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eu sou pessoa que procura desgraça na vida. ter paz é muito tormento, não acha?

ter paz é
ter vida monótona e se for pra viver em coisa morna já não teria nascido. meio termo é
coisa de gente que tem tempo, gente que tem tempo de fazer da vida um grande shou.
shou? show? é, acho que isso aí. enfim. quem tem tempo nesse mundo hoje em dia,
teresinha? fico me perguntando isso o tempo todo e gastando esse tempo que já me é tão
raro por conta de trabalho. verdade, teresinha, trabalho. 'tô escrevendo por causa de
trabalho.

luigi teve acidente na fábrica, a máquina cortou-lhe o dedo fora e agora resmunga e
choraminga pela casa quando acha que ninguém vê. eu vejo, comadre, e bem tenho pra
mim que esse menino não chora pelo dedo mas chora pelo trabalho que perdeu. claro que
iam chutar a bunda dele fora, mas me dói o coração porque sou mãe e também sou filha e
ter junto o sentimento das duas coisas vendo essa criança sofrer é como se o dedo
decepado fosse meu próprio. patrão é patrão e eu, burra velha, já vi muita gente ser posta
pra fora com mão 'a frente e outra atrás por causa de coisa desse tipo. por causa de
acidente. quem tá lá dentro dando o couro e o suor e o sangue é só maquinário dos que 'tão
lá em cima fumando charuto. é um bando de rato que trabalha tecelando coisa e mornando
coisa e picando sem parar por um tempo que só jesus de nazaré vê.

enfim, teresinha, luigi tá acabado. diz sozinho que vai se matar. eu bem me perco sozinha
em pensamento - e como eu disse nem tenho tempo, então uso tempo que não existe,
excedo o que é possível - calculando como vou dar conta disso agora. se esse menino
morre, teresinha, me perco inteira. também nem tenho dinheiro pra enterro e funeral,
coitado!, ia ser posto no quintal de casa e minha alma ia se cortar um pouco toda vez que
eu saísse pela porta ou que olhasse pela janela e lembrasse que um corpo que se formou
no meu ventre agora se deforma debaixo da terra. e da terra que eu piso.

ai comadre! você sabe que sempre fui sozinha com esse menino, com sua ajuda que
sempre foi tão bem vinda em tempos turbulentos. será que aceita luigi por essas banda por
um tempo, teresinha? ele capina bem, dou minha palavra. não tem motivo de uma velha
mentir, porque a idade avança e junto com a idade chega a incapacidade de manter
inverdade, porque ela se enruga aqui dentro de tal forma que meu próprio corpo expele e
fica aparente na pele externa. não quero mais ruga então não minto. seria por um tempo só,
sabe, comadre?, até eu tirar tudo que é de faca e tudo que é de tiro ou de amarra ou de
veneno ou de remédio de dentro de casa. vou pôr fogo em tudo. aí luigi volta depois,
quando tudo tiver feito, e não vai ter nada pra conseguir se matar. só vai ter sofá e cama e
vaso e acho que não tem como se tirar a vida nessas coisas. talvez ele até se alegre um
cadinho, trabalhando na capina do mato com seu afonso. talvez tire essa ideia de girico da
cabeça.

responde rápido, comadre, porque luigi tá se mordendo sozinho e achando que consegue
arrancar os outros dedos. ele acha que assim vai ficar tudo igual e consegue o emprego de
volta. menino bobo.

quando for pra entregar resposta, joga por debaixo do portão, 'tá? vou ficar sentada
esperando. luigi não pode saber. anda rápido porque ficar sentada nas escadas do portão
me dá dor no cóquis.
'gradecida.

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