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Liã - Ã - Es de Direito Internacional Pã - Blico - Francisco Ferreira de Almeida (1â Parte)
Liã - Ã - Es de Direito Internacional Pã - Blico - Francisco Ferreira de Almeida (1â Parte)
COIMBRA – 2023/24
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INTRODUÇÃO:
Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio
Cassese, Le droit international dans un monde divise, Berger-Levrault, Paris, 1986; Azevedo Soares,
Lições de Direito Internacional Público, 4ª edição, Coimbra Editora, 1988; Bruno Simma, From
bilateralism to Community Interest in International Law, RCADI, 1994 – VI; Cançado Trindade, A
humanização do Direito Internacional, 2ª edição, Del Rey, 2015; Christian Tomuschat, Obligations arising
for States without or against their will, RCADI, 1993 – IV; Gerd Seidel, Die Völkerrechtsordnung na der
Schwelle zum 21. Jahrhundert, Archiv des Völkerrechts, 38, 2000; Francisco Ferreira de Almeida,
Mutações sistémicas e normativas no direito internacional em face de novos desafios, RDCPB, Tomo LX,
Número 326, Maio-Agosto, 2011; Francisco Resek, Direito Internacional Público: Curso Elementar, 17
ed., São Paulo, Saraiva, 2018; Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional
Público, 3ª edição, Almedina, 1993; Hermman Mosler, The International Society as a Legal Community,
RCADI, 1974; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1965; Jónatas
Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestlegal, 2020; Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito
Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª edição, Almedina, 2020; Jorge
Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia, 2016; Quoc Dinh, Daillier/Pellet,
Droit International Public, LGDJ, Paris, 1994; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition, Cambridge
University Press, 2017; Maria Luísa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global do
Século XXI, AAFDL, 2019; Prpsper Weil, Le droit international en quête de son identité, RCADI, 1992, VI;
Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª edição, Coimbra Editora, 2014; Verdross/Simma,
Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker & Humbolt, 2010.
Não se ignora, por certo, que os termos Estado e Nação recobrem realidades não
obrigatoriamente coincidentes. A verdade, porém, é que a expressão «direito internacional» remonta a
um período histórico não muito distante do séc. XIX, tendo sido, como se sabe, por essa altura que, com
base no princípio das nacionalidades, se procurou firmar o entendimento, mais tarde rejeitado, segundo
o qual a cada Estado deveria corresponder uma e uma só nação; ou se se preferir, que toda a nação
teria o direito de se organizar politicamente em Estado.
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Para comprovar o que acaba de ser dito, e sem que seja necessário recuar muito no tempo,
basta pensar-se em que a sociedade internacional estava há não muitos anos – mais propriamente no
período da «Guerra Fria» - claramente fraccionada em três blocos distintos de Estados: o bloco dos
países ocidentais, tributários de uma filosofia política liberal e democrática, o bloco dos países
socialistas, que, de uma forma geral, gravitavam em torno da esfera de influência da ex-URSS, e o bloco
dos chamados países do terceiro mundo e em vias de desenvolvimento.
Com a derrocada dos sistemas políticos dos Estados do leste europeu, esbateram-se, no
estertor do séc. XX, as clivagens até então existentes. Mas, reconhecida a imponderação do pré-
anunciado «fim da história», descortinam-se, no dealbar do terceiro milénio, outras e não menos
preocupantes assimetrias. Atente-se, com efeito, v. g., nos graus diversos de desenvolvimento entre os
países do hemisfério norte e os países do hemisfério sul, nas gritantes diferenças culturais e religiosas
entre os Estados ocidentais e os do mundo islâmico – aqui com a preocupante nota do fundamentalismo
–, na singularidade idiossincrática dos povos asiáticos, nos nacionalismos exacerbados que se
manifestam em Estados multinacionais, etc..
Recorde-se, a este propósito, o preceituado no art. 53.º da Convenção de Viena Sobre o direito
dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, que, cominando a sanção da nulidade para os tratados que
infrinjam uma norma imperativa de direito internacional – ou de jus cogens – se refere precisamente a
essas normas como sendo aquelas aceites e reconhecidas como tal pela comunidade internacional dos
Estados no seu conjunto.
Arredia da realidade dos factos nos parece, deste modo, a posição outrora defendida por
JESSUP, para quem caberia acolher a designação genérica «transnational law», apta, segundo pensava,
a significar toda a lei disciplinadora de actos que extravasam das fronteiras nacionais.
Por motivos diversos, permitimo-nos não acompanhar também MARQUES GUEDES quando
parece propugnar uma distinção entre o direito internacional público e o direito internacional privado,
fundada no facto de o primeiro regular relações entre sujeitos de direito público e o segundo relações
entre sujeitos de direito privado. Na verdade, como advertem GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS, nem o direito internacional público regula hoje, exclusivamente, relações entre sujeitos de
direito público, nem o direito internacional privado disciplina, predominantemente, relações jurídicas
substantivas.
futuros Estados nacionais unificados um património de ideias que moldaram uma nova
concepção do poder (J. L. BRIERLY). Assim, o dever de lealdade do vassalo perante o
senhor convolou-se no dever de fidelidade do súbdito perante o rei; a assimilação, por
outro lado, de direitos de natureza política a verdadeiros direitos de propriedade,
favoreceu o entendimento do governo como poder concentrado ou centralizado
(ibidem).
O segundo factor que condicionou o nascimento dos Estados modernos
reconduz-se à influência retardadora que a Igreja exerceu na consolidação da
autoridade civil. Com o movimento da Reforma, todavia, os Estados forcejaram por
emancipar-se (libertar-se) da tutela do poder espiritual e criaram, em definitivo,
condições para a instauração de uma nova ordem política na Europa (o sistema
europeu de Estados).
Os tratados de paz de Westefália – o de Osnabruck e o de Münster – que, em
1648, puseram termo à sangrenta guerra religiosa dos Trinta Anos, marcam, no
continente europeu, o início de uma nova era, assente na emergência de entidades
soberanas e independentes, colocadas num plano, ao menos jurídico-formal, de
perfeita igualdade.
Não é certamente por acaso que os tratados de Westefália – concluídos entre os vários
implicados na Guerra dos Trinta Anos (a França, a Espanha, as Províncias Unidas, o Sacro Império
Romano-Germânico, a Suécia e a Dinamarca), consubstanciando um jus publicum europeum (WLADIMIR
BRITO), são não raras vezes apelidados de Carta Constitucional da Europa . De facto, por meio deles, os
senhores e príncipes europeus reclamaram liberdade para gerir os seus próprios assuntos, recusando
submeter-se a uma autoridade superior. Com a paz de Westefália soou o toque de finados pela Res
Publica Christiana; de um lance, parecia ter-se consumado a derrota do Império e a do Papado,
estabelecendo-se, num contexto de liberdade religiosa, a igualdade entre católicos, luteranos e
calvinistas. Acresce que dois dos mais importantes princípios vertebradores do ordenamento jurídico
internacional aí obtiveram, desde logo, acolhimento: o princípio da soberania e o da igualdade dos
Estados. Nos anos subsequentes à celebração dos tratados de Westefália, a França a Suécia e a
Dinamarca afirmam-se progressivamente como potências emergentes do continente europeu; a Suíça,
por seu turno, converte-se em Estado neutral, ao passo que a Alemanha se divide em pequenos Estados
e o Império hispânico dá mostras de uma inexorável decadência. Assim se manterá a sociedade
internacional (ainda exclusivamente europeia) até à Revolução Francesa e ao Império Napoleónico. Com
a derrota de Napoleão, em 1815, o Congresso de Viena deu origem ao chamado Concerto Europeu,
através de conferências diplomáticas – um arremedo de sistema de segurança colectiva entre as
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Diga-se, aliás, que o próprio Tribunal Internacional de Justiça tem confortado, em algumas das
suas decisões, este entendimento das coisas, ao considerar o direito internacional como um garante da
independência dos Estados e um instrumento para a cooperação entre eles. Vejam-se, a título
meramente exemplificativo, os acórdãos proferidos nos casos das Actividades militares e paramilitares
na Nicarágua e contra esta (ICJ Reports, 1986) e do Pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos
em Teerão (ICJ Reports, 1980).
O dualismo coexistência/cooperação espelha, de resto, as duas pulsões conflituantes com que
se confrontam os Estados nas relações internacionais: a da independência e a da Interdependência. À
primeira, melhor se afeiçoa a função da coexistência; à segunda, a da cooperação. No que,
especificamente, se refere a esta, sublinhe-se que actualmente tendem a prevalecer os mecanismos
institucionalizados e permanentes de cooperação, sob os auspícios de organizações internacionais
universais e regionais – facto que, de certo modo, representa o epílogo de um paradigma clássico,
assente num sistema de Estados auto-suficientes e numa concepção absoluta de soberania.
Outro grande sociólogo alemão, MAX WEBER, não deixando de fundar a aludida distinção entre
comunidade e sociedade em critérios idênticos aos acima explicitados, adverte, contudo, para o facto de
corresponderem a tipos ideais essas duas formas de relação social, raramente encontrando tradução fiel
na realidade. Pode assim dizer-se que, por via de regra, os elementos societários coexistem com os laços
comunitários, havendo que tomar em linha de conta os caracteres predominantes, em ordem a
qualificar, com um mínimo de rigor, um dado grupo como comunidade ou como sociedade. Ficou a
dever-se a G. SCHWARZENBERGER a mais lograda tentativa de transposição desta teoria para o âmbito
do direito internacional, considerando este autor que a soberania dos Estados potencia o individualismo
e, nessa medida, constitui um factor de conflito e de desagregação, sem dúvida, mais poderoso do que
os também indiscutíveis elementos de união.
Muitos exemplos se poderiam fornecer para comprovar o que acaba de ser dito. Bastará, no
entanto, para esse efeito, que pensemos no conteúdo incerto de alguns dos princípios basilares do
moderno direito internacional – v. g., o princípio da autodeterminação, o do respeito pelos direitos
fundamentais da pessoa humana, o da cooperação, o da boa-fé, etc. –, em algumas das novas regras
sobre a apropriação de recursos naturais, e que, nomeadamente, para certos espaços internacionais
estão na base do surgimento do conceito, algo controvertido, mas actualíssimo, de património comum
da humanidade; ou, num outro plano, na indefinição de algumas das consequências sobrevindas à
prática dos actos ilícitos (em particular, os mais graves) e no funcionamento ainda demasiado aleatório
da justiça internacional.
o mesmo não sucederá, porém, caso um tratado em vigor para os signatários (hard
law) enuncie direitos e obrigações de conteúdo indefinido e escassamente perceptível
(soft law) ou, em sentido inverso, uma norma precisa e detalhada (hard law na
substância) haja sido vertida numa resolução da Assembleia Geral da ONU (soft law no
que se refere ao instrumento).
Interessa-nos aqui, em especial, a dimensão material da soft law. E a esse
respeito uma interrogação, desde já, se levanta: não constituirá a soft law um
fenómeno patológico da normatividade internacional? Por outras palavras: a
versatilidade normativa do direito internacional que ela deixa a descoberto não terá
como consequência a sua descredibilização ou até a sua falência enquanto ordem
jurídica?
Parece-nos bem que não. É próprio do direito, como salientou KELSEN, um
mínimo de eficácia, não uma eficácia total. E esse mínimo de eficácia pode advir de um
espontâneo acatamento das normas que fazem parte de uma determinada ordem
jurídica – diríamos até que advirá sobretudo daí –, não derivando, pois,
necessariamente, da sua imposição coerciva. Acresce que, caso nos consigamos
libertar de critérios de excessivo rigor formal, não custará admitir que ao direito
“frágil” ou “fraco”, como amiúde se designa também a soft law, se ligam indiscutíveis
virtualidades que importa não negligenciar.
Assim, desde logo, estamos em presença de normas que os Estados se
predispõem a aceitar mais facilmente porque menos “afrontosas” para a sua
soberania, não reduzindo a zero a sua liberdade de actuação e desempenhando, desse
modo, a necessária função de “válvula de escape” do sistema. Para mais, pouco
eficazes no imediato, elas são susceptíveis, a prazo, de se converter em normas
costumeiras (hard), em resultado de uma sua geral aceitação e aplicação por parte dos
sujeitos de direito internacional. Nenhuma razão sobeja, por conseguinte, para que a
soft law seja encarada como um fenómeno patológico da normatividade internacional.
Pelo contrário: a existência de normas dotadas de fraca coercibilidade perfeitamente
quadra e se coaduna com a estrutura desorganizada (pouco institucionalizada) da
sociedade internacional, constituindo inclusive um factor de progresso e evolução do
direito internacional.
Adiante-se que a questão do limiar da normatividade, isto é, da fronteira entre
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Não cremos, todavia, que assim seja. Afigura-se-nos, com efeito, extremamente duvidoso que
actos não jurídicos possam, como que por alquímica metamorfose, produzir de efeitos jurídicos… A ter,
na verdade, de admitir-se uma tal conclusão, estar-se-iam, julgamos, a tornar totalmente evanescentes
as fronteiras entre o mundo do direito e outros domínios que com ele apresentam alguns pontos de
contacto, postergando, de modo inaceitável, a estabilidade, a certeza e a segurança que devem
caracterizar qualquer ordem jurídica e, quiçá sobremodo, a ordem internacional. Assim, obrigações que
se situem no terreno pré-jurídico não são soft nem hard, visto que ambos os qualificativos se deverão,
neste âmbito, confinar ao mundo jurídico.
Tal ideia de ordem pública internacional passou a ser defensável a partir do momento em que
se admitiu a existência de um núcleo de valores reputados de fundamentais e indisponíveis pela
consciência jurídica geral da comunidade internacional. Alguns desses valores ditos essenciais
encontram-se positivados nos princípios fundamentais do direito internacional, enunciados na CNU e
reafirmados em diversos textos normativos, de entre os quais se destaca a Resolução 2625 (XXV) da
Assembleia Geral, de 24 de Outubro de 1970, também conhecida por «Declaração dos 7 princípios», em
virtude de serem exactamente sete os princípios nela vertidos: princípio da proibição do recurso à força
nas relações internacionais, princípio da solução pacífica dos conflitos, princípio da não ingerência ou
não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados, o dever de cooperação, o princípio da
autodeterminação, o princípio da igualdade soberana dos Estados e, por último, o princípio da boa-fé.
Todos os princípios acabados de referir condicionam materialmente a actuação dos sujeitos de
direito internacional, impondo-lhes a observância de obrigações de valor constitucional, sendo que,
relativamente a alguns deles, os autores não hesitam em atribuir-lhes a natureza de jus cogens.
Apesar da proclamação retumbante de JELLINEK, para quem «Tout acte illicite international
pourrait être élevé au rang de droit si l’on en faisait le contenu d’un traité» ou do cepticismo exprimido
por P. GUGGENHEIM, quando, na 1ª edição do seu Droit International Public, asseverava que as normas
de direito internacional não têm um carácter imperativo e que jamais seria possível apreciar a validade
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de uma convenção internacional à luz de um critério de moralidade, muitos outros autores importantes,
como VERDROSS, QUADRI ou VIRALLY, reconhecem a existência das normas de jus cogens, separando,
contudo, essa noção de direito imperativo da de jus naturale, porquanto, sem embargo de alguns
pensáveis pontos de contacto entre ambos, este último teria uma natureza universal e imutável, ao
passo que aquele, porque permeável às exigências da comunidade internacional em cada momento,
seria, ao invés, evolutivo e contingente. Explicando melhor: o direito natural é concebido como uma
ordem superior e exterior ao direito positivo, enquanto o jus cogens faz parte integrante do sistema. É o
direito internacional, ele próprio, que outorga a certas normas o estatuto de normas imperativas. Se
estas se inspiram, é certo, em determinadas considerações éticas ou morais, a verdade é que o
respectivo carácter normativo advém de factores puramente endógenos. Em último termo, a norma
imperativa – potencialmente geradora de obrigações praeter e mesmo contra voluntem – retira essa
qualidade da vontade dos Estados, facto que parece, paradoxalmente, confirmar, também aqui, a
natureza voluntarista do direito internacional (ainda que, desta feita, o voluntarismo seja porventura
apenas o de alguns…). Baldado propósito, pois, o de um retorno, através do jus cogens, ao direito
natural e à unidade fundamental do género humano.
Em segundo lugar, também a teoria das obrigações erga omnes concorreu para
a hierarquização do sistema normativo internacional e, portanto, para retrogradar o
bilateralismo e o espírito de estrita reciprocidade através dos quais se entreteciam as
relações internacionais clássicas.
Num contexto de mera justaposição de soberanias, a responsabilidade
internacional analisa-se numa relação bilateral, em que à obrigação de um se opõe o
direito do outro (P. M. DUPUY). Cada Estado tem o direito a que determinada norma
internacional seja respeitada perante si próprio; mas já, decerto, não lhe assiste o
direito a que a “legalidade internacional” seja, em si mesma, cumprida ou reposta. Por
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outras palavras: cada um deverá assegurar a protecção dos seus próprios direitos, sem
curar de arvorar-se em «campeão dos direitos dos outros» (P. WEIL). Ou dito ainda de
outra forma: tradicionalmente não há lugar para obrigações erga omnes no direito
internacional.
«A doutrina do cada um por si» (P. WEIL), mal se compagina, todavia, com a
abertura à axiologia e à ética, de que acima demos nota, e com o reconhecimento dos
interesses gerais da comunidade internacional. Talvez por isso, pela primeira vez, em
1970, num célebre obicter dictum do Tribunal Internacional de Justiça, no caso
Barcelona Traction, Light and Power Company Limited – vibrado, aliás, em evidente
desconcerto com outra passagem do mesmo aresto… –, se fez referência ao conceito
de obrigação erga omnes.
Afirmou então o Tribunal: «Vu l’importance des droits en cause, tous les Etats peuvent être
considérés comme ayant un intérêt juridique à ce que cês droits soient protégés; les obligations dont il
s’agit sont des obligations erga omnes». E mais adiante: «Ces obligations découlent par exemple… de la
mise hors la loi des actes d’agression et le génocide mais aussi des principes et des régles concernant les
droits fondamentaux de la personne humaine, y compris la protection contre la pratique da l’esclavage
et la discrimination raciale.».
A sua particular natureza, rectius, o seu específico conteúdo, determinará que elas
digam respeito a todos os Estados; a todos conferindo, em conformidade, idênticos
direitos de protecção. Mas protecção de quê? Não propriamente dos interesses
egoísticos dos Estados, ou pelo menos não prioritariamente destes; protecção isso sim,
em primeira linha, dos interesses de toda a comunidade internacional. Quer isto
significar que nestas obrigações internacionais avulta o «interesse comunitário».
Resta saber qual o meio mais idóneo para garantir a protecção daquele
interesse. Será tal desiderato alcançado à guisa de uma actio popularis dos Estados,
agindo estes ut singuli (v.g., sendo beneficiários de um jus standi, podendo recorrer a
actos de protesto ou ainda estando habilitados a lançar mão de contramedidas,
mesmo não havendo sido directamente lesados com a violação da obrigação erga
omnes) ou “a expensas” da comunidade internacional organizada (institucionalizada),
conhecendo-se todas as dificuldades de funcionamento do Conselho de Segurança?
Os quesitos acabados de formular, ilustram bem, pensamos, os principais
pontos carecidos de esclarecimento no regime jurídico das obrigações erga omnes. E a
estrutura actual da comunidade internacional não deixa aos doutrinadores grande
margem de manobra…
Ao conceito de obrigações erga omnes anda por vezes associado o de direitos erga omnes. Eles
não constituem, porém, as duas faces da mesma moeda (P. GALVÃO TELES). Os direitos erga omnes
implicam, do lado passivo, uma obrigação universal de respeito – caso, v. g., do direito de cada Estado
ao gozo das várias liberdades do alto-mar. Isto não significa, contudo, que as obrigações correlatas a um
direito erga omnes sejam, necessariamente, obrigações erga omnes. Sê-lo-ão apenas se, para além de
visarem a protecção de um interesse do titular do direito em questão, tiverem sobretudo como escopo
a protecção do interesse geral da própria comunidade internacional. Caso contrário, serão tão-somente
obrigações omnium. Assim, não obstante possíveis intersecções, se as obrigações erga omnes sugerem
uma ideia de universalização dos titulares de direitos, as obrigações omnium apontam antes para a
universalização dos titulares de obrigações.
mesmo, forçou) a arrumação dos actos ilícitos internacionais em duas categorias: a dos
crimes (ilícitos mais graves) e a dos meros delitos (ilícitos menos graves), segundo uma
terminologia controversa (a certa altura, abandonada) da Comissão de Direito
Internacional, no seu Projecto de Artigos Sobre a Responsabilidade do Estado.
Tal destrinça sugeria (sugere) a existência de (pelo menos) dois regimes
diversos de responsabilidade em função do conteúdo da obrigação internacional
violada: os crimes resultariam da violação grave de obrigações que tutelam interesses
fundamentais da comunidade internacional, por isso a eles estariam ligadas
consequências jurídicas específicas ou suplementares, comparativamente àquelas que
subjazem aos meros delitos; estes, por sua vez, apresentar-se-iam como factos ilícitos
ordinários, em virtude de constituírem violação de normas primárias menos
importantes, isto é, de normas cujo objecto de protecção se não reconduz a um valor
essencial para a comunidade internacional, pelo que o regime de responsabilidade
seria, desta feita, o regime-regra.
Muitas incertezas subsistem, todavia, quanto à definição dos elementos
constitutivos dos actos ilícitos mais graves (muito em especial no tocante às suas
relações com o jus cogens e com as obrigações erga omnes) e, bem assim, às
consequências jurídicas específicas que fazem espoletar; tanto mais que ao haver
introduzido no seu Projecto de Artigos o requisito da gravidade da violação da
obrigação internacional em causa, a CDI fizera pairar ainda mais dúvidas sobre uma
construção que, à partida, se afigurava capaz de trilhar um caminho auspicioso.
Na elaboração do primitivo art. 19.º do seu Projecto de Artigos – mais tarde, suprimido – a CDI
socorreu-se de um critério indicativo, mas algo tautológico: os crimes internacionais seriam aqueles que
fossem reconhecidos como tal pela comunidade internacional no seu conjunto. A despeito disso, não se
furtou a fornecer alguns exemplos de violações qualificadas do direito internacional: a agressão armada,
a repressão pela força do direito dos povos à autodeterminação, a violação em larga escala de direitos
fundamentais da pessoa humana – v. g., situações de escravidão, genocídio ou apartheid – e ainda o
crime ambiental, resultante, designadamente, da contaminação maciça da atmosfera e dos mares.
O jus cogens, as obrigações erga omnes e a distinção, favorecida por essas duas
teorias, entre actos ilícitos do Estado mais e menos graves, parecem não fazer
soçobrar – antes parecem impelir – a busca por uma «nova ética da globalização» (N.
VIEIRA DE CARVALHO) ou, se preferirmos, por um mínimo ético universal. Mesmo
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No que diz respeito, por outro lado, às normas costumeiras, não mais se pode
afirmar, com segurança, que a aceitação de um costume – quer tácita, quer resultante
da uniformidade de certos comportamentos (precedentes) que são praticados ao
longo do tempo e concorrem para a formação de uma opinio juris – constitui ainda um
traço essencial do seu regime. O que, aliás, se traduzia numa espécie de velada
homenagem ao voluntarismo. Com efeito, a emergência dos aludidos “costumes
instantâneos” ou “selvagens” (RENÉ-JEAN DUPUY), parece claramente infirmar o
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mais que alguns dos conceitos e ideias atrás expendidos, em virtude de pressuporem
conhecimentos que iremos adquirir em capítulos subsequentes, só resultarão
compreensíveis numa fase mais avançada do nosso curso. Bastemo-nos, pois, para já,
com o que ficou dito, que, ainda assim, ao que julgamos, será suficiente para que se
tenha a percepção de que a ordem jurídica internacional, reflexo afinal da estrutura da
sociedade que visa regular, apresenta, em boa verdade, características muito
particulares.
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CAPÍTULO I
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL
Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio
Cassese, Le droit international dans un monde divise, Berger-Levrault, Paris, 1986; Jónatas Machado,
Direito Internacional, 5ª edição, Gestlegal, 2020; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público,
6ª edição, Principia, 2016; José Alberto de Azeredo Lopes (coordenador), Regimes Jurídicos
Internacionais, Volume I, Universidade Católica Editora Porto, 2020; Quoc Dinh/Daillier/Pellet, Droit
International Public, LGDJ, Paris, 1994;
1 – INTRODUÇÃO
Neste excurso histórico, não iremos, porém, ocupar-nos da época que poderemos apelidar de
pré-estadual, onde, em bom rigor, se encontram os primeiros rudimentos do direito internacional. São,
na verdade, inestimáveis os contributos dos vários períodos históricos que antecederam o surgimento
dos Estados modernos para a formação do direito internacional. Seja o contributo do Império chinês,
sejam os dos Impérios do oriente (o egípcio, o babilónico, o assírio e o persa), sejam ainda os da Grécia
(com as relações entre as Cidades-Estado) e de Roma (com o jus fetiale e o jus gentium) ou, mais tarde,
o da época medieval. Mas o certo é que, no seu conjunto, eles constituem a pré-história do direito
internacional, não a sua história. Esta inicia-se com o aparecimento do direito internacional enquanto
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ramo autónomo da ciência jurídica, e tal ocorreu, como assinalámos na parte introdutória do nosso
curso, aquando da formação dos Estados modernos, na Europa, seguidamente à paz de Westfália. É,
pois, desde 1648 – data da assinatura dos Tratados de Westfália – até aos nossos dias que neste capítulo
nos iremos concentrar.
Até finais do séc. XVIII, a sociedade internacional será exclusivamente europeia. Nessa altura,
porém, as grandes revoluções liberais (a americana e a francesa) e a emancipação de vários povos
latino-americanos, entre 1811 e 1821 – que a Santa Aliança não conseguiu suster – fariam emergir um
«sistema de Estados de civilização cristã». Em particular, da Revolução Francesa (1789) saiu um ideário
que iria insuflar gérmenes de mudança no direito internacional. Entre outras coisas, proclamou-se então
que a soberania reside no povo, e não no rei; que o direito internacional regula as relações entre povos,
e não entre monarcas; e que todos os povos, porque livres e iguais entre si, tal como os indivíduos, têm
direito à autodeterminação (Cfr. JORGE MIRANDA).
Teremos ensejo mais adiante de estudar as figuras (hoje, novamente em voga) dos insurrectos
e beligerantes no direito internacional. Por ora, bastemo-nos com a ideia de que se trata de grupos que,
no interior de um determinado Estado, se sublevam, contestando – mediante o recurso a acções
violentas – a legitimidade do poder aí constituído (as respectivas autoridades oficiais) e causando, desse
modo, o esboroamento da unidade nacional. Quando reconhecidos, quer por parte de Estados terceiros,
quer pela própria mãe-pátria, os insurrectos ficam, ipso facto, investidos na titularidade de certos
direitos e obrigações internacionais; concretamente, aquilo que, prima facie, se prefigurava como uma
mera guerra civil, convola-se em conflito armado internacional, pelo que ficam, a partir de então, os
membros desse grupo armado sob a alçada do direito internacional humanitário, deixando de poder ser
tratados como delinquentes comuns. Num segundo momento, verificados que estejam certos
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requisitos, poderão tais grupos vir a ser reconhecidos como beligerantes, adquirindo um estatuto quase
equiparado ao de um Estado.
Temos aqui em mente, conforme se alcança, fontes em sentido formal, isto é, enquanto modos
de revelação das normas ou, dito de outra forma, enquanto procedimentos técnicos de produção
jurídica através dos quais surgem as várias normas. Diferente é o conceito de fontes materiais, que faz
apelo aos fundamentos sociológicos, políticos, económicos, morais, etc. das normas, quer dizer, às
necessidades sociais que lhes estão subjacentes e que, portanto, determinam o seu aparecimento.
Apesar de nesta altura o uso da força ser encarado como uma manifestação normal da
soberania estadual, certo é que desde muito cedo surgiu, entre os teorizadores do direito internacional,
a preocupação ética de destrinçar as chamadas guerras justas ou legítimas das guerras injustas. A este
propósito, merecem destaque os contributos emprestados por aqueles que muitos consideram os «pais
inconscientes do direito internacional»: os teólogos da Escola Peninsular de Direito Natural, FRANCISCO
VITÓRIA – autor das Relectiones Theologicae – e FRANCISCO SUAREZ – que leccionou em Coimbra e
escreveu De legibus ac deo legislatore. Mais tarde, também o holandês HUGO GRÓCIO, cuja obra mais
conhecida é De jure belli ac pacis, haveria de tratar desenvolvidamente o tema.
2.6 – Conclusão
Apesar de neste segundo ciclo evolutivo o direito internacional ter avançado para um figurino
mais próximo daquele que é próprio do direito interno, parece-nos bem que a similitude que queiramos
descortinar não pode ir além de certos limites. É, de facto, nossa convicção que nunca o direito
internacional deixará de ter uma intencionalidade específica e de, por isso, ser dotado de instrumentos
normativos que se não podem inspirar, sem mais, naqueles que valem e operam nas ordens jurídicas
internas. Tal decorre de a estrutura da sociedade internacional ser profundamente diversa daquela que
caracteriza as sociedades estaduais. Disto mesmo, já em 1938, dava conta o Tribunal Permanente de
Justiça Internacional (predecessor do Tribunal Internacional de Justiça), no caso dos fosfatos de
Marrocos, a propósito de uma eventual transposição acrítica do instrumentarium jurídico-penal para o
ordenamento internacional. Recordemos o que na ocasião se afirmou: «Il est dangereux d’emprunter au
droit penal des concepts qu’on transporterait dans une matière ou l’on ne metrait plus en face l’un de
l’autre un individue poursuivi au penal et un État qui assure la répression, mais deux États. Le droit penal,
droit de hiérarchie et de subordination, peut difficilement inspirer le droit international, droit d’égalité et
de coordinations». Cfr. Publications de la CPJI, Série C, nº85, p. 1061. Certo é, todavia, que a ascensão do
indivíduo à qualidade de sujeito de Direito internacional e a emergência do direito internacional penal,
tornam hoje algo anacrónica aquela afirmação. Mesmo que permaneça essencialmente válida a ideia de
que não é possível sujeitar os Estados a uma qualquer forma de responsabilização criminal.
Com o aparecimento das novas organizações internacionais, que passam a actuar nos mais
variados domínios – v.g., nos campos político, militar, económico, cultural, humanitário, ambiental, etc.
–, a sociedade internacional deixa de basear-se exclusivamente na interestadualidade, cessando por isso
de ser apenas relacional para adquirir um pendor mais institucional. Razão por que na «vasta planície
interestadual» dos primeiros tempos se têm, progressiva e compassadamente, introduzido
determinadas estruturas verticais, que, em larga medida, assentam em vínculos de subordinação entre
aquelas entidades e os Estados membros. Destarte, o poder, que, no modelo de Westefália, era disperso
e incondicionado, passa agora, devido à crescente institucionalização da comunidade internacional, a
ser, ao invés, concentrado, condicionado e reprimido (RENÉ-JEAN DUPUY).
G. FITZMAURICE, numa noção que tem (pelo menos) o mérito de fazer ressaltar
tanto o fundamento convencional como a natureza institucional das organizações
internacionais, define-as como associações voluntárias de Estados, criadas através de
tratado (tratado constitutivo), dotadas de órgãos próprios, que actuam juridicamente
em nome da organização e têm carácter de permanência, e com personalidade jurídica
internacional.
A estrutura orgânica das organizações internacionais é habitualmente (no
mínimo) tripartida. Com efeito, delas fazem parte, em regra, órgãos plenários, nos
quais têm assento todos os Estados membros (democracia directa) – v.g., a Assembleia
Geral da ONU –; órgãos de composição restrita (permanente e/ou variável), abertos
tão-somente a alguns Estados membros (democracia representativa) – v.g., o Conselho
46
(Namíbia), da FRENTE POLISÁRIO (Sahara Ocidental), do ANC (África do Sul), da OLP (Médio Oriente), do
IRA (Grã-Bretanha), dos movimentos vascos da ETA (Espanha), etc..
A pouco e pouco, aos povos que se incluíssem numa das três categorias
sobreditas – os submetidos a regimes colonias, a regimes racistas ou sob ocupação
estrangeira –, contanto que dispusessem de uma estrutura representativa no plano
internacional, a ONU conferiu uma legitimação jurídica e política radicada no direito à
autodeterminação. Direito este que, segundo Resoluções importantes da Assembleia
Geral da Nações Unidas, os povos não autónomos – é este o seu nomen juris – podem
exercer através de várias modalidades alternativas, designadamente os estatutos
internacionais da independência (de longe, o mais frequente na prática internacional),
da associação ou da integração.
O mesmo é dizer, por conseguinte, que esses grupos organizados de indivíduos,
ligados por laços étnicos, históricos, culturais, religiosos, etc., em vista dos objectivos
descritos (apenas deles), ascenderam à qualidade de sujeitos de direito internacional,
no que, aliás, representa uma refracção, ainda que mitigada, do princípio das
nacionalidades do séc. XIX, nos termos do qual, como vimos, cada povo ou nação teria
o direito de constituir-se em Estado independente.
Também o indivíduo – quer com este vocábulo estejamos a pensar em pessoas
físicas ou singulares, quer tenhamos em mente pessoas colectivas – integra hoje, para
um leque contado de matérias, é certo, o elenco dos sujeitos de direito internacional.
Ultrapassada que está a querela doutrinária entre a concepção positivista,
voluntarista, inspirada no dualismo, que denega em termos categóricos a
personalidade jurídica internacional do indivíduo (ANZILOTTI), e as concepções
monistas, antivoluntaristas, que tiveram nos autores da Escola Sociológica Francesa
(v.g., DUGUIT e SCELLE) estrénuos defensores, e que, inversamente, contestam a
personalidade jurídica do Estado, advogando que só o indivíduo beneficia de tal
atributo, não mais é possível negar a evidência de que certas normas de direito
internacional – porventura um número crescente delas – atingem directamente os
indivíduos, provocando desse modo alterações na sua esfera jurídica.
Assim acontece, desde logo, à face do direito internacional geral ou comum,
mormente quando esteja em causa a prática de determinadas infracções
internacionais, valoradas pelos componentes essenciais da comunidade internacional
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O Tribunal Permanente de Justiça Internacional teve, por diversas vezes, ocasião de pronunciar-
se acerca da interpretação e aplicação de alguns desses direitos, destacando-se os pareceres nos casos
do acesso às escolas da minoria alemã na Alta Silésia, das «Comunidades» greco-búlgaras, do
tratamento dos nacionais polacos em Dantzig, e das escolas minoritárias na Albânia (cfr.,
respectivamente, Pareceres do TPJI, Séries A/B, nº40, Série B, nº17, Séries A/B, nº44, e Séries A/B,
nº64).
Mais tarde, nem a Carta das Nações Unidas nem a Declaração Universal dos
Direitos do Homem fizeram menção específica às minorias e aos seus direitos no plano
internacional, sem embargo de em ambos os instrumentos estarem proscritas as
discriminações em função da raça, do sexo, da língua e da religião.
Marco decisivo nesta problemática viria, porém, a ser constituído pelo Pacto
Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, no qual, com carácter pioneiro,
se atribuem direitos às minorias qua tale. Passara-se então, finalmente, da fase da sua
mera protecção pela via diplomática para a do reconhecimento, se bem que ainda algo
titubeante, da sua personalidade jurídica. Uma personalidade jurídica, note-se, que
verdadeiramente se não autonomiza da personalidade internacional do indivíduo, já
que esta, compreendida lato sensu, abrange também justamente os grupos de
indivíduos que são as minorias.
terminológica que tem grassado quanto à designação mais apropriada para aqueles
actos, podemos talvez lançar mão de um termo genérico para lhes aludir: exactamente
o termo resolução.
As resoluções podem, todavia, ser de diversa natureza, em função do
respectivo alcance e do maior ou menor grau de vinculação de que, em concreto, se
revistam, assumindo, nomeadamente, a forma de decisões, recomendações ou
pareceres (cfr., infra, Cap. II). Ora, aqueles que sejam desprovidos de força jurídica
obrigatória (casos das recomendações e dos pareceres), analisando-se, por esse facto,
em actos meramente exortatórios, constituem, conforme sublinhámos supra, o
terreno privilegiado de incidência da soft law em direito internacional.
Várias foram as etapas percorridas no longo processo que haveria de culminar com a
consagração, no art. 2.º, nº 4 da CNU, do referido princípio da proibição da ameaça e do uso da força
nas relações internacionais.
A primeira tentativa de limitação do recurso à guerra, que pretendeu pôr cobro a uma
utilização abusiva das represálias armadas, é representada pela Convenção Drago-Porter, integrada na
segunda Convenção da Haia, de 1907, e que teve origem nas operações de bloqueio marítimo e
bombardeamento de portos venezuelanos por parte da Itália, da Alemanha e do Reino Unido. Nela as
partes signatárias se comprometem a não recorrer à força armada para obter o reembolso de dívidas
contratualmente estabelecidas.
O segundo passo que foi dado no sentido apontado é constituído pelas limitações de recorrer à
guerra, constantes do Pacto da Sociedade das Nações. Aí se dizia expressamente – nos arts. 10.º a 13.º –
que guerras deveriam ser consideradas ilícitas; o que, a contrario, de acordo com o princípio segundo o
qual tudo aquilo que não é proibido é permitido abria a porta à consideração de todas as outras, que se
não enquadrassem naquela primeira categoria, como guerras lícitas ou legítimas. Por conseguinte, como
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que, involuntariamente, se recuperava o conceito de guerra justa em situações contadas, o que é tanto
mais verdade quanto é certo que, no dealbar dos anos vinte, os Estados não estavam ainda preparados
para sufragar, na matéria em apreço, uma solução drástica.
A terceira etapa foi vencida com a adopção do Pacto de Paris ou Briand-Kellogg (esta última
designação em homenagem aos seus mentores: Aristides Briand, ministro dos negócios estrangeiros
francês, e Frank Kellogg, o seu homólogo americano), de 1928. Este tratado, inicialmente assinado por
15 Estados, vinculava já 63 em 1939, circunstância que, atento o número total de Estados na época, lhe
conferia uma considerável universalidade. Pela primeira vez em termos genéricos, as partes
contratantes declararam abster-se de recorrer à guerra enquanto instrumento de resolução de conflitos
internacionais. Não obstante tal avanço decisivo, também este texto viria a revelar-se assaz claudicante
do ponto de vista da sua eficácia prática, em virtude da completa ausência de mecanismos
sancionatórios aí previstos, que pudessem reprimir a eventual violação das suas disposições.
Todo este caminho viria, como se disse, a desembocar na interdição geral de recurso à força,
plasmada na Carta das Nações Unidas, no art. 2.º, nº 4 respectivo, cujo concreto alcance teremos ensejo
de procurar compreender em sede própria.
A chamada doutrina Stimson do não reconhecimento teve origem num conhecido incidente
histórico: a ocupação da província chinesa da Manchúria pelas tropas japonesas, em 1931, que aí
pretenderam criar um Estado independente. Na sequência do episódio, o Secretário de Estado Stimson
enviou uma nota ao governo japonês, declarando a intenção de o governo americano não reconhecer
qualquer situação que houvesse sido constituída em infracção às obrigações previamente assumidas no
supracitado Pacto de Paris, ou Briand-Kellog, de 1928. Algum tempo depois, e como a doutrina Stimson
56
não tivesse obtido a necessária repercussão, a Assembleia Geral das Nações Unidas viria a adoptar uma
resolução que, a um tempo, confirmava e universalizava o dever de não reconhecimento de situações,
ainda que efectivas ou já consolidadas, contrárias a princípios fundamentais do direito internacional.
Num outro plano, a partir da década de sessenta do séc. XX, foram consagrados
alguns regimes convencionais – a par de outros firmados pela jurisprudência
internacional – de responsabilidade internacional objectiva, também designada pelo
risco ou, ainda, por actividades não proibidas pelo direito internacional.
Em resposta a tais desenvolvimentos normativos, a Comissão de Direito
Internacional, que havia empreendido os seus trabalhos em matéria de
responsabilidade internacional tão-somente no âmbito da responsabilidade subjectiva
(ou por actos ilícitos), dirigiu, alguns anos volvidos, o seu esforço codificador para
aquela nova forma de responsabilidade, não fundada na ilicitude, que surge
indissociavelmente ligada ao progresso científico e tecnológico, próprio da sociedade
em que vivemos.
Em causa estão, habitualmente, actividades lícitas, mas intrinsecamente
perigosas, também designadas ultra-hazard, ou de risco excepcional, como, v.g., a
utilização pacífica e o transporte marítimo de energia nuclear, o transporte de
hidrocarburos pelos navios e o lançamento de engenhos espaciais.
Também os danos ambientais transfronteiriços ou actos ultra vires praticados
58
nos últimos anos, entre os diversos tribunais internacionais. Tal vem criando um
ambiente propício às convergências jurisprudenciais, para as quais, decerto, em muito
contribuem as cross references que se encontram em sentenças recentes, quer dos
tribunais regionais de direitos humanos entre si, quer destes com decisões do TIJ e
vice-versa, ou deste último com o Tribunal Internacional de Direito do Mar e vice-
versa, quer, ainda, dos vários tribunais penais internacionais (incluindo os híbridos ou
internacionalizados) entre si (CANÇADO TRINDADE).
3.7 – Conclusão
CAPÍTULO II
Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Azevedo
Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1988; Bin Cheng, General
Principles of law as applied by International Courts and Tribunals, Cambridge University Press, 2006;
Christian Tomuschat, Obligations arising for States without or against their will, RCADI, 1993-IV, vol.
241; Francisco Resek, Direito Internacional Público: Curso Elementar, 17 ed., São Paulo, Saraiva, 2018;
Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Almedina,
1993; Hein Kötz, Vertragsrecht, 2º ed., Tübingen, 2012; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional
Público, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4 edição,
Fundação Calouste Gulbenkian,1965; Jónatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestegal, 2020;
Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua
Portuguesa, 5ª edição, Almedina, 2020; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição,
Principia, 2016; José Manuel M. Cardoso da Costa, Os princípios Gerais de Direito como Fonte de Direito
Internacional (policopiado), Coimbra, 1963; Quoc Dinh/Daillier/Pellet, Droit International Public, LGDJ,
Paris, 1994; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition, Cambridge University Press, 2017; Maria
Luisa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global do Século XXI, AAFDL, 2019; Miguel
Galvão Teles, Formação do costume, V Encontro de Professores Portugueses de Direito Público (ebook,
icjp), 2012; Rosalyn Higgins, Time and the Law: International Perspectives on na old problema, ICLQ,
2000, vol. 46; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª ediºão, Coimbra Editora, 2014;
Verdross/Simma, Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker & Humbolt, 2010.
I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
De tais mecanismos (ou fontes formais), através das quais as normas passam a
fazer parte do direito positivo, se distinguem as fontes materiais, que, diversamente,
como se disse já, constituem os fundamentos sociológicos das normas, a sua base
política, moral, económica, etc., apresentando, por isso, uma particular dinâmica que
as fontes formais – meros procedimentos técnicos – não possuem (QUOC
DINH/DAILLIER/PELLET).
Mas quais são então as fontes formais de direito internacional?
Na ausência de uma Constituição ou Lei Fundamental internacional, só um
texto que beneficiasse de uma aceitação generalizada entre os Estados poderia,
validamente, enunciar tais fontes. E tal sucede, de facto, com o Estatuto do Tribunal
Internacional de Justiça, que, em função do número de Estados que a ele aderiram, é
objecto de um consenso universal.
Ora, no artigo 38.º respectivo surgem indicadas as fontes formais de direito
internacional a que, na solução de litígios que lhe sejam submetidos, o Tribunal poderá
recorrer.
Atentemos:
«1º - O Tribunal, cuja função é resolver, de acordo com o direito internacional, os litígios que
lhe sejam submetidos, aplicará:
Como se vê, são três as fontes formais indicadas neste preceito: as convenções
internacionais (a)), o costume (b)) e os princípios gerais de direito (c)).
Seguidamente, a alínea d) desse parágrafo primeiro faz ainda referência a dois
modos auxiliares de determinação das regras jurídicas, que, não tendo em si mesmos a
virtualidade de criar direito, não podem ser considerados fontes em sentido formal,
63
II – CONVENÇÕES INTERNACIONAIS
1 – Noção
Desde há muito que os Estados usam celebrar acordos com vista à criação de
obrigações jurídicas recíprocas. Daí que os elementos que integram a definição de
tratado ou convenção internacional se achem perfeitamente estabelecidos, não
constituindo fonte de discordância entre os jusinternacionalistas.
Afigura-se-nos adequada a seguinte noção: manifestação de vontades
concordantes, entre dois ou mais sujeitos de direito internacional, destinada à criação
de vínculos jurídicos e regulada, concorrentemente, pelo direito interno e pelo direito
internacional.
Analisemos os vários segmentos da definição proposta.
Manifestação de vontades concordantes. A celebração de um acordo
pressupõe, efectivamente, um encontro de vontades, ainda que não, necessariamente,
simultâneo (pode, com efeito, mediar algum tempo entre uma prévia declaração de
vontade e a respectiva aceitação), adequado a permitir o surgimento de normas
jurídicas que, no futuro, irão disciplinar a conduta dos sujeitos intervenientes nesse
acordo (ex consensu advenit vinculum). Sendo, todavia, necessária tal concordância de
vontades, certo é que os interesses prosseguidos pelas partes poderão ser divergentes.
Recordemos, a este propósito, a distinção a que, em outro contexto, já aludimos, entre tratado-
lei (os interesses prosseguidos pelas partes são idênticos, dando, consequentemente, lugar à criação de
66
regras gerais e objectivas) e tratado-contrato (os fins visados, sendo diversos, ocasionam a formação de
situações opostas de carácter subjectivo).
2 – Classificações
Critério da qualidade das partes. Segundo este critério – como, aliás, resulta do
que acima foi dito –, podem identificar-se três tipos de convenções: as celebradas
entre Estados, as concluídas entre Estados e organizações internacionais, e as
adoptadas por organizações internacionais.
Sem embargo de algumas naturais particularidades dos respectivos regimes
jurídicos, importa relevar a tendência, no âmbito da codificação do direito dos
tratados, para uniformizá-los o mais possível, independentemente dos sujeitos que
hajam intervindo na sua conclusão.
3 – Procedimento de conclusão
A prática das cartas de plenos poderes ou cartas patentes, através das quais o órgão
constitucionalmente competente – via de regra, o Chefe de Estado – habilita os delegados
governamentais a procederem à negociação dos tratados, é já bastante antiga, revelando-se justificada
numa época em que o circunstancialismo que rodeava a celebração de convenções internacionais era
bem diferente daquele que hoje se verifica.
Actualmente, não sobejariam razões para que tal prática se mantivesse. O certo, porém, é que
ela persiste e foi, inclusive, acolhida pela própria CV, que confirmou o seu carácter costumeiro (artigo
7.º).
entenda por bem submeter à sua apreciação (cfr. artigo 161.º, i) da CRP).
Compete, por seu turno, ao Governo a aprovação dos acordos em forma
simplificada sobre matérias que se não incluam na reserva de competência legislativa
da Assembleia da República (cfr. artigos 164.º e 165.º da CRP), salvo se a esta decidir
submetê-los para aprovação. Digamos, pois, que a competência do Governo para
aprovar convenções internacionais, não sendo residual (longe disso), resulta a
contrario sensu: serão da sua competência aquelas que não caiba ao órgão
parlamentar aprovar (cfr. a alínea c) do nº 1 do artigo 197.º da CRP).
Vejamos quais os principais trâmites e formalidades que rodeiam a aprovação das convenções
internacionais em Portugal.
Os acordos em forma simplificada aprovados pelo Governo, são por este negociados e
autenticados. Segue-se, logo após, a aprovação em Conselho de Ministros, através de decreto simples
(cfr., respectivamente, artigos 200.º, nº 1, d), e 197.º. nº 2, da CRP). Este decreto é, sucessivamente,
assinado pelo Primeiro-Ministro e pelos ministros competentes em razão da matéria (artigo 201.º, nº 3),
e, bem assim, pelo Presidente da República (artigo 134.º, b)), após o que será objecto de referenda do
Governo (artigo 140.º, nº 1). A referenda é obrigatória, determinando a sua falta, nos termos do artigo
140.º, nº 2 da CRP, a inexistência jurídica do acto. O iter procedimental conhece o seu epílogo com a
publicação do decreto de aprovação do acordo em forma simplificada, com este anexado, no Diário da
República.
No que se refere aos acordos em forma simplificada aprovados pela Assembleia da República,
depois de haverem sido negociados e autenticados pelo Governo, o Conselho de Ministros aprova uma
proposta de resolução (artigo 200.º, nº 1, c)) que submete à Assembleia da República. Esta, aprovará
então o acordo sob a forma de resolução (cfr. artigos 161.º, i), e artigo 166.º, nº 5, da CRP), a qual será
assinada pelo Presidente do Parlamento e, em momento subsequente, pelo Presidente da República
(artigo 134.º, b)). Procede-se, finalmente, à sua publicação oficial.
Por último, no que toca aos tratados solenes, as formalidades são em tudo idênticas às
acabadas de descrever para os acordos em forma simplificada aprovados pela AR. A única diferença é
que o Presidente da República não se limita, agora, a assinar a resolução do parlamento, através da qual
o tratado haja sido aprovado; assina, além disso, a respectiva carta de ratificação (artigo 135.º, b)).
Também a ratificação carece de referenda ministerial (artigo 140.º, nº 1).
ratificação, a aceitação, a aprovação ou a adesão, não excluindo qualquer outro meio convencionado
(cfr., no mesmo sentido, o artigo 14.º da CV). Acresce que, em termos substantivos, estas outras figuras
não diferem sobremaneira da ratificação (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Importante,
isso sim, é que a intenção do Estado resulte claramente exteriorizada.
da União Europeia, do Tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa, da não ratificação do
Acordo Ortográfico por alguns países de Língua Oficial Portuguesa, etc..
A liberdade reconhecida aos Estados nesta matéria, ocasiona, outrossim, com frequência, um
inconveniente arrastamento do processo de formação dos tratados, fomentando alguma incerteza nas
relações internacionais. Vejam-se, por exemplo, os casos da França, que apenas ratificou a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, de Novembro de 1950, em Maio de 1974; ou de Portugal, que
ratificou a Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de Maio de 1969, em Fevereiro de 2004…
imperfeita.
No plano internacional, a Convenção de Viena disciplina a questão no artigo
46.º, cujo teor é o seguinte:
A solução acolhida na CV acaba por estar mais próxima – ainda que apenas em termos
mitigados lhe tenha dado guarida – da concepção de ANZILOTTI (partidário do dualismo), para quem o
direito interno dos Estados em nada influencia a validade das normas jurídicas internacionais e, do
mesmo passo, mais afastada da tese de G. SCELLE (autor monista), que, ao invés, sustenta possuírem os
comandos constitucionais pleno valor jurídico na ordem internacional.
Viena, não admitindo que os Estados se prevaleçam das ratificações imperfeitas, senão
em circunstâncias contadas (excepcionais), privilegiou claramente o segundo. E
porquê?
É fácil entender-se. De facto, a ser outra a solução consagrada (a da invalidade
da convenção como regra), disporiam os Estados de uma forma muito fácil de se
furtarem à observância das suas obrigações internacionais, podendo inadvertidamente
invocar toda e qualquer irregularidade formal – por mais insignificante que fosse –
cometida no decurso do procedimento de conclusão dos tratados. Isto, já se vê, com
inevitáveis custos ao nível da segurança no relacionamento jurídico internacional.
Como sublinha ANZILOTTI, os Estados são responsáveis pelas ratificações imperfeitas que
possam ocorrer, não lhes devendo ser permitido prevalecer-se das suas próprias faltas, descuidos ou
comportamentos negligentes, fazendo repercutir os correspondentes efeitos adversos ou negativos na
esfera jurídica de outrem (as demais partes no tratado). Com efeito, venire contra factum proprium non
valet…
Acresce que um tal regime obrigaria, quem quer que contratasse, a uma
penosa e exaustiva (por vezes, inexequível) averiguação dos preceitos constitucionais
relevantes, em matéria de conclusão de tratados, na ordem jurídica dos Estados com
os quais projectasse celebrar convenções internacionais.
Compreende-se, porém, que as consequências jurídicas da ratificação
imperfeita devam ser outras sempre que a violação do direito interno seja manifesta e
diga respeito a uma norma de importância fundamental. E quando é que tal ocorrerá?
Tratar-se-á de uma violação manifesta – a própria CV dá a resposta (artigo 46.º,
nº 2) – quando for objectivamente evidente para qualquer Estado que proceda, nesse
domínio, de acordo com a prática habitual e de boa-fé. Por outras palavras, a violação
será manifesta se as outras partes contratantes se dela se aperceberam ou deveriam
ter apercebido (AFONSO QUEIRÓ).
Quanto ao segundo requisito, as dificuldades são maiores. Em nome da
protecção da essência do seu sistema político (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS), exige-se que haja sido violada uma disposição do direito interno
considerada de importância fundamental. Tudo está, no entanto, em saber o que seja
uma norma desse tipo. O que se revela, aliás, tão mais problemático, quanto se está a
lidar com preceitos constitucionais – à partida, todos de importância fundamental.
80
Parece, todavia, claro não ser invalidante, pela sua escassa gravidade, a
inobservância de regras secundárias internas relativas à competência, à forma ou ao
procedimento de conclusão ou aprovação dos tratados (GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA), bem como a preterição de certas formalidades não essenciais ou os
excessos de forma (com efeito, quod abundat non nocet).
E quais as consequências de uma ratificação imperfeita no plano interno?
A este respeito, dispõe o artigo 277.º, nº 2, da CRP o seguinte:
«1 – Todos os tratados e todos os acordos internacionais concluídos por qualquer membro das
Nações Unidas depois da entrada em vigor da presente Carta, deverão, dentro do mais breve prazo
possível, ser registados e publicados pelo Secretariado.
2 – Nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido registado
em conformidade com as disposições do nº 1 deste artigo poderá invocar tal tratado ou acordo perante
qualquer órgão das Nações Unidas.»
autorizada a fazê-lo nas demais situações, tal publicação poderá ser feita ex officio
pelo Secretário-Geral (BACELAR GOUVEIA).
Problema que poderá colocar-se é o de saber se não deveriam isentar-se do
dever de registo e publicação os tratados cuja conclusão envolve, necessariamente,
ratione materiae, um certo secretismo (v.g., os que versam assuntos militares, de
defesa ou de segurança). Ora, não contemplando os aludidos artigo 102.º da CNU e
80.º da CV qualquer excepção, restará aos Estados optarem – se assim lhes convier –
por não proceder ao registo, sujeitando-se à sanção correspondente. Não por acaso,
de resto, parte substancial dos tratados não se encontra registada, sendo, no entanto,
igualmente verdade, que, em qualquer momento, poderão os Estados parte promover
o seu registo e publicação (ibidem).
A (quase) inocuidade da sanção para a falta de registo de uma convenção
internacional explica que, ao contrário do que seria lógico e natural, a entrada em
vigor preceda o registo e publicação internacionais.
Não confundível com a publicitação internacional, é a publicação interna, à
qual, ex vi do nº 2 do artigo 8.º da CRP, estão sujeitas as convenções internacionais
recebidas no nosso ordenamento jurídico. Trata-se de uma condição de eficácia
porquanto a ausência de publicação impedirá que elas possam vigorar (produzir
efeitos) internamente.
Como afirma MARIA LUÍSA DUARTE, após a publicação, as convenções
internacionais vigoram na ordem interna se e enquanto vincularem
internacionalmente o Estado Português. Mas, se (ou enquanto) não forem publicadas
no Diário da República, ficará precludida a produção de efeitos no plano interno,
podendo, no entanto, suceder que se tenha iniciado já a respectiva vigência
internacional. Circunstância esta decerto infrequente, mas algo desafiante da lógica…
Em rigor, de acordo com o critério fixado no artigo 2.º, nº 2, da Lei sobre a
Publicação, Identificação e Formulário de Diplomas, o início da vigência interna
ocorrerá, teoricamente, no 5º dia após a publicação no Diário da República (prazo de
vacatio legis). Habitualmente, contudo, ainda se não iniciou, nesse hiato temporal, a
vigência internacional da convenção, pelo que, assim efectivamente ocorrendo, a
questão referida acima nem sequer se colocará. Em sentido inverso, e como bem se
85
compreende, a vigência interna não pode ter início antes da vigência internacional (cfr.
artigo 8.º, nº 2 da CRP).
Sendo isto verdade, assiste-se, no entanto, com frequência, na prática internacional, a uma
interpretação extensiva das cartas constitutivas das organizações internacionais – rectius, dos preceitos
atinentes à conclusão de tratados –, como forma de, mediante um apelo à chamada teoria dos poderes
(ou competências) implícitos, procurar fundar (legitimar) a competência para a celebração de certas
convenções internacionais. De acordo com esta teoria, os fins a prosseguir por uma organização
internacional pressupõem a outorga de determinadas competências (ou poderes funcionais) aos
respectivos órgãos, Pois bem, deverão ser-lhes reconhecidas todas as competências necessárias à
realização dos fins institucionais, quer tais competências se encontrem expressamente consagradas no
tratado constitutivo, quer deste apenas se deduzam (ou nele estejam implícitas).
Não pode olvidar-se que, sendo Portugal membro da União Europeia, boa parte
do direito convencional em vigor na nossa ordem jurídica promana, justamente, de
tratados e acordos concluídos no âmbito dessa organização internacional.
Não obstante a ausência de uniformidade ou harmonização do procedimento
de vinculação dos Estados membros a tais convenções, divisa-se, em todo o caso, um
propósito de simplificação e celeridade, que se traduz numa intervenção preferencial
dos Governos, sendo os órgãos parlamentares relegados para um papel secundário,
designadamente no que toca ao acto de aprovação. Isto, por vezes, ao arrepio de
exigências constitucionais estritas, como sucede no caso português (cfr., supra, ponto
3.1), em nome do princípio do primado do Direito da União Europeia sobre (todo) o
direito interno, incluindo o constitucional (cfr., infra, cap. III).
Nesta sede, podem, em rigor, estar em causa dois tipos de convenções
internacionais: os Acordos da União Europeia e os Acordos da União Europeia e dos
Estados-membros (“acordos mistos”).
No que diz respeito aos primeiros, assinale-se que, nos termos do disposto no
artigo 216.º do TFUE, pode a União Europeia celebrar convenções internacionais com
Estados terceiros ou com organizações internacionais. Corolário da sua personalidade
jurídica internacional (cfr. artigo 47.º do TUE), tal jus tractum é exercido em matérias
da sua competência exclusiva ou partilhada (artigo 216.º do TFUE), sendo que as
normas convencionais daí emergentes vinculam, quer as próprias instituições
europeias, quer os Estados membros. Em Portugal, tratando-se, para todos os efeitos,
de normas emanadas de órgãos competentes da União Europeia, a respectiva
recepção na ordem interna ocorrerá através do número 3 do artigo 8.º da CRP.
O treaty making power da União encontra-se regulado no artigo 218 do TFUE.
Dele transparece a posição de supremacia atribuída ao Conselho (órgão de pendor e
legitimidade intergovernamental).
Estipula o número 2 desse preceito que o Conselho autoriza a abertura das
negociações, define as directrizes que lhe devem presidir, autoriza a assinatura e
celebra os sobreditos acordos entre a União Europeia e países terceiros ou
organizações internacionais.
Resulta do número seguinte que a decisão do Conselho que autoriza a abertura
90
das negociações – e que, em função da matéria sobre que verse o acordo projectado,
se destina também a designar o negociador ou o chefe da equipa de negociação – é
precedida da emissão de recomendações (ao Conselho) por parte da Comissão, ou do
Alto Representante da União Para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança,
nos casos em que a convenção incida exclusivamente, ou a título principal, sobre a
política externa e de segurança comum.
De salientar, ainda, que a decisão, também a cargo do Conselho, de autorizar a
assinatura do acordo e, se for o caso, a sua aplicação provisória, bem como a decisão
ulterior de celebração do acordo, são adoptadas sob proposta do negociador.
Com excepção dos casos em que o acordo incida, exclusivamente, sobre a
política externa e de segurança comum, esta última decisão (de celebração do acordo)
sobrevém apenas, contudo, após aprovação do Parlamento Europeu (nos casos
indicados na alínea a) do número 6) ou parecer por ele emitido após consulta por
banda do Conselho (nas demais situações – cfr. alínea b) do número 6).
Dispõe o número 11 do artigo 118.º que qualquer Estado membro, o
Parlamento Europeu, o Conselho ou a Comissão podem solicitar ao Tribunal de Justiça
parecer sobre a compatibilidade de um projecto de acordo com os Tratados. Uma
hipotética pronúncia negativa do Tribunal frenará a entrada em vigor do acordo, salvo,
naturalmente, alteração do respectivo projecto ou revisão dos próprios Tratados.
Sublinhe-se que, ao longo de todo o procedimento, o Conselho delibera por
maioria qualificada, a não ser nos casos – previstos no número 8 do artigo 218.º – em
que vigora a regra da unanimidade.
Como se vê, na órbita das competências próprias da União europeia, os Estados
membros viram-se (voluntariamente) amputados de uma parcela do seu jus tractum.
O princípio da delegação de competências assim o determina. O entibiamento (ou
mesmo afastamento) de algumas prerrogativas de soberania é conatural à aquisição
da qualidade de membro de uma organização de integração (de carácter supranacional
ou, quando menos, com laivos de supranacionalidade) (veja-se, a propósito, o nº 6 do
artigo 7.º da CRP).
Do ponto de mira do direito português, a posição do Governo acerca do
projectado acordo da União Europeia deve ser discutida e aprovada em Conselho de
Ministros, como se de um acordo internacional não submetido à Assembleia da
91
República se tratasse. Sucede, todavia, que nos termos constitucionais (artigos 161.º,
n), 163, f), e 197.º, nº1, f) da CRP), bem como de harmonia com o disposto na Lei no
âmbito do Processo de Construção da União Europeia (LPCUE – Lei nº 43/2006, com as
alterações introduzidas pela Lei nº 21/2012), em particular no seu artigo 2.º, impende
sobre o Governo um dever de informação à Assembleia da República.
Mais exactamente, se em causa estiver a aprovação de um acordo da União
que verse matéria da competência reservada da AR, deve o Governo remeter ao órgão
parlamentar um resumo do projecto ou proposta desse acordo, assim como uma
análise das suas putativas implicações, inteirando-o da posição que pretende adoptar
e solicitando-lhe a emissão de um parecer. Competirá, seguidamente, à Comissão de
Assuntos Europeus, em articulação com as comissões especializadas ratione materiae,
preparar esse parecer, que, depois de aí aprovado, será submetido ao plenário.
Conquanto obrigatório (deve ser solicitado), o parecer da AR não é vinculativo para o
Governo (as conclusões nele exaradas não têm de ser seguidas), mas – sob pena de se
converterem em letra morta os poderes de acompanhamento, apreciação e pronúncia
da AR – deverá ser tomado em consideração, podendo, em certos casos, levar a uma
reponderação da posição do Estado português.
Se, diferentemente, se tratar de acordo da União que se não enquadre nas
matérias de competência reservada da AR, nem por isso deixa esta de poder exercer as
aludidas competências de acompanhamento e apreciação, subsistindo, por
conseguinte, o dever de o Governo transmitir ao Parlamento todas as informações
que, in casu, se revelem necessárias (cfr. artigos 4.º e 5.º da LPCUE).
Assinatura diferida
na fase da negociação.
Como se vê, através deste expediente, ou bem se proporciona aos Estados a
ocasião para, durante algum tempo, amadurecerem o conteúdo das convenções em
cuja negociação hajam intervindo, não os compelindo, portanto, a uma assinatura
imediata e irreflectida, que poderia, em definitivo, comprometer a sua vinculação
(com efeito, sendo esse o caso, muitos, decerto, optariam por não adquirir a qualidade
de parte), ou bem, no caso de não terem participado na negociação, se lhes faculta um
meio simples e directo de se tornarem partes de um tratado em relação ao qual, à
partida, são alheios.
Adesão
Através da adesão (cfr. atigo 15.º da CV), permite-se a um Estado não signatário
de uma convenção internacional, que se encontra já em vigor, tornar-se parte dela,
independentemente de ter ou não participado na negociação.
À semelhança da ratificação, a adesão serve para exprimir o consentimento de
um Estado a ficar vinculado por um tratado, pelo que, mais até do que a assinatura
diferida (mera antecâmara de uma eventual vinculação futura), constitui um meio
eficaz de alargar o campo de aplicação do direito internacional convencional.
Como, porém, a adesão não é precedida de um acto de autenticação
(assinatura), a aprovação do tratado (se a ela houver lugar, de acordo com o direito
interno do Estado em questão) deverá ser feita antecipadamente (AZEVEDO SOARES),
sem o que, como se percebe, se recairia numa situação em tudo idêntica à das
ratificações imperfeitas.
Reservas
É a seguinte a definição de reserva constante do artigo 2.º, nº1, d), da CV: «A expressão
“reserva” designa uma declaração unilateral, qualquer que seja o seu conteúdo ou a sua designação,
feita por um Estado quando assina, ratifica, aceita ou aprova um tratado ou a ele adere, pela qual visa
excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado na sua aplicação a esse Estado».
Com as reservas não se confundem as chamadas declarações interpretativas, também muito
correntes na prática internacional. Através destas não visam os Estados excluir ou modificar os efeitos
jurídicos de determinadas cláusulas, mas tão-só precisar-lhes o sentido e alcance, No caso, porém, de se
tratar de declarações interpretativas condicionais – aquelas em que o Estado faz depender o seu
consentimento da aceitação, pelos demais, de uma específica interpretação de alguma ou algumas das
suas disposições –, quase se está em presença de reservas encapotadas. Daí que tendam, por vezes, os
Estados a qualificar como meras declarações interpretativas actos unilaterais que, em bom rigor, são
verdadeiras reservas, contornando, dessarte, a proibição de formulação destas em certos tratados
multilaterais. O que, lastimavelmente, revela que nem sempre a substância ou materialidade das coisas
se sobrepõe ao puro nominalismo…
aquele que lançasse mão do mecanismo das reservas. Para mais, em nada se
coadunava com o proclamado objectivo de alargar, o mais possível, o campo de
aplicação dos tratados.
Tudo começaria, no entanto, a alterar-se por ocasião de um célebre Parecer
lavrado pelo Tribunal internacional de Justiça – exactamente em 1951 – no caso das
reservas à Convenção Sobre o Genocídio (M. AKEHURST). Aí, pela primeira vez, se
afirmou não ser a regra tradicional em matéria de reservas aplicável a certo tipo de
tratados, designadamente à Convenção Sobre o Genocídio.
Assentara-se, a partir de então, em que a objecção, de alguma ou algumas
partes num tratado multilateral, a uma reserva formulada por outro Estado não
obstaria a que tal tratado entrasse em vigor perante este último, desde que essa
reserva não contendesse com o objecto e o fim da convenção.
Sem embargo, muitos continuariam a rejeitar esta forma de encarar o
procedimento da formulação de reservas, estribando-se nas desvantagens ou
inconvenientes que um recurso abusivo a este expediente poderia acarretar. Na
verdade, elas constituiriam um modo de subverter o equilíbrio próprio de uma
convenção internacional, fragmentando o seu regime: a circunstância de, em resultado
da formulação de reservas, nem todos os Estados parte obedecerem a todas ou às
mesmas normas, atentaria, de facto, contra a integridade e a coerência próprias do
tratado. Por outras palavras, ficaria comprometido um objectivo, também atendível,
de uniformização do direito internacional convencional.
Estas consequências negativas, frequentemente assacadas às reservas, não
podem, contudo, fazer esquecer as suas, também indesmentíveis, virtualidades, de
entre as quais se conta, sem dúvida, a de proporcionarem uma ampla participação nos
tratados multilaterais e assim contribuírem para um estreitamente de laços entre os
povos e nações, com o consequente reforço do grau de união da comunidade
internacional.
Tudo sopesado, na Convenção de Viena acabariam por ser acolhidos os
princípios que o TIJ enunciara no supracitado Parecer consultivo, emitido em 1951, ao
ser afastada a regra da unanimidade, que, tradicionalmente, como se disse, presidia ao
regime jurídico das reservas.
Vejamos, pois, mais detidamente, as coordenadas principais do regime actual.
97
Da natureza das coisas decorre ainda não ser concebível a formulação de reservas aos tratados
bilaterais, pois que estas redundariam na não conclusão do acordo (no caso de uma parte formular uma
reserva e a outra a não aceitar) ou na modificação do texto (na hipótese de aceitação), o que, afinal de
contas, equivaleria a uma renegociação do tratado.
Por incompatibilidade lógica (D. CARREAU), também não será admissível uma reserva – como,
aliás, o TIJ declarou, em 1969, no caso da Plataforma Continental do Mar do Norte – a uma disposição
convencional que codifique uma norma costumeira de alcance geral. O mesmo deverá concluir-se, a
fortiori, e, desta feita, sob pena de invalidade, no tocante a reservas formuladas a cláusulas de tratados
que exprimam ou consagrem normas de jus cogens.
prevalecente, sendo que hoje, descontado o caso já referido dos tratados multilaterais
restritos, basta que um único Estado parte numa convenção aceite determinada
reserva para que aquele que a tenha formulado adquira também, automaticamente, a
qualidade de parte nessa convenção (artigo 20.º, nº 4, b)).
Parece algo criticável esta solução consagrada na Convenção de Viena, sobretudo quando a
reserva em causa tenha sido rejeitada por um número significativo de Estados parte no tratado, Por
isso, alguns autores defendem, conquanto ao arrepio do direito positivo, não dever ser considerado
parte numa convenção aquele Estado cuja reserva aposta haja suscitado a oposição de mais do que um
terço dos Estados parte nessa convenção (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).
De acordo com a máxima pacta tertiis nec nocent nec prosunt, os tratados não
produzem efeitos para terceiros (Estados não parte), nem através da imposição de
obrigações, nem por via da atribuição de direitos.
Ao estatuir, no artigo. 34.º, que «um tratado não cria nem obrigações nem
direitos para um terceiro Estado sem o consentimento deste último», a Convenção de
100
Acordo colateral
«Uma obrigação nasce para um terceiro Estado de uma disposição de um tratado, se as partes
nesse tratado entenderem criar a obrigação por meio dessa disposição e se o terceiro Estado aceitar
expressamente por escrito essa obrigação».
Vamos supor que A e B, partes num tratado inicial, pretendem criar uma
obrigação para C – Estado terceiro, que, portanto, não participou nesse primeiro
acordo. Tal intenção só logrará concretizar-se caso C, expressamente e por escrito,
anua em ser sujeito passivo da mencionada obrigação. Vale por dizer,
consequentemente, que o consentimento do Estado terceiro (no nosso exemplo, C)
terá de ser formalizado através de um segundo acordo – por isso designado acordo
colateral – entre esse Estado e as partes no primitivo tratado (A e B).
101
Daqui se conclui que a obrigação não se impõe a C por força da convenção A-B,
mas sim em resultado de um acordo posterior em que são intervenientes os três
Estados considerados (A, B e C). Numa palavra, é este acordo colateral que constitui o
fundamento jurídico da obrigação que passa a vincular o Estado terceiro.
Como se vê, o acordo colateral constitui um corolário lógico do princípio da eficácia relativa das
convenções internacionais, ao mesmo tempo que não «afronta» a igualdade e a soberania dos Estados,
visto que a imposição de obrigações para um Estado terceiro apenas resulta possível mediante o
consentimento deste.
«Um direito nasce para um terceiro Estado de uma disposição de um tratado, se as partes
nesse tratado entenderem, por essa disposição, conferir esse direito, quer ao Estado terceiro, quer a um
grupo de Estados a que ele pertença, quer a todos os Estados, e se esse Estado terceiro o consentir.
Presume-se o consentimento enquanto não haja indicação em contrário, a menos que o tratado
disponha diversamente».
«No caso em que um direito tenha nascido para um terceiro Estado, de acordo com o artigo
36.º, esse direito não pode ser revogado ou modificado pelas partes, se se concluir que era destinado a
não ser revogável ou modificável sem o consentimento do terceiro Estado».
Verifica-se, portanto, que também no caso de tratados que criam direitos para
terceiros se não dispensa o consentimento destes; simplesmente, as exigências são
aqui menores: tal consentimento é meramente presumido (presunção esta que o
beneficiário, querendo, poderá, naturalmente, ilidir) Qual a razão de ser desta
diferença de regime relativamente ao acordo colateral, em que, como vimos, se faz
necessário que aquele seja prestado expressamente e sob a forma escrita?
É fácil perceber-se. Os dois mecanismos distinguem-se materialmente pela
102
«Nenhuma das disposições dos artigos 34.º a 37.º se opõe a que uma norma enunciada num
tratado se torne obrigatória em relação a terceiros Estados, como norma consuetudinária de direito
internacional, reconhecida como tal».
Quer dizer, admite-se que uma regra contida numa convenção internacional
possa, a certa altura, convolar-se em norma costumeira e, em resultado disso, tornar-
se obrigatória para Estados não parte, que reiteradamente a observam, interiorizando
esse seu carácter vinculante. Esta extensão ultra partes dos efeitos de um tratado
pode até explicar melhor do que a própria categoria dos tratados que criam situações
objectivas – cfr. infra – o reconhecimento geral de que beneficiam certos estatutos
territoriais, como por ex., a neutralidade da Suíça, o estatuto da zona económica
exclusiva, o do espaço extra-atmosférico, etc. (J. COMBACAU/S. SUR).
sua progressiva diluição. Caminha-se, assim, para aquilo a que podemos chamar uma
objectivização do direito internacional convencional, que, aos poucos, se vai
transformando em direito internacional comum (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS). Daí também que vá perdendo nitidez a, outrora bem visível, fronteira
entre norma convencional e norma costumeira.
Pois bem, em matéria de tratados, as situações reputadas de objectivas ou
estatutárias têm exactamente a ver com o que acaba de ser dito.
Há, com efeito, determinadas convenções internacionais que, destinando-se a
instituir certos estatutos políticos ou territoriais, apresentam o carácter de verdadeiro
direito objectivo e, nessa medida, os seus efeitos jurídicos fazem-se sentir para lá do
círculo, mais ou menos restrito, das partes contratantes. Dito de outro modo, trata-se
de convenções que, em razão do respectivo conteúdo, se impõem a terceiros
independentemente do consentimento destes.
Isto mesmo fora afirmado no já aludido parecer consultivo do TIJ, de 1949, sobre a Reparação
de danos sofridos ao serviço das Nações Unidas. Sustentou, então, o Tribunal que a criação de uma
qualquer entidade (in casu, a ONU), por uma larga maioria de membros da comunidade internacional,
lhe confere uma personalidade objectiva, que não apenas uma personalidade reconhecida pelos Estados
que, em determinado momento, lhe deram vida.
Claro que, assentando em que a existência de novos Estados é um dado objectivo, que não
mais poderá negar-se a partir do momento em que uma determinada entidade reúna em si os três
elementos – população, território e governo – necessários à constituição de um Estado, se encontrarão
boas razões para duvidar de um possível fundamento convencional do nascimento de um sujeito
primário de direito internacional.
Ainda assim, porém, o que importa relevar á que, mesmo admitindo que o surgimento de um
novo Estado resulta, em larga medida, de um processo de facto, o certo é que, estando esse
acontecimento, concomitante ou subsequentemente, formalizado (diríamos, sacralizado) num tratado,
não deixará este de impor-se a todos os membros da comunidade internacional.
Os tratados «normativos»
Tanto a Carta das Nações Unidas (artigo 13.º), como o Estatuto da Comissão de Direito
Internacional (artigo 15.º), fazem referência às operações de codificação e de desenvolvimento
progressivo do direito internacional. Por codificação entende-se a conversão de normas costumeiras
num corpo de normas escritas, devidamente agrupadas e sistematizadas; o desenvolvimento
progressivo significa antes a afirmação de regras novas a partir do direito preexistente, com o que,
portanto, releva já do plano do direito a constituir.
Em ambos os casos, para além de um indesmentível interesse técnico e científico, está
igualmente em causa o objectivo da coesão e da unidade política na comunidade dos Estados; objectivo
esse que se apresentará tão menos inalcançável ou utópico quanto mais a ordem jurídica internacional
tender para a precisão, para a clarificação e para a ordem (GUTIÉRREZ ESPADA/CERVELL HORTAL).
Em especial, sendo de fonte costumeira parte substancial das normas de direito internacional e
conhecendo-se as imperfeições próprias dos procedimentos (consuetudinários) de formação
espontânea de normas jurídicas, compreender-se-á a importância que assume a tarefa de codificação
naquele ordenamento.
veria desprovida de sentido útil caso não fosse acatada e observada pela generalidade
dos sujeitos de direito internacional. É, inter alia, o caso da Convenção das Nações
Unidas Sobre o Direito do Mar, ou de Montego Bay, de 1982.
Trata-se, portanto, no que toca às autoridades representativas dos povos não autónomos, de
uma capacidade rigorosamente funcionalizada (limitada), que, em regra, se tem consubstanciado na
celebração de três tipos de convenções internacionais: acordos de independência (que, selando o
nascimento de um novo Estado, põem, em simultâneo, termo ao movimento de libertação nacional),
tratados relativos ao desenvolvimento da luta armada (para efeitos de submissão do conflito ao direito
internacional humanitário) e tratados de participação numa organização internacional).
Relativamente aos Estados, raras são as situações que ditam a sua incapacidade
para concluir tratados.
Uma delas poderá, em abstracto, resultar de um acordo de protectorado. Do
que se trata?
O protectorado consiste numa particular forma de relacionamento entre dois
Estados – o Estado protector e o Estado protegido –, convencionalmente estabelecida,
mas hoje caída em desuso, que, em teoria, apenas limita a competência do segundo no
109
Irregularidades formais
constitui, por via de regra, motivo bastante para que esse Estado alegue o vício
ocorrido e se desvincule da convenção. Caso, todavia, aquela violação haja sido
manifesta e diga respeito a uma norma de direito interno (constitucional) considerada
de importância fundamental, então sim, admite-se que o Estado possa prevalecer-se
da ratificação imperfeita, arguindo a nulidade (relativa) do tratado.
Irregularidades substanciais
«Um Estado pode invocar um erro num tratado como tendo viciado o seu consentimento de se
obrigar pelo tratado se o erro se deu sobre um facto ou uma situação que o Estado supunha existir no
113
momento em que o tratado foi concluído e que constituía um motivo essencial do consentimento desse
Estado a obrigar-se pelo tratado».
E acrescenta o nº 2:
«O parágrafo 1 deste artigo não se aplica quando o dito Estado contribuiu para o erro com a
sua conduta ou quando as circunstâncias forem tais que ele se devia ter apercebido da possibilidade de
um erro».
«Se um Estado foi levado a concluir um tratado pela conduta fraudulenta de um outro Estado
que tenha participado na negociação, pode invocar o dolo como tendo viciado o seu consentimento a
obrigar-se pelo tratado».
Seguro, é, isso sim, que só existirá dolo quando houver intenção ou consciência
de enganar.
À semelhança do erro, também o dolo provoca a nulidade relativa da
convenção.
Escasseiam os exemplos de dolo na conclusão de tratados. Ainda assim, alguns
é possível encontrar, sobretudo em tempos já muito recuados da época colonial e num
contexto muito particular: o do relacionamento entre algumas potências europeias e
chefes tribais africanos (v.g., a deliberada utilização por aquelas de mapas adulterados
durante as negociações de certos acordos). Mais recentemente, o Tribunal Militar
Internacional de Nuremberga, constituído, após a Segunda Guerra Mundial,
considerou terem os Acordos de Munique, de 1938, sido concluídos com dolo pela
Alemanha nazi (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET)
«Se a expressão do consentimento de um Estado a obrigar-se por um tratado foi obtida por
meio da corrupção do seu representante, pela acção directa ou indirecta de um outro Estado que tenha
participado na negociação, o Estado pode invocar aquela corrupção como tendo viciado o seu
consentimento a obrigar-se pelo tratado»
Entre outros, podem citar-se os exemplos o tratado de 1905, em que o Japão, na sequência de
uma ocupação militar, forçou os negociadores coreanos a assinarem um acordo de protectorado; a
convenção de 1939, em que a Checoslováquia foi coagida pela Alemanha a aceitar o protectorado
alemão sobre a Boémia e a Morávia; o tratado de 1941, entre a França (Estado protector do Cambodja)
e a Tailândia, em que o primeiro Estado foi compelido pelo Japão a acordar numa delimitação de
fronteiras largamente desvantajosa para o Estado protegido (coacção exercida por terceiro); e, por fim,
o tratado de Outubro de 1968, sobre o estacionamento das tropas do Pacto de Varsóvia, em que a
Checoslováquia e os seus representantes foram fortemente coagidos pela União Soviética.
Para que uma convenção internacional seja válida, não basta que as partes
sejam capazes e que o consentimento tenha sido regularmente manifestado; faz-se
ainda necessário que o objecto dessa convenção (a sua finalidade, a matéria sobre que
versa) não atente contra a ordem pública internacional, isto é, não contrarie o
conjunto dos princípios fundamentais que estão na base do sistema jurídico
internacional. Mas existirá verdadeiramente uma ordem pública internacional?
A questão é duvidosa e complexa. É inquestionável que num agrupamento
118
É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, é incompatível com uma norma
imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente convenção, uma norma imperativa
de direito internacional geral é a que for aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos
Estados no seu conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser
modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza».
«Se sobrevier uma norma imperativa de direito internacional geral, todo o tratado existente
que seja incompatível com essa norma torna-se nulo e cessa a sua vigência».
Estes dois tipos de invalidade encontram paralelo na ordem jurídica interna. Também aí, com
efeito, desde sempre opera a distinção entre nulidades absolutas (ou simplesmente nulidades) e
nulidades relativas (ou anulabilidades).
As primeiras, visam sancionar os vícios mais graves, que, mais do que afectarem os contraentes
enquanto pessoas privadas, contendem com o interesse geral e a ordem pública. Daí que o seu regime
reflicta tal objectivo: em regra, são invocáveis por qualquer interessado, o tribunal pode conhecer delas
oficiosamente, são insusceptíveis de sanação (quer pelo decurso do tempo, quer por confirmação), etc..
As segundas, por seu turno, resultam da infracção de normas que, predominantemente,
tutelam interesses particulares, razão por que o respectivo regime é mais apertado: só podem ser
invocadas pela pessoa dotada de legitimidade para tal (o beneficiário da protecção legal), o juiz não
pode conhecê-las oficiosamente, são insanáveis, etc..
Uma vez mais, importa ter presente que se não podem decalcar, para o plano
internacional, os conceitos e regimes jurídicos que são próprios dos ordenamentos
internos. No entanto, como veremos, existem, indiscutivelmente, algumas similitudes
entre as nulidades absolutas e relativas dos tratados e as invalidades dos negócios
jurídicos na ordem interna.
Sabemos já que provocam a nulidade relativa das convenções internacionais as
irregularidades formais do consentimento (v.g., a ratificação imperfeita, ainda que
excepcionalmente), o erro, o dolo e a corrupção. As nulidades absolutas, por sua vez,
resultam da incapacidade das partes, da coacção e da incompatibilidade do tratado
com uma norma de jus cogens (ilicitude do objecto).
Caberá agora analisar, mais detidamente, os vectores principais do respectivo
regime jurídico.
Ora, as nulidades relativas distinguem-se das absolutas, sobretudo, quanto a
três aspectos: o direito de invocar o vício, a divisibilidade extintiva das disposições do
120
tratado e a sanação.
Vejamos.
Relativamente ao primeiro (o direito de invocação do vício), importa relevar
que, quer se trate de uma nulidade relativa, quer estejamos, antes, em presença de
uma nulidade absoluta, o direito de invocar o vício se circunscreve às partes
contratantes (artigos 65.º e ss. da CV), com o que, neste domínio, os regramentos
internacionais se afastam (talvez de forma pouco avisada, maxime na hipótese de
ilicitude do objecto…) do direito interno, no qual, conforme assinalado, qualquer
interessado – contratante ou terceiro – pode arguir uma nulidade absoluta.
A despeito disso, uma diferença existe, no que toca à questão vertente, entre
os dois tipos de invalidade. É que, na nulidade relativa, só a parte vítima pode invocar
o vício: assim, designadamente, poderá fazê-lo o Estado cujo consentimento a ficar
vinculado assentou na violação de um preceito do seu direito interno relativo à
conclusão dos tratados (nas irregularidades formais, se relevantes nos termos do
artigo 46.º da CV), o Estado errante (no erro), o Estado enganado – deceptus – (no
dolo) ou o Estado cujo representante tenha sido corrompido (na corrupção). Já na
nulidade absoluta qualquer das partes no tratado (mas jamais um Estado terceiro)
poderá, à luz da CV, invocar a causa de nulidade.
Claro que, relativamente à nulidade absoluta, sendo isto exacto de acordo com a CV, convém
não perder de vista que as circunstâncias se encarregam, por vezes, de infirmar aquilo que acaba de
dizer-se. Imaginemos, por ex., um tratado bilateral concluído sob coacção. Num tal caso, como se
compreende, não faria sentido conjecturar a possibilidade de o Estado que coagiu – não tendo ocorrido
qualquer sobressalto político interno – poder prevalecer-se da sua própria falta para invocar a nulidade
absoluta do tratado… Donde, como se fora uma nulidade relativa, apenas o Estado vítima poderia argui-
la. Diferentemente, numa convenção multilateral, aí sim, todos os Estados parte – à excepção daquele
que empregou meios de coacção – estarão autorizados a invocar o vício da coacção.
efectivamente, que todo o tratado deva considerar-se inválido, não fazendo qualquer
espécie de sentido a possível salvaguarda ou preservação de alguma ou algumas das
suas disposições.
No que tange, contudo, às nulidades relativas, certas diferenças de regime
importa assinalar.
É que, uma vez preenchidos os supramencionados requisitos da divisibilidade,
constantes do artigo 44.º, nº 3, da CV – e apenas em tal caso –, essa divisibilidade é
obrigatória no erro e facultativa no dolo e na corrupção (artigo 44.º. nº 3 e nº 4, da
CV); isto é, enquanto no primeiro caso só podem ser invalidadas as disposições sobre
as quais haja incidido o vício do erro, no dolo e na corrupção confere-se ao Estado
vítima a possibilidade de optar pela invalidação de todo o tratado ou antes pela
subsistência deste, expurgado da parte viciada.
E porquê?
À primeira vista, é fácil perceber-se. No erro, não existindo má-fé, há que
tutelar as legítimas expectativas da outra ou das outras partes no tratado na
manutenção deste em vigor. Daí que o Estado vítima somente em relação a certas e
determinadas cláusulas possa invocar o vício. Pelo contrário, tanto o dolo como a
corrupção pressupõem má-fé da contraparte, pelo que inexistem, desta feita,
expectativas dignas de protecção. Assim, admite-se que o Estado vítima, em função
dos seus interesses, opte, invocando o vício, pela invalidação de toda ou apenas de
parte da convenção.
Algo, porém, não bate certo relativamente ao erro. Vejamos porquê.
Assentámos em que, na hipótese de se acharem preenchidos os três requisitos
do nº 3 do artigo 44.º da CV, o erro configura uma situação de divisibilidade
obrigatória. Ora, a verdade é que não parece conciliável a essencialidade do erro,
enquanto sua condição de relevância (cfr., supra, ponto 6.2), com o segundo
pressuposto, vertido na alínea b) do artigo 44.º. nº 3, da divisibilidade extintiva.
De facto, o erro apenas se convola em vício da vontade (ou do consentimento)
se for determinante ou essencial e desculpável. E, conforme mais atrás sublinhámos,
essencial será quando, justamente, incidir sobre um motivo determinante (ou
essencial) do consentimento do Estado a obrigar-se pelo tratado (cfr. artigo 48.º, nº 1,
in fine). Terá, portanto, de provar-se que, sem o erro, o Estado não teria concluído a
123
A esta figura alude o artigo 45.º da CV, estatuindo que um Estado perde o
direito de alegar uma qualquer causa de invalidade de um tratado quando, depois de
haver tomado conhecimento dos factos, esse Estado aceitou expressamente considerar
que o tratado era válido (sanação expressa) ou em razão da sua conduta deva
formular-se idêntica conclusão (sanação tácita).
Ora, de acordo com a disposição citada, tal possibilidade de sanação por
confirmação – expressa ou tácita – existe no caso das nulidades relativas, em que,
essencialmente, estão em causa interesses particulares dos Estados contratantes, mas
deve ter-se por excluída nas nulidades absolutas, nas quais se sobrepuja o interesse
geral da não ofensa à ordem pública internacional, não sendo, portanto, atendível o
hipotético interesse das partes na subsistência da convenção em vigor, a despeito do
vício que inquina a sua validade.
Sanar significa, pois, tornar são, “curar”: a convenção não chega a ser (mesmo
que apenas parcialmente) invalidada. Daí que não haja confusão possível com a
divisibilidade, a qual, como vimos, significa o aproveitamento parcial de um tratado no
momento da invalidação de alguma ou algumas das suas cláusulas.
acolhidas nas disposições da CV, fácil será concluir, pela análise dos artigos 69.º e ss.,
que a nulidade (absoluta ou relativa) de uma convenção internacional opera ex tunc,
ou seja, produz efeitos retroactivos. Significa isto que que o tratado é considerado
inválido desde o momento da sua conclusão e não apenas a partir do momento em
que é descoberta a causa da invalidade. Deverão assim, tanto quanto possível,
desaparecer todos os actos que hajam sido praticados com base nesse tratado, por
forma a ser restabelecido o statu quo ante, isto é, a situação que teria existido caso a
convenção não tivesse sido celebrada.
Apesar, no entanto, de na CV, com a sanção da retroactividade, se ter
pretendido evitar que se consolidassem as situações criadas à sombra de uma
irregularidade ou de um acto ilícito, o certo é que duas atenuações aos efeitos ex tunc
da invalidação acabam por temperar ou dulcificar a rigidez do regime descrito.
A primeira delas encontra-se prevista no artigo 69.º, nº 2, b), em que se prevê a
salvaguarda de actos praticados de boa-fé: «Os actos praticados de boa-fé, antes de a
nulidade haver sido invocada, não são afectados pela nulidade do tratado». No nº 3 do
mesmo artigo precisa-se, contudo, não ser a excepção da boa-fé aplicável (et pour
cause…) nos casos de dolo, corrupção e coacção, à parte a quem estes vícios sejam
imputáveis.
A outra atenuação diz respeito à superveniência de uma norma imperativa de
direito internacional geral (artigo. 64.º da CV). Aqui, ao contrário do que
habitualmente sucede, o vício que afecta o tratado não é contemporâneo da sua
conclusão; antes ocorre, em momento posterior, por força do surgimento de uma
norma de jus cogens incompatível com o conteúdo desse tratado. Deste jeito, a
declaração de nulidade não irá afectar ou contender com quaisquer direitos,
obrigações ou situações jurídicas das partes criados pela execução da convenção antes
de ela se extinguir (cfr. artigo 71.º, nº 2, b), da CV). O mesmo é dizer que, por
referência ao momento em que sobreveio a norma imperativa de direito internacional
geral, a nulidade produzirá, tão-só, efeitos ex nunc (desde essa altura).
Sempre que surge uma regra de direito, ela aparece com o objectivo de aplicar-se a
determinadas relações sociais. Simplesmente, os autores dessa norma não estão em condições de
prever todas as situações da vida susceptíveis de serem abrangidas pelo seu âmbito. Daí que na
respectiva formulação se vejam muitas vezes forçados a recorrer a disposições de carácter genérico, a
conceitos vagos e indeterminados, o que, necessariamente, há-de implicar um certo graus de abstracção
e conceitualismo, tornando mais espinhosa a tarefa do intérprete (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).
Recordemos a distinção que, a este respeito, se fez supra, entre reserva e declaração
interpretativa. Ora, evidentemente que estas declarações mais não são do que uma forma de
interpretação (unilateral) autêntica.
A interpretação não autêntica, por seu turno, é aquela que é fornecida por um
terceiro (v.g., um tribunal internacional, um órgão não jurisdicional de uma
organização internacional ou um qualquer comité adrede instituído). O recurso a esta
forma de interpretação dos tratados visa contornar as dificuldades conaturais a uma
interpretação efectuada pelos Estados parte.
das partes, sacrifícios ou prejuízos excessivos, de tal modo que, a posteriori, se gere
uma desproporção ou desequilíbrio nas obrigações reciprocamente assumidas pelos
contraentes. Reconhecer a operatividade da cláusula rebus sic stantibus, significa, pois,
em último termo, assegurar o respeito pela vontade das partes, restabelecendo o
equilíbrio próprio de um tratado, que fora subvertido no seu regime pela mencionada
alteração abrupta e radical de circunstâncias.
A outra face da moeda não deve, contudo, ser escamoteada. É que, sendo a
realidade internacional eminentemente evolutiva, as circunstâncias tendem a mudar a
um ritmo que não encontra paralelo nas sociedades internas. O que implica ocorrer,
frequentemente, num contexto de grande volatilidade a celebração de convenções
internacionais. Donde, aceitar, sem reservas, que os Estados pudessem invocar toda e
qualquer alteração de circunstâncias, como forma de tornarem inaplicáveis os tratados
por si concluídos, conduziria a uma indesejável (quiçá, insuportável) instabilidade nas
relações internacionais, surgindo o princípio pacta sunt servanda completamente
esvaziado de sentido.
Ponderadas as vantagens e inconvenientes da cláusula rebus sic stantibus, a CV
consagrou um regime equilibrado, conquanto não inteiramente satisfatório.
Assim, à luz do artigo 62.º, uma alteração de circunstâncias apenas mediante a
verificação de duas condições será atendível e poderá, portanto, ser invocada: (a)) terá
de ser essencial ou fundamental, isto é, deverá a existência dessas circunstâncias ter
constituído uma «base essencial» do consentimento das partes a obrigarem-se pelo
tratado, de tal modo que, num outro contexto, não teriam, provavelmente, chegado a
concluí-lo; e, (b)), deverá, ainda, essa alteração de circunstâncias ter gerado uma
transformação radical da natureza das obrigações assumidas no tratado, levando à
mencionada desproporção – de todo imprevista e não querida – dos deveres
assumidos pelas partes.
Exceptuam-se, porém, da possível invocação de uma alteração fundamental de
circunstâncias as convenções de delimitação de fronteiras, que, conforme dissemos já,
criam «situações objectivas» (artigo 62,º, nº 2, a)); exceptuam-se, ademais, do regime
previsto no nº 1 as alterações de circunstâncias que tenham sido provocadas pelas
partes (artigo 62,º, nº 2, b)).
Importa ainda sublinhar, por outro lado, que um Estado perde o direito de
134
Para que o regime vertido na CV, acerca da cláusula rebus sic stantibus fosse, todavia, isento de
reparos, haveria que definir, de modo mais preciso e concreto, quais as alterações de circunstâncias,
realmente, susceptíveis de serem alegadas pelos Estados parte (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS).
III – O COSTUME
Sumário: 1 – Noção e natureza desta fonte de direito internacional. 1.1 – O elemento material
ou objectivo (consuetudo). 1.2 – O elemento psicológico ou subjectivo (opinio juris sive necessitatis). 1.3
– Elemento normativo? 2 – Fundamento do costume: doutrinas voluntaristas e correntes objectivistas 3
– Processo costumeiro. 3.1 – Quanto ao elemento material. 3.2 – Quanto ao elemento psicológico. 3.3 –
Os costumes «selvagens» ou instantâneos. 4 – O problema da oponibilidade do costume e o estatuto do
objector persistente. 5 – A prova do costume. 6 – Renovação do costume e sua importância actual.
Além dos dois elementos tradicionais, seria, pois, de exigir um terceiro elemento
atestador da coerência da norma consuetudinária nascente ou já formada com o
quadro de valores e princípios em que assenta a ordem jurídica internacional.
A hipotética desconformidade dos elementos objectivo e subjectivo do
costume com tal quadro axiológico-normativo, traçaria um caminho pouco auspicioso,
ou determinaria mesmo, a prazo, a falência da norma consuetudinária.
Por outro lado, naquelas matérias consideradas de maior dignidade (v.g.,
direitos humanos, direito internacional humanitário e penal, etc.), que apresentam
alguns pontos de contacto ou se intersectam com directrizes da moral internacional, a
viabilidade do costume estaria muito mais dependente da sua consonância e harmonia
com aquele acervo de valores e princípios fundamentais do que propriamente da
prova da prática estadual (JÓNATAS MACHADO, na senda de BLECKMANN).
E seria, ainda, o elemento normativo a explicar a emergência de costumes
“selvagens” ou instantâneos, nos casos em que um dos elementos tradicionais
(sobretudo a prática) não se encontra claramente comprovado ou em que a opinio
juris resulta de um certo conformismo ou resignação dos Estados mais fracos perante a
convicção de obrigatoriedade exprimida pelos mais fortes.
Ora, estamos em crer que não se justifica a autonomização de um terceiro
elemento do costume, ao lado dos elementos tradicionais. Em bom rigor, o chamado
“elemento normativo” não constituiu pressuposto necessário da formação de uma
norma consuetudinária; constitui, isso sim, requisito indispensável para a sua validade
(e legitimação) subsequente. E, de resto, a conformidade com aquilo a que
poderíamos designar por ordem pública internacional (o tal radical básico de valores e
princípios essenciais do ordenamento internacional) não é desejável apenas
relativamente às normas de costume, mas sim a todas as normas de direito
internacional, independentemente da sua origem formal. As exigências de coerência
sistémica assim o determinam.
Deste modo, enquanto procedimento ou mecanismo de criação de normas
(fonte formal), o costume é composto pelos dois elementos tradicionais (a prática e a
opinio juris). As normas reveladas por essa fonte é que – como condição da sua
viabilidade futura – terão de afeiçoar-se ao quadro axiológico-normativo prevalecente
em cada momento (“elemento” normativo).
138
O debate doutrinal em torno desta questão – que, aliás, não pode dissociar-se
do problema, mais geral, da fundamentação da obrigatoriedade do direito
internacional – conduziu a um confronto entre as teses positivistas ou voluntaristas e
as teses antivoluntaristas.
Diga-se que o problema do fundamento do costume reganhou até, nas últimas décadas,
importância e actualidade, como resultado do aparecimento de novos Estados na cena internacional, na
sequência do movimento da descolonização. Tratava-se então de saber se, e em que medida, aqueles
estariam vinculados por normas costumeiras de cuja formação, por circunstâncias históricas, haviam
estado arredados (PIERRE-MARIE DUPUY).
Por outro lado, a teoria do tacitum pactum revela-se imprestável para explicar
a vinculação de todos os Estados às normas de costume universal, mesmo daqueles
(recém-formados) que não participaram no processo de criação dessas normas. E isto
em tais termos que, como veremos mais adiante ao abordar o problema do estatuto
do persistente objector, a oposição a um costume geral já existente não surte
quaisquer efeitos. Por maioria de razão, assim ocorrerá no caso de esse costume ter a
natureza de jus cogens.
Em terceiro lugar, importa assinalar que a simples ideia de um acordo tácito
não é, em boa verdade, concebível senão para os costumes bilaterais ou regionais, que
se aplicam a um número restrito de Estados. Já para as normas consuetudinárias de
alcance geral a tese do consentimento tácito se apresenta como uma pura ficção.
Terá sido fruto de um célebre dictum do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, no caso
Lotus, que a doutrina voluntarista do pacto tácito encontrou terreno fértil para vicejar: «Les règles de
droit liant les États procèdent donc de lá volonté de ceux-ci, volonté manifestée dans des conventions ou
dans des usages acceptés généralement comme consacrant des principesde droit (…)». Em rigor, no
entanto, a esta tomada de posição deverá atribuir-se escasso relevo, quer pelo volume de críticas que,
desde sempre, suscitou, quer pelo facto de só ter podido concretizar-se graças à intervenção decisiva do
Presidente do Tribunal (através do seu voto de desempate).
Convirá, a este propósito, recordar o caso da Plataforma Continental do Mar do Norte, de 1969
– porque bem ilustrativo do que acaba de dizer-se –, no qual o Tribunal Internacional de Justiça se pôs a
questão de saber se a regra da equidistância, no que toca à delimitação da plataforma continental entre
dois Estados contíguos, corresponderia ou não a uma necessidade lógica, pelo facto de,
hipoteticamente, estar ligada de forma inevitável e a priori à própria noção de plataforma continental.
140
3 – Processo costumeiro
No que às primeiras diz respeito (práticas internas), importa relevar que nem sempre se admite
uma revisão implícita das cartas constitutivas das organizações internacionais pela via das suas práticas
internas. Não obstante, o Tribunal Internacional de Justiça já, por diversas vezes, se referiu a tais
práticas, considerando estarem na base do surgimento de verdadeiros costumes. Foi, designadamente,
o que sucedeu a propósito do caso Namíbia, em que o Tribunal se pronunciou acerca da prática seguida
em matéria de votação no seio do Conselho de Segurança das Nações Unidas: por força dessa prática
geral, reiterada e uniforme, a abstenção de um dos membros permanentes cessara – ao arrepio do
preceituado no artigo 27.º da CNU – de equivaler a veto.
No que tange, por outro lado, aos comportamentos das organizações internacionais no plano
internacional, é sabido que estas contribuem para a formação do direito internacional geral
(consuetudinário), através, v.g., das resoluções que adoptam, dos tratados em que participam ou das
relações que estabelecem com outros sujeitos de direito internacional. Exemplo paradigmático do que
acaba de dizer-se constituem as Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas – não previstas na
Carta –, cuja repetição ao longo do tempo propiciou a formação de um acervo de normas costumeiras
aplicáveis, quer ao desencadeamento, quer ao funcionamento quotidiano dessas operações. Normas
essas resultantes, por ex., de resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, de acordos
celebrados entre a ONU e os Estados envolvidos e, ainda, de práticas adoptadas no terreno de acordo
com directivas do Secretário Geral.
É, igualmente, claro que terão de ser vários os Estados, e não apenas um, a
adoptar, uniformemente, ao longo do tempo, determinado comportamento. Por
outras palavras, a formação de um costume reclama ou pressupõe uma certa
dispersão espacial.
Sim, reclama ou pressupõe, tão-só, uma certa dispersão; não uma dispersão
universal. E isto por duas razões. Por um lado, porque, a par dos costumes gerais, se
admite também a existência de costumes com um alcance geográfico mais limitado –
os costumes regionais e até mesmo os costumes locais ou bilaterais. Por outro,
porque, ainda que se trate de costumes gerais, a jurisprudência internacional, com
base no artigo 38.º, § 1, b) do ETIJ, tem entendido ser bastante haver-se sedimentado
uma prática geral, representativa dos Estados particularmente interessados na
respectiva formação, jamais se exigindo uma prática unânime, o que, aliás, seria por
demais irrealista.
novos costumes.
A unanimidade no que à prática diz respeito, já tenderá, todavia, a ser exigida, ou sê-lo-á
mesmo, caso, respectivamente, se esteja perante um costume regional (v.g., da América Latina ou da
Europa continental), cujo círculo de Estados interessados é, apesar de tudo, restrito, ou em face de um
costume local ou bilateral (que vincula apenas dois Estados).
A este último se referiu o Tribunal Internacional de Justiça, no âmbito do caso do Direito de
passagem por território indiano, que opôs Portugal (Estado demandante) à União Indiana (Estado
demandado). Rejeitando a posição da Índia, que considerava não poder um costume local formar-se
apenas entre dois Estados, o Tribunal aduziu não se vislumbrar razão plausível para que uma prática
contínua e prolongada entre dois Estados, e por eles aceite como regulando as suas relações recíprocas,
não pudesse constituir a base para a criação de direitos e obrigações mútuos. Pronúncia esta que ia de
encontro à pretensão portuguesa de fundar num costume local (bilateral) o direito de passagem
(rectius, a circulação de pessoas, veículos e mercadorias), entre o território de Damão e os enclaves de
Dadrá e Nagar-Aveli. Para o êxito da causa, muito haveriam de contribuir o brilhantismo, a profundidade
e a consistência dos argumentos jurídicos apresentados ao colectivo de juízes pelo insigne professor de
Coimbra, Doutor Guilherme Braga da Cruz.
Importa agora averiguar se, e em que medida, pode um Estado recusar que um
costume lhe seja oponível.
Como linha de princípio, deve salientar-se que, em reverência às exigências de
certeza e segurança jurídicas, não é lícito aos Estados, em particular aos recentemente
constituídos, porem em causa a validade de processos costumeiros anteriores e, por
conseguinte, a existência de normas consuetudinárias já formadas. Uma parte da
doutrina, não deixa, ainda assim, de admitir a contestação ulterior a um costume
preexistente, fundada na alteração superveniente das circunstâncias (JÓNATAS
MACHADO). Directriz esta relativamente à qual não podemos senão ser algo
reticenciosos, dado o potencial de disrupção (desestabilização) que encerra.
Igualmente de rejeitar, pelas mesmas razões, será a pretensão de Estados recém
independentes contestarem costumes anteriores, alegadamente conservadores do
status quo e, portanto, favoráveis aos interesses das antigas potências coloniais
148
No caso das Pescarias, por ex., o TIJ decidiu que, por força de uma oposição firme e reiterada
da Noruega, a fixação da extensão do mar territorial em três milhas marítimas não constituía uma
norma costumeira de alcance geral, oponível àquele Estado. De modo idêntico, no célebre caso Haya de
la Torre, versando uma questão de asilo diplomático, em que foram oponentes o Peru e a Colômbia,
extrai-se a conclusão de que um costume não é, em princípio, oponível a um Estado que, ab initio, tenha
protestado contra a respectiva prática, desde que – sublinhe-se – esse protesto haja sido exprimido no
momento da formação da norma e não posteriormente.
5 – A prova do costume
que surge da omissão ou de uma atitude passiva (AZEVEDO SOARES). E isto, tanto em
virtude da escassa publicidade dada aos comportamentos diplomáticos, como por
força das cautelas que, habitualmente, rodeiam as tomadas de posição dos Estados na
cena internacional. Por outro lado, há que ter em conta a possibilidade de por detrás
de uma constância comportamental estarem certos factores conjunturais (v.g.,
coincidência circunstancial de interesses, ameaças externas, oportunidades favoráveis,
etc.) que comprometem a sua genuinidade.
Não obstante as dificuldades que se erigem, a multiplicação de repertórios das
práticas nacionais e, bem assim, os estudos comparativos e compilações que, acerca
de tais práticas, têm sido elaborados pelas organizações internacionais ao longo das
últimas décadas, vão contribuindo para minimizar as dificuldades inerentes à prova do
elemento material do costume,
pode, a coberto de dúvida, contribuir para uma maior segurança jurídica, sobretudo no
que toca à opinio juris.
Como vimos já (cfr., supra, ponto 1.5), o artigo 13.ª da Carta das Nações Unidas, bem como o
artigo 15.º do Estatuto da Comissão de Direito Internacional, referem-se às operações de codificação e
desenvolvimento progressivo do direito internacional. Em que consistem?
Apesar de na prática nem sempre se tornar clara a destrinça, reitera-se que por codificação
deve entender-se a conversão de normas costumeiras num corpo de normas escritas, sistematicamente
agrupadas; por desenvolvimento progressivo, uma operação de afirmação ou consagração de normas
novas com base no direito já existente.
Por mor do exposto, compreender-se-á que a passagem dos costumes a escrito, compelindo os
sujeitos de direito internacional a afrontarem, directa e claramente, o problema da opinio juris,
contribui, de facto para atenuar as apontadas dificuldades de prova conaturais ao elemento psicológico
das normas consuetudinárias. Saliente-se, ainda, que as normas codificadas conservam uma existência
costumeira autónoma (J. COMBACAU/SERGE SUR).
Será bom recordar que o Tribunal Permanente de Justiça Internacional – órgão judicial da
Sociedade das Nações – viria, em 1945, aquando da criação da ONU, a ser substituído pelo Tribunal
Internacional de Justiça, sendo que o Estatuto deste último reproduz, quase integralmente (a própria
numeração dos artigos se manteve), o Estatuto do TPJI.
2 – Natureza jurídica
costumeiras de idêntico conteúdo, com o que acaba, afinal de contas, por perder
nitidez, quase se desvanecendo, a fronteira entre princípios de direito interno – que
são, originariamente, os princípios gerais de direito – e princípios de direito
internacional que, justamente, são aqueles que inspiram e dão sentido aos costumes e
convenções internacionais em vigor. Dito de outra forma, o reiterado acolhimento e
aplicação de certos princípios gerais de direito pela jurisprudência internacional
conduz à perda da sua autonomia inicial, acabando por ser assimilados, por via
consuetudinária, pelo próprio direito internacional. Daí o dizer-se, relativamente a
esses, que tanto podem ser princípios oriundos do direito interno como princípios de
direito internacional. Sendo esse o caso, haverá, no entanto, de convir-se que passarão
a relevar da alínea b) do nº 1 do artigo 38.º do ETIJ (costume internacional) e não
propriamente da alínea c) do mesmo preceito…
Dado por assente que os princípios gerais de direito são, para efeitos da alínea
c) do nº 1 do artigo 38.º do ETIJ, princípios de direito interno, cabe olhar agora à sua
específica função nesse âmbito.
Visam eles obviar a uma situação de non liquet, isto é, de denegação de justiça
por falta de direito (convencional ou costumeiro) aplicável ao caso concreto sub judice.
O recurso aos princípios gerais de direito serve, exactamente, para obstar a esse
presumível impasse, permitindo aos juízes estatuir sem terem de sair da órbita do
direito positivo. Dito de outra forma, os princípios gerais de direito constituem uma
fonte supletiva de direito internacional.
Pode, efectivamente, concluir-se – conforme, de resto, advertimos, supra, no
início do presente capítulo – que a ordem de enunciação das fontes formais de DIP no
artigo 38.º do ETIJ não é arbitrária ou indiferente; é antes uma ordem sucessiva de
utilização ou de aplicação. Significa isto que, no julgamento dos diferendos que lhe
sejam submetidos, o juiz internacional deverá, em primeiro lugar socorrer-se das
convenções internacionais e do costume (por esta ordem) e só depois, comprovado
que esteja o sobredito interstício normativo ou lacuna de regulamentação do direito
internacional, aos princípios gerais de direito.
Acrescente-se que fonte supletiva não significa fonte subsidiária. De facto, esta
158
4 – Exemplos
1 – Noção e importância
de uma voluntas exprimida pelo seu autor. É jurídico porquanto se destina a produzir
efeitos de direito, quer dizer, a criar direitos ou obrigações, para o próprio sujeito que
o adopta (acte autonormateurs) ou para terceiros (acte hétéronormateurs). E é
unilateral visto ser imputável ou emanar de um só sujeito de direito internacional.
Descontadas essas características comuns, deparamo-nos actualmente, com uma
enorme diversidade de actos unilaterais, quer quanto à respectiva origem, quer no
tocante ao seu regime formal, quer no que respeita à sua substância (J. COMBACAU/S.
SUR).
A proliferação das organizações internacionais a partir da segunda metade do
séc. XX, propiciou um espectacular aumento do número e da importância dos actos
jurídicos unilaterais, anteriormente circunscritos aos dimanados dos Estados.
Estes últimos, porque respaldados no princípio da soberania, não suscitam
especiais problemas a propósito do respectivo alcance e oponibilidade. Outro tanto
não se dirá, porém, acerca dos actos unilaterais das organizações internacionais, que,
não suportados naquela majestas estadual, colocam o problema de saber até que
ponto vinculam os Estados membros e – sobretudo – os não membros.
A diversa natureza (e intencionalidade) que exibem essas duas categorias de
actos unilaterais, recomenda, pois, uma sua análise separada.
2.1 - Requisitos
As mais das vezes, o problema da oponibilidade dos actos jurídicos unilaterais tem subjacente o
princípio da relatividade, quer dizer, em regra, estão somente em causa as relações entre alguns,
poucos, Estados (no limite, por ex., poderá tratar-se apenas da oponibilidade do acto X, adoptado por A,
face ao Estado B).
Mas há também casos em que se coloca o problema, mais geral, da validade internacional de
certos actos unilaterais. Assim, por diversas vezes, o Conselho de Segurança já considerou nulos (por
isso que inoponíveis) actos unilaterais de anexação territorial, em virtude da sua flagrante contradição
com normas de jus cogens.
outros Estados, admitindo-se como plausível que se dirijam à própria opinião pública
nacional, e poderem revestir-se de um formalismo mais ou menos solene ou
desataviado.
Considerou, v.g., o TPJI ter a Noruega ficado internacionalmente vinculada por
intermédio de uma simples declaração verbal, feita em 1919, pelo Ministro dos
Negócios Estrangeiros ao Embaixador dinamarquês. Idêntica conclusão haveria de
formular, mais tarde, o TIJ, com base em comportamentos tão díspares como, por ex.,
um comunicado do Presidente da República, uma conferência de imprensa conjunta de
um Chefe de Estado e de um Ministro da Defesa, um discurso de um Ministro dos
Negócios Estrangeiros na Assembleia Geral da ONU, uma nota da embaixada da França
na Nova Zelândia, etc. (exemplos de QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).
Bem ilustrativo é, a este respeito, o leading case dos Ensaios Nucleares, que
opôs a Austrália à França, havendo o TIJ admitido que as declarações (unilaterais) das
autoridades francesas (no caso, do Presidente da República e do Ministro dos Negócios
Estrangeiros), renunciando à realização futura de ensaios nucleares à superfície em
certas ilhas do Pacífico, operaram a vinculação internacional da França (cfr. MARIA
LUÍSA DUARTE).
2.3 - Tipologia
Como afirma, MARIA LUÍSA DUARTE, a Carta das Nações Unidas constitui, a este propósito, um
dos exemplos mais eloquentes. Assim, por exemplo, preceitua o artigo 13.º que a Assembleia Geral
169
adopta “recomendações”, ao passo que, mais à frente, proclama o artigo 18.º que aquele órgão plenário
toma “decisões”. No que toca ao Conselho de Segurança, se os artigos 25.º e 27.º aludem às suas
“decisões”, estabelece o artigo 36.ºa possibilidade de ele “recomendar”…
VI – A JURISPRUDÊNCIA E A DOUTRINA
Voltando ao artigo 38.º do ETIJ, observamos que, no parágrafo 1º, d), dessa
disposição se faz referência às decisões judiciais (jurisprudência) e aos ensinamentos
172
dos mais altamente qualificados publicistas das várias nações (doutrina) como meios
auxiliares para a determinação das regras de direito.
Reitera-se que nem a jurisprudência nem a doutrina são verdadeiras fontes –
em sentido formal –; daí que, para esta alínea d) se revele desapropriado o termo
«aplicará» (constante da parte inicial do preceito), que, na verdade, não é válido senão
para as fontes formais: essas sim o Tribunal poderá e deverá aplicar.
Com efeito, a jurisprudência e a doutrina não criam normas jurídicas; servem
apenas e tão só para provar a sua existência. Deste modo, o Tribunal Internacional de
Justiça aplica as regras convencionais, costumeiras, etc., socorrendo-se, em caso de
dúvida, da jurisprudência e da doutrina, em ordem a melhor descortinar tais regras
e/ou a precisar o seu conteúdo e a sua concreta intencionalidade, o que, como bem se
compreende, se reveste de especial importância no caso das normas consuetudinárias.
Adquire, assim, propósito qualificá-las como fontes auxiliares de direito internacional.
Importa ainda relevar que, dadas as características próprias da comunidade
internacional e, correlativamente, do direito que a esta se aplica, a jurisprudência e a
doutrina assumem neste ordenamento uma importância bem maior do que aquela
que possuem no direito interno.
A composição do Tribunal Internacional de Justiça, por exemplo, assenta, como vimos já, na
representação dos principais tipos de civilização e sistemas jurídicos do mundo (artigo 9.º do ETIJ), o
que, a coberto de dúvida, cauciona a existência das sobreditas garantias que sempre devem rodear a
tomada de qualquer decisão judicial.
O prestígio das decisões judiciais pode, todavia, ficar algo abalado sempre que
se permite aos juízes ou árbitros a publicitação das suas discordâncias nos acórdãos,
com o risco óbvio de ser transmitida para o exterior – rectius, para os destinatários da
173
A opinião individual é a de um juiz que, concordando com o sentido da decisão (se fosse apenas
ele a decidir, teria decidido da mesma forma), discorda, todavia, da respectiva fundamentação, isto é,
dos motivos ou razões em que se baseou o Tribunal para chegar a tal veredicto. Através deste
expediente tem o juiz em causa a possibilidade de justificar a sua discordância, explicando, ao mesmo
tempo, por que razão aceita ou adere ao sentido da decisão que foi proferida.
A opinião dissidente (que vulgarmente se designa voto de vencido) é aquela que é exarada por
um juiz minoritário, que discorda do próprio sentido da decisão (sendo ele a decidir, teria decidido num
outro sentido).
Refira-se, a concluir este ponto, que se vem assistindo, nas últimas décadas, a
uma multiplicação das decisões judiciais, com a consequência evidente de serem cada
vez em maior número os precedentes que, mais tarde, é possível invocar. Deste modo,
a uma jurisprudência internacional, dispersa, fragmentária e predominantemente
arbitral, foi, aos poucos, sucedendo um corpo homogéneo e sistematizado de
decisões, que, posteriormente, se revelam de inestimável préstimo para aqueles que
têm por missão aplicar o direito internacional – em especial, as normas costumeiras,
cuja existência ou conteúdo são, não raro, por demais controversos.
Numa outra acepção, que nada tem a ver com a questão em apreço, doutrina significa a
posição de actores internacionais relevantes (Chefes de Estado, Chefes de Governo, etc.) sobre
determinados problemas políticos. Neste sentido se fala, por exemplo, em doutrina Monroe, Stimson,
Brejnev ou Bush. Apesar de poderem, por vezes, ter certas implicações jurídicas, o certo é que se situam
no terreno estritamente político, aí encontrando a sua razão de ser.
VII – A EQUIDADE
CAPÍTULO III
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO
Bibliografia principal: Antonio Cassese, Modern Constitutions and International Law, RCADI,
1985-III; Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4ª edição, Coimbra Editora, 1988;
Canelas de Castro, Portugal’s World Outlook in the Constitution of 1976, BFD, Vol. LXXI, Coimbra, 1995;
C. Heinrich Triepel, Völkerrecht und Landesrecht, Berlim, 1899; Cristina Queirós, As relações entre o
Direito da União e o Direito Constitucional interno dos Estados, RFDUP, 2006; D. Freitas do Amaral/Nuno
Piçarra, O Tratado de Lisboa e o princípio do primado do Direito da União Europeia: uma “evolução na
continuidade”, RDP, 2009; Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público – Conceito e Fontes,
Vol. I, Lex, 1998; Francisco Ferreira de Almeida, Relações entre o direito internacional e o direito interno
português, De Legibus, nº 1, 2013; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007; Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros,
Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Almedina, 1993; Hans Kelsen, Das Problem der
Souveränität und die Theorie des Völkerrechts, 1920; H. Tourard, L’internationalisation des constitutions
nationales, Paris 2000; J. da Silva Cunha, Direito Internacional Público – Introdução e Fontes, 5ª edição,
Almedina, 1991; J. Silva Cunha/Maria Assunção do Vale Pereira, Manual de Direito Internacional Público,
2ª edição, Almedina, 2004; Jonatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestelegal, 2020; Jorge
Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª
edição, Almedina, 2015; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia,
2016; José Manuel Cardoso da Costa, «O Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias», in AB UNU AD OMNES. 75 Anos da Coimbra Editora – 1920-1995, Coimbra
Editora, 1998; Maria Luísa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global no Século XXI,
AAFDL, 2019; Rui Medeiros, Relações entre normas constantes de convenções internacionais e normas
legislativas na Constituição de 1976, O Direito, 1990; Rui Moura Ramos, «A convenção Europeia dos
Direitos do Homem. Sua Posição Face ao Ordenamento Jurídico Português», in Da Comunidade
Internacional e Do Seu Direito. Estudos de Direito Internacional Público e Relações Internacionais,
Coimbra Editora, 1996; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª edição, Coimbra Editora, 2014.
I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
II – SOLUÇÕES TEÓRICAS
1 – Teses dualistas
Alguns anos mais tarde, Triepel viria a reafirmar a sua posição num curso ministrado na
Academia de Direito Internacional da Haia, publicado em 1923 com o título Les rapports entre le Droit
178
International e le Droit Interne. Outros autores secundariam, posteriormente, as suas ideias, casos, v.g.,
de ANZILOTTI – com a sua obra Il Diritto Internazionale nei giudizi interni, de 1905 – PERASSI, STRUPP,
etc.. Após um compreensível aggiornamento, a teoria dualista como que reverdeceu e continua a
exercer uma clara influência na doutrina italiana.
2 – Teses monistas
.
180
A aplicabilidade directa na ordem interna dos Estados membros de algumas normas do Direito
da União Europeia representa um dos corolários do princípio do primado do direito europeu, princípio
este subjacente ao funcionamento de todo o sistema jurídico da União. Tal como vem sendo entendido,
quer pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quer pela doutrina, resulta o princípio
do primado de uma verdadeira imposição do próprio direito europeu e não, como se poderia pensar, de
183
uma concessão do direito interno dos Estados membros. Ora, bem é de ver que semelhante concepção
apenas poderá fundar-se numa teoria monista com primado do direito internacional.
1 – Técnicas de incorporação
Refira-se que, em bom rigor, pode a transformação ser explícita ou implícita. No primeiro caso,
exige-se, de facto, da parte do legislador ordinário, a adopção de um acto normativo expresso, que tem
a virtualidade de converter a norma internacional em norma interna, permitindo que na ordem estadual
possa ela produzir os seus efeitos. Já a transformação implícita pressupõe que previamente se assente
em que, do procedimento de conclusão da norma internacional, façam parte determinados actos –
diríamos, quase legislativos – dos órgão estaduais que têm por efeito conferir eficácia interna àquela
norma.
Por fim, o terceiro sistema admissível apresenta uma natureza híbrida ou mista,
assentando numa distinção entre as normas surgidas no espaço internacional, em
função do respectivo conteúdo. Assim, as normas internacionais com uma
determinada natureza ou respeitantes a certas matérias (v.g., as de direito
internacional geral ou comum) vigoram automaticamente no plano interno; as demais,
com uma natureza ou um conteúdo diversos (v.g., as de direito internacional
185
Cumpre, de seguida, examinar a questão de que nos temos vindo a ocupar à luz
das disposições pertinentes do ordenamento jurídico português.
Ora, logo no artigo 7.º da CRP se enunciam os princípios fundamentais pelos
quais se rege o Estado Português nas relações internacionais, bem como a filosofia que
a estas deve presidir. E isto, quer no plano universal, quer no plano regional, em
particular atendendo à qualidade de Estado membro da União Europeia.
É, todavia, o artigo 8.º que regula o modo de recepção do direito internacional
na ordem jurídica portuguesa, razão por que a este iremos dedicar as considerações
subsequentes.
Deve, desde já, salientar-se que assenta em alguns equívocos a redacção desta disposição
constitucional. Com efeito, não resulta claramente perceptível o critério fundamental que presidiu à
elaboração da norma em apreço. Terá sido o da eficácia subjectiva (geral ou particular) das normas de
direito internacional, o do tipo de fonte de direito internacional (costume, convenção ou acto unilateral)
que revela essas normas ou um outro, resultante da conjugação dos dois primeiros (CANELAS DE
CASTRO)?
Em nosso entender, o legislador constituinte terá pretendido referir-se a três distintas
categorias de direito internacional, ainda na formulação do preceito não haja logrado os seus intentos,
Que categorias são essas? O direito internacional geral ou comum (artigo 8.º, nº 1), o direito
internacional particular (artigo 8.º, nº 2) e o direito de organizações internacionais (em especial, ainda
que não apenas, o Direito da União Europeia (artigo 8.º nº 3). Mais tarde, acerca da recepção e da
posição hierárquica deste último, viria a ser acrescentado um nº 4, de cuja interpretação nos
ocuparemos mais à frente.
Simplesmente, quanto ao nº 1, parece ter sido desacautelada a possibilidade de em causa
estarem normas convencionais (universais ou para-universais) de direito internacional geral ou comum.
De facto, conquanto as mais das vezes assim suceda, não é obrigatório que esse direito provenha de
fonte consuetudinária.
Em sentido inverso, desconsiderou-se, no nº 2, a hipótese de o direito internacional particular
poder ter origem na fonte costumeira (costumes regionais e locais), havendo-se, erradamente, partido
do princípio de que é, necessariamente, convencional.
Esta dupla circunstância coloca evidentes problemas interpretativas que, de um modo ou de
outro, a doutrina tem procurado superar.
E também a respeito dos números 3 e 4 várias dificuldades se erigem, recomendando que,
numa futura revisão da CRP, seja repensado e devidamente reformulado o preceito em análise.
190
8.º, o qual, inter alia, abrange os actos de aprovação, de ratificação (no caso dos
tratados solenes) e de publicação no Diário da República. Exigências estas plenamente
cabidas para o direito internacional convencional particular, mas cujo cumprimento,
verdadeiramente, se dispensaria para os tratados que possuam a natureza de direito
internacional geral. Também estes, por conseguinte, fazendo, em bom rigor, parte
integrante do direito português, nos termos do estipulado pelo artigo 8.º, nº 1,
deveriam aí ter sido, expressamente, contemplados. Bastaria, para tanto, que, mais
avisadamente, nesse preceito o legislador constituinte tivesse aludido às normas e aos
princípios consuetudinários ou convencionais, de direito internacional geral ou comum.
recepção automática
AZEVEDO SOARES, por seu turno, respaldado num outro critério, que se supõe
ter sido o do legislador constituinte (o da eficácia geral ou particular das normas
internacionais), propende para entendimento distinto. Sublinha (segundo cremos, bem
– cfr., supra) que o artigo 8.º distingue três grandes categorias de direito internacional:
o direito internacional geral (nº 1), o direito internacional particular – a despeito de só
as convenções internacionais haverem sido tomadas em consideração – (nº 2) e o
direito das organizações internacionais (nº 3 e agora também nº 4). De sorte que
apenas pela via da interpretação extensiva se logrará resolver o problema da
incorporação dos costumes regionais e locais no nosso ordenamento jurídico. Em que
termos? Caberia distinguir os costumes regionais ou locais em cuja formação Portugal
tivesse participado (v.g., um costume da Europa Ocidental) daqueles a que o nosso
país fosse alheio (v.g., um costume da América Latina). Os primeiros, inserir-se-iam
através da recepção automática prevista no artigo 8.º, nº 1. De facto, uma
interpretação extensiva deste preceito permitiria considerá-los como gerais perante os
Estados por eles vinculados. Os segundos, pelo contrário, só mediante uma declaração
de aceitação ou um acto de reconhecimento expressos, constantes de um instrumento
internacional, poderiam vincular o Estado português. Quer dizer: somente através da
cláusula do artigo 8.º, nº 2, fariam a sua inserção na ordem jurídica portuguesa. Sim,
porque do que então se trataria seria da celebração de um acordo ou convenção
internacional com os Estados já vinculados por essas normas costumeiras.
Que posição tomar perante esta divisão de opiniões?
É nossa convicção que, destinando-se o artigo 8.º, nº 2, a regular a
incorporação do direito internacional particular na ordem jurídica portuguesa, nele se
deveria ter feito referência aos costumes regionais e locais (bilaterais); e não no nº 1,
que – já o frisámos – cura do direito internacional geral ou comum. A nossa
Constituição é, todavia, omissa a esse respeito, o que parece conduzir a um
perturbante impasse. Sucede, porém, como acertadamente salientam GONÇALVES
PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, que, mesmo não mencionado o direito
consuetudinário particular em qualquer dos números do artigo 8.º, seria absurdo
concluir que esse direito não vigora em Portugal, muito embora possa vincular
internacionalmente o Estado português…
195
A respeito do assunto vertente, não colhem, em particular, o nosso aplauso as perspectivas dos
professores SILVA CUNHA e MOURA RAMOS.
A primeira, em virtude de assentar num conceito de soberania que, segundo cremos, não
quadra com o entendimento que hoje prepondera, quer no que toca ao modo com deve processar-se a
convivência entre Estados, numa comunidade que se pretende cada vez mais integrada, quer,
reflexamente, no que se refere à forma de relacionamento entre os ordenamentos jurídicos
internacional e interno. Isto leva o autor – pensamos – a fazer uma interpretação, a um tempo,
demasiado formalista e restritiva das disposições constitucionais relevantes.
A posição de MOURA RAMOS (não obstante a similitude do resultado prático a que conduz),
pelo facto – já assinalado – de ter subjacente uma distinção entre tipos de fontes formais de direito
196
Será, antes de mais, conveniente recordar que a aplicabilidade directa de uma norma de direito
internacional se reconduz a uma sua relevância na ordem interna, não intermediada pelos órgãos
estaduais, quer dizer, tal norma aplicar-se-á de forma automática ao Estado e aos indivíduos (que logo
se poderão prevalecer dos direitos nela enunciados) sem que seja necessário adoptar qualquer acto de
adaptação ou transposição para o ordenamento interno (v.g., a aprovação, a ratificação ou a
publicação). Advirta-se, porém, que aplicabilidade directa poderá não significar aplicabilidade imediata.
Será o caso de regulamentos da União Europeia que não contenham normas self-executing, e que,
portanto, reclamem a prática de actos internos de execução (cfr. artigo 291.º do TFUE)
Diferente é o conceito de efeito directo, que significa a susceptibilidade de uma norma – desde
que clara, precisa e incondicional e esgotado que esteja o prazo de transposição para o direito interno –
ser invocada pelos particulares junto dos órgãos jurisdicionais nacionais, quer contra o Estado (efeito
197
directo vertical), quer contra outros particulares (efeito directo horizontal), mesmo não beneficiando do
sobredito regime de aplicabilidade directa.
A propósito das directivas, convirá esclarecer que, diferentemente dos regulamentos – os quais
possuem carácter geral e abstracto e são directamente aplicáveis –, se trata de actos de direito europeu
derivado que, nos termos do disposto no artigo 288.º do TFUE, vinculam os destinatários (Estados-
membros) quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais liberdade
quanto à forma e quanto aos meios. A directiva não é, portanto, directamente aplicável (embora, como
se disse, possa ter efeito directo), só estando os Estados, empresas e particulares autorizados a dela se
prevalecerem depois de transposta (não transformada…) para o plano interno. De acordo com o nº 8 do
artigo 112.º da CRP, a transposição é efectuada, conforme os casos, através de lei, decreto-lei ou
decreto legislativo regional, sendo que essa transposição deverá ocorrer no prazo fixado aquando da
adopção da directiva (em regra, dois anos). Caso um Estado membro não proceda à transposição de
uma directiva, expor-se-á a que a Comissão desencadeie um processo por infracção ou intente uma
acção junto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Já as decisões apresentam um carácter concreto
ou específico. Ex vi do mesmo artigo 288.º do TFUE, são (tal como os regulamentos) obrigatórias em
todos os seus elementos e, desde a adopção do Tratado de Lisboa, podem ou não designar destinatários
específicos (v.g., um ou vários Estados membros, uma ou várias empresas ou particulares). Se o fizerem,
apenas para estes serão obrigatórias.
O nº 4 do artigo 8.º, por seu turno, viria a ser introduzido na nossa Lei
fundamental aquando da sexta revisão constitucional, ocorrida em 2004 e, não
deixando de reiterar a recepção automática do direito da União Europeia – desta feita,
apenas deste (ao estipular que ele se aplicará internamente nos termos definidos pelo
direito da União) –, remete, sobretudo, para a posição que, à luz da teoria ou princípio
do primado, esse direito ocupa relativamente ao direito interno, incluindo o próprio
direito constitucional. Razão bastante para que analisemos esse preceito no âmbito do
ponto seguinte, dedicado ao problema da hierarquia entre normas internacionais e
internas.
Sublinhe-se, ainda assim, desde já, que se reporta o artigo 8,º, nº 4, quer ao direito europeu
originário, isto é, aquele que consta dos tratados que instituíram as Comunidades Europeias e a União
Europeia, bem como daqueles outros que, em momentos subsequentes, os alteraram, quer o direito
europeu derivado, quer dizer, aquele que emana das instituições (órgãos) da União Europeia e que deve
ter no direito originário o seu padrão material de validade.
de direito internacional geral ou comum, este deixaria, ipso facto, de fazer parte
integrante do direito português, convertendo-se, por isso, em letra morta o artigo 8.º,
nº 1, da CRP, e, concomitantemente, aparecendo esvaziada de sentido a própria noção
de direito internacional geral ou comum – por definição, um direito dotado de
relevância erga omnes. Tratar-se-ia, por outras palavras, de uma contradictio in
adjectu.
E no que se refere à posição deste direito perante a Constituição? Entendemos
que idêntica conclusão haverá de formular-se. Na verdade, somos de parecer que as
razões apontadas para sustentar a supremacia do direito internacional geral sobre a
legislação ordinária valem, mutatis mutandis, para atestar a respectiva superioridade
em relação à própria Lei Fundamental.
É bom recordar que, no direito internacional geral ou comum, estão em causa
regras básicas da convivência interestadual; princípios que tutelam valores aos quais,
consensualmente (ou quase…) na comunidade internacional, se entendeu atribuir
especial relevo, encontrando-se, em virtude disso, solidamente radicados na
consciência jurídica geral. Como permitir, pois, que um Estado possa fixar normativos
constitucionais que derroguem aquele direito, justamente, comum a todos? Demais a
mais, apresentando alguns desses princípios a natureza de jus cogens – direito
imperativo limitador da soberania dos Estados e, portanto, do poder constituinte. O
que significa, afinal de contas, assumir-se o jus cogens como «pressuposto de
legitimidade da própria Constituição» (JÓNATAS MACHADO).
Mas, para além da razão de carácter lógico-dedutivo acabada de expor, uma
outra poderá invocar-se, com base no artigo 16.ºda CRP, em cujo número 2 se
preceitua que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem». Quer isto significar que, em matéria de direitos fundamentais, vigora um
princípio de interpretação em conformidade com a Declaração Universal (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA), o que, a nosso ver – assumindo esta a natureza de
direito internacional geral ou comum –, aponta, implicitamente, para a superioridade
hierárquica deste direito em relação à CRP. No mesmo sentido se pronunciam
também, v.g., JORGE MIRANDA (ainda que parcialmente), GONÇALVES
PEREIRE/FAUSTO DE QUADROS, JÓNATAS MACHADO e MARIA LUÍSA DUARTE.
202
Salienta esta última autora que a interpretação e a integração dos preceitos constitucionais
relativos aos direitos fundamentais se encontram sujeitas ao critério da conformidade com a DUDH,
devendo o regime nela previsto, se mais favorável, prevalecer sobre o consagrado na Constituição.
Tratar-se-á, por conseguinte, de acolher o critério do nível mais elevado de protecção, vertido no artigo
53.º da Carta dos Direito Fundamentais da União Europeia, à luz de um novo paradigma de
internormatividade comunicante.
Não obstante o que ficou dito, entendemos que a discussão em torno desta
problemática, embora porventura interessante de um ponto de vista meramente
teórico, é, em larga medida, desprovida de sentido útil ou de alcance prático. E
porquê? Pela razão simples de não ser crível que um Estado promulgue leis ou
consagre normas na sua constituição que contrariem os princípios de direito
internacional geral ou comum. Daí que, descontadas algumas situações excepcionais,
não sejam, verdadeiramente, nesta sede, configuráveis situações de colisão ou conflito
entre normas internas e internacionais.
MOTA DE CAMPOS E AZEVEDO SOARES parecem também inclinar-se para idêntico modo de
compreensão das coisas. Este último, à guisa de hipótese académica, interroga-se: «Se a nossa
Constituição, em vez do actual art. 7.º, consagrasse um artigo estipulando que Portugal se rege nas
relações internacionais pelos princípios da desigualdade entre Estados, da solução dos conflitos pela
força e da ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, qual o sentido ou valor a atribuir a tal
norma?».
Por certo nenhum Estado adoptará normas desse teor, ainda que a sua praxis política possa,
quotidianamente, desmentir as proclamações do seu direito.
Uma ressalva, não obstante, se impõe: tratando-se, como pode tratar-se, de direito
internacional convencional geral ou comum (vimos já, supra, que o direito internacional geral não
promana, obrigatoriamente de fonte costumeira), este situar-se-á num plano superior à própria
Constituição, não fazendo, portanto, sentido submetê-lo ao supracitado regime de fiscalização. Em
nosso entender, indevidamente, a Lei Fundamental portuguesa não considerou esta possibilidade.
Mesmo devendo reconhecer-se que uma eventual fiscalização da constitucionalidade de normas de
direito internacional geral contidas numa convenção internacional é hipótese demasiado remota,
atentas as específicas características desse direito…
Vale por dizer que o princípio do primado deve ser absoluto e incondicional
(GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Assim, na verdade, tem sido ele,
repetidamente, encarado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União,
mormente a partir do Acórdão proferido em 1978, no emblemático caso Simmenthal,
havendo-se consolidado o entendimento de que, por força da sua específica natureza,
o direito da União não pode ver-se afastado por normas internas, quaisquer que elas
sejam. Daqui decorre algo já oportunamente relevado: traduz-se o primado numa
imposição do direito europeu e não propriamente numa concessão do direito interno
dos Estados membros.
Se no malogrado projecto de uma Constituição para a Europa se consagrava,
expressamente, o princípio do primado (artigo 1-6.º), o mesmo não acontece no
Tratado de Lisboa, com o que serão os contributos da jurisprudência e da doutrina a
permitirem precisar o respectivo alcance.
Por outro lado, olhando ao disposto na Constituição portuguesa, se o citado
número 6 do artigo 7.º se reconduz, nas palavras de MARIA LUÍSA DUARTE, «a uma
210
CAPÍTULO IV
SUJEITOS DO DIREITO INTERNACIONAL
Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio
Casesse, Le droit international dans un monde divisé, Berger-Levrault, Paris, 1986; Azevedo Soares,
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Benedita Menezes Queirós, A Proteção Internacional dos Refugiados, in Regimes Jurídicos
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2012; A humanização do direito internacional, BFD, Vol. XCIII, Tomo II, 2017; Francisco Resek, Direito
Internacional Público: Curso Elementar, 17 ed., São Paulo, Saraiva, 2018; Gonçalves Pereira/Fausto de
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2º ed., Tübingen, 2012; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional Público, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4 edição, Fundação Calouste
Gulbenkian,1965; Jónatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestegal, 2020; Jorge Bacelar
Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª edição,
Almedina, 2020; Direito internacional penal – Uma perspectiva dogmático-crítica, Almedina, Coimbra.
2008; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia, 2016; Quoc
Dinh/Daillier/Pellet, Droit International Public, LGDJ; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition,
Cambridge University Press, 2017; Maria Isabel Tavares, Direito Internacional Humanitário, in Regimes
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Internacional dos Estados por Factos Internacionalmente Ilícitos, in Regimes Jurídicos Internacionais, Vol.
I, Universidade Católica Editora – Porto, 2020; Rosalyn Higgins, Time and the Law: International
Perspectives on na old problema, ICLQ, 2000, vol. 46; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª
ediºão, Coimbra Editora, 2014; Verdross/Simma, Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker
& Humbolt, 2010.
I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
Ora, parece não oferecer dúvidas que apenas podem ser considerados como tal
aquelas entidades que sejam destinatárias directas das normas internacionais e, por
isso, titulares de uma situação jurídica subjectiva que brota ou deriva dessas normas
(H. MOSLER).
Também no já citado parecer consultivo do TIJ, de 1949, sobre a reparação dos prejuízos
causados às Nações Unidas, esta instância judicial, ao admitir que a ONU tinha capacidade para ser
titular de direitos e obrigações internacionais, se haveria de socorrer de igual critério para definir a
personalidade jurídica internacional, critério esse que vale, de resto, de modo similar, para a aferição
desse atributo no direito interno.
CARRILLO SALCEDO acrescenta ainda ser próprio dos sujeitos de direito internacional a
legitimidade de reagirem perante o incumprimento das normas internacionais ou, para os autores de tal
inadimplemento, o facto de incorrerem em responsabilidade internacional. Destaca, por seu turno,
JÓNATAS MACHADO, como expressões da personalidade internacional, o direito de estabelecer relações
diplomáticas, o jus tractum e a legitimidade processual. Haverá, no entanto, de convir-se que mais não
são estes, porém, do que importantes corolários da titularidade da aludida situação jurídica subjectiva
que directamente ocasionam as normas internacionais.
II – O ESTADO
1 – Noção
2 – Elementos constitutivos
2.1 – A população
Muito embora o Estado seja muitas vezes encarado como uma entidade
abstracta, não podemos esquecer que a sua existência jurídica repousa em elementos
objectivos, tal como, aliás, resulta da Convenção de Montevideu sobre os Direitos e
Deveres dos Estados, de 1933.
Ora, antes de tudo, consubstancia-se ele numa colectividade de pessoas, não
podendo existir sem população (elemento humano). Esta, nos cerca de duzentos
Estados que compõem o mundo actual, é, em termos numéricos, muto desigual,
oscilando entre algumas dezenas de milhar (nos chamados «micro-Estados» ou
«Estados liliputianos») e as várias centenas de milhões de indivíduos (v.g., na Índia e
na China) (JEAN TOUSCOZ).
Mas o que deve, em rigor, entender-se por população de um Estado?
Em sentido amplo, refere-se o conceito a todos aqueles que vivem e trabalham
no território de certo Estado, isto é, numa palavra, aos seus habitantes (OPPENHEIM).
Mas, se bem virmos, habitantes são também os estrangeiros aí domiciliados. Por outro
lado, os cidadãos nacionais desse Estado radicados no estrangeiro, não cabem na
noção de população ora referida, apesar de, juridicamente, permanecerem ligados ao
país de origem (PIERRE-MARIE-DUPUY).
Numa outra acepção, que se nos afigura preferível, população significa o
conjunto de indivíduos ligados, de forma estável e efectiva, a um Estado através do
217
vínculo jurídico da nacionalidade – os seus nacionais. Vínculo esse que funda uma
competência pessoal exclusiva do Estado, exercitável independentemente do local
onde se encontrem tais indivíduos.
portuguesa; a quem seja estrangeiro e resida em Portugal há, pelo menos, 5 anos, com
filhos nascidos em Portugal; a quem, sob certas condições, seja menor, filho de
estrangeiros, e tenha nascido em Portugal; a quem, também mediante o cumprimento
de certos requisitos, tenha nascido nas ex-colónias, etc.. No que diz respeito à
naturalização, de destacar a previsão de um regime especial para judeus sefarditas,
que poderão requerer a nacionalidade portuguesa com base na existência de
requisitos objectivos que atestem a sua ligação a Portugal (apelidos, idioma familiar,
descendência directa ou colateral, etc.).
Associadas, por vezes, ao conceito de população sem com ele, no entanto, se
confundirem, surgem as noções de povo ou nação. Do que se trata?
Enquanto a população é um conceito jurídico e, bem assim, uma realidade
estatística, o povo ou a nação traduzem antes, e por sobre tudo, uma realidade
sociológica e política, assente numa determinada homogeneidade dos seus membros
(QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).
Num parecer consultivo de Outubro de 1975, acerca do Sahara Ocidental, também o TIJ
claramente estabeleceu a distinção entre população e povo com base em igual pressuposto.
Nada obsta, com efeito, a que um Estado englobe várias nações ou, inversamente, a que uma
nação se disperse por vários Estados. Exemplo da primeira situação constituem muitos dos grandes
Estados da comunidade internacional (v.g., a China e a Rússia), bem como aqueles que se situam em
219
regiões onde coexistem várias etnias (caso de boa parte dos Estados africanos, mas também, por ex., da
Polónia, da ex-Checoslováquia, da ex-Jugoslávia, etc.); ilustração da segunda representam, v.g., a
diáspora dos judeus, que deu origem à formação de comunidades judaicas fora da Palestina, a situação
dos curdos, dos albaneses, etc..
Mas, evidentemente, os Estados podem também ser Estados nacionais, em que a realidade
jurídica exprime um fenómeno sociológico, havendo, por isso, coincidência entre Estado e nação (Estado
nacional) – é o caso paradigmático de Portugal.
Das duas vertentes da autodeterminação dos povos (a interna e a externa), só a primeira possui
carácter universal, encontrando-se hoje a dimensão externa do direito de livre disposição algo esvaziada
de sentido, tanto mais que a secessão, salvo porventura no caso de graves violações do jus cogens, é
encarada como uma malsinada causa de desmembramento territorial. O assunto será desenvolvido
mais à frente no local apropriado.
2.2 – O território
Do mesmo modo que se disse não haver Estado sem população, será mister
reconhecer também que um mínimo de base territorial é indispensável à existência (e
subsistência) dos sujeitos primários da comunidade internacional (elemento
territorial). Sim, dissemos bem, um mínimo de base territorial e não um território de
grandes dimensões (ou com determinada extensão), que, a ser exigido,
220
Problema discutido ao longo dos tempos pela doutrina é o da natureza jurídica do território. A
este propósito, quatro teorias principais, de que nos dão conta QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, têm sido
propostas pelos autores.
221
De acordo com a primeira delas – a teoria do território sujeito –, tributária de uma concepção
organicista do Estado, o território, enquanto componente essencial do Estado-pessoa, deve assimilar-se
a um titular de direitos e obrigações. Esta valorização do território, é, porém, inaceitável, visto que, para
além de assentar numa autêntica ficção jurídica, está em manifesta contradição com o direito positivo.
Uma outra directriz – a do território-objecto –, que remonta ao tempo das monarquias
absolutas, em que, como se sabe, se privilegiava uma concepção patrimonial do Estado
(patrimonialismo), assenta numa clara dissociação entre o Estado e o seu território, constituindo, nessa
medida, um progresso doutrinal relativamente à anterior. O laço de existente entre Estado e território é,
todavia, equiparado a um direito de propriedade, isto é, o Estado exerceria sobre o território um
verdadeiro direito real, equivalente àquele que um proprietário exerce sobre o seu terreno, razão por
que também esta doutrina se nos afigura distante da realidade. De facto, mais do que sobre coisas
corpóreas, o poder do Estado é exercido sobre homens e actividades. Não obstante isso, a corrente
exposta tem contado, contemporaneamente, com alguns partidários de renome (casos, por ex., de
LAUTERPACHT e FAUCHILLE).
São, contudo, as duas últimas teorias aquelas que melhor parecem traduzir, do ponto de vista
jurídico, a estreita relação entre Estado e território. Referimo-nos à teoria do território-limite e à do
território título de competência. Os defensores da primeira (v.g., DUGUIT), encaram o território como o
limite físico do poder estadual, ao passo que os partidários da segunda (v.g., BASDEVANT, SCELLE, etc.) o
reconduzem a um título jurídico essencial da competência do Estado. Assim se demonstra que esta
concepção do território título de competência não contradiz, antes pressupõe, a do território-limite,
uma vez que se é verdade que o território confere, efectivamente, ao Estado um título indispensável
para a sua actuação, não é menos certo que, em simultâneo, lhe limita o poder, confinando-o (salvo em
casos excepcionais) a determinado espaço geográfico.
Uma instalação industrial, uma fábrica, uma central nuclear, uma barragem, etc., situadas junto
a uma das margens ou num rio internacional sucessivo, poderão, por motivos diversos, causar graves
danos ambientais em Estados vizinhos. A percepção da existência de recursos naturais compartilhados
impõe, à luz do princípio da cooperação, o estabelecimento de regras destinadas a permitir uma sua
utilização coordenada e a minorar, o mais possível, os riscos de efeitos adversos (v.g. na navegação, na
pesca, na agricultura, na salubridade da água, etc.), nos Estados situados a jusante.
O domínio lacustre respeita aos lagos, que são superfícies de água doce – assim
se contradistinguindo dos mares internos – totalmente circundadas por terra. São-lhes,
em princípio, aplicadas as normas que vigoram para esses mares, excepto se o lago em
questão comunicar com o mar através de um curso de água que atravesse diversos
Estados, caso em que, ao invés, será aplicável a regulamentação internacional do
domínio fluvial (AZEVEDO SOARES).
Por fim, do território estadual faz ainda parte o domínio aéreo. Estende-se, na
verdade, a soberania de cada Estado ao espaço aéreo suprajacente aos domínios
terrestre, fluvial, marítimo (águas interiores e mar territorial) e lacustre. Como
sublinha M. SHAW, abundaram, até à Primeira Guerra Mundial, as teorias respeitantes
ao regime do espaço aéreo: desde a tese da total liberdade desse espaço, passando
pela directriz, fundada numa analogia com o domínio marítimo, da existência de uma
faixa de “ar territorial” pertencente ao Estado, seguida de uma zona livre mais acima,
até à concepção de uma soberania sobre todo o espaço suprajacente ao território
estadual. A partir, no entanto, daquele primeiro conflito à escala universal, dada a
consciencialização das implicações ao nível da segurança, resultantes da utilização do
meio aéreo, o panorama viria a alterar-se.
Assim, logrou curso, desde então, a ideia da soberania completa e exclusiva do
Estado sobre o espaço aéreo situado acima do seu território; orientação essa que viria
a ser acolhida logo na Convenção de Paris, de 1919, para a Regulamentação da
Navegação Aérea e, mais tarde, na Convenção de Chicago, de 1944, sobre Aviação Civil
Internacional.
Sendo clara na doutrina a distinção, quanto à sua natureza e correspondentes
estatutos, entre o espaço aéreo e o espaço extra-atmosférico (este último um espaço
internacional – cfr., infra), revela-se, porém, assaz problemático acordar num critério
físico de delimitação. Daí que na prática internacional se privilegie um critério
funcional (também não isento de reparos…) que atende menos aos espaços em si
mesmos considerados do que às actividades neles levadas a cabo: serão submetidas ao
224
REUTER e SERENI), sustentando que, ao contrário do que se verifica no direito interno, não existe
qualquer norma a consagrá-la. Outros, como C. ROUSSEAU, defendem carecer de alcance prático o
debate em torno da questão. Como quer que seja, a prescrição aquisitiva permitiria a um Estado
adquirir um território estrangeiro, no qual, de forma contínua, pacífica, pública e de boa-fé, exercesse a
sua autoridade durante um longo período de tempo, presumindo-se a renúncia do anterior titular aos
respectivos direitos de soberania. Destarte, a posse adquirida de boa-fé converter-se-ia, perante a
passividade do primitivo “proprietário”, num verdadeiro direito de soberania. Certo é que o instituto foi
já algumas vezes aplicado pela jurisprudência internacional: por ex., nos casos das Fronteiras do Canadá,
da Gronelândia Oriental, das Fronteiras da Guiana Britânica etc. (J. L. BRIERLY).
2.3 – O governo
Declaração sobre os Direitos e Deveres dos Estados, elaborado em 1949 pela Comissão
de Direito Internacional, a independência reconduz-se à capacidade do Estado para
assegurar o seu próprio bem-estar e desenvolvimento, sem interferências externas,
nomeadamente da parte de outros Estados.
Deve ainda acrescentar-se que os três elementos constitutivos do Estado –
população, território e governos – acima mencionados, seriam noções perfeitamente
vazias e inertes na ausência deste outro conceito jurídico de independência (PIERRE-
MERIE MARTIN). Daí que, em bom rigor, mais do que naqueles, seja nesta que reside a
especificidade do Estado (M. SHAW).
O princípio da soberania (ou independência), fazendo parte do direito
internacional positivo, funda as relações interestaduais, havendo sido acolhido no
artigo 2.º, § 1, da CNU, o qual estipula que a Organização se baseia no princípio da
igualdade soberana de todos os seus membros.
Ora, da soberania decorrem certos corolários, dos quais convirá traçar um
breve retrato geral.
O primeiro deles, assinalado, entre outros, por QUOC DINH/DAILLIER/PELLET,
radica na ausência de subordinação orgânica e jurídica do Estado face a outros sujeitos
de direito internacional. Se, até determinada altura, era tão-somente perante outros
Estados que esta decorrência da soberania deveria ser compreendida, faz-se hoje
igualmente necessário afirmá-la no contexto das relações entre Estados e organizações
internacionais, sobretudo as de carácter ou pendor supranacional, que amiúde
reivindicam uma posição de supremacia orgânica relativamente aos seus membros e
até em face de terceiros.
Traduz-se o segundo no direito de jurisdição. Trata-se de um poder estadual
que se desdobra em várias dimensões: a da jurisdição prescritiva ou normativa
(regulação ou disciplina jurídica de certa matéria), o da jurisdição compulsória ou
administrativa (cumprimento compulsório das normas vigentes através de meios
administrativos e policiais) e o da jurisdição adjudicativa ou jurisdicional (sujeição a
julgamento de sujeitos responsáveis pela prática de comportamentos infringentes) (M.
AKEHURST e, na doutrina portuguesa, JÓNATAS MACHADO). Ao direito de jurisdição se
liga uma presunção (relativa) de regularidade dos actos estaduais, presunção esta que,
228
todavia, para aqueles que incidam no domínio reservado dos Estados, quase se
converte numa presunção jure et de jure.
A definição exacta do que seja o domínio reservado dos Estados não se encontra em nenhum
instrumento internacional, Partindo, todavia, de uma noção avançada pelo Instituto de Direito
Internacional, pode dizer-se que a identificação de um tal domínio assenta numa divisão dicotómica das
competências estaduais. De entre elas, umas há que apresentam um carácter vinculado, porquanto o
respectivo exercício está condicionado por directrizes que emanam do direito internacional, ao passo
que outras constituem antes expressão de um poder discricionário, dizendo, por isso, respeito a
actividades estaduais indissociavelmente ligadas à dimensão interna da soberania. Ora, em relação a
estas últimas o direito internacional permanece arredio, razão por que se aproposita o emprego da
expressão domínio reservado. Mesmo sabendo-se constituir tarefa fadada ao malogro a delimitação
material precisa desse reduto inexpugnável da “privacidade” dos Estados.
Estado com pessoa singular ou colectiva estrangeira (artigo 10.º); dos contratos de
trabalho entre um Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que
deveria realizar-se, no todo ou em parte, no território de um Estado estrangeiro (artigo
11.º); dos processos por danos causados a pessoas e bens, isto é, relativos
indemnizações pecuniárias em caso de morte ou de ofensa à integridade física de uma
pessoa, ou em caso de dano ou perda de bens materiais causados por um acto ou
omissão ocorridos, no todo ou em parte, no território de outro Estado (artigo 12.º);
dos processos para determinação da propriedade, posse e utilização de bens móveis ou
imóveis (artigo 13.º); dos processos relacionados com direitos de propriedade
intelectual e industrial (artigo 14.º); dos processos relativos à participação de um
Estado numa sociedade ou outra pessoa colectiva (artigo 15.º); e, ainda, dos processos
judiciais atinentes a navios de que um Estado é proprietário ou explora, se, no
momento do facto que deu lugar à acção, o navio estava a ser utilizado para outra
finalidade que não a de serviço público sem fins comerciais (artigo 16.º).
De notar, porém, que, ex vi do seu artigo 3.º, esta Convenção das Nações
Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens,
designadamente o disposto nos artigos supracitados, não afecta os privilégios e
imunidades diplomáticos e consulares outorgados pelo direito internacional.
Problema que hoje se coloca – e cada vez com maior acuidade, dada a
tendência para a privatização da Administração Pública em domínios como a saúde, a
educação, a assistência social, a segurança, etc. – é o de saber se podem as entidades
privadas dotadas de prerrogativas de direito público (poderes de autoridade)
beneficiar, excepcionalmente, de uma imunidade derivada nos casos de prática de
actos jure imperii, que seriam abrangidos pela imunidade de jurisdição se tivessem
sido praticados por um Estado (HING WEN e, na sua esteira, JÓNATAS MACHADO).
Ora, tudo estará em saber se, efectivamente, está em causa o exercício de poderes
típicos de soberania ou, bem ao invés, actividades puramente comerciais.
3 – Competências do Estado
como forma de fazer valer os seus direitos e, eventualmente, de ser ressarcido pelos
danos que lhe hajam sido caussados.
4.1.1 – Pressupostos
Mas também da actuação dos órgãos legislativos (ou da ausência dela) poderá
resultar a responsabilidade internacional do Estado. Assim, por exemplo, a adopção de
uma lei que contrarie ou colida com obrigações internacionais previamente assumidas
não deixará de produzir esse resultado. O mesmo sucederá no caso de omissão: v.g., a
não promulgação de uma lei indispensável ao adequado cumprimento de certos
compromissos internacionais em matéria de justiça e segurança (A. VERDROSS), de
direitos humanos, de ensino, de saúde, de ambiente, etc.
Quanto ao aparelho jurisdicional, a denegação de justiça, ou seja, a violação da
obrigação internacional (costumeira) que injunge os Estados a conferirem uma
adequada protecção judiciária aos estrangeiros que se encontrem sob a sua jurisdição
(v.g., no que toca ao acesso aos tribunais, às garantias processuais, em geral, e aos
meios de defesa do arguido, em particular, etc.), constitui porventura, neste domínio,
o principal acto ilícito internacional.
Dos artigos 5.º a 11.º do PARI constam, no entanto, outras situações, mais
atípicas, em que se verifica o nexo de imputação entre determinado comportamento
violador do direito internacional e um Estado. É, em primeiro lugar, o caso de uma
conduta (antijurídica) praticada por pessoas ou entidades às quais hajam, legalmente,
sido atribuídas prerrogativas de direito público (poderes de autoridade), desde que,
em concreto, tenham actuado no respectivo exercício (artigo 5.º). Hipótese esta hoje
particularmente plausível, atenta a já referida tendência para a privatização ou
“outsourcing” de actividades que implicam o exercício de poderes públicos (MARIA
ISABEL TAVARES). Pense-se, v.g. na contratação de empresas privadas de segurança
para actuarem em conflitos armados.
Nos termos do disposto no artigo 6.º do PARI deve, igualmente, ser
considerada como acto de um Estado a conduta de um órgão posto à disposição desse
Estado por outro, desde que adoptada no exercício de poderes de autoridade pública.
Será, por exemplo, o caso de as forças armadas de um Estado ou de um corpo de
bombeiros serem postos à disposição de outro, assolado com uma catástrofe
humanitária ou confrontado com um desastre natural, ficando sob a autoridade do
Estado auxiliado.
A imputação de um comportamento ao Estado poderá, em terceiro lugar, advir
das situações de excesso de poder, de actuação contrária a instruções ou ultra vires
237
(artigo 7.º do PARI). Se, por conseguinte, na actuação de um Estado, nos termos dos já
referidos artigos 4,º, 5.º e 6.º, se detectar um excesso de poder, a desobediência a
instruções de um superior hierárquico ou, pura e simplesmente, a conduta de um
órgão que exorbitou do quadro de competências que legalmente lhe foram cometidas
(actos ultra vires), nem por isso logrará esse Estado eximir-se à sua responsabilidade
internacional (v.g., a prática de tortura por parte das autoridades policiais,
relativamente a um cidadão estrangeiro que se encontre detido, com o propósito de
obter uma confissão; ou um soldado que, desobedecendo às ordens do seu superior
hierárquico, bombardeia deliberadamente alvos civis no decurso de um conflito
armado internacional).
Em quarto lugar, contempla o PARI, no seu artigo 8.º, aquelas situações em que
alguém (uma pessoa ou grupo de pessoas), que não é órgão estadual ou entidade
autorizada a exercer prerrogativas de poder público, actuou, de facto, sob o comando
(sob as instruções) ou sob o controlo de um Estado. Assim sucedendo, tal actuação
será, outrossim, imputável a este último. Tudo está, porém, em saber qual o
significado a atribuir às expressões “sob a direcção” (ou sob as suas instruções”) ou
“sob o controlo” constantes do preceito citado. A este respeito transparece da
jurisprudência internacional uma oscilante incerteza. Se, por exemplo, no caso das
Actividades Militares e Paramilitares na Nicarágua e Contra Esta, avaliando a eventual
responsabilidade dos EUA na actuação dos “Contra”, o TIJ parece ter-se socorrido de
um critério apertado, talvez demasiado rígido, ao exigir prova de um controlo efectivo
(à guisa de um autêntico poder de direcção), materializado na emissão de instruções
específicas, já o TPIJ, no caso Tadic, apreciando se os crimes cometidos por Tadic
haviam sido cometidos num conflito armado internacional, se bastou com o
parâmetro, bem mais flexível, do controlo global, que, diversamente, dispensa a prova
dessas instruções. Esta segunda interpretação parece melhor afeiçoar-se ao teor literal
do artigo 8.º do PARI, do qual, aparentemente, transparecem dois níveis alternativos
de controlo (sob as instruções ou sob a direcção, por um lado, ou sob controlo, por
outro). De resto, a não se entender assim, tornar-se-ia, quiçá, muto problemática a
imputação de um comportamento ilícito ao Estado, nas hipóteses previstas na
disposição em apreço.
Ocupa-se seguidamente o PARI (artigo 9.º) de outro tipo de actos susceptíevis
238
de serem imputados ao Estado: aqueles que hajam sido adoptados por particulares na
ausência ou carência de autoridades oficiais. Trata-se de uma situação excepcional e
transitória, em que uma pessoa ou um grupo de pessoas, que não possuem qualquer
ligação funcional com o Estado, assumem e exercem poderes de autoridade pública na
ausência das autoridades oficiais (v.g, na sequência de uma catástrofe natural, de uma
convulsão política interna, de um conflito armado, de uma ocupação estrangeira, etc.).
Em sexto lugar, prevê o artigo 10.º do PARI a possibilidade de serem
considerados como actos do Estado certos comportamentos levados a cabo por grupos
de insurrectos (ou insurgentes). Tal ocorrerá, designadamente, se no território em que
tais grupos desenvolvem a sua luta se verificar uma substituição de governos:
ascendendo o movimento de insurrectos ao poder, as suas condutas serão,
naturalmente, imputadas ao Estado em questão (nº 1 do artigo 10.º). Mas o mesmo
sucederá se o grupo em causa lograr cindir o primitivo território estadual e, portanto,
constituir um novo Estado, hipótese em que os respectivos comportamentos serão
considerados como actos desse novo Estado (nº 2 do artigo 10.º).
Culminam estes casos de imputação indirecta a que temos estado a aludir com
o disposto no artigo 11.º do PARI. Aí, com efeito, se configura a situação em que um
Estado reconhece, adoptando-o como seu, o comportamento (particular) de outrem.
Quando praticado, tal comportamento é, portanto, meramente privado, logo
insusceptível de ser atribuído ao Estado. Só a posteriori este o coonesta e o assume
como seu, modificando a respectiva natureza (um acto privado convola-se,
subsequentemente, em acto estadual). Foi, v.g., o caso do ataque e invasão da
Embaixada dos Estados Unidos em Teerão, em finais dos anos 70 do séc. XX., bem
como da tomada de reféns que se lhes seguiu: tais comportamentos, ab initio da
responsabilidade de indivíduos desinvestidos de qualquer status oficial (não se tratava
de órgãos ou agentes estaduais), foram depois objecto da chancela (do aval ou do
consentimento) do regime do Ayatollah Khomeini, convertendo-se,
consequentemente, em actos imputáveis ao Irão.
Regime-regra
teria existido caso aquele não tivesse sido praticado (reposição da situação actual
hipotética). Ora, só a restitutio in integrum (restituição integral ou restituição em
espécie) permite a total obliteração dos efeitos emergentes da comissão de actos
ilícitos, pelo que – como se afirmou no mencionado caso da Fábrica de Chorzow e,
anos mais tarde, no caso Texaco Calasiatic – é ela a consequência normal do
incumprimento de obrigações internacionais.
Assim, como refere AZEVEDO SOARES, se um Estado ocupou um território
estrangeiro, deverá restituí-lo; se promulgou uma lei que colide com os seus
compromissos internacionais, deverá revogá-la; se, injustamente, expropriou bens de
estrangeiros, deverá anular esse acto administrativo expropriativo; se também contra
cidadãos estrangeiros, proferiu uma sentença injusta ou discriminatória, deverá
proceder à sua anulação. A restitutiu in integrum será ainda viável naquelas situações
em que sobrevêm danos materiais como resultado da prática do acto ilícito: v.g., a
reconstrução de um imóvel deliberadamente destruído.
Nem sempre, porém, se revela exequível esta forma de reparação dos danos.
Com efeito, não faltam ocasiões em que, seja pela circunstância de o acto jurídico
(ilícito) em causa haver já produzido efeitos irreversíveis (v.g., a morte de alguém), seja
pelo facto de os danos materiais ocorridos terem redundado num prejuízo definitivo
para o Estado vítima (v.g., a destruição de bens insusceptíveis de recuperação, de
reabilitação ou de reconstrução), não resta outra alternativa senão partir em busca de
outra modalidade de reparação (cfr. artigo 35.º, a), do PARI).
Outras vezes, sendo embora viável a restitutio in integrum, poderá suceder que
ela envolva para o Estado autor do acto ilícito um prejuízo desproporcionado
comparativamente às vantagens que o Estado lesado obteria beneficiando dessa
forma de reparação (cfr. artigo 35.º, b), do PARI); ou que a sua efectivação possa
comprometer gravemente a manutenção do regime político ou até a estabilidade
económica do Estado que infringiu o direito internacional. Em ambos os casos deverá
ter-se por afastada a restituição integral.
Ora, quando, por conseguinte, a restitutio in integrusm seja materialmente
impossível, ou quando, sendo possível, se revelaria injusta e desproporcionada, é a
reparação por equivalente ou indemnização (em sentido estrito) que se apresenta
como mais adequada para compensar o Estado vítima pelos prejuízos causados.
242
Interessante, pelo seu ineditismo, foi a solução dada pelo TIJ, quanto ao problema da
indemnização, no caso Gabcíkovo-Nagymaros (CIJ, Recueil…, 1997). De facto, concluindo que ambas as
partes haviam cometido actos internacionalmente ilícitos e que, por isso, ambas estariam obrigadas a
indemnizar, ao mesmo tempo que tinham direito a ser indemnizadas, estimou o Tribunal que a questão
poderia resolver-se satisfatoriamente se cada um dos Estados renunciasse às suas pretensões de
carácter financeiro, anulando-se, de tal sorte, os direitos e obrigações recíprocas
243
Regime excepcional
Inscreve-se, por exemplo, neste contexto a queixa que, no final de 2019, a Gâmbia (Estado
terceiro) apresentou no TIJ contra Myanmar (antiga Birmânia), em 2019, pelos actos de perseguição
adoptados e/ou tolerados pelo respectivo governo contra o grupo minoritário muçulmano Rohingya;
actos esses alegadamente violadores da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio. Com base no carácter de jus cogens da proibição do genocídio e na natureza erga omnes das
obrigações consagradas naquela convenção, solicitava a Gâmbia ao Tribunal que declarasse Myanmar
responsável pela violação dessas obrigações e que, em conformidade, procedesse esse Estado à
reparação dos danos causados, cessasse a prática de qualquer acto ilícito, prestasse as necessárias
garantias de não repetição e assegurasse o julgamento das pessoas responsáveis pelo crime de
genocídio. Adicionalmente, atenta a natureza dos direitos em causa, o carácter continuado dos actos
ilícitos praticados e a extensão e severidade dos danos infligidos aos membros do grupo Rohingya,
requereu ainda a Gâmbia que o Tribunal decretasse medidas provisórias, de acordo com o disposto no
artigo 41.º do respectivo Estatuto e, bem assim, nos artigos 73,º a 75.º do seu Regulamento. Em 2020,
viria o TIJ a ordenar a Myanmar que se abstivesse de cometer ou a apoiar quaisquer actos de genocídio,
a preservar os meios de prova e a apresentar relatórios regulares ao Tribunal sobre o progresso dos seus
esforços nesse sentido.
com o artigo 37.º, nº 3, do PARI, não poderá ela tomar feição através de
comportamentos tidos como “humilhantes” para o Estado vítima, julga-se despiciendo
ou desajustado tal “escrúpulo” ou minudenciosa precaução em face da prática de
actos que ofendem princípios fundamentais do ordenamento internacional.
Não se furta C. ARANGIO-RUIZ, antigo Relator Especial da CDI, a dar alguns exemplos que
ilustram o que acaba de ser dito. Pense-se, v.g., num regime ditatorial que pratica um acto de agressão
armada; ou num Estado cuja prosperidade económica tenha, em razoável medida, sido alcançada à
custa do trabalho escravo a que, por razões étnicas, religiosas, ideológicas, etc., haja sujeitado uma
parte da sua população; ou ainda em certo tipo de exigências que, à guisa de satisfação, sejam feitas a
determinado Estado (alteração da forma de governo, realização de consultas populares, revogação de
legislação discriminatória, desmantelamento de indústrias de guerra, etc.). Certamente que, nas
hipóteses descritas, perante a prática de actos ilícitos especialmente graves, não caberia prescindir-se
da restitutio in integrum ou das medidas de satisfação reputadas de adequadas, mesmo que tal
pudesse, respectivamente, conduzir ou esboroamento de um regime político totalitário, ao surgimento
de uma crise económica ou à humilhação pública do Estado autor da conduta ilícita.
Consentimento
Legítima defesa
Contramedidas
Força maior
Perigo extremo
Estado de necessidade
4.2.2 - Origem
a uma empresa canadiana. Esses fumos haviam produzido danos ambientais no Estado
de Washington, causando, durante algum tempo, prejuízos significativos aos
agricultores norte-americanos (R. MARTÍN MATEO).
Firmou-se, a partir de então, o princípio da responsabilidade do Estado pelos
actos de poluição, com origem no seu território, causadores de danos em territórios
limítrofes ou vizinhos, ainda que tais acções poluentes transfronteiriças não sejam
imputáveis ao Estado enquanto tal ou aos seus órgãos (responsabilidade objectiva,
pois, fundada naquilo que poderíamos apelidar de risco anormal de vizinhança). Será,
v.g. o caso de os danos ocorridos terem tido origem em actividades desenvolvidas por
particulares (pessoas físicas ou empresas), havendo o Estado sob cuja jurisdição se
encontrem cumprido todos os seus deveres de vigilância e cuidado.
5 – Sucessão de Estados
Tal princípio foi várias vezes reafirmado pelo TPJI. Por exemplo, no caso dos Colonos Alemães
na Polónia – objecto de um parecer, em 1923 – foi dito claramente que «direitos privados adquiridos
em conformidade com o direito em vigor não caducam por efeito de uma mudança de soberania».
Alguns anos volvidos, o mesmo Tribunal, reponderando a questão no caso dos Interesses Alemães na
Alta Silésia, haveria de confirmar a tese, já antes advogada, reconhecendo ao princípio dos direitos
adquiridos a natureza de princípio de direito internacional geral ou comum. E também no caso da
Expropriação da Fábrica de Chorzow, julgado em 1927, se declarou que o desrespeito por aquele
princípio tornaria o Estado sucessor incurso em responsabilidade internacional.
obrigações daí advindos, foi igualmente afirmada nos casos Mavrommatis e Franco-
Helénico dos Faróis, respectivamente em 1925 e 1934 (DÍEZ DE VELASCO).
A outra directriz irrompeu após a Segunda Guerra Mundial e tinha como
principais partidários os países socialistas e do terceiro mundo. A tese tradicional do
respeito pelos direitos adquiridos foi, então, criticada e rotulada de intrinsecamente
desigualitária por ter subjacente princípios da Economia de Mercado e, em resultado
disso, atentar contra a soberania dos Estados sucessores, maxime na sua vertente
económica, ao irrogar-lhes a assunção de pesados compromissos económicos e
financeiros a cuja criação haviam sido, evidentemente, alheios.
Tal injustiça seria, aliás, tão mais flagrante, quanto é certo serem, muitas vezes,
os Estados sucessores Estados de recente independência, com economias ainda frágeis,
que resultariam insuportavelmente entibiadas, caso lhes fosse imposta uma espécie de
hipoteca financeira que, a prazo, poderia redundar numa autêntica asfixia económica
desses Estados.
Para mais, a “soberania permanente de cada povo e de cada Estado sobre as
suas riquezas e recursos naturais”, tantas vezes conclamada, teria como inelutável
consequência que a todo o Estado devesse ser reconhecida plena liberdade de
conduzir a sua política económica, nomeadamente em matéria de nacionalizações;
algo que a doutrina dos direitos adquiridos entravaria.
Por todas estas razões, seria lícito ao Estado sucessor ignorar as situações
jurídicas preexistentes, não arrostando com o ónus de compromissos financeiros por si
não assumidos.
Face às duas concepções divergentes acabadas de expor, a doutrina inclina-se
hoje, maioritariamente, para uma solução equilibrada e conciliatória, que não
cooneste a pretensão de os Estados sucessores fazerem tábua rasa dos direitos
adquiridos pelos particulares, com prejuízo manifesto da estabilidade, certeza e
segurança no relacionamento internacional, mas que também não desconsidere a sua
soberania. Defende-se, deste modo, como linha de princípio, que o Estado sucessor se
encontra vinculado aos compromissos assumidos pelo Estado predecessor – a fortiori
se, convencionalmente, tiver aquele reconhecido perante este o dever de respeitá-los
–, só podendo eximir-se à respectiva observância por razões económico-financeiras
atendíveis e mediante o pagamento de uma indemnização justa e adequada (não
266
Nacionalidade
O caso da ocupação dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, em
1961, é apresentado por GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS como constituindo exemplo de
uma solução de continuidade no domínio da legislação. Com efeito, reconhecendo a sua importância na
vida jurídica local, a Índia viu-se compelida, após a ocupação militar, a manter em vigor, naqueles
territórios, o direito privado português (contido, em larga medida, no Código Civil de Seabra).
Quando aos bens, socorreu-se a Convenção de 1983, no seu artigo 8.º. de uma
definição ampla, considerando como tais os «bens, direitos e interesses que, à data da
sucessão de Estados e em conformidade com o direito interno do Estado predecessor,
pertenciam a este Estado».
À luz do direito internacional costumeiro, em resultado da sucessão de Estados,
passam para o Estado sucessor os bens móveis ou imóveis que pertencessem ao
Estado predecessor - princípio este que a Convenção de 1983 viria a codificar, ainda
que de modo diferenciado no seu alcance em função dos vários tipos de sucessão.
Se na hipótese de unificação, o artigo 16.º consagra a solução óbvia, ao
estipular que os bens de cada um dos Estados predecessores passam automática e
integralmente para o Estado sucessor, surpreende-se nas demais categorias de
270
sucessão uma espécie de geometria variável que se explica pelas especificidades que
cada uma delas revela.
Assim, no que diz respeito à sucessão relativa a uma parte do território, na
ausência de acordo entre os Estados envolvidos, transferem-se para o Estado sucessor
todos os bens imóveis do Estado predecessor situados no território objecto da
sucessão, o mesmo sucedendo com os bens móveis deste último Estado, ligados à sua
actividade na parcela territorial em causa (cfr. artigo 14.º, a) e b) da Convenção de
1983).
Relativamente aos Estados sucessores de recente independência, transparece
do artigo 15.º um propósito claro de, nesta matéria, lhes dispensar um tratamento
mais favorável do que aquele que é conferido aos demais Estados sucessores.
Preceitua, em termos gerais, a alínea a) do número 1 dessa disposição que passam
para o Estado sucessor os bens imóveis do Estado predecessor situados no território
objecto da sucessão. E idêntica solução consagra a alínea b) para aqueles bens imóveis
situados no estrangeiro que, tendo pertencido ao território ao qual respeita a
sucessão, se tenham, entretanto, durante o período colonial, tornado bens do Estado
predecessor. Acrescenta ainda a línea c) que passarão, igualmente, para o Estado
sucessor de recente independência outros bens imóveis, que não os mencionados nas
alíneas precedentes e também situados no estrangeiro, para cuja criação haja
contribuído o território dependente, na medida dessa contribuição. No que tange, por
seu turno, aos bens móveis, reafirmam as alíneas d), e) e f) a regra da
transmissibilidade, quer para aqueles que se encontrem relacionados com a actividade
do Estado predecessor no território objecto da sucessão (d)), quer no tocante aos que,
tendo pertencido a esse território, se tenham, durante o período de dependência,
convertido em bens do Estado predecessor (e)), bem como àqueles, não enquadráveis
nas alíneas d) e e), para cuja criação tenha contribuído o território dependente, na
medida dessa contribuição (f). De salientar ainda que eventuais acordos entre o Estado
predecessor e o Estado sucessor de recente independência, destinados a regular o
problema da sucessão de bens em termos diversos do preceituado nos parágrafos 1 a
3 do artigo 15.º, não podem ser alcançados com menoscabo de um princípio axial da
nova ordem económica internacional: o já aludido princípio da soberania permanente
de cada povo sobre as suas riquezas e recursos naturais (cfr. o número 4 do artigo
271
15.º).
No que se refere à separação, estabelece a alínea a) do número 1 do artigo 17.º
que passam para o Estado sucessor os bens imóveis do Estado predecessor situados no
território a que respeita a sucessão. Quanto aos bens móveis, haverá que distinguir
aqueles que se encontrem ligados à actividade do Estado predecessor no território em
causa dos demais, que se não enquadrem nessa categoria. Os primeiros passarão
integralmente para o Estado sucessor (b)), ao passo que os segundos serão para este
transferidos numa proporção equitativa (c)). Sem prejuízo do regime descrito, ressalva
ainda o parágrafo terceiro a possibilidade de a sucessão dar azo a uma compensação
justa e equilibrada entre o Estado predecessor e o Estado sucessor.
Por último, no caso de dissolução – novel categoria de sucessão introduzida
pela Convenção de 1983 –, para além dos bens imóveis situados no território objecto
da sucessão, passarão igualmente para o Estado sucessor, numa proporção equitativa,
os situados no estrangeiro, que, naturalmente, pertencessem ao Estado predecessor
(cfr. alíneas a) e b) do número 1 do artigo 18.º). No que se reporta aos bens móveis, as
soluções convindas são em tudo similares às previstas para as hipóteses de separação
(cfr. alíneas c) e d) do número 1 do artigo 18.º em confronto com as já citadas alíneas
b) e c) do número 1 do artigo 17.º). A única diferença que, acerca dos bens, se detecta
entre estas duas categorias de sucessão de Estados reside, pois, tão-somente, em
alguns dos bens imóveis situados no estrangeiro, que, no caso da dissolução (mas não
no da separação), se transmitem, equitativamente, para o Estado sucessor. Diferença
esta que, de resto, bem se compreende, atenta a circunstância de, na dissolução,
deixar de existir o Estado predecessor. Acrescente-se ainda a concluir que, também
aqui, se acautela, no parágrafo segundo respectivo, a possibilidade de, entre os
Estados envolvidos, sobrevir uma compensação equitativa.
Dando conta dos delicados problemas jurídicos que por vezes se levantam nas situações de
sucessão de bens imóveis do Estado predecessor no estrangeiro (sobretudo, os locais das missões
diplomáticas), GONZÁLEZ CAMPOS/SÁNCHEZ RODRÍGUEZ/SÁENZ DE SANTA MARIA fornecem o exemplo
da tentativa de venda, por parte do Governo Federal da antiga Jugoslávia, dos edifícios da Embaixada e
a residência do embaixador em Madrid, que teve como resposta imediata uma «Nota Verbal» da
Embaixada da Croácia, solicitando ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha, como medida
preventiva, o desencadeamento de um embargo a essas projectadas transacções, até que se resolvesse,
272
15,º), esse hipotético acordo não poderá, todavia, pôr em causa o princípio da
soberania permanente de cada povo sobre as suas riquezas e recursos naturais, nem,
tão-pouco, comprometer a estabilidade económica do Estado de recente
independência (cfr. o número 2 do artigo 38,º).
Quando à separação e à dissolução, consagram, respectivamente, os artigos
40.º e 41.º soluções em tudo idênticas, com base no aludido princípio da transmissão
equitativa das dívidas do Estado predecessor. De modo que, se coisa diversa não for
acordada entre os Estados implicados na mudança de soberania, haverá que proceder
à já referida ponderação entre duas variáveis: as dívidas do Estado predecessor e os
bens direitos e interesses transmitidos para o (s) Estado (s) sucessor (s).
Refira-se, como curiosidade, que, havendo a mencionada notificação de sucessão por parte de
um Estado de recente independência, destinada a fazer constar a sua qualidade de parte num tratado
multilateral, se mantém qualquer eventual reserva a esse tratado que fosse aplicável à data da
sucessão, a menos que aquele exprima intenção contrária ou formula uma espécie de “reserva à
reserva” já existente (cfr. artigo 20.º).
Dos artigos 21.º a 30.º da Convenção de 1978 constam ainda algumas regras
específicas aplicáveis aos Estados sucessores de recente independência,
nomeadamente relativas à possibilidade de vinculação a uma parte de um tratado ou à
opção entre disposições diferentes (artigo 21.º) e a tratados bilaterais (artigos 24,º e
ss.).
Já nas hipóteses de unificação, de separação e de dissolução (esta última, por
analogia com os casos de separação) o critério geral é, pelo contrário, o da
continuidade de todos os tratados, salvo se os Estados envolvidos tiverem
convencionado coisa diversa ou se a própria natureza do tratado (o seu objecto e o seu
fim) se revelar incompatível com a respectiva aplicação ao Estado sucessor. Tal
continuidade poderá ser territorialmente mais ampla ou mais restrita em função da
vontade manifestada pelo Estado sucessor e pelas outras partes no tratado (cfr,
respectivamente, os artigos 31.º e ss. e 34.º e ss.). Trata-se de soluções recomendadas
pela singularidade destas categorias de sucessão, às quais – feita a necessária
ponderação entre a soberania do Estado sucessor, os interesses dos outros Estados
parte e os próprios interesses da comunidade internacional – muito melhor se afeiçoa
a regra da transmissão dos tratados do que a doutrina da tábua rasa. A prática dos
Estados revela-se, no entanto, assaz oscilante, surgindo matizado e corrigido, com
inusitada frequência, o critério da continuidade; o que, de resto, a própria Convenção
de 1983 claramente admite, ao haver introduzido, como se relevou, alguma
flexibilidade no regime descrito.
Saliente-se, para concluir este ponto, que a regra da tábua rasa, aplicável nos
casos da sucessão relativa a uma parte do território e dos Estados sucessores de
recente independência, ou até, hipoteticamente, em outras categorias de sucessão por
vontade dos Estados implicados (cfr., supra), conhece, todavia, excepções, algumas
277
A aplicação ao Estado sucessor de tratados que versem regimes de fronteira (artigo 11.º da
Convenção de 1978) funda-se, como se disse, no princípio uti possidetis juris (ou das fronteiras
intangibilidade das fronteiras históricas traçadas pelo colonizador), o qual propicia a manutenção do
statu quo ante, Tal princípio surgiu na América Latina, ainda no séc. XIX, havendo sido mais tarde
estendido ao movimento da descolonização no continente africano (THOMAS FRANK), com o fito de
preservar a independência e a estabilidade dos novos Estados, que, desejavelmente, deveriam estar a
salvo de disputas ou contenciosos territoriais com os seus vizinhos.
A questão colocou-se, por exemplo, no caso da delimitação da fronteira marítima
Guiné/Senegal. Tratava-se, entre outras questões suscitadas, de saber se o acordo celebrado em 1960
entre Portugal e a França (Estados colonizadores), relativo à fronteira marítima, constituía ou não direito
aplicável aos dois novos Estados. A Guiné-Bissau, não contestando, embora, a validade da dita regra da
continuidade dos tratados criadores de fronteiras, sustentava a existência de excepções à mesma,
nomeadamente uma suposta excepção para fronteiras marítimas. Certo é, porém, que o tribunal
arbitral encarregado de apreciar o caso claramente rejeitou, na sua sentença de 31 de Julho de 1989, a
pretensão daquele Estado, afirmando a extensão do âmbito de aplicação espacial do princípio uti
possidetis às águas fluviais ou lacustres, ao mar, ao subsolo, à atmosfera, etc., nenhuma razão havendo,
portanto, para que o respectivo alcance se cingisse, tão-somente, aos limites administrativos (terrestres)
de cada possessão colonial.
Dos “tratados reais” se distinguem os concluídos intuitu personae, ou “tratados pessoais” (v.g.,
tratados de aliança), que, tendo por base uma relação de especial proximidade, afinidade ou ligação
entre as partes, não podem ser invocados pelo Estado sucessor ou ser-lhe oponíveis.
278
Não obstante o que acabou de dizer-se, um conspecto da prática internacional impõe que
relevemos a cíclica ocorrência de situações em que se verificam, senão excepções, pelo menos alguns
desvios à regra geral. Foram, inter alia, os casos da Índia e do Paquistão, na sequência do
desmoronamento do Império das Índias (só o Paquistão teve de requerer, formalmente, a sua admissão
à ONU – ónus que a Índia não suportou, dado haver sido considerada sucessor único daquele império, o
qual já antes tinha assento na Organização Mundial); da Síria e do Egipto, que, rejeitada uma fusão na
República Árabe Unida, não tiveram de se submeter, ex novo, ao procedimento de adesão à ONU; da
Alemanha reunificada, que sucedeu, mediante simples notificação, à RFA (mas não à RDA) na qualidade
de membro das organizações internacionais de que aquele Estado fazia parte; da Rússia e das
Repúblicas Checa e Eslovaca, que sucederam, respectivamente, à ex-URSS e à ex-Checoslováquia na
ONU (no primeiro caso, verificando-se, inclusive, uma automática sub-rogação no exercício do direito de
veto – especial prerrogativa de que gozam os membros permanentes do Conselho de Segurança); etc.
(cfr. QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).
6 – Reconhecimento
6.1 - Noção
soberano.
Através do reconhecimento, os membros preexistentes da comunidade
internacional limitam-se a comprovar (constatar) tal facto, condicionando, daí por
diante, os efeitos internacionais da soberania do novel Estado, mas não lhe atribuindo
qualquer estatuto jurídico. Este reside já, originariamente, nos referido elementos
constitutivos. Ora, não servindo para atribuir a qualidade de Estado (ou criar a
soberania), senão, apenas, para declará-la ou constatá-la, será mister concluir pelo
valor meramente declarativo do acto de reconhecimento.
Pode então dizer-se que a não outorga do reconhecimento não constitui óbice
a que determinado Estado exista; assim como deve, inversamente, relevar-se que um
acto de reconhecimento, em si e por si mesmo considerado, de nada valerá na
ausência dos elementos constitutivos do Estado.
los num prazo mais ou menos alargado (reconhecimento de beligerantes – cfr., infra). Não se trata,
porém (ainda), de reconhecimento de Estados. Este poderá sobrevir em momento subsequente, caso a
situação fáctica evolua no sentido da sua admissibilidade,
no seu território os actos por si praticados, o Estado que não haja sido objecto de
reconhecimento vê, em muito, reduzido o alcance extraterritorial da sua legislação, da
sua regulamentação administrativa ou das sentenças dos seus tribunais. Por outro
lado, a falta de reconhecimento, não obstando, embora, a que sejam encetados, de
modo fragmentário, certos contactos não oficiais com terceiros – v.g. missões
oficiosas, relações comerciais ou consulares, acordos de escassa amplitude, etc.
(SALMON; DÍEZ DE VELASCO) –, frena, contudo, inevitavelmente, o entabulamento
oficial de relações diplomáticas solenes, ao nível das embaixadas, com os Estados que
tenham recusado outorgar o reconhecimento.
Deve, pois, frisar-se que, se o reconhecimento tem um indiscutível valor
declarativo quanto à existência, de jure, de um Estado, dado servir, tão-somente, para
comprová-la ou certifica-la (cfr., v.g., o artigo 12.º da Carta da OEA), não deixa, ainda
assim, na prática internacional (sobretudo, a mais recente) de comportar igualmente
uma dimensão constitutiva, discernível no que respeita ao pleno exercício das
competências internacionais do novo Estado (VERDROSS; DÍEZ DE VELASCO). Assim, de
resto, se compreende o afã das múltiplas iniciativas em que, por norma, se desdobram
os Estados recém-formados, com o intuito de obterem o reconhecimento pelo maior
número possível de Estados e organizações internacionais. Até porque, tratando-se de
um acto essencialmente livre e discricionário, poderão alguns recusar-se a outorgá-lo
ou subordinar essa outorga ao cumprimento de certas condições ou parâmetros,
designadamente em termos de autodeterminação, democracia, Estado de Direito e
direitos humanos (pense-se, inter alia, nos casos problemáticos de Taiwan, da
República Turca de Chipre do Norte, do Kosovo, da Abecásia, da Ossétia do Sul, etc.).
A crise vivida na Venezuela, em 2019, parece atestar isto mesmo. Com efeito, parte substancial
dos Estados e organizações internacionais não reconheceu, então, os resultados dos diversos actos e
processos eleitorais realizados naquele país, em particular a reeleição de Nicolás Maduro, em 2018.
Muitos países interromperam relações diplomáticas com a Venezuela e alguns chegaram mesmo a
nomear embaixadores junto de Juan Guaidó, Presidente da Assembleia Nacional, que viria, em Janeiro
de 2019, a autoproclamar-se Presidente da Venezuela. Na sua Declaração de 10 de Janeiro de 2019, em
nome da União Europeia, sobre o novo mandato do Presidente Maduro, a Alta Representante chegaria
mesmo a afirmar que as eleições realizadas no pretérito mês de Maio não haviam sido livres nem justas,
pelo que o seu resultado não tinha qualquer credibilidade, apelando à marcação de novas eleições
presidenciais, em conformidade com as normas democráticas internacionalmente reconhecidas. Preza a
verdade afirmar, no entanto, que nunca, em rigor, chegou a ser reconhecido um governo de Juan
Guaidó, nos termos do direito internacional. Guaidó foi reconhecido, isso sim (nomeadamente pelo
Governo português), como Presidente interino com legitimidade para convocar e organizar eleições
presidenciais livres, o que acaba, apesar de tudo, por comprovar as limitações inerentes à doutrina da
legitimidade.
beligerantes; facto que, desde logo, terá por efeito convolar uma inicial guerra civil
num conflito armado internacional, sujeito, desta feita, ao Protocolo Adicional I, de
1977, às Convenções de Genebra de 1949.
Sendo a própria mãe-pátria a proceder ao reconhecimento, desonera-se da
responsabilidade para com outros Estados pelos danos que a estes hajam sido
causados pelos beligerantes. Ao invés, sendo um Estado terceiro a outorgar o
reconhecimento, fica a mãe pátria isenta de responsabilidade pelos actos dos rebeldes
para com esse Estado, subsistindo, todavia, a sua responsabilidade em face daqueles
que se tenham recusado a reconhecê-los. Deduz-se, pois, do exposto que, após
haverem sido reconhecidos, os beligerantes adquirem, de facto, os direitos e deveres
de um Estado (AZEVEDO SOARES).
Deverá, contudo, relevar-se que o reconhecimento prematuro de beligerantes
por parte de um Estado terceiro, relativamente a um grupo que não reúna ainda os
requisitos necessários para tal, constituirá ingerência nos assuntos internos do Estado
em cujo território os rebeldes operam (RIEDEL).
Estado ou de governo.
Em terceiro lugar, o reconhecimento de insurrectos e beligerantes constitui
manifestação de uma competência discricionária: não impende sobre a mãe-pátria ou
sobre Estados terceiros qualquer dever de reconhecimento.
Japão na Segunda Guerra Mundial, parecem, essencialmente, ter-se fundado na ilicitude da situação
constituída em 1931. Em contraponto, no entanto, a anexação contemporânea da Etiópia pela Itália, em
1935, na sequência de um (similar) recurso ilícito à força, não ensejaria qualquer resolução
condenatória por parte da SDN, idêntica à de 1932, beneficiando, até, o novo “Império da Itália e
Etiópia” do reconhecimento de quarenta e quatro Estados – um número, à época, muitíssimo
significativo…
Os limites jurídicos que, desde o início do séc. XX, foram impostos aos Estados
na sua tradicional competência de recurso à guerra, até à consagração definitiva do
princípio da proibição do recurso à força nas relações internacionais, no artigo 2.º,
número 4, da CNU – o qual comporta excepções muito contadas –, não autorizam,
efectivamente, hoje, outra conclusão que não seja a de que o moderno direito
internacional integra hoje, vertido em diversos instrumentos normativos, um dever de
não reconhecimento de um Estado (ou de qualquer outra situação) que se tenha
constituído através de um uso ilícito da força.
Mas mais. Como se relevou a propósito das consequências jurídicas
emergentes da prática de actos ilícitos estaduais de especial gravidade – aqueles que
resultam da violação do jus cogens –, impende justamente sobre os Estados, ex vi do
artigo 41.º do PARI, um dever de não reconhecimento das situações que deles derivem,
mesmo quando estas não tenham na sua base um recurso à força militar (pense-se,
por exemplo, em certos casos de desrespeito pelo princípio da autodeterminação dos
povos ou de violação grave e reiterada de direitos humanos).
Sendo isto aparentemente incontroverso, já se revelará, no entanto, prematuro
sustentar a existência de um dever geral de não reconhecimentos de situações ilícitas
ou contrárias ao direito das gentes fora do âmbito material das infracções ao direito
internacional imperativo.
Deve começar por afirmar-se que não são inteiramente rigorosas estas
designações, as quais tês, todavia, atrás de si uma já longa tradição.
De facto, tal como aduzem QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, todo o acto de
reconhecimento é um acto jurídico, produtor de efeitos jurídicos, no que toca à
capacidade de determinado sujeito ou entidade nas relações internacionais, pelo que
entre o reconhecimento de direito e o reconhecimento de facto existe apenas uma
diferença de grau, não uma diferença de natureza.
Assim, enquanto o reconhecimento de direito é definitivo, pleno e irrevogável
(não reversível), o reconhecimento de facto é, por contraposição, provisório, limitado e
revogável (reversível). Pode dizer-se que, sempre que um novo Estado se encontra em
vias de formação ou constituição, o reconhecimento de facto obvia aos inconvenientes
que poderiam advir de um reconhecimento (definitivo) prematuro e precipitado.
Através do primeiro, em face de uma situação de contornos ainda pouco claros ou mal
definidos, aquele que reconhece evita comprometer-se inadvertida e inapelavelmente.
Consolidando-se, no futuro, o nascimento desse novo membro da comunidade
internacional, o reconhecimento de facto converter-se-á em reconhecimento de jure;
se, pelo contrário, não chegar a consumar-se a respectiva independência, o
reconhecimento (provisório) será revogado.
Foi, v.g., o caso do reconhecimento, por parte dos Estados membros da, então, Comunidade
Europeia, incluindo Portugal, dos três novos Estados que emergiram, do desmembramento parcial da
ex-Jugoslávia, na década de noventa do séc. XX: a Bósnia-Herzegovina, a Croácia e a Eslovénia. Mais
recentemente, foi também o que sucedeu em relação ao Kosovo, em 2008, por parte de vários Estados,
na sequência da sua declaração unilateral de independência, em 17 de Fevereiro daquele ano.
1 – Considerações preliminares
importância para a evolução das relações internacionais, eram muito limitadas ainda a
independência e a vida própria das organizações surgidas entre os dois conflitos à
escala mundial. Não foi senão depois de 1945 que ganhou corpo um amplo movimento
internacional tendente a dotar as instituições criadas – aliás, um número considerável
delas –, tanto no plano universal, como ao nível regional, de real autonomia e de
efectivos poderes de decisão.
As novas organizações internacionais diferem bastante entre si, quer no que
toca ao respectivo âmbito territorial de acção, quer no que respeita à sua estrutura
jurídica, quer ainda quanto ao seu objecto, isto é, aos fins por si prosseguidos. Da
Segunda Guerra Mundial em diante, são praticamente infindáveis os exemplos que, a
propósito, podem fornecer-se. Assim, por exemplo, no domínio das relações políticas e
diplomáticas, foram criadas a Organização das Nações Unidas (ONU), de vocação
universal, bem como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização de
Unidade Africana (OUA), hoje União Africana (UA), de carácter regional; no âmbito das
relações militares, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla
inglesa) e o, entretanto já extinto, Pacto de Varsóvia; em sede de cooperação
económica, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, de alcance
universal, e a Comunidade Económica Europeia (CEE), de cariz regional; no campo das
relações culturais, a Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura
(UNESCO); na esfera da medicina e da saúde pública, a Organização Mundial de Saúde
(OMS); etc..
2 – Noção
Tanto quanto se pode dar uma definição de organização internacional, que, por
demasiado doutrinal, sempre se revelará redutora da realidade multiforme, afigura-se-
nos teoricamente satisfatória a noção de G. FITZMAURICE, retomada mais tarde por
outros autores, e já avançada no Capítulo I: consistem as organizações internacionais
em associações voluntárias de Estados, criadas por tratado, dotadas de uma estrutura
orgânica permanente e possuidoras de personalidade jurídica internacional própria
(distinta da dos Estados membros).
Bastante próximo deste é o conceito proposto por R. BINDSCHEDLER, para
quem uma organização internacional constitui uma associação de Estados instituída
294
por tratado, que prossegue objectivos comuns aos seus membros e que possui órgãos
próprios para a satisfação das funções (atribuições) específicas da organização.
Atentemos nos elementos que ressaltam das duas noções referidas.
Por um lado, o fundamento convencional: enquanto sujeitos derivados de
direito internacional, as organizações internacionais não poderiam ser criadas senão
por iniciativa de uma vontade exterior. Vontade esta que é exprimida, num tratado
multilateral, pelos sujeitos (Estados) preexistentes da comunidade internacional.
Apresenta esse tratado uma natureza constitucional, visto que – sendo hierarquizada a
ordem jurídica interna de qualquer organização internacional – se converte em padrão
de referência para aferir da validade dos actos emanados dos respectivos órgãos
(direito secundário). Dele constam, habitualmente, a enunciação dos fins da
organização, os princípios norteadores da sua actividade, as competências dos seus
órgãos e correspondentes procedimentos deliberativos, etc., razão por que possui,
igualmente, primazia normativa sobre outros tratados ou acordos concluídos pelos
Estados membros ou pela própria organização (cfr., v.g. o artigo 103.º da CNU), tudo
se reflectindo em apertadas regras relativas, quer à formulação de reservas, quer aos
procedimentos de revisão.
Em segundo lugar, a existência de órgãos próprios: tratando-se de pessoas
colectivas, as organizações internacionais dispõem de órgãos através de cujos titulares
exprimem uma (a sua) vontade (colectiva). Tais órgãos são, pois, elementos da própria
organização, sendo que o respectivo comportamento é, directamente, um
comportamento desta. Nisto consiste a imputação.
Em terceiro lugar, o carácter de permanência dessa estrutura orgânica, que,
designadamente, permite distinguir as organizações internacionais, conquanto não
apenas em virtude de tal factor, das relações acidentais entre Estados – fundadas
também em tratados, embora se não destinem a dar vida a uma nova entidade – e das
conferências internacionais, cuja existência é efémera, mau grado algumas tenderem a
eternizar-se… Acresce que a característica em apreço (a permanência dos órgãos)
implica que entre a organização internacional – sujeito sem base territorial – e um ou
mais Estados membros sejam concluídos os chamados accords de siège (acordos de
instalação), para que no respectivo território possa aquela dispor das infraestruturas e
condições materiais exigidas para o seu funcionamento.
295
3 – Classificações
Apesar de há muito adoptados pela doutrina, não são, com efeito, os mais adequados os
vocábulos intergovernamental e supranacional, que derivam dos termos governo e nação, quando o que
aqui está em causa é o Estado (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Seria, por isso, preferível e
mais rigoroso falar-se em organizações interestaduais (ou de cooperação), distintas, do ponto de vista
da estrutura jurídica e dos poderes atribuídos, das supraestaduais (ou de integração).
Trata-se agora de uma classificação que atende aos fins prosseguidos por cada
organização internacional (reveladores, portanto, do seu objecto social). Fins ou
objectivos que se encontram consignados nas cartas constitutivas.
Relativamente a qualquer pessoa colectiva, designam-se por atribuições os fins (ou interesses)
que ela está incumbida de prosseguir. E, à luz do princípio da especialidade, somente poderá exercer os
poderes que lhe forem cometidos para alcançar os respectivos fins institucionais. Para tal, dispõe de
299
órgãos (decisórios, de fiscalização, consultivos, etc.), que são centros institucionalizados de poderes
funcionais (ou competências). Um hipotético desvio dos fins assinalados à organização, constituirá uma
actuação ultra vires, por parte dos seus órgãos.
4 – Personalidade jurídica
Veja-se, por exemplo, o caso do artigo 104.º da CNU, subsequentemente reproduzido nos
tratados constitutivos das instituições especializadas da «família das Nações Unidas» (caso, v.g., da
UNESCO), que dispõe: «A organização gozará, no território de cada um dos seus membros, da
capacidade jurídica necessária ao exercício das suas funções e à realização dos seus objectivos».
Também, entre muitos outros, nos tratados-base da OEA, da EU e da NATO é possível encontrar
disposições análogas.
Conforme se disse já, este parecer consultivo do TIJ teve como causa próxima o assassinato do
conde Folke Bernadotte, mediador das Nações Unidas na Palestina, em 1948. Considerando que as
autoridades israelitas haviam actuado de forma negligente, quer na prevenção do crime, quer na
punição dos seus autores, pretendiam as Nações Unidas pôr em marcha uma reclamação internacional
de indemnização. Registava-se, todavia, incerteza quanto à questão prévia de saber se a ONU, enquanto
organização, teria ou não capacidade jurídica, à luz do direito internacional, para desencadear uma tal
reclamação e, consequentemente, para obter o ressarcimento ou reparação dos danos causados a si
própria e à vítima.
em sede de direito das organizações internacionais: serviu para demonstrar que nem
todos os poderes de tais organizações têm de constar expressamente dos seus
tratados constitutivos. Elas gozarão, além disso, dos poderes implícitos que se revelem
necessários ao cumprimento da sua missão (rectius à prossecução das suas atribuições
– cfr., infra, o ponto seguinte). Releve-se que, v.g., dos artigos 104.º e 105.º da CNU
apenas se retiraria a personalidade jurídica da organização face ao direito interno dos
Estados membros; não perante terceiros (M. ALMEIDA RIBEIRO e M. AKEHURST).
Ora, dispondo de personalidade jurídica internacional, as organizações
internacionais são sujeitos de direito internacional. Cabe, pois, perguntar pelas
principais consequências ou manifestações dessa qualidade ou estatuto, maxime no
que respeita aos direitos de que são titulares.
Deverá começar por enfatizar-se o carácter funcional dessa personalidade
jurídica. Com efeito, não podem as organizações internacionais exercitar as
capacidades jurídicas que lhes são atribuídas senão dentro de certos limites: os que
resultam da necessidade de realização dos fins de interesse geral assinalados nas
cartas constitutivas, sem que desse âmbito, em circunstância alguma, lhes seja
permitido extravasar, sob pena de desvio de poder (PIERRE-MARIE DUPUY e C.
CHAUMONT).
Se, porém, uma organização actuar dentro dos parâmetros assinalados, que,
funcional e materialmente, sempre a condicionam, duas consequências haverá que
pôr em evidência.
Por um lado, os actos jurídicos por si adoptados, tendo embora por base um
acordo de vontades (unânime ou maioritário) dos Estados membros, são imputáveis à
organização enquanto ente corporativo autónomo e distinto destes. Por outro lado, e
como acima deixámos já subentendido, será mister reconhecer-lhe, enquanto sujeito
de direito das gentes, uma aptidão para o exercício de determinados direitos na ordem
internacional. Direitos que, tradicionalmente, se encaravam como decorrências inatas
305
Saliente-se que o treaty making power de uma organização internacional não se refere, como é
obvio, aos tratados elaborados ou concluídos sob a sua égide, mas em que apenas são partes os Estados
membros. Diz respeito, isso sim, àqueles em que a própria organização seja parte celebrante.
5 – Atribuições e competências
introduzido no domínio específico do, então, direito comunitário pelo Acto Único
Europeu, de 1986, em matéria de protecção do ambiente, havendo sido mais tarde
generalizado pelo artigo 3.º - B (depois artigo 5.º), disposição que viria a ser
incorporada no Tratado da Comunidade Europeia pelo Tratado de Maastricht, de 1992.
Entretanto, o Tratado de Lisboa, assinado em 2007 e entrado em vigor em 1 de
Dezembro de 2009 – que integra o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado sobre
o Funcionamento da União Europeia (TFUE) –, consagrou o princípio da
subsidiariedade no artigo 5.º, nº 3, do TUE. Destina-se ele a regular o exercício das
competências não exclusivas da União, vedando a intervenção desta sempre que
determinada questão possa ser tratada, de forma satisfatória, pelos Estados membros,
seja a nível, central, regional ou local. A sua importância manifesta-se sobretudo no
âmbito dos processos legislativos, havendo o Tratado de Lisboa reforçado os poderes
dos parlamentos nacionais (mecanismo de alerta precoce) e do próprio Tribunal de
Justiça da União (controlo a posteriori) no que toca ao controlo da respectiva
observância.
Refira-se que foi justamente fazendo apelo à teoria das competências implícitas
que o Tribunal Internacional de Justiça, no supracitado Parecer Consultivo lavrado no
caso dos prejuízos sofridos ao serviço das Nações Unidas, de 1949, reconheceu a
competência da ONU para proteger os seus funcionários, sustentando que «pelo
direito internacional, deve entender-se que a Organização tem os poderes que,
embora não expressamente estipulados na Carta, lhe são conferidos por implicação
necessária, na medida em que são essenciais para o cumprimento dos seus deveres». E
o mesmo terá sucedido, por exemplo, aquando da criação, pelo Conselho de
Segurança, no início dos anos noventa do séc. XX, dos Tribunais Penais Internacionais
para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, criação essa que também apenas à luz da
sobredita teoria poderá entender-se.
E, com efeito, constam do artigo 2,º da CNU vários princípios de alcance geral
que pautam a actuação concreta das Nações Unidas. Mais do que princípios
específicos da Carta, trata-se de autênticos princípios fundamentais de direito
internacional, que dão corpo ao já bordejado direito constitucional internacional. Este
facto tem conduzido diversos autores (v.g., MÜLLER e WILDHABER) a apelidarem o
tratado fundador da ONU de tratado-constituição ou mesmo de constituição da
comunidade internacional.
312
No que toca aos membros da Organização Mundial, os artigos 3.º e 4.º da Carta
distinguem duas categorias: os membros originários (aqueles que tendo participado na
Conferência de S. Francisco ou assinado previamente a Declaração das Nações Unidas
de 1942, assinaram e ratificaram a CNU) e os membros admitidos (aqueles que, por
decisão da Assembleia Geral, sob recomendação do Conselho de Segurança, se
tornam, ulteriormente, membros da organização).
Para estes últimos, o artigo 4.º estabelece como condição de admissão o serem
“amantes da paz” e revelarem aptidão para cumprir as obrigações contidas na Carta, A
entrada para a organização de Estados territorialmente exíguos, como, v.g., o
Principado do Liechtenstein, o Principado do Mônaco, Andorra, São Marino, as Ilhas
Maldivas, as Ilhas Salomão, as Ilhas Marshall, etc., parece, no entanto, atestar o
escasso relevo atribuído àquele segundo requisito, porquanto ressalta óbvia a
incapacidade desses “micro-Estados” para cumprirem algumas das obrigações
consagradas na CNU (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).
Aquando da constituição da ONU, o número de Estados membros era de 51. Em
1955, fruto de um certo apaziguamento da tensão entre os Estados ocidentais e os do
bloco socialista, foi admitido um grupo de dezasseis Estados, entre os quais Portugal.
Com o movimento da descolonização, entrou para a ONU, durante a década de
sessenta do século passado, um grande número de Estados, na sua maioria afro-
asiáticos, com o que, em Janeiro de 1970, ascendia já a 126 o número de membros da
organização. No decurso dos anos oitenta, o crescimento prosseguiu a bom ritmo (em
1980 a ONU contava com 154 Estados membros), mas não foi senão no início da
década de noventa, mercê dos novos Estados saídos do desmembramento (dissolução)
da ex-União Soviética e da ex-Jugoslávia, que novo salto quantitativo seria dado (em
1993, eram 185 os membros da ONU).
314
Desde então, têm sido admitidos pequenos países, sobretudo asiáticos (antigas
colónias insulares britânicas), tais como, o Kiribati, Nauru e Tonga, em 1999, e Tuvalu,
em 2001. Timor-Leste, cuja independência foi alcançada a 20 de Maio de 2002 aderiu
nesse mesmo ano, tal como a Suíça – respectivamente, o 190.º e o 191.º membros da
organização. O caso da Suíça é interessante, uma vez que, de há muito, a sua
população vinha rejeitando o ingresso na ONU, por entender que tal poria em causa o
tradicional estatuto de neutralidade desse Estado. As últimas adesões foram as de
Montenegro, em 2006, e do Sudão do Sul, em 2011, o que perfaz um total de 193
Estados membros.
Como notam GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, a admissão à ONU
ganhou acerta altura um indiscutível relevo prático, dado equivaler ao reconhecimento
do Estado aderente, com todas as consequências daí advindas em termos de projecção
da soberania no exterior. Tal explica que, por exemplo, a República de Taiwan não seja
membro das Nações Unidas, face à persistente recusa da ONU em aceitar a teoria das
duas Chinas.
Quanto aos órgãos da ONU, retira-se do artigo 7.º, nº 1, da Carta serem seis os
seus órgãos principais: a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho
Económico e Social, o Conselho de Tutela (que, entretanto, suspendeu as suas
actividades), o Tribunal Internacional de Justiça e o Secretariado. Mais se preceitua no
número 2 da mesma disposição ser possível a criação dos órgãos subsidiários que as
circunstâncias justifiquem.
Além dos órgãos da ONU propriamente ditos, importa salientar que o Sistema (ou Família) das
Nações Unidas engloba três tipos distintos de entidades. Desde logo, as instituições especializadas, que,
respondendo às necessidades de cooperação internacional do pós-guerra, foram sendo criadas, nas
mais diversas áreas, sob a égide da organização e com esta articuladas mediante tratados específicos,
nos termos dos artigos 57.º e 63.º da Carta (casos, v.g., da FAO, do BIRD, do FMI, etc.). Em segundo
lugar, organizações com estreitas ligações institucionais à ONU, que, todavia, não são instituições
especializadas (v.g., o GATT e a AIEA – Agência Internacional para a Energia Atómica). Por fim, os
organismos especializados, que consistem em complexos de órgãos subsidiários, visando prosseguir um
objectivo específico (v.g., a UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância –; o ACNUR – Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados –; o CNUCED – Comissão das Nações Unidas para a
Cooperação e o Desenvolvimento –; etc.). Na base do funcionamento equilibrado do Sistema das
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que, para o apuramento das maiorias necessárias, só os votos positivos e negativos são
tomados em consideração.
Do nº 2 do artigo 18.º consta uma enumeração meramente exemplificativa das
aludidas questões importantes, sem prejuízo de poder a AG atribuir essa mesma
qualidade a outros assuntos que lhe caiba apreciar. A identificação de novas questões
importantes é, todavia, em si mesma, questão não importante, devendo, pois, resultar
da pronúncia de uma maioria simples (artigo 18.º, nº 3).
Refira-se ainda, por derradeiro, que, dada a sua representatividade, a AG,
embora de há muito dominada pelo bloco de países afro-asiático, se assume como
forum privilegiado para a realização de estudos vários, debates e conferências sobre
temas de interesse geral (JÓNATAS MACHADO). O único português a presidir à AG da
ONU foi Diogo Freitas do Amaral, entre 1995 e 1996.
Sobre o problema que nos ocupa, convirá ainda acrescentar que a prática do CS
deu lugar à formação de um costume contra legem (cfr., supra, Cap. II, III). Na verdade,
se de acordo com a letra do artigo 27.º, nº 3, a ausência de um voto afirmativo (isto é,
positivo), por parte de um dos membros permanentes, equivale a veto, o certo é que,
paulatinamente, se foi aceitando, no seio do CS, que a mera abstenção não tinha por
efeito a paralisação da decisão; só um voto negativo produzirá esse resultado. Nada
hoje parece, portanto, impedir que uma resolução do CS incidente numa questão
material seja adoptada com a abstenção dos cinco membros permanentes, desde que,
como é óbvio, tenha recolhido nove votos afirmativos dos membros não permanentes
(STAVROPOULOS). Duvidoso, porém, é saber se esta decorrência necessária do
mencionado costume contra legem, entretanto formado, não será contrária ao espírito
da Carta (ANTÓNIO PATRÍCIO).
Por força do artigo 24.º da CNU, cabe ao CS, como se disse já, a «principal
responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais». Ora, no
exercício dessa competência, poderá, nos termos dos artigos 33.º e ss., dirigir
recomendações aos Estados envolvidos num conflito, com vista à sua solução por
meios pacíficos, e, nos casos de ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão,
instar as partes em litígio, ex vi do Capítulo VII, a aceitarem as medidas provisórias que
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direito a um voto (nº 1) e que as suas decisões são tomadas por maioria dos membros
presentes e votantes (nº 2).
Depreende-se, por seu turno, o artigo 68.º que o ECOSOC funciona, quer em
plenário, quer em comissões. De entre estas, haverá uma de assuntos económicos e
sociais e outra para protecção dos direitos humanos, podendo ser criadas outras cuja
existência se revele necessária ao adequado desempenho das funções deste órgão.
Além de reuniões breves ao longo do ano, realiza-se no mês de Junho uma sessão de
quatro semanas, em Genebra ou em Nova Iorque.
Desde o aumento do número dos seus membros (na versão original da Carta
eram apenas dezoito) – conquanto não somente em virtude desse factor – que o
ECOSOC tem revelado, por notória ineficiência e desorganização, crescentes
dificuldades de funcionamento.
Se, por outro lado, não existir ainda qualquer conflito, outras possibilidades se
abrem. Desta feita, continuando a ser necessário, o consentimento dos Estados é, no
entanto, dado por antecipação (antes e independentemente da ocorrência de
qualquer diferendo ou litígio), convertendo-se, pois, em quase obrigatória ou
compulsória a competência do TIJ. Tal (quase) obrigatoriedade da jurisdição do
Tribunal poderá advir (resultar) de um consentimento convencional ou do encontro de
dois consentimentos unilaterais.
No primeiro caso (consentimento convencional), do que se trata é da conclusão
de convenções bilaterais ou multilaterais (casos, v.g., do Pacto de Bogotá, de 1948, da
Convenção Europeia, de 1957, para a solução pacífica de controvérsias, etc.) versando
o tema genérico da solução pacífica de conflitos, nas quais os Estados parte
reconhecem como obrigatória a jurisdição do TIJ, acordando submeter-lhe futuros
(eventuais) litígios que entre si venham a ocorrer; ou, diversamente, da inserção, num
qualquer tratado, de uma cláusula compromissória (de sujeição) (AFONSO QUEIRÓ),
estipulando esta que será o TIJ a resolver possíveis conflitos emergentes da
interpretação ou aplicação desse tratado (apenas esses) que entre as partes
hipoteticamente se suscitem.
No segundo caso (consentimento unilateral), está em jogo a atribuição de
poderes jurisdicionais ao TIJ mediante a subscrição da cláusula facultativa de jurisdição
obrigatória ou compulsória – o artigo 36.º, nº 2, do ETIJ. Atentemos no seu modo de
funcionamento. Os Estados parte no Estatuto, ou aqueles que a ele adiram, não ficam,
ipso facto, vinculados a todas as suas disposições. Existe uma particular cláusula
(justamente, esse artigo 36.º, nº 2) pela qual eles não ficam automática e
imediatamente obrigados. Para que o fiquem, faz-se necessário que cada um, de per
se, através de um acto jurídico unilateral (uma notificação a enviar ao Secretário Geral
da ONU), declare aceitar a jurisdição obrigatória do Tribunal para todos (ou alguns)
futuros litígios jurídicos. Como se vê, esta cláusula apenas se torna operativa quando
os Estados parte no Estatuto a subscrevem (a título individual). Daí designar-se
facultativa. Mas uma vez subscrita, a jurisdição do Tribunal passa a ser obrigatória,
explicando-se assim a sua designação aparentemente paradoxal. Por outro lado, como
a declaração através da qual um Estado reconhece como obrigatória a jurisdição do
TIJ, nos termos descritos, não pressupõe, antes independe, de qualquer acordo
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especial com outro Estado, há-de ser por força do encontro de dois consentimentos
unilaterais que o Tribunal vai, em concreto, exercer a sua competência contenciosa.
natureza substantiva, com o intuito de excluir certas categorias de litígios do âmbito da declaração
aceitação da competência do TIJ) – facto que, em muito, tem contribuído para limitar o alcance prático
do artigo 36.º, nº 2, do ETIJ.
Recorde-se, a propósito, que foi pelo facto de a Indonésia não ter aceitado a jurisdição
obrigatória do Tribunal (até ao momento, cerca de 75 Estados o fizeram, o último dos quais o Irão, em
2023) que no caso Timor Gap Portugal se viu compelido a demandar apenas a Austrália. Em
consequência disso, o Tribunal viria a não apreciar o fundo da questão por haver entendido tratar-se de
um caso de litisconsórcio necessário (passivo).
Exemplo de aceitação quase irrestrita da competência contenciosa do TIJ é constituído pela
declaração do representante da Suécia à ONU, em 1957: «Em nome do Real Governo da Suécia, declaro
que esta aceita como compulsória ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado
que aceite a mesma obrigação, a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça nos termos do artigo
36.º, parágrafo 2, do Estatuto do referido Tribunal, pelo período de cinco anos a contar de Abril de 1957.
Esta obrigação será renovada por períodos com a mesma duração, salvo se for comunicada a intenção
de a revogar com pelo menos seis meses antes do termo de cada período. A suprarreferida obrigação é
aceite apenas com referência a situações ou factos subsequentes a 6 de Abril de 1947».
Já o Estado português, numa declaração proferida em 19 de Dezembro de 1955, renovada em
2005, aceitou a jurisdição do TIJ com algumas reservas temporais e substantivas, ainda que de alcance
limitado (cfr. Aviso nº 251/2005, de 27/05/2005 – DR – I Série – A, 27 de Maio de 2005).
(artigo 42.º).
O processo compreende duas fases: uma escrita e outra oral (ou dos debates
orais – artigos 43.º e ss.). Em homenagem aos princípios da igualdade das partes e do
contraditório, ambas se encontram minuciosamente reguladas no ETIJ.
Preceitua esse mesmo artigo 43.º, nº 2, que do processo escrito constará a
comunicação ao Tribunal e às partes de memórias, contramemórias e, eventualmente,
réplicas. Se julgado necessário ao cabal esclarecimento dos factos e, portanto, à
descoberta da verdade material, poderá, ainda, o TIJ decidir a realização de algumas
diligências instrutórias, designadamente apresentação de documentos, inquéritos,
vistorias ou visitas aos locais. No processo oral, por seu turno, procederá o Tribunal à
audição de testemunhas, peritos, agentes, consultores e advogados (artigo 43.º, nº 5).
As audiências são públicas (princípio da publicidade das audiências), a menos
que o Tribunal decida o contrário ou as partes requeiram um julgamento à porta
fechada (artigo 46.º).
Logo que os agentes, consultores e advogados tiverem concluído a
apresentação da sua causa, o presidente dará por encerrados os debates, seguindo-se
o momento em que o Tribunal se retira para deliberar (artigo 54.º). As decisões são
tomadas por maioria dos presentes, cabendo ao presidente, ou ao juiz que o substitua,
resolver, com o seu voto de qualidade, qualquer impasse, em caso de empate na
votação (artigo 55.º).
Consagra o artigo 56.º, nº 1, o dever de fundamentação da sentença: «a
sentença deverá declarar as razões em que se funda», conferindo-se aos juízes
vencidos o já referido direito de exporem os motivos da sua discordância, através da
opinião individual ou da opinião dissidente (cfr., supra, ponto VI do Cap. II).
A eficácia das decisões do TIJ circunscreve-se às partes (Estados) litigantes e ao
caso concreto sub judice (artigo 59.º) – regra que pretende excluir a obrigatoriedade
dos precedentes.
Nos termos do artigo 60.º, a sentença é definitiva e inapelável. O que bem se
compreende: havendo um só grau de jurisdição e sendo, portanto, o TIJ, para todos os
efeitos, um tribunal de última instância, não fará sentido, em princípio, recorrer das
decisões por si proferidas… Excepcionalmente, porém, admite-se que, a pedido de
qualquer das partes (demandante ou demandado), o tribunal interprete o acórdão
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pretende evitar que este expediente processual seja abusivamente utilizado para
estender, de forma indirecta, a sua competência, com o consequente desrespeito pelo
princípio do consentimento prévio dos Estados que aceitaram a jurisdição do Tribunal
para um particular conflito. De referir, todavia, que o Estado beneficiário da
autorização para intervir na lide não adquire, ipso facto, o estatuto de parte no
processo. Tal só ocorrerá mediante o consentimento dos litigantes.
ÍNDICE ABREVIADO
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………………………. 2
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334
335
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336
337