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As mulheres e a santa da vila do Carmo: protagonismo feminino

em uma comunidade quilombola no interior paulista

Ana Luísa Nardin R. de Abreu


Mestra em Antropologia Social/ Universidade Federal de São Carlos
analunardin@gmail.com

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Resumo: Este artigo aborda uma comunidade remanescente de quilombo localizada no
município de São Roque, interior do Estado de São Paulo, conhecida como vila do Carmo,
e tem como objetivo investigar o protagonismo feminino nesta comunidade por meio de
uma análise da figura da santa padroeira local, Nossa Senhora do Carmo, enquanto
personagem central na vida cotidiana e na história do grupo. Por meio deste estudo
etnográfico, verifica-se que a santa é apontada pelos moradores do Carmo como sendo
aquela que detém, integra e dá vida ao território quilombola, visto que sua presença confere
a eles, o povo e a terra, unidade e sentido. Esta centralidade da santa emaranha-se no papel
de destaque das mulheres da comunidade no cuidado com a vida dos moradores e nos ritos
religiosos celebrados pela vila. Tal fato, de ordem ao mesmo tempo social e sobrenatural,
permite apontar as aproximações entre as mulheres e a santa, salientando o protagonismo
feminino na vida social e na história desta comunidade quilombola paulista.

Palavras-chave: quilombolas; Nossa Senhora do Carmo; mulheres; religião.

Abstract: This article discusses a Quilombo Remnant Community, which is located in the
interior of the city of São Paulo known as Carmo Village, with the aim of investigating the
figure of the Our Lady of Mount Carmel as a protagonist in the lives of these quilombolas,
highlighting their history and routine. From this ethnographic study, the saint is pointed out
by the residents as being the one who owns, integrates and gives life to the quilombola
territory. This centrality of the saint is reflected in the prominent role given to women in the
community in caring for the lives of residents and in religious rites. This fact, of a social
and supernatural order at the same time, allows us to point out the approximations between
women and the saint, highlighting the female role in the social life of this quilombola
community.

Keywords: quilombolas; Our Lady of Mount Carmel; women.

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Introdução

Nossa Senhora do Carmo foi achada pelos pretos de antigamente, pelos


nossos antepassados e foi por causa dela que a vila foi fundada, já que
construíram a praça e a capela em sua homenagem, desse modo, essas
terras carregam o seu nome, somos fruto do encontro com a santa.
(HERMELINDA, 2016)

A fala acima foi proferida por uma moradora, conhecida como Hermelinda, que
residia em uma comunidade quilombola localizada no interior paulista, onde se verifica a
presença muito forte de uma santa católica, Nossa Senhora do Carmo. Segundo minha
interlocutora, a santa escolheu não apenas os moradores de sua comunidade, mas também
elegeu a terra dela, isto é, o local onde quis permanecer junto com os pretos da comunidade
denominada vila do Carmo. Dessa maneira, Hermelinda esclarece que a santa está ali com
eles desde o início de sua história, protegendo e cuidando dos residentes, já que foram os
seus antepassados que construíram a capela e a praça para homenagear a santa, em meados
do século XVIII. Desde então, até os dias atuais, eles encontram-se sobre a proteção dessa
entidade católica. Ademais, são especialmente as mulheres que destacam a importância da
santa para a comunidade, e é desse encontro com Nossa Senhora do Carmo que a história se
entrelaça e se emaranha1 com o protagonismo das mulheres na vida social e religiosa desse
local.
A comunidade quilombola conhecida como vila do Carmo está localizada na zona
rural do município de São Roque, no Estado de São Paulo, a cerca de 70 km do centro da
capital paulista. Administrativamente, a Comunidade Remanescente de Quilombo do
Carmo faz parte de um bairro rural, formado por aproximadamente 160 famílias,
totalizando cerca de 600 pessoas cujas residências se agrupam nos arredores da capela de
Nossa Senhora do Carmo, que constitui o centro geográfico e simbólico religioso da vila

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A palavra emaranhado é inspirada no conceito de Ingold (2012), isto é, nas linhas que vão sendo
entrelaçadas pelo movimento criativo da etnografia. No caso do Carmo, pontuo o emaranhado da santa que
entrelaça as mulheres, já que ambas não podem ser pensadas de maneira separada ou isolada, assim, suas
linhas vão se formando continua e mutuamente na história da comunidade.

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(Abreu 2019). Abaixo, é possível observar, por meio do destaque no mapa, a localização
exata de São Roque.

Imagem 1: O município de São Roque no Estado de São Paulo (Fonte: Wikipédia).

Dentro da capela de Nossa Senhora do Carmo residia a santa cujo louvor e devoção
pude presenciar, e que constitui o objeto privilegiado de minhas reflexões aqui e na minha
dissertação de mestrado (Abreu 2019). A imagem original da santa, segundo as moradoras2
com quem conversei, pesa 30 kg, mede 60 cm de altura e tem características barrocas,
como podemos verificar na figura a seguir:

2
Em campo, não cheguei a conhecer pessoalmente a santa original, mas tive acesso aos relatos e as suas
fotografias como a destacada no corpo do texto. Infelizmente, tal imagem foi roubada e esse episódio será
melhor descrito na última sessão deste artigo.

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Imagem 2: Nossa Senhora do Carmo original. (Fonte: Acervo da pesquisadora, oriunda da pesquisa de Mestrado).

Essa santa é considerada a padroeira da vila, possuindo, assim, grande valor afetivo,
cultural e histórico para seus moradores e fiéis, sendo essencial na trajetória dos residentes
do Carmo. Além disso, ela é caracterizada como patrimônio cultural material pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), assim como a Comunidade
Remanescente de Quilombo do Carmo é também reconhecida pela Fundação Cultural
Palmares e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) como uma
comunidade remanescente de quilombo. Ademais, como se sabe, o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988 deu aos
povos quilombolas o direito à ocupação sobre seus territórios, devendo o Estado brasileiro
reconhecer definitivamente essas terras como quilombolas e emitir seus títulos de
propriedade (Brasil 1988).
A partir dessas conquistas, é possível observar um crescimento no desenvolvimento
de relatórios antropológicos, que são de suma importância, uma vez que eles se

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comprometem com a política federal de regularização fundiária quilombola, além de tratar
da recuperação e registro da história e da vida social desses povos. Assim, por meio desses
movimentos legais e institucionais, foi possível o desenvolvimento da minha pesquisa de
mestrado, iniciada no ano de 2016, momento no qual entrei em contato pela primeira vez
com a comunidade do Carmo devido a um convite para compor a equipe de elaboração do
laudo antropológico que subsidiaria o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
(RTID) das terras quilombolas nessa região, através de um convênio entre o INCRA e a
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Ainda sobre as comunidades quilombolas, os últimos dados do Governo Estadual
foram atualizados em 2019, sublinhando que existem, hoje, 61 comunidades no Estado de
São Paulo, das quais apenas 36 são regularizadas e reconhecidas pelo INCRA e pelo
Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP). A Comunidade Quilombola do Carmo
é uma das que ainda se encontra em processo para ter suas terras devidamente identificadas
e regularizadas.
Mesmo com os estudos antropológicos para a composição do RTID ainda em curso, e
a não regulamentação de suas terras, com seu reconhecimento formal como território de
comunidade remanescente de quilombo, existem algumas produções acadêmicas sobre a
vila do Carmo que destacam sua ancestralidade negra e atestam sua condição de
comunidade quilombola. Deve-se destacar o trabalho historiográfico de Sandra Molina
(2006), o laudo antropológico produzido para o Ministério Público Federal no ano de 2009,
de autoria de Deborah Stucchi com a colaboração de Rebeca Campos Ferreira, como
também alguns artigos publicados por Ferreira (2011 e 2013), além da dissertação de
mestrado do autor Thiago Souza (2016) o artigo da Eliane Rabinovich (2003), bem como a
minha própria pesquisa de mestrado Abreu (2019).
Os trabalhos citados foram de fundamental importância para o desenvolvimento de
minhas reflexões. Contudo, ao longo do desenvolvimento de minha pesquisa, pareceu
proveitoso aprofundar a relação entre Nossa Senhora do Carmo e os moradores da vila.
Este caminho visou pensar esta relação de uma maneira menos hierarquizada, olhando para
os moradores do Carmo não tanto como escravos, como defende a historiadora Molina

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(2006), nem mesmo tanto como filhos, como propõem Stucchi e Ferreira (2009), mas como
pessoas com as quais Nossa Senhora do Carmo estava e está junto, uma vez que esta é uma
entidade que está sempre próxima dos moradores, ao lado deles, e não tanto acima deles,
como sugerem os pares senhora/escravos (Molina, 2006) e mãe/filhos ( Stucchi e Ferreira,
2019).
Em outras palavras, para Molina (2006), os negros do Carmo eram considerados
escravos da santa. O recorte historiográfico da autora se dá entre o final da década de 1850
até 1889, período que marcou o nascimento do debate abolicionista, mas também anunciou
a repressão legislativa do Estado Imperial contra as ordens religiosas, destacando as
relações desenvolvidas entre os frades carmelitas3 e seus escravos. Assim, segundo a
autora:

Os escravos da santa circulavam, compravam e conviviam entre o mundo


dos frades, nas estradas e nas ruas da cidade. Fosse por meio dos contratos
de arrendamentos, fosse realizando compras pessoais ou para o cotidiano
conventual, ou ainda prestando pequenos serviços contratados pelos
moradores locais. No entanto, para eles, os frades eram apenas uma
espécie de feitores e que qualquer decisão afetando seu cotidiano, deveria
partir diretamente de sua senhora, que no caso, era uma santa. (MOLINA,
p. 216, 2006).

Segundo a historiadora apesar de os negros pertencerem aos frades carmelitas, como


seus escravos, eles conseguiam transitar para além dessa ordem, assim a relação sublinhada
evidencia um forte vínculo deles com a santa, que era a quem realmente importava. E, tal
como registrado em outros contextos de relação entre escravos e ordens religiosas no Brasil
conforme Araújo, (2007), os negros passaram a se identificar, e ser identificados, como
escravos da santa, servos de Nossa Senhora do Carmo.
Já para as antropólogas Stucchi e Ferreira (2009), o pressuposto seguido é de que os
moradores do Carmo são filhos da santa, buscando uma visão, então, mais interna e jurídica
dos próprios quilombolas.

O Quilombo do Carmo, SP, formado por descendentes de escravos da


Ordem do Carmo, se auto designam como filhos de Nossa Senhora do
Carmo – “Filhos de uma reza só” –, onde se desenrola o processo de

3
As terras que hoje constituem a vila do Carmo foram, desde o século XVII, propriedade dos religiosos
carmelitas, denominada Fazenda do Carmo, ou Fazenda Sorocamirim, e possuía cerca de 2.200 alqueires. Na
época, não existia residência religiosa no território, sendo majoritariamente dirigida por padres carmelitas que
viviam em São Paulo (Stucchi e Ferreira, 2014)

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transformação do grupo como sujeito de novo conjunto de direitos.
(FERREIRA, p. 1-384, 2013)

No entanto, através da minha pesquisa de campo, pude constatar que as expressões


“escravos da santa” e “filhos da santa” são muito pouco utilizadas hoje em dia pelos
residentes do Carmo, enquanto a ideia de que a santa atua junto com eles é bastante
presente, pois a denominação mais frequente utilizada por eles é que estão com a santa.

A santa está junto e com a gente desde o tempo dos antigos, foram os
nossos antepassados, os pretos, que a encontraram, ela escolheu ficar,
essas terras são dela, carregam o seu nome e é por isso que estamos
sempre falando sobre ela. (HERMELINDA, 2016)

Portanto, pretende-se, com este artigo, dar continuidade aos estudos sobre a
importância da presença de Nossa Senhora do Carmo, enfatizando as narrativas femininas
ao redor dela de modo a destacar as relações simétricas tal como pensadas, hoje em dia,
entre a santa e as pessoas do Carmo, em especial as mulheres. Desse modo, relatos sobre a
sua história e celebração, bem como o cotidiano dos moradores, serão o mote narrativo
deste trabalho, que é uma etnografia guiada por vozes femininas, que ressaltam o
protagonismo das mulheres, assim como o da santa, que é apontada pelas moradoras como
sendo aquela que detém e integra a comunidade quilombola, e que lhe dá, por assim dizer,
unidade e sentido. Note-se que não quero sugerir que as imagens dos quilombolas do
Carmo como “escravos” ou “filhos” de Nossa Senhora sejam falsas ou inexistentes. Desejo
apenas sublinhar que talvez uma relação mais horizontal entre o humano e o divino possa
ser revelada na comunidade, ao menos nos dias de hoje, em detrimento de uma
verticalidade que caracterizaria períodos anteriores (como o século XIX, analisado por
Molina) ou interpretações antropológicas distintas da que avanço aqui, tal como pude
etnografar na própria vila do Carmo já na segunda década do século XXI.

A história dos moradores do Carmo com sua santa

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A vila do Carmo é formada por residentes que descendem de pessoas que foram
escravizadas pela Ordem Carmelita, nos séculos XVII até o XIX. No final do século XIX,
nota-se o enfraquecimento das organizações religiosas no Brasil e, devido a isso, os
moradores do Carmo começaram a trabalhar para novos proprietários que ocuparam e se
estruturaram nas áreas da fazenda do Carmo. Nesse novo cenário, o trabalho era
caracterizado pela troca de serviços e pela aquisição de pequenas propriedades de terra e,
assim, muitos dos moradores acabavam recebendo um pequeno lote para plantar, construir
suas casas e ter sua própria forma de subsistência, segundo (Stcucchi & Ferreira 2009)

Graças à ligação com a Ordem Carmelita, o território da comunidade tem sido


identificado por esse forte vínculo religioso, tanto por estudos antropológicos (Stucchi &
Ferreira 2009) quanto históricos (Molina 2006), como propriedade de Nossa Senhora do
Carmo. No entanto, existem ainda muitas incertezas quanto ao real estatuto jurídico dessas
terras, visto que houve uma redução significativa de seu território original, pois os
moradores vivem atualmente espremidos em apenas 16 hectares e lutam há anos para ter o
seu território reconhecido. Circula a suposição de que as terras do núcleo da comunidade,
constituído pela vila do Carmo, pertencem formalmente à santa, sendo uma terra de
santa/santo, como em outras regiões do país (Berno de Almeida 2002), mas esta informação
não pode ainda ser averiguada.
Nesse contexto, é possível observar que as certidões dessas propriedades não foram
efetuadas e isto explica muito das indefinições legais que, hoje, rondam as terras da vila do
Carmo, bem como a questão da posse das casas de vários dos atuais moradores. Tereza e
Aparecida, residentes na vila, explicam que os acordos sobre as terras se davam, no
passado, muito por meio da prosa, da confiança e do diálogo. Assim, durante minha estadia
na vila do Carmo, elas mencionaram que, realmente, a Ordem Carmelita perdeu sua força.
Foi, então, nesse momento em que apareceram os arrendatários num contexto de
modernização da cidade de São Roque, e foi a partir dessa época que os antepassados dos
moradores passaram a trabalhar para esses novos proprietários.
Além disso, foi no início do século XX que os arrendatários foram chegando na
vila. Nesse momento, sobressai um acordo feito entre a antiga Ordem Carmelita e o

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Barão de Boa Vista, que resultou no deslocamento dos pretos do Carmo junto de Nossa
Senhora do Carmo para o vale do Paraíba, no Bananal, a fim de que eles trabalhassem na
lavoura de café. Esse episódio também é chamado de “dívida da santa”, pois representa
um acordo entre os antigos carmelitas e os novos arrendatários. Segundo Stucchi e
Ferreira (2014), os moradores trabalharam no Bananal por 18 meses e, naquele contexto,
existia a promessa de que quando retornassem poderiam usufruir com liberdade e
abundância das terras da fazenda do Carmo. Em outras palavras, as terras passariam a ser
de Nossa Senhora do Carmo, mas também dos pretos, evidenciando mais uma vez como
já no passado como a santa e os moradores sempre estiveram juntos, lutando pela
garantia de seu território.
No entanto, a viagem ao Bananal para pagar o acordo não foi suficiente para
garantir aos pretos a posse de suas terras, que passaram a ser mais cobiçadas,
principalmente pelos imigrantes, espanhóis e portugueses, na cidade de São Roque, que
já começava a investir naquilo que ficaria conhecido como a Rota do Vinho. As autoras
Stucchi e Ferreira (2014) pontuam ainda que a chegada desses novos poderosos levou à
paulatina redução das terras ocupadas pelos pretos já em 1919, e que os pretos e a santa
ficaram somente com a quarta parte de seu território original, isto é, com as porções
marginais da antiga fazenda do Carmo.
As moradoras da vila salientam também que após esse episódio do Bananal, os
arrendatários passaram a ser os patrões e que além de tomarem seu território, muitos deles
não gostavam de rezas e não acreditavam em imagens de santo, exigindo sempre que seus
antepassados negros rezassem somente por meio de cochichos. Naquela época, os
arrendatários passavam períodos esporádicos nas terras retalhadas da antiga Fazenda do
Carmo com suas respectivas famílias. Em uma dessas ocasiões, ocorreu um episódio
significativo que envolveu fazendeiros, os pretos e a santa, trazendo uma mudança na
perspectiva interacional entre eles por meio de um milagre realizado por Nossa Senhora do
Carmo, como podemos observar na descrição do relato da moradora abaixo:

(...) um dos filhos do patrão pegou um barquinho de madeira e começou a


brincar no tanque da Fazenda do Carmo, mas o vento soprou e levou a

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criança para o meio do tanque, este era o filho do patrão mais bravo que
os pretos já tiveram e que só deixava as rezas acontecerem se fossem em
voz baixa. Mas o pai da criança estava desesperado, porque ele não sabia
nadar, e não entendia como iria retirar o filho do meio do tanque. Aí, ele
não teve mais dúvidas e exigiu que os pretos fizessem uma reza para a
santa, a Nossa Senhora do Carmo, trazer o filho dele de volta, e foi assim
que os pretos trouxeram a imagem da santa para perto do tanque,
ajoelharam e pediram para Nossa Senhora do Carmo trazer o menino. E
a santa salvou a criança, um vento bateu logo no meio da reza e trouxe o
garoto de volta para os braços do patrão. Depois disso, os patrões
começaram a acreditar na imagem e deixaram os pretos rezarem em voz
alta e a hora que quisessem. (TEREZA, 2016).

A narrativa acima mostra uma santa que, por meio da reza, salva até mesmo o filho
do fazendeiro mais opressor, que dificultava o culto a ela. Nessa lógica, podemos dizer que
Nossa Senhora do Carmo estava, naquele momento – e, como veremos, está ainda hoje –, já
inserida no mundo e nas relações interpessoais, interferindo diretamente em suas vidas,
sendo possível notar que o sobrenatural, por assim dizer, não está apenas no céu, em um
lugar superior e elevado, distante e afastado, mas, ao contrário, está junto e com, diante dos
humanos, especialmente com os negros, atendendo as suas preces que não eram para o seu
próprio grupo, mas sim para o outro que o oprimia, identificado pelo filho do patrão.
Assim, esse socorro, que ocorreu graças às orações dos moradores como uma forma de
libertação milagrosa, mostra como Nossa Senhora do Carmo também estava, e está, acima
dos poderes dos fazendeiros, uma vez que, a partir desse episódio, os moradores puderam
passar a rezar em voz alta e na hora que quisessem.
Dentro dessa perspectiva de ressaltar uma santa que está junto e com os pretos,
destaco o trabalho de Matthew Engelke (2007) que explora a presença divina no contexto
etnográfico da Igreja Masowe Chishanu no Zimbábue. Esse grupo é conhecido por serem
cristãos que não leem a bíblia e que rejeitam a autoridade textual, que é substituída pela
presença divina, já que o sujeito religioso se define e se constrói no mundo espiritual por
meio dos potenciais semióticos da linguagem, ações e objetos. Dessa forma, conforme o

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autor, a grande questão do cristianismo pode ser compreendida por meio da presença divina
dos santos, de Jesus e do Espírito Santo na vida das pessoas.
Nesse sentido de presença divina, é notável que, para a comunidade do Carmo, isso
se deu quando a santa apareceu para contrariar as ordens dos poderosos arrendatários,
apresentando-se diante de um evento mundano e, por meio de sua ação, criando estratégias
junto com os moradores que, em uma ação conjunta, isto é, de humanos e da santa,
resistiram à opressão imposta por eles. Dentro desse contexto de resistência, minhas
interlocutoras também salientaram que a Pedra Balão era um ótimo esconderijo localizado
no alto da vila, no qual a santa e os moradores se camuflavam das autoridades que
apareciam de vez enquanto para maltratar os negros da região. O local oferece uma visão
panorâmica e privilegiada de toda a região do entorno da vila, e até mesmo de cidades
vizinhas, como Cotia e Itapevi.
Outrossim, ainda sobre o episódio de milagre contado por Tereza, podemos salientar
que os arrendatários utilizavam de seu poder e influência sobre os negros do Carmo para
disseminar seu domínio por meio da prática violenta de silenciar as rezas e as tradições dos
moradores daquela região, fato que revela a intolerância que também pode ser classificada
como forma de racismo religioso. Segundo Mota (2017), o racismo religioso está atrelado
estruturalmente a algumas instâncias governamentais que insistem em dizer que os ataques
aos negros são “na verdade” brigas entre vizinhos, meros danos ao patrimônio privado,
violências físicas e morais praticadas contra os afro-religiosos como desentendimentos
particulares, entre outros motivos. Todavia, o que se verifica é a negação completa das
diferentes relações com o corpo, com o território e com os conhecimentos, assim como com
o divino, que não são da mesma ordem que a perspectiva ocidentalizada e branca.
Diante desse contexto de adversidade e de violência, a figura de Nossa Senhora do
Carmo pode ser vista à luz do protagonismo feminino, pois foi uma santa e não um santo
que defendeu e acolheu os negros oprimidos através da realização de um milagre que
resultou na mudança de comportamento dos arrendatários que estavam no poder,
combatendo, assim, o racismo religioso.

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Ademais, existem muitos outros episódios em que a santa aparece junto e com os
pretos. Adelaide, uma outra moradora, também menciona a aparição da entidade sagrada
em meio à natureza, já que, por meio do seu relato, ela conta que foi seu tataravô quem
encontrou Nossa Senhora do Carmo nesse meio, como mostra o trecho abaixo:

Nossa Senhora do Carmo veio destas terras por um milagre, eu tenho


certeza que foi meu tataravô que achou ela, agora se foi no mato ou no
poço eu não sei dizer. Ela escolheu os pretos, ela escolheu a gente.
(ADELAIDE, 2016)

É interessante notar que na narrativa de Adelaide existe uma aproximação da santa


do Carmo com esse território especificamente, relacionando-se com essa comunidade, com
os pretos, estando junto e com eles numa relação de proximidade, apresentando-se como fio
condutor da história, das terras e da ancestralidade negra e quilombola dos descendentes
que nasceram ali. Dessa maneira, foi devido a essa presença que, no centro do bairro do
Carmo, foi construída a capela em homenagem à santa, que, para meus interlocutores,
representa o começo da história dos descendentes, pois é essa figura a responsável pela
proteção e cuidado dos pretos dessa comunidade e pela própria definição do grupo e de seu
território.
Em outras palavras, o território quilombola do Carmo é marcado, portanto, pelo
encontro dos residentes da vila com Nossa Senhora do Carmo, visto que a construção de
sua capela representa uma homenagem à santa. Além disso, o evento do Bananal na suposta
“dívida da santa” reforça o argumento de que ela está próxima e com os moradores desde os
tempos passados, chamando atenção para o seu protagonismo junto dos pretos na luta pela
manutenção e pela garantia de suas terras. Tal protagonismo estende-se até os dias atuais e
ele é também visualizado nas mulheres da comunidade, que é próximo tópico deste artigo.

Nossa Senhora do Carmo e o protagonismo feminino

Ao compreender o significado de Nossa Senhora do Carmo como sendo uma santa


católica de tamanha relevância na comunidade do Carmo, cabe salientar que os diálogos
realizados em campo foram pautados por narrativas majoritariamente femininas, uma vez
que as mulheres desenvolvem um papel de protagonismo na relação da comunidade com a

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santa e com seus devotos. Contudo, pontuo aqui que o fato de eu ser uma pesquisadora
mulher permitiu também que eu conseguisse transitar entre elas, tendo uma proximidade
maior com o grupo de mulheres, em detrimento dos homens. Nesse sentido, ressalto que o
processo etnográfico da pesquisa e escrita foi se formando por meio do meu encontro com
as mulheres quilombolas do Carmo.
Entretanto, acredito que isso não seja um problema, mas sim uma questão de
perspectiva, reconhecendo que há concepções femininas que são distintas, mas tão
relevantes quanto às masculinas. Com isso, fui compreendendo que escrever sobre a santa é
também uma maneira de falar sobre as mulheres da vila do Carmo. Diante disso, minhas
interlocutoras explicam que prosear cotidianamente sobre a santa é muito importante, já
que esse comportamento rende reflexões a respeito de sua própria história, do território e de
suas memórias coletivas.
Ademais, é importante destacar como a rotina desse grupo impacta sua relação com
a santa, visto que todas as atividades do cotidiano dessas mulheres passam pela capela, isto
é, seus trajetos e ações rotineiras vão de encontro ao espaço onde se encontra a santa.
Normalmente, as mulheres do Carmo atravessam a praça pela manhã para irem ao trabalho,
sendo que a maioria delas levanta às 6h, seguem em direção à frente da escola para pegar a
van ou outra condução que as leve para trabalhar, sobretudo, no condomínio Patrimônio do
Carmo (um residencial de alto padrão próximo à vila), geralmente, como empregadas
domésticas. Outras pessoas ficam no ponto de ônibus, próximo à capela, para poderem ir às
cidades de Vargem Grande Paulista ou São Roque ou para ir à farmácia, pagar contas,
visitar algum parente que reside em um desses municípios e fazer compras de mercado.
Nesse cenário, há apenas um mercadinho, porém esse estabelecimento não dá conta
das necessidades das famílias da vila. A precariedade do mercadinho local faz com que
algumas mulheres se mobilizem e se organizem para manter um fornecimento de alimentos
a partir de seus bares. Existem três bares na vila do Carmo, conhecidos pelos nomes de
suas proprietárias. Eles são os bares da Rosa, da Marisa e da Suelen; ou seja, são todos
comandados e geridos por mulheres, que são, claro, devotas da santa, conforme aponto na
minha dissertação (Abreu 2019). No entanto, essas devotas também esclarecem que apesar

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de estarem sob a proteção constante de Nossa Senhora do Carmo, em seus
estabelecimentos não existe a imagem da santa e nem de qualquer outro santo, mas isso
não as impedem de rezar para a proteção de seus comércios.
Curiosamente, chama a atenção o fato de a imagem de Nossa Senhora do Carmo
não existir em nenhuma casa, uma vez que a sua morada é o altar da capela4 principal da
vila. As moradoras também sublinham que dentre os rituais religiosos realizados na vila, a
festa de Nossa Senhora do Carmo é considerada a cerimônia mais importante da
comunidade, porém ela não é a única, pois existem outras celebrações de santo, como a
celebração de São Gonçalo, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Aparecida, entre
outras festas religiosas, mas nenhuma dessas contém a relevância que a celebração da santa
possui.
Segundo o calendário religioso, o dia 16 de julho, corresponde ao dia de Nossa
Senhora do Carmo, mas a preparação desse ritual significativo inicia-se em um momento
anterior, mais especificamente nos meses de abril, maio e junho. Nesses períodos, as
mulheres organizam novenas, reuniões, bingos e vendas de pastéis para a obtenção dos
recursos financeiros para a realização dessa festa. Assim, no domingo mais próximo ao dia
de Nossa Senhora do Carmo saem em procissão junto com ela 26 santos, já que, segundo
elas, a santa sozinha não seria capaz de dar conta de todas as demandas da vila, e esses
outros santos são amigos próximos da santa. Nesse sentido, a celebração tem como
propósito reunir moradores e imagens de santos, movimentando-os pelo território em uma
dinâmica festiva.
Consequentemente, a celebração de Nossa Senhora do Carmo possibilita à
comunidade momentos culturais, religiosos e de lazer significativos, permitindo, ainda, a
experiência interacional entre o passado e o presente por meio da preservação das tradições
e da memória coletiva desse grupo, que são guardadas e contadas inclusive no dia da
celebração. Nesse momento de festividade, destaco que é o grupo majoritariamente

4
A capela principal é a de Nossa Senhora do Carmo, mas na vila também existe uma segunda capela que é de
Nossa Senhora Aparecida que é reconhecida por ser outra santa mulher e por abrigar inúmeras imagens de
santos, inclusive os católicos que se tornam evangélicos doam as suas imagens de santos para o altar da capela
de Aparecida, pois, segundo minhas interlocutoras, assim como os humanos, os santos também precisam de
uma morada, reforçando ainda mais a importância que as imagens têm para a comunidade.

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feminino que faz com que a celebração aconteça e se mantenha, visto que são elas que
cuidam da igreja, dos andores, dos enfeites, da comida e da organização da festa como um
todo. Os homens cuidam da eletricidade e da montagem de barracas; no entanto, são elas
que decidem o lugar e a posição dessas mesmas barracas e da iluminação da festa. Em
outras palavras, são elas as maiores responsáveis pela manutenção e consolidação dessa
tradição e do cuidado com a santa.
No que toca à investigação antropológica sobre o catolicismo e o protagonismo das
mulheres em outras comunidades negras rurais, é possível observar que existem trabalhos
que também enfatizam a presença e a importância do feminino. No entanto, este artigo
aproxima-se mais da visão de que como essa interação se dá no cotidiano, assim como
destaca a antropóloga Mayblin (2010), que desenvolveu sua pesquisa de campo na cidade
de Santa Lúcia, no sertão pernambucano, onde a pesquisadora destaca que suas
interlocutoras são principalmente católicas e que compartilham de uma condição de vida
em comum, representada por desafios que são corriqueiros e cotidianos das mulheres que
precisam lutar e ultrapassar os contratempos da vida.
Além disso, a tese de Mayblin diferencia os papéis exercidos pelos homens e pelas
mulheres, limitando a elas, desde jovens, à aprendizagem e ao desenvolvimento de várias
tarefas, tais como: lavar, alimentar, carregar, limpar, rezar, cuidar, isto é, atividades que
parecem ser preparativos para o exercício da maternidade. Nesse contexto, o estudo aponta
a ligação entre o sofrimento e o louvor de Nossa Senhora, pois as mães compreendem e
enfrentam inúmeras adversidades que são louvadas como um sacrifício cristão, ou seja, da
ordem do divino, visto como uma recompensa cotidiana, garantindo alívio e conforto para
essas mulheres. Desse modo, de acordo com a autora, é importante para as católicas
compartilharem o corpo de Cristo no ato eucarístico, pois esse comportamento simboliza a
união entre o cotidiano e o sagrado. Desse modo, semelhantemente ao trabalho de Mayblin
(2010), é possível notar que, na vila do Carmo, as mulheres também possuem um papel
muito ativo e fundamental, cabendo a elas também cuidar da casa, capela, filhos, festas,
bares, rezas, da doação e da distribuição de mantimentos.

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Contudo, a devoção à Nossa Senhora do Carmo e de sua imagem é diferente
daquela que ocorre na comunidade investigada por Mayblin. O fato de Nossa Senhora do
Carmo não possuir o menino jesus no colo, reforça ainda mais a singularidade dessa santa
que é tida pelas minhas interlocutoras como sendo a verdadeira inspiração feminina,
simbolizando a “mulher” como um todo, que ampara outras mulheres, e não apenas as
mães, diferenciando-se da comunidade destacada por Mayblin, cuja interação com Nossa
Senhora é mais marcada pela ótica da maternidade.
Logo, o catolicismo apresentado no Carmo está muito atrelado à imagem da santa e
à forte presença das mulheres naquela sociedade, independentemente delas serem mães ou
não – tanto que a própria Nossa Senhora da vila quilombola do Carmo sequer traz consigo
o menino Jesus em seu colo, sinalizando que a relação humano-divina é integralmente
feminina.
Além disso, essas moradoras argumentam que a vila tem o nome de santa e não de
santo, uma vez que o gênero da santa é feminino, fato que reforça o poder e a presença da
santa na comunidade. No entanto, no dia 13 de março de 2012, essa imagem tão
significativa de Nossa Senhora do Carmo, que adornava o centro do altar da capela da vila,
foi tragicamente furtada de sua morada5. De acordo com os relatos dos moradores e as
notícias divulgadas sobre o furto (que é designado como “roubo da santa”), a fechadura da
porta dos fundos da capela foi arrombada, assim como a janela de vidro lateral quebrada,
para a realização de tal crime. Ademais, ainda segundo as moradoras da comunidade, esse
furto significou uma tragédia que abalou suas vidas, porém elas continuam rezando e
pedindo proteção à santa, visto que muitas têm a esperança de que um dia ela retornará. Em
outras palavras, nota-se que, para elas, o fato de a imagem ter sido roubada não significa a
perda da ligação entre elas, uma vez que a fé e a devoção a Nossa Senhora do Carmo
permanecem fortes.
Na época do roubo, Rebeca Campos Ferreira, antropóloga e pesquisadora, foi a
responsável por denunciar o furto da santa para a Polícia Federal. A antropóloga

5
Como menciono na introdução deste artigo, infelizmente, por conta desse roubo, não tive a oportunidade de
conhecer a imagem original de Nossa Senhora do Carmo.

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desenvolvia, naquele período, uma pesquisa na comunidade do Carmo, com o intuito de
auxiliar os moradores no processo de identificação territorial e titulação das terras
quilombolas. Ferreira pontua, em entrevista concedida ao Jornal Estado de São Paulo
(2012), que o roubo da santa pode ter sido um aviso aos moradores por conta das
reivindicações pelas terras, já que ela acredita que o crime não foi praticado por um
colecionador, tampouco por um ladrão comum, mas sim por alguém que queria atrapalhar o
processo de regularização territorial quilombola. Outro fato intrigante é que, três dias após
o roubo da imagem, as moradoras encontraram o manto marrom que envolvia a imagem
original de Nossa Senhora do Carmo com o seu broche de ouro, no quintal da casa de um
dos moradores da vila, mas até o momento atual a imagem se encontra desaparecida.
Análogo à tragédia do roubo da santa do Carmo, temos outro exemplo muito
parecido que ocorreu na cidade de Itaúna-MG, no dia 16 de dezembro de 2014. Nessa
cidade, ocorreu um terrível incêndio que consumiu praticamente toda a capela do Morro do
Senhor do Bonfim, resultando no desabamento do telhado e na destruição do interior e de
seu assoalho pelas chamas. Segundo investigações, o incêndio teve características
criminosas, visto que na perícia a capela apresentou sinais de arrombamento. Em relação a
esse episódio, existem documentos que relatam que a capela do Morro do Senhor do
Bonfim foi erguida entre 1750 e 1778. Contudo, mesmo após o trágico acidente, os fiéis
continuaram realizando a procissão até o Morro do Bonfim e, no ano de 2016,
conseguiram, com a ajuda de padres, desenvolver um projeto para a restauração da capela
por meio do apoio da prefeitura e do IPHAN.
Assim, o roubo da santa e o incêndio da capela do Morro do Senhor do Bonfim,
bem como suas consequências, fortalecem a hipótese de que algo está para além da própria
imagem, uma vez que as figuras de Nossa Senhora do Carmo e do Senhor do Bonfim, por
exemplo, não sofrem um apagamento de sua presença no cotidiano mesmo com o
desaparecimento de suas imagens (materiais), já que elas se mantêm vivas em seus
territórios, especialmente nas celebrações, nas memórias e nos cultos ainda realizados, bem
como nos sonhos e, de modo geral, na devoção dos fiéis.

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Dentro dessa perspectiva de pensar a singularidade de Nossa Senhora do Carmo,
destaco o trabalho do Mello (2012), que em sua obra sobre Cambará, comunidade negra
rural no Rio Grande do Sul, salienta que são esses episódios específicos que dão força para
a solidificação do território e para a história quilombola, salientando que os monumentos
representam marcas de uma dada territorialidade, como é possível ler no seguinte trecho:

Se a terra é objeto de demanda no presente, ela não se resume a uma


dimensão material ou utilitária. Ela carrega afetos, personagens,
subjetividades e marcos estritamente relacionados àquilo que o grupo
apresenta como o seu território. (MELLO, 2012, p. 206).

Assim, é importante ressaltar também que, após o delito criminoso ocorrido na vila
do Carmo, uma nova imagem de Nossa Senhora foi colocada em seu lugar para ocupar o
vazio deixado pela ausência física daquela que foi furtada. Porém, esta imagem é tratada
como substituta pelas moradoras, que esperam o retorno da santa original. Como podemos
notar na figura abaixo, essa outra imagem possui características diferentes da primeira,
visto que essa nova imagem carrega o menino Jesus.

Imagem 4: Nossa Senhora do Carmo substituta. (Fonte: acervo da pesquisadora)

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Desde o roubo da Santa, é essa imagem substituta6 de Nossa Senhora do Carmo que
ocupa um lugar central na capela da vila. Todavia, os pertences da santa original como seu
broche, manto e andor, encontram-se guardados em um dos cômodos da Igreja para que,
quando a imagem verdadeira voltar, eles possam ser colocados no seu devido lugar. O
curioso é que meses antes do roubo, muitas mulheres da vila já vinham sonhando com a
santa. Inclusive, Hermelinda, conta que sonhou com o roubo algumas vezes e que sempre
acordava aos prantos e que tentou alertar o padre diversas vezes, exigindo que ele
providenciasse uma melhor segurança para a capela, alegando que seu sonho estava longe
de ser um mero devaneio, que precisava ser levado em consideração. Contudo, as tentativas
de alertar o padre se mostravam inúteis, uma vez que tais reivindicações eram tratadas pelo
sacerdote como mera fantasia.
Aparecida, outra moradora da comunidade, também conta que vinha sonhando com
o roubo da santa e, que em seu sonho, sua falecida mãe aparecia tocando o sino da capela,
implorando novenas e orações, anunciando que Nossa Senhora do Carmo corria risco de ser
furtada. Assim, como Hermelinda, ela também tentou avisar o padre da capela que,
novamente, não deu a devida atenção ao relato. Aparecida menciona ainda que, nos dias
anteriores ao roubo, notou que o manto da santa estava do avesso, chamando atenção para a
hipótese de que alguém já estava planejando algo com a santa.
Assim, os relatos dos sonhos referentes ao roubo da santa reforçam ainda mais o
protagonismo das mulheres, pois foram elas que vinham sonhado com a santa, e são elas
também que cuidam das imagens, dos altares, das festas, das casas, mas isso não significa
que os homens não sejam devotos, ou ainda que estes não se importam com a santa.
Contudo, são elas que contam os fatos e que constantemente reforçavam a importância da
santa em suas vidas. Nesse sentido, os sonhos foram mais uma das variadas maneiras de
mostrar e reforçar o quanto Nossa Senhora do Carmo é importante e presente na vida dessa
comunidade.

6
Nossa Senhora do Carmo substituta é tido pelas moradoras como uma imagem secundária, pois ela possui
menos força que a imagem original para as devotas, e foi ela que pude ver em campo. Contudo, quem
realmente tem uma importância significativa para a comunidade é a santa original, que é sempre mencionada
e ainda segue desaparecida.

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Por fim, saliento que muitas dessas mulheres seguem rezando todos os dias para que
a imagem original retorne para a capela e para que o responsável pelo roubo devolva a
santa. Entretanto, enquanto ela não volta, as mulheres continuam sendo protagonistas
contando a história delas com Nossa Senhora do Carmo para que essa se mantenha ali com
elas no cotidiano, a fim de que essa tradição nunca seja esquecida. Portanto, o intuito dessa
sessão foi sublinhar como as mulheres estão emaranhadas a história da santa.

Considerações finais

No ano de 2020, com a emergência da atual pandemia provocada pelo novo


coronavírus (SARS-COV-2), agente causador da doença COVID-19, a celebração de Nossa
Senhora do Carmo foi suspensa, em respeito ao distanciamento social e aos cuidados
exigidos. Nesse quadro de pandemia, muitas das moradoras têm esperança de que essa fase
difícil passará e que o trágico contexto deixará ensinamentos produtivos para as gerações
futuras. Dessa maneira, elas seguem realizando novenas e rezas pelos meios cibernéticos,
entre eles, o Whatsapp e Facebook, mantendo, então, a tradição e a devoção à santa.
Assim, mesmo em um contexto grave de enfermidade, notamos que o protagonismo
das mulheres do Carmo permanece. Dealdina (2020) pontua que é justamente esse
protagonismo feminino e negro que leva as mulheres a assumirem papéis de lideranças
políticas significativas que fortalecem o diálogo identitário e a luta das comunidades
quilombolas, pois são elas que articulam uma rede de apoio, formada por mães, esposas,
avós, filhas e netas, dando força e sustentação para a construção e continuidade de um
debate sobre a relevância quilombola.
Desse modo, chama a atenção o fato de mulheres quilombolas desempenharem, em
seus territórios, papéis tão significativos, uma vez que elas atuam como um acervo da
memória coletiva, pois é por meio delas que é possível registrar as diferentes formas de
produção de conhecimento, ressaltando uma diversidade de saberes tradicionais. Em outras
palavras, são elas que transmitem e preservam os conhecimentos locais, que sabem
manipular as ervas medicinais, o artesanato, a agricultura, a culinária, a devoção religiosa e

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a organização das festas, ou seja, são elas que cuidam, ao fim e ao cabo, da coletividade.
Nesse cenário, Gomes (2020) complementa que:

As mulheres quilombolas constroem conhecimentos que emancipam a


elas mesmas e as outras pessoas do quilombo. Compreendem a
importância política e jurídica do território e da terra, bem como a força
vital na construção das identidades quilombolas as quais se afirmam por
meio das lutas cotidianas contra toda sorte de opressão. (GOMES, 2020,
p.11).

Ainda dentro dessa perspectiva feminina, reforço que esse protagonismo vem sendo
apresentado em várias comunidades quilombolas, salientando trabalhos etnográficos como
os de Perruti (2015) e Alves (2016), que foram desenvolvidos nas regiões de Goiás e do
Alto Jequitinhonha, respectivamente. Tais pesquisas reforçam e acrescentam o fato de que a
luta territorial quilombola só é possível porque são as mulheres, enquanto partes
fundamentais de suas comunidades, que se apropriam das pautas que movem seus
territórios na direção de sua regularização, proteção e desenvolvimento.
Por fim, concluo que busquei com este artigo etnografar a perspectiva feminina das
mulheres quilombolas, destacando como Nossa Senhora do Carmo é uma divindade que
está junto e com as moradoras dessa comunidade desde o tempo dos antigos, permanecendo
presente na história atual de um modo horizontal e próximo, sendo enaltecida
constantemente nas vozes das mulheres, que são protagonistas mesmo em contextos
adversos como essa recente pandemia. Em conclusão, são essas mulheres que se
reinventarem e fazem com que a tradição e o festejo se mantenham em suas vidas e na
coletividade, nos diálogos e nas ações com a santa, cuja imagem ainda se sonha ser
reencontrada.

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