necessidade: (re)prodigao dss relagées sociais que fundam um determinado modo de pr duzir material e espiritualmente a vida social. Nessas condigdes, as “escolhas” sio direcionadas por determinantes ideoldgicos coercitivos, voltados 8 domina- G40; nem sempre sdo propiciadoras da liberdade. Por isso, a autonomia do individuo e sua consciéncia, em face da moral socialmente dada, sao sempre relativas_a-circuns- tancias sociais ¢ histéricas:- “Entendemos por autonomiao que sucede quando, na ele ‘go entre alternativas, 0 ato de eleger, sou contetido, sua Tesolugdo etc., estéo marcados pela individualidade da pes- soa. Evidentemente, no plano ontol6gico, tem o primado a alternativa; sem alternativas néo hé autonomia, enquanto “ fmicaeserngosooa, que sem autonomia sempre pode haver alternativas” (Heller, 1977: 58). 1.42. Vida cotidana e alienagéo moral A cotidianidade é o campo privilegiado de reprodu- gio da alienacao, tendo em vista sua repeticao acritica dos valores, sua assimilagao rigida dos preceitos e modos de comportamento, seu pensamento repetitivo e ultragenera- lizador. No campo da moral, a alienagao da vida cotidiana se expressa, especialmente, pelo moralismo, movido por preconceitos. Pola sua peculiasidade pragmética e ultrageneralizado- ra, 0 pensamento cdidiano fundamenta-se em juizos pro- visérios, pautados em estereétipos, na opiniao, na unidade imediata entre o pensamento e a aca “Por um lado, assumimos esteredtipos, analogias e esque- mas jé elaborados; por outro, eles nos sao'impingidos' pelo meio em que crescemos e pode-se passar muito tempo até que percebamos com atitude critica esses esquemas recebi- dos, se 6 que chega a produzir-se tal atitude. Isso depende da época e¢ do individuo” (Heller, 1972: 44). Aultrageneralizagio é necesséria na nivel da cotidia- nidade; porém, como decorréncia de juizos provisérios, pode ser modificada. Para isso, 6 preciso que eles sejam refletidos, tedrica e criticamente, ¢ refutados pela agio pré- tica; nesse sentido, tais juizos nao sao necessariamente pre- conceitos; passam a sé-los quando, mesmo refutados pela teoria e pela pratica, continuam. a fundamentar 0 pensa- ve juizos provis6rios refutados pela cién- ‘cia e por uma experiéncia cuidadosamente analisada, mas que se conservam inabalados contra todos os argumentos da razio, so preconceitos” (idem: 47). Nossas motivagées tm sempre uma dimensio de afe- to, mas 0 afeto pode se expressar tanto pela {6 como pela confianga; a atitude de f6, diante dos valores, é uma carac- McAEVOASOCAL o teristica do comportamento singular voltado as necessida- des do eu; porém, sua singularidade nao é determinada pelo objeto da fé, mas pela sua “relagdo com os objetos da f6 e necessidade satisfeita pela f6” (idem: 47-48). Afirmar que o preconceito é movido por uma atitude de f6 significa dizer que “os objetos e contetidos de nossos preconceitos podem ser de natureza universal [...] Em troca, as motivagées e neces- sidades que alimentam nossa fé ¢, com ela, nosso precon- Ceito satisfazem sempre somente nossa propria particulari- dade individual” (idem: 48). Assim, “o afeto do preconceito% a fé", uma atitude dogmatica, movida, em geral, pelo ifracionalismo e pela intolerancia.** No comportamento moral. preconceituoso, as categorias orientadoras de valor baseiam-se nos sent mentos de amor ou 6dio: “6dio nao se dirige tao-somente contra aquilo em que nao temos fé, mas também contra as pessoas que ndo créem no mesmo que nés. A intolerancia emocional, portanto, é uma conseqiéncia necesséria da {é” (idem: 49). Na medida em que, na vida cotidiana, o critério de ver- dade 6 identificado com 0 “correto”, “itil”, com o que conduz, a0 éxito, a atitude de £6 permite que os valores morais sejam subordinados a interesses que, apreendidos como dogmas, nao permitem questionamentos. Como tal, 0 preconceito é uma forma de reprodugao do conformismo que impede os individuos sociais de assumirem uma atitude critica diante dos conflitos, assim como uma forma de discriminagao, ten- do em vista a ndo-aceitacéo do que néo se adequa aos pa- drdes de comportamento estereotipados como “corretos”” preconceito pode ocorrer nas vérias esferas da ati- vidade social: nas artes, na filosofia, na ciéncia, na politi- 34. A tolerdncia também ndo 6 nocessariamonte positive. Em seu sentido ‘comum, refere-se néo-aceltagio das diferencas; pois como elas nso podem sor “climinadas”,sio “loleradas", Ndo 68 toa quo exisom as “casas do tolerincla”, « EncagsangosocAL ca, em situagées de conflito em face dos juizos de valor que fazemos cotidianamente. No entanto, dado que a mo- ral esté presente, como mediagao, nas varias dimensGes da vida social, o preconceito pode se transformar em moralismo, o que ocorre quando todas as atividades e aces sio julgadas imediatamente a partir da moral: “Nos preconceitos morais, a moral 6 objeto de modo dire- to... Assim, por exemplo, a acusagdo de ‘imoralidade’ cos- tuma juntar-se aos preconceitos artisticos, cientificos, na- cionais etc, Nesses casos, a suspeita moral 6 0 elo que mediatiza a racionalizacdo do sentimento preconceituoso” (idem: 56). : Por suas caracteristicas, o moralismo é uma forma de alienagao moral, pois implica na negagao da moral como uma forma de objetivagao da consciéncia critica, das esco- thas livres, de construgao da particularidade. Ao mesmo tempo, a intolerancia remete ao dogmatismo também negador da liberdade; por isso, 0 preconceito ¢ moralmen- te negativo: “porque todo preconceito impede a autonomia do homem, ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha, ao deformar e, conseqiientemente, estrei- tar a margem real de alternativa do individuo” (idem: 59). O espaco das objetivagdes morais é também marcado por conflitos decorrentes: da fungao social da moral (como integracdo social), da heterogeneidade das esferas sociais, de sua reprodugao (moral) através de normas abstratas concretas e da possibilidade de sua transgressio, Por sua fungéo social, busca integrar os individuos atra- vés de normas; esse cardter legal implica uma certa coergao; ““é interiorizada (ao menos na média social), mas 6 evidente que néo voluntariamente” (Heller, 1977: 135). Mesmo nas sociedades onde ainda nao existe o domfnio de classe, a coo- sio em torno de um tinico cédigo de valor nao significa a inexisténcia de tensdes, pois, como diz Lukscs, “seria um pre- conceito metafisico pensar que a consciéncia social tte to- talmente idéntica em cada homem’” (Lukécs, 1981b: XT neve WoASOCAL o No contexto da alienagao, essa tensio decorre do sig- nificado fdeo-politico das normas e valores morais; as nor- mas tendem a coagir na diregao de necessidades sociais perpassadas pela dominacao. Mas, como existe a possibili- dade de se dizer nao as normas, esse conflito 6 positivo, pois pode promover a capacidade critica viabilizadora da autonomia, As atividades humanas se realizam em esferas hetero- géneas, sempre implicando escolhas entre alternativas de valor, ndo necessariamente de valor moral.** Como a mo- ral esté presente em todas atividades humanas, existe a possibilidade de conflitos quando determinadas situagées exigem escolhas cujos valores se chocam com a moralidade dos individuos sociais; isso pode ocofrer, por exemplo, na relagao entre moral e politica, . A praxis politica 6 uma das atividades que possibili- tam responder coletivamente aos conflitos sociais, desta- cando-se, também, da vida cotidiana. £ uma atividade que supée a interac entre os homens e objetiva uma transfor- magio social, “soja de manutengio ou destruigao do exis- tente” (Lukécs, 1981b: XLIV). Como prxis, supée-se uma intervengao objetiva, seja ela material ou espiritual; no 6, necessariamente, uma forma ética de enfrentamento dos conflitos sociais, mas mantém uma relaco com uma dada moralidade, A atividade politica supde a projegio ideal do que se pretende transformar, em qual diregao, com quais estraté- gias; por isso, implica projetos vinculados a idéias e valo- res de uma classe, de um estrato social ou de um grupo, donde sua vinculacdo com a ideologia coma instrumento de luta politica. Na sociedade de classes, a praxis politica diz respeito ao enfrentamento te6rico-pratico das contra- 35. Valor 6 um conceito muito mais amplo que ‘valor moral’ o individuo surge alravés de uma eleigéo de valor, mas néo ser4 obrigatoriamente tum indi- ‘viduo moral. Som dGvida, a eleigdo de de um valor genérico — inclusive quan- do se trata de uma eleigéo moral — néo é indiferente no plano moral” (Heller, ” iicneservgosocaL digdes, da luta de classes, se objetivando em face de rela- oes de poder e de confronto coletivo. Como praxis, a agéo politica permite aos individuos sairem de sua singularidade, elevando-se ao humano-ge- nérico. Mas, esse fato nao significa, obrigatoriamente, que nele se encontra totalmente liquidado o carter fetichista da consciéncia cotidiana. “Nos contetidos fetichjstas da consciéncia cotidiana ocu- pam um lugar importante os jufzos e prejuizos que expres- ‘sam os interesses de classe, acolhidos espontaneamente pelo pensamento politico que defende a classe determinada como integragdo” (Heller, 1977: 175). ‘Ao mesmo tempo, a opgao politica nao transforma, naturalmente, a moralidade internalizada através de valo- res e deveres; podem entrar em contradigéo, podem repro- duzir atitudes moralistas negando a intencionalidade polf- tica. No entanto, tendo em vista que a superagdo da singu- Jaridade mediante uma relacdo consciente com o humano- genérico é uma possibilidade posta tanto pela ética como pela politica, a busca de suas especificidades é necessdria ©, a0 mesmo tempo, poe o risco de efetuar uma separagéo entre dimensdes da vida social. Nesse sentido, cabe lembrar que nao existe uma atividade ética auténoma, pois, sendo mediagio entre as atividades, se objetiva através delas. Se a politica é reduzida a moral, estamos diante do chamado moralismo abstrato, ou seja, de uma acao cujos resultados dependem, exclusivamente, da moral de seus agentes tomados individualmente, donde sua caracteriza- ao moralista e sua configuragao como voluntarismo é o-palitico: politica na moralizacao dos individuos [..] Aatengio fica concentrada'na vida priveda, no intimismo e ho subjetivismo dos princfpios individuais. A atividade politica (neste caso, bastante ut6pica) de certa forma fica twdluszida as categorias morais da pessoa” (Pereira, 1983: 38). rcxe Wasco 5 Quando a moral é reduzida a politica, estamos em face de uma ética dos fins, diante da qual todos os meios so vélidos, mesmo aqueles eticamente inaceitéveis. Trata-se do realismo politico, “que subtrai os atos politicos a qual- quer avaliagéo moral e em nome da legitimidade dos fins [...] A atengio recai sobre o ato politico e a moral, que tam- bém ¢ social, operando apenas na esfera da intimidade, do individual, fica reduzida ao fim polftico” (Pereira, 1983: 38). Na sociedade capitalista, os conflitos ético-morais se complexificam em face da fragmentagao da prépria moral que, diante das esferas heterogéneas, assume configuragées diferenciadas (muitas vezes em antagonismo entre si), as- sim como em face de cada esfera, que tende a apresentar- se como aut6noma, cada qual com un} referencial de valor; como Marx afirma, cada qual com uma medida, 0 que ex- pressa a alienacao das esferas sociais entre si. “Esta fundado na esséncia da alienagao que cada esfera me ‘impée um padréo diferente e oposto— a moral, um, a eco- xnomia nacional, outro— porque cada uma comporta-se ali- enadamente para com a outra alienagao” (Marx, 1993: 133). A fragmentagao da moral em “morais” especificas ex- pressa a subdivisio do valor nas varias atividades humanas; “existe a ‘moral sexual’, a ‘moral do trabalho’, a ‘moral dos nogécios' etc.” (Heller, 1977; 113), vontribuindo para a se- paragao do individuo em papéis antagénicos, “autonomos”, egando, com isso, o caréter ontolégico social da moral como mediacao de valor entre as alividades humanas. Outro aspecto dos conflitos morais é dado pela sua estrutura configurada pelas normas abstratas e concretas: “Os homens se apropriam simultaneamente dos dois tipos de normas: tanto das prescrigdes ‘soja honesto’, ou ‘seja va- '36, A versio lusitana dos Manuscritos.., que uilizamos aqui, traduziu sem pre nationalekonomie por economia nacional; 6 sabido que, neste context ‘carga semantica 6 equivalente a economia politica. Sobre esta oscilagio, veiam. se 08 comentérios de Baatsch a Engels (1974: 108-111), 2 ncneservgosoca lente’, em sua abstragio, como das numerosas exigéncias concretas que se referem ao como ser honestos ou valentes” (Holler, 1977: 145-146). Ontologicamente consideradas, as normas abstratas € as concretas referem-se aos valores humano-genéricos e as formas particulares através das quais sio realizadas. No contexto da propriedade privada dos meios de produgio, da divisao social do trabalho e de classes, a universalizacao da moral, em torno de normas abstratas, nao significa sua realizacao universal, pois tende a atender a necessidades € interesses privados.” Nesta situagdo histérica,’a universalizagao dos valo- res ndo implica, necgssariamente, sua objetivacao como tal os valores universais tornam-se princfpios abstratos por- que nao sao realizdveis para o conjunto da sociedade. Ins- taura-se uma contradigao entre as normas_abstratas (em sua universalidade) e as normas concretas (como formas de realizacao de valores iiniversais) — suposto para a (re)produgao das formas alienadas da vida social. Por isto, “O fato de que a moral abstrata aparega como somente re- alizével em parte ou ‘absolutamente irtealizével’, ou seja, que ndo possa coincidir totalmente com nenhum costume concreto, ¢ uma manifestacao da alienagao da moral. Isto se revela ndo em um ou outro ‘aspecto' moral, mas na es- trutura moral das sociedades de classe em geral” (Heller, Ainda que a interagéo entre moral, as relagées sociais de produgao e de dominagao politico-ideolégica nao seja imediata, nem mecnica; ainda que a ideologia dominante gone nfo apendeo que éo bom, mas somente qu ulna & bom outs em ensoqhncia, oreedbe singles conc uma interpretagioespectfica dles; interpretagio especial que hava om. cad sistema normative de uma determinada classo, esrato, omunidade” (Hel TRAE VIOASOOAL s téncia de um certo consenso ideolégico que corresponde a determinada sociabilidade e cujos valores adquirem signi- ficados de acordo com as necessidades objetivas de (e)produgéo da sociedade, em sua totalidade. Nesta pers- pectiva, faz parte da existéncia das proprias classes, em sua relacéo de dominagao/subordinacéo, a representagéo universal dos valores que expressam interesses e necessi- dades das classes dominantes: “Com efeito, cada nova classe que toma o lugar da que do- minava antes dela é obrigada, para alcancar os fins a que se propée, a apresentar seus interesses como sendo o interes- se comum de todos os membros da sociedade [...] 6 obriga- da a emprestar as suas idéias a fornfa de universalidade, a apresenté-las como sendo as tinica§ racionais, as tnicas universalmente vélidas” (Marx & Engels, 1982: 74). A ideologia dominante possibilita o ocultamento das, contradicdes entre a existéncia objetiva de valores huma- no-genéricos (expressos pelas normas abstratas) e suas for- ‘mas de concretizacdo (seus significados histéricos parti- culares), entre os valores humano-genéricos e sua nao-rea~ lizago pratica. Assim, “a vida cotidiana 6 0 ambito de validez das normas concretas” (Heller, 1977: 146), mas, para isso, 6 preciso que os individuos acreditem que o significa- do particular das normas morais corresponde aos valores universais. 2 {OUR a. BB cies Tok Mea As (normas abstratas 40 inerentes & moral na medida em que fornecem princfpios gerais, orientadores das nor- ‘mas concretas. Sua objetivagao adquire significados hist6-- ricos particulares em cada contexto, em cada sociedade, classe, estrato social, assim como para cada individuo, em sua singularidade. Por exemplo, se num contexto determi-<; nado, a honestidade é um princfpio positivo, ser honesto passa a se constituir numa norma abstrata que serd concre- lizada através de deveres que apontem para sua viabilizagao “ em situagées concretas. No contexto do invidualismo bur- .~ gués, a liberdade, por exemplo, se realiza pela negagio do outro, ocultando seu cardter universal, ee ry Encaeseungoso0. Isso permite que a ética, como sistematizagao das objetivagées morais, possa se transformar em um conjunto de prescrigdes que negam sua fungio critica. Ao mesmo tempo, apreendidas dessa forma, reproduzem uma “acei- tagéo” que nao corresponde as necessidades ¢ exigéncias internas dos _individuos; sio incorporadas externamente, como “obrigagoes”. Isso propicia que a liberdade seja con cebida de forma idealista e desvinculada da moral, pois, uma vez que a liberdade nio 6 vivida e sim, reprimida, torna-se ideal. Quando refletidas criticamente, propiciam maiores ou menores possibilidades de questionamento das normas, de sua transgressao, da consciéfcia do seu significado. As contradigdes entre pormas abstratas e concretas revelam- se, pois, como parte do processo de desenvolvimento da moral que coincide com o surgimento da alienacao, mas essa configuragao histérica nao 6, em si mesma, geradora da defasagem entre os valores universais e sua realizacao objetiva. Os critérios para a objetivagao dos valores universais sao dados concretamente no movimento extensivo e inten- sivo de construgio e desvalorizacao historica dos valores; 0s que representam conquistas da humanidade nao se per- dem na histéria; sua perda é sempre relativa as condigdes histéricas © ao seu desenvolvimento desigual, no interior de dada sociedade e em relagao ao desenvolvimento hu- mano-genérico. Nesse sentido, “os valores sao sempre ob- jetivos, mesmo quando se apresentam na forma de normas abstratas [...] 0 critério de desenvolvimento dos valores nao 6 apenas a realidade dos mesmos mas, também, suas pos- sibilidades” (Heller, 1972: 8-9). 143, A reflerdo ica A reflexio ética 6 construfda, historicamente, no am- bito da filosofia, tendo por objeto a moral. Na perspectiva que nos orienta, ela é de caréter ontolégico-social-materia- (MICAEVDASOCAL s lista; busca, a partir da razdo dialética, aprender, na tota- Iidade sécio-hist6rica, as categorias ético-morais, desvelan- do suas particularidades e legalidades. A reflexao ética supée a suspen a cotid nao tem por objetivo responder s suas necessidades ime- diatas, mas sistematizar a critica da vida cotidiana, pressu- Posto para uma organizagao da mesma para além das.ne- cessidades voltadas exclusivamente ao “eu”, ampliando as possibilidades de os individuos se realizarem como indi- vidualidades livres e conscientes. Quando a moral é refletida ontologicamente, é poss{- vel ultrapassar o conformismo caracteristico da aceitagio espontinea da cotidianidade; os conilitos morais podem, entdo, ser apreendidos em sua relacio com a totalidade social e ndo se apresentarem somente como conflitos mo- sais. Principalmente, pode desvelar a objetividade de tais conflitos, permitindo que nao sejam tratados como “pro- blemas subjetivos”, cuja resolugdo depende da vontade sin- gular. Isto, porém, nfo elimina a dimensao singular do ato moral; ao contrério, a individualidade vincula-se a ela ao posicionar-se, mas seu posicionamento se efetua no pata- mar de wma escolha consciente; “sua teleologia vai além de sua prépria particularidade” (Heller, 1977: 48). Como reflexéo ontolégica,.a ética ps rar ‘gfo aos valores humano-genéricos, mas sua necessiria abs- traci s; como filosofia critica interfere indiretamente na realidade, contribui para a am- pliagdo das capacidades ético-morais. Portanto, como Lukacs afirma, “Este saber no é um fim em si mesmo. Néo hé nenhum filésofo realmente merecedor deste nome, e que nao o seja apenas no sentido estritamente académico, cujo pensamen- to nao tenda a interferir a fundo nos contflitos decisivos de sua época, a elaborar os principios para dirimi-los e, por- tanto, dar uma orientacéo mais resoluta a propria acao dir mente” (Lukécs, 1981b: LXXXVI). s ncxeserngo soca, Para que a ética se realize como saber ontolégico preciso que ela conserve sua perspectiva totalizante e criti- ca, capaz de dismistificar as formas reificadas de ser e pen- sar. Assim ela 6, também, um instrumento critico de ou- tros saberes, de elaborag6es éticas que possam estar con- tribuindo para o ocultamento das mediacées existentes entre a singularidade inerente a cotidianidade e 0 género humano, reproduzindo, com isso, a alienagio. A ética realiza sua natureza de atividade propiciadora de uma relagao consciente com o humano-genérico quan- do consegue apreender criticamente os fundamentos dos conflitos morais e desvelar o sentido e determinagées de suas formas alienadas; quando apreende a relagio entre a singularidade e a fniversalidade dos atos ético-morais; quando responde at's conflitos sociais resgatando os valo- res genéricos; quando amplia a capacidade de escolha cons- ciente; sobretudo, quando indaga radicalmente sobre as possibilidades de realizagao da liberdade, seu principal fundamento. Quando a ética nao exerce essa fungio critica pode contribuir, de modo peculiar, para a reprodugio de com- ponentes alienantes; pode colocar-se como espago de pres- crigdes morais; favorecer a ideologia dominant; obscure- cer os nexos e as contradigées da realidade; fortalecer 0 dogmatismo e a dominagao; remeter os valores para uma origem transcendente a histéria; fundamentar projelos con- servadores; operar de modo a nao superar a imediaticidade dos fatos; ultrapassé-los mas nao apreender a (otalidade, contribuindo para que os homens nio se auto-reconhegam como sujeitos éticos. Como reflexao critica, faz juizos de valor sobre a rea lidade, mas seu caréter téorico-metodolégico nao permite que a fundamentagao da realidade se sustente em valores; trata-se de apreender, na realidade concreta, as tendéncias e possibilidades para a vigéncia dos valores que lhe ser- vem de orientagao ética. Portanto, se a reflexao ética perder seu compromisso com valores, ela deixa de ter sentido; se nio aprender a ica WDASOCAL o fundagéo desses valores na realidade, nao cumpre seu pa- pel tedrico; se abrir mao da critica, deixa de se constituir numa reflexao ética para se tornar uma doutrina. Por essas peculiaridades, tal ética 6 de cardter revolu- cionario, ou seja, é critica 4 moral do seu tempo e possibi- lidade de projegio ideal de uma sociedade em que os ho- mens possam se realizar livremente, sempre com base nas possibilidades reais e em face do desenvolvimento genéri- Co ja realizado. Por isso, a ética 6, também, uma referéncia para a praxis politico-revolucionéria, seja como instrumen- to teGrico-critico, seja como orientagao de valor que apon- ‘ta para o devir. 144. ética como capacidade lve Conforme nossa anélise, a genese da agao ética 6 dada pela liberdade, compreendida ontologicamente como uma capacidade humana i palho, tomado como praxis, Vimos que o trabalho poe em movimento as capa- cidades essenciais do género: a sociabilidade, a conscién- cia, a universalidade ¢ a liberdade; categorias ontolégico- sociais que operam dialeticamente. $6 é possivel desen- volver 0 trabalho se houver cooperagao social, se houver um nivel de consciéncia capaz de conhecer a natureza, projetar sua transformagao e realizar praticamente esta transformagio, criando um produto antes inexistente. No processo de objetivacao dessa praxis ocorre, também, uma valoragao da natureza, do sujeito, do produto de seu traba- Iho; isso cria alternativas é possibilita a escolha entre elas. As escolhas ¢ alternativas propiciam novas perguntas € respostas que configuram as varias formas de expressio da cultura 6 produto do trabalho. desenvolvimento da sociabilidade instituiu novas necessidades, dentre elas a moral. Em razo de instaurar uma série de mediacdes que dizem respeito a consciéncia moral, isto 6, & capacidadle humana de escolher valores, de agir com base nestas escolhas e se responsabilizar por elas, ncesengos0cAL em face das consequéncias de sua agéo, ela (a moral) vin- cula-se a liberdade. No entanto, sua insercdo necesséria na vida cotidiana faz com que ela negue esse cardter livre que estd na sua génese ontoldgica. Isso 6 facilitado pelo seu cardter normativo e pela sua peculiaridade de ser estruturada por um dado nivel de coergao: sua funcao é fazer com que os individuos aceitem e reproduzam as nor- mas vigentes. a Mas, como vimos, isso ocorre em situagées histéricas determinadas, pois a vida cotidiana nao é necessariamente alienada, nem a moral. Nas condigées da sociedade bur- guesa, ela 6 alienada porque contribui para a reprodugao de um determinado ethos funcional a ordem social reificada; atende, através de sylas mediagées particulares, a necess: dades s6cio-econdmicas e {deo-politicas de (re)producao das relagGes sociais capitalistas. Nesse sentido, ela (a mo- ral) expressa um dos antagonismos da sociedade modern: © antagonismo entre a liberdade (seu fundamento objet Vo) e 0 campo das necessidades, fundado nas determina- ‘Goes socioeconémicas e objetivado através da suas normas, Considerada do ponto de vista ontolégico, a moral é uma mediagao potencialmente capaz de promover uma individualidade livre, ou seja, uma particularidade capaz de transformar exigéncias sociais em exigéncias internas livres. Nas condigées da alicnagio e das suas formas reifica- das, promove a sua propria negacao, o que nao decorre necessariamente da existéncia de normas, mas das deter- minag6es sécio-histéricas que permilem sua objetivagéo como algo externo e estranho ao individuo. Para Mészéros, as normas existem muito antes de sua codificagao; séo necessidades positivas, do ponto de vista da emancipagéo humana, No entanto, se a sociedade pos- sibilitasse a participagao ativa dos individuos na elabora- go das normas, se elas representassem, concretamente, oxigéncias internas codificadas, nao precisaria haver coer- ho, no precisaria haver regras e sang6es institucionais Punitivas. Para ele, a existéncia da lei prova que TEAEMOASOOAL ” “as necessidades do homem como membro da sociedade nao se tornaram necessidades interiores no verdadeiro in- dividuo, mas permaneceram externas a ele, como necessi- dades da sociedade |... se fossem ‘necessidades interioros’ do homem, no haveria qualquer necessidade de impé-las (Mészéros, 1981: 168) ‘Mészéros se apia em Marx para afirmar que a norma tem como medida o préprio homem; logo, a fungao positi va da moral se expressa na luta do homem pela sua reali- zagao; a moral “s6 nao é externa ao homem se, e na medida em que, ela se relaciona com essa tarefa” (Mész4ros, 1981 169). Trata-se, portanto, de lutar pela humanizagao, pela emancipagao das autoridades externas, pela existéncia de uma moral livre, objetivadora das capacidades que a f damentam, o que supée a supressao das relagdes sociais alienadas, em sua totalidade. A humanizagio apresenta-se, assim, como a medida, 0 critério de uma sociabilidade nao alienada: “na opinio de Marx, nada 6 digno da aprovagao moral a menos que contribua para a realizacdo da atividade vital do homem como necessidade interior” (idem: 166). Por essas consideragées, podemos pensar que o anta- gonismo entre liberdade e necessidade nao reside na exis- (€ncia de necessidades materiais, mas nas formas de sua (Fe)produgao, no contexto da apropriacao privada da rique- za socialmente construfda. Para a ontologia social, o anta- gonismo oculta uma relacdo necesséria: “se na realidade do existe nenhuma necessidade, tampouco seria possivel a liberdade” (Lukécs, 1981a: XIV). Essa concepedo de liberdade supde sua considera- cao como capacidade humana, resultado da atividade humana que responde e (re)produz necessidades, consti- tuindo-se nessa dialética entre o que é necessério e possi- vel historicamente. A liberdade 6, ao mesmo tempo, capa- cidade de escolha consciente dirigida a uma finalidade, e, capacidade pratica de criar condicées para a realizacao objetiva das escolhas, para que novas escolhas sejam cria- « Imenesemngosocu, das. Por isso, liberdade, necessidade e valor vinculam-se ontologicamente: “Nas decis6es alternativas do trabalho se esconde o fend- ‘meno ‘originério' da liberdade, mas esse ‘fendmeno’ nao consiste na simples escolha entre duas possibilidades — algo parecido também ocorre na vida dos animais superio- Fes —, mas na escolha entre o que possui e o que nao possui valor, eventualmente (em estégios superiores) entre duas espécies diferentes de valores, entre complexos de valores, precisamente porque nao se escolhe entre objetos de ma- neira biologicamente determinada, numa definigao estati- ca, mas ao contrario, resolve-se em termos priticos, alivos, se e como determinadas objetivacoes podem vir a ser reali- zadas” (Lukécs, 1981: XVI} Como as demais capacidades essenciais do ser social, a liberdade pressupde uma objetivacio concreta, ou sefa, determinadas condigées objetivas para se realizar como projeto e produto real; 0 trabalho, como praxis, 6, portan- to, a base ontolégica das possibilidades de liberdade. Des- sa forma, a liberdade nao é um valor abstrato que caracte- riza o ser humano como tal, mas uma capacidade “exerci- ada na atividade de trabalho ou objetivacao, que 6 a mo- dalidade de atividade especifica dos seres humanos” (Gould,1983: 157). Como possibilitador da liberdade, 0 trabalho 6 uma atividade potencialmente livre, isto 6, ele poo as condiges para a liberdade na medida em que permite o dominio do homem sobre a natureza, o desenvolvimento multilateral de suas forgas produtivas — capacidades ¢ necessidades — pressupostos para seu reconhecimento, de si mesmo e dos outros, como sujeitos capazes de criar alternativas e imprimir uma diregao a seus projetos scio-historicos.* 38, Como afirma Lukées: “preci ligagdo do reino da liberdade ‘com sua base sécio-material, com o reine ecanémico da necessidade, mostra ‘como a liberdade do género humano soja o resultado de sua propria atividade” (1970: 18). ncaevoasocu “ Para que o trabalho se efetive como atividade livre 6 preciso que ele se realize como atividade criadora, o que pressupée que seja consciente, que propicie a ampliagéo das forgas essenciais do ser social e, como tal, nao seja um. meio de sobrevivéncia nem de explorago e dominacao entre os homens. A partir das condigées postas pelo traba- Iho, a liberdade assume, entao, dois significados: é liber- dade — de algo e — para algo. A lliberdade, entendida como liberdade de algo, existe como negagao dos seus impedimentos: “a capacidade de liberar-se das concretas determinagées, propriedades e re- lagées que se converteram em cadeias. A possibilidade dessa liberacdo jé esté dada, desde o ponto de vista geral, com a autoconsciéncia do homem" (Markus, 1974: 74). Autoconsciéncia significa autotranscendéncia® pratica do homem frente ao determinismo da natureza e em relacdo a si mesmo, isto 6, a capacidade de superar-se pela atividade @ ser autoconsciente de si mesmo como ser genérico, ‘Nestes termos, o ser social 6 autodeterminante quan- do projeta conscientemente um estado futuro como possi- bilidade e quando toma esse propésito como guia de aca mas essa autodeterminacao nao se refere somente a objeti- vos particulares postos pelo sujeito, pois “o processo de atuar de acordo com os préprios propésitos, como um pro- cesso de atividade social e nao meramente uma atividade individual, gera, nao somente agGes, mas regras de agao” (Gould,1983: 157). A liberdade de algo e para_algo tem um sentido de negatividade; significa “a capacidade humana de transcen- 30, “Essa autotranscondéncia néo 6 um processo meramente de conscién- cia, nem do individu unicamente dentro de si mesmo, mas de autotrans- ‘cendéncia por melo da transformacio do mundo. Além disso, posto que essa \ransformagio somente se efetua por meio de individuos em relacées socais © cesta 6 ume atividade social, as condiges para essa autotranscendéncia in ‘dual slo elas mesmas condighes socials. Assim, para Marx, a iberdade 6 um processo de auto-realizaglo enquanto origem de novas possibilidades, nas quai, por meio de: (duo social era-sea si mesmo e reeria-se constan- lemente como um ser autotranscendento® (Gould, 1983: 53). a encassergosocaL der-se, ultrapassar-se constantemente, ser um eterno mo- vimento de vir a ser, transformar sua propria natureza mediante uma atividade consciente” (Markus, 1974: 74). Liberdade 6, portanto, superagao dos entraves hist6ricos as objetivaces essenciais do ser social, o que pressupde fundamentalmente condigées objetivas que possibilitem a realizagao do trabalho de forma livre e criativa, Desse modo, para Marx, nao se trata (io-somente da consciéncia da li- berdade, mas da ago pritica superadora desses obstécu- los. Segundo ele, “O exercicio da liberdade consiste exatamento em superar obstaculos e é necessério, além disso, despojar os fins ex- ternos de seu ccréter de pura necessidade natural para estabelecé-los ccmo fins que o individuo fixa a si mesmo, de maneira que se torne a realizacao e objetivagao do sujei- to, ou seja, liberdade real, cuja alividade é precisamente 0 trabalho” (Marx, 1971, Il: 101), O trabalho ¢ a atividade fundante da liberagao do ho mem; a liberdade nao é apenas um estado ou uma condi cdo do individuo, tomado subjetivamente, mas uma capa- cidade inseparavel da atividade que a objetiva. A negatividade posta na liberagao— de algo—apresenta, pois, um sentido positivo: ao liberar-se das limitagGes a realiza- ¢ao do trabalho como atividade criativa, consciente e li- vre, o sujeito esté livre para usufruir da riqueza humana, Esse tratamento teérico-metodoldgico evidencia que as necessidades socioeconémicas sio a base priméria das possibilidades de liberdade, o que coloca novas possibili- dades para a reflexao ética. Analisados ontologicamente, esses pélos de uma relacao dialética néo podem ser absoluti zados ou entendidos de forma mecanica; se isso ocorre, funda interprotagées deterministas, lais como 0 economi- cismo, o voluntarismb ético, o messianismo, Segundo Tertulian (1999), Lukécs, em suas tiltimas roflexdes éticas, busca a superacao da dicotomia kantiana entre moralidade e legalidade, do que resulta a apreensio encaewoAsooA, ® da mediagéo entre a universalidade abstrata das normas ¢ a consciéncia moral: a agdo ética. Hegel ja havia definido essa dialética entre singular, universal e particular; porém, nele, a particularidade capaz de dar concretude ao univer- sal abstrato, garantindo a individualidade do sujeito ético, 6 dada pelo Estado, donde sua configuracao como espago realizador da eticidade. Lukécs, superando Hegel, concebe essa objetivacao ética como uma agao pratica dos sujeitos conscientes em seu exercfcio de liberdade e deliberacao social. Oindividuo pode superar a sua singularidade através da moral, mas quando isso acorre ele se eleva a condicao de sujeito ético, na compreensao de Lukacs, como particu- laridade objetivadora do género huméno para si. “A ago ética 6 um processo de ‘generalizagio’, de medi: cao progressiva entre o primeiro impulso e as determina- ‘96es externas; a moralidade torna-se acdo ética no momento om que nasce uma convergéncia enire o eu e a alteridade, entre a singularidade individual e a totalid a campo da particularidade exprime justamente esta zona de mediagées onde se inscreve a agao ética” (Lukacs, apud Tertulian, 1999: 134). Tertulian afirma que Lukacs se apropria do “meio-ter- mo” aristotélico para desenvolver sua concepgao ética. Para 0 fildsofo grego, a agao virtuosa é a justa medida entre ex- tremos; para Lukacs é a mediago “entre a norma abstrata do direito ¢ a irredutibilidade das aspiragoes individuais & norma, pois ela (a acao ética) implica, por definicao, levar em conta o outro e a sociedade, uma socializagao dos im- pulsos e das inclinagdes pessoais, uma vontade de harmo- nizar 0 privado e 0 espago piiblico, o individuo e a socie- dade” (Idem: 134). Para Lukécs, é a distingdo entre o género humano.em sie o género humano para si que expressa a diferenga en- lie as agdes que visam afirmar ou negar a ordem social dominante. As agées que sé dirigem ao género humano em si so prdprias das necessidades de autoconservagio’¢ “ EncaseRvgosocaL legitimagao do status quo, enquanto as dirigidas ao género humano para si so “objetivagdes superiores nas quais so efetiva a aspiracao a autodeterminagéo do género huma- no” (idem: 137). Essa apreenséo da acdo ética — como uma agao “vir- tuosa” —, e 0 fato de que as aspiragdes humanas do género para si nfo so redutiveis 4 norma reforgam nossa preten- sio de dar a agao ética uma amplitude universalizante, dis- tinta da ago moral singular. Entendemos que a moral 6 uma forma, historicamen- te construida, de objetivacao da capacidade ética do ser humano-genérico, mas nela ndo esgota suas potencialida- des. A partir de Lukjics, consideramos que, quando o in« viduo, através da moral, eleva-se ao humano-genérico e coloca-se como representante do género humano para si, entdo ele esté agindo como sujeito ético, como parliculari- dade, individualidade livre, A ética se pée como uma ago pritica dotada de uma moralidade que extrapola o dever-ser, instituindo-se no espago do vir a ser, isto 6, na teleologia inscrita nas deci- s6es que objetivam agées praticas volladas A superagio dos, entraves a liberdade, a criagdo de necessidades livres."* A 6tica se coloca, entao, como uma praxis: supondo, portan- to, uma pratica concreta ¢ uma reflexao ética critica. Como mediagio entre a singularidade e a genericidade, entre os valores universais e sua objetivagio, a ética per- passa por todas as esferas da totalidade social. Por isso, no se objetiva apenas na moral; pode se realizar através da praxis politica, por exemplo. Suas categorias especifi- cas so aquelas que implicam a sociabilidade orientada por um projeto coletivo, voltado a liberdade e universalizacéo dos valores éticos essenciais — por exemplo, responsabil dade, compromisso, alteridade, reciprocidade, eqiidade. 40, Convém lembrar que, por isos em face dealternativas, mas que o produto final das escolhas néo é um ‘vento causal, Enea oAsoci 6 Seu fundamento é a liberdade, entendida como capa- cidade humana e valor, o que, para Marx, significa a parti- cipagao dos individuos sociais na riqueza humano-genéri- ca construida historicamente: “a humanidade serd livre quando todo homem particular possa participar conscien- temente na realizagao da esséncia do género humano e rea- lizar os valores genéricos em sua propria vida, em todos os seus aspectos” (Marx, apud Heller, 1977: 217). 1.5, A dimensio éticorpolitca dos projetos sécio-histricos Projetar as ages, orientando-as para a objetivacao de valores e finalidades, é parte da préxis. Afirmar que essa projecdo é ética e politica significe considerar que a teleologia implica valores e que sua objetivacao supée a politica como espago de luta entre projetos diferentes. Na vida social existem projetos individuais, coletivos e societérios. Os profissionais s4o de caréter coletivo; su- p6em uma formacdo especilica, uma organizagio de cu- nho legal, ético e politico. Netto assim se refere aos proje- tos profissionais: /*Os projelos profissionais apresentam a auto-imagem da “ profissdo, elegem valores que a legitimam socialmente e priorizam os seus objetivos e fungdes, formulam os requisi- {os (te6ricos, institucionais e préticos) para o seu exercicio, prescrevem normas para o comporlamento dos profissio- nais © ostabolecom as balizas da sua relagdo com os usud- rios de sous servicos, com outras profissées e com as orga- nizacbes e instituigdes socials, privadas, piblicas, entre es- tas, também e destacadamente com o Estado, ao qual cou- \ be, historicamente, o reconhecimento juridico dos estatu- tos profissionais” (Netto, 1999: 95). Um projeto profissional implica determinadas condi- ‘g6es; deve atender a necessidades sociais, realizadas de determinadas formas, produzir um resultado objetivo, com implicagées sociais e desdobramentos éticos e politi-

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