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FRANCISCO ANTÓNIO DE MACEDO LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA

DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO

COIMBRA – 2023/24
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INTRODUÇÃO:

Sumário: 1 – Noção de direito internacional. 2 – Direito internacional, direito interestadual ou


direito das gentes? 3 – Direito internacional geral e direito internacional particular. 4 – Direito
internacional público e direito internacional privado. 5 – Direito internacional e moral internacional. 6 –
Direito internacional e cortesia internacional. 7 – As funções do direito internacional. 8 – As expressões
sociedade e comunidade internacional. 9 – A normatividade internacional: problemas estruturais.

Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio
Cassese, Le droit international dans un monde divise, Berger-Levrault, Paris, 1986; Azevedo Soares,
Lições de Direito Internacional Público, 4ª edição, Coimbra Editora, 1988; Bruno Simma, From
bilateralism to Community Interest in International Law, RCADI, 1994 – VI; Cançado Trindade, A
humanização do Direito Internacional, 2ª edição, Del Rey, 2015; Christian Tomuschat, Obligations arising
for States without or against their will, RCADI, 1993 – IV; Gerd Seidel, Die Völkerrechtsordnung na der
Schwelle zum 21. Jahrhundert, Archiv des Völkerrechts, 38, 2000; Francisco Ferreira de Almeida,
Mutações sistémicas e normativas no direito internacional em face de novos desafios, RDCPB, Tomo LX,
Número 326, Maio-Agosto, 2011; Francisco Resek, Direito Internacional Público: Curso Elementar, 17
ed., São Paulo, Saraiva, 2018; Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional
Público, 3ª edição, Almedina, 1993; Hermman Mosler, The International Society as a Legal Community,
RCADI, 1974; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 1965; Jónatas
Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestlegal, 2020; Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito
Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª edição, Almedina, 2020; Jorge
Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia, 2016; Quoc Dinh, Daillier/Pellet,
Droit International Public, LGDJ, Paris, 1994; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition, Cambridge
University Press, 2017; Maria Luísa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global do
Século XXI, AAFDL, 2019; Prpsper Weil, Le droit international en quête de son identité, RCADI, 1992, VI;
Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª edição, Coimbra Editora, 2014; Verdross/Simma,
Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker & Humbolt, 2010.

1 – NOÇÃO DE DIREITO INTERNACIONAL

Ao iniciar-se um curso de direito internacional, caberá, antes de mais,


perguntar qual seja o seu objecto, isto é, a matéria que nele vai ser tratada. O que se
volve, portanto, em reconhecer que, logo à partida, necessitaremos de uma noção da
nossa disciplina que nos habilite a percorrer a via traçada.
Ora, o direito internacional é um ramo da ciência jurídica. Tal significa analisar-
se num corpo de normas jurídicas reguladoras de certo tipo de relações que se
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estabelecem numa determinada sociedade ou agrupamento. Ele é, por outras


palavras, simultaneamente uma ordem normativa e um factor de organização social
(C. ROUSSEAU), não diferindo, nesse particular, de outros ramos do direito.
Mas qual, então, a sociedade a que se aplicam as normas de direito
internacional? Trata-se justamente da denominada sociedade internacional, hoje
constituída por um leque relativamente alargado de sujeitos de direito, a saber, os
Estados, em primeira linha, mas também, em medida crescente, as organizações
internacionais, os povos não autónomos, as minorias, o indivíduo e quiçá até,
conquanto dentro de apertados limites, as próprias organizações não governamentais
e as sociedades transnacionais.
Poderemos assim, na esteira de QUOC DINH/DAILLIER/PELLET e de P.
GUGGENHEIM, definir, em termos formais, o direito internacional como aquele que se
aplica à sociedade internacional. Afirmá-lo, todavia, pressupõe a existência dessa
sociedade internacional ao lado da sociedade nacional ou interna, com o que, do
mesmo passo, e à luz de uma concepção dualista mais radical (cfr., infra, cap. III),
entretanto caída em desuso, se achariam delimitados os campos de aplicação
respectivos do direito internacional e do direito interno: o primeiro, como se referiu,
aplicar-se-ia à sociedade internacional; o segundo, às várias sociedades nacionais ou
internas.

A noção de direito internacional supra-expendida, traduzindo a ligação sociológica e, por isso,


necessária, entre direito e sociedade, serve igualmente para, uma vez mais, atestar a justeza do velho
adágio ubi societas ibi jus; quer dizer, onde existir sociedade, existirá necessariamente direito para a
disciplinar, sendo, em decorrência, todo o direito um produto social (QUOC DIHN/DAILLIER/PELLET).

A verdade, porém, é que importa completar (e, de algum modo, corrigir) a


definição acima proposta com umas quantas precisões suplementares.
Socorramo-nos, para o efeito, dos três principais critérios – cada qual não
isento de reparos, adiante-se – em que, desde há muito, se tem inspirado a doutrina: o
critério dos sujeitos, o critério das matérias reguladas e o critério das fontes (BACELAR
GOUVEIA).
De acordo com o primeiro, e mais antigo, o direito internacional começou por
ser definido como conjunto de normas jurídicas reguladoras das relações entre Estados
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soberanos (FAUCHILLE); posição esta que, em 1927, no âmbito do caso Lotus, o


Tribunal Permanente de Justiça Internacional corroborou. Mais tarde, consumado que
estava um alargamento da personalidade jurídica internacional a outras entidades, foi
aquele ordenamento caracterizado como direito regulador das relações entre os
sujeitos de direito internacional (C. ROUSSEAU).
Bem é de ver, contudo – facto, de resto, assinalado por diversos autores –, que
esta definição enferma de um vício de raciocínio: a qualidade de sujeito de direito
internacional há-de, por força, resultar das próprias normas de direito internacional,
quer dizer, é através destas que determinadas entidades ficam investidas na
titularidade de um conjunto de direitos e obrigações. Daí a objecção da circularidade
ou da petição de princípio que imediatamente suscita.
Igualmente insatisfatório – e hoje de forma evidente – é o critério das matérias
reguladas, assente, como sugere a respectiva designação, no pressuposto da
possibilidade de destrinça entre matérias da competência interna dos Estados e
matérias atinentes à comunidade internacional. Têm, na verdade, surtido infrutíferas
as tentativas (doutrinais e jurisprudenciais) para delimitar, com base em parâmetros
de natureza material, a linha de fronteira entre ordem jurídica interna e ordem jurídica
internacional. Cada vez mais, «a norma de direito internacional pode, em princípio,
regular qualquer matéria e ser dirigida a qualquer entidade…» (GONÇALVES
PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS), com o que se vai paulatinamente comprimindo o
chamado domínio reservado dos Estados (cfr. art. 2.º, nº7 da CNU), essa espécie de
reduto inexpugnável da soberania.
Por fim, de harmonia com o terceiro critério (o das fontes), sobraçado pelo
normativismo de KELSEN, o direito internacional retiraria a sua identidade dos
processos de produção das suas normas. Mais do que aos sujeitos das relações
internacionais, mais do que às matérias susceptíveis de regulamentação internacional,
faz-se apelo às fontes normativas do direito internacional. Estamos, desta feita, por
conseguinte, em presença de um critério simultaneamente formal e funcional, que,
como observa, v. g., AZEVEDO SOARES, negligencia a dimensão axiológica; dimensão
imprescindível para que qualquer ramo de direito se possa reclamar de validade num
determinado contexto espaçio-temporal.
Conclui-se, deste modo, que nenhuma das directrizes apontadas se revela,
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isoladamente, capaz de explicar de forma completa o direito internacional. O que, no


entanto, não há-de significar que se não lhes reconheça préstimo suficiente para,
mediante um exercício conciliatório, estarem na base de uma noção compreensiva
deste domínio do jurídico. Eis, nessa linha de pensamento, a definição que propomos:
o direito internacional é o conjunto de normas jurídicas, criadas por processos de
formação próprios da comunidade internacional, que, ratione materiae, se aplicam,
prioritariamente, nessa comunidade aos respectivos sujeitos de direito.
Como se vê, estão subjacentes a esta noção os três critérios mencionados
acima (o das fontes, o das matérias reguladas e o dos sujeitos, por esta ordem). O
resultado final da correspondente conjugação, nos termos sugeridos, supera, em nosso
entender, as virtualidades que adviriam de uma sua simples justaposição. Com a
vantagem de, ao arrepio de uma concepção dualista mais extremada, se evitar uma
compartimentação artificial, e actualmente inaceitável, entre as matérias que
interessam apenas à comunidade internacional e aquelas que, ao invés, são exclusivas
do direito interno dos Estados.
Teremos ensejo, mais adiante, de dar conta de algumas das especificidades
deste ramo do direito, que, designadamente, se prendem com o seu sistema de fontes,
a sua normatividade, os seus sujeitos, as formas de responsabilidade que admite e os
mecanismos sancionatórios que comporta (cfr., a este propósito, JORGE MIRANDA).

2 – DIREITO INTERNACIONAL, DIREITO INTERESTADUAL OU DIREITO DAS


GENTES?

Para aludir ao direito da sociedade internacional, a expressão habitualmente


utilizada é, todos disso estamos conscientes, «direito internacional», isto é, em sentido
etimológico, direito regulador das relações entre nações ou entre Estados – por
consequência, direito interestadual.

Não se ignora, por certo, que os termos Estado e Nação recobrem realidades não
obrigatoriamente coincidentes. A verdade, porém, é que a expressão «direito internacional» remonta a
um período histórico não muito distante do séc. XIX, tendo sido, como se sabe, por essa altura que, com
base no princípio das nacionalidades, se procurou firmar o entendimento, mais tarde rejeitado, segundo
o qual a cada Estado deveria corresponder uma e uma só nação; ou se se preferir, que toda a nação
teria o direito de se organizar politicamente em Estado.
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Actualmente, no entanto – o que, de resto, resulta já do que dissemos no


número anterior –, a sociedade internacional não mais é constituída apenas por
Estados. As transformações nela ocorridas, maxime a partir da segunda metade do séc.
XX, tendo determinado, entre muitas coisas de relevo, o reconhecimento de
personalidade jurídica internacional a outras entidades, para além do Estado soberano
– sujeito primário e originário –, tornaram-na indiscutivelmente mais vasta e
diversificada.
Parece, pois, legítimo questionar a adequação ao momento presente do termo
«direito internacional», o qual, para alguns, se apresenta como manifestamente
redutor da realidade hodierna; uma realidade diversa daquela para que fora pensado.
De facto, continuando a ser a sociedade internacional, há que reconhecê-lo, uma
sociedade centrada na figura estadual, vai sendo também, e cada vez de forma mais
nítida, uma sociedade de instituições dotadas de verdadeira autonomia e de efectivos
poderes de decisão, de povos com titularidade do direito à autodeterminação que, as
mais das vezes, visam ascender à plena independência ou a um certo grau de
autonomia política e até de indivíduos, que, em certos domínios, passaram a ser
destinatários directos de normas jurídicas internacionais.
Assim é que, em virtude de uma maior abrangência, a expressão «direito das
gentes» – tradução literal do jus gentium Romano – obtém o favor de certa doutrina.
Ela permitiria realmente englobar todos os sujeitos de direito internacional, evitando
inculcar o entendimento erróneo de que o direito internacional se aplica tão-somente
a Estados.
Que dizer acerca deste ponto?
Trata-se, como logo se intui, de um problema menor, de escassa ou nenhuma
relevância prática. Sempre adiantaremos, contudo, que os termos «direito
internacional» e «direito das gentes» são perfeitamente equivalentes, por isso que
intermutáveis, tendo, não obstante, o primeiro uma longa tradição atrás de si, razão
por que continuaremos preferencialmente a utilizá-lo daqui por diante.

3 – DIREITO INTERNACIONAL GERAL E DIREITO INTERNACIONAL PARTICULAR

A sociedade para a qual o direito internacional visa assegurar uma regulação


jurídico-normativa não é, consabidamente, homogénea (QUOC
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DINH/DAILLIER/PELLET). Pelo contrário, sendo formada por Estados política,


económica, social e culturalmente distintos, exibe uma marcada heterogeneidade.
Compreende-se, destarte, que também o direito internacional haja de reflectir essa
diversidade, sendo ele próprio feito da articulação de regras gerais com regras
particulares e especiais.

Para comprovar o que acaba de ser dito, e sem que seja necessário recuar muito no tempo,
basta pensar-se em que a sociedade internacional estava há não muitos anos – mais propriamente no
período da «Guerra Fria» - claramente fraccionada em três blocos distintos de Estados: o bloco dos
países ocidentais, tributários de uma filosofia política liberal e democrática, o bloco dos países
socialistas, que, de uma forma geral, gravitavam em torno da esfera de influência da ex-URSS, e o bloco
dos chamados países do terceiro mundo e em vias de desenvolvimento.
Com a derrocada dos sistemas políticos dos Estados do leste europeu, esbateram-se, no
estertor do séc. XX, as clivagens até então existentes. Mas, reconhecida a imponderação do pré-
anunciado «fim da história», descortinam-se, no dealbar do terceiro milénio, outras e não menos
preocupantes assimetrias. Atente-se, com efeito, v. g., nos graus diversos de desenvolvimento entre os
países do hemisfério norte e os países do hemisfério sul, nas gritantes diferenças culturais e religiosas
entre os Estados ocidentais e os do mundo islâmico – aqui com a preocupante nota do fundamentalismo
–, na singularidade idiossincrática dos povos asiáticos, nos nacionalismos exacerbados que se
manifestam em Estados multinacionais, etc..

A despeito destas diferenças, muito é de notar a existência de uma verdadeira


comunidade jurídica (H. MOSLER), assente na circunstância de todos os sujeitos de
direito internacional, em particular os Estados, estarem submetidos ao mesmo
ordenamento jurídico, ao mesmo direito. Deste modo, fala-se em direito internacional
geral para aludir ao direito (internacional) que se aplica a toda a comunidade
internacional – concepção universal do direito internacional (QUOC
DINH/DAILLIER/PELLET).
Integram esta noção as normas de costume geral, bem como as convenções de
alcance universal, quer dizer, tratados amplamente participados que tenham sido
objecto de um elevado número de ratificações. Diga-se, aliás, que têm sido as próprias
decisões de tribunais internacionais a fazer referência e a louvar-se no chamado
direito internacional geral ou comum, o que demonstra ser não apenas a doutrina a
fazer-se reiteradamente eco de uma ideia de eficácia global (erga omnes) de certas
normas e princípios de direito internacional.
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Numa palavra, o direito internacional geral consubstancia-se no conjunto –


porventura restrito – das normas de maior «amplitude subjectiva» (BACELAR
GOUVEIA) ou «não especificamente vinculativas de alguns» (JORGE MIRANDA), que
são aceites pela comunidade internacional de Estados no seu conjunto.

Recorde-se, a este propósito, o preceituado no art. 53.º da Convenção de Viena Sobre o direito
dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, que, cominando a sanção da nulidade para os tratados que
infrinjam uma norma imperativa de direito internacional – ou de jus cogens – se refere precisamente a
essas normas como sendo aquelas aceites e reconhecidas como tal pela comunidade internacional dos
Estados no seu conjunto.

Não menos exacto, porém, é haver igualmente na comunidade internacional


normas dotadas de uma eficácia, a um tempo subjectiva e objectiva, bem mais
circunscrita. A que se deve tal fenómeno?
Essencialmente, à coexistência de uma sociedade internacional universal com
várias sociedades internacionais particulares (regionais). Estas últimas despontam com
base em afinidades, de índole diversa, que ligam os Estados de uma mesma região. Por
vezes, materializam-se institucionalmente em organizações internacionais, como, v. g.,
sucede com a União Europeia, com o Mercosul, com a União Africana, com a Liga dos
Estados Árabes, etc..
Pois bem, é para o direito aplicável a tais sociedades particulares (constituídas
por um mínimo de dois Estados) que se reserva a designação de direito internacional
particular. E se do direito internacional geral fazem parte, como vimos, as normas de
costume geral e as convenções de carácter universal, aquele, ao invés, é, nas palavras
de AZEVEDO SOARES, composto pelas normas de costume regional e local e, bem
assim, pelas constantes da maior parte dos tratados internacionais (justamente os não
universais).
Refira-se, para concluir este ponto, que, como bem salientam diversos autores,
nem sempre se revela simples a compatibilização entre normas gerais e particulares,
sendo que a importância destas varia na razão inversa e a daquelas na razão directa da
homogeneidade e do grau de integração da sociedade internacional: quanto maior
essa integração, mais tende a sobrepujar-se o direito internacional geral ou comum.
Deverá assinalar-se, em síntese, que é tríplice o contributo regional ou particular para
o ordenamento jurídico internacional, a saber: modificação do conteúdo de certas
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normas – surgidas previamente num determinado contexto –, impedindo que se


convertam em regramentos de alcance geral (caso, v. g., do princípio da liberdade de
navegação fluvial, relativamente ao qual os Estados africanos foram por demais
reticenciosos); adaptação evolutiva do direito internacional geral tradicional (v. g.,
surgimento, a certa altura de uma «nova ordem económica internacional», sob
poderoso impulso dos Estados mais desfavorecidos); e catalisação do aparecimento de
novos institutos de direito internacional geral (v. g., o princípio uti possidetis juris, que,
inicialmente confinado ao âmbito regional americano, se converteu entretanto num
critério de delimitação territorial integrante do direito internacional geral) (cfr., a este
propósito, GONZÁLES CAMPOS/SÁNCHEZ RODRÍGUEZ/SÁENZ DE SANTA MARÍA).

4 – DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Com o direito internacional (público) não deve confundir-se o direito


internacional privado. De facto, em bom rigor, este último é direito interno. Porquê
então o qualificativo internacional – diríamos, algo enganador?
É que, como, v. g., referem BAPTISTA MACHADO e I. MAGALHÃES COLLAÇO, em
causa estão aquelas normas que em cada ordenamento jurídico regulam questões
privadas internacionais. Por outras palavras, existem actos do comércio jurídico que
apresentam conexões com várias ordens jurídicas («relações “plurilocalizadas”»),
importando então que as chamadas regras de conflitos de cada Estado remetam para a
lei (interna) declarada competente para os resolver. Ex.: um comerciante português,
estabelecido no Porto, conclui em Inglaterra um contrato de venda de vinho do Porto
com um comerciante inglês, estabelecido em Londres (exemplo de BAPTISTA
MACHADO); A, português, pretende casar-se em Londres com B, cidadã francesa. Qual
a lei aplicável a estas situações?
Pode, assim, dizer-se que o direito internacional privado é um «direito interno
de remissão» (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS), contido, essencialmente,
entre nós, no Código Civil (arts. 15.º e ss.). O seu carácter “inter-nacional” advém,
portanto, apenas e tão-só, de não se quedar confinado às fronteiras dos respectivos
Estados de nacionalidade (ou de residência) o relacionamento jurídico entre as
pessoas, nem, em virtude disso, a circulação de bens, serviços e capitais.
É certo que abundam convenções internacionais de uniformização, versando o
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direito de conflitos. O seu propósito é o de evitar as discrepâncias do direito


internacional privado dos diferentes países (JORGE MIRANDA), mas a verdade é que
apenas formalmente (quanto ao processo de produção jurídica) tais instrumentos
normativos são de direito internacional público. Do ponto de vista do seu objecto, que
não da sua roupagem jurídico-formal, continua a estar-se em presença de normas de
direito internacional privado.
O direito internacional público, por seu turno, conforme vimos já, constitui-se
através de processos técnicos específicos (costume, convenção internacional, actos
jurídicos unilaterais, etc.) e regula as relações que, na vida internacional, e sob o
predomínio de determinados interesses públicos, se estabelecem entre os respectivos
sujeitos.

Arredia da realidade dos factos nos parece, deste modo, a posição outrora defendida por
JESSUP, para quem caberia acolher a designação genérica «transnational law», apta, segundo pensava,
a significar toda a lei disciplinadora de actos que extravasam das fronteiras nacionais.
Por motivos diversos, permitimo-nos não acompanhar também MARQUES GUEDES quando
parece propugnar uma distinção entre o direito internacional público e o direito internacional privado,
fundada no facto de o primeiro regular relações entre sujeitos de direito público e o segundo relações
entre sujeitos de direito privado. Na verdade, como advertem GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS, nem o direito internacional público regula hoje, exclusivamente, relações entre sujeitos de
direito público, nem o direito internacional privado disciplina, predominantemente, relações jurídicas
substantivas.

5 – DIREITO INTERNACIONAL E MORAL INTERNACIONAL

A distinção entre o direito internacional e a moral internacional não levanta à


partida especiais dificuldades. Se, por um lado, os ditames da moral são extra-jurídicos,
só episodicamente inspirando as normas de direito internacional ou compelindo os
Estados a adoptá-las, por outro, nas zonas em que ambos os domínios se intersectam
(casos, v. g. do direito internacional humanitário, do direito internacional dos direitos
humanos, do direito internacional penal, etc.), ainda assim a violação dos respectivos
preceitos acarreta, necessariamente, consequências diferenciadas: a infracção a uma
norma de moral internacional (v. g., a recusa de auxílio a um Estado assolado por uma
catástrofe ambiental grave ou por uma qualquer situação de urgência humanitária)
gera um mero juízo de censura da parte da comunidade internacional, ao passo que a
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violação de uma obrigação (jurídica) internacional (v. g., o incumprimento de um


tratado) faz desencadear determinados mecanismos de coerção (responsabilidade
internacional do Estado autor do acto ilícito), traduzidos, entre outros efeitos
admissíveis, num dever de reparação dos danos causados ao Estado vítima.
Conclui-se, pois, que a par da moral individual existe uma moral social,
disciplinando esta as relações dos sujeitos dos vários agrupamentos ou instituições
sociais, entre os quais a comunidade internacional, sendo certo que, como sublinha
AFONSO QUEIRÓ, alguns dos seus preceitos obrigam, inclusive, os Estados a adoptar
comportamentos conformes ao direito internacional, contribuindo para assegurar a
eficácia deste. A respectiva violação não legitima, porém, qualquer medida de resposta
ou represália por parte do Estado que sofra os efeitos de tal incumprimento.

6 – DIREITO INTERNACIONAL E CORTESIA INTERNACIONAL

A cortesia internacional (comitas gentium) designa um conjunto de regras


protocolares, de bom trato e urbanidade, vagamente inspiradas em postulados de
carácter moral, que os Estados observam nas suas relações recíprocas e que têm nos
cerimoniais diplomáticos o seu âmbito privilegiado de aplicação.
Tradicionalmente, é com base num critério subjectivo que se procura distinguir
a comitas gentium do direito internacional: com efeito, ao serem adoptadas sem
qualquer sentimento de obrigatoriedade jurídica, tais regras de cortesia não lograriam
tanger o domínio do jurídico, havendo, por isso, que qualificá-las como meras práticas
ou usos sociais. Mas também à luz de uma directriz de pendor objectivo (a menor
dignidade do correspondente valor social), não deixariam elas de apartar-se das
normas jurídicas internacionais (CORREIA BAPTISTA).
A verdade, contudo, é que não faltam autores, designadamente na doutrina
espanhola (casos, v.g., de AGUILAR NAVARRO e TRUYOL Y SERRA), a contestar a
natureza meramente protocolar das regras em causa. Dever-se-ia, efectivamente,
reconhecer-lhes uma normatividade específica, muito próxima da normatividade
jurídica. Pela nossa parte, aderimos à distinção clássica, acima exposta. O que, todavia,
nos não impede, na esteira de CORREIA BAPTISTA, de relevar o carácter muito ténue
da fronteira que, em determinadas circunstâncias, demarca as diferentes
normatividades (as extra-jurídicas e a jurídica). Assim como, por outra parte (e
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exactamente em virtude disso), não contestamos que certas regras de cortesia


internacional possam, a certa altura, converter-se em normas (jurídicas) de costume
internacional: pense-se, por ex., entre outras, na regra que determina a prestação de
honras aos chefes das missões diplomáticas aquando da apresentação das credenciais
respectivas às autoridades do Estado acreditador, à qual dificilmente hoje se poderá
negar uma natureza consuetudinária.

7 – AS FUNÇÕES DO DIREITO INTERNACIONAL

Deixámos já dito que o direito internacional, sendo uma ordem normativa, e


pelo facto de o ser, constitui um factor de organização social. Cumpre agora, de uma
forma mais pormenorizada, averiguar em que se concretiza afinal essa função de
organização que ao direito internacional está cometida desde as suas origens.
Para o sabermos, no entanto, importa que nos detenhamos, pouco que seja,
nas particulares circunstâncias históricas em que surgiu o direito internacional na sua
forma moderna.

É, sem dúvida, na época pré-estadual – na Antiguidade Clássica e na Idade Média – que se


encontram as verdadeiras origens do direito internacional. As primeiras normas reguladoras de relações
intercomunitárias correspondem, com efeito, a uma necessidade desde sempre sentida a partir do
momento em que os homens se começaram a organizar em sociedades políticas. Simplesmente,
enquanto ramo autónomo da ciência jurídica, o direito internacional é contemporâneo do Estado
moderno. É por isso, como oportunamente refere J. L. BRIERLY, que só atentando no específico contexto
em que foram moldados os Estados europeus resultará possível compreender, com exactidão, as
funções a cujo cumprimento o direito internacional está adstrito.

De entre os vários obstáculos que, durante a Idade Média, entravaram a


concentração de poderes que é própria do Estado moderno, dois merecem destaque
especial.
O primeiro foi o feudalismo, que, em traços gerais, se pode caracterizar como
um sistema de organização social baseado na propriedade da terra e em laços de
permuta, serviço e lealdade entre vassalos e seus senhores. A patente inexistência de
autoridades centrais fortes e a correlativa fragmentação dos centros de poder, tornam
abusivo, nesta altura, falar-se de Estados soberanos, tal como hoje os conhecemos.
Paradoxalmente, no entanto, a concepção feudal da sociedade legou aos
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futuros Estados nacionais unificados um património de ideias que moldaram uma nova
concepção do poder (J. L. BRIERLY). Assim, o dever de lealdade do vassalo perante o
senhor convolou-se no dever de fidelidade do súbdito perante o rei; a assimilação, por
outro lado, de direitos de natureza política a verdadeiros direitos de propriedade,
favoreceu o entendimento do governo como poder concentrado ou centralizado
(ibidem).
O segundo factor que condicionou o nascimento dos Estados modernos
reconduz-se à influência retardadora que a Igreja exerceu na consolidação da
autoridade civil. Com o movimento da Reforma, todavia, os Estados forcejaram por
emancipar-se (libertar-se) da tutela do poder espiritual e criaram, em definitivo,
condições para a instauração de uma nova ordem política na Europa (o sistema
europeu de Estados).
Os tratados de paz de Westefália – o de Osnabruck e o de Münster – que, em
1648, puseram termo à sangrenta guerra religiosa dos Trinta Anos, marcam, no
continente europeu, o início de uma nova era, assente na emergência de entidades
soberanas e independentes, colocadas num plano, ao menos jurídico-formal, de
perfeita igualdade.

Não é certamente por acaso que os tratados de Westefália – concluídos entre os vários
implicados na Guerra dos Trinta Anos (a França, a Espanha, as Províncias Unidas, o Sacro Império
Romano-Germânico, a Suécia e a Dinamarca), consubstanciando um jus publicum europeum (WLADIMIR
BRITO), são não raras vezes apelidados de Carta Constitucional da Europa . De facto, por meio deles, os
senhores e príncipes europeus reclamaram liberdade para gerir os seus próprios assuntos, recusando
submeter-se a uma autoridade superior. Com a paz de Westefália soou o toque de finados pela Res
Publica Christiana; de um lance, parecia ter-se consumado a derrota do Império e a do Papado,
estabelecendo-se, num contexto de liberdade religiosa, a igualdade entre católicos, luteranos e
calvinistas. Acresce que dois dos mais importantes princípios vertebradores do ordenamento jurídico
internacional aí obtiveram, desde logo, acolhimento: o princípio da soberania e o da igualdade dos
Estados. Nos anos subsequentes à celebração dos tratados de Westefália, a França a Suécia e a
Dinamarca afirmam-se progressivamente como potências emergentes do continente europeu; a Suíça,
por seu turno, converte-se em Estado neutral, ao passo que a Alemanha se divide em pequenos Estados
e o Império hispânico dá mostras de uma inexorável decadência. Assim se manterá a sociedade
internacional (ainda exclusivamente europeia) até à Revolução Francesa e ao Império Napoleónico. Com
a derrota de Napoleão, em 1815, o Congresso de Viena deu origem ao chamado Concerto Europeu,
através de conferências diplomáticas – um arremedo de sistema de segurança colectiva entre as
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grandes potências europeias da época – a Áustria, a França, a Grã-Bretanha, a Prússia e a Rússia


(GUTIÉRREZ ESPADA/CERVELL HORTAL).

Foi, deste modo, num contexto de subalternização do poder da Igreja,


propiciado pela Reforma, e de uma renovada ambiência cultural e intelectual, saída do
Renascimento, que nasceram os Estados modernos. O novo statu quo, porém,
comportava riscos evidentes, designadamente o da institucionalização de um clima de
anarquia e de violência entre aquelas comunidades soberanas, que, de si próprias,
tinham a ideia de communitates perfectae e não estavam, na sua actuação, limitadas
por qualquer autoridade política superior.
A doutrina da soberania, por seu turno, formulada em 1576 por JEAN BODIN na
sua obra de teoria política De Republica, e os desenvolvimentos ulteriores que lhe
foram dados, sobretudo por THOMAS HOBBES no Leviathan, concorreram igualmente
para adensar as razões de apreensão quanto ao futuro previsível das relações
internacionais.
Ora, perante tal circunstancialismo tornou-se imperioso fundar aquelas
relações num «ideal unificador» (J. L. BRIERLY). Que ideal seria esse?
Seria, já se vê, o da submissão dos vários Estados seculares e territoriais a um
conjunto de normas reguladoras das suas relações recíprocas; normas essas que,
portanto, pudessem obviar ao sobredito clima de caos e violência que, com toda a
probabilidade, se instalaria caso as novas entidades soberanas e independentes se não
achassem ligadas pela supremacia do direito.
Estas são, pois, como sublinha CARRILLO SALCEDO, acompanhado, neste ponto,
pela generalidade dos autores, as raízes do moderno direito internacional, as quais, em
simultâneo, nos revelam as duas funções que, desde o início da sua existência, ele é
chamado a desempenhar: por um lado, compete-lhe permitir a coexistência entre
Estados heterogéneos, mas juridicamente iguais, num clima de paz, por outro, cabe-
lhe satisfazer necessidades e interesses comuns que, entretanto, começaram a surgir
entre os membros da comunidade internacional. Coexistência e cooperação: eis, em
resumo, as duas funções principais que dialecticamente estão cometidas ao direito
internacional desde a paz de Westfália, no séc. XVII.
15

Diga-se, aliás, que o próprio Tribunal Internacional de Justiça tem confortado, em algumas das
suas decisões, este entendimento das coisas, ao considerar o direito internacional como um garante da
independência dos Estados e um instrumento para a cooperação entre eles. Vejam-se, a título
meramente exemplificativo, os acórdãos proferidos nos casos das Actividades militares e paramilitares
na Nicarágua e contra esta (ICJ Reports, 1986) e do Pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos
em Teerão (ICJ Reports, 1980).
O dualismo coexistência/cooperação espelha, de resto, as duas pulsões conflituantes com que
se confrontam os Estados nas relações internacionais: a da independência e a da Interdependência. À
primeira, melhor se afeiçoa a função da coexistência; à segunda, a da cooperação. No que,
especificamente, se refere a esta, sublinhe-se que actualmente tendem a prevalecer os mecanismos
institucionalizados e permanentes de cooperação, sob os auspícios de organizações internacionais
universais e regionais – facto que, de certo modo, representa o epílogo de um paradigma clássico,
assente num sistema de Estados auto-suficientes e numa concepção absoluta de soberania.

8 – OS TERMOS SOCIEDADE E COMUNIDADE INTERNACIONAL

Chegados a este ponto, parece-nos conveniente procurar esclarecer uma


questão que contende afinal com tudo aquilo que até aqui fomos dizendo. Abstraindo
agora das considerações expendidas no ponto 1, usa, na verdade, definir-se o direito
internacional como aquele que se aplica à sociedade internacional. Certo é, todavia,
que ele é também muitas vezes apresentado como sendo o direito da comunidade
internacional.
Ora, a despeito de, nos números anteriores, termos vindo a utilizar
indistintamente os dois termos, importa tornar claro que, em bom rigor, eles não são
sinónimos.
Fica efectivamente a dever-se a uma conhecida teoria sociológica alemã, da
autoria de F. TÖNNIES, a distinção entre Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft
(sociedade). A tal propósito, escreve, entre nós, MARCELLO CAETANO: «…a primeira
será, pois, um produto espontâneo da vida social que se estrutura naturalmente,
enquanto a segunda resulta da vontade dos indivíduos manifestada em obediência a
um certo propósito que os leva a juntar-se e a colaborar entre si. Desta maneira
encontramo-nos nas comunidades, mas entramos nas associações. Na comunidade os
membros estão unidos apesar de tudo quanto os separa; na associação permanecem
separados apesar de tudo quanto fazem para se unir».
16

Outro grande sociólogo alemão, MAX WEBER, não deixando de fundar a aludida distinção entre
comunidade e sociedade em critérios idênticos aos acima explicitados, adverte, contudo, para o facto de
corresponderem a tipos ideais essas duas formas de relação social, raramente encontrando tradução fiel
na realidade. Pode assim dizer-se que, por via de regra, os elementos societários coexistem com os laços
comunitários, havendo que tomar em linha de conta os caracteres predominantes, em ordem a
qualificar, com um mínimo de rigor, um dado grupo como comunidade ou como sociedade. Ficou a
dever-se a G. SCHWARZENBERGER a mais lograda tentativa de transposição desta teoria para o âmbito
do direito internacional, considerando este autor que a soberania dos Estados potencia o individualismo
e, nessa medida, constitui um factor de conflito e de desagregação, sem dúvida, mais poderoso do que
os também indiscutíveis elementos de união.

Resulta do exposto que em qualquer agrupamento se encontram entre os seus


membros interesses comuns e interesses divergentes ou, dito de outra forma, factores
de agregação ou aproximação e factores de conflito, ruptura ou afastamento. Pois
bem, de acordo com a teoria a que nos temos estado a reportar, na comunidade os
primeiros sobrelevam os segundos, passando-se exactamente o contrário na
sociedade.
Assim sendo, será agora mister perguntar quais sejam as características
prevalecentes na sociedade (ou comunidade) internacional. Que dizer então acerca
deste problema?
À primeira vista, o conceito de comunidade internacional constituirá uma pura
utopia. Com efeito, são profundos os desequilíbrios e os factores de divisão entre os
Estados no mundo actual. As diferenças étnicas, culturais e civilizacionais, os conflitos
ideológicos e políticos, o enorme fosso que separa os países ricos dos países pobres,
etc., tudo milita em favor de uma conclusão que se afigura indiscutível: são por demais
evidentes os elementos de tensão na sociedade internacional, de tal sorte que parece
não haver aí lugar para a coesão, a solidariedade e a afectividade que os laços
comunitários necessariamente pressupõem. Talvez por isso o direito internacional
regule essencialmente, ainda hoje, «relações horizontais de simples coordenação»
(GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).
Não obstante, é também inquestionável a existência nas relações
internacionais de um importante elemento subjectivo que radica na vontade de os
Estados viverem em comum, apesar de tudo quanto os afasta. Sentimento esse que o
consenso em torno de uns quantos valores e princípios fundamentais (de jus cogens),
17

correspondentes a outras tantas exigências mínimas de sã convivência, terá,


entrementes, robustecido. Pense-se, entre outros, no valor irredutível da paz, no da
dignidade fundamental da pessoa humana, no da cooperação e interdependência
económica – que se manifesta, v. g., na luta contra o subdesenvolvimento –, no da
sustentabilidade ambiental, no do combate ao terrorismo e a outros crimes
internacionais (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra), etc..
Ao que acaba de ser dito, pode ainda acrescentar-se, na peugada de autores
como H. MOSLER, que o vínculo comunitário assenta, de igual modo, na consideração
da sociedade internacional como comunidade jurídica, isto é, na circunstância de todos
os Estados estarem submetidos ao mesmo ordenamento jurídico e,
consequentemente, subordinados verticalmente às instituições encarregadas de o
aplicar, sobretudo, como é bom de ver, à ONU.
Como quer que seja, parece claro que perpassam dois movimentos antinómicos
nas relações internacionais (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET): de um lado, a tendência
para os Estados afirmarem a sua soberania e independência; de outro, a sua aspiração
a uma verdadeira comunidade. Ora, o direito internacional nasce destas duas
dinâmicas de sinal contrário, tendo precisamente por finalidade – tanto quanto isso se
revele exequível – compatibilizá-las e harmonizá-las.
Embora se esteja «diante de uma realidade extremamente complexa e
dinâmica» (JÓNATAS MACHADO), não cabe dúvida que a um direito internacional
clássico tem vindo a suceder um direito internacional moderno, forjado no pós-
Segunda Guerra Mundial, que não repousa já na soberania absoluta e intangível do
Estado, mas que, cada vez mais, se vai abrindo a novos domínios onde prevalecem a
coesão e a solidariedade (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Vale isto por
dizer que, nos últimos anos se assiste a um reforço dos laços comunitários num
agrupamento onde antes claramente predominavam as características societárias.
Teremos, de qualquer modo, ocasião de voltar a este assunto no capítulo dedicado à
evolução histórica do direito internacional.

9 – A NORMATIVIDADE INTERNACIONAL: PROBLEMAS ESTRUTURAIS

Parece-nos oportuno, neste último número da introdução geral ao nosso curso,


dedicar algumas considerações, ainda que necessariamente esparsas e perfunctórias, à
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normatividade internacional e a algumas das indefinições que na hora actual a


percorrem em resultado de uma evolução que originou alterações significativas em
muitos dos seus pontos fulcrais. Tarefa que será, de resto, tão mais necessária quanto
é certo que para quem se inicie no estudo desta disciplina tomando como modelo
paradigmático o direito interno, emanado das ordens estaduais, esse primeiro
contacto com o direito internacional não deixará porventura de lhe causar alguma
perplexidade. E porquê?
Tal resulta fundamentalmente da estrutura primitiva – rectius, descentralizada
– da sociedade internacional, em que inexistem, ou pelo menos escasseiam, órgãos
superiores aos Estados capazes de assegurar o controlo dos seus comportamentos
através do exercício das três funções típicas que, de acordo com a divisão tripartida de
poder proposta por MONTESQUIEU, devem centralizadamente ser levadas a cabo em
qualquer ordem jurídica.

Referimo-nos, como se sabe, à função de criação de direito, isto é, de emanação autoritária de


normas gerais e abstractas, destinadas a disciplinar as relações entre os sujeitos de direito internacional
(poder legislativo); à função de dirimir, em termos compulsórios, os seus conflitos à luz das normas
jurídicas existentes, com a consequente cominação das sanções que se julguem adequadas (poder
judicial); e, finalmente, à de efectivação coactiva dessas sanções sempre que tal se revele necessário
(poder executivo).

Daí o dizer-se que não há na comunidade internacional “ni législateur, ni juge ni


gendarme” (cfr., neste ponto, AFONSO QUEIRÓ).
Não sendo isto exactamente assim – sobretudo, desde a segunda metade do
século XX –, certo é que são gritantes as diferenças estruturais entre aquela
comunidade e as comunidades internas ou estaduais; o que não deixará reflexamente
de importar a existência de especificidades próprias do direito internacional, que, em
medida considerável, o apartam do figurino do direito interno, com origem em
entidades dotadas de uma forte coesão e de um elevado grau de institucionalização.
É, pois, nesses particularismos que doravante iremos atentar com o objectivo
de tornar claras algumas das fragilidades – se é que de fragilidades se trata – do
ordenamento jurídico internacional.
Genericamente, dado o característico processo de formação da maior parte das
normas jurídico-internacionais, pode afirmar-se, com P. WEIL, que o direito
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internacional se apresenta ainda eivado de lacunas e de interstícios em determinados


domínios; que dele fazem parte, por outro lado, normas com um conteúdo algo
controverso ou polémico, o que, como é bom de ver, redunda numa sua relativa
ineficácia; e que, além disso, é também formado por outras, demasiado vagas e
imprecisas, carecidas de uma concretização ou densificação que as torne realmente
operativas. A tudo isto acresce, por derradeiro, uma evidente insuficiência de
mecanismos sancionatórios.

Muitos exemplos se poderiam fornecer para comprovar o que acaba de ser dito. Bastará, no
entanto, para esse efeito, que pensemos no conteúdo incerto de alguns dos princípios basilares do
moderno direito internacional – v. g., o princípio da autodeterminação, o do respeito pelos direitos
fundamentais da pessoa humana, o da cooperação, o da boa-fé, etc. –, em algumas das novas regras
sobre a apropriação de recursos naturais, e que, nomeadamente, para certos espaços internacionais
estão na base do surgimento do conceito, algo controvertido, mas actualíssimo, de património comum
da humanidade; ou, num outro plano, na indefinição de algumas das consequências sobrevindas à
prática dos actos ilícitos (em particular, os mais graves) e no funcionamento ainda demasiado aleatório
da justiça internacional.

Para além, todavia, desse primeiro juízo incidente na normatividade


internacional, será importante que aprofundemos um pouco o nosso estudo,
recorrendo a três níveis distintos de análise, que se reconduzirão afinal a outros tantos
problemas a que seguidamente caberá aludir e à volta dos quais convirá fazer uma
breve reflexão crítica. São eles o problema do limiar ou fronteira da normatividade, o
da gradação da normatividade e, por fim, o da diluição da normatividade. Foram
identificados por PROSPER WEIL num célebre estudo publicado, há já largos anos, na
Revue Générale de Droit International Public e amadurecidos, mais tarde, num curso
ministrado pelo autor na Academia de Direito Internacional, na Haia. Ambos os textos
conservam grande actualidade e pertinência.

O primeiro problema referido – o do limiar ou fronteira da normatividade –


transporta-nos para o conceito de soft law em direito internacional (direito “mole”,
“macio” ou frágil), que se opõe à hard law (direito “duro”).
Ora, a soft law designa aquelas normas vagas, imprecisas, pouco impositivas,
que se encontram com frequência no sistema normativo internacional, cujos direitos
conferidos e obrigações impostas se apresentam algo indefinidos para os destinatários
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respectivos. Em virtude desse conteúdo pouco perceptível, muitos as designam como


normas meramente exortatórias, incitativas ou programáticas. Têm o seu campo
dilecto de incidência nas resoluções recomendatórias das organizações internacionais
e, bem assim, naquelas disposições convencionais, ambíguas e escassamente
constrangedoras, por intermédio das quais as partes signatárias se comprometem
simplesmente, v. g., a «consultar», a «promover» a «envidar esforços no sentido
de…», a «evitar», a «tomar as medidas adequadas para…», a «agir tão rapidamente
quanto possível», etc.. Mas também algumas normas costumeiras, designadamente as
que, ao longo dos tempos, têm vindo a ser certificadas pela jurisprudência arbitral
internacional (em particular, no âmbito do direito do mar), apresentam essa natureza
soft.
Em reverência a um propósito depurador, e acompanhando de perto P. WEIL,
impõe-se, contudo, desde já, fazer a distinção entre a soft law quanto ao instrumento
(soft law do instrumentum) e a soft law quanto à substância (soft law do negotium).
A primeira reporta-se ao instrumento que veicula a norma, isto é, ao processo
técnico (fonte formal) através do qual a norma é revelada. Por exemplo, uma
convenção internacional não ratificada, embora possa codificar ou estar na origem da
formação de uma norma de costume, é, por si só, um instrumento de soft law. O
mesmo se passa, decerto, com uma recomendação emanada de uma organização
internacional. Inversamente, um tratado assinado, ratificado e já entrado em vigor é,
indubitavelmente, um instrumento de hard law.
A segunda, por sua vez, diz respeito ao conteúdo material da norma. Este será
soft logo que, como se disse acima, estejamos em presença de normas imprecisas,
ainda que inseridas num tratado já em vigor. Será hard, pelo contrário, se as normas
em causa forem precisas e minudenciosas, impondo às partes obrigações jurídicas bem
definidas.
Claro está que as duas acepções acabadas de referir poderão, em concreto,
coincidir ou não. Uma disposição clara, precisa e impositiva acolhida numa convenção
internacional devidamente ratificada pelas partes será hard law quer quanto ao
instrumento de que brotou quer no tocante ao seu conteúdo material. Assim como,
reciprocamente, um preceito vago, indefinido e pouco constrangedor inserido numa
resolução recomendatória será soft law no que tange a esses mesmos dois aspectos. Já
21

o mesmo não sucederá, porém, caso um tratado em vigor para os signatários (hard
law) enuncie direitos e obrigações de conteúdo indefinido e escassamente perceptível
(soft law) ou, em sentido inverso, uma norma precisa e detalhada (hard law na
substância) haja sido vertida numa resolução da Assembleia Geral da ONU (soft law no
que se refere ao instrumento).
Interessa-nos aqui, em especial, a dimensão material da soft law. E a esse
respeito uma interrogação, desde já, se levanta: não constituirá a soft law um
fenómeno patológico da normatividade internacional? Por outras palavras: a
versatilidade normativa do direito internacional que ela deixa a descoberto não terá
como consequência a sua descredibilização ou até a sua falência enquanto ordem
jurídica?
Parece-nos bem que não. É próprio do direito, como salientou KELSEN, um
mínimo de eficácia, não uma eficácia total. E esse mínimo de eficácia pode advir de um
espontâneo acatamento das normas que fazem parte de uma determinada ordem
jurídica – diríamos até que advirá sobretudo daí –, não derivando, pois,
necessariamente, da sua imposição coerciva. Acresce que, caso nos consigamos
libertar de critérios de excessivo rigor formal, não custará admitir que ao direito
“frágil” ou “fraco”, como amiúde se designa também a soft law, se ligam indiscutíveis
virtualidades que importa não negligenciar.
Assim, desde logo, estamos em presença de normas que os Estados se
predispõem a aceitar mais facilmente porque menos “afrontosas” para a sua
soberania, não reduzindo a zero a sua liberdade de actuação e desempenhando, desse
modo, a necessária função de “válvula de escape” do sistema. Para mais, pouco
eficazes no imediato, elas são susceptíveis, a prazo, de se converter em normas
costumeiras (hard), em resultado de uma sua geral aceitação e aplicação por parte dos
sujeitos de direito internacional. Nenhuma razão sobeja, por conseguinte, para que a
soft law seja encarada como um fenómeno patológico da normatividade internacional.
Pelo contrário: a existência de normas dotadas de fraca coercibilidade perfeitamente
quadra e se coaduna com a estrutura desorganizada (pouco institucionalizada) da
sociedade internacional, constituindo inclusive um factor de progresso e evolução do
direito internacional.
Adiante-se que a questão do limiar da normatividade, isto é, da fronteira entre
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os actos não normativos e aqueles que, ao invés, relevam já do domínio do jurídico, se


coloca em qualquer ordem jurídica, mas ganha particular acuidade no sistema
normativo internacional, dadas as características próprias da sociedade que ele visa
regular e atentos os procedimentos de criação de direito aí prevalecentes.
Às múltiplas formas de actuação dos vários sujeitos de direito (em particular, os
Estados), corresponde uma diversa natureza dos actos em que se materializa essa
actuação, a tal ponto, que, para alguns deles, se torna problemático afirmar com
segurança se terão já transposto ou não esse limiar da normatividade.
Partindo desta ideia, alguns autores empregam a expressão soft law numa
acepção diversa daquela que até aqui temos acolhido: existiriam, de facto,
determinadas regras que, a despeito de não haverem ainda transposto a mencionada
fronteira da normatividade e de, nessa medida, relevarem do domínio do pré-jurídico,
produziriam, ainda assim, certos efeitos de direito. Em concreto, delas não resultaria
qualquer obrigação, mas teriam, não obstante, um valor permissivo ou ab-rogatório
Permissivo, porque constituiriam um título cuja consequência mais saliente seria a de
impedir que aqueles que com elas se conformassem praticassem um acto ilícito e,
portanto, se tornassem incursos em responsabilidade internacional. Ab-rogatório, pois
que, não criando direito novo, teriam, sem embargo, a virtualidade de revogar normas
preexistentes, deixando os Estados livres para cessarem de as observar.

Não cremos, todavia, que assim seja. Afigura-se-nos, com efeito, extremamente duvidoso que
actos não jurídicos possam, como que por alquímica metamorfose, produzir de efeitos jurídicos… A ter,
na verdade, de admitir-se uma tal conclusão, estar-se-iam, julgamos, a tornar totalmente evanescentes
as fronteiras entre o mundo do direito e outros domínios que com ele apresentam alguns pontos de
contacto, postergando, de modo inaceitável, a estabilidade, a certeza e a segurança que devem
caracterizar qualquer ordem jurídica e, quiçá sobremodo, a ordem internacional. Assim, obrigações que
se situem no terreno pré-jurídico não são soft nem hard, visto que ambos os qualificativos se deverão,
neste âmbito, confinar ao mundo jurídico.

Em concreto, o tema do real alcance das resoluções das organizações


internacionais (sobretudo, as recomendações) – pelo qual passa muito da discussão
em torno da soft law –, tem sido objecto de acesa disputa entre os autores. A ausência
de força obrigatória de uma recomendação, não obsta a que, a par do seu impacto
político, lhes reconheçamos um certo valor jurídico (não normativo), que seria erro de
23

monta depreciar. De facto, a mais de impender sobre os destinatários (Estados


membros da organização internacional de que emanam) um dever de a examinar de
boa-fé, e de não se desencadearem, para aqueles que efectivamente adoptem
comportamentos afeiçoados ao respectivo conteúdo, as consequências jurídicas que a
prática de uma acto internacionalmente ilícito ocasiona, ainda lhes poderá ser
assacado um papel fundamental na formação das normas de costume internacional. A
estes assuntos voltaremos, todavia, mais à frente.

O segundo problema que caberá dilucidar, prende-se com a gradação ou


hierarquização da normatividade internacional, alegadamente ocorrida nas últimas
décadas. Debrucemo-nos sobre ele continuando a acompanhar P. WEIL.
Tradicionalmente, a ordem jurídica internacional é uma ordem não
hierarquizada; horizontal, acaso a pretendêssemos representar graficamente. Em
flagrante contraste com os direitos internos, organizados em “pirâmide normativa”
(Constituição, lei, regulamento, acto administrativo, etc.), todas as normas de direito
internacional, independentemente da sua origem formal (tratado, costume, etc.), do
seu conteúdo e do seu objecto, têm valor idêntico, situando-se no mesmo plano.
É sabido, no entanto, que o advento da Segunda Guerra Mundial, com as
nefastas consequências que viria a acarretar para a Humanidade, trouxe mudanças
profundas à estrutura e ao pulsar da sociedade internacional; mudanças essas que
viriam depois a ter indeléveis refracções no plano normativo e que, de forma simples,
podemos substanciar na seguinte ideia: a um bloco único e paritário de normatividade
– isto é, a um corpo homogéneo de normas prescritivas, proibitivas ou permissivas –
terá sucedido um sistema normativo hierarquizado. Depois de uma gradação na base
(soft law versus hard law), a que aludimos no número anterior, estar-se-ia agora
perante um esboço de gradação no topo, com «normas de autoridade reforçada» -
uma espécie de «super-direito». Que factores terão concorrido para tal
hierarquização?
Em primeiro lugar, a teoria do jus cogens, que, partindo de uma ideia de ordem
pública internacional, assenta numa summa divisio entre normas imperativas e normas
simplesmente obrigatórias; respectivamente, portanto, um jus strictum e um jus
dispositivum à semelhança do que se verificava no Direito Romano.
24

Tal ideia de ordem pública internacional passou a ser defensável a partir do momento em que
se admitiu a existência de um núcleo de valores reputados de fundamentais e indisponíveis pela
consciência jurídica geral da comunidade internacional. Alguns desses valores ditos essenciais
encontram-se positivados nos princípios fundamentais do direito internacional, enunciados na CNU e
reafirmados em diversos textos normativos, de entre os quais se destaca a Resolução 2625 (XXV) da
Assembleia Geral, de 24 de Outubro de 1970, também conhecida por «Declaração dos 7 princípios», em
virtude de serem exactamente sete os princípios nela vertidos: princípio da proibição do recurso à força
nas relações internacionais, princípio da solução pacífica dos conflitos, princípio da não ingerência ou
não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados, o dever de cooperação, o princípio da
autodeterminação, o princípio da igualdade soberana dos Estados e, por último, o princípio da boa-fé.
Todos os princípios acabados de referir condicionam materialmente a actuação dos sujeitos de
direito internacional, impondo-lhes a observância de obrigações de valor constitucional, sendo que,
relativamente a alguns deles, os autores não hesitam em atribuir-lhes a natureza de jus cogens.

Ao conceito de jus cogens está, pois, associada uma ideia de «escala de


normatividade» (P. WEIL), em tais termos que as normas imperativas por tutelarem
interesses fundamentais da comunidade internacional, são hierarquicamente
superiores às demais que integram o corpus do direito internacional vigente. Isto
explica, aliás, que na Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969, se
preveja a invalidade (nulidade absoluta) dos tratados que contrariem as normas juris
cogentis. A necessidade de protecção de certos princípios indispensáveis a um
adequado standard de convivência entre os sujeitos de direito internacional e, por
isso, à existência de uma comunidade de direito, determina, na verdade, aquela
limitação à liberdade contratual dos Estados. Ao beneficiarem de uma normatividade
reforçada, as normas imperativas tornam-se insusceptíveis de ser afastadas pela via de
acordos particulares (G. CARELLA).
Inicialmente acantonada nesse âmbito particular do direito dos tratados, a
«super-normatividade» irradiou, todavia, a sua influência para outros domínios do
direito internacional, estando, v. g., na base da construção jurisprudencial e doutrinal
da teoria das obrigações erga omnes, bem como, dos actos ilícitos mais graves do
Estado, em sede de responsabilidade internacional.

Apesar da proclamação retumbante de JELLINEK, para quem «Tout acte illicite international
pourrait être élevé au rang de droit si l’on en faisait le contenu d’un traité» ou do cepticismo exprimido
por P. GUGGENHEIM, quando, na 1ª edição do seu Droit International Public, asseverava que as normas
de direito internacional não têm um carácter imperativo e que jamais seria possível apreciar a validade
25

de uma convenção internacional à luz de um critério de moralidade, muitos outros autores importantes,
como VERDROSS, QUADRI ou VIRALLY, reconhecem a existência das normas de jus cogens, separando,
contudo, essa noção de direito imperativo da de jus naturale, porquanto, sem embargo de alguns
pensáveis pontos de contacto entre ambos, este último teria uma natureza universal e imutável, ao
passo que aquele, porque permeável às exigências da comunidade internacional em cada momento,
seria, ao invés, evolutivo e contingente. Explicando melhor: o direito natural é concebido como uma
ordem superior e exterior ao direito positivo, enquanto o jus cogens faz parte integrante do sistema. É o
direito internacional, ele próprio, que outorga a certas normas o estatuto de normas imperativas. Se
estas se inspiram, é certo, em determinadas considerações éticas ou morais, a verdade é que o
respectivo carácter normativo advém de factores puramente endógenos. Em último termo, a norma
imperativa – potencialmente geradora de obrigações praeter e mesmo contra voluntem – retira essa
qualidade da vontade dos Estados, facto que parece, paradoxalmente, confirmar, também aqui, a
natureza voluntarista do direito internacional (ainda que, desta feita, o voluntarismo seja porventura
apenas o de alguns…). Baldado propósito, pois, o de um retorno, através do jus cogens, ao direito
natural e à unidade fundamental do género humano.

Subjacente ao jus cogens está o conceito multiforme de comunidade


internacional de Estados no seu conjunto (cfr. art. 63.º da CV) – um misterioso
protagonista que se sub-roga aos Estados no múnus de criação do direito
internacional. O apelo constante, nas discussões em torno do direito internacional
imperativo, à «consciência jurídica geral», aos «valores morais superiores», ao «bem
comum», etc., denuncia uma aspiração clara a que a ética sobreleve a aridez do direito
positivo (P. WEIL) e, consequentemente, a que, na comunidade internacional, possam
emergir a solidariedade e a unidade no meio das diferenças políticas, ideológicas e
económicas entre os Estados.

Em segundo lugar, também a teoria das obrigações erga omnes concorreu para
a hierarquização do sistema normativo internacional e, portanto, para retrogradar o
bilateralismo e o espírito de estrita reciprocidade através dos quais se entreteciam as
relações internacionais clássicas.
Num contexto de mera justaposição de soberanias, a responsabilidade
internacional analisa-se numa relação bilateral, em que à obrigação de um se opõe o
direito do outro (P. M. DUPUY). Cada Estado tem o direito a que determinada norma
internacional seja respeitada perante si próprio; mas já, decerto, não lhe assiste o
direito a que a “legalidade internacional” seja, em si mesma, cumprida ou reposta. Por
26

outras palavras: cada um deverá assegurar a protecção dos seus próprios direitos, sem
curar de arvorar-se em «campeão dos direitos dos outros» (P. WEIL). Ou dito ainda de
outra forma: tradicionalmente não há lugar para obrigações erga omnes no direito
internacional.
«A doutrina do cada um por si» (P. WEIL), mal se compagina, todavia, com a
abertura à axiologia e à ética, de que acima demos nota, e com o reconhecimento dos
interesses gerais da comunidade internacional. Talvez por isso, pela primeira vez, em
1970, num célebre obicter dictum do Tribunal Internacional de Justiça, no caso
Barcelona Traction, Light and Power Company Limited – vibrado, aliás, em evidente
desconcerto com outra passagem do mesmo aresto… –, se fez referência ao conceito
de obrigação erga omnes.

Afirmou então o Tribunal: «Vu l’importance des droits en cause, tous les Etats peuvent être
considérés comme ayant un intérêt juridique à ce que cês droits soient protégés; les obligations dont il
s’agit sont des obligations erga omnes». E mais adiante: «Ces obligations découlent par exemple… de la
mise hors la loi des actes d’agression et le génocide mais aussi des principes et des régles concernant les
droits fondamentaux de la personne humaine, y compris la protection contre la pratique da l’esclavage
et la discrimination raciale.».

Quais os sentido e alcance destas obrigações?


Como se observou, o direito internacional clássico é, na sugestiva expressão de
W. RIPHAGEN, «bilateral-minded», isto é, as obrigações internacionais não impõem
aos Estados a adopção urbi et orbi de um certo comportamento; pelo contrário,
apenas os vinculam (a cada um individualmente) em face de um particular Estado, ou
quando muito, perante um grupo limitado de Estados. A protecção dos direitos
correlativos a essas obrigações, por seu turno, é feita em regime de auto-tutela, quer
dizer, é o próprio Estado ofendido que, ao arrepio da velha máxima nemo judex in
causa sua, chama a si tal tarefa.
Ora, no que tange às obrigações erga omnes do que se trata, como adverte P.
WEIL, é justamente de saber se poderá impender sobre um Estado,
independentemente de qualquer liame convencional, uma obrigação internacional que
o vincule perante todos os demais Estados; todos, desse modo, se tornando credores
dela. Uma resposta positiva, levar-nos-á a aceitar a existência de um núcleo (restrito)
de obrigações de cada Estado para com a comunidade internacional no seu conjunto.
27

A sua particular natureza, rectius, o seu específico conteúdo, determinará que elas
digam respeito a todos os Estados; a todos conferindo, em conformidade, idênticos
direitos de protecção. Mas protecção de quê? Não propriamente dos interesses
egoísticos dos Estados, ou pelo menos não prioritariamente destes; protecção isso sim,
em primeira linha, dos interesses de toda a comunidade internacional. Quer isto
significar que nestas obrigações internacionais avulta o «interesse comunitário».
Resta saber qual o meio mais idóneo para garantir a protecção daquele
interesse. Será tal desiderato alcançado à guisa de uma actio popularis dos Estados,
agindo estes ut singuli (v.g., sendo beneficiários de um jus standi, podendo recorrer a
actos de protesto ou ainda estando habilitados a lançar mão de contramedidas,
mesmo não havendo sido directamente lesados com a violação da obrigação erga
omnes) ou “a expensas” da comunidade internacional organizada (institucionalizada),
conhecendo-se todas as dificuldades de funcionamento do Conselho de Segurança?
Os quesitos acabados de formular, ilustram bem, pensamos, os principais
pontos carecidos de esclarecimento no regime jurídico das obrigações erga omnes. E a
estrutura actual da comunidade internacional não deixa aos doutrinadores grande
margem de manobra…

Ao conceito de obrigações erga omnes anda por vezes associado o de direitos erga omnes. Eles
não constituem, porém, as duas faces da mesma moeda (P. GALVÃO TELES). Os direitos erga omnes
implicam, do lado passivo, uma obrigação universal de respeito – caso, v. g., do direito de cada Estado
ao gozo das várias liberdades do alto-mar. Isto não significa, contudo, que as obrigações correlatas a um
direito erga omnes sejam, necessariamente, obrigações erga omnes. Sê-lo-ão apenas se, para além de
visarem a protecção de um interesse do titular do direito em questão, tiverem sobretudo como escopo
a protecção do interesse geral da própria comunidade internacional. Caso contrário, serão tão-somente
obrigações omnium. Assim, não obstante possíveis intersecções, se as obrigações erga omnes sugerem
uma ideia de universalização dos titulares de direitos, as obrigações omnium apontam antes para a
universalização dos titulares de obrigações.

As teorias do jus cogens e das obrigações erga omnes, sumariamente


explicitadas acima, viriam a estar na base de importantes alterações no instituto da
responsabilidade do Estado por factos ilícitos. Com efeito, a identificação de um
conjunto de normas reputadas de hierarquicamente superiores às restantes, por
tutelarem interesses precípuos da comunidade internacional, legitimou (diríamos
28

mesmo, forçou) a arrumação dos actos ilícitos internacionais em duas categorias: a dos
crimes (ilícitos mais graves) e a dos meros delitos (ilícitos menos graves), segundo uma
terminologia controversa (a certa altura, abandonada) da Comissão de Direito
Internacional, no seu Projecto de Artigos Sobre a Responsabilidade do Estado.
Tal destrinça sugeria (sugere) a existência de (pelo menos) dois regimes
diversos de responsabilidade em função do conteúdo da obrigação internacional
violada: os crimes resultariam da violação grave de obrigações que tutelam interesses
fundamentais da comunidade internacional, por isso a eles estariam ligadas
consequências jurídicas específicas ou suplementares, comparativamente àquelas que
subjazem aos meros delitos; estes, por sua vez, apresentar-se-iam como factos ilícitos
ordinários, em virtude de constituírem violação de normas primárias menos
importantes, isto é, de normas cujo objecto de protecção se não reconduz a um valor
essencial para a comunidade internacional, pelo que o regime de responsabilidade
seria, desta feita, o regime-regra.
Muitas incertezas subsistem, todavia, quanto à definição dos elementos
constitutivos dos actos ilícitos mais graves (muito em especial no tocante às suas
relações com o jus cogens e com as obrigações erga omnes) e, bem assim, às
consequências jurídicas específicas que fazem espoletar; tanto mais que ao haver
introduzido no seu Projecto de Artigos o requisito da gravidade da violação da
obrigação internacional em causa, a CDI fizera pairar ainda mais dúvidas sobre uma
construção que, à partida, se afigurava capaz de trilhar um caminho auspicioso.

Na elaboração do primitivo art. 19.º do seu Projecto de Artigos – mais tarde, suprimido – a CDI
socorreu-se de um critério indicativo, mas algo tautológico: os crimes internacionais seriam aqueles que
fossem reconhecidos como tal pela comunidade internacional no seu conjunto. A despeito disso, não se
furtou a fornecer alguns exemplos de violações qualificadas do direito internacional: a agressão armada,
a repressão pela força do direito dos povos à autodeterminação, a violação em larga escala de direitos
fundamentais da pessoa humana – v. g., situações de escravidão, genocídio ou apartheid – e ainda o
crime ambiental, resultante, designadamente, da contaminação maciça da atmosfera e dos mares.

O jus cogens, as obrigações erga omnes e a distinção, favorecida por essas duas
teorias, entre actos ilícitos do Estado mais e menos graves, parecem não fazer
soçobrar – antes parecem impelir – a busca por uma «nova ética da globalização» (N.
VIEIRA DE CARVALHO) ou, se preferirmos, por um mínimo ético universal. Mesmo
29

conhecendo-se as profundas divisões que grassam actualmente na comunidade


internacional.
Ainda assim, todavia, ao lado de indiscutíveis efeitos benéficos para a evolução
do direito internacional, muitas são as sombras que pairam sobre estas construções. A
exorná-las, sobressai o conceito, algo enigmático, de comunidade internacional no seu
conjunto. As dificuldades em redor da respectiva explicitação podem abrir caminho à
aceitação de um «direito internacional ideológico» (no limite, à coonestação de uma
«oligarquia de facto») que negue o princípio da igualdade soberana dos Estados.
Quem, na verdade, num mundo desprovido de verdadeira representação orgânica e
institucional está habilitado a identificar a (ou, pelo menos, toda a) super-
normatividade, as obrigações erga omnes e as formas agravadas da ilicitude estadual?
Acrescem a esta “dúvida metódica” algumas dificuldades técnicas mais
concretas que urge superar e para as quais havíamos já alertado mais atrás: como se
inter-relacionam o jus cogens, as obrigações erga omnes e os actos internacionalmente
ilícitos reputados de mais graves? Qual, de entre estes conceitos, corresponde à
categoria mais ampla e à mais restrita, acaso, por hipótese, nos socorrêssemos de três
círculos concêntricos? Haverá dois ou mais regimes jurídicos de responsabilidade
internacional? E quais as consequências jurídicas emergentes de que cada um deles?
Como se vê, há aqui margem para delongadas reflexões; reflexões, porém, que
só na parte final do nosso curso se tornarão porventura mais profícuas.

E sobeja tratar do terceiro e último problema que neste número nos


propusemos abordar e que surge imbricado, de forma clara, com os analisados
precedentemente. É ele o da diluição da normatividade. Ora, em que sentido se
poderá falar hoje de uma diluição da normatividade internacional?
A identificação de uma super-normatividade, com as teorias do jus cogens e das
obrigações erga omnes, veio pôr em causa, de modo particularmente impressivo, o
voluntarismo que caracterizava o direito internacional clássico; sobretudo, parece ter,
em larga medida, esvaziado de conteúdo a regra tradicional da individualização
(determinação) dos sujeitos activos e passivos das normas de direito internacional.
Comprovemos o que acaba de ser dito, olhando separadamente para o direito
convencional e para o direito costumeiro.
30

No que toca às convenções internacionais, o princípio da eficácia relativa dos


tratados, segundo o qual estes não produzem, em regra, efeitos para Estados terceiros
– isto é, para Estados não partes – sem o seu consentimento (cfr. art. 34.º da
Convenção de Viena, de 1969), garantia uma certa estabilidade e segurança às
relações internacionais. Tudo se alterou, contudo, a partir do momento em que se
admitiu a criação de obrigações internacionais vinculativas de todos os Estados por
intermédio de uma norma convencional. Verdade que sempre se aceitara no passado,
que um tratado pudesse, em determinadas circunstâncias, codificar (isto é, passar a
escrito e cristalizar) uma norma costumeira ou contribuir para a sua formação
(precedentes convencionais), mas jamais se previu que um fenómeno, ainda assim,
excepcional pudesse, pela sua frequência e amplitude, quase converter-se em regra
geral, concorrendo para a erosão daquele velho princípio vertido no art. 34.º da CV e,
consequentemente, para o esbatimento (ou desaparecimento?) da fronteira, outrora
bem nítida, entre convenção e costume. Abundam hoje, com efeito (sobretudo em
tratados amplamente participados), as disposições convencionais declaratórias de
costumes preexistentes ou que cristalizam normas costumeiras em vias de formação
ou até que, a partir de uma categórica afirmação da opinio juris num primeiro
momento, constituem um forte acicate ao paulatino desenvolvimento de uma prática
concordante subsequente (“costumes selvagens” ou instantâneos). Assiste-se, deste
modo, a uma certa desfiguração da norma convencional, ela que sempre fora
encarada como a mais pura expressão do voluntarismo e da consensualidade que
caracterizavam o direito internacional clássico. Dir-se-ia que, a partir de certa altura, o
direito convencional adquire todo o seu valor quando justamente deixa de ser
exclusivamente convencional ou “contratual” (P. WEIL)…

No que diz respeito, por outro lado, às normas costumeiras, não mais se pode
afirmar, com segurança, que a aceitação de um costume – quer tácita, quer resultante
da uniformidade de certos comportamentos (precedentes) que são praticados ao
longo do tempo e concorrem para a formação de uma opinio juris – constitui ainda um
traço essencial do seu regime. O que, aliás, se traduzia numa espécie de velada
homenagem ao voluntarismo. Com efeito, a emergência dos aludidos “costumes
instantâneos” ou “selvagens” (RENÉ-JEAN DUPUY), parece claramente infirmar o
31

modus operandi tradicional.


Classicamente, numa espécie de “quadratura do círculo”, aceitava-se que as
normas costumeiras (de alcance geral) se pudessem formar sem o consentimento
individual de todos os Estados, permitindo-se, contudo, simultaneamente, que um
Estado pudesse escapar à vinculação de um costume que não reconhecesse como tal e
a cuja constituição se tivesse oposto firme e reiteradamente (objector persistente).
No tocante à prática (elemento material ou objectivo das normas
consuetudinárias), sempre se exigiu que ela fosse «constante e uniforme», jamais
«unânime» ou «universal». Neste sentido, afirmava C. de VISSCHER, já em 1925, que
para invocar contra determinado Estado uma norma de costume internacional não
seria imprescindível demonstrar que esse Estado contribuíra “pessoalmente”, através
dos seus comportamentos individuais (precedentes), para a respectiva formação: assim
é que, por ex., em matéria de direito do mar, muitas normas costumeiras lograram
surgir com base em condutas adoptadas pela generalidade dos Estados costeiros e
relativamente às quais os Estados sem litoral permaneceram evidentemente arredios.
Também, de igual modo, acerca da opinio juris (elemento subjectivo ou
psicológico do costume), nunca se considerou indispensável que cada um dos Estados
implicados na adopção de comportamentos consonantes, ao longo de um certo lapso
temporal, experimentasse individualmente, a respeito deles, uma convicção de
obrigatoriedade jurídica.
Conquanto assim excluído o consensus omnium, os ditames do voluntarismo
permaneciam, ainda assim, válidos mediante a faculdade, acima aludida, de opting
out, reconhecida a um Estado que, ainda durante o processo de constituição de um
costume, se opusesse, de forma inequívoca e continuada, à sua formação e ao seu
conteúdo material.
A verdade, porém, é que esta arquitectura normativa começou a ser posta em
causa desde que, por um lado, se conveio num aligeiramento da prática, quer quanto à
sua duração quer quanto à sua generalidade e, por outro, se passou, igualmente, a
conceber a opinio juris de modo menos estrito e exigente. Ficou assim desembargado
o caminho a que um cada vez maior número de normas costumeiras se impusesse a
um número também crescente de Estados, mesmo contra a sua vontade,
expressamente manifestada (P. WEIL).
32

Eis-nos perante a teoria – algo desafiante da lógica tradicional do


consentimento – dos chamados “tratados quase universais”.
Conforme se disse já, sempre foi admitida a possibilidade de uma norma
convencional estar na origem da formação de um costume, que, salvo manifestação de
vontade em contrário, iria, subsequentemente, vincular Estados terceiros (não partes
nessa convenção internacional). Do que se trata agora, é, todavia, de algo bem
diferente: da aceitação de que uma prática “geral” possa circunscrever-se a uma
disposição convencional adoptada por um número razoável (suficiente) de Estados, em
especial pelos Estados particularmente interessados, dando origem, desse modo, a um
costume instantâneo ou “selvagem”. Os “tratados quase universais”, por conseguinte,
aceites a título de direito convencional por um número significativo de Estados,
lograriam impor-se aos demais a título de regras costumeiras. Mais do que a uma
aceleração do processo costumeiro, assiste-se, isso sim, a uma autêntica revolução na
teoria do costume (P. WEIL).
E, mesmo abstraindo de todas as fragilidades e ambiguidades que rodeiam esta
construção de efeitos “subversivos”, deparamos com uma notória perplexidade: a
regra de direito internacional geral – que outrora se opunha às normas de direito
internacional particular (conf., supra, nº 3) – passou, repentinamente, a ser sinónimo
de regra costumeira. Regra esta que, não admitindo derrogações individuais, se impõe
a todos os Estados à guisa de direito universal… A generalidade deixa, portanto, de
sofrer excepções. Como observa P. WEIL, «…a recusa expressa torna-se inoperante. De
uma aceitação presumida, passa-se para uma aceitação imposta», com o que a opinio
juris se dissolve num consentimento maioritário mal definido.
Como se vê, a normatividade internacional relativiza-se; a fronteira entre a
norma convencional e a norma costumeira vai-se crescentemente esbatendo e a regra
parece ser agora a da indeterminação dos titulares activos e passivos das normas
jurídicas internacionais. Daí, pois, a ideia da diluição da normatividade, que,
forçosamente, convida os jusinternacionalistas a um repensar de toda a teoria das
fontes.

São estas, em suma, algumas das indefinições do moderno direito


internacional. Procurámos dar conta delas de forma deliberadamente tópica, tanto
33

mais que alguns dos conceitos e ideias atrás expendidos, em virtude de pressuporem
conhecimentos que iremos adquirir em capítulos subsequentes, só resultarão
compreensíveis numa fase mais avançada do nosso curso. Bastemo-nos, pois, para já,
com o que ficou dito, que, ainda assim, ao que julgamos, será suficiente para que se
tenha a percepção de que a ordem jurídica internacional, reflexo afinal da estrutura da
sociedade que visa regular, apresenta, em boa verdade, características muito
particulares.
34

CAPÍTULO I
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL

Sumário: 1 – Introdução. 2 – Direito internacional clássico (“modelo de Westefália”). 3 – Direito


internacional moderno (“modelo da Carta das Nações Unidas”).

Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio
Cassese, Le droit international dans un monde divise, Berger-Levrault, Paris, 1986; Jónatas Machado,
Direito Internacional, 5ª edição, Gestlegal, 2020; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público,
6ª edição, Principia, 2016; José Alberto de Azeredo Lopes (coordenador), Regimes Jurídicos
Internacionais, Volume I, Universidade Católica Editora Porto, 2020; Quoc Dinh/Daillier/Pellet, Droit
International Public, LGDJ, Paris, 1994;

1 – INTRODUÇÃO

Concluída a parte introdutória geral, o primeiro capítulo da presente obra será


dedicado a uma análise, ainda que breve, da evolução histórica do direito
internacional.
Sem dúvida que uma visão retrospectiva se revela imprescindível para que os
vários ramos do direito melhor se possam compreender na actualidade. Quantos dos
institutos do nosso direito civil, por ex., não têm a sua origem no Direito Romano?
Decerto que mediante o conhecimento deste último se tornará muito mais fácil
compreendê-los adequadamente nos seus sentido e alcance. E também o direito
internacional não foge à regra: diga-se até que, fruto das características da sociedade
internacional, ele é um direito essencialmente evolutivo, quando não contingente e
tergiversante no seu rumo. Daí que, em seu redor, uma curta “viagem no tempo” faça
particularmente sentido.

Neste excurso histórico, não iremos, porém, ocupar-nos da época que poderemos apelidar de
pré-estadual, onde, em bom rigor, se encontram os primeiros rudimentos do direito internacional. São,
na verdade, inestimáveis os contributos dos vários períodos históricos que antecederam o surgimento
dos Estados modernos para a formação do direito internacional. Seja o contributo do Império chinês,
sejam os dos Impérios do oriente (o egípcio, o babilónico, o assírio e o persa), sejam ainda os da Grécia
(com as relações entre as Cidades-Estado) e de Roma (com o jus fetiale e o jus gentium) ou, mais tarde,
o da época medieval. Mas o certo é que, no seu conjunto, eles constituem a pré-história do direito
internacional, não a sua história. Esta inicia-se com o aparecimento do direito internacional enquanto
35

ramo autónomo da ciência jurídica, e tal ocorreu, como assinalámos na parte introdutória do nosso
curso, aquando da formação dos Estados modernos, na Europa, seguidamente à paz de Westfália. É,
pois, desde 1648 – data da assinatura dos Tratados de Westfália – até aos nossos dias que neste capítulo
nos iremos concentrar.

2 – DIREITO INTERNACIONAL CLÁSSICO (“MODELO DE WESTEFÁLIA”)

Tanto quanto se podem delimitar temporalmente os fenómenos sociais e


humanos, afigura-se ajustado situar o direito internacional clássico no período que
medeia entre 1648 – ano da paz de Westefália, que pôs termo à guerra religiosa dos
Trinta Anos e abriu caminho ao surgimento do Estado moderno – e 1945, que, como se
sabe, marcou o fim da Segunda Guerra Mundial. É certo que logo após o primeiro
conflito global (1914-18) se verificou um esforço, sem precedentes, de
institucionalização da comunidade internacional, mas foi apenas da segunda metade
do séc. XX em diante que as transformações ocorridas prenunciaram o início de uma
nova era.

Em obediência a um intento clarificador, ANTONIO CASSESE – cujo pensamento doravante


acompanharemos – contrapõe o modelo clássico ou de Westefália ao modelo moderno ou da Carta das
Nações Unidas. Impõe-se, no entanto, advertir que os modelos, enquanto construções teóricas feitas a
partir da realidade, comportam sempre boa dose de artificialismo. Apesar de um carácter falível e algo
redutor da realidade, é, todavia, possível, por seu intermédio, identificar grandes tendências, linhas de
força e princípios estruturantes fundamentais, que, tomados em conjunto, conferem identidade ao
lapso temporal considerado.
Como sublinha JORGE MIRANDA, bom será, ademais, não esquecer que antes da conclusão dos
tratados de paz de Westefália o movimento dos Descobrimentos (dos portugueses e, mais tarde, de
outras nações europeias) trouxe problemas novos sobre os quais se debruçaram os primeiros cultores
do direito internacional nascente: desde a delimitação das zonas de influência das potências europeias
da época, passando pela forma de relacionamento entre os europeus e as populações autóctones dos
territórios descobertos, até ao regime jurídico do mar (mare liberum versus mare clausum). Avultam
então nomes como os de FRANCISCO DE VITÓRIA e FRANCISCO SUÁREZ (Escola Peninsular de Direito
Internacional), SERAFIM DE FREITAS (Escola Portuguesa) e HUGO GRÓCIO – habitualmente considerado
o “fundador do direito internacional”.

Com a expressão direito internacional clássico pretendemos reportar-nos às


características principais que assumiu aquele domínio do jurídico na época histórica
supramencionada, reflexo da estrutura que, ao tempo, revestia a sociedade
36

internacional. Atentemos, pois, nesta estrutura e naquelas características.


À estrutura da sociedade internacional dos primeiros tempos calha bem o
epíteto de «vasta planície interestadual» (RENÉ-JEAN DUPUY), pois que ela é composta
por Estados situados num plano (formalmente) paritário, inexistindo órgãos próprios
dessa sociedade capazes de controlar o respectivo comportamento. Os órgãos
estaduais são simultaneamente órgãos da ordem internacional, actuando, por isso, nos
dois planos – o interno e o internacional – num desdobramento de tarefas a que
SCELLE chamou desdobramento funcional.

Até finais do séc. XVIII, a sociedade internacional será exclusivamente europeia. Nessa altura,
porém, as grandes revoluções liberais (a americana e a francesa) e a emancipação de vários povos
latino-americanos, entre 1811 e 1821 – que a Santa Aliança não conseguiu suster – fariam emergir um
«sistema de Estados de civilização cristã». Em particular, da Revolução Francesa (1789) saiu um ideário
que iria insuflar gérmenes de mudança no direito internacional. Entre outras coisas, proclamou-se então
que a soberania reside no povo, e não no rei; que o direito internacional regula as relações entre povos,
e não entre monarcas; e que todos os povos, porque livres e iguais entre si, tal como os indivíduos, têm
direito à autodeterminação (Cfr. JORGE MIRANDA).

2.1 – Sujeitos de direito

Em matéria de sujeitos de direito, era gritante o contraste entre a sociedade


internacional dos primeiros tempos e as sociedades nacionais ou internas, visto que
enquanto estas sempre dispuseram de um vasto leque de sujeitos, naquela o atributo
da personalidade jurídica praticamente se circunscrevia aos Estados soberanos e,
eventualmente (excepcionalmente), a um sujeito menor: os insurrectos, caso fossem
objecto de reconhecimento internacional.

Teremos ensejo mais adiante de estudar as figuras (hoje, novamente em voga) dos insurrectos
e beligerantes no direito internacional. Por ora, bastemo-nos com a ideia de que se trata de grupos que,
no interior de um determinado Estado, se sublevam, contestando – mediante o recurso a acções
violentas – a legitimidade do poder aí constituído (as respectivas autoridades oficiais) e causando, desse
modo, o esboroamento da unidade nacional. Quando reconhecidos, quer por parte de Estados terceiros,
quer pela própria mãe-pátria, os insurrectos ficam, ipso facto, investidos na titularidade de certos
direitos e obrigações internacionais; concretamente, aquilo que, prima facie, se prefigurava como uma
mera guerra civil, convola-se em conflito armado internacional, pelo que ficam, a partir de então, os
membros desse grupo armado sob a alçada do direito internacional humanitário, deixando de poder ser
tratados como delinquentes comuns. Num segundo momento, verificados que estejam certos
37

requisitos, poderão tais grupos vir a ser reconhecidos como beligerantes, adquirindo um estatuto quase
equiparado ao de um Estado.

Numa sociedade internacional pouco institucionalizada (descentralizada), os


Estados, enquanto únicos sujeitos de direito, beneficiavam de uma liberdade de
actuação quase total. A enorme dispersão de poder dava azo a que cada Estado se
considerasse como uma «comunidade perfeita» e auto-suficiente, permitindo que, aos
poucos, se benquistasse uma concepção absoluta de soberania (a Kompetenz-
Kompetenz de que falava JELLINEK).
Este quadro circunstancial favorecia a existência de um direito internacional
minimalista, que, pragmaticamente, se limitava a dar o seu beneplácito aos equilíbrios
de força e de poder prevalecentes em cada momento, emprestando, nessa medida,
alguma estabilidade e coerência às relações internacionais. Não se esperava, por
conseguinte, que as normas jurídicas vigentes, porque informadas de preocupações de
justiça material, visassem alterar o statu quo; visassem, por outras palavras, corrigir as
disparidade e desequilíbrios de facto que em cada momento existissem.
Deste jeito, não é para admirar que o direito internacional clássico seja
encarado como um direito de “laisser-faire” (liberal) que ao “princípio da autonomia
da vontade dos Estados” impõe ténues ou nenhumas barreiras. E isto, uma vez mais,
por oposição ao que se verifica nos sistemas jurídicos internos, em que existe um
conjunto de normas – de direito constitucional, de direito penal, de direito civil, etc. –
que cerceiam fortemente a autonomia contratual dos cidadãos.
Além de serem dotadas de uma eficácia limitada, tanto do ponto de vista
subjectivo como objectivo, as normas jurídicas internacionais não recobriam, nesta
fase, senão alguns domínios do relacionamento interestadual. Assim, do corpus do
direito internacional positivo faziam parte, designadamente, normas relativas aos
corolários da soberania estadual (territorial) e, bem assim, às liberdades do mar alto;
normas – de inicio, apenas consuetudinárias – consagradoras de privilégios e
imunidades diplomáticas e consulares; normas atinentes à responsabilidade
internacional, as mais das vezes no âmbito específico do tratamento de estrangeiros;
normas respeitantes à conclusão e condições de validade dos tratados; e, por último,
como seria de esperar numa época em que se entendia que o recurso à guerra
38

consubstanciava uma faculdade discricionária dos Estados, normas concernentes a


conflitos ou litígios internacionais e acerca da adopção de represálias.

2.2 – Fontes de direito

No que se refere às fontes de direito internacional, elas quase se resumiam, no


modelo de Westefália, ao costume e aos tratados bilaterais. Enquanto expressão de
um direito voluntarista, as normas jurídicas internacionais assentavam, com efeito, no
consentimento dos Estados, exprimido justamente através de processos
consuetudinários ou “contratuais”.

Temos aqui em mente, conforme se alcança, fontes em sentido formal, isto é, enquanto modos
de revelação das normas ou, dito de outra forma, enquanto procedimentos técnicos de produção
jurídica através dos quais surgem as várias normas. Diferente é o conceito de fontes materiais, que faz
apelo aos fundamentos sociológicos, políticos, económicos, morais, etc. das normas, quer dizer, às
necessidades sociais que lhes estão subjacentes e que, portanto, determinam o seu aparecimento.

Sem pretendermos neste local desenvolver a temática das fontes de direito


internacional, que será, de resto, objecto de tratamento autónomo no Capítulo II, não
será despiciendo recordar que por costume se entende um processo espontâneo de
formação de normas jurídicas, resultante da reunião de dois elementos: um elemento
material ou objectivo, também designado consuetudo, reconduzível à adopção
reiterada e uniforme – no tempo e no espaço – de certos comportamentos (os
precedentes), e um elemento subjectivo ou psicológico, traduzido na consciência de
obrigatoriedade jurídica que, transcorrido determinado período de tempo,
experimentam os sujeitos de direito internacional ao adoptar tais comportamentos
(opinio juris sive necessitatis).
Por outro lado, os tratados são acordos de vontade entre dois ou mais sujeitos
de direito internacional (inicialmente, apenas os Estados), dirigidos à produção de
efeitos de direito e regulados predominantemente, que não exclusivamente, pelo
direito internacional. Serão bilaterais, como se adivinha, quando celebrados apenas
por duas partes (cada qual formando um bloco homogéneo de interesses,
eventualmente, constituída, em certos casos, por mais do que um Estado).
Pois bem, era este efectivamente o reduzido elenco de modos de revelação de
normas no direito internacional clássico. O costume, porquanto a formação
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espontânea de normas jurídicas tende a assumir uma importância acrescida numa


sociedade descentralizada, desprovida de órgãos vocacionados para a criação
autoritária do direito. Os tratados bilaterais, em razão de prevalecerem, no período
que estamos a considerar, as relações binárias e sinalagmáticas entre os Estados,
inspiradas no princípio da reciprocidade (do ut des). Ainda que episódico, verificava-se
já, é certo, o recurso aos tratados multilaterais. Todavia, mesmo estes, na fase inicial
de desenvolvimento do direito internacional mais não eram, estruturalmente, do que
autênticos conjuntos de tratados bilaterais sobrepostos – a cujo regime presidia, de
modo similar, o princípio da reciprocidade –, conquanto se apresentassem
“travestidos” pela participação de mais do que duas partes, circunstância esta que, de
facto, lhes conferia uma aparência multilateral.

2.3 – As três funções típicas de um ordenamento jurídico

Consequência inevitável de a sociedade internacional clássica ser muito pouco


institucionalizada e, nessa medida, sobretudo relacional (na expressão de RENÉ-JEAN
DUPUY), constituía traço distintivo do modelo de Westefália o exercício
descentralizado das funções legislativa, judicial e executiva, tanto quanto delas, na
ordem internacional, se possa falar em termos que evoquem os sistemas jurídicos
internos.
Como quer que seja – aceitemos alguma analogia de situações, relevando, sem
embargo, as especificidades próprias da sociedade internacional –, cabia a cada
Estado, de per se, levar a cabo as ditas tarefas, em função do seu poder e da sua
influência.
Assim, no que respeita à produção normativa, o voluntarismo assume-se como
imagem de marca do direito internacional clássico. Significa isto que as obrigações
internacionais derivam, em último termo, da vontade dos Estados; nesta reside o
fundamento da obrigatoriedade do direito positivo, quer se admita que essa vontade
reveste a forma de uma autolimitação (teoria da autolimitação de JELLINEK), quer,
diferentemente, se considere que resulta de uma manifestação colectiva de vontade
(doutrina da vontade colectiva ou vereinbarung de TRIEPEL).
A cominação de sanções, em segundo lugar, é efectuada em regime de auto-
tutela. Vejamos porquê. Como explica AFONSO QUEIRÓ, na falta de órgãos
40

jurisdicionais internacionais dotados de competência obrigatória por força da lei (como


sucede com os tribunais internos), toda a vez que um Estado reputa de ilícita a
conduta de outro ou outros Estados e se julga, em virtude dela, ofendido nos seus
direitos, cabe-lhe, por via de regra, a si próprio, defini-los, bem como ao grau dos
prejuízos suportados e, em conformidade, decretar as sanções que se lhe afigurem
adequadas. Quer dizer: sempre que, consensualmente entre as partes envolvidas num
diferendo, não tenha havido recurso a um processo judicial ou arbitral internacional, a
reintegração dos direitos tende a ser no direito clássico uma auto-reintegração e não
uma hétero-reintegração como é norma na ordem jurídica interna.
Por fim, o mesmo sucede no que toca à efectivação das sanções que hajam sido
impostas aos infractores das normas de direito internacional. A inexistência de um
poder executivo na sociedade internacional, actuado por verdadeiros órgãos públicos
de coerção, fomenta as actuações individuais e descentralizadas dos Estados, com os
inerentes riscos de abuso e arbitrariedade, já no que se refere ao tipo de medidas
adoptadas, já no que se prende com a intensidade que as mesmas podem revestir.

Veremos numa etapa subsequente do nosso curso, ao estudarmos o instituto da


responsabilidade do Estado por factos ilícitos, como na comunidade internacional dos nossos dias,
apesar de muito mais institucionalizada, persistem e até, paradoxalmente, por vezes se intensificam as
reacções descentralizadas ao ilícito, tão características do modelo de Westefália. A explicação para o
fenómeno radica na inoperância patenteada, em diversas ocasiões – maxime no período da Guerra Fria
–, pelos órgãos das organizações internacionais (Conselho de Segurança, muito em particular), o que
abriu caminho a uma espécie de recuperação serôdia do sistema de auto-tutela.

2.4 – Recurso à força

A precariedade dos limites jurídicos em matéria de recurso à força nas relações


internacionais, é outra das características dominantes no direito internacional clássico.
Pode, na verdade, afirmar-se que desde a paz de Westefália até ao séc. XIX os
Estados tinham plena liberdade de fazer a guerra, de harmonia com os fins, de que
aliás eram únicos juízes, que com ela visassem alcançar. Recorrer à força, enquanto
instrumento de política externa, constituía, portanto, uma prerrogativa normal, ínsita
no conceito de soberania. Daí o dizer-se que aqueles dispunham de três competências
no plano internacional: o jus tractum (direito de concluir tratados), o jus legationis
41

(direito de legação, isto é, de enviar ou receber missões diplomáticas) e, justamente, o


jus ad bellum (direito à guerra).

Apesar de nesta altura o uso da força ser encarado como uma manifestação normal da
soberania estadual, certo é que desde muito cedo surgiu, entre os teorizadores do direito internacional,
a preocupação ética de destrinçar as chamadas guerras justas ou legítimas das guerras injustas. A este
propósito, merecem destaque os contributos emprestados por aqueles que muitos consideram os «pais
inconscientes do direito internacional»: os teólogos da Escola Peninsular de Direito Natural, FRANCISCO
VITÓRIA – autor das Relectiones Theologicae – e FRANCISCO SUAREZ – que leccionou em Coimbra e
escreveu De legibus ac deo legislatore. Mais tarde, também o holandês HUGO GRÓCIO, cuja obra mais
conhecida é De jure belli ac pacis, haveria de tratar desenvolvidamente o tema.

Quais as consequências daquela liberdade originária dos Estados?


Desde logo, a de que os princípios jurídicos internacionais, em particular os que
garantiam a soberania territorial e a independência política, não ofereciam aos sujeitos
de direito internacional, seus destinatários, uma protecção consistente. Pelo contrário,
tratava-se de uma protecção frágil e incerta, na exacta medida em que tais princípios
apenas eram respeitados pelos Estados mais poderosos desde que esse acatamento
não colidisse ou contendesse com os seus próprios interesses. Estivessem estes em
causa e, acto-contínuo, muitas das normas de direito internacional se convertiam – de
forma muito mais impressiva do que actualmente – em letra morta…
Em segundo lugar, e como resultado do que acabámos de dizer, a da
predominância do princípio da efectividade. Em que consiste?
Sendo a força o principal parâmetro de avaliação dos factos e, por isso, o
critério legitimador último nas relações internacionais pós-westefalianas, compreende-
se que somente as situações efectivas, isto é, as que se achassem já consumadas ou
consolidadas, pudessem produzir efeitos jurídicos. Era o que, v. g., sucedia em matéria
de reconhecimento de governos e de insurrectos.
Isto poderia, contudo, conduzir – e não raro assim efectivamente ocorria – à
aceitação e reconhecimento de situações constituídas em infracção a certas normas
fundamentais da ordem jurídica internacional; todavia, uma espécie de “política do
facto consumado”, instalada na sociedade internacional clássica, como que obliterava,
de modo superveniente, aquela ilicitude originária. Eis, por conseguinte, pelo menos
42

numa das suas manifestações mais relevantes, o conteúdo do aludido princípio da


efectividade na época histórica que ora consideramos.

2.5 – Responsabilidade internacional por factos ilícitos

Sem menção nesta sede não poderia também ficar a responsabilidade


internacional por factos ilícitos e a particular intencionalidade de que se revestia este
instituto no modelo clássico.
ANTONIO CASSESE, numa formulação feliz, apelida-o de assunto privado entre
os Estados directamente envolvidos. Quer dizer: a prática de um acto ilícito,
emergente da violação de uma obrigação internacional, fazia surgir uma relação
jurídica nova, de carácter bilateral (a relação de responsabilidade) entre o Estado
vítima e o Estado autor desse comportamento ilícito, reconduzível ao direito subjectivo
do primeiro de exigir a reparação dos danos que lhe houvessem sido causados e ao
dever do segundo de assegurar essa reparação.
Nesse «assunto privado» os outros sujeitos de direito internacional deveriam
abster-se de qualquer imiscuição. É que o interesse geral da sociedade internacional,
significando aqui o interesse comum da observância do direito internacional, surge ao
tempo claramente subalternizado.
Por outra parte, a responsabilidade internacional clássica é uma
responsabilidade colectiva, no sentido em que a infracção às normas de direito
internacional determina apenas a responsabilização das entidades colectivas (os
Estados) e jamais dos indivíduos, representantes daquelas, que hajam concorrido para
a consumação dos factos ilícitos. Trata-se de um resultado inevitável numa sociedade
em que os Estados são, como vimos, sujeitos únicos de direito internacional e em que,
de modo reflexo, o indivíduo é encarado como mero objecto do poder estadual, não
sendo, em virtude disso, destinatário directo das normas internacionais. Estas só
mediata ou indirectamente – isto é, através da interposição dos órgãos estaduais – o
atingem, o que, explicando a preclusão da responsabilidade internacional individual no
modelo clássico, explica também, a outro propósito, e como seu contraponto, a
importância do instituto da protecção diplomática – instrumento de tutela indirecta
(actuado pelo Estado) dos direitos do indivíduo no plano internacional, ao qual, lá mais
para diante, iremos dedicar algumas considerações.
43

É ainda próprio da responsabilidade internacional clássica o seu carácter


meramente reparatório. Significa isto que o móbil ou finalidade que àquela preside se
traduz, única e exclusivamente, na reparação dos danos sobrevindos à prática de um
facto internacionalmente ilícito. Uma eventual concomitante dimensão sancionatória
ou punitiva deve ter-se por excluída do instituto neste estádio de desenvolvimento da
sociedade e do direito internacional.

2.6 – Conclusão

Aqui chegados, adquire propósito sintetizar as características principais do


modelo de Westefália, que, nos números anteriores, deixámos explanadas.
O direito internacional clássico analisava-se num conjunto de regramentos
votados, tão-somente, a assegurar a coexistência e a justaposição entre os Estados.
Por isso se fala em modelo de mera coordenação de entidades soberanas. Estas eram,
na verdade, colocadas num plano rigorosamente paritário, sem que se tomassem em
linha de conta os desequilíbrios fácticos na sociedade internacional; circunstância esta,
aliás, que constitui o corolário natural de às normas jurídicas vigentes estar subjacente
uma ideia de igualdade formal, que, do séc. XVIII em diante, viria a inquinar todo o
pensamento jurídico e, bem assim, outras áreas do saber humanístico.
A neutralidade axiológica do direito internacional clássico ocasionou, como se
disse já, um sistema normativo não hierarquizado. O contraste com o direito interno
era, por isso, particularmente impressivo. Bastavam-se as normas de direito
internacional em ratificar acriticamente o contexto existente em cada momento na
sociedade internacional, não se lhes vislumbrando qualquer dimensão conformadora.

3 – DIREITO INTERNACIONAL MODERNO (“MODELO DA CARTA DAS NAÇÕES


UNIDAS”)

Esboçada já a tendência após a Primeira Guerra Mundial, viria sobretudo a


partir do epílogo do segundo conflito à escala planetária – por consequência, de 1945
em diante –, a desenvolver-se paulatinamente um ordenamento jurídico internacional,
a vários títulos, diverso do precedente, em tais termos que não será descabido
afirmar-se que o direito internacional, outrora bem distante do modelo do direito
interno, tende hoje, por um conjunto de factores que procuraremos explicitar, a
44

assumir determinadas características que crescentemente evocam este último. Razão


suficiente para que a este novo modelo se ajuste talvez melhor o qualificativo de
modelo de subordinação.

Apesar de neste segundo ciclo evolutivo o direito internacional ter avançado para um figurino
mais próximo daquele que é próprio do direito interno, parece-nos bem que a similitude que queiramos
descortinar não pode ir além de certos limites. É, de facto, nossa convicção que nunca o direito
internacional deixará de ter uma intencionalidade específica e de, por isso, ser dotado de instrumentos
normativos que se não podem inspirar, sem mais, naqueles que valem e operam nas ordens jurídicas
internas. Tal decorre de a estrutura da sociedade internacional ser profundamente diversa daquela que
caracteriza as sociedades estaduais. Disto mesmo, já em 1938, dava conta o Tribunal Permanente de
Justiça Internacional (predecessor do Tribunal Internacional de Justiça), no caso dos fosfatos de
Marrocos, a propósito de uma eventual transposição acrítica do instrumentarium jurídico-penal para o
ordenamento internacional. Recordemos o que na ocasião se afirmou: «Il est dangereux d’emprunter au
droit penal des concepts qu’on transporterait dans une matière ou l’on ne metrait plus en face l’un de
l’autre un individue poursuivi au penal et un État qui assure la répression, mais deux États. Le droit penal,
droit de hiérarchie et de subordination, peut difficilement inspirer le droit international, droit d’égalité et
de coordinations». Cfr. Publications de la CPJI, Série C, nº85, p. 1061. Certo é, todavia, que a ascensão do
indivíduo à qualidade de sujeito de Direito internacional e a emergência do direito internacional penal,
tornam hoje algo anacrónica aquela afirmação. Mesmo que permaneça essencialmente válida a ideia de
que não é possível sujeitar os Estados a uma qualquer forma de responsabilização criminal.

3.1 – Sujeitos de direito

No plano dos sujeitos de direito assiste-se, seguidamente ao fim da Segunda


Guerra Mundial, a uma mutação deveras significativa por comparação com o período
anterior. Dir-se-ia que essa mutação foi, em simultâneo, quantitativa e qualitativa.
Atente-se porquê.
Desde logo, em resultado de um grande aumento do número de Estados – que
hoje atingem as cerca de duas centenas e são, na sua maioria, não europeus – na
sequência das sucessivas descolonizações, que, a um ritmo persistente, e em
obediência ao princípio da autodeterminação, se foram desencadeando um pouco por
toda a parte. Neste sentido, dir-se-á, com M. AKEHURST, que o direito internacional se
universalizou; ele deixou, com efeito, de regular apenas o círculo restrito dos Estados
europeus – as autoproclamadas nações civilizadas – nas suas relações recíprocas, para
passar a aplicar-se também aos novos membros da comunidade internacional. Este
45

progressivo enfraquecimento do carácter eurocêntrico do direito internacional (M.


SHAW), constituía já sinal inequívoco de que a Europa perdera o predomínio
tradicional na conformação e no desenvolvimento das relações internacionais
(GUTIÉRREZ ESPADA/CERVELL HORTAL.
Por outro lado, outras entidades, para além de Estados e insurectos, ascendem
à qualidade de sujeitos de direito internacional.
Em primeiro lugar, as organizações internacionais, que, apresentando-se já
como verdadeiros centros autónomos de imputação de direitos e deveres, com
correlativos poderes de decisão, não se confundem, antes claramente contrastam,
com os primeiros entes organizativos surgidos em finais do séc. XIX e princípios do séc.
XX, cujo carácter rudimentar não permitia senão considerá-los como meros
instrumentos colectivos ao serviço dos Estados.

Com o aparecimento das novas organizações internacionais, que passam a actuar nos mais
variados domínios – v.g., nos campos político, militar, económico, cultural, humanitário, ambiental, etc.
–, a sociedade internacional deixa de basear-se exclusivamente na interestadualidade, cessando por isso
de ser apenas relacional para adquirir um pendor mais institucional. Razão por que na «vasta planície
interestadual» dos primeiros tempos se têm, progressiva e compassadamente, introduzido
determinadas estruturas verticais, que, em larga medida, assentam em vínculos de subordinação entre
aquelas entidades e os Estados membros. Destarte, o poder, que, no modelo de Westefália, era disperso
e incondicionado, passa agora, devido à crescente institucionalização da comunidade internacional, a
ser, ao invés, concentrado, condicionado e reprimido (RENÉ-JEAN DUPUY).

G. FITZMAURICE, numa noção que tem (pelo menos) o mérito de fazer ressaltar
tanto o fundamento convencional como a natureza institucional das organizações
internacionais, define-as como associações voluntárias de Estados, criadas através de
tratado (tratado constitutivo), dotadas de órgãos próprios, que actuam juridicamente
em nome da organização e têm carácter de permanência, e com personalidade jurídica
internacional.
A estrutura orgânica das organizações internacionais é habitualmente (no
mínimo) tripartida. Com efeito, delas fazem parte, em regra, órgãos plenários, nos
quais têm assento todos os Estados membros (democracia directa) – v.g., a Assembleia
Geral da ONU –; órgãos de composição restrita (permanente e/ou variável), abertos
tão-somente a alguns Estados membros (democracia representativa) – v.g., o Conselho
46

de Segurança da ONU –; e, por fim, órgãos vocacionados para o desempenho de


tarefas de carácter técnico e administrativo – v.g., o Secretariado da ONU.
A respectiva personalidade jurídica internacional, apesar de contestada, até
determinado momento, por alguns sectores da doutrina voluntarista, é hoje um facto
iniludível, dado que, para mais de resultar expressamente de um sem número de actos
constitutivos, foi outrossim firmada pela jurisprudência internacional.

Rememoremos, a tal propósito, o célebre parecer consultivo do Tribunal Internacional de


Justiça, de 1949, que lhe havia sido solicitado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no qual aquela
instância jurisdicional claramente admitiu a personalidade jurídica internacional da ONU, reconhecendo-
lhe o direito de apresentar uma reclamação internacional contra um Estado, solicitando a reparação dos
prejuízos sofridos pelos seus funcionários ou agentes ao serviço da Organização. Tratava-se, em
concreto, do conde Bernadotte, mediador da ONU na Palestina, assassinado no exercício das suas
funções.

Da personalidade jurídica internacional das organizações internacionais


decorrem certos corolários importantes. Nomeadamente, com esse atributo se
justifica e fundamenta um conjunto de privilégios e imunidades dos quais, de modo
geral, todas elas dispõem. Estudá-los-emos, mais à frente, no local apropriado.
Para já, salientemos que a sociedade internacional contemporânea vive imersa
numa preocupante crise institucional (GUTIÉRREZ ESPADA/CERVELL HORTAL). Na
verdade, a esperança numa nova ordem mundial – que a Guerra do Golfo de 1990-
1991 parecia pré-anunciar –, em que todos os Estados actuassem sob a égide das
Nações Unidas e de harmonia com os princípios fundamentais de direito internacional,
entretanto consolidados, sofreu rude golpe em várias situações de crise internacional
ocorridas desde os anos noventa do séc. XX, designadamente, na Bósnia (1992-1995),
no Ruanda (1994), no Kosovo (1999), na Serra Leoa (2000), no Afeganistão (2001), no
Iraque (2003), em alguns países Árabes, muito em particular no Egipto, na Líbia e na
Síria (entre 2011 e 2013), cujos movimentos insurreccionais aí surgidos foram
sugestivamente designados, no seu conjunto, por “Primavera árabe”, e, mais
recentemente, na Ucrânia, após a invasão desencadeada pela Federação Russa, em
2022.

Releve-se ainda, sob um outro prisma, que a proliferação de organizações


regionais, como, v.g., entre muitas outras, a OEA, a UA e a própria UE – esta última,
47

com uma clara dimensão de supranacionalidade – azou o desenvolvimento de sub-


sistemas regionais de direito internacional, por vezes particularmente complexos e
sofisticados, que importa articular, da forma mais adequada, com o direito
internacional geral ou comum.
Igualmente evidente é o facto de as organizações internacionais terem
propiciado um significativo alargamento do leque de matérias reguladas pelo direito
internacional, outrora muito acantonado no âmbito da soberania territorial dos
Estados. Assim é que os campos dos direitos humanos, do direito internacional penal,
do direito internacional económico, do direito internacional do ambiente, do direito
espacial, da exploração de recursos em espaços subtraídos à jurisdição estadual, etc.,
integram hoje, com o inestimável contributo daqueles novos sujeitos, o vasto conjunto
de domínios recobertos por aquele domínio do jurídico. E é também muito por mor do
funcionamento quotidiano das organizações internacionais e da sua actuação na cena
internacional que, a um tempo, se vão desenvolvendo o direito administrativo
internacional e o direito constitucional internacional.
Em segundo lugar, tornou-se frequente, no decurso da segunda metade do séc.
XX, o surgimento de grupos organizados, lutando em nome de um povo (não
autónomo) contra determinadas estruturas de opressão. Este fenómeno dos
movimentos de libertação nacional – assim começaram a ser designados tais grupos –
iniciou-se em África, estendendo-se depois à Ásia, sendo que hoje ele é também
característico da América Latina e até da Europa, embora aqui em muito menor escala.
À medida que os movimentos de libertação nacional deixaram de estar
circunscritos ao continente africano e se disseminaram por outras zonas do globo,
assistiu-se, paralelamente, a um alargamento dos seus objectivos. De facto, se numa
primeira fase estes se consubstanciavam, apenas e tão-só, numa luta contra o
colonialismo, em momento posterior passaram também a abranger a luta contra os
regimes racistas e as situações de dominação estrangeira.

São abundantes e sobejamente conhecidos os exemplos de movimentos de libertação nacional


que se podem fornecer; alguns deles, de resto, surgem ligados a Portugal por razões históricas que
todos temos certamente presentes. Atente-se, v.g., nos casos do PAIGC (Guiné e Cabo Verde), da
FRELIMO (Moçambique), do MPLA, da UNITA e do FLNA (Angola), da FRETILIN (Timor-Leste), da SWAPO
48

(Namíbia), da FRENTE POLISÁRIO (Sahara Ocidental), do ANC (África do Sul), da OLP (Médio Oriente), do
IRA (Grã-Bretanha), dos movimentos vascos da ETA (Espanha), etc..

A pouco e pouco, aos povos que se incluíssem numa das três categorias
sobreditas – os submetidos a regimes colonias, a regimes racistas ou sob ocupação
estrangeira –, contanto que dispusessem de uma estrutura representativa no plano
internacional, a ONU conferiu uma legitimação jurídica e política radicada no direito à
autodeterminação. Direito este que, segundo Resoluções importantes da Assembleia
Geral da Nações Unidas, os povos não autónomos – é este o seu nomen juris – podem
exercer através de várias modalidades alternativas, designadamente os estatutos
internacionais da independência (de longe, o mais frequente na prática internacional),
da associação ou da integração.
O mesmo é dizer, por conseguinte, que esses grupos organizados de indivíduos,
ligados por laços étnicos, históricos, culturais, religiosos, etc., em vista dos objectivos
descritos (apenas deles), ascenderam à qualidade de sujeitos de direito internacional,
no que, aliás, representa uma refracção, ainda que mitigada, do princípio das
nacionalidades do séc. XIX, nos termos do qual, como vimos, cada povo ou nação teria
o direito de constituir-se em Estado independente.
Também o indivíduo – quer com este vocábulo estejamos a pensar em pessoas
físicas ou singulares, quer tenhamos em mente pessoas colectivas – integra hoje, para
um leque contado de matérias, é certo, o elenco dos sujeitos de direito internacional.
Ultrapassada que está a querela doutrinária entre a concepção positivista,
voluntarista, inspirada no dualismo, que denega em termos categóricos a
personalidade jurídica internacional do indivíduo (ANZILOTTI), e as concepções
monistas, antivoluntaristas, que tiveram nos autores da Escola Sociológica Francesa
(v.g., DUGUIT e SCELLE) estrénuos defensores, e que, inversamente, contestam a
personalidade jurídica do Estado, advogando que só o indivíduo beneficia de tal
atributo, não mais é possível negar a evidência de que certas normas de direito
internacional – porventura um número crescente delas – atingem directamente os
indivíduos, provocando desse modo alterações na sua esfera jurídica.
Assim acontece, desde logo, à face do direito internacional geral ou comum,
mormente quando esteja em causa a prática de determinadas infracções
internacionais, valoradas pelos componentes essenciais da comunidade internacional
49

com um grau de censurabilidade particularmente intenso. Assim sucede também à luz


do direito internacional convencional (universal ou particular), conquanto em
domínios específicos – v.g., no que toca aos direitos humanos e à sua protecção no
plano internacional, ou às relações de trabalho – e, não raras vezes, tão-somente
mediante a atribuição de direitos de cariz procedimental. E assim ocorre ainda, v.g., no
âmbito específico do direito da União Europeia, em que são relevantíssimas as
manifestações da personalidade jurídica do indivíduo.
Mas, estreitamente ligado à personalidade jurídica internacional dos povos não
autónomos e do indivíduo está ainda o problema, filiado, de resto, em idêntica matriz
axiológica, dos direitos das minorias, o qual na sociedade hodierna se reveste cada vez
de maior acuidade.
Durante largos anos, o direito internacional não pôde entrar no terreno
pantanoso da protecção das minorias. É que, no limite, o reconhecimento da
existência de grupos minoritários, no seio de um determinado Estado, ligados por
afinidades de ordem vária – v.g., raciais, linguísticas, religiosas, etc. –, que, não se
inserindo na categoria dos povos não autónomos, com titularidade do direito à
autodeterminação externa, caiba, ainda assim, preservar e manter a coberto de
possíveis agressões, representa, sempre que estejam em causa eventuais
comportamentos abusivos da parte da maioria, atribuir aos nacionais desse Estado que
integram tais minorias um direito que afinal será feito valer contra o seu próprio
Estado.
A questão viria, contudo, a internacionalizar-se. A criação de certos Estados e a
rectificação artificial do traçado de fronteiras de outros, após a Primeira Guerra
Mundial, postergando, pouco avisadamente, o princípio das nacionalidades,
transformariam a Europa numa verdadeira “manta de retalhos”. Daí a necessidade,
logo sentida pelos sujeitos primários de direito internacional de serem criados
mecanismos tendentes a assegurar uma protecção efectiva de alguns direitos das
minorias. De entre estes, destacam-se, v.g., o direito à nacionalidade, o direito ao uso
da língua materna (em matéria de relações comerciais, de religião, de ensino, de
publicações, etc.), o direito à propriedade privada e o direito a um tratamento
igualitário ante os nacionais maioritários.
50

O Tribunal Permanente de Justiça Internacional teve, por diversas vezes, ocasião de pronunciar-
se acerca da interpretação e aplicação de alguns desses direitos, destacando-se os pareceres nos casos
do acesso às escolas da minoria alemã na Alta Silésia, das «Comunidades» greco-búlgaras, do
tratamento dos nacionais polacos em Dantzig, e das escolas minoritárias na Albânia (cfr.,
respectivamente, Pareceres do TPJI, Séries A/B, nº40, Série B, nº17, Séries A/B, nº44, e Séries A/B,
nº64).

Mais tarde, nem a Carta das Nações Unidas nem a Declaração Universal dos
Direitos do Homem fizeram menção específica às minorias e aos seus direitos no plano
internacional, sem embargo de em ambos os instrumentos estarem proscritas as
discriminações em função da raça, do sexo, da língua e da religião.
Marco decisivo nesta problemática viria, porém, a ser constituído pelo Pacto
Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, no qual, com carácter pioneiro,
se atribuem direitos às minorias qua tale. Passara-se então, finalmente, da fase da sua
mera protecção pela via diplomática para a do reconhecimento, se bem que ainda algo
titubeante, da sua personalidade jurídica. Uma personalidade jurídica, note-se, que
verdadeiramente se não autonomiza da personalidade internacional do indivíduo, já
que esta, compreendida lato sensu, abrange também justamente os grupos de
indivíduos que são as minorias.

Organizações internacionais, povos não autónomos e indivíduos (nestes se


incluindo, como vimos as minorias); são estes, pois, os novos sujeitos de direito
internacional, que vieram juntar-se aos sujeitos tradicionais: os Estados e os
insurrectos. De relevar ainda a presença de sujeitos menores – como, por exemplo, as
centenas de organizações não governamentais hoje existentes – em acontecimentos
importantes da vida internacional, designadamente no seio de conferências
internacionais, no âmbito dos quais dão conta da sensibilidade de determinados
sectores da sociedade civil global relativamente a assuntos que estejam a ser
debatidos, condicionando as opções fundamentais dos Estados e interferindo, desse
modo, nos processos de decisão e na tarefa de produção normativa. Com uma
informação que circula instantaneamente, não parece, aliás, descabido falar-se no
embrião de uma «opinião pública à escala do planeta» (JORGE MIRANDA).
51

3.2 – Fontes de direito

Também quanto às fontes de direito o modelo da Carta das Nações Unidas


trouxe consigo uma expansão do quadro de fontes tradicional.
Efectivamente, ao costume e aos tratados bilaterais do modelo clássico, haverá
agora que acrescentar o costume «selvagem», os tratados multilaterais e as resoluções
das organizações internacionais. Façamos-lhes uma breve menção pela ordem que
ficaram enunciadas.
Os chamados costumes «selvagens» ou instantâneos patenteiam uma
originalidade no respectivo procedimento de constituição. Sempre, até há não muito
tempo, havia sido ponto assente que uma norma costumeira sé pela conjugação do
elemento material ou objectivo (a prática) com o elemento subjectivo ou psicológico (a
convicção de obrigatoriedade jurídica), e provada que estivesse a precedência do
primeiro em relação ao segundo, se tornaria perfeita. Cedo, porém, se tornou clara a
difícil, quando não impossível, compatibilização entre a excessiva morosidade do
processo tradicional de formação do costume e as crescentes exigências de rapidez e
prontidão que a realidade social coloca ao direito internacional.
Por esse facto e, em regra, nos domínios (recentes) que escapavam à regulação
do direito clássico, emergiram práticas normativas novas na comunidade internacional.
Os costumes «sauvages» resultam de uma inversão no processo formativo, acima
explanado, dos costumes «sages» ou “bem comportados” do passado; facto que torna
bem mais célere a constituição daqueles: surge, com efeito, numa primeira fase, um
sentimento de obrigatoriedade categoricamente afirmado e só depois,
paulatinamente, se irão, entre os sujeitos de direito internacional, sedimentando
comportamentos consentâneos com essa opinio juris previamente firmada.
As convenções internacionais, por outro lado, cessam de ser apenas bilaterais.
Na verdade, o recurso aos tratados multilaterais – ou seja, celebrados entre mais do
que duas partes – torna-se cada vez mais frequente nesta fase de desenvolvimento do
direito internacional. Acresce que muitos deles são tratados abertos, isto é, tratados
que permitem a um Estado não contratante tornar-se parte deles, mediante um
simples acto unilateral (v.g., assinatura, adesão, etc.), sem que as partes originárias
possam impor condições especiais.
52

Como sub-categoria destes, temos os tratados multilaterais gerais, que, em


virtude de serem amplamente participados, têm vocação universal, constituindo uma
espécie de acordos colectivos ou tratados-lei fundados numa vereinbarung.

É já antiga na doutrina a distinção entre tratado-lei (resultante de uma vontade colectiva) e


tratado-contrato (vertrag). Mas, se é inquestionável que ela se reveste de algum interesse histórico e
sociológico, não é menos verdade que se apresenta, aparentemente, desprovida de alcance prático,
visto não existir um regime jurídico próprio de cada uma das mencionadas categorias de tratados. Ainda
assim, poderão, em certos casos, os tratados-lei produzir efeitos ultra partes (cfr. o ponto 5.1 do Cap. II).
De todo o modo, no tratado-contrato as partes, visando a satisfação de interesses antagónicos,
emitiriam vontades convergentes e contrapostas, originando, dessa forma, situações opostas de
carácter subjectivo; no tratado-lei, por seu turno, havendo, inversamente, a prossecução de interesses
comuns, os Estados partes emitiriam um feixe de vontades paralelas no mesmo sentido, criando, desse
jeito, regras gerais e objectivas. Compreensível é, portanto, que os primeiros se assemelhem aos
contratos de direito interno (v.g., o contrato de compra e venda) e os segundos se aproximem antes do
modelo dos actos normativos emanados pelas ordens estaduais (v.g., as leis).

As convenções de codificação do direito internacional, os tratados concluídos


sob os auspícios de organizações internacionais, as convenções sobre o controlo e a
redução de armamentos e ainda as respeitantes à protecção dos direitos fundamentais
da pessoa humana, inserem-se, usualmente, naquela categoria de tratados
multilaterais gerais.
Por outra parte, expedientes técnicos como a assinatura diferida, a adesão e o
mecanismo da formulação de reservas, destinados a facilitar a participação dos
Estados nos tratados – forçando um pouco a nota, diríamos idóneos a conferir-lhes um
quase «direito ao tratado» –, inscrevem-se numa lógica, claramente perceptível no
modelo da Carta das Nações Unidas, de universalização do direito convencional, que
tem subjacente, como se alcança, o intuito de reforçar o grau de integração da
comunidade internacional.
Os actos jurídicos unilaterais, maxime os que dimanam das organizações
internacionais, isto é, as resoluções, completam o quadro das novas fontes de direito
internacional. O que bem se compreende. De facto – vimos isso no número anterior –,
as organizações internacionais têm hoje uma personalidade jurídica distinta da dos
Estados membros, sendo que o poder de emitir actos normativos de alcance geral ou
individual se conta entre os corolários daquele atributo. E pese embora a confusão
53

terminológica que tem grassado quanto à designação mais apropriada para aqueles
actos, podemos talvez lançar mão de um termo genérico para lhes aludir: exactamente
o termo resolução.
As resoluções podem, todavia, ser de diversa natureza, em função do
respectivo alcance e do maior ou menor grau de vinculação de que, em concreto, se
revistam, assumindo, nomeadamente, a forma de decisões, recomendações ou
pareceres (cfr., infra, Cap. II). Ora, aqueles que sejam desprovidos de força jurídica
obrigatória (casos das recomendações e dos pareceres), analisando-se, por esse facto,
em actos meramente exortatórios, constituem, conforme sublinhámos supra, o
terreno privilegiado de incidência da soft law em direito internacional.

3.3 – Princípios fundamentais

Constitui, outrossim, factor digno de realce no direito internacional das últimas


décadas, o surgimento de um conjunto de princípios jurídicos reputados de essenciais
pela comunidade internacional no seu conjunto (cfr. o que, sobre o assunto, dissemos
na parte introdutória, a propósito da hierarquização do sistema normativo).
Os valores que visam tutelar e o carácter universal que, desse modo, exibem
determinam a sua superioridade hierárquica relativamente aos restantes princípios e
normas que integram o direito internacional positivo, permitindo-lhes orientar a
conduta dos destinatários (os sujeitos de direito internacional) mediante a imposição
de obrigações «de valor reforçado».
A que ficou a dever-se este novo estado de coisas?
Em larga medida – no entendimento que partilhamos com G. ABI-SAAB –,
resultou da consideração, a partir da segunda metade do século XX, de determinados
valores como valores supremos da comunidade internacional. Destes, dois há que se
afirmam como absolutamente primaciais, assim se revestindo de especial
proeminência.
Referimo-nos, em concreto, ao valor da paz, esse verdadeiro «bem público», no
qual muitas das soluções normativas que na Carta das Nações Unidas obtiveram
acolhimento, designadamente as constantes do Capítulo VII, encontram o seu sentido
último, e ao valor – indissociável do primeiro – da protecção da dignidade da pessoa
humana, cuja interiorização se concretiza a par da afirmação categórica da
54

transcendência e da integridade do homem, o que espoletou a adopção de inúmeras


convenções internacionais destinadas a tutelar os direitos e liberdades fundamentais
de todos os indivíduos, independentemente de raça, sexo, condição social, convicções
pessoais, etc. (humanização do direito internacional).
A abertura à axiologia, converteu o direito internacional num sistema
normativo teleologicamente orientado, cujas normas, por conseguinte, se dirigem à
consecução de certas finalidades, não se bastando, como no modelo de Westefália, em
garantir a mera coexistência entre os Estados.
Não por acaso os aludidos princípios fundamentais – sobretudo, se
apresentarem a natureza de jus cogens – estão na base de um aclamado processo de
constitucionalização do direito internacional. De algumas das suas implicações
daremos nota abaixo.

3.4 – Recurso à força

Se no modelo clássico o recurso à força nas relações internacionais era


considerado legítimo ou, pelo menos, eram ténues os limites impostos aos Estados
numa competência que, no essencial, se tinha por discricionária, o modelo moderno,
pelo contrário, caracteriza-se pelo lugar proeminente que no edifício normativo do
direito internacional passa a ocupar o princípio da proibição do recurso à força nas
relações internacionais.

Várias foram as etapas percorridas no longo processo que haveria de culminar com a
consagração, no art. 2.º, nº 4 da CNU, do referido princípio da proibição da ameaça e do uso da força
nas relações internacionais.
A primeira tentativa de limitação do recurso à guerra, que pretendeu pôr cobro a uma
utilização abusiva das represálias armadas, é representada pela Convenção Drago-Porter, integrada na
segunda Convenção da Haia, de 1907, e que teve origem nas operações de bloqueio marítimo e
bombardeamento de portos venezuelanos por parte da Itália, da Alemanha e do Reino Unido. Nela as
partes signatárias se comprometem a não recorrer à força armada para obter o reembolso de dívidas
contratualmente estabelecidas.
O segundo passo que foi dado no sentido apontado é constituído pelas limitações de recorrer à
guerra, constantes do Pacto da Sociedade das Nações. Aí se dizia expressamente – nos arts. 10.º a 13.º –
que guerras deveriam ser consideradas ilícitas; o que, a contrario, de acordo com o princípio segundo o
qual tudo aquilo que não é proibido é permitido abria a porta à consideração de todas as outras, que se
não enquadrassem naquela primeira categoria, como guerras lícitas ou legítimas. Por conseguinte, como
55

que, involuntariamente, se recuperava o conceito de guerra justa em situações contadas, o que é tanto
mais verdade quanto é certo que, no dealbar dos anos vinte, os Estados não estavam ainda preparados
para sufragar, na matéria em apreço, uma solução drástica.
A terceira etapa foi vencida com a adopção do Pacto de Paris ou Briand-Kellogg (esta última
designação em homenagem aos seus mentores: Aristides Briand, ministro dos negócios estrangeiros
francês, e Frank Kellogg, o seu homólogo americano), de 1928. Este tratado, inicialmente assinado por
15 Estados, vinculava já 63 em 1939, circunstância que, atento o número total de Estados na época, lhe
conferia uma considerável universalidade. Pela primeira vez em termos genéricos, as partes
contratantes declararam abster-se de recorrer à guerra enquanto instrumento de resolução de conflitos
internacionais. Não obstante tal avanço decisivo, também este texto viria a revelar-se assaz claudicante
do ponto de vista da sua eficácia prática, em virtude da completa ausência de mecanismos
sancionatórios aí previstos, que pudessem reprimir a eventual violação das suas disposições.
Todo este caminho viria, como se disse, a desembocar na interdição geral de recurso à força,
plasmada na Carta das Nações Unidas, no art. 2.º, nº 4 respectivo, cujo concreto alcance teremos ensejo
de procurar compreender em sede própria.

O cerceamento aos Estados da liberdade de fazer a guerra, conduziu a que na


Carta das Nações Unidas, se procurasse torná-los comparticipantes num sistema de
segurança colectiva, em que o recurso à força constitui uma espécie de ultima ratio,
que apenas a um órgão internacional – o Conselho de Segurança – caberá,
centralizadamente, decretar.
A força passou assim a ser posta em causa enquanto critério (quase exclusivo)
de legitimação de situações fácticas nas relações internacionais. Daí,
consequentemente, a inevitável perda de importância de um dos mais lídimos
representantes do direito clássico ao nível dos seus princípios fundamentais: o, já
aludido, princípio da efectividade; a tal ponto que surgiu mesmo um postulado que,
em boa medida, o vem contrariar. Referimo-nos ao dever de não reconhecimento de
situações ilícitas, firmado pelo Secretário de Estado americano, LEWIS STIMSON, já em
1931.

A chamada doutrina Stimson do não reconhecimento teve origem num conhecido incidente
histórico: a ocupação da província chinesa da Manchúria pelas tropas japonesas, em 1931, que aí
pretenderam criar um Estado independente. Na sequência do episódio, o Secretário de Estado Stimson
enviou uma nota ao governo japonês, declarando a intenção de o governo americano não reconhecer
qualquer situação que houvesse sido constituída em infracção às obrigações previamente assumidas no
supracitado Pacto de Paris, ou Briand-Kellog, de 1928. Algum tempo depois, e como a doutrina Stimson
56

não tivesse obtido a necessária repercussão, a Assembleia Geral das Nações Unidas viria a adoptar uma
resolução que, a um tempo, confirmava e universalizava o dever de não reconhecimento de situações,
ainda que efectivas ou já consolidadas, contrárias a princípios fundamentais do direito internacional.

Claro que a consagração de um princípio de proibição do recurso à força nas


relações internacionais, não obsta a que aos Estados seja reconhecido um direito
inerente de legítima defesa (cfr. art. 51.º da CNU) nem que, abstractamente, e dentro
de apertados limites, se configure a possibilidade de utilizar as armas para fazer
cumprir outros princípios fundamentais que estejam a ser violados de forma gritante
(v.g., o princípio do respeito pelos direitos humanos ou o princípio da
autodeterminação dos povos). A seu tempo, debruçar-nos-emos sobre essas questões
controvertidas.

3.5 – Responsabilidade internacional

Como vimos já, no ponto 9 do capítulo introdutório, a identificação de uma


espécie de direito constitucional internacional não poderia deixar de ter
consequências no plano da responsabilidade internacional.
Retomando o esquema de A CASSESE, poderá dizer-se que, sempre que está
em causa a violação grave de princípios fundamentais de direito internacional, o
habitual «assunto privado» entre o Estado autor do acto ilícito e o Estado vítima de tal
conduta contrária ao direito internacional se converte num autêntico «assunto
público» (universalização da responsabilidade), pois que, atentos os interesses (gerais
ou “comunitários”) em jogo, essa forma agravada de ilicitude, putativamente, diz
respeito a toda a comunidade internacional.
Por outro lado, ao tornar-se destinatário directo de certas normas jurídicas
internacionais, o indivíduo ascendeu, como se disse, à qualidade de sujeito de direito
internacional, o que deu azo à sua responsabilização pela prática de ilícitos graves
(nomeadamente, os crimes internacionais). Numa palavra: a responsabilidade
internacional, outrora exclusivamente colectiva, individualiza-se, recaindo não apenas
sobre a pessoa colectiva Estado, mas também, concomitantemente, sobre aqueles
(pessoas físicas) que, em sua representação, hajam estado implicados na comissão de
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, agressão, terrorismo, etc..
Em terceiro lugar, cessou o instituto da responsabilidade internacional
57

subjectiva (por actos ilícitos) de exaurir-se numa finalidade meramente reparatória,


assumindo, igualmente, perante as formas mais graves de ilicitude, uma dimensão
sancionatória (ou punitiva); dimensão essa de cuja concretização prática se incumbem,
enquanto terceiros imparciais, as organizações internacionais (v.g., cominação de
sanções económicas, diplomáticas, militares, etc., ao Estado autor do acto ilícito).
Em suma, vislumbram-se hoje (pelo menos) dois regimes distintos de
responsabilidade internacional: o regime-regra, herdado do modelo de Westefália
(cfr., supra), que se aplica aquando da prática de actos ilícitos ordinários, e um regime
excepcional (com consequências substantivas e instrumentais suplementares) que se
desencadeia perante a violação grave de obrigações decorrentes de normas
imperativas de Direito Internacional (cfr., a este propósito, os artigos 41.º e 42.º dos
Artigos da CDI, adoptados, sob a forma de Resolução, pela Assembleia Geral da ONU,
em 12 de Dezembro de 2001). Sobre os lineamentos principais deste último, ocupar-
nos-emos, infra (Cap. IV).

Num outro plano, a partir da década de sessenta do séc. XX, foram consagrados
alguns regimes convencionais – a par de outros firmados pela jurisprudência
internacional – de responsabilidade internacional objectiva, também designada pelo
risco ou, ainda, por actividades não proibidas pelo direito internacional.
Em resposta a tais desenvolvimentos normativos, a Comissão de Direito
Internacional, que havia empreendido os seus trabalhos em matéria de
responsabilidade internacional tão-somente no âmbito da responsabilidade subjectiva
(ou por actos ilícitos), dirigiu, alguns anos volvidos, o seu esforço codificador para
aquela nova forma de responsabilidade, não fundada na ilicitude, que surge
indissociavelmente ligada ao progresso científico e tecnológico, próprio da sociedade
em que vivemos.
Em causa estão, habitualmente, actividades lícitas, mas intrinsecamente
perigosas, também designadas ultra-hazard, ou de risco excepcional, como, v.g., a
utilização pacífica e o transporte marítimo de energia nuclear, o transporte de
hidrocarburos pelos navios e o lançamento de engenhos espaciais.
Também os danos ambientais transfronteiriços ou actos ultra vires praticados
58

por funcionários do Estado poderão, em determinadas circunstâncias, fazer


desencadear os mecanismos da responsabilidade internacional objectiva.

3.6 – Expansão e fragmentação do direito internacional

O contraste entre o direito internacional clássico (modelo de Westefália) e o


direito internacional moderno (modelo da Carta das Nações Unidas) reside também
nos domínios do relacionamento entre os respectivos sujeitos de direito abrangidos
pelas suas normas.
As últimas décadas têm, com efeito, prodigalizado notórios desenvolvimentos,
no que toca ao alcance da regulação jurídico-normativa internacional. A expansão do
direito das gentes é algo que não suscita contestação. Novos ramos do direito
internacional especial atestam-no de forma impressiva. Pense-se, v.g., entre outros, no
direito internacional dos direitos humanos, no direito internacional penal, no direito
internacional do ambiente, no direito internacional económico, no direito do espaço
extra-atmosférico, etc. (cfr., supra, ponto 3.1).
O jus cogens, a par da tendência de humanização do direito internacional, serve
porventura de fundamento aglutinador a essa expansão. Em contraponto, todavia,
deparamo-nos actualmente, quer no plano universal, quer no plano regional, com a
multiplicação de instituições internacionais, sejam de carácter intergovernamental,
sejam de pendor supranacional, no seio das quais operam, por vezes, diversos órgãos
jurisdicionais. Paralelamente, a proliferação de regimes jurídicos distintos, que se
intersectam ou (parcialmente) se sobrepõem, favorece o surgimento de
incongruências, conflitos potenciais ou mesmo declaradas contradições no momento
da realização (aplicação) concreta do direito internacional. Este fenómeno, que a
Comissão de Direito Internacional e os autores têm apelidado de fragmentação ou
sectorialização do direito internacional, ameaça, naturalmente, a sua coerência
sistémica, sendo que o aludido movimento de sinal contrário (a constitucionalização)
não parece, por ora, capaz de esconjurar os riscos de uma certa desagregação ou
fraccionamento .
Surgem, ainda assim, como alentadores o diálogo e a articulação encetados,
59

nos últimos anos, entre os diversos tribunais internacionais. Tal vem criando um
ambiente propício às convergências jurisprudenciais, para as quais, decerto, em muito
contribuem as cross references que se encontram em sentenças recentes, quer dos
tribunais regionais de direitos humanos entre si, quer destes com decisões do TIJ e
vice-versa, ou deste último com o Tribunal Internacional de Direito do Mar e vice-
versa, quer, ainda, dos vários tribunais penais internacionais (incluindo os híbridos ou
internacionalizados) entre si (CANÇADO TRINDADE).

3.7 – Conclusão

Em suma, o direito internacional contemporâneo é um direito axiologicamente


fundado, que não mais repousa na ideia falaciosa de uma igualdade puramente formal
entre os Estados. As suas normas, porque teleologicamente orientadas, visam moldar
ou conformar a realidade a que se dirigem, sem se bastarem, como se bastavam no
modelo clássico, com a mera ratificação do statu quo.
Ao longo das últimas décadas, os ventos de mudança fizeram-se sentir em
matéria de sujeitos de direito, de procedimentos de criação, modificação e extinção de
normas jurídicas internacionais, de proibição recurso à força e das correspondentes
causas de exclusão da ilicitude, de responsabilidade internacional, de exploração e
utilização de recursos em espaços internacionais, etc.. Como pano de fundo, sobressai
uma exaltada humanização do direito internacional, parecendo dar razão àqueles que
nele descortinam uma recuperação da velha máxima latina, ominum causa omne jus
constitutum est; ou, se se preferir, a quem, como os juízes do TPIJ, no âmbito do
emblemático caso Tadic, pré-anunciaram a substituição de um State-sovereignty-
oriented approach por um human- being-oriented approach.
Por outro lado, «em vista das interdependências crescentes» (ADRIANO
MOREIRA), verifica-se um indesmentível reforço do grau de integração e de
institucionalização de uma sociedade que, em certos domínios do relacionamento
interestadual, está em trânsito para o modelo da comunidade.
A cíclica eclosão de conflitos armados, as crises humanitárias e de refugiados
que deles derivam, a pobreza e o subdesenvolvimento, os “core crimes”, o terrorismo,
o cibercrime, as alterações climáticas, a crise energética, etc., permanecem, todavia,
como sinais de apreensão, face a uma Organização Mundial carecida de uma profunda
60

reforma institucional, sobretudo no que toca ao Conselho de Segurança – órgão


central do sistema de segurança colectiva – e, até, ao próprio Tribunal Internacional de
Justiça, cujo funcionamento permanece algo aleatório.
61

CAPÍTULO II

FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL

Sumário: I – Considerações preliminares. II - As convenções internacionais. III – O costume. IV –


Os princípios gerais de Direito. V – Os actos jurídicos unilaterais. VI – A jurisprudência e a Doutrina. VII -
A equidade.

Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Azevedo
Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1988; Bin Cheng, General
Principles of law as applied by International Courts and Tribunals, Cambridge University Press, 2006;
Christian Tomuschat, Obligations arising for States without or against their will, RCADI, 1993-IV, vol.
241; Francisco Resek, Direito Internacional Público: Curso Elementar, 17 ed., São Paulo, Saraiva, 2018;
Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Almedina,
1993; Hein Kötz, Vertragsrecht, 2º ed., Tübingen, 2012; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional
Público, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4 edição,
Fundação Calouste Gulbenkian,1965; Jónatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestegal, 2020;
Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua
Portuguesa, 5ª edição, Almedina, 2020; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição,
Principia, 2016; José Manuel M. Cardoso da Costa, Os princípios Gerais de Direito como Fonte de Direito
Internacional (policopiado), Coimbra, 1963; Quoc Dinh/Daillier/Pellet, Droit International Public, LGDJ,
Paris, 1994; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition, Cambridge University Press, 2017; Maria
Luisa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global do Século XXI, AAFDL, 2019; Miguel
Galvão Teles, Formação do costume, V Encontro de Professores Portugueses de Direito Público (ebook,
icjp), 2012; Rosalyn Higgins, Time and the Law: International Perspectives on na old problema, ICLQ,
2000, vol. 46; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª ediºão, Coimbra Editora, 2014;
Verdross/Simma, Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker & Humbolt, 2010.

I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Importa agora que nos ocupemos da formação do direito internacional; que o


mesmo é dizer dos vários procedimentos ou técnicas de criação (mas também de
modificação ou extinção) das normas jurídico-internacionais. Tratar-se-á, portanto, de
estudar, em seguida, as fontes formais deste ramo do direito.
62

De tais mecanismos (ou fontes formais), através das quais as normas passam a
fazer parte do direito positivo, se distinguem as fontes materiais, que, diversamente,
como se disse já, constituem os fundamentos sociológicos das normas, a sua base
política, moral, económica, etc., apresentando, por isso, uma particular dinâmica que
as fontes formais – meros procedimentos técnicos – não possuem (QUOC
DINH/DAILLIER/PELLET).
Mas quais são então as fontes formais de direito internacional?
Na ausência de uma Constituição ou Lei Fundamental internacional, só um
texto que beneficiasse de uma aceitação generalizada entre os Estados poderia,
validamente, enunciar tais fontes. E tal sucede, de facto, com o Estatuto do Tribunal
Internacional de Justiça, que, em função do número de Estados que a ele aderiram, é
objecto de um consenso universal.
Ora, no artigo 38.º respectivo surgem indicadas as fontes formais de direito
internacional a que, na solução de litígios que lhe sejam submetidos, o Tribunal poderá
recorrer.
Atentemos:

«1º - O Tribunal, cuja função é resolver, de acordo com o direito internacional, os litígios que
lhe sejam submetidos, aplicará:

a) - as convenções internacionais, gerais ou especiais, que estabeleçam regras expressamente


reconhecidas pelos Estados em litígio;
b) - o costume internacional, como prova de uma prática geral aceite como sendo de direito;
c) - os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas;
d) - sob reserva das disposições do artigo 59.º, as decisões judiciais e os ensinamentos dos mais
altamente qualificados publicistas das várias nações, como meios auxiliares para a determinação das
regras de direito.

2º - Esta disposição não prejudicará a faculdade de o Tribunal, se as partes estiverem de


acordo, decidir ex aequo et bono».

Como se vê, são três as fontes formais indicadas neste preceito: as convenções
internacionais (a)), o costume (b)) e os princípios gerais de direito (c)).
Seguidamente, a alínea d) desse parágrafo primeiro faz ainda referência a dois
modos auxiliares de determinação das regras jurídicas, que, não tendo em si mesmos a
virtualidade de criar direito, não podem ser considerados fontes em sentido formal,
63

mas, tão-só, fontes auxiliares: a jurisprudência e a doutrina.


Finalmente, o parágrafo segundo alude à possibilidade de o Tribunal
Internacional de Justiça decidir de acordo com critérios de equidade (decisão ex aequo
et bono), se, para tanto, as partes o autorizarem.
Que conclusões nos permite uma análise geral e perfunctória deste artigo 38.º
do ETIJ?

Em primeiro lugar, a de que não é exaustiva a lista dos modos de revelação de


normas de direito internacional nele contida. Há, na verdade, outros procedimentos
igualmente idóneos à criação de normas internacionais que o artigo 38.º não
contempla. É o caso dos actos jurídicos unilaterais, quer aqueles que são emitidos
pelos Estados, quer, sobretudo, os que são adoptados pelas organizações
internacionais, nos termos dos respectivos tratados constitutivos. Uns e outros
assumem hoje uma importância que claramente não possuíam até à segunda metade
do séc. XX.
Em segundo lugar, a de que, no direito interestadual, não há, propriamente,
uma relação de hierarquia entre fontes formais de direito internacional – meros
procedimentos técnicos. Ainda assim, no que, especificamente, diz respeito às
organizações internacionais, mormente aquelas que dispõem de sistemas jurídicos
internos mais elaborados e aperfeiçoados em termos de relações funcionais
interorgânicas, dificilmente se poderá negar que a uma hierarquia de órgãos há-de,
por força, corresponder uma hierarquia dos respectivos procedimentos de produção
normativa, o que não deixará de repercutir-se no valor intrínseco dos actos unilaterais
que deles dimanam.

Assentar, todavia, na sobredita ausência de hierarquia entre fontes formais, no âmbito do


direito interestadual, não significa, evidentemente, que idêntica conclusão deva formular-se para as
normas reveladas por essas fontes. Trata-se, com efeito, de conceitos distintos: as fontes são, como se
assinalou, meros processos técnicos de produção jurídica, enquanto as normas se traduzem, antes, na
substância ou conteúdo das regras que são reveladas por essas fontes. Ora, pode muito bem suceder
que, em razão do seu conteúdo, ou do seu objecto de protecção, uma determinada norma tenha um
valor hierárquico superior a outras. É, designadamente, o caso, que acima não deixámos inadvertido
(cfr., supra, cap. I), das normas imperativas ou de jus cogens, que prevalecem sobre as demais.
64

Mas, inexistindo hierarquia entre as fontes mencionadas no artigo 38.º do ETIJ,


a verdade é que não foi aleatória ou fruto do acaso a ordem pela qual foram
enunciadas. Se bem virmos, as convenções internacionais figuram em primeiro lugar,
seguindo-se o costume e, só depois, os princípios gerais de direito. Pois bem, como
verificaremos adiante, tal significa, em bom rigor, uma ordem sucessiva de tomada em
consideração. Quer dizer, por razões de certeza e segurança jurídicas, os juízes do
Tribunal Internacional de Justiça, deverão, inicialmente, procurar nas convenções
internacionais – cuja existência não oferece contestação – a solução para os casos que
lhes sejam submetidos para apreciação e julgamento; apenas em momento
subsequente se apropositará o recurso ao costume e, na falta das duas primeiras
fontes (detectada, pois, uma lacuna de regulamentação internacional), aos princípios
gerais de direito, que, originariamente, promanam do direito interno e são
transponíveis para o plano internacional (cfr. infra).
Em terceiro lugar, a conclusão de que a enunciação das fontes não foi
acompanhada da respectiva definição. A razão para tal reside, possivelmente, no facto,
salientado por AFONSO QUEIRÓ, de, para além do artigo 38.º do ETIJ, existir uma
norma imanente, de validade geral e revelada por via consuetudinária, que nos diz
quais são e em que consistem as várias formas de produção jurídica admitidas na
comunidade internacional. Assim, o artigo 38.º, no contexto mais circunscrito dos
Estados parte no ETIJ, que pleiteiam perante o Tribunal Internacional de Justiça, mais
não fez do que, sob a forma escrita, dar expressão àquela norma consuetudinária
preexistente, isto é, mais não visou do que declará-la e confirmá-la (AFONSO QUEIRÓ).
Uma vez tecidas estas considerações genéricas acerca do artigo 38.º do ETIJ, é
chegado o momento de passarmos ao estudo das várias fontes do direito
internacional. Para tanto, seguiremos a ordem pela qual naquela disposição surgem
indicadas, acrescentando, todavia, ao nosso excurso, os actos jurídicos unilaterais (dos
Estados e das organizações internacionais), que, como se disse, não constam daquele
preceito, apesar de hoje se assumirem, ao lado dos classicamente admitidos, como um
importante modo de revelação de normas jurídicas internacionais.
65

II – CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

Sumário: 1 – Noção. 2 – Classificações. 2.1 – Classificações formais. 2.2 – Classificações


materiais. 3 – Procedimento de conclusão. 3.1 – Procedimento comum às convenções bilaterais e
multilaterais. 3.2 – Procedimentos especiais. 4 – A participação nas convenções internacionais. 4.1 –
Mecanismos tendentes a facilitar a participação dos Estados nas convenções internacionais. 5 – A
eficácia das convenções internacionais em relação a terceiros. 5.1 – O princípio da relatividade dos
efeitos das convenções internacionais: desvios e excepções. 6 – Condições de validade das convenções
internacionais. 6.1 – Capacidade das partes. 6.2 – Regularidade do consentimento. 6.3 – Licitude do
objecto. 6.4 – Regime da invalidade das convenções internacionais. 7 – A interpretação das convenções
internacionais. 8 – Revisão e modificação das convenções internacionais. 9 – Extinção e suspensão da
vigência das convenções internacionais. 10 – Fiscalização da constitucionalidade das convenções
internacionais.

1 – Noção

Desde há muito que os Estados usam celebrar acordos com vista à criação de
obrigações jurídicas recíprocas. Daí que os elementos que integram a definição de
tratado ou convenção internacional se achem perfeitamente estabelecidos, não
constituindo fonte de discordância entre os jusinternacionalistas.
Afigura-se-nos adequada a seguinte noção: manifestação de vontades
concordantes, entre dois ou mais sujeitos de direito internacional, destinada à criação
de vínculos jurídicos e regulada, concorrentemente, pelo direito interno e pelo direito
internacional.
Analisemos os vários segmentos da definição proposta.
Manifestação de vontades concordantes. A celebração de um acordo
pressupõe, efectivamente, um encontro de vontades, ainda que não, necessariamente,
simultâneo (pode, com efeito, mediar algum tempo entre uma prévia declaração de
vontade e a respectiva aceitação), adequado a permitir o surgimento de normas
jurídicas que, no futuro, irão disciplinar a conduta dos sujeitos intervenientes nesse
acordo (ex consensu advenit vinculum). Sendo, todavia, necessária tal concordância de
vontades, certo é que os interesses prosseguidos pelas partes poderão ser divergentes.

Recordemos, a este propósito, a distinção a que, em outro contexto, já aludimos, entre tratado-
lei (os interesses prosseguidos pelas partes são idênticos, dando, consequentemente, lugar à criação de
66

regras gerais e objectivas) e tratado-contrato (os fins visados, sendo diversos, ocasionam a formação de
situações opostas de carácter subjectivo).

Entre (dois ou mais) sujeitos de direito internacional. Até determinada altura,


tais sujeitos eram apenas os Estados, porque, justamente, apenas eles beneficiavam
do atributo da subjectividade (personalidade) jurídica internacional. Mais tarde,
havendo aumentado o número dos sujeitos de direito internacional, assistiu-se,
paralelamente, ao aparecimento de outras categorias de tratados, em que um ou
ambos os intervenientes são entidades não estaduais. É o caso das convenções
concluídas entre Estados e organizações internacionais ou celebradas apenas entre
estas. Não obstante, os tratados entre Estados permanecem, naturalmente, como a
categoria mais importante e frequente.
Destinada à criação de vínculos jurídicos. Bem vistas as coisas, uma convenção
internacional é assimilável a um negócio jurídico do qual resultam certas normas
obrigatórias para as partes contratantes (DÍEZ DE VELASCO e P. GUGGENHEIM). Assim,
de resto, os tratados se distinguem dos chamados actos concertados de carácter não
convencional – denominados, na doutrina anglo-saxónica, gentlemen’s agreements –
que, como a própria designação deixa entrever, resultam de uma negociação entre
representantes governamentais, em seu próprio nome, sem a intenção de vincular os
respectivos Estados (AZEVEDO SOARES). Por essa razão, e sem embargo da
importância que, por vezes, assumem nas relações internacionais, acham-se arredados
da esfera do direito internacional.
Regulada, concorrentemente, pelo direito interno e pelo direito internacional.
Pode, à primeira vista, parecer algo estranho que, em matéria de tratados, não haja
uma intervenção exclusiva do ordenamento jurídico internacional. Sim, não são as
convenções internacionais concluídas entre sujeitos de direito internacional e dirigidas
à produção de efeitos nessa ordem jurídica? Então para quê fazer apelo ao direito
interno? A verdade, contudo, é que – como se tornará claro mais adiante – estamos
em presença de um domínio no qual se interpenetram ambos os ordenamentos,
tornando-se imprescindível o recurso ao direito interno (constitucional) dos Estados
parte, mormente no que toca a algumas das etapas do procedimento de conclusão
desses pactos. Donde não serem eles, de facto, regulados em exclusivo – conquanto o
sejam predominantemente –, pelo direito internacional.
67

Também a Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969


(doravante, CV), por isso apelidada de “Tratado dos Tratados”, contém, no seu artigo 2.º, parágrafo 1-
a), uma definição de tratado, que, não divergindo da acima proposta, apresenta um carácter mais
formal e, por conseguinte, menos explicativo: «A expressão «tratado» designa um acordo internacional
concluído por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, quer esteja consignado num
instrumento único, quer em dois ou mais instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua denominação
particular». Idêntica noção figura, outrossim, com as devidas adaptações, na Convenção de Viena Sobre
o Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais Ou entre Organizações
Internacionais, de 21 de Março de 1986.

2 – Classificações

Por razões de comodidade expositiva e de melhor sistematização,


adoptaremos, na esteira de QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, dois métodos de
classificação: um que, à luz de vários critérios, atenderá a determinadas variáveis
extrínsecas às convenções internacionais (classificações formais); e outro que terá,
antes, em conta aspectos intrínsecos, de conteúdo ou função jurídica (classificações
materiais).

2.1 – Classificações formais

Critério da qualidade das partes. Segundo este critério – como, aliás, resulta do
que acima foi dito –, podem identificar-se três tipos de convenções: as celebradas
entre Estados, as concluídas entre Estados e organizações internacionais, e as
adoptadas por organizações internacionais.
Sem embargo de algumas naturais particularidades dos respectivos regimes
jurídicos, importa relevar a tendência, no âmbito da codificação do direito dos
tratados, para uniformizá-los o mais possível, independentemente dos sujeitos que
hajam intervindo na sua conclusão.

Critério do número de partes. Releva, desta feita, a summa divisio entre


tratados bilaterais e tratados multilaterais, consoante na respectiva celebração
tenham participado duas ou mais partes.
68

Como observam AZEVEDO SOARES e GONÇALVESPEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, não é


correcto dizer-se dois ou mais Estados, mas sim, justamente, duas ou mais partes, pela razão simples de
que, à semelhança do que acontece no negócio jurídico em geral, cada parte pode ser constituída por
mais do que um Estado; ponto é que prossiga um bloco homogéneo de interesses, contraposto a outro
em que, igualmente, exista coincidência de objectivos.

Dentro dos tratados multilaterais, cabe ainda distinguir os multilaterais gerais


ou abertos, que, em virtude de o número de partes não ser limitado, tendem para a
universalidade (v.g., a Convenção Sobre o Genocídio), e os multilaterais restritos ou
fechados (também designados plurilaterais por alguma doutrina), cujo número de
partes, embora superior a dois, é, todavia, limitado (v.g., o Acordo Ortográfico entre os
Países de Língua Oficial Portuguesa).

Critério do procedimento de conclusão. De harmonia com este outro critério,


adquire propósito contrapor os tratados solenes aos acordos em forma simplificada.
Estes últimos – a designação logo o indicia – encontram-se sujeitos a um procedimento
de conclusão a um tempo mais simples e mais célere do que os tratados solenes, visto
não carecerem de ratificação.
No direito norte-americano adopta-se uma terminologia diversa: os tratados
solenes designam-se simplesmente treaties, ao passo que os acordos em forma
simplificada são os executive agreementes.
Assiste-se, actualmente, a um recurso cada vez mais frequente à figura do
acordo em forma simplificada, com a consequente subalternização ou perda de
importância do tratado solene, excepto, naturalmente, naquelas situações contadas
(matérias específicas) em que as Constituições imponham a sua utilização. Que razões
explicam esta tendência?
Muitas vezes, a exigência de ratificação para os tratados solenes redunda numa
indesejável morosidade do procedimento de conclusão da convenção. Politicamente,
pode mesmo revelar-se assaz problemática a consecução de tal desiderato. É o que
sucede sempre que a ratificação deva ser precedida (como ocorre em Portugal) de um
acto de aprovação por banda do órgão legislativo e este tenha, maioritariamente, uma
orientação contrária, ou pelo menos não coincidente, com a do executivo (GONÇALVES
PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).
Por esse facto, começaram os Estados, em obediência a um propósito de
69

dinamização, eficiência e celeridade da vida diplomática (GONÇALVES


PERAIRA/FAUSTO DE QUADROS e DÍEZ DE VELASCO), a lançar mão, mesmo naquelas
matérias consideradas mais “nobres”, dos acordos em forma simplificada, que,
dispensando a ratificação, propiciam uma intervenção exclusiva do executivo – daí a
sobredita denominação executive agréments –, evitando, portanto, do mesmo passo,
qualquer interferência, putativamente “embaraçosa”, do poder legislativo aquando da
conclusão da convenção.

Critério da forma. Tem-se agora em vista a distinção entre tratados escritos e


tratados orais, conforme se materializem num documento escrito ou resultem antes
de um comportamento verbal. Recorde-se, a propósito, que a CV se aplica apenas às
convenções internacionais escritas.

2.2 – Classificações materiais

Critério do objecto e do fim. Serão aqui consideradas duas distinções: uma, já


nossa conhecida, entre tratado-lei e tratado-contrato; outra, entre tratados
normativos e tratados constitutivos de organizações internacionais.
Relativamente à primeira, limitar-nos-emos a remeter para o que sobre o
assunto dissemos supra, no ponto 3.2 do capítulo I.
Quanto à segunda, é usual dizer-se que os tratados normativos estabelecem
determinadas regras de comportamento para os destinatários, enquanto os
constitutivos de organizações internacionais servem para criar certas estruturas ou
entidades – nessa medida, constituindo para estas, que não são sujeitos originários de
direito internacional, um verdadeiro acto de nascimento – e, concomitantemente,
para regular o seu funcionamento. Ainda assim, não obstante sobressair tal natureza
criadora ou constitutiva, força é concluir que também aquela dimensão normativa não
anda, evidentemente, arredia dos tratados constitutivos de organizações
internacionais.
Não silenciemos, contudo, que certos autores (por ex., IAN BROWNLIE) tomam
o conceito de tratado normativo num sentido mais particular: estar-se-ia em presença
de convenções internacionais criadoras de normas gerais, cuja observância não
dissolve (ou não deixa exaurida) a obrigação essencial nelas consagrada, razão por que
70

revelariam uma vocação de aplicação permanente ou sucessiva. Seria esse, entre


tantos outros, o caso da Declaração de Paris, de 1856, sobre a neutralidade na guerra
marítima; das Convenções da Haia, de 1899 e 1907, sobre o direito da guerra; do Pacto
Briand-Kellog, de 1928, para a renúncia à guerra; da Convenção Sobre o Genocídio, de
1948, etc..
Contrariamente, um tratado comercial ou uma convenção que visa a realização
de um empreendimento conjunto pelos (Estados) contraentes, não se consubstancia
num tratado normativo (no sentido apontado), porquanto, uma vez alcançada a sua
finalidade, extinguir-se-á a obrigação fundamental nele (a) enunciada.

Diga-se, a concluir este ponto, que as classificações materiais das convenções


internacionais, porque demasiado eivadas de subtilezas conceituais, se revelam
escassamente prestimosas, salvo, talvez, no que toca ao princípio da relatividade dos
efeitos dos tratados e suas excepções (v. infra). Outro tanto não se dirá, porém, de
(pelo menos) algumas das classificações formais, que se projectam em diferenças de
regime jurídico nada negligenciáveis.

3 – Procedimento de conclusão

As convenções internacionais são concluídas na sequência de um


procedimento, isto é de um conjunto de actos e formalidades, juridicamente
ordenados. Como oportunamente se relevou, as várias fases ou etapas desse
procedimento são reguladas, quer pelo direito internacional, quer pelo direito interno
(constitucional) dos Estados parte, circunstância esta que acarreta algumas
dificuldades, se não (sobretudo) de ordem substantiva, pelo menos de carácter
meramente terminológico, naqueles casos em que o significado de determinados
termos ou expressões não é coincidente nos ordenamentos internacional e interno.
Atentemos, para já, nos momentos principais do procedimento comum de
conclusão de convenções internacionais

3.1 – Procedimento comum às convenções bilaterais e multilaterais

A primeira etapa do procedimento de formação de uma convenção


internacional é a negociação. Em que consiste e qual o seu objectivo?
71

Trata-se da fase (inicial) em que é discutido, redigido e adoptado o texto da


futura convenção, sendo que a discussão constitui ocasião azada a que sejam objecto
de emendas e contrapropostas os projectos de textos apresentados.
A negociação está habitualmente a cargo dos plenipotenciários, que são
delegados ou representantes governamentais, munidos de plenos poderes para
participar no conjunto de operações técnico-diplomáticas que envolve essa primeira
etapa da conclusão de tratados.

A prática das cartas de plenos poderes ou cartas patentes, através das quais o órgão
constitucionalmente competente – via de regra, o Chefe de Estado – habilita os delegados
governamentais a procederem à negociação dos tratados, é já bastante antiga, revelando-se justificada
numa época em que o circunstancialismo que rodeava a celebração de convenções internacionais era
bem diferente daquele que hoje se verifica.
Actualmente, não sobejariam razões para que tal prática se mantivesse. O certo, porém, é que
ela persiste e foi, inclusive, acolhida pela própria CV, que confirmou o seu carácter costumeiro (artigo
7.º).

Deve, no entanto, ter-se presente que determinados órgãos ou entidades


beneficiam de uma presunção de competência para negociar as convenções
internacionais, visto tal múnus estar implícito no conteúdo da função que exercem.
Donde não ser para eles necessária uma habilitação expressa para a negociação. É o
que, designadamente, sucede com o Chefe de Estado, o Chefe de Governo, o Ministro
dos Negócios Estrangeiros, os Chefes de missão diplomática, os representantes
acreditados dos Estados a uma conferência internacional ou junto de uma organização
internacional, com vista à conclusão de um tratado, etc. (cfr. artigo 7.º, nº 2, da CV).
Em Portugal, na senda da generalidade dos países tributários de idêntica
filosofia política, foi atribuída ao governo a competência para negociar as convenções
internacionais (artigo 197.º, nº 1, b), da CRP), devendo os governos regionais participar
na negociação daquelas que versem matéria de interesse específico para as Regiões
Autónomas (artigo 227.º. nº 1, t), da CRP).

Como observa AZEVEDO SOARES, louvando-se em L. WILDHABER, verifica-se uma espécie de


incapacidade natural dos parlamentos para negociar os tratados. Com efeito, «a necessidade de
prontidão nos debates, de conservar segredo nas negociações e de centralizar a condução das relações
72

internacionais do Estado» recomenda, na verdade, que seja cometida ao executivo a mencionada


competência.

Finda a negociação, os tratados apresentam uma contextura própria, isto é, são


constituídos por determinados elementos formais.
O primeiro deles é o preâmbulo. Nele são indicadas, em regra por ordem
alfabética, as partes contratantes, sob a designação de Altas Partes Contratantes.
Como indicados são, além disso, o local da conclusão e – através de declarações gerais
respeitantes ao objecto e aos fins da convenção (QUOC DINH, DAILLIER/PELLET) – os
motivos subjacentes à negociação. Quanto ao valor jurídico do preâmbulo, deve
referir-se que, não dispondo ele de força obrigatória, constitui, todavia, um valioso
elemento de interpretação do tratado, como, de resto, o atestam os diversos casos em
que o Tribunal Internacional de Justiça dele se socorreu com vista a melhor precisar o
sentido e alcance de certas disposições convencionais.
Segue-se o dispositivo ou corpo da convenção – o conjunto dos seus elementos
juridicamente obrigatórios. É, em concreto, constituído pelo articulado (ou clausulado)
propriamente dito e pelas chamadas disposições ou cláusulas finais. Estas últimas
dizem respeito a questões tão díspares como, por exemplo, a entrada em vigor do
tratado, a hipotética extensão dos seus efeitos aos Estados que não hajam participado
na elaboração do texto, o procedimento de revisão, a duração – caso tenha sido
concluído para vigorar durante um período de tempo limitado, – etc..
Por fim, das convenções internacionais fazem, eventualmente, parte os anexos.
Consistem em disposições de carácter técnico, não raras vezes complementares de
artigos do tratado, que, possuindo, embora, a aludida força jurídica obrigatória do
dispositivo, são autonomizadas deste, a fim de evitar um aspecto demasiado “pesado”
ou maçudo da convenção.

O segundo momento da conclusão das convenções internacionais é o da sua


autenticação ou assinatura pelos plenipotenciários.
Nos termos do disposto no artigo 10.º da CV, a autenticação é feita segundo o
disposto no próprio texto do futuro tratado ou acordado pelos Estados participantes
na sua elaboração. Na falta dessas disposições ou acordo, a autentificação
consubstanciar-se-á numa assinatura, assinatura ad referendum ou rubrica dos
73

representantes dos Estados.


E quais os efeitos da autenticação?
À luz da CV, após a autentificação o texto da convenção internacional torna-se
autêntico e definitivo, ou seja, a partir de então, não mais pode ser alterado. Por outro
lado, cria-se para os Estados signatários um dever geral de boa-fé, que, em concreto,
se traduz num dever de abstenção de actos (acções ou omissões) que comprometam
ou ponham em causa o objecto e o fim da convenção. Dele decorre o direito
correlativo, em cuja titularidade ficam, de igual modo, investidos os Estados parte, de
adoptar os actos que se revelem necessários para a defesa da integridade desse pacto
(PAUL REUTER).
No caso dos acordos em forma simplificada, que não carecem de ratificação,
aos efeitos supramencionados, acresce o do consentimento à vinculação no plano
internacional – possibilidade esta contemplada no artigo 12.º da CV. De notar,
contudo, que, de harmonia com a CRP, as coisas não se passam com essa linearidade,
pois que, exigindo a nossa Lei Fundamental a aprovação de todas as convenções
internacionais, tal consentimento só se tornará plenamente operativo se (ou quando)
essa aprovação sobrevier. Até esse momento, tratar-se-á, por conseguinte, de um
consentimento à vinculação sujeito a uma espécie de condição suspensiva.

O facto de nos acordos em forma simplificada o consentimento à vinculação ser prestado no


momento da autenticação pelos delegados governamentais, haverá de implicar que a assinatura ulterior
do Presidente da República, prevista no artigo 134.º, b) da CRP (cfr., infra), possua um carácter
obrigatório. A tese contrária – aquela que encara a assinatura do decreto do Governo ou da resolução
da AR de aprovação dos acordos internacionais, por parte do PR, como um acto livre e discricionário
deste –, subverte, completamente, a lógica subjacente á figura do acordo em forma simplificada, à qual
presidem os consabidos objectivos de facilitação da vinculação internacional do Estado e, por
consequência, de dinamização da vida diplomática; objectivos esses apenas alcançáveis com um
procedimento de conclusão mais ligeiro e abreviado. A hipotética não obrigatoriedade da assinatura do
PR converteria o acordo em forma simplificada numa espécie de tratado solene com outro nome,
esvaziando de sentido a distinção entre estes dois tipos de convenções internacionais… E nem se diga
que a aludida obrigatoriedade da assinatura do PR mal se compagina com a supremacia constitucional
deste órgão relativamente ao Governo (poderes de nomeação e de demissão) e à AR (poder de
dissolução), ambos previstos no artigo 133.º da CRP), pois que tal equivaleria a rejeitar qualquer espaço
de actuação autónoma do executivo ou da AR – isso sim, constitucionalmente incongruente. De resto,
não certamente por acaso, a ratificação de tratados solenes (mas não a assinatura de acordos em forma
74

simplificada..) se conta entre as competências do PR em matéria de relações internacionais (artigo.


135.º da CRP).

Sobre os efeitos da autenticação, vejam-se os artigos 10º, 11.º, 12.º14.º e 18.º


da CV.

A terceira fase do procedimento comum de conclusão das convenções


internacionais é a aprovação.
Em geral, a aprovação é um acto (secundário) pelo qual determinado órgão,
concordando com o conteúdo de um acto praticado em momento anterior por outra
entidade, lhe confere eficácia. Diga-se, em abono da verdade, que a CV não a
autonomiza enquanto etapa da conclusão dos tratados, reconduzindo-a, antes, a uma
das formas admissíveis de manifestação do consentimento à vinculação. Entre nós,
porém, a aprovação não pode deixar de considerar-se um momento fundamental do
procedimento interno de conclusão (MARIA LUÍSA DUARTE), visto que a CRP a impõe
para todas as convenções internacionais, revistam elas a forma de tratados solenes ou
de acordos em forma simplificada.
Ainda que usuais na prática internacional, de excluir serão, pois, à face do
nosso ordenamento jurídico-constitucional, a vinculação bilateral através de acordo
por simples troca de notas, bem como as ratificações implícitas ou negativas, por meio
das quais a vinculação se consuma ou concretiza para determinado Estado, caso,
transcorrido um certo período de tempo, não tenha por ele sido, expressamente,
manifestada intenção de não proceder à ratificação da convenção (MARIA LUÍSA
DUARTE).
Em Portugal, foi cometida à Assembleia da República e ao Governo a
competência para aprovar as convenções internacionais. Vejamos em que termos.
Desde a quarta revisão constitucional, resultante da Lei Constitucional nº 1/97,
de 20 de Setembro, compete à Assembleia da República a aprovação dos tratados
solenes (só ela poderá aprová-los), designadamente (conquanto não apenas esses), os
tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de
amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos
militares. Cabe ainda à Assembleia da República a aprovação dos acordos em forma
simplificada que versem matérias da sua competência reservada ou que o Governo
75

entenda por bem submeter à sua apreciação (cfr. artigo 161.º, i) da CRP).
Compete, por seu turno, ao Governo a aprovação dos acordos em forma
simplificada sobre matérias que se não incluam na reserva de competência legislativa
da Assembleia da República (cfr. artigos 164.º e 165.º da CRP), salvo se a esta decidir
submetê-los para aprovação. Digamos, pois, que a competência do Governo para
aprovar convenções internacionais, não sendo residual (longe disso), resulta a
contrario sensu: serão da sua competência aquelas que não caiba ao órgão
parlamentar aprovar (cfr. a alínea c) do nº 1 do artigo 197.º da CRP).

Vejamos quais os principais trâmites e formalidades que rodeiam a aprovação das convenções
internacionais em Portugal.
Os acordos em forma simplificada aprovados pelo Governo, são por este negociados e
autenticados. Segue-se, logo após, a aprovação em Conselho de Ministros, através de decreto simples
(cfr., respectivamente, artigos 200.º, nº 1, d), e 197.º. nº 2, da CRP). Este decreto é, sucessivamente,
assinado pelo Primeiro-Ministro e pelos ministros competentes em razão da matéria (artigo 201.º, nº 3),
e, bem assim, pelo Presidente da República (artigo 134.º, b)), após o que será objecto de referenda do
Governo (artigo 140.º, nº 1). A referenda é obrigatória, determinando a sua falta, nos termos do artigo
140.º, nº 2 da CRP, a inexistência jurídica do acto. O iter procedimental conhece o seu epílogo com a
publicação do decreto de aprovação do acordo em forma simplificada, com este anexado, no Diário da
República.
No que se refere aos acordos em forma simplificada aprovados pela Assembleia da República,
depois de haverem sido negociados e autenticados pelo Governo, o Conselho de Ministros aprova uma
proposta de resolução (artigo 200.º, nº 1, c)) que submete à Assembleia da República. Esta, aprovará
então o acordo sob a forma de resolução (cfr. artigos 161.º, i), e artigo 166.º, nº 5, da CRP), a qual será
assinada pelo Presidente do Parlamento e, em momento subsequente, pelo Presidente da República
(artigo 134.º, b)). Procede-se, finalmente, à sua publicação oficial.
Por último, no que toca aos tratados solenes, as formalidades são em tudo idênticas às
acabadas de descrever para os acordos em forma simplificada aprovados pela AR. A única diferença é
que o Presidente da República não se limita, agora, a assinar a resolução do parlamento, através da qual
o tratado haja sido aprovado; assina, além disso, a respectiva carta de ratificação (artigo 135.º, b)).
Também a ratificação carece de referenda ministerial (artigo 140.º, nº 1).

Prossegue o procedimento de conclusão – ainda que apenas no caso dos


tratados solenes – com um acto especificamente dirigido à manifestação do
consentimento à vinculação (artigo 11.º da CV), uma vez que, para esse tipo de
convenções internacionais, o texto assinado vale, tão-somente, como projecto de
76

tratado (SILVA CUNHA). Tal acto é, entre nós, a ratificação.


Assiste-se aqui, por conseguinte, a uma clara dissociação entre dois momentos:
o da assinatura, primeiro; e o da vinculação do Estado às disposições da convenção,
depois – exprimida, justamente, essa vinculação através da ratificação.

Verdadeiramente, não é relevante, na prática internacional, a denominação do acto por meio


do qual se concretiza a vinculação, já que o próprio artigo 11.º da CV, de entre as formas admissíveis de
expressão do consentimento do Estado a vincular-se por um tratado, menciona, para além da

ratificação, a aceitação, a aprovação ou a adesão, não excluindo qualquer outro meio convencionado

(cfr., no mesmo sentido, o artigo 14.º da CV). Acresce que, em termos substantivos, estas outras figuras
não diferem sobremaneira da ratificação (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Importante,
isso sim, é que a intenção do Estado resulte claramente exteriorizada.

Ora, a ratificação é, consequentemente, o acto solene pelo qual o órgão


competente à luz do direito constitucional (em regra, o Chefe de Estado) declara a
vontade de o Estado se obrigar às disposições de um tratado – assim tornado
definitivo –, comprometendo-se, daí por diante, a executá-lo.
Saliente-se, contudo, desde já, que não devemos concluir pela inevitabilidade
da ratificação. Pelo contrário, trata-se de um acto livre e discricionário, o que decorre
da própria natureza e arquitectura do procedimento de conclusão dos tratados: o
reexame da convenção pelos órgãos estaduais, tornado possível em virtude da
separação temporal entre os momentos da assinatura e do consentimento à
vinculação, pressupõe, com efeito, que exista um direito de recusar a ratificação,
quanto mais não seja em razão de uma superveniente inoportunidade política do
tratado.

Tanto o Tribunal Internacional de Justiça como o seu predecessor – o Tribunal Permanente de


Justiça Internacional – coonestaram, em diversas ocasiões, o entendimento de não constituir violação
do direito internacional a recusa de ratificação de um tratado previamente assinado. Por outro lado,
também não têm logrado obter êxito as tentativas de alguma doutrina de, mediante um apelo aos
princípios da boa-fé e do abuso do direito, demostrar a pretensa obrigatoriedade da ratificação.
Deve, a despeito disso, admitir.se que a recusa de ratificação origina, por vezes, situações
políticas assaz embaraçosas, como, v.g., entre tantas outras, aquela em que ficou o Presidente norte-
americano Wilson, ante a não ratificação do Pacto da Sociedade das Nações – de que havia sido o
principal inspirador –, por parte do Senado, ou as que resultaram da recusa da Dinamarca em ratificar o
Tratado de União Europeia ou de Maastricht, da não ratificação, por parte de alguns Estados membros
77

da União Europeia, do Tratado que estabelecia uma Constituição para a Europa, da não ratificação do
Acordo Ortográfico por alguns países de Língua Oficial Portuguesa, etc..
A liberdade reconhecida aos Estados nesta matéria, ocasiona, outrossim, com frequência, um
inconveniente arrastamento do processo de formação dos tratados, fomentando alguma incerteza nas
relações internacionais. Vejam-se, por exemplo, os casos da França, que apenas ratificou a Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, de Novembro de 1950, em Maio de 1974; ou de Portugal, que
ratificou a Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de Maio de 1969, em Fevereiro de 2004…

Em Portugal é exactamente através da ratificação, a cargo do Presidente da


República, que se opera a vinculação aos tratados solenes. O sistema de repartição de
competências que vigora no nosso ordenamento jurídico, reflecte-se, como não
poderia deixar de ser, em sede de conclusão das convenções internacionais:
competindo ao Governo a «condução da política geral do País» (artigo 182.º da CRP),
é-lhe atribuída, conforme vimos, a competência para «negociar e ajustar» os tratados
(artigo 197.º, nº1, b) da CRP); incumbindo, por outro lado, ao Presidente da República
a representação do Estado português nas relações externas (artigo 120.º da CRP),
cabe-lhe, correlativamente, proceder à sua ratificação (artigo 135.º, b) da CRP), o que
deverá ocorrer em prazo côngruo.
De notar que, embora constitua um acto presidencial autónomo, a ratificação
está sujeita, como se disse acima, a referenda do Governo, sob pena de inexistência
jurídica (cfr. artigo 140.º da CRP).

Poderá suceder que o Presidente da República ratifique um tratado sem que,


em momento anterior, hajam sido cumpridos (ou tenham sido defeituosamente
observados) certos trâmites ou formalidades constitucionalmente previstos. Se for
esse o caso, estaremos perante as chamadas ratificações imperfeitas. Imagine-se, por
exemplo, uma ratificação precedida da aprovação do tratado com excesso de forma
(isto é, por meio de um acto dotado de maior solenidade do que o previsto na Lei
Fundamental) ou levada a cabo na sequência do não cumprimento de certas
exigências procedimentais no que respeita à designação dos plenipotenciários ou,
ainda (no caso português), concretizada sem que na negociação da convenção tenham
participado os governos regionais, estando em causa matéria de interesse específico
para as Regiões Autónomas dos Açores ou da Madeira, etc..
Impõe-se então inquirir quais as consequências jurídicas de uma ratificação
78

imperfeita.
No plano internacional, a Convenção de Viena disciplina a questão no artigo
46.º, cujo teor é o seguinte:

«1 – A circunstância de o consentimento de um Estado a obrigar-se por um tratado ter sido


expresso com violação de um preceito do seu direito interno respeitante à competência para a
conclusão dos tratados, não pode ser alegada por esse Estado como tendo viciado o seu consentimento,
a não ser que essa violação tenha sido manifesta e diga respeito a uma regra do seu direito interno de
importância fundamental.
2 – Uma violação é manifesta se é objectivamente evidente para qualquer Estado que proceda,
nesse domínio, de acordo com a prática habitual e de boa-fé.»

Que devemos, pois, concluir?


Que as ratificações imperfeitas não contendem, em princípio, com a validade
internacional dos tratados. Quer dizer: as mais das vezes, não se permite a um Estado
invocar uma ratificação imperfeita – o mesmo é significar que lhe está, em regra,
vedado alegar a violação de um preceito do seu direito interno (constitucional)
respeitante à competência para a conclusão dos tratados – como meio (expeditivo) de
se eximir ao cumprimento dos seus compromissos internacionais. Somente em
circunstâncias excepcionais a solução será outra. E que circunstâncias serão essas?
Serão, em concreto, duas, e de verificação cumulativa: a referida violação da
norma de direito interno relativa à conclusão dos tratados ter sido manifesta e tal
norma ser considerada de importância fundamental.
Aí sim, a ratificação imperfeita convolar-se-á num vício relevante e dará origem
à invalidade (nulidade relativa) da convenção.

A solução acolhida na CV acaba por estar mais próxima – ainda que apenas em termos
mitigados lhe tenha dado guarida – da concepção de ANZILOTTI (partidário do dualismo), para quem o
direito interno dos Estados em nada influencia a validade das normas jurídicas internacionais e, do
mesmo passo, mais afastada da tese de G. SCELLE (autor monista), que, ao invés, sustenta possuírem os
comandos constitucionais pleno valor jurídico na ordem internacional.

Quais as razões justificativas do regime descrito?


Neste domínio são, fundamentalmente, dois os valores a tutelar. De um lado, o
da regularidade do procedimento interno de conclusão dos tratados; do outro, o da
estabilidade, certeza e segurança nas relações internacionais. Ora, a Convenção de
79

Viena, não admitindo que os Estados se prevaleçam das ratificações imperfeitas, senão
em circunstâncias contadas (excepcionais), privilegiou claramente o segundo. E
porquê?
É fácil entender-se. De facto, a ser outra a solução consagrada (a da invalidade
da convenção como regra), disporiam os Estados de uma forma muito fácil de se
furtarem à observância das suas obrigações internacionais, podendo inadvertidamente
invocar toda e qualquer irregularidade formal – por mais insignificante que fosse –
cometida no decurso do procedimento de conclusão dos tratados. Isto, já se vê, com
inevitáveis custos ao nível da segurança no relacionamento jurídico internacional.

Como sublinha ANZILOTTI, os Estados são responsáveis pelas ratificações imperfeitas que
possam ocorrer, não lhes devendo ser permitido prevalecer-se das suas próprias faltas, descuidos ou
comportamentos negligentes, fazendo repercutir os correspondentes efeitos adversos ou negativos na
esfera jurídica de outrem (as demais partes no tratado). Com efeito, venire contra factum proprium non
valet…

Acresce que um tal regime obrigaria, quem quer que contratasse, a uma
penosa e exaustiva (por vezes, inexequível) averiguação dos preceitos constitucionais
relevantes, em matéria de conclusão de tratados, na ordem jurídica dos Estados com
os quais projectasse celebrar convenções internacionais.
Compreende-se, porém, que as consequências jurídicas da ratificação
imperfeita devam ser outras sempre que a violação do direito interno seja manifesta e
diga respeito a uma norma de importância fundamental. E quando é que tal ocorrerá?
Tratar-se-á de uma violação manifesta – a própria CV dá a resposta (artigo 46.º,
nº 2) – quando for objectivamente evidente para qualquer Estado que proceda, nesse
domínio, de acordo com a prática habitual e de boa-fé. Por outras palavras, a violação
será manifesta se as outras partes contratantes se dela se aperceberam ou deveriam
ter apercebido (AFONSO QUEIRÓ).
Quanto ao segundo requisito, as dificuldades são maiores. Em nome da
protecção da essência do seu sistema político (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS), exige-se que haja sido violada uma disposição do direito interno
considerada de importância fundamental. Tudo está, no entanto, em saber o que seja
uma norma desse tipo. O que se revela, aliás, tão mais problemático, quanto se está a
lidar com preceitos constitucionais – à partida, todos de importância fundamental.
80

Parece, todavia, claro não ser invalidante, pela sua escassa gravidade, a
inobservância de regras secundárias internas relativas à competência, à forma ou ao
procedimento de conclusão ou aprovação dos tratados (GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA), bem como a preterição de certas formalidades não essenciais ou os
excessos de forma (com efeito, quod abundat non nocet).
E quais as consequências de uma ratificação imperfeita no plano interno?
A este respeito, dispõe o artigo 277.º, nº 2, da CRP o seguinte:

«A inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais regularmente


ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais
normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, salvo se tal inconstitucionalidade resultar de
violação de uma disposição fundamental».

A despeito de, presumivelmente, ter sido intenção do legislador constituinte


transpor para o plano interno solução idêntica à que a Convenção de Viena consagrara
(no supracitado artigo 46.º) para o plano internacional, são muitas as dúvidas, quando
não perplexidades, que a norma em apreço suscita.
Afigura-se, por um lado, de difícil vislumbre a razão pela qual se fala em
tratados regularmente ratificados, quando, justamente, estamos a considerar casos de
ratificações irregulares ou imperfeitas… É verdade que, com o termo utilizado, se terá
pretendido transmitir a ideia de que a inconstitucionalidade não poderá incidir sobre
determinados elementos indispensáveis à regularidade da ratificação (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA), mas uma outra formulação teria, decerto, evitado
qualquer equivocidade de sentidos.
Não faz, igualmente, sentido a menção à inconstitucionalidade orgânica.
Não o fazia já à luz do regime vigente antes da quarta revisão constitucional, na
medida em que, podendo uma inconstitucionalidade desse tipo resultar da hipotética
aprovação pelo Governo de um tratado que competisse à Assembleia da República
aprovar, seguro é que seria dificilmente concebível que, vindo ele depois a ser
ratificado, tal não constituísse violação de uma disposição fundamental. A não ser que,
paradoxal e subliminarmente, se tivesse pretendido consagrar uma regra (a da
invalidade das convenções imperfeitamente ratificadas) onde a Convenção de Viena
81

consagrou uma excepção (CANELAS DE CASTRO).


Muito menos sentido faz agora, uma vez que só a AR tem competência para
aprovar tratados solenes (cfr. supra). Donde não ser configurável, face ao quadro
normativo actual, qualquer situação de ratificação imperfeita que tenha subjacente
uma inconstitucionalidade orgânica. Vale, então, por dizer que teria sido mais avisado
o legislador constituinte ficar-se pela referência às inconstitucionalidades formais.
Daí que, em nosso entender, o sobredito propósito de replicar no artigo 277.º,
nº 2, da CRP a solução constante do artigo 46.º da CV – assente, como vimos, na
irrelevância (salvo em circunstâncias contadas) de tais vícios formais – tenha sido
traída por uma redacção manifestamente infeliz daquele preceito constitucional.
Apesar disso, parece ser legítimo concluir que a nossa Lei Fundamental admite,
como linha de princípio – ressalvando, embora, o núcleo essencial de princípios
estruturantes do nosso sistema político-constitucional – a vigência interna de tratados
(ir)regularmente ratificados, desde que se ache preenchida uma condição de
reciprocidade: a da sua aplicação na ordem jurídica da outra ou das outras partes
contratantes.

A penúltima etapa da conclusão das convenções internacionais reconduz-se ao


momento da sua entrada em vigor, ou seja, ao momento em que elas, passando a
fazer parte do direito positivo, se integram no ordenamento jurídico internacional.
Regem, nesta matéria, os artigos 24.º e 25.º da CV.
Da leitura do primeiro se depreende que um tratado entrará em vigor segundo
as modalidades e na data fixada pelas suas disposições ou, alternativamente, nos
termos do acordo alcançado pelos Estados intervenientes na respectiva negociação.
Mais se preceitua, no nº 2 do artigo 24.º que, na falta de tais disposições ou
acordo, a convenção entra em vigor logo que todos os Estados que hajam participado
na negociação manifestem o seu consentimento à vinculação; isto sem prejuízo de
certas cláusulas do tratado vincularem as partes desde a adopção do texto (v.g., as
atinentes à autenticação, ao consentimento a ficar vinculado, à formulação de
reservas, às funções do depositário, etc. – cfr. artigo 24.º, nº 4).
De notar, porém, que a solução contemplada no nº 2 do artigo 24.º -
perfeitamente ajustada e feita à feição dos tratados multilaterais restritos – não é
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habitualmente adoptada no caso das convenções multilaterais gerais, pois que a


aludida exigência da unanimidade das ratificações redundaria num protelamento da
respectiva entrada em vigor muito para além do razoável, podendo mesmo sustá-la,
em definitivo. Constitui, destarte, prática habitual fazer depender a entrada em vigor
dessas convenções amplamente participadas do depósito de um certo número de
ratificações (caso, inter alia, do Estatuto de Roma do TPI, assinado por 120 Estados e
entrado em vigor logo que se atingiram as 60 ratificações ou do acordo de Paris Sobre
as Alterações Climáticas, assinado por 195 países entrado em vigor com 92
ratificações).
Admissível será, ainda, prever que o tratado (multilateral geral) entra em vigor
logo que se atinja um determinado número de ratificações, de entre elas se contando
(obrigatoriamente) a de certos Estados ou organizações internacionais, caso em que o
critério quantitativo se coligará com uma exigência de cariz qualitativo.
Já o artigo 25.º, por seu turno, regula um problema distinto: o da aplicação do
tratado a título provisório, que se tornará possível, uma vez mais, em virtude de
disposições dele constantes ou em resultado de um acordo prévio entre os Estados
que intervieram na negociação.
Merece ainda referência neste contexto, o artigo 55.º da CV, nos termos do
qual um tratado multilateral, salvo disposição em contrário, não deixa de vigorar pela
mera circunstância de o número de partes se tornar inferior ao número necessário
para a sua entrada em vigor.

Culmina o procedimento de formação das convenções internacionais com o seu


registo e publicação. Tem-se aqui em vista a publicitação dos tratados no plano
internacional, justamente desdobrada nesses dois actos distintos (o do registo
primeiro e o da publicação depois) (BACELAR GOUVEIA).
Ao tempo da Sociedade das Nações, estipulava o artigo 18.º do respectivo
Pacto constitutivo a obrigatoriedade de todos os tratados serem registados e
publicados pelo Secretário da organização, sob pena de não disporem de força jurídica
obrigatória. Dava-se, assim, acolhimento benévolo ao primeiro dos catorze pontos do
célebre discurso do Presidente Wilson, de Janeiro de 1918, que preconizava a
substituição de uma diplomacia secreta, tradicionalmente prevalecente, por uma
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diplomacia «aberta» ou «pública».


Não obstante ter sido efectuado o registo de cerca de 4500 tratados – o que
parecia atestar a bondade do regime consagrado no referido preceito do Pacto da
Sociedade das Nações –, certo é que, no que tange à sanção aí prevista para a falta de
registo das convenções (a não produção por estas de efeitos obrigatórios), os
resultados viriam a revelar-se bem menos animadores.
É que, por via costumeira, começaram os Estados a fazer letra morta daquela
disposição, admitindo a entrada em vigor e a força obrigatória de tratados não
registados, o que, portanto, conduziu, a breve trecho, à caducidade do preceito citado.
A única consequência advinda do incumprimento da exigência constante do Pacto
seria a da inoponibilidade da convenção não registada perante os órgãos da Sociedade
das Nações, maxime no âmbito de uma acção contenciosa instaurada no seu órgão
judicial – o Tribunal Permanente de Justiça Internacional.
Avisadamente, muito tempo depois, a Carta das Nações Unidas acabaria por
codificar o costume entretanto formado, no seu artigo 102.º, que dispõe o seguinte:

«1 – Todos os tratados e todos os acordos internacionais concluídos por qualquer membro das
Nações Unidas depois da entrada em vigor da presente Carta, deverão, dentro do mais breve prazo
possível, ser registados e publicados pelo Secretariado.
2 – Nenhuma parte em qualquer tratado ou acordo internacional que não tenha sido registado
em conformidade com as disposições do nº 1 deste artigo poderá invocar tal tratado ou acordo perante
qualquer órgão das Nações Unidas.»

É, pois, este o regime actual, confirmado também pela Convenção de Viena, no


artigo, 80.º, nº 1.
Um tratado que não haja sido registado junto de Secretariado da ONU, sendo
embora plenamente válido e eficaz inter partes, não poderá, todavia, ser invocado
perante os órgãos das Nações Unidas, muito em particular perante o Tribunal
Internacional de Justiça, pois que será, sobretudo, perante esta instância jurisdicional
que se apropositará a oportunidade de invocar as disposições de uma convenção
internacional.
No que especificamente se reporta à publicação, deverá ela ser efectuada nas
publicações oficiais da ONU e nos respectivos sites institucionais. Caso se trate de
convenções concluídas pela própria ONU ou sob os seus auspícios, ou sendo ela
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autorizada a fazê-lo nas demais situações, tal publicação poderá ser feita ex officio
pelo Secretário-Geral (BACELAR GOUVEIA).
Problema que poderá colocar-se é o de saber se não deveriam isentar-se do
dever de registo e publicação os tratados cuja conclusão envolve, necessariamente,
ratione materiae, um certo secretismo (v.g., os que versam assuntos militares, de
defesa ou de segurança). Ora, não contemplando os aludidos artigo 102.º da CNU e
80.º da CV qualquer excepção, restará aos Estados optarem – se assim lhes convier –
por não proceder ao registo, sujeitando-se à sanção correspondente. Não por acaso,
de resto, parte substancial dos tratados não se encontra registada, sendo, no entanto,
igualmente verdade, que, em qualquer momento, poderão os Estados parte promover
o seu registo e publicação (ibidem).
A (quase) inocuidade da sanção para a falta de registo de uma convenção
internacional explica que, ao contrário do que seria lógico e natural, a entrada em
vigor preceda o registo e publicação internacionais.
Não confundível com a publicitação internacional, é a publicação interna, à
qual, ex vi do nº 2 do artigo 8.º da CRP, estão sujeitas as convenções internacionais
recebidas no nosso ordenamento jurídico. Trata-se de uma condição de eficácia
porquanto a ausência de publicação impedirá que elas possam vigorar (produzir
efeitos) internamente.
Como afirma MARIA LUÍSA DUARTE, após a publicação, as convenções
internacionais vigoram na ordem interna se e enquanto vincularem
internacionalmente o Estado Português. Mas, se (ou enquanto) não forem publicadas
no Diário da República, ficará precludida a produção de efeitos no plano interno,
podendo, no entanto, suceder que se tenha iniciado já a respectiva vigência
internacional. Circunstância esta decerto infrequente, mas algo desafiante da lógica…
Em rigor, de acordo com o critério fixado no artigo 2.º, nº 2, da Lei sobre a
Publicação, Identificação e Formulário de Diplomas, o início da vigência interna
ocorrerá, teoricamente, no 5º dia após a publicação no Diário da República (prazo de
vacatio legis). Habitualmente, contudo, ainda se não iniciou, nesse hiato temporal, a
vigência internacional da convenção, pelo que, assim efectivamente ocorrendo, a
questão referida acima nem sequer se colocará. Em sentido inverso, e como bem se
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compreende, a vigência interna não pode ter início antes da vigência internacional (cfr.
artigo 8.º, nº 2 da CRP).

Analisado o procedimento de conclusão, questão não destituída de relevo, é a


de saber como se processa a desvinculação das convenções internacionais. Caberá,
nesta sede, fazer apelo ao princípio, lembrado por MARCELLO CAETANO no seu
Manual de Direito Administrativo, segundo o qual os actos se desfazem pela mesma
forma por que são feitos.
Transpondo a ideia que lhe está subjacente para um hipotético procedimento
de desvinculação (denúncia ou retirada) de uma convenção internacional, força é
admitir que a sequência de actos e formalidades a praticar seja simétrica, paralela ou
equivalente à da conclusão. Concordamos, assim, com MARIA LUÍSA DUARTE, quando
afirma caber ao órgão constitucionalmente competente para aprovar a convenção a
decisão (simétrica) de desvinculação. Também quanto à forma dos actos (parlamentar
ou governamental) que ela envolva, o critério deverá ser o da equivalência
(respectivamente, portanto, resolução ou decreto simples), sem embargo de (também
aqui) eventuais excessos de forma não deverem considerar-se invalidantes.
De sublinhar, por último, que, na qualidade de órgão de condução da política
externa do País (artigo 182.º da CRP), competirá ao Governo impulsionar ou dar
princípio ao procedimento de desvinculação. Nos casos, porém, em que em causa
esteja uma convenção aprovada pela Assembleia da República (artigo 161.º, i), da
CRP), não poderá esta ser privada (amputada) de uma competência que a Constituição
lhe atribui.

3.2 – Procedimentos especiais

Cumpre, de seguida, dedicar algumas considerações a certos procedimentos


especiais (institucionalizados) de conclusão de tratados. Situações em que, muito por
acção das organizações internacionais (CARRILLO SALCEDO), se verificam alguns
desvios ao procedimento-tipo, descrito no número anterior.
Vamos, em concreto, aludir a três procedimentos especiais de formação de
convenções internacionais: o referente às concluídas no seio de organizações
internacionais, em geral, e o relativo às celebradas no quadro de duas organizações
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internacionais, em particular: a Organização Internacional do Trabalho e a União


Europeia.

Conclusão no seio de organizações internacionais, em geral

Um dos corolários da personalidade jurídica das organizações internacionais, é,


exactamente, o jus tractum, ou seja, o direito de concluir tratados, tanto com Estados
membros, como com Estados não membros (terceiros). Para além disso, elas dispõem
também de competência para permitir, no seu seio (sob os seus auspícios), a
conclusão de convenções internacionais, das quais, todavia, não se tornam parte.
Note-se que esta competência perfeitamente se coaduna com o papel que,
desde o início, as organizações internacionais foram chamadas a desempenhar:
promover o reforço da cooperação interestadual.
No que toca ao jus tractum propriamente dito, uma limitação, contudo, se
erige: a que resulta do princípio da especialidade. Significa ele que só podem as
organizações internacionais concluir tratados que se enquadrem no âmbito das suas
atribuições, isto é, das finalidades que elas se encontrem incumbidas de prosseguir.
Caso determinada convenção extravase dos fins institucionais da organização, estar-
se-á perante uma situação de incapacidade jurídica geradora de invalidade (nulidade
absoluta) desse pacto.

Sendo isto verdade, assiste-se, no entanto, com frequência, na prática internacional, a uma
interpretação extensiva das cartas constitutivas das organizações internacionais – rectius, dos preceitos
atinentes à conclusão de tratados –, como forma de, mediante um apelo à chamada teoria dos poderes
(ou competências) implícitos, procurar fundar (legitimar) a competência para a celebração de certas
convenções internacionais. De acordo com esta teoria, os fins a prosseguir por uma organização
internacional pressupõem a outorga de determinadas competências (ou poderes funcionais) aos
respectivos órgãos, Pois bem, deverão ser-lhes reconhecidas todas as competências necessárias à
realização dos fins institucionais, quer tais competências se encontrem expressamente consagradas no
tratado constitutivo, quer deste apenas se deduzam (ou nele estejam implícitas).

Algumas importantes consequências, postas em evidência por QUOC


DINH/DAILLIER/PELLET, emergem do facto de ser própria das organizações
internacionais a mencionada competência para a conclusão de tratados.
De entre elas se contam, por ex., a possibilidade de se planificar, durante certo
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período de tempo, a elaboração do direito convencional – planificação essa tornada


possível graças ao carácter de permanência dos órgãos da instituição, que, ademais,
apresentam uma estrutura hierarquizada – e, ainda, o facto de os procedimentos
internos da organização serem oponíveis aos Estados, que, destarte, ficam inibidos de,
por seu livre alvedrio, os adaptarem ou melhor afeiçoaram aos seus interesses.
E qual o procedimento habitualmente seguido em sede de conclusão de
convenções no seio de organizações internacionais? O que equivalerá a perguntar:
quais os desvios que aqui se descortinam relativamente ao procedimento comum,
acima analisado?
Por via de regra, tudo se inicia com os trabalhos preparatórios, a cargo de
órgãos de especialistas, adrede constituídos, ou do secretariado da organização. Esta
fase é acompanhada de consultas feitas aos Estados através de questionários.
Segue-se o momento em que o projecto de convenção é submetido, por meio
de órgãos subsidiários, ao órgão plenário da organização.
Em terceiro lugar, ocorre a adopção do texto, sob a forma de resolução,
observando-se a regra da votação unânime ou maioritária.
Por derradeiro, os órgãos da organização internacional procedem à
autenticação da futura convenção. A entrada em vigor desta, fica, contudo,
dependente das ratificações ou adesões subsequentes por parte dos Estados. Daí que
a tendência para assimilar esta competência das organizações internacionais a uma
espécie de «função legislativa internacional», não possa, em boa medida, ir além de
certos limites… Só vagamente existirá analogia de situações com o direito interno e
com a criação autoritária de normas que é conatural ao poder institucionalizado das
comunidades estaduais.

Conclusão das convenções internacionais do trabalho

No seio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segue-se um


procedimento metódico original. Tal originalidade decorre da estrutura tripartida
desta instituição. De facto, nela têm assento não apenas os delegados governamentais
(dois), mas também representantes dos empresários e representantes dos
trabalhadores (um de cada).
Não é, pois, de admirar que algumas especificidades procedimentais
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acompanhem a formação das convenções pela Conferência Geral do Trabalho.


Atentemos nas três principais.
A primeira que importa assinalar é a da participação directa e efectiva dos
indivíduos no desenrolar das negociações. Dos delegados não governamentais se
espera que representem interesses específicos – o dos empregadores e o dos
empregados –, devendo dar mostras de independência relativamente aos governos
dos respectivos países.
A segunda, prende-se com a adopção do texto. Os projectos de convenção são
adoptados por maioria de 2/3, sendo que a votação tem lugar por cabeça e não por
delegação nacional. Daqui resulta poderem ser de sentido contrário os votos de uma
delegação estadual, bastando para tanto que não haja coincidência entre a votação
dos delegados governamentais e a dos delegados patronais ou dos trabalhadores
(AZEVEDO SOARES).
Este sistema de votação constitui excepção à regra segundo a qual são os
governos a deter o monopólio da representação do Estado nas relações internacionais.
A terceira particularidade da conclusão das convenções internacionais do
trabalho, refere-se à autenticação dos textos adoptados, que é feita, não, como é
norma e seria pensável, pela assinatura dos vários delegados, mas sim pelas do
Presidente da Conferência Geral e do Director do Bureau Internacional do Trabalho.
Após a autenticação, o texto é enviado aos governos dos Estados membros da
OIT, que, por sua vez – mesmo aqueles cujos representantes hajam votado contra a
adopção do texto –, terão de submeter o projecto de convenção ao órgão legislativo, a
fim de que se concretize a aceitação e integração daquela no plano interno.
Resta dizer que, em vista de uma melhoria gradual (e universal) das condições
de vida dos trabalhadores, não se permite a formulação de reservas a uma convenção
internacional do trabalho.

No número seguinte, teremos ensejo de estudar o mecanismo das reservas às convenções


internacionais, bem como o respectivo regime jurídico, pelo que só nesse momento se perceberá
melhor o alcance daquilo que acaba de ser dito.

Convenções internacionais celebradas no quadro da União Europeia


89

Não pode olvidar-se que, sendo Portugal membro da União Europeia, boa parte
do direito convencional em vigor na nossa ordem jurídica promana, justamente, de
tratados e acordos concluídos no âmbito dessa organização internacional.
Não obstante a ausência de uniformidade ou harmonização do procedimento
de vinculação dos Estados membros a tais convenções, divisa-se, em todo o caso, um
propósito de simplificação e celeridade, que se traduz numa intervenção preferencial
dos Governos, sendo os órgãos parlamentares relegados para um papel secundário,
designadamente no que toca ao acto de aprovação. Isto, por vezes, ao arrepio de
exigências constitucionais estritas, como sucede no caso português (cfr., supra, ponto
3.1), em nome do princípio do primado do Direito da União Europeia sobre (todo) o
direito interno, incluindo o constitucional (cfr., infra, cap. III).
Nesta sede, podem, em rigor, estar em causa dois tipos de convenções
internacionais: os Acordos da União Europeia e os Acordos da União Europeia e dos
Estados-membros (“acordos mistos”).

No que diz respeito aos primeiros, assinale-se que, nos termos do disposto no
artigo 216.º do TFUE, pode a União Europeia celebrar convenções internacionais com
Estados terceiros ou com organizações internacionais. Corolário da sua personalidade
jurídica internacional (cfr. artigo 47.º do TUE), tal jus tractum é exercido em matérias
da sua competência exclusiva ou partilhada (artigo 216.º do TFUE), sendo que as
normas convencionais daí emergentes vinculam, quer as próprias instituições
europeias, quer os Estados membros. Em Portugal, tratando-se, para todos os efeitos,
de normas emanadas de órgãos competentes da União Europeia, a respectiva
recepção na ordem interna ocorrerá através do número 3 do artigo 8.º da CRP.
O treaty making power da União encontra-se regulado no artigo 218 do TFUE.
Dele transparece a posição de supremacia atribuída ao Conselho (órgão de pendor e
legitimidade intergovernamental).
Estipula o número 2 desse preceito que o Conselho autoriza a abertura das
negociações, define as directrizes que lhe devem presidir, autoriza a assinatura e
celebra os sobreditos acordos entre a União Europeia e países terceiros ou
organizações internacionais.
Resulta do número seguinte que a decisão do Conselho que autoriza a abertura
90

das negociações – e que, em função da matéria sobre que verse o acordo projectado,
se destina também a designar o negociador ou o chefe da equipa de negociação – é
precedida da emissão de recomendações (ao Conselho) por parte da Comissão, ou do
Alto Representante da União Para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança,
nos casos em que a convenção incida exclusivamente, ou a título principal, sobre a
política externa e de segurança comum.
De salientar, ainda, que a decisão, também a cargo do Conselho, de autorizar a
assinatura do acordo e, se for o caso, a sua aplicação provisória, bem como a decisão
ulterior de celebração do acordo, são adoptadas sob proposta do negociador.
Com excepção dos casos em que o acordo incida, exclusivamente, sobre a
política externa e de segurança comum, esta última decisão (de celebração do acordo)
sobrevém apenas, contudo, após aprovação do Parlamento Europeu (nos casos
indicados na alínea a) do número 6) ou parecer por ele emitido após consulta por
banda do Conselho (nas demais situações – cfr. alínea b) do número 6).
Dispõe o número 11 do artigo 118.º que qualquer Estado membro, o
Parlamento Europeu, o Conselho ou a Comissão podem solicitar ao Tribunal de Justiça
parecer sobre a compatibilidade de um projecto de acordo com os Tratados. Uma
hipotética pronúncia negativa do Tribunal frenará a entrada em vigor do acordo, salvo,
naturalmente, alteração do respectivo projecto ou revisão dos próprios Tratados.
Sublinhe-se que, ao longo de todo o procedimento, o Conselho delibera por
maioria qualificada, a não ser nos casos – previstos no número 8 do artigo 218.º – em
que vigora a regra da unanimidade.
Como se vê, na órbita das competências próprias da União europeia, os Estados
membros viram-se (voluntariamente) amputados de uma parcela do seu jus tractum.
O princípio da delegação de competências assim o determina. O entibiamento (ou
mesmo afastamento) de algumas prerrogativas de soberania é conatural à aquisição
da qualidade de membro de uma organização de integração (de carácter supranacional
ou, quando menos, com laivos de supranacionalidade) (veja-se, a propósito, o nº 6 do
artigo 7.º da CRP).
Do ponto de mira do direito português, a posição do Governo acerca do
projectado acordo da União Europeia deve ser discutida e aprovada em Conselho de
Ministros, como se de um acordo internacional não submetido à Assembleia da
91

República se tratasse. Sucede, todavia, que nos termos constitucionais (artigos 161.º,
n), 163, f), e 197.º, nº1, f) da CRP), bem como de harmonia com o disposto na Lei no
âmbito do Processo de Construção da União Europeia (LPCUE – Lei nº 43/2006, com as
alterações introduzidas pela Lei nº 21/2012), em particular no seu artigo 2.º, impende
sobre o Governo um dever de informação à Assembleia da República.
Mais exactamente, se em causa estiver a aprovação de um acordo da União
que verse matéria da competência reservada da AR, deve o Governo remeter ao órgão
parlamentar um resumo do projecto ou proposta desse acordo, assim como uma
análise das suas putativas implicações, inteirando-o da posição que pretende adoptar
e solicitando-lhe a emissão de um parecer. Competirá, seguidamente, à Comissão de
Assuntos Europeus, em articulação com as comissões especializadas ratione materiae,
preparar esse parecer, que, depois de aí aprovado, será submetido ao plenário.
Conquanto obrigatório (deve ser solicitado), o parecer da AR não é vinculativo para o
Governo (as conclusões nele exaradas não têm de ser seguidas), mas – sob pena de se
converterem em letra morta os poderes de acompanhamento, apreciação e pronúncia
da AR – deverá ser tomado em consideração, podendo, em certos casos, levar a uma
reponderação da posição do Estado português.
Se, diferentemente, se tratar de acordo da União que se não enquadre nas
matérias de competência reservada da AR, nem por isso deixa esta de poder exercer as
aludidas competências de acompanhamento e apreciação, subsistindo, por
conseguinte, o dever de o Governo transmitir ao Parlamento todas as informações
que, in casu, se revelem necessárias (cfr. artigos 4.º e 5.º da LPCUE).

Já no que tange aos acordos da União Europeia e dos Estados membros


(acordos mistos) – estando em jogo matérias parcialmente, ainda, da competência
destes – o procedimento de vinculação é de índole bifronte, na medida em que, por
um lado, envolve a União Europeia (nos termos, já supra-expendidos, do artigo 218.º
do TFUE) e, por outro, cada um dos Estados membros, à luz do seu direito
constitucional.
Ora, a necessidade de conciliar o interesse geral da União com os interesses dos
Estados membros, conduz, frequentemente, como lembra MARIA LUIZA DUARTE, a
processos negociais capitaneados pela Comissão e a decisões do Conselho prevendo a
92

aplicação provisória do acordo ou a vinculação às suas disposições através da mera


assinatura, limitando, desse modo, a margem de decisão autónoma dos Estados.
Em tais situações, não obstante a Constituição portuguesa não prever a
aplicação provisória nem, tão-pouco, procedimentos simplificados de conclusão,
parece ser se admitir – obtempera a mesma autora – a possibilidade de o Governo
português se pronunciar favoravelmente ao acordo, ainda que, em parte, ao arrepio
do iter e das formas constitucionais normais. Em qualquer caso, permanecerá o dever
de informação à AR, designadamente no que respeita à marcha procedimental em
curso. No caso, porém, de acordos mistos que, em Portugal, devam revestir a forma de
tratados solenes ou versem matéria da competência reservada da AR, não se vê,
porém, como possa prescindir-se da respectiva aprovação pelo órgão parlamentar.
Em suma, poderá dizer-se que na celebração de convenções internacionais no
quadro da União Europeia o Governo assume um papel de clara supremacia, com a
consequente subalternização da Assembleia da República. Em nome dos interesses
subjacentes à construção europeia, acaba, inevitavelmente, por subverter-se, em
medida não despicienda, o equilíbrio institucional entre aqueles dois órgão de
soberania.

4 – A participação nas convenções internacionais

A tendência actual é, como sabemos, a de facilitar, o mais possível, a


participação dos Estados nos tratados multilaterais, quase lhes sendo reconhecido um
«direito ao tratado».
Com isso se confere uma maior eficácia (a um tempo, objectiva e subjectiva) às
normas de direito internacional, promovendo uma maior aproximação entre os povos
e reforçando o grau de integração da comunidade internacional.
Claro que nem todas as convenções internacionais se afeiçoam a esse
desiderato. É o caso dos tratados multilaterais restritos ou fechados, que, sendo
concluídos por um escasso número de partes, não dispõem de uma cláusula
autorizativa da participação de Estados não contratantes, mediante o mero
cumprimento de certas formalidades. São, por conseguinte, as partes contratantes
originárias que, adrede e discricionariamente, estabelecem as condições em que
poderá um Estado terceiro vincular-se a esses tratados.
93

Já, no entanto, se ajustam ao mencionado objectivo de tendencial


universalização do direito convencional os tratados multilaterais abertos (de resto,
muito mais frequentes), que, ao invés, permitem a qualquer Estado não contratante
adquirir a qualidade de parte através de um simples acto unilateral (v.g., assinatura,
adesão, etc.), sem que a tal possam opor-se os contraentes iniciais.
Desta categoria fazem parte, inter alia, os já aludidos tratados multilaterais
gerais: por ex., convenções de codificação do direito internacional, tratados que
versam sobre a protecção dos direitos humanos, convenções sobre redução de
armamentos, tratados de natureza ambiental e, em geral, os concluídos sob os
auspícios de organizações internacionais.

4.1 – Mecanismos tendentes a facilitar a participação dos Estados nas


convenções internacionais

A referida tendência para permitir uma mais ampla participação nas


convenções internacionais encontra acolhimento favorável na Convenção de Viena,
mormente nas disposições relativas à adesão e, sobretudo, à formulação de reservas.
Também a assinatura diferida, hoje prevista em inúmeros tratados, concorre para o
mesmo fim. Destes mecanismos daremos conta resumida já a seguir.

Assinatura diferida

Tradicionalmente, apenas aos Estados participantes na negociação, e para os


quais o texto-projecto fosse considerado satisfatório, era permitida a assinatura das
convenções internacionais.
Hoje, no entanto, a possibilidade de assinar um tratado ou convenção existe
também para os Estados que, havendo participado na negociação, entendam por bem
– porventura com o intuito de melhor reflectirem acerca do respectivo conteúdo –
diferir ou protrair a sua assinatura para um momento subsequente à adopção do
texto. Como existe, outrossim, para aqueles que não tenham sequer participado na
negociação.
Nisto consiste a assinatura a diferida. Trata-se, pois, daquela que podem fazer
os Estados, durante um certo prazo (de meses ou mesmo de alguns anos) estabelecido
na própria convenção, ou até sem qualquer limite de tempo, tendo ou não participado
94

na fase da negociação.
Como se vê, através deste expediente, ou bem se proporciona aos Estados a
ocasião para, durante algum tempo, amadurecerem o conteúdo das convenções em
cuja negociação hajam intervindo, não os compelindo, portanto, a uma assinatura
imediata e irreflectida, que poderia, em definitivo, comprometer a sua vinculação
(com efeito, sendo esse o caso, muitos, decerto, optariam por não adquirir a qualidade
de parte), ou bem, no caso de não terem participado na negociação, se lhes faculta um
meio simples e directo de se tornarem partes de um tratado em relação ao qual, à
partida, são alheios.

Adesão

Através da adesão (cfr. atigo 15.º da CV), permite-se a um Estado não signatário
de uma convenção internacional, que se encontra já em vigor, tornar-se parte dela,
independentemente de ter ou não participado na negociação.
À semelhança da ratificação, a adesão serve para exprimir o consentimento de
um Estado a ficar vinculado por um tratado, pelo que, mais até do que a assinatura
diferida (mera antecâmara de uma eventual vinculação futura), constitui um meio
eficaz de alargar o campo de aplicação do direito internacional convencional.
Como, porém, a adesão não é precedida de um acto de autenticação
(assinatura), a aprovação do tratado (se a ela houver lugar, de acordo com o direito
interno do Estado em questão) deverá ser feita antecipadamente (AZEVEDO SOARES),
sem o que, como se percebe, se recairia numa situação em tudo idêntica à das
ratificações imperfeitas.

Reservas

A formulação de reservas aos tratados multilaterais representa uma outra


forma de facilitar/propiciar a referida universalização do direito convencional. Do que
se trata?
Pode acontecer (e acontece realmente muitas vezes) que um Estado esteja
globalmente de acordo com o objecto e o conteúdo essencial de um tratado do qual
95

está prestes a tornar-se parte, discordando, embora, de certa ou certas disposições.


Que atitude tomar em tal circunstância? Duas possibilidades se abrem para o Estado
em causa.
Ou, pura e simplesmente, recusa vincular-se à convenção, de modo a poder
escapar à aplicação das cláusulas que não mereceram a sua concordância; ou, pelo
contrário, aceita fazer parte do tratado, declarando, todavia, que pretende excluir ou
modificar essas cláusulas que reputa de contrárias aos seus interesses.
Ora, a adopção desta segunda atitude, exprimindo, alternativamente, esse
Estado a intenção de excluir ou de modificar determinada ou determinadas
disposições da convenção, consubstancia, justamente, a formulação de reservas
(QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Mecanismo este previsto na Convenção de Viena, que
admite a sua exercitação aquando da assinatura, da ratificação, da aceitação ou da
aprovação do tratado.

É a seguinte a definição de reserva constante do artigo 2.º, nº1, d), da CV: «A expressão
“reserva” designa uma declaração unilateral, qualquer que seja o seu conteúdo ou a sua designação,
feita por um Estado quando assina, ratifica, aceita ou aprova um tratado ou a ele adere, pela qual visa
excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado na sua aplicação a esse Estado».
Com as reservas não se confundem as chamadas declarações interpretativas, também muito
correntes na prática internacional. Através destas não visam os Estados excluir ou modificar os efeitos
jurídicos de determinadas cláusulas, mas tão-só precisar-lhes o sentido e alcance, No caso, porém, de se
tratar de declarações interpretativas condicionais – aquelas em que o Estado faz depender o seu
consentimento da aceitação, pelos demais, de uma específica interpretação de alguma ou algumas das
suas disposições –, quase se está em presença de reservas encapotadas. Daí que tendam, por vezes, os
Estados a qualificar como meras declarações interpretativas actos unilaterais que, em bom rigor, são
verdadeiras reservas, contornando, dessarte, a proibição de formulação destas em certos tratados
multilaterais. O que, lastimavelmente, revela que nem sempre a substância ou materialidade das coisas
se sobrepõe ao puro nominalismo…

Num tempo não muito distante, as reservas formuladas por um determinado


Estado apenas surtiriam efeito, caso fossem aceites – expressa ou tacitamente – por
todos os outros Estados que tivessem assinado ou aderido ao tratado em causa
(exigência de unanimidade). De contrário, a convenção não entraria em vigor perante
o autor das reservas. Esta solução, vigente até 1951, equivalia, na prática, a conferir a
cada Estado parte um direito de veto, que pendia, qual espada de Dâmocles, sobre
96

aquele que lançasse mão do mecanismo das reservas. Para mais, em nada se
coadunava com o proclamado objectivo de alargar, o mais possível, o campo de
aplicação dos tratados.
Tudo começaria, no entanto, a alterar-se por ocasião de um célebre Parecer
lavrado pelo Tribunal internacional de Justiça – exactamente em 1951 – no caso das
reservas à Convenção Sobre o Genocídio (M. AKEHURST). Aí, pela primeira vez, se
afirmou não ser a regra tradicional em matéria de reservas aplicável a certo tipo de
tratados, designadamente à Convenção Sobre o Genocídio.
Assentara-se, a partir de então, em que a objecção, de alguma ou algumas
partes num tratado multilateral, a uma reserva formulada por outro Estado não
obstaria a que tal tratado entrasse em vigor perante este último, desde que essa
reserva não contendesse com o objecto e o fim da convenção.
Sem embargo, muitos continuariam a rejeitar esta forma de encarar o
procedimento da formulação de reservas, estribando-se nas desvantagens ou
inconvenientes que um recurso abusivo a este expediente poderia acarretar. Na
verdade, elas constituiriam um modo de subverter o equilíbrio próprio de uma
convenção internacional, fragmentando o seu regime: a circunstância de, em resultado
da formulação de reservas, nem todos os Estados parte obedecerem a todas ou às
mesmas normas, atentaria, de facto, contra a integridade e a coerência próprias do
tratado. Por outras palavras, ficaria comprometido um objectivo, também atendível,
de uniformização do direito internacional convencional.
Estas consequências negativas, frequentemente assacadas às reservas, não
podem, contudo, fazer esquecer as suas, também indesmentíveis, virtualidades, de
entre as quais se conta, sem dúvida, a de proporcionarem uma ampla participação nos
tratados multilaterais e assim contribuírem para um estreitamente de laços entre os
povos e nações, com o consequente reforço do grau de união da comunidade
internacional.
Tudo sopesado, na Convenção de Viena acabariam por ser acolhidos os
princípios que o TIJ enunciara no supracitado Parecer consultivo, emitido em 1951, ao
ser afastada a regra da unanimidade, que, tradicionalmente, como se disse, presidia ao
regime jurídico das reservas.
Vejamos, pois, mais detidamente, as coordenadas principais do regime actual.
97

Rege, neste domínio, um princípio fundamental de liberdade. Quer dizer: nos


tratados que concluam, os Estados são livres de permitir, limitar ou impedir a aposição
de reservas. É o que resulta das alíneas a) e b) do artigo 19.º da CV, ao estatuir-se que
um Estado pode formular reservas a uma convenção internacional, a menos que essas
reservas sejam proibidas pelo tratado ou que este apenas autorize determinadas
reservas, entre as quais se não incluam aquelas que tal sujeito haja formulado.
Apesar disso, aquela liberdade não é total. Com efeito, alguns limites ou
restrições se erigem e que importa não olvidar.
O primeiro encontra-se previsto na alínea c) da disposição citada: em caso de
silêncio do tratado, uma reserva será permitida, contanto que não seja incompatível
com o objecto e o fim do tratado.
Além deste, dois constrangimentos suplementares figuram no artigo 20.º, nº 2
e nº 3, da CV: nos tratados multilaterais restritos, dos quais resulte que a sua aplicação
na íntegra, entre todas as partes, é condição essencial para o consentimento de cada
uma a vincular-se pelo tratado, vale a regra da unanimidade, isto é, se uma reserva for
aposta, tem de ser aceite por todas as partes (artigo 20.º, nº 2); no caso, por outro
lado, dos tratados constitutivos de organizações internacionais, e sem prejuízo de
disposição em contrário, a formulação de reservas exigirá a aceitação dos órgãos
competentes dessas organizações (artigo 20.º, nº 3).

Da natureza das coisas decorre ainda não ser concebível a formulação de reservas aos tratados
bilaterais, pois que estas redundariam na não conclusão do acordo (no caso de uma parte formular uma
reserva e a outra a não aceitar) ou na modificação do texto (na hipótese de aceitação), o que, afinal de
contas, equivaleria a uma renegociação do tratado.
Por incompatibilidade lógica (D. CARREAU), também não será admissível uma reserva – como,
aliás, o TIJ declarou, em 1969, no caso da Plataforma Continental do Mar do Norte – a uma disposição
convencional que codifique uma norma costumeira de alcance geral. O mesmo deverá concluir-se, a
fortiori, e, desta feita, sob pena de invalidade, no tocante a reservas formuladas a cláusulas de tratados
que exprimam ou consagrem normas de jus cogens.

Atentemos agora nos concretos efeitos jurídicos emergentes da formulação de


reservas, previstos nos artigos 20.º e ss. da CV.
Conforme assinalado supra, a flexibilização introduzida no regime das reservas,
a partir de 1951, determinou o abandono da regra da unanimidade, antes
98

prevalecente, sendo que hoje, descontado o caso já referido dos tratados multilaterais
restritos, basta que um único Estado parte numa convenção aceite determinada
reserva para que aquele que a tenha formulado adquira também, automaticamente, a
qualidade de parte nessa convenção (artigo 20.º, nº 4, b)).

Parece algo criticável esta solução consagrada na Convenção de Viena, sobretudo quando a
reserva em causa tenha sido rejeitada por um número significativo de Estados parte no tratado, Por
isso, alguns autores defendem, conquanto ao arrepio do direito positivo, não dever ser considerado
parte numa convenção aquele Estado cuja reserva aposta haja suscitado a oposição de mais do que um
terço dos Estados parte nessa convenção (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).

Nos termos do disposto no artigo 20.º, nº 4, b), da CV, a própria objecção a


uma reserva não tem por efeito, salvo intenção contrária claramente manifestada pelo
autor dessa objecção, a não entrada em vigor do tratado entre esse Estado e aquele
que formulou a reserva. Com isto se pretendeu limitar o alcance das objecções às
reservas.
Deve salientar-se que, através da formulação de uma reserva modificam-se,
tão-somente, as relações entre o Estado que a tenha aposto e aquele ou aqueles que a
tenham aceitado ou que a ela hajam objectado, permanecendo, por consequência,
inalteradas as relações das outras partes na convenção, para as quais as respectivas
cláusulas se aplicarão na sua formulação original.
Figuremos algumas situações pensáveis.

Suponhamos, em primeiro lugar, que o Estado A formula uma reserva a


determinada cláusula de um tratado, pretendendo modificá-la, de modo a melhor
acautelar os seus interesses, e que apenas o Estado B aceita tal reserva. Que sucede
neste caso? Aplicar-se-á, entre A e B (e apenas entre eles) a disposição em causa nos
exactos termos definidos pela reserva.
E se B, em vez de aceitar a reserva, tivesse optado por objectá-la? Nessa
eventualidade, a referida cláusula, muito simplesmente, deixaria de aplicar-se entre A
e B, a menos que este último Estado se opusesse a que o tratado entrasse em vigor
entre ambos – possibilidade esta também conferida, já o sabemos, pela alínea b) do nº
4 do artigo 20.º da CV.
99

Em ambos os casos nada se alteraria na convenção quanto às outras partes, nas


suas relações inter se.

Imaginemos agora que o Estado A, em vez de modificar, pretende excluir a


mesma disposição porque, em definitivo, não está de acordo com o respectivo
conteúdo e que B aceita essa reserva. Que consequência se produz? Não se aplica
entre os dois Estados e, uma vez mais, apenas entre eles, a mencionada cláusula.
E na hipótese de B objectar? Do mesmo modo, deixaria de aplicar-se tal
disposição no plano das relações entre A e B, sem prejuízo, claro está, do disposto no
artigo 20.º, nº 4, b), da CV.
Que conclusões extrair de tudo isto?
Seguramente, pelo menos, esta: tratando-se de uma reserva de modificação, as
consequências jurídicas diferem consoante a reserva tenha motivado a aceitação ou a
objecção de determinado ou determinados Estados parte na convenção. Tratando-se,
porém, de uma reserva de exclusão, a aceitação e a objecção produzem (algo
surpreendentemente) a mesma consequência, qual seja, a não aplicação entre os
implicados da cláusula ou cláusulas sobre as quais incide a reserva. Isto, bem
entendido, sempre que, neste segundo caso (o da objecção) o Estado que objecta não
fizer uso da supracitada faculdade que o artigo 20.º, nº 4, b), lhe confere de se opor a
que o tratado entre em vigor entre si próprio e o Estado que formulou a reserva.
Como se vê, estamos em presença de um regime algo discutível que traduz o
equilíbrio possível entre dois objectivos virtualmente conflituantes: o da uniformização
e o da universalização do direito convencional.

5 – A eficácia das convenções internacionais em relação a terceiros

De acordo com a máxima pacta tertiis nec nocent nec prosunt, os tratados não
produzem efeitos para terceiros (Estados não parte), nem através da imposição de
obrigações, nem por via da atribuição de direitos.

5.1 – O princípio da relatividade dos efeitos dos tratados: desvios e excepções

Ao estatuir, no artigo. 34.º, que «um tratado não cria nem obrigações nem
direitos para um terceiro Estado sem o consentimento deste último», a Convenção de
100

Viena viria, na verdade, a codificar um costume preexistente, continuadamente,


observado na prática estadual e unanimemente reconhecido pela jurisprudência
internacional (v.g., nos casos da Fábrica de Chorzow e da Ilha das Palmas). Nisto
consiste o princípio da relatividade dos efeitos dos tratados ou da sua eficácia relativa.
Sendo, porém, a regra a da não produção de efeitos ultra partes pelas
convenções internacionais, não se poderá negar a existência de certos casos em que
delas nascem direitos ou obrigações para Estados terceiros, mediante o consentimento
destes – por isso que constituindo meras concretizações do aludido princípio da
relatividade –, a par de outros em que os tratados se aplicam e vinculam Estados
terceiros, mesmo sem o seu consentimento, não se tratando aqui, por conseguinte, de
simples concretizações do princípio da eficácia relativa, mas de suas autênticas
excepções.
A estes dois grupos de situações distintas (concretizações do e excepções ao
princípio da relatividade dos efeitos dos tratados) caberá dedicar as considerações
subsequentes.

Aplicação das convenções internacionais a Estados terceiros com o seu


consentimento

Acordo colateral

Logo no artigo 35.º da CV, se admite a possibilidade de um tratado criar


obrigações para um Estado terceiro. Trata-se do mecanismo do acordo colateral:

«Uma obrigação nasce para um terceiro Estado de uma disposição de um tratado, se as partes
nesse tratado entenderem criar a obrigação por meio dessa disposição e se o terceiro Estado aceitar
expressamente por escrito essa obrigação».

Vamos supor que A e B, partes num tratado inicial, pretendem criar uma
obrigação para C – Estado terceiro, que, portanto, não participou nesse primeiro
acordo. Tal intenção só logrará concretizar-se caso C, expressamente e por escrito,
anua em ser sujeito passivo da mencionada obrigação. Vale por dizer,
consequentemente, que o consentimento do Estado terceiro (no nosso exemplo, C)
terá de ser formalizado através de um segundo acordo – por isso designado acordo
colateral – entre esse Estado e as partes no primitivo tratado (A e B).
101

Daqui se conclui que a obrigação não se impõe a C por força da convenção A-B,
mas sim em resultado de um acordo posterior em que são intervenientes os três
Estados considerados (A, B e C). Numa palavra, é este acordo colateral que constitui o
fundamento jurídico da obrigação que passa a vincular o Estado terceiro.

Como se vê, o acordo colateral constitui um corolário lógico do princípio da eficácia relativa das
convenções internacionais, ao mesmo tempo que não «afronta» a igualdade e a soberania dos Estados,
visto que a imposição de obrigações para um Estado terceiro apenas resulta possível mediante o
consentimento deste.

Estipulação em favor de outrem

Uma outra técnica contratual, aliás oriunda do direito interno, também


contemplada na Convenção de Viena (artigo 36.º), é a da estipulação em favor de
outrem. Em que se traduz?
Desta feita, os Estados parte numa convenção internacional decidem criar um
direito cujo beneficiário é um terceiro (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Atentemos no
teor do nº 1 do preceito citado:

«Um direito nasce para um terceiro Estado de uma disposição de um tratado, se as partes
nesse tratado entenderem, por essa disposição, conferir esse direito, quer ao Estado terceiro, quer a um
grupo de Estados a que ele pertença, quer a todos os Estados, e se esse Estado terceiro o consentir.
Presume-se o consentimento enquanto não haja indicação em contrário, a menos que o tratado
disponha diversamente».

E dispõe o nº 2 do artigo 37.º:

«No caso em que um direito tenha nascido para um terceiro Estado, de acordo com o artigo
36.º, esse direito não pode ser revogado ou modificado pelas partes, se se concluir que era destinado a
não ser revogável ou modificável sem o consentimento do terceiro Estado».

Verifica-se, portanto, que também no caso de tratados que criam direitos para
terceiros se não dispensa o consentimento destes; simplesmente, as exigências são
aqui menores: tal consentimento é meramente presumido (presunção esta que o
beneficiário, querendo, poderá, naturalmente, ilidir) Qual a razão de ser desta
diferença de regime relativamente ao acordo colateral, em que, como vimos, se faz
necessário que aquele seja prestado expressamente e sob a forma escrita?
É fácil perceber-se. Os dois mecanismos distinguem-se materialmente pela
102

circunstância de no acordo colateral estar em causa a imposição de uma obrigação


para um Estado terceiro, ao passo que na estipulação em favor de outrem se trata
antes da atribuição de um direito. Ora, não pode presumir-se o consentimento de
quem vai ficar sujeito a um encargo; mas já, por certo, se pode presumir a
aquiescência de quem vai auferir ou obter uma vantagem…
Resta acrescentar que, por também na estipulação em favor de outrem se não
prescindir do consentimento do Estado terceiro, estamos, uma vez mais, em face de
uma mera decorrência do princípio da relatividade dos efeitos dos tratados

Cláusula da nação mais favorecida

No que toca ao problema da aplicação das convenções internacionais a Estados


terceiros com o seu consentimento, não poderíamos deixar de fazer menção a um
outro mecanismo, também muito corrente nas relações internacionais de carácter
económico (tratados comerciais e aduaneiros) e, em particular, no sistema da
Organização Mundial do Comércio: a cláusula da nação mais favorecida.
Trata-se ainda de um expediente técnico destinado à criação de direitos em
benefício de um terceiro. De que forma opera?
Imaginemos um tratado entre os Estados A e B, referente a tarifas aduaneiras
incidentes na importação de certos produtos. Nele as partes contratantes inserem
uma cláusula (a cláusula da nação mais favorecida), nos termos da qual, se qualquer
desses Estados (A ou B) vier, no futuro, a concluir com outro (por ex., com C) uma
segunda convenção versando sobre a mesma matéria, mas contendo disposições mais
vantajosas (v.g., uma tarifa aduaneira mais baixa), tal regime mais favorável do acordo
A-C ou B-C aplicar-se-á, automaticamente, à convenção A-B, beneficiando, por
conseguinte, o Estado parte neste tratado inicial que não participou no segundo.
Do exposto resulta que a nação mais favorecida será B, caso o segundo acordo
haja sido concluído entre A e C; ou A, na hipótese de ter sido B a celebrar com C essa
convenção ulterior.
No exemplo apresentado, B (ou A) será, pois, o Estado terceiro que na
respectiva esfera jurídica verá produzirem-se certos efeitos de um tratado A-C (ou B-C)
ao qual é alheio. Dito de outra forma, através deste tratado irão nascer determinados
direitos em cuja titularidade ficará investido um terceiro.
103

E de que modo é prestado aqui o consentimento de B (ou de A)?


Tal consentimento é prestado previamente, por antecipação. Sim, foi logo
aquando da conclusão do primeiro acordo que ambos os Estados parte aceitaram
beneficiar de um hipotético regime mais vantajoso, constante de uma convenção,
eventualmente celebrada por um deles com outrem, em momento posterior, pelo
que, de novo, não se verifica, na técnica da cláusula da nação mais favorecida,
qualquer derrogação ao princípio da relatividade dos tratados.

Analisadas as «falsas excepções» ao referido princípio (PIERRE-MARIE DUPUY),


passemos, sem outras delongas aos verdadeiros desvios ou excepções.

Aplicação das convenções internacionais a Estados terceiros sem o seu


consentimento

O artigo. 38.º da Convenção de Viena~

Esta disposição da convenção de Viena prevê, efectivamente, a extensão a


terceiros Estados, por via costumeira, das normas de um tratado. Reza assim:

«Nenhuma das disposições dos artigos 34.º a 37.º se opõe a que uma norma enunciada num
tratado se torne obrigatória em relação a terceiros Estados, como norma consuetudinária de direito
internacional, reconhecida como tal».

Quer dizer, admite-se que uma regra contida numa convenção internacional
possa, a certa altura, convolar-se em norma costumeira e, em resultado disso, tornar-
se obrigatória para Estados não parte, que reiteradamente a observam, interiorizando
esse seu carácter vinculante. Esta extensão ultra partes dos efeitos de um tratado
pode até explicar melhor do que a própria categoria dos tratados que criam situações
objectivas – cfr. infra – o reconhecimento geral de que beneficiam certos estatutos
territoriais, como por ex., a neutralidade da Suíça, o estatuto da zona económica
exclusiva, o do espaço extra-atmosférico, etc. (J. COMBACAU/S. SUR).

Criação de situações «objectivas» ou «estatutárias»

Conforme já assinalado, a indeterminação dos sujeitos activos e passivos de


certas obrigações internacionais representa hoje uma das mais marcantes
características da normatividade internacional, a ponto de, justamente, se falar numa
104

sua progressiva diluição. Caminha-se, assim, para aquilo a que podemos chamar uma
objectivização do direito internacional convencional, que, aos poucos, se vai
transformando em direito internacional comum (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS). Daí também que vá perdendo nitidez a, outrora bem visível, fronteira
entre norma convencional e norma costumeira.
Pois bem, em matéria de tratados, as situações reputadas de objectivas ou
estatutárias têm exactamente a ver com o que acaba de ser dito.
Há, com efeito, determinadas convenções internacionais que, destinando-se a
instituir certos estatutos políticos ou territoriais, apresentam o carácter de verdadeiro
direito objectivo e, nessa medida, os seus efeitos jurídicos fazem-se sentir para lá do
círculo, mais ou menos restrito, das partes contratantes. Dito de outro modo, trata-se
de convenções que, em razão do respectivo conteúdo, se impõem a terceiros
independentemente do consentimento destes.

Pensemos, por ex., nos tratados de desmilitarização (v.g., o tratado de desmilitarização da


antárctida, de 1959), das convenções que consagram a liberdade de navegação em determinados cursos
de água internacionais (por ex., as relativas aos canais do Suez e do Panamá, bem como as respeitantes
ao Reno, ao Danúbio, etc.), na quase totalidade dos acordos de delimitação de fronteiras de territórios
contíguos (ainda que aqui, a ser ela admitida no direito internacional, se possa talvez, preferentemente,
fazer apelo à figura do direito real internacional, que, do lado dos sujeitos passivos, originaria uma
obrigação passiva universal), no acordo de 1979, regulando as actividades dos Estados na Lua e demais
corpos celestes, etc. (PIERRE-MARIE DUPUY e QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

Os exemplos acabados de fornecer demonstram que, pelo menos em alguns


tratados que criam situações objectivas – caso, nomeadamente, do citado acordo de
desmilitarização da Antárctida –, se manifesta a noção de governo internacional de
facto. Em que se traduz?
Constitui uma consequência directa do carácter pouco organizado e
institucionalizado da comunidade internacional. Tal facto conduz a que um conjunto
de Estados – habitualmente os mais poderosos – actue em nome do interesse geral
dessa comunidade, procurando, através de procedimentos «quase legislativos», criar
regras de alcance universal, disciplinadoras da conduta dos seus membros. Uma
actuação, por isso, correspondente à de um governo internacional de facto, de tipo
105

oligárquico, que, ao lado de algumas virtualidades, apresenta igualmente factores de


risco para a evolução do direito das gentes.

Disposições convencionais destinadas à criação de um sujeito de direito

Não deixando, em sentido lato, de integrar-se na categoria, acima tomada em


consideração, de tratados que criam situações objectivas, esta outra que agora se tem
em vista apresenta, todavia, especificidades que recomendam a sua autonomização.
Referimo-nos à criação, por via convencional, de certas entidades ou sujeitos, cuja
existência, não sendo susceptível de contestação, é, evidentemente, oponível a
terceiros.

Isto mesmo fora afirmado no já aludido parecer consultivo do TIJ, de 1949, sobre a Reparação
de danos sofridos ao serviço das Nações Unidas. Sustentou, então, o Tribunal que a criação de uma
qualquer entidade (in casu, a ONU), por uma larga maioria de membros da comunidade internacional,
lhe confere uma personalidade objectiva, que não apenas uma personalidade reconhecida pelos Estados
que, em determinado momento, lhe deram vida.

Mas os mesmos efeitos erga omnes ocasionarão certas convenções


internacionais que se destinam à «criação» de novos Estados

Claro que, assentando em que a existência de novos Estados é um dado objectivo, que não
mais poderá negar-se a partir do momento em que uma determinada entidade reúna em si os três
elementos – população, território e governo – necessários à constituição de um Estado, se encontrarão
boas razões para duvidar de um possível fundamento convencional do nascimento de um sujeito
primário de direito internacional.
Ainda assim, porém, o que importa relevar á que, mesmo admitindo que o surgimento de um
novo Estado resulta, em larga medida, de um processo de facto, o certo é que, estando esse
acontecimento, concomitante ou subsequentemente, formalizado (diríamos, sacralizado) num tratado,
não deixará este de impor-se a todos os membros da comunidade internacional.

Destarte, é usual apontar-se o exemplo da Bélgica («criada» através do Tratado


de Londres, de 1839) e, em geral, o dos Estados saídos de processos de
descolonização, cujo nascimento se concretiza nos acordos de independência.
106

Os tratados «normativos»

É já nossa conhecida a noção de tratados normativos, cuja celebração é


favorecida pelas características da sociedade internacional.
Em rigor, são várias as realidades abrangidas por esta designação.
Assim, tais tratados normativos podem, desde logo, consubstanciar-se nas
chamadas convenções de codificação.

Tanto a Carta das Nações Unidas (artigo 13.º), como o Estatuto da Comissão de Direito
Internacional (artigo 15.º), fazem referência às operações de codificação e de desenvolvimento
progressivo do direito internacional. Por codificação entende-se a conversão de normas costumeiras
num corpo de normas escritas, devidamente agrupadas e sistematizadas; o desenvolvimento
progressivo significa antes a afirmação de regras novas a partir do direito preexistente, com o que,
portanto, releva já do plano do direito a constituir.
Em ambos os casos, para além de um indesmentível interesse técnico e científico, está
igualmente em causa o objectivo da coesão e da unidade política na comunidade dos Estados; objectivo
esse que se apresentará tão menos inalcançável ou utópico quanto mais a ordem jurídica internacional
tender para a precisão, para a clarificação e para a ordem (GUTIÉRREZ ESPADA/CERVELL HORTAL).
Em especial, sendo de fonte costumeira parte substancial das normas de direito internacional e
conhecendo-se as imperfeições próprias dos procedimentos (consuetudinários) de formação
espontânea de normas jurídicas, compreender-se-á a importância que assume a tarefa de codificação
naquele ordenamento.

Ora, se porventura um tratado do tipo indicado codificar uma ou várias normas


costumeiras de alcance geral, ele será nessa parte e, como se percebe, tão-somente
nela, oponível a Estados terceiros. O mesmo sucederá, a fortiori, se a aludida
codificação incidir sobre uma norma (ou normas) de jus cogens.
Abrangidos pela categoria dos tratados normativos estão, em segundo lugar,
aqueles – conquanto de importância residual – cujas partes se reservam o direito de
exercer certas competências em relação a nacionais de Estados terceiros, em
domínios, como v.g., o do ambiente marinho, onde, até então, estes últimos gozavam
de jurisdição exclusiva (por ex., intervenções em alto-mar, sobre navios estrangeiros,
em caso de acidente que provoque ou possa vir a provocar poluição por
hidrocarbonetos – Convenção de Bruxelas de 1969).
E sobeja ainda a hipótese de algumas convenções internacionais estarem
redigidas à guisa de tratados-lei, em tais termos que boa parte das suas disposições se
107

veria desprovida de sentido útil caso não fosse acatada e observada pela generalidade
dos sujeitos de direito internacional. É, inter alia, o caso da Convenção das Nações
Unidas Sobre o Direito do Mar, ou de Montego Bay, de 1982.

De entre as várias situações, acima descritas, de aplicação das convenções


internacionais a Estados terceiros sem o seu consentimento, apenas esta última (a dos
tratados normativos redigidos à maneira de um tratado-lei) parece constituir uma
verdadeira excepção ao princípio da relatividade.
Assim, a hipotética extensão a Estados terceiros, por via costumeira, das regras
de um tratado, contemplada no artigo 38.º da Convenção de Viena, concretiza-se, não
em resultado das características intrínsecas desse tratado, mas sim por força de um
processo consuetudinário no qual participam Estados alheios à convenção, quer
mediante a adopção de comportamentos consonantes, com o valor de precedentes
(elemento objectivo), quer através da afirmação de uma convicção de obrigatoriedade
(elemento subjectivo ou psicológico),
Do mesmo modo, tanto os tratados que criam situações objectivas ou
estatutárias (v.g., um estatuto de neutralização ou de desmilitarização para um
território), em si e por si mesmo considerados, não exibem características que os
habilitem a produzir os requestados efeitos ultra partes. Se bem virmos, tais efeitos
resultam, directa e inelutavelmente, da situação (objectiva, não contestável) por eles
instituída ou que deles emerge.
Já o caso dos tratados normativos é diferente. Não, decerto, o daqueles que
codificam normas costumeiras de alcance geral e, por maioria de razão, normas de jus
cogens, pois que nesses, uma vez mais, a eficácia em relação a terceiros advém de
factores exteriores ao próprio tratado (a natureza das normas por eles codificadas);
mas, sobretudo, o dos tratados-lei, cujas disposições (ou boa parte delas) se
converteriam em letra morta caso não fossem observadas pela generalidade dos
sujeitos de direito internacional. Neste caso, a vinculação de terceiros ocorre, pois, em
razão da própria natureza do tratado, o que, em boa verdade, acaba por desmentir
quem não descortina qualquer alcance prático na distinção clássica entre tratado-lei e
tratado-contrato.
108

6 – Condições de validade das convenções internacionais

Não é exclusivo do direito internacional, antes repousa em princípios gerais de


há muito estabelecidos, e que vigoram também na ordem interna, o facto de para a
validade de qualquer acto jurídico se exigir um sujeito capaz, uma vontade livremente
exprimida e um objecto lícito perante o ordenamento em que o acto em causa se
destina a produzir os efeitos.
Em virtude disso, tratando-se de instrumentos jurídicos bilaterais ou
multilaterais, são também esses três os requisitos de validade das convenções
internacionais: a capacidade das partes, a regularidade do consentimento (ou vontade)
e a licitude do objecto.

6.1 – Capacidade das partes

Apenas os sujeitos de direito internacional têm capacidade jurídica para


celebrar tratados; designadamente possuem essa capacidade, como se disse já, os
Estados e as organizações internacionais. A prática internacional revela, no entanto,
que, em situações contadas, também aos movimentos de libertação nacional tem sido
permitida a conclusão de certo tipo de acordos; ponto é que estes se coadunem com a
vocação essencial desses sujeitos: a ascensão à plena independência.

Trata-se, portanto, no que toca às autoridades representativas dos povos não autónomos, de
uma capacidade rigorosamente funcionalizada (limitada), que, em regra, se tem consubstanciado na
celebração de três tipos de convenções internacionais: acordos de independência (que, selando o
nascimento de um novo Estado, põem, em simultâneo, termo ao movimento de libertação nacional),
tratados relativos ao desenvolvimento da luta armada (para efeitos de submissão do conflito ao direito
internacional humanitário) e tratados de participação numa organização internacional).

Relativamente aos Estados, raras são as situações que ditam a sua incapacidade
para concluir tratados.
Uma delas poderá, em abstracto, resultar de um acordo de protectorado. Do
que se trata?
O protectorado consiste numa particular forma de relacionamento entre dois
Estados – o Estado protector e o Estado protegido –, convencionalmente estabelecida,
mas hoje caída em desuso, que, em teoria, apenas limita a competência do segundo no
109

plano internacional. Por seu intermédio, o Estado protector passa a representar o


Estado protegido nas relações internacionais, ficando, nomeadamente, habilitado a
concluir tratados que irão vincular este último.
Do protectorado não decorre, pois, a perda de personalidade internacional do
Estado protegido, nem, consequentemente, da sua capacidade de gozo de direitos.
Este vê-se, contudo, amputado de boa parte da sua capacidade de exercício na esfera
internacional, em benefício do Estado protector, ficando, portanto, numa situação de
semi-soberania.
Daqui resulta que os acordos de protectorado podem, efectivamente, conduzir
a uma incapacidade jurídica do Estado protegido para celebrar convenções
internacionais.
Certo é, porém, que este sistema de relações entre Estados mais não é hoje do
que uma recordação de tempos passados. Remonta ao tempo do colonialismo e foi,
por ex., utilizado pela França em Marrocos e na Tunísia, pela Espanha no norte de
Marrocos e Pelo Reino Unido no Egipto. Os últimos protectorados a desaparecerem
foram os que a Índia manteve em Sikkim e no Botão, que perduraram até meados da
década de setenta do séc. XX.

Outra situação eventualmente conducente à incapacidade de um Estado para


celebrar convenções internacionais pode resultar da participação de entidades
descentralizadas (v.g., Estados membros de um Estado federal) na conclusão de um
tratado (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Dois problemas distintos, então, se colocam: o
da capacidade da entidade descentralizada para celebrar a convenção e o da
imputação do tratado.
O primeiro será resolvido pelo direito interno, isto é, será mister averiguar se o
direito constitucional do Estado (federal) ao qual pertence a entidade descentralizada
lhe atribui ou não aquela capacidade, sendo que nas constituições dos Estados e
Uniões federais se respigam as mais variadas soluções, desde as mais restritivas (v.g.,
Estados Unidos, México, Venezuela, etc.) até às mais permissivas, ainda que, por vezes,
apenas em certos domínios (v.g., Alemanha, Suíça, etc.).
Quanto ao segundo, importa sublinhar que o eventual incumprimento do
tratado concluído pela entidade descentralizada com um Estado estrangeiro fará
110

desencadear a responsabilidade internacional do Estado (federal) do qual depende


essa entidade, a não ser que, aquando da celebração, esta haja, claramente,
extravasado das competências que lhe são atribuídas pelo direito interno (ibidem).

Descontados estes casos de importância marginal, a capacidade dos Estados,


em matéria de celebração de tratados, não sofre quaisquer restrições, sendo, por
conseguinte uma capacidade plena (cfr. artigo 6.º da Convenção de Viena Sobre o
Direito dos Tratados).

No que tange à capacidade das organizações internacionais se vincularem no


plano internacional através da conclusão de tratados, pouco haverá a acrescentar
àquilo que já expusemos, supra, no ponto 3.2. Tal capacidade, se bem que
incontestável, é derivada e limitada ou parcial.
Derivada, porquanto, em derradeira análise, depende da vontade dos Estados
membros, exprimida no momento da conclusão da carta constitutiva da organização;
limitada ou parcial, no sentido em que se acha balizada pelo já mencionado princípio
da especialidade.
Importa agora saber qual seja a sanção para um tratado em cuja conclusão
interveio um sujeito ao qual falecia capacidade para tanto. Essa falta de capacidade
conduzirá à invalidade da convenção ou determinará antes a sua inexistência jurídica?

No direito interno, a invalidade de um negócio jurídico pressupõe – apesar da ocorrência de


algum ou alguns vícios na sua conclusão – que esse negócio exista em virtude de nele estarem presentes
os elementos correspondentes ao seu tipo. Contrariamente, a figura da inexistência – invocada, a certa
altura, pela doutrina francesa e presente também no âmbito do direito canónico com a distinção entre
«matriminium nullum» e «matrimonium non existens» – reserva-se para aquelas situações em que nem
sequer na aparência se materializou o «corpus» de determinado negócio jurídico (C. da MOTA PINTO).

Ora, transpondo estas noções para o plano internacional, parece legítimo


concluir-se que a resposta à pergunta acima formulada não poderá ser de sentido
único, pois que duas hipóteses distintas caberá considerar.
A primeira é a de, na conclusão do tratado, haverem participado sujeitos
activos de direito internacional, embora, em concreto, desprovidos de capacidade de
exercício (por ex., um Estado protegido ou uma organização internacional num
domínio estranho às suas atribuições). Neste caso, apesar da ausência de capacidade
111

jurídica, encontram-se presentes os elementos que integram a noção de tratado


internacional, pelo que se afigura mais apropriada a consequência da invalidade, sob a
forma de nulidade absoluta (cfr. infra, ponto 6.4).
A segunda, de igual modo conjecturável, será a de os autores do referido acto
jurídico não serem sequer sujeitos de direito internacional (por ex., um acordo entre
um município e uma entidade transnacional sediada no estrangeiro ou entre dois
municípios de Estados diferentes). Tratar-se-á, ainda, de um problema de
incapacidade, conquanto, desta feita, mais grave, visto que, ao contrário da hipótese
precedente, não chega a concretizar-se o «corpus» de uma convenção internacional.
Daí que a este caso melhor se ajuste a figura da inexistência. Isto, naturalmente, sem
prejuízo de aquele acto poder existir e ser válido a outro título; não, todavia, enquanto
tratado.

6.2 – Regularidade do consentimento

O problema da regularidade do consentimento subdivide-se em dois aspectos


distintos: por um lado, essa regularidade deve verificar-se de um ponto de vista
formal; por outro, importa que também no plano substantivo os tratados se
encontrem isentos de vícios da vontade (ou do consentimento)

Irregularidades formais

Reportam-se estas irregularidades à competência e ao procedimento para a


conclusão das convenções internacionais (AZEVEDO SOARES). Não estão, por
conseguinte, em causa normas de fundo, mas, tão-apenas, regras formais.
Trata-se, sobretudo, de saber em que medida o incumprimento dos preceitos
constitucionais, em matéria de conclusão de tratados, contende com a validade destes
no plano internacional. O que equivale a perguntar até que ponto as ratificações
imperfeitas afectam a validade dos compromissos internacionais dos Estados.
Houve já ensejo de discutir este problema (cfr., supra, ponto 3.1). Relevou-se,
então, que, à luz de uma solução de compromisso constante do artigo 46.º da CV, o
facto de o consentimento de um Estado a obrigar-se por um tratado ter sido prestado
com violação de um preceito do seu direito interno, relativo à competência, ao
procedimento ou às formas para a conclusão de tratados (irregularidade formal), não
112

constitui, por via de regra, motivo bastante para que esse Estado alegue o vício
ocorrido e se desvincule da convenção. Caso, todavia, aquela violação haja sido
manifesta e diga respeito a uma norma de direito interno (constitucional) considerada
de importância fundamental, então sim, admite-se que o Estado possa prevalecer-se
da ratificação imperfeita, arguindo a nulidade (relativa) do tratado.

Irregularidades substanciais

A propósito das irregularidades substanciais dos tratados, torna-se inevitável


estabelecer um paralelo com as ordens jurídicas internas – concretamente, com o
problema dos vícios da vontade (ou do consentimento) no negócio jurídico.
Ora, pode acontecer que, no momento da conclusão de um negócio jurídico,
havendo embora coincidência entre a vontade e a declaração, aquela não se tenha
formado de um modo reputado de legítimo pelo Direito, isto é, não se tenha formado
de um modo «julgado normal e são» (MANUEL DE ANDRADE).
Como, portanto, em tais casos, o consentimento a ficar vinculado foi
irregularmente exprimido, fala-se, justamente, na ocorrência de vícios da vontade ou
do consentimento, de que constituem exemplos no direito interno o erro-vício, o dolo,
a coacção, etc.. Verificadas certas condições de relevância, esses vícios originam, v.g.,
entre nós, a anulabilidade dos negócios jurídicos.
Ressalvando que não são susceptíveis de transposição pura e simples para a
ordem jurídica internacional as categorias e princípios do direito interno (P. REUTER e
L. CAVARÉ), a verdade é que, na Convenção de Viena, as soluções consagradas em
sede de invalidação de tratados por vícios (substanciais) do consentimento evidenciam
assinalável proximidade, que não coincidência, com as acolhidas nas várias ordens
jurídicas internas.
Mas de que irregularidades falamos, afinal?

Em primeiro lugar, do erro. Dispõe, a esse propósito, o nº 1 do artigo 48.º da


CV:

«Um Estado pode invocar um erro num tratado como tendo viciado o seu consentimento de se
obrigar pelo tratado se o erro se deu sobre um facto ou uma situação que o Estado supunha existir no
113

momento em que o tratado foi concluído e que constituía um motivo essencial do consentimento desse
Estado a obrigar-se pelo tratado».

E acrescenta o nº 2:

«O parágrafo 1 deste artigo não se aplica quando o dito Estado contribuiu para o erro com a
sua conduta ou quando as circunstâncias forem tais que ele se devia ter apercebido da possibilidade de
um erro».

O erro consiste numa representação inexacta da realidade, mas apenas no caso


de se apresentar, simultaneamente, como essencial (ou determinante) e desculpável,
constituirá vício da vontade ou do consentimento e, consequentemente, possuirá
relevância anulatória.
Vejamos.
Essencial ou determinante será, tão-somente, aquele que incidir sobre um
elemento ou aspecto que haja constituído uma base essencial do consentimento do
Estado a vincular-se ao tratado (artigo 48.º, nº 1). Quer dizer, deve demostrar-se que,
não fora esse erro, o Estado em causa teria recusado celebrar a convenção ou então –
a admitir-se a relevância do erro meramente incidental, o que a CV deixa em aberto –
sempre aceitaria contratar, mas tê-la-ia concluído em outros moldes ou num sentido
diverso.
Por outro lado, se porventura o mesmo Estado, em razão da sua conduta
descuidada ou displicente, tiver contribuído para a ocorrência do erro ou se as
circunstâncias tivessem sido de sorte a permitir-lhe prever a possibilidade da sua
consumação (cfr. artigo 48,º, nº 2, da CV) esse erro deixará de ser desculpável, o que,
em obediência ao princípio da boa-fé, determina que ele não possa fundar a
invalidação do tratado.
Preenchidos, porém, os dois requisitos referidos – a essencialidade e a
escusabilidade – o erro origina a invalidade da convenção, sob a forma de nulidade
relativa.
Na prática, as situações mais frequentes de erro respeitam a tratados de
demarcação de fronteiras (erros geográficos, ocasionados por uma deficiente
interpretação de mapas).
114

Exemplo histórico, bem conhecido, é o do Tratado de Paris, de 3 de Setembro de 1783,


concluído entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, pouco tempo depois da independência americana,
e destinado a fixar a fronteira nordeste daquele primeiro Estado, a qual, inadvertidamente, se fez
coincidir com um local designado «highlands» - afinal, um extenso planalto que não poderia servir de
linha de demarcação (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET)…

Para além destes erros de facto, o Tribunal Internacional de Justiça já admitiu


também, ainda que abstracta e implicitamente (v.g., no caso do Templo de Préah
Vihesr, que opôs a Tailândia ao Cambodja), a possível relevância dos erros de direito
(decerto, infrequentes), que poderão, por exemplo, reportar-se ao âmbito de uma
declaração de aceitação da competência contenciosa do TIJ.
De salientar ainda que, nos termos do nº 3 do artigo 48.º, o mero erro de
redacção (que, portanto, nada tem a ver com o erro-vício) não afecta a validade do
tratado, dando apenas lugar à sua rectificação, de acordo com o preceituado no artigo
79.º da CV, para o qual remete esse nº 3 do artigo 48.º.

Outra irregularidade substancial é o dolo. Atentemos no que, a esse respeito,


estipula o artigo 49.º da CV:

«Se um Estado foi levado a concluir um tratado pela conduta fraudulenta de um outro Estado
que tenha participado na negociação, pode invocar o dolo como tendo viciado o seu consentimento a
obrigar-se pelo tratado».

Como se vê, o dolo é também, afinal de contas, um erro; simplesmente é um


erro induzido ou provocado por um comportamento da contraparte. Que tipo de
comportamento?
Deve tratar-se de uma conduta fraudulenta, isto é, do recurso, por parte de um
Estado participante na negociação do tratado, a determinadas artimanhas, sugestões
ou artifícios, com a intenção de induzir ou, quando menos, de manter em erro a
contraparte.
A CV não esclarece, contudo, se, afora o dolo positivo ou comissivo, acima
definido, terá igualmente relevo o chamado dolo negativo, omissivo ou de consciência
– admitido, sob certas condições, no direito interno –, que se manifesta quando haja
silêncio ou omissão de esclarecimento perante um erro em que está a incorrer o autor
da declaração negocial.
115

Seguro, é, isso sim, que só existirá dolo quando houver intenção ou consciência
de enganar.
À semelhança do erro, também o dolo provoca a nulidade relativa da
convenção.
Escasseiam os exemplos de dolo na conclusão de tratados. Ainda assim, alguns
é possível encontrar, sobretudo em tempos já muito recuados da época colonial e num
contexto muito particular: o do relacionamento entre algumas potências europeias e
chefes tribais africanos (v.g., a deliberada utilização por aquelas de mapas adulterados
durante as negociações de certos acordos). Mais recentemente, o Tribunal Militar
Internacional de Nuremberga, constituído, após a Segunda Guerra Mundial,
considerou terem os Acordos de Munique, de 1938, sido concluídos com dolo pela
Alemanha nazi (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET)

Seguidamente, prevê a CV, no artigo 50.º respectivo, o vício da corrupção


exercida sobre o representante de um Estado. Reza assim:

«Se a expressão do consentimento de um Estado a obrigar-se por um tratado foi obtida por
meio da corrupção do seu representante, pela acção directa ou indirecta de um outro Estado que tenha
participado na negociação, o Estado pode invocar aquela corrupção como tendo viciado o seu
consentimento a obrigar-se pelo tratado»

Pode contestar-se a necessidade de se haver consagrado, com autonomia


relativamente ao dolo, o vício da corrupção. Na verdade, implicando que, no decurso
das negociações conducentes à conclusão de um tratado, o representante de um
Estado lance mão de determinadas manobras ou artifícios (oferta ilícita de vantagens
pessoais ao seu homólogo) com o intuito de levar a contraparte a celebrar a
convenção num certo sentido, bem se pode dizer que tal conduta se reconduz,
materialmente, ao dolo.
Não obstante, na CV entendeu-se por bem distrair a corrupção do dolo, quiçá
com o propósito de conferir especificidade a uma situação em que, a troco da oferta
de algum proveito de carácter pessoal, um delegado governamental posterga ou
coloca intencionalmente de parte os interesses do seu Estado, aceitando que outro
Estado interveniente na negociação faça valer (ou prevalecer), sem quaisquer
entraves, os seus próprios objectivos.
116

Difícil se torna, por vezes, distinguir uma tentativa de corrupção de um mero


acto de cortesia (AZEVEDO SOARES). Daí que só devam ser considerados como
comportamentos integradores do conceito de corrupção aqueles que tenham tido
influência decisiva na expressão da vontade (ou do consentimento) do representante
que deles haja sido sujeito passivo.
A sanção para o vício da corrupção é, uma vez mais, a da nulidade relativa do
tratado.

A última das irregularidades substanciais prevista e regulada na CV é o vício da


coacção. Sucede, porém, que são duas as modalidades de coacção nela contempladas:
a coacção exercida sobre o representante de um Estado e a coacção exercida sobre um
Estado pela ameaça ou pelo emprego da força. Encontram-se previstas,
respectivamente, nos artigos 51.º e 52.º daquele instrumento normativo.
Vejamos:

Artigo 51.º: «A expressão do consentimento de um Estado a obrigar-se por um tratado obtida


pela coacção exercida sobre o seu representante por meio de actos ou de ameaças dirigidas contra ele,
é desprovida de qualquer efeito jurídico».
Artigo 52.º: «É nulo todo o tratado cuja conclusão tenha sido obtida pela ameaça ou pelo
emprego da força em violação dos princípios de direito internacional contidos na Carta das Nações
Unidas».

No primeiro caso, o representante do Estado é encarado como indivíduo, e não


enquanto órgão estadual. Visa-se, portanto, dissociar o Estado, enquanto pessoa
colectiva, dos seus representantes.
Em causa poderão estar actos de violência física, ou ameaça da prática de tais
actos, contra a pessoa do representante ou contra a sua família, revelações de carácter
privado, susceptíveis de comprometer a carreira desse delegado governamental, etc..
Já na segunda forma de coacção – mais frequente e também mais grave –, as
ameaças ou o emprego da força dirigem-se contra o próprio Estado, colocando-se a
questão de saber se apenas a força armada deve considerar-se abrangida pelo
conceito ou se deverão, ademais, nele incluir-se, v.g., medidas de coerção económica e
política.
Trata-se de um problema delicado, tanto mais que, descontando situações
117

extremas, mais fáceis de qualificar, se revela na prática particularmente difícil


estabelecer a destrinça entre as medidas toleráveis de pressão económica ou política e
aquelas que, havendo já transposto a fronteira da ilicitude, devam assimilar-se a
verdadeira coacção.
Como que que seja, não poderá, todavia, aceitar-se como válido um tratado
cuja conclusão tenha resultado da utilização, em larga escala, por um dos Estados
contratantes, de medidas de coerção não armada, com o objectivo de extorquir da
contraparte uma determinada declaração negocial.
Comum às duas formas de coacção previstas na CV é a circunstância de ocorrer
uma perturbação na formação da vontade, resultante do medo provocado por uma
ameaça ilícita. Comum é, de modo idêntico, a consequência jurídica: os tratados
concluídos sob coacção estão feridos de nulidade absoluta – a forma mais grave de
invalidade – e, portanto, desprovidos de qualquer efeito jurídico.
Embora se pudesse pensar o contrário, são abundantes, e alguns deles bem
célebres, os exemplos, nas relações internacionais, de tratados que tiveram subjacente
o emprego de meios de coacção.

Entre outros, podem citar-se os exemplos o tratado de 1905, em que o Japão, na sequência de
uma ocupação militar, forçou os negociadores coreanos a assinarem um acordo de protectorado; a
convenção de 1939, em que a Checoslováquia foi coagida pela Alemanha a aceitar o protectorado
alemão sobre a Boémia e a Morávia; o tratado de 1941, entre a França (Estado protector do Cambodja)
e a Tailândia, em que o primeiro Estado foi compelido pelo Japão a acordar numa delimitação de
fronteiras largamente desvantajosa para o Estado protegido (coacção exercida por terceiro); e, por fim,
o tratado de Outubro de 1968, sobre o estacionamento das tropas do Pacto de Varsóvia, em que a
Checoslováquia e os seus representantes foram fortemente coagidos pela União Soviética.

6.3 – Licitude do objecto

Para que uma convenção internacional seja válida, não basta que as partes
sejam capazes e que o consentimento tenha sido regularmente manifestado; faz-se
ainda necessário que o objecto dessa convenção (a sua finalidade, a matéria sobre que
versa) não atente contra a ordem pública internacional, isto é, não contrarie o
conjunto dos princípios fundamentais que estão na base do sistema jurídico
internacional. Mas existirá verdadeiramente uma ordem pública internacional?
A questão é duvidosa e complexa. É inquestionável que num agrupamento
118

quase desprovido de representação orgânica e institucional, como é ainda a sociedade


internacional, sem poder legislativo, em sentido verdadeiro e próprio, nem
autoridades judiciárias dotadas de competência obrigatória, o reconhecimento de um
direito internacional imperativo (jus cogens) comporta riscos iniludíveis.
Desde logo, o de um retorno insensato a uma espécie de direito natural com
valores mal definidos, abrindo a porta à arguição de nulidades em tratados livremente
concluídos com base na suposta violação de normas imperativas de cuja existência se
pode duvidar.
Sem embargo, poderá obtemperar-se que toda a evolução do direito
internacional nas últimas décadas aponta para a irreversibilidade da emergência de um
núcleo de normas e princípios (restrito que seja), considerado essencial à convivência
entre os povos (cfr., supra, o ponto 9 da Introdução). Vai assim ganhando forma, ainda
que de modo embrionário, a tal ideia de ordem pública internacional.
Ora, fazendo-se eco dessa tendência, estipula a CV no seu artigo 53.º:

É nulo todo o tratado que, no momento da sua conclusão, é incompatível com uma norma
imperativa de direito internacional geral. Para os efeitos da presente convenção, uma norma imperativa
de direito internacional geral é a que for aceite e reconhecida pela comunidade internacional dos
Estados no seu conjunto como norma à qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser
modificada por uma nova norma de direito internacional geral com a mesma natureza».

E dispõe ainda o artigo 64.º:

«Se sobrevier uma norma imperativa de direito internacional geral, todo o tratado existente
que seja incompatível com essa norma torna-se nulo e cessa a sua vigência».

Consagrou-se, deste modo, a figura da ilicitude do objecto nas convenções


internacionais, que origina a sua nulidade absoluta, originária (artigo 53.º) ou
superveniente (artigo 64,º).
Seria, por ex., o caso de um tratado entre dois Estados, destinado a combinar
os termos de uma projectada invasão e consequente anexação do território de um
Estado terceiro. O objecto desta convenção infringiria (pelo menos) uma norma de jus
cogens (o princípio da proibição do recurso à força nas relações internacionais), pelo
que seria, ab initio, desprovida de quaisquer efeitos.
119

6.4 – Regime da invalidade das convenções internacionais

Em face do exposto, ter-se-á tornado claro que a CV prevê dois tipos de


invalidade – a nulidade absoluta e a nulidade relativa – para sancionar os vícios ou
irregularidades das convenções internacionais.

Estes dois tipos de invalidade encontram paralelo na ordem jurídica interna. Também aí, com
efeito, desde sempre opera a distinção entre nulidades absolutas (ou simplesmente nulidades) e
nulidades relativas (ou anulabilidades).
As primeiras, visam sancionar os vícios mais graves, que, mais do que afectarem os contraentes
enquanto pessoas privadas, contendem com o interesse geral e a ordem pública. Daí que o seu regime
reflicta tal objectivo: em regra, são invocáveis por qualquer interessado, o tribunal pode conhecer delas
oficiosamente, são insusceptíveis de sanação (quer pelo decurso do tempo, quer por confirmação), etc..
As segundas, por seu turno, resultam da infracção de normas que, predominantemente,
tutelam interesses particulares, razão por que o respectivo regime é mais apertado: só podem ser
invocadas pela pessoa dotada de legitimidade para tal (o beneficiário da protecção legal), o juiz não
pode conhecê-las oficiosamente, são insanáveis, etc..

Uma vez mais, importa ter presente que se não podem decalcar, para o plano
internacional, os conceitos e regimes jurídicos que são próprios dos ordenamentos
internos. No entanto, como veremos, existem, indiscutivelmente, algumas similitudes
entre as nulidades absolutas e relativas dos tratados e as invalidades dos negócios
jurídicos na ordem interna.
Sabemos já que provocam a nulidade relativa das convenções internacionais as
irregularidades formais do consentimento (v.g., a ratificação imperfeita, ainda que
excepcionalmente), o erro, o dolo e a corrupção. As nulidades absolutas, por sua vez,
resultam da incapacidade das partes, da coacção e da incompatibilidade do tratado
com uma norma de jus cogens (ilicitude do objecto).
Caberá agora analisar, mais detidamente, os vectores principais do respectivo
regime jurídico.
Ora, as nulidades relativas distinguem-se das absolutas, sobretudo, quanto a
três aspectos: o direito de invocar o vício, a divisibilidade extintiva das disposições do
120

tratado e a sanação.
Vejamos.
Relativamente ao primeiro (o direito de invocação do vício), importa relevar
que, quer se trate de uma nulidade relativa, quer estejamos, antes, em presença de
uma nulidade absoluta, o direito de invocar o vício se circunscreve às partes
contratantes (artigos 65.º e ss. da CV), com o que, neste domínio, os regramentos
internacionais se afastam (talvez de forma pouco avisada, maxime na hipótese de
ilicitude do objecto…) do direito interno, no qual, conforme assinalado, qualquer
interessado – contratante ou terceiro – pode arguir uma nulidade absoluta.
A despeito disso, uma diferença existe, no que toca à questão vertente, entre
os dois tipos de invalidade. É que, na nulidade relativa, só a parte vítima pode invocar
o vício: assim, designadamente, poderá fazê-lo o Estado cujo consentimento a ficar
vinculado assentou na violação de um preceito do seu direito interno relativo à
conclusão dos tratados (nas irregularidades formais, se relevantes nos termos do
artigo 46.º da CV), o Estado errante (no erro), o Estado enganado – deceptus – (no
dolo) ou o Estado cujo representante tenha sido corrompido (na corrupção). Já na
nulidade absoluta qualquer das partes no tratado (mas jamais um Estado terceiro)
poderá, à luz da CV, invocar a causa de nulidade.

Claro que, relativamente à nulidade absoluta, sendo isto exacto de acordo com a CV, convém
não perder de vista que as circunstâncias se encarregam, por vezes, de infirmar aquilo que acaba de
dizer-se. Imaginemos, por ex., um tratado bilateral concluído sob coacção. Num tal caso, como se
compreende, não faria sentido conjecturar a possibilidade de o Estado que coagiu – não tendo ocorrido
qualquer sobressalto político interno – poder prevalecer-se da sua própria falta para invocar a nulidade
absoluta do tratado… Donde, como se fora uma nulidade relativa, apenas o Estado vítima poderia argui-
la. Diferentemente, numa convenção multilateral, aí sim, todos os Estados parte – à excepção daquele
que empregou meios de coacção – estarão autorizados a invocar o vício da coacção.

O segundo aspecto a ter em conta na distinção entre os dois tipos de invalidade


prende-se com o problema da divisibilidade extintiva das disposições do tratado.
A este respeito, o nº 2 do artigo 44.º da CV diz o seguinte:

«Uma causa de nulidade, de extinção de um tratado, de recesso ou de suspensão da aplicação


de um tratado, reconhecida nos termos da presente convenção, só pode ser invocada em relação ao
conjunto do tratado, salvo nas condições previstas nos parágrafos seguintes ou no artigo 60.º».
121

Deve então concluir-se que vigora, nesta matéria, um princípio da


indivisibilidade. Quer dizer, por via de regra, em homenagem à integridade dos
tratados – que, desejavelmente, constituem uma «totalidade solidária» – qualquer
causa de invalidade de um tratado, quando invocada, determina a nulidade (absoluta
ou relativa) de todo esse tratado e não apenas de algumas das suas disposições.
Verificados, porém, certos requisitos, enunciados nas várias alíneas do nº 3 do
mesmo artigo 44.º da CV, admite-se que uma causa de invalidade, visando apenas
determinadas cláusulas da convenção, só em relação a elas seja invocada. Por outras
palavras, admite-se, excepcionalmente, a divisibilidade extintiva das disposições de um
tratado, de tal forma que este continue a vigorar na parte não afectada pelo vício ou
irregularidade (utile per inutile non vitiatur), invalidando-se, tão-somente, aquela ou
aquelas cláusulas maculadas pela causa de nulidade (relativa). Uma solução que, com
as devidas adaptações, claramente se inspira na figura da redução dos negócios
jurídicos, consagrada nas ordens jurídicas internas.
Mas em que condições, afinal, se permite a divisibilidade?
Terão, em concreto, de verificar-se (cumulativamente) três pressupostos.
Em primeiro lugar, é necessário que a cláusula ou cláusulas susceptíveis de
invalidação sejam separáveis do resto do tratado, no que respeita à sua execução
(artigo 44.º, nº 3, a)).
Depois, é preciso que a aceitação das ditas cláusulas não tenha constituído para
a outra parte ou para as outras partes no tratado uma base essencial do seu
consentimento a estarem vinculadas pelo tratado no seu conjunto (artigo 44.º, nº 3,
b)).
Finalmente, não pode ser injusto continuar a executar o que subsiste do tratado
(artigo 44.º, nº 3, c)).
Sucede, no entanto, que tudo isto só é admissível no caso das nulidades
relativas. De facto, tratando-se de incapacidade das partes, coacção ou
incompatibilidade do tratado com uma norma de jus cogens (nulidades absolutas)
vigora, irrestritamente, o aludido princípio da indivisibilidade, ou seja, em nenhuma
circunstância se admite a divisão das disposições de uma convenção internacional (cfr.
artigo 44.º, nº 5, da CV). Estando em causa a violação de princípios fundamentais, que
afectam o interesse geral da comunidade internacional, compreende-se,
122

efectivamente, que todo o tratado deva considerar-se inválido, não fazendo qualquer
espécie de sentido a possível salvaguarda ou preservação de alguma ou algumas das
suas disposições.
No que tange, contudo, às nulidades relativas, certas diferenças de regime
importa assinalar.
É que, uma vez preenchidos os supramencionados requisitos da divisibilidade,
constantes do artigo 44.º, nº 3, da CV – e apenas em tal caso –, essa divisibilidade é
obrigatória no erro e facultativa no dolo e na corrupção (artigo 44.º. nº 3 e nº 4, da
CV); isto é, enquanto no primeiro caso só podem ser invalidadas as disposições sobre
as quais haja incidido o vício do erro, no dolo e na corrupção confere-se ao Estado
vítima a possibilidade de optar pela invalidação de todo o tratado ou antes pela
subsistência deste, expurgado da parte viciada.
E porquê?
À primeira vista, é fácil perceber-se. No erro, não existindo má-fé, há que
tutelar as legítimas expectativas da outra ou das outras partes no tratado na
manutenção deste em vigor. Daí que o Estado vítima somente em relação a certas e
determinadas cláusulas possa invocar o vício. Pelo contrário, tanto o dolo como a
corrupção pressupõem má-fé da contraparte, pelo que inexistem, desta feita,
expectativas dignas de protecção. Assim, admite-se que o Estado vítima, em função
dos seus interesses, opte, invocando o vício, pela invalidação de toda ou apenas de
parte da convenção.
Algo, porém, não bate certo relativamente ao erro. Vejamos porquê.
Assentámos em que, na hipótese de se acharem preenchidos os três requisitos
do nº 3 do artigo 44.º da CV, o erro configura uma situação de divisibilidade
obrigatória. Ora, a verdade é que não parece conciliável a essencialidade do erro,
enquanto sua condição de relevância (cfr., supra, ponto 6.2), com o segundo
pressuposto, vertido na alínea b) do artigo 44.º. nº 3, da divisibilidade extintiva.
De facto, o erro apenas se convola em vício da vontade (ou do consentimento)
se for determinante ou essencial e desculpável. E, conforme mais atrás sublinhámos,
essencial será quando, justamente, incidir sobre um motivo determinante (ou
essencial) do consentimento do Estado a obrigar-se pelo tratado (cfr. artigo 48.º, nº 1,
in fine). Terá, portanto, de provar-se que, sem o erro, o Estado não teria concluído a
123

convenção. Depois, contraditoriamente, no referido artigo 44.º, nº 3, b), a CV faz


depender a divisibilidade do tratado exactamente do oposto (!), isto é, de não ter a
aceitação das cláusulas a invalidar (aquelas em que se haja verificado uma
representação inexacta da realidade) constituído uma base essencial do
consentimento do Estado a vincular-se…
É certo que no preceito citado se fala do consentimento da outra ou das outras
partes no tratado, e não do consentimento do errante, mas em nada isso altera o que
acima ficou expendido, pois que, a aceitar-se como válido o disposto na CV, sempre se
invalidariam disposições cuja aceitação havia representado para o Estado vítima do
erro um motivo determinante do seu consentimento a obrigar-se…
Parece-nos bem, por conseguinte, estarmos perante uma incongruência que
apenas se resolverá, ou excluindo, ao arrepio, embora, da CV, o erro-vício da possível
divisibilidade extintiva dos tratados, ou – o que se nos afigura preferível –, mediante
um apelo ao critério da vontade hipotética ou conjectural das partes, aceitando essa
divisibilidade (obrigatória), nos casos em que se demonstre que os contraentes sempre
teriam celebrado a convenção na parte não atingida pelo erro, se, no momento da
conclusão, tivessem podido saber que aquele vício iria afectar, parcialmente, a
validade do tratado. Esta segunda hipótese, todavia, implica que o requisito da
essencialidade do erro seja entendido de molde a abranger também o chamado erro
incidental, isto é, aquele que influi apenas nos termos do tratado, que não na decisão
da sua celebração.
Depreende-se, outrossim, a contrario, do nº 3 e, bem assim, do nº 4 do artigo
44.º, que na ratificação imperfeita (desde que invocável, nos termos do artigo 46.º), se
estaria também perante uma situação de divisibilidade obrigatória. Não se vislumbra,
porém, qualquer razão para que seja esse o regime. Ao invés, pensamos que, atenta a
natureza das irregularidades formais do consentimento, não é aqui sequer concebível
a divisibilidade extintiva. Tratar-se-á, consequentemente, de um caso em que, ex
rerum natura, vale o princípio da indivisibilidade.

Aqui chegados, sobeja o terceiro e último factor de distinção entre as nulidades


absolutas e relativas das convenções internacionais, atrás indicado: referimo-nos à
possibilidade (ou impossibilidade) de sanação.
124

A esta figura alude o artigo 45.º da CV, estatuindo que um Estado perde o
direito de alegar uma qualquer causa de invalidade de um tratado quando, depois de
haver tomado conhecimento dos factos, esse Estado aceitou expressamente considerar
que o tratado era válido (sanação expressa) ou em razão da sua conduta deva
formular-se idêntica conclusão (sanação tácita).
Ora, de acordo com a disposição citada, tal possibilidade de sanação por
confirmação – expressa ou tácita – existe no caso das nulidades relativas, em que,
essencialmente, estão em causa interesses particulares dos Estados contratantes, mas
deve ter-se por excluída nas nulidades absolutas, nas quais se sobrepuja o interesse
geral da não ofensa à ordem pública internacional, não sendo, portanto, atendível o
hipotético interesse das partes na subsistência da convenção em vigor, a despeito do
vício que inquina a sua validade.
Sanar significa, pois, tornar são, “curar”: a convenção não chega a ser (mesmo
que apenas parcialmente) invalidada. Daí que não haja confusão possível com a
divisibilidade, a qual, como vimos, significa o aproveitamento parcial de um tratado no
momento da invalidação de alguma ou algumas das suas cláusulas.

Quais as consequências ou efeitos da invalidade de uma convenção


internacional?
Constam dos artigos 65.º, 66.º e 67.º os vários trâmites do procedimento de
invalidação dos tratados, devendo frisar-se que não há prazo de caducidade para as
partes arguirem a nulidade (absoluta ou relativa) de uma convenção internacional, o
que, portanto significa serem as nulidades (ainda que relativas) invocáveis a todo o
tempo (salvo, naturalmente, no caso de ocorrer uma sanação expressa ou tácita, em
que, ex vi do artigo 45.º da CV, a parte vítima perde o direito de alegar a causa de
nulidade relativa).
É claro que poderá não se tratar da arguição de alguma das causas gerais de
invalidade previstas na CV, mas antes da invocação de nulidades específicas,
eventualmente consignadas no próprio tratado por acordo das partes. Neste caso, será
outro o procedimento de invalidação, como outra será, ademais, a forma de
declaração da nulidade (PAUL REUTER).
Mas, se realmente nos cingirmos às situações de invalidade dos tratados
125

acolhidas nas disposições da CV, fácil será concluir, pela análise dos artigos 69.º e ss.,
que a nulidade (absoluta ou relativa) de uma convenção internacional opera ex tunc,
ou seja, produz efeitos retroactivos. Significa isto que que o tratado é considerado
inválido desde o momento da sua conclusão e não apenas a partir do momento em
que é descoberta a causa da invalidade. Deverão assim, tanto quanto possível,
desaparecer todos os actos que hajam sido praticados com base nesse tratado, por
forma a ser restabelecido o statu quo ante, isto é, a situação que teria existido caso a
convenção não tivesse sido celebrada.
Apesar, no entanto, de na CV, com a sanção da retroactividade, se ter
pretendido evitar que se consolidassem as situações criadas à sombra de uma
irregularidade ou de um acto ilícito, o certo é que duas atenuações aos efeitos ex tunc
da invalidação acabam por temperar ou dulcificar a rigidez do regime descrito.
A primeira delas encontra-se prevista no artigo 69.º, nº 2, b), em que se prevê a
salvaguarda de actos praticados de boa-fé: «Os actos praticados de boa-fé, antes de a
nulidade haver sido invocada, não são afectados pela nulidade do tratado». No nº 3 do
mesmo artigo precisa-se, contudo, não ser a excepção da boa-fé aplicável (et pour
cause…) nos casos de dolo, corrupção e coacção, à parte a quem estes vícios sejam
imputáveis.
A outra atenuação diz respeito à superveniência de uma norma imperativa de
direito internacional geral (artigo. 64.º da CV). Aqui, ao contrário do que
habitualmente sucede, o vício que afecta o tratado não é contemporâneo da sua
conclusão; antes ocorre, em momento posterior, por força do surgimento de uma
norma de jus cogens incompatível com o conteúdo desse tratado. Deste jeito, a
declaração de nulidade não irá afectar ou contender com quaisquer direitos,
obrigações ou situações jurídicas das partes criados pela execução da convenção antes
de ela se extinguir (cfr. artigo 71.º, nº 2, b), da CV). O mesmo é dizer que, por
referência ao momento em que sobreveio a norma imperativa de direito internacional
geral, a nulidade produzirá, tão-só, efeitos ex nunc (desde essa altura).

Problema que poderá colocar-se ainda, a propósito do regime da invalidade das


convenções internacionais, é o de numa mesma convenção se detectarem vários vícios
em simultâneo, cabendo então falar-se em cumulação de vícios. Num tal caso,
126

importará saber qual das sobreditas formas de invalidade (nulidade relativa ou


nulidade absoluta) sancionará essa coexistência ou concorrência de irregularidades.
A questão apenas ganhará relevo, caso um dos vícios gere nulidade absoluta e
outro ou outros gerem nulidade relativa. Nessa eventualidade, a convenção estará,
evidentemente, ferida de nulidade absoluta, visto que os efeitos da sanção mais grave
(nulidade absoluta) como que absorvem ou consomem os efeitos da sanção menos
grave (nulidade relativa).

7 – A interpretação das convenções internacionais

Os problemas que se levantam a propósito da interpretação das convenções


internacional são, sem tirar nem pôr, aqueles com que se depara o intérprete de
qualquer norma jurídica.
É que, quer no plano interno, quer no plano internacional, as principais
dificuldades que encerra a tarefa de interpretar normas jurídicas decorrem de ser
limitada a capacidade de previsão daqueles que estão encarregados da actividade de
produção normativa.

Sempre que surge uma regra de direito, ela aparece com o objectivo de aplicar-se a
determinadas relações sociais. Simplesmente, os autores dessa norma não estão em condições de
prever todas as situações da vida susceptíveis de serem abrangidas pelo seu âmbito. Daí que na
respectiva formulação se vejam muitas vezes forçados a recorrer a disposições de carácter genérico, a
conceitos vagos e indeterminados, o que, necessariamente, há-de implicar um certo graus de abstracção
e conceitualismo, tornando mais espinhosa a tarefa do intérprete (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

E, em virtude de ser limitada a capacidade de previsão de quem elabora as


normas jurídicas, raramente estas podem aplicar-se de forma cega, mecânica ou
automática aos casos concretos. Faz-se, pois, mister dissipar as incertezas e
ambiguidades que, em razão da sua generalidade, aquelas comportam.
É nisto, afinal, que consiste a interpretação: precisar o sentido, o conteúdo e o
alcance de uma norma jurídica na sua aplicação a um caso concreto; e isto à luz de
uma orientação simultaneamente objectivista e actualista. Objectivista porquanto se
pretende, sobretudo, alcançar a mens legis (o espírito da lei) e não propriamente a
127

mens legislatoris (a vontade ou intenção do legislador); actualista, na medida em que


releva o sentido a atribuir à norma no seu contexto actual, excluindo-se, por isso, o
historicismo interpretativo (BECELAR GOUVEIA).
O que acaba de dizer-se é válido tanto para a ordem jurídica interna como para
o ordenamento internacional, adoptando-se, naturalmente, para este último
determinadas regras específicas.
Em matéria de interpretação de tratados, importa analisar duas questões
fundamentais: a da competência para a interpretação e a dos métodos de
interpretação (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

Relativamente à primeira (a competência para interpretar), caberá distinguir a


interpretação autêntica da interpretação não autêntica.
A interpretação autêntica designa aquela que é levada a cabo pelas partes na
convenção. Subdivide-se em interpretação unilateral e interpretação colectiva.
Sim, poderá, desde logo, ser unilateral, porquanto cada Estado, em razão da
sua soberania, tem o direito de indicar o sentido que atribui às disposições dos
tratados que o vinculam. É, de resto, frequente os Estados darem a conhecer aos seus
pares, através da via diplomática, a interpretação que fazem das convenções
internacionais em que participam. Não raro, independentemente de qualquer
desacordo, e de sorte a prevenirem a concorrência de quaisquer conflitos, divulgam,
antecipadamente, a sua posição, quer durante a fase da negociação dos tratados, quer
aquando da manifestação do consentimento á vinculação.

Recordemos a distinção que, a este respeito, se fez supra, entre reserva e declaração
interpretativa. Ora, evidentemente que estas declarações mais não são do que uma forma de
interpretação (unilateral) autêntica.

Mas é a interpretação colectiva aquela que constitui a verdadeira interpretação


autêntica. Em que se traduz?
Consiste num acordo em que participam todas as partes na convenção,
destinado a clarificar o sentido das suas disposições. Este instrumento interpretativo
pode ser adoptado em simultâneo com a conclusão do tratado ou concluído
posteriormente.
128

À interpretação autêntica apresenta algumas virtualidades, nomeadamente a que resulta de


serem os autores de determinada norma jurídica aqueles que melhor poderão esclarecer o sentido que
pretenderam imprimir-lhe e, bem assim, a de, em certos casos, permitir uma espécie de modificação
informal e sem sobressaltos das normas convencionais, possibilitando a sua adaptação dinâmica às
transformações ciclicamente ocorridas na comunidade internacional ou o seu afeiçoamento a
necessidades de interesse comum entretanto sobrevindas.

A interpretação não autêntica, por seu turno, é aquela que é fornecida por um
terceiro (v.g., um tribunal internacional, um órgão não jurisdicional de uma
organização internacional ou um qualquer comité adrede instituído). O recurso a esta
forma de interpretação dos tratados visa contornar as dificuldades conaturais a uma
interpretação efectuada pelos Estados parte.

São principalmente dois os argumentos favoráveis à interpretação não autêntica: o primeiro


deles assenta na circunstância de encerrar uma maior objectividade esta forma de interpretação; o
segundo, e talvez até mais importante, apoia-se no facto de ser também a interpretação não autêntica o
único meio de resolver os impasses decorrentes de um eventual (e previsível…) desacordo entre as
partes relativamente ao sentido a ser atribuído às disposições de uma convenção internacional.

Quanto à segunda questão a considerar – o problema dos métodos de


interpretação –, deve sublinhar-se que apresenta algumas dificuldades particulares a
operação de interpretar as convenções internacionais. Tal é consequência do
omnipresente princípio da soberania, que frequentemente torpedeia a concretização
do objectivo principal do intérprete: a averiguação da vontade real das partes (ibidem).
De todo o modo, é fundamental existir um conjunto de regras estáveis que
permitam alcançar resultados lógicos e razoáveis na interpretação. É fundamental,
noutros termos, que, na sua tarefa, o intérprete seja guiado por determinados meios e
regras, susceptíveis de conduzir a uma adequada compreensão do texto da convenção
(cfr. artigos 31.º a 33.º da CV).
No que toca aos meios de interpretação, o texto do tratado (elemento literal) é
certamente o elemento primordial da interpretação, reflectindo, melhor do que
qualquer outro, as intenções das partes contratantes. Mas o texto não pode (não
deve) ser analisado de forma isolada. Ele é indissociável do contexto, impondo-se, por
conseguinte, considerar o tratado no seu conjunto, particularmente a inserção
sistemática das disposições a interpretar (elemento sistemático). Indispensável é,
129

outrossim, olhar às circunstâncias, às necessidades e relações sociais que estiveram na


base do surgimento das normas em causa; isto de sorte a que a interpretação esteja
de harmonia com os fins da convenção (elemento teleológico). E, por poderem, em
certa medida, contribuir para tornar claros os objectivos e intenções das partes – sem
embargo de não disporem da “força probatória” dos meios prioritários de
interpretação –, os trabalhos preparatórios revelam-se igualmente importantes para
se obter uma interpretação eficaz (elemento histórico).
No que, por outra parte, respeita às regras metodológicas, constitui solução
evidente o intérprete dever ater-se ao sentido corrente das palavras, desde que, bem
entendido, tal conduza a uma interpretação lógica. Será por isso essencial evitar
resultados não razoáveis ou absurdos na interpretação. Para tanto apresenta-se
também como inestimável a regra do efeito útil, significando que, de entre os vários
sentidos possíveis de certa disposição, deverá o intérprete optar por aquele que
permita desencadear todos os seus efeitos (ut res magis valeat quam pereat).
Uma vez concretizada a interpretação, poderá ela apresentar um pendor
essencialmente declarativo (situação mais frequente) ou, em certos casos, restritivo ou
extensivo (se, respectivamente, houver necessidade de limitar ou alargar o alcance da
letra da norma com que se depara o intérprete) (BACELAR GOUVEIA).
Problema que ganha cada vez maior acuidade em sede de interpretação de
convenções internacionais, num quadro de humanização do direito das gentes, é o do
impacto do direito internacional dos direitos humanos no múnus hermenêutico dos
operadores judiciários nacionais e internacionais (JÓNATAS MACHADO). E isto, quer
nos tratados em geral, quer naqueles que, especificamente, versam sobre direitos
humanos.
Ora, diversos casos que foram objecto de decisões jurisprudenciais (internas e
internacionais) nos primeiros anos do terceiro milénio (v.g., casos Galanis, LaGrand e
Avena), atestam, justamente, a força irradiante dos direitos humanos, delas
ressumando interpretações mais protectoras desses direitos e, portanto,
simultaneamente, menos reverenciadoras da soberania estadual (ibidem).
130

8 – Revisão e modificação das convenções internacionais

Nos artigos 39.º a 41.º da CV vem regulado o problema da revisão e


modificação dos tratados.
Apesar de, juridicamente, os termos revisão e modificação serem equivalentes
(AZEVEDO SOARES), a CV atribui-lhes um significado diverso.
Assim, enquanto a revisão diz respeito às propostas visando a alteração das
relações entre todas as partes no tratado, a modificação refere-se aos acordos
tendentes a alterar as relações entre apenas alguns dos Estados parte. Num e noutro
casos, porém, do que se trata é de adaptar pacificamente o tratado às alterações de
circunstâncias, as quais muitas vezes subvertem o equilíbrio das obrigações assumidas
pelas partes aquando da conclusão.
No que tange à revisão, sendo a convenção bilateral ou multilateral restrita, o
respectivo acordo deverá ser aprovado por unanimidade. Para as restantes
convenções multilaterais, importa distinguir duas situações: ou constam do tratado
cláusulas de revisão, fixando as condições e o procedimento a seguir, que serão,
evidentemente, de observância obrigatória; ou, na falta de tais cláusulas, bastará que
o acordo de revisão seja aprovado por maioria, sendo que, nesta eventualidade, as
disposições do tratado primitivo, subsequentemente alteradas por intermédio daquele
acordo, aplicar-se-ão apenas aos Estados que nele hajam intervindo. Para as relações
entre as partes que tenham ficado de fora do dito acordo (de revisão) valem, em
conformidade, as regras originárias da convenção, o que não deixa de gerar um «efeito
complexo de geometria variável» (MARIA LUÍSA DUARTE).
De afastar em normas de natureza convencional parece ser a figura dos limites
materiais de revisão. Coisa diferente é, evidentemente, o carácter imperativo de certas
normas, que, por força dessa sua normatividade reforçada e consequentes efeitos
erga omnes, são, ex rerum natura, insusceptíveis de revisão.
Afora os procedimentos formais de modificação ou revisão, poderá igualmente
ocorrer uma modificação implícita do tratado, propiciada por uma prática
(interpretativa ou derrogatória) encetada pelas partes após a respectiva entrada em
vigor. E idêntico resultado não deixará também produzir-se em virtude do surgimento
de uma nova norma de costume geral (ibidem).
131

9 – Extinção e suspensão da vigência das convenções internacionais

Mediante a extinção, um tratado deixa, em definitivo, de produzir os efeitos


jurídicos a que tende, ao passo que, através da suspensão a sua vigência apenas
temporariamente é interrompida (cfr. artigos 54.º e ss. da CV).
A extinção e a suspensão podem derivar de inúmeros factores.
Em primeiro lugar, da vontade das partes, exprimida logo de início (v.g., através
da previsão de uma duração limitada para o tratado ou da fixação de um termo, de
uma condição, da possibilidade de denúncia ou recesso, etc.) ou manifestada
ulteriormente (v.g., mediante a conclusão de um tratado posterior versando a mesma
matéria).
Podem também resultar de circunstâncias ligadas ao comportamento das
partes (por isso que, indirectamente, relevando ainda da sua vontade), como por ex., a
violação culposa das disposições do tratado (o que permite à contraparte a invocação
da exceptio non adimpleti contratus), a eclosão de um conflito armado – que, em
regra, conduz à caducidade das convenções bilaterais e à suspensão das multilaterais
entre os beligerantes – ou o surgimento de um costume derrogatório (dada a paridade
hierárquica entre as fontes formais de direito internacional – cfr., supra, nº I do
presente capítulo –, aplicar-se-á o princípio lex posterior priori derrogat).
Em terceiro lugar, não raras vezes, a extinção ou a suspensão da vigência dos
tratados ficam a dever-se a causas exteriores à vontade ou ao comportamento das
partes. É o caso da impossibilidade superveniente de execução (artigo 61.º da CV), da
alteração fundamental de circunstâncias (cláusula rebus sic stantibus – artigo 62.º da
CV) ou da, já supra-analisada, emergência de uma nova norma de jus cogens, total ou
parcialmente, incompatível com o conteúdo do tratado.
Atentemos, pois, naquelas duas primeiras situações, respectivamente,
contempladas nos artigos 61.º e 62.º da CV, cuja complexidade e relevo prático são
indiscutíveis.
A impossibilidade superveniente de execução, que se aparenta com os casos de
força maior, poderá, efectivamente – quando invocada por uma das partes –, conduzir
à extinção ou à suspensão da vigência de um tratado.
A convenção de Viena faz depender tal invocação do desaparecimento ou
132

destruição (cremos que não necessariamente físicos) de um objecto indispensável à


execução do tratado (imagine-se, por ex., o desaparecimento de uma das partes num
tratado bilateral, na sequência de uma sucessão de Estados; a destruição de uma
infraestrutura; o encerramento de um determinado sector de actividade ou o
esgotamento de recursos naturais, que, para uma das partes, inviabilizem o
cumprimento de um tratado comercial; o corte de relações diplomáticas, na medida
em que a subsistência destas se revele imprescindível ou indispensável à execução do
tratado – artigo 63.º da CV; etc.).
Se definitivo, o aludido desaparecimento constituirá, como se compreende,
causa de extinção da vigência do tratado, levando, todavia, à mera suspensão daquela,
caso seja provisório ou temporário.
De notar que, ex vi do nº 2 do artigo 61.º da CV, a impossibilidade de execução
(cumprimento) da convenção internacional apenas poderá ser invocada por uma parte
para fazer cessar (definitiva ou temporariamente) a respectiva vigência se lhe não for
imputável. Explicando melhor: deixará, em concreto, essa prerrogativa de poder
exercer-se caso a referida impossibilidade resulte de uma violação, pela parte que a
invoque, de uma obrigação decorrente do tratado ou de qualquer outra obrigação
internacional relativa a qualquer outra parte no tratado.

A alteração fundamental de circunstâncias, por sua vez, acha-se prevista no


artigo 62.º da CV, havendo já sido aceite, em diversas ocasiões, pela jurisprudência
internacional.

A aceitação do princípio segundo o qual uma alteração radical de circunstâncias (teoria da


imprevisão) pode, em certos casos, contender com a subsistência das obrigações assumidas em
convenções internacionais, verificou-se, v.g., no caso das zonas francas, julgado, em 1932, pelo Tribunal
Permanente de Justiça Internacional, e, mais tarde, nos casos da jurisdição em matéria de pescarias, que
foram objecto de um Acórdão proferido pelo Tribunal Internacional de Justiça, em 1974.

Do que falamos, afinal?


No direito internacional, como no direito interno, é perfeitamente justificada a
ideia que subjaz à tese da admissibilidade da cláusula rebus sic stantibus. Com a sua
relevância, procura, na verdade, evitar-se que uma alteração substancial e não prevista
das circunstâncias que envolveram a conclusão de um acordo possa originar, para uma
133

das partes, sacrifícios ou prejuízos excessivos, de tal modo que, a posteriori, se gere
uma desproporção ou desequilíbrio nas obrigações reciprocamente assumidas pelos
contraentes. Reconhecer a operatividade da cláusula rebus sic stantibus, significa, pois,
em último termo, assegurar o respeito pela vontade das partes, restabelecendo o
equilíbrio próprio de um tratado, que fora subvertido no seu regime pela mencionada
alteração abrupta e radical de circunstâncias.
A outra face da moeda não deve, contudo, ser escamoteada. É que, sendo a
realidade internacional eminentemente evolutiva, as circunstâncias tendem a mudar a
um ritmo que não encontra paralelo nas sociedades internas. O que implica ocorrer,
frequentemente, num contexto de grande volatilidade a celebração de convenções
internacionais. Donde, aceitar, sem reservas, que os Estados pudessem invocar toda e
qualquer alteração de circunstâncias, como forma de tornarem inaplicáveis os tratados
por si concluídos, conduziria a uma indesejável (quiçá, insuportável) instabilidade nas
relações internacionais, surgindo o princípio pacta sunt servanda completamente
esvaziado de sentido.
Ponderadas as vantagens e inconvenientes da cláusula rebus sic stantibus, a CV
consagrou um regime equilibrado, conquanto não inteiramente satisfatório.
Assim, à luz do artigo 62.º, uma alteração de circunstâncias apenas mediante a
verificação de duas condições será atendível e poderá, portanto, ser invocada: (a)) terá
de ser essencial ou fundamental, isto é, deverá a existência dessas circunstâncias ter
constituído uma «base essencial» do consentimento das partes a obrigarem-se pelo
tratado, de tal modo que, num outro contexto, não teriam, provavelmente, chegado a
concluí-lo; e, (b)), deverá, ainda, essa alteração de circunstâncias ter gerado uma
transformação radical da natureza das obrigações assumidas no tratado, levando à
mencionada desproporção – de todo imprevista e não querida – dos deveres
assumidos pelas partes.
Exceptuam-se, porém, da possível invocação de uma alteração fundamental de
circunstâncias as convenções de delimitação de fronteiras, que, conforme dissemos já,
criam «situações objectivas» (artigo 62,º, nº 2, a)); exceptuam-se, ademais, do regime
previsto no nº 1 as alterações de circunstâncias que tenham sido provocadas pelas
partes (artigo 62,º, nº 2, b)).
Importa ainda sublinhar, por outro lado, que um Estado perde o direito de
134

invocar a cláusula rebus sic stantibus se, expressa ou tacitamente, aceitou a


manutenção do tratado em vigor, apesar da alteração de circunstâncias (sanação por
confirmação) – é o que resulta do artigo 45.º da CV.

Para que o regime vertido na CV, acerca da cláusula rebus sic stantibus fosse, todavia, isento de
reparos, haveria que definir, de modo mais preciso e concreto, quais as alterações de circunstâncias,
realmente, susceptíveis de serem alegadas pelos Estados parte (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS).

Refira-se a concluir que não há margem para confundir a impossibilidade


superveniente de execução com a alteração fundamental de circunstâncias: no
primeiro caso deixa de ser possível cumprir o tratado; no segundo continua a ser
possível, mas é injusto.

10 – Fiscalização da constitucionalidade das convenções internacionais

As convenções internacionais estão, entre nós, sujeitas à fiscalização da sua


constitucionalidade.
Logo no artigo 278.º, nº 1, da CRP, se prevê que possa o Presidente da
República requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da
constitucionalidade de qualquer norma constante de tratado internacional que lhe
tenha sido submetido para ratificação ou de acordo em forma simplificada cujo
decreto de aprovação lhe haja sido remetido para assinatura.
No primeiro caso, se o Tribunal Constitucional se pronunciar pela
inconstitucionalidade de norma constante de tratado, a subsequente ratificação, por
parte do PR, apenas será possível se a Assembleia da República, entretanto, o
reaprovar por maioria de dois terços, desde que superior à maioria absoluta dos
Deputados em efectividade de funções (artigo 279.º, nº 4, da CRP).
No segundo, tratando-se de acordo em forma simplificada aprovado pela
Assembleia da República, a solução para superar a pronúncia do Tribunal
Constitucional poderá ser exactamente a mesma, ou seja, a reaprovação do acordo
nos termos acima descritos (artigo 279.º, nº 2, in fine). No caso, porém, de estarmos
em presença de um acordo internacional aprovado pelo Governo, o PR não poderá
assinar o respectivo decreto de aprovação sem que seja expurgada a norma julgada
inconstitucional (artigo 279.º, nº 2). Tal expurgação concretizar-se-á, v.g., através da
135

renegociação do acordo ou, em alternativa, mediante a sua reaprovação com as


reservas (se admitidas) que se revelem necessárias para assegurar a conformidade
constitucional das suas disposições.
Mas, as convenções internacionais são igualmente passíveis de ser submetidas
à fiscalização sucessiva (concreta e abstracta).
Na hipótese de uma determinada convenção ser declarada inconstitucional, em
sede de fiscalização concreta, será desaplicada ao caso sub judice; se o mesmo ocorrer
no âmbito da fiscalização abstracta, deixará de vigorar desde o momento da sua
entrada em vigor (efeitos ex tunc) ou, no caso de inconstitucionalidade superveniente,
desde a entrada em vigor da norma constitucional posterior incompatível com essa
convenção internacional (cfr. artigos 280.º, 281.º e 282.º da CRP).

III – O COSTUME

Sumário: 1 – Noção e natureza desta fonte de direito internacional. 1.1 – O elemento material
ou objectivo (consuetudo). 1.2 – O elemento psicológico ou subjectivo (opinio juris sive necessitatis). 1.3
– Elemento normativo? 2 – Fundamento do costume: doutrinas voluntaristas e correntes objectivistas 3
– Processo costumeiro. 3.1 – Quanto ao elemento material. 3.2 – Quanto ao elemento psicológico. 3.3 –
Os costumes «selvagens» ou instantâneos. 4 – O problema da oponibilidade do costume e o estatuto do
objector persistente. 5 – A prova do costume. 6 – Renovação do costume e sua importância actual.

1 – Noção e natureza desta fonte de direito internacional

Refere-se o artigo 38.º do ETIJ, na alínea b) do parágrafo primeiro, ao costume


internacional, como prova de uma prática geral aceite como sendo de direito.
Existe, sem dúvida, algo de paradoxal na circunstância de falarmos de uma
«fonte formal» cuja existência não fica, todavia, a dever-se a qualquer expressão
formal (escrita) da vontade dos sujeitos de direito internacional. Bem ao contrário,
estamos em presença de um modo espontâneo de surgimento de normas jurídicas;
leges non scriptae, cujo concreto alcance só mediante a análise de determinados
comportamentos (processo social empírico) se tornará perceptível (R. AGO; J.
BARBERIS; COMBACAU/S. SUR). De resto, o mesmo é válido para os princípios gerais
de direito (alínea c) do artigo 38.º), fonte igualmente pouco ou nada formalizada (cfr.,
infra).
Apesar disso, figurando o costume internacional na supracitada alínea b) do
136

parágrafo primeiro do artigo 38.º do ETIJ, com autonomia relativamente a outros


modos de revelação (ou criação) de normas jurídicas internacionais, não pode
contestar-se o seu carácter de fonte formal de direito. Uma fonte, em todo o caso,
algo sui generis, visto que, segundo a doutrina dominante, corroborada pela
jurisprudência internacional ao longo dos tempos, incluindo a mais recente, a
consumação do processo costumeiro pressupõe a conjugação de dois elementos, a
saber, o elemento material ou objectivo e o elemento psicológico ou subjectivo.
Passemos a explicar.

1.1 - O elemento material ou objectivo (consuetudo)

Este primeiro elemento do costume consiste na adopção reiterada e uniforme


de certos actos ou condutas que se designam precedentes. Quer dizer, será mister que,
perante situações essencialmente idênticas, os sujeitos de direito internacional, em
particular os Estados, pratiquem ou omitam determinados comportamentos, fazendo-
o com constância e similaridade, durante um lapso temporal mais ou menos alargado.

1.2 - O elemento psicológico ou subjectivo (opinio juris sive necessitatis)

O elemento psicológico ou subjectivo traduz-se no sentimento experimentado


por aqueles que levam a cabo os aludidos comportamentos do respectivo carácter
obrigatório, isto é, de que correspondem a uma exigência de justiça ou, se se preferir,
a um ditame da ordem jurídica. Forma-se, destarte, a convicção de que a sua
inobservância acarretará para os prevaricadores uma qualquer forma de sanção (J. L.
BRIERLY).
Daí que para exprimir este segundo elemento se recorra à formulação latina
opinio juris sive necessitatis, que, exactamente, significa a convicção da
obrigatoriedade jurídica. Na falta desta, a prática internacional não passará de mero
uso, não logrando, por conseguinte, integrar o universo do direito.

1.3 – Elemento normativo?

Alguma doutrina (v.g., VOYIAKIS, TRACHTMAN, etc.) aponta para a (supra)


existência de um elemento normativo capaz de legitimar e, portanto, de conferir
sentido, quer à prática constante e uniforme, quer à convicção de obrigatoriedade.
137

Além dos dois elementos tradicionais, seria, pois, de exigir um terceiro elemento
atestador da coerência da norma consuetudinária nascente ou já formada com o
quadro de valores e princípios em que assenta a ordem jurídica internacional.
A hipotética desconformidade dos elementos objectivo e subjectivo do
costume com tal quadro axiológico-normativo, traçaria um caminho pouco auspicioso,
ou determinaria mesmo, a prazo, a falência da norma consuetudinária.
Por outro lado, naquelas matérias consideradas de maior dignidade (v.g.,
direitos humanos, direito internacional humanitário e penal, etc.), que apresentam
alguns pontos de contacto ou se intersectam com directrizes da moral internacional, a
viabilidade do costume estaria muito mais dependente da sua consonância e harmonia
com aquele acervo de valores e princípios fundamentais do que propriamente da
prova da prática estadual (JÓNATAS MACHADO, na senda de BLECKMANN).
E seria, ainda, o elemento normativo a explicar a emergência de costumes
“selvagens” ou instantâneos, nos casos em que um dos elementos tradicionais
(sobretudo a prática) não se encontra claramente comprovado ou em que a opinio
juris resulta de um certo conformismo ou resignação dos Estados mais fracos perante a
convicção de obrigatoriedade exprimida pelos mais fortes.
Ora, estamos em crer que não se justifica a autonomização de um terceiro
elemento do costume, ao lado dos elementos tradicionais. Em bom rigor, o chamado
“elemento normativo” não constituiu pressuposto necessário da formação de uma
norma consuetudinária; constitui, isso sim, requisito indispensável para a sua validade
(e legitimação) subsequente. E, de resto, a conformidade com aquilo a que
poderíamos designar por ordem pública internacional (o tal radical básico de valores e
princípios essenciais do ordenamento internacional) não é desejável apenas
relativamente às normas de costume, mas sim a todas as normas de direito
internacional, independentemente da sua origem formal. As exigências de coerência
sistémica assim o determinam.
Deste modo, enquanto procedimento ou mecanismo de criação de normas
(fonte formal), o costume é composto pelos dois elementos tradicionais (a prática e a
opinio juris). As normas reveladas por essa fonte é que – como condição da sua
viabilidade futura – terão de afeiçoar-se ao quadro axiológico-normativo prevalecente
em cada momento (“elemento” normativo).
138

2 – Fundamento do costume: doutrinas voluntaristas e correntes objectivistas

O debate doutrinal em torno desta questão – que, aliás, não pode dissociar-se
do problema, mais geral, da fundamentação da obrigatoriedade do direito
internacional – conduziu a um confronto entre as teses positivistas ou voluntaristas e
as teses antivoluntaristas.

Diga-se que o problema do fundamento do costume reganhou até, nas últimas décadas,
importância e actualidade, como resultado do aparecimento de novos Estados na cena internacional, na
sequência do movimento da descolonização. Tratava-se então de saber se, e em que medida, aqueles
estariam vinculados por normas costumeiras de cuja formação, por circunstâncias históricas, haviam
estado arredados (PIERRE-MARIE DUPUY).

Teoria do pacto tácito

É sabido que para os voluntaristas o fundamento da obrigatoriedade do direito


internacional radica, apenas e tão-só, na vontade dos Estados. Compreende-se, assim,
que também a força obrigatória do costume dela proviesse. Porém, dada a natureza
própria das normas consuetudinárias, essa vontade revestiria aqui a forma de um
acordo (ou pacto) tácito entre os Estados.

A tese em apreço remonta a Grócio, tendo tido, posteriormente, grande repercussão na


doutrina internacionalista soviética, em partucular no pensamento de KOROVIN e TUNKIN.

Qual a consequência lógica desta doutrina?


A de que as normas costumeiras só se aplicariam aos Estados que tivessem
participado na respectiva formação ou àqueles que subsequentemente as
reconhecessem. De forma que um costume não seria oponível a Estados terceiros sem
a sua aquiescência, pelo que, à semelhança do que sucede no âmbito do direito
internacional convencional, estaríamos também aqui perante uma espécie de princípio
da relatividade dos efeitos do costume.
A plausibilidade desta corrente esbarra, todavia, em três razões de peso.
Por um lado, assenta numa sobrevalorização do elemento psicológico do
costume, negligenciando, concomitantemente, a prática constante e uniforme de certa
conduta (elemento material) – também ela indispensável à formação de uma norma
consuetudinária.
139

Por outro lado, a teoria do tacitum pactum revela-se imprestável para explicar
a vinculação de todos os Estados às normas de costume universal, mesmo daqueles
(recém-formados) que não participaram no processo de criação dessas normas. E isto
em tais termos que, como veremos mais adiante ao abordar o problema do estatuto
do persistente objector, a oposição a um costume geral já existente não surte
quaisquer efeitos. Por maioria de razão, assim ocorrerá no caso de esse costume ter a
natureza de jus cogens.
Em terceiro lugar, importa assinalar que a simples ideia de um acordo tácito
não é, em boa verdade, concebível senão para os costumes bilaterais ou regionais, que
se aplicam a um número restrito de Estados. Já para as normas consuetudinárias de
alcance geral a tese do consentimento tácito se apresenta como uma pura ficção.

Terá sido fruto de um célebre dictum do Tribunal Permanente de Justiça Internacional, no caso
Lotus, que a doutrina voluntarista do pacto tácito encontrou terreno fértil para vicejar: «Les règles de
droit liant les États procèdent donc de lá volonté de ceux-ci, volonté manifestée dans des conventions ou
dans des usages acceptés généralement comme consacrant des principesde droit (…)». Em rigor, no
entanto, a esta tomada de posição deverá atribuir-se escasso relevo, quer pelo volume de críticas que,
desde sempre, suscitou, quer pelo facto de só ter podido concretizar-se graças à intervenção decisiva do
Presidente do Tribunal (através do seu voto de desempate).

Teoria da formação espontânea do costume

Muito mais consentânea com a prática internacional e com a lógica subjacente


ao processo costumeiro se apresenta a tese (objectivista) da formação espontânea das
normas consuetudinárias.
Assim, esta outra directriz encara o surgimento dos costumes como um
fenómeno sociológico, ele próprio explicável em virtude de determinadas
necessidades – lógicas, sociais ou outras – que, justamente, impulsionam o processo
costumeiro.

Convirá, a este propósito, recordar o caso da Plataforma Continental do Mar do Norte, de 1969
– porque bem ilustrativo do que acaba de dizer-se –, no qual o Tribunal Internacional de Justiça se pôs a
questão de saber se a regra da equidistância, no que toca à delimitação da plataforma continental entre
dois Estados contíguos, corresponderia ou não a uma necessidade lógica, pelo facto de,
hipoteticamente, estar ligada de forma inevitável e a priori à própria noção de plataforma continental.
140

Pode, consequentemente, concluir-se que, na maior parte dos casos, as normas


costumeiras reflectem, num dado momento, e quanto a certo problema concreto, o
equilíbrio das forças internacionais em presença; reflectem, por outras palavras, a
avaliação prévia que, pelos sujeitos de direito internacional, foi feita acerca das ditas
necessidades sociais, lógicas, etc., que subjazem àquelas normas. O que, afinal,
significa resultar o costume de uma tomada de consciência colectiva (não
obrigatoriamente unânime) dessas necessidades, a qual incita ou induz a agir de
determinada maneira, em ordem a alcançar-se a regulação normativa que, em face
delas, se impõe (PIERRE-MARIE DUPUY).
Certo é – como sublinham diversos autores – que apenas esta teoria permite
fundar, de modo credível e convincente, a validade erga omnes dos costumes gerais.
Sendo essencialmente espontâneo o processo costumeiro, tal não significa,
porém, que ele se não revista de um certo formalismo. Deste nos ocuparemos de
seguida.

3 – Processo costumeiro

3.1 – Quanto ao elemento material

Comportamentos susceptíveis de constituírem precedentes

Podem ser muito variados e de diferente natureza os comportamentos que


concorrem para a formação de um costume e que, em virtude disso, devam ser
qualificados como precedentes.
Importa, antes de tudo, que emanem de Estados ou de organizações
internacionais, de jurisdições (tribunais) internacionais, das próprias organizações não
governamentais ou até, em certos casos e sob condições estritas, de determinadas
pessoas privadas. Ponto é que tais comportamentos hajam sido livre e regularmente
praticados e sejam, consequentemente, oponíveis aos seus autores.
Saliente-se que em causa poderão não estar actos jurídicos, internos ou
internacionais, em sentido verdadeiro e próprio, ou outros comportamentos, positivos
(por acção) ou negativos (por omissão), mas, tão-apenas, meras tomadas de posição
acerca da oportunidade ou licitude da conduta de outros sujeitos de direito
internacional.
141

Vejamos tudo isto mais em pormenor, acompanhando, quanto a este ponto,


QUOC DINH/DAILLIER/PELLET.

Actos do Estado. Trata-se de actos praticados pelos órgãos estaduais que


contendem com as relações internacionais. Será, designadamente, o caso daqueles
que provêm das autoridades encarregadas dessas relações exteriores: o Ministro dos
Negócios Estrangeiros e os seus colaboradores, sobretudo os agentes diplomáticos
(v.g., declarações, correspondência diplomática, instruções dirigidas aos diplomatas,
etc.).
Enquadram-se, igualmente, na categoria de actos do Estado as tomadas de
posição dos representantes governamentais no seio de organizações internacionais ou
no âmbito de processos jurisdicionais ou arbitrais internacionais.
Por último, e até por maioria de razão, serão susceptíveis de constituir
precedentes os actos interestaduais (v.g., os tratados). Assim, por ex., as normas de
uma convenção internacional (acto interestadual), cuja eficácia, por força do princípio
da relatividade dos respectivos efeitos, se circunscreve, de início, apenas às partes
contratantes, podem, conforme se assinalou já, servir de ponto de partida ou
desencadear um processo costumeiro (cfr. artigo 38.ºda CV).

Actos das instituições internacionais. Avultam aqui as decisões dos tribunais


internacionais, sejam eles tribunais judiciais, (permanentes) ou tribunais arbitrais (ad
hoc). Assim é que, por ex., o Tribunal Internacional de Justiça se apoia muitas vezes –
como, de resto, o fizera já o seu predecessor (o Tribunal Permanente de Justiça
Internacional) – nas suas decisões anteriores, atribuindo-lhes, justamente, o valor de
precedentes. Na verdade, sendo a eficácia das sentenças desse Tribunal limitada às
partes que pleiteiam e ao caso sub judice, nem por isso se poderá esperar que ele
permaneça indiferente às decisões por si anteriormente proferidas (J. L. BRIERLY). Daí,
pois, que a constância (similitude) de decisões, ao longo do tempo, possa também dar
origem a normas consuetudinárias.
Mas o mesmo se diga da prática das organizações internacionais. Desta feita, os
precedentes que constituem pressuposto da formação de normas de costume poderão
ter origem, quer em práticas internas, quer em práticas que são adoptadas no âmbito
das relações internacionais.
142

No que às primeiras diz respeito (práticas internas), importa relevar que nem sempre se admite
uma revisão implícita das cartas constitutivas das organizações internacionais pela via das suas práticas
internas. Não obstante, o Tribunal Internacional de Justiça já, por diversas vezes, se referiu a tais
práticas, considerando estarem na base do surgimento de verdadeiros costumes. Foi, designadamente,
o que sucedeu a propósito do caso Namíbia, em que o Tribunal se pronunciou acerca da prática seguida
em matéria de votação no seio do Conselho de Segurança das Nações Unidas: por força dessa prática
geral, reiterada e uniforme, a abstenção de um dos membros permanentes cessara – ao arrepio do
preceituado no artigo 27.º da CNU – de equivaler a veto.
No que tange, por outro lado, aos comportamentos das organizações internacionais no plano
internacional, é sabido que estas contribuem para a formação do direito internacional geral
(consuetudinário), através, v.g., das resoluções que adoptam, dos tratados em que participam ou das
relações que estabelecem com outros sujeitos de direito internacional. Exemplo paradigmático do que
acaba de dizer-se constituem as Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas – não previstas na
Carta –, cuja repetição ao longo do tempo propiciou a formação de um acervo de normas costumeiras
aplicáveis, quer ao desencadeamento, quer ao funcionamento quotidiano dessas operações. Normas
essas resultantes, por ex., de resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, de acordos
celebrados entre a ONU e os Estados envolvidos e, ainda, de práticas adoptadas no terreno de acordo
com directivas do Secretário Geral.

Actos de outros sujeitos de direito. Não é isento de controvérsia o problema de


saber se também os comportamentos de outros sujeitos de direito, que não os Estados
e organizações internacionais, poderão constituir precedentes, contribuindo, assim,
para o surgimento de costumes.
A prática internacional parece, em todo o caso, confortar a ideia de que, em
certos casos, e desde que tal não motive a oposição expressa dos sujeitos primários de
direito internacional, determinados comportamentos das organizações não
governamentais, dos movimentos de libertação nacional e até das sociedades
transnacionais (ou empresas multinacionais) poderão, de facto, dar origem à formação
de normas consuetudinárias.

Aproposita-se a oportunidade para aludir à noção de organização não governamental. Trata-se


de uma entidade sem fins lucrativos – por oposição às sociedades transnacionais –, habitualmente
criada por iniciativa privada, independentemente de qualquer acordo intergovernamental (daí o
qualificativo de não governamental), reunindo um conjunto mais ou menos vasto de pessoas privadas
ou públicas, físicas ou morais, de várias nacionalidades. O leque de fins prosseguidos pelas ONGs é
quase inabarcável: v.g., fins humanitários (Comité Internacional da Cruz Vermelha), religiosos (Conselho
Ecuménico das Igrejas), científicos (Instituto do Direito Internacional), sindicais (Associações
143

Profissionais), desportivos (Comité Olímpico Internacional), ecológicos (Greenpeace), etc..


Ora, pegando no exemplo do CICV, pode dizer-se que as regras em que se estriba a Cruz
Vermelha ao intervir nas situações de conflito armado internacional resultam, em larga medida, de
práticas, sistemática e uniformemente, adoptadas pelo CICV – organização não governamental.

Repetição do precedente no tempo

Sem se verificar a repetição da prática ao longo do tempo, não poderia falar-se


em uso. Disto mesmo se tem feito eco a jurisprudência internacional ao socorrer-se,
continuadamente, da formulação clássica “prática constante e uniforme”.

Prática constante, significa a repetição frequente de comportamentos num


certo período de tempo. Evidentemente, não é possível dizer-se, com exactidão,
quantas vezes e durante quanto tempo deve um precedente ser repetido para que a
formação do costume logre concretizar-se. Mas já é, decerto, possível afirmar-se que,
actualmente, dado o maior grau de integração da comunidade internacional, bem
como a velocidade a que as circunstâncias tendem a mudar, se exige um lapso
temporal muito mais breve do que outrora. Deverá, pois, ter-se por excluído o
requisito da imemorialidade.

O Tribunal Permanente de Justiça Internacional, já em 1930, num Parecer relativo à


Participação da Cidade de Dantzig na OIT, sustentou que uma prática mantida há menos de dez anos
poderia ter dado origem a um costume. Em 1969, no caso da Plataforma Continental do Mar do Norte, o
Tribunal Internacional de Justiça viria também a admitir que o decurso de um curto período de tempo
não constitui óbice ao nascimento de uma norma costumeira. Ora, certo é que a jurisprudência se limita
a confirmar uma tendência, de há muito esboçada, na prática internacional contemporânea, para tornar
mais célere a formação do direito consuetudinário. Bem ilustrativo deste fenómeno é o aparecimento,
quase instantâneo ou imediato, de novas regras em matéria de direito do mar: v.g., no que toca à
extensão do mar territorial e ao regime jurídico da zona económica exclusiva.

Prática uniforme, por seu turno, vem a ser a necessária concordância ou


similitude dos actos sucessivos dos sujeitos de direito internacional. Com efeito, na
falta deste elemento, tornar-se-á inviável a formação do costume: se, perante uma
mesma situação, houver contradição, flutuação ou discordância nos precedentes
144

adoptados pelos Estados, não poderá falar-se em repetição. E a ausência desta


entravará, como se percebe, o aparecimento ulterior de uma convicção de
obrigatoriedade jurídica.
Tal não significa, porém, que deva afastar-se a possibilidade de ocorrerem
violações, isto é, a eventualidade de se verificarem comportamentos desconformes
com a regra nascente ou já formada. E porquê? É que se, porventura, um Estado
pratica uma conduta que está em manifesta contradição com essa regra, de duas uma:
ou poderá tê-lo feito com a consciência de que está a infringi-la e, portanto, com a
deliberada intenção de a contestar; ou então considera lícita a sua actuação,
invocando putativas excepções ou justificações, alegadamente, comportadas pelo
âmbito da dita regra. Em ambos os casos, como afirmou o TIJ no caso das Actividades
Militares e Paramilitares na Nicarágua, do que se trata é de uma confirmação, antes
que de um enfraquecimento ou de um perigar da uniformidade da prática.

Repetição do precedente no espaço.

É, igualmente, claro que terão de ser vários os Estados, e não apenas um, a
adoptar, uniformemente, ao longo do tempo, determinado comportamento. Por
outras palavras, a formação de um costume reclama ou pressupõe uma certa
dispersão espacial.
Sim, reclama ou pressupõe, tão-só, uma certa dispersão; não uma dispersão
universal. E isto por duas razões. Por um lado, porque, a par dos costumes gerais, se
admite também a existência de costumes com um alcance geográfico mais limitado –
os costumes regionais e até mesmo os costumes locais ou bilaterais. Por outro,
porque, ainda que se trate de costumes gerais, a jurisprudência internacional, com
base no artigo 38.º, § 1, b) do ETIJ, tem entendido ser bastante haver-se sedimentado
uma prática geral, representativa dos Estados particularmente interessados na
respectiva formação, jamais se exigindo uma prática unânime, o que, aliás, seria por
demais irrealista.

Serão, por ex., considerados, a um tempo, necessários e suficientes os comportamentos das


principais potências marítimas para que possam formar-se certas normas consuetudinárias de direito do
mar Também no que toca ao regime jurídico do espaço extra-atmosférico, poder-se-á dizer que, até
finais do séc. XX, a prática de alguns (poucos) Estados industrializados foi suficiente para a formação de
145

novos costumes.
A unanimidade no que à prática diz respeito, já tenderá, todavia, a ser exigida, ou sê-lo-á
mesmo, caso, respectivamente, se esteja perante um costume regional (v.g., da América Latina ou da
Europa continental), cujo círculo de Estados interessados é, apesar de tudo, restrito, ou em face de um
costume local ou bilateral (que vincula apenas dois Estados).
A este último se referiu o Tribunal Internacional de Justiça, no âmbito do caso do Direito de
passagem por território indiano, que opôs Portugal (Estado demandante) à União Indiana (Estado
demandado). Rejeitando a posição da Índia, que considerava não poder um costume local formar-se
apenas entre dois Estados, o Tribunal aduziu não se vislumbrar razão plausível para que uma prática
contínua e prolongada entre dois Estados, e por eles aceite como regulando as suas relações recíprocas,
não pudesse constituir a base para a criação de direitos e obrigações mútuos. Pronúncia esta que ia de
encontro à pretensão portuguesa de fundar num costume local (bilateral) o direito de passagem
(rectius, a circulação de pessoas, veículos e mercadorias), entre o território de Damão e os enclaves de
Dadrá e Nagar-Aveli. Para o êxito da causa, muito haveriam de contribuir o brilhantismo, a profundidade
e a consistência dos argumentos jurídicos apresentados ao colectivo de juízes pelo insigne professor de
Coimbra, Doutor Guilherme Braga da Cruz.

3.2 – Quanto ao elemento psicológico

Não deixámos de sublinhar mais atrás que a mera repetição de precedentes ao


longo de um certo lapso temporal se revela insuficiente para a formação de um
costume. Torna-se ainda necessário que, praticando os comportamentos em causa, os
Estados se achem motivados por uma convicção (ou consciência) de obrigatoriedade
jurídica (opinio juris sive necessitatis). A presença desta (elemento subjectivo ou
psicológico) permite distinguir os costumes dos simples usos e regras de cortesia
internacional (comitas gentium) (cfr., supra, ponto 6 da Introdução).
A exigência da opinio juris retira-se do próprio ETIJ, que alude a uma prática
aceite como sendo de direito. Mas retira-se, outrossim, da autoridade que é mister
reconhecer à jurisprudência internacional. Ora, vem constituindo orientação firme do
TPJI e do TIJ (v.g., nos casos Lotus; da Plataforma Continental do Mar do Norte; e
Nicarágua) o entendimento de que apenas uma convicção de obrigatoriedade jurídica
– e não meras razões de oportunidade, conveniência ou de índole protocolar – terá a
virtualidade de integrar na esfera do direito internacional aquilo que, na ausência dela,
não passaria de mero uso.
146

Rejeita-se, pois, a argumentação, a certa altura desenvolvida por autores como


SORENSEN ou HAGGENMACHER, segundo a qual uma prática geral e efectiva
constituiria uma presunção quase irrefutável da opinio juris, aparecendo esta, por
conseguinte, desprovida de autonomia e totalmente dissolvida no elemento objectivo
do costume. Nunca, porém, semelhante concepção viria a ser sufragada pelo Tribunal
Mundial (COMBACAU/SERGE SUR). Preferível é, seguramente, encarar a prática como
algo exigido ou reclamado pelo direito internacional (HUDSON) e, portanto, considerar
o elemento psicológico como ingrediente necessário à formação do costume (I.
BROWNLIE). A aparente perda de nitidez da distinção entre os elementos fáctico e
psicológico do costume, de que certa doutrina se faz eco (v.g., ANTHEA ROBERTS),
apenas no culminar do processo consuetudinário se tornará mais perceptível; não,
certamente, no seu início, isto é, logo ao sopro de arranque da prática – momento em
que o sentimento de obrigatoriedade jurídica se apresenta ainda particularmente
incerto.

3.3 – Os costumes «selvagens» ou instantâneos

A expressão «costume selvagem» foi cunhada por RENÉ-JEAN DUPUY para se


reportar a determinadas práticas normativas da sociedade internacional hodierna que
estariam em oposição com os costumes «sages» ou tradicionais (cfr., supra, ponto 3.2
do CAP. I).
A sucessão cronológica habitual dos elementos do costume internacional
assenta, como vimos, numa precedência do elemento objectivo relativamente ao
elemento psicológico: à adopção reiterada e uniforme de certos comportamentos,
segue-se, in fine, a opinio juris. Tem-se, contudo, questionado a doutrina acerca da
legitimidade de um processo de formação oposto, isto é, de uma prévia e
categoricamente afirmada convicção de obrigatoriedade (por vezes, no âmbito da
conclusão de tratados internacionais – cfr. ponto 9 da Introdução), à qual,
presumivelmente, se seguirá a progressiva sedimentação de uma prática consonante
com essa opinio juris quase subitamente surgida.
Admitindo-se como válida esta inversão dos elementos integradores do
147

processo de gestação das normas consuetudinárias, estaríamos, justamente, em


presença dos mencionados costumes «selvagens». Neles se sobrepuja, por
conseguinte, o elemento psicológico, surgindo a prática (elemento objectivo)
claramente subalternizada ou secundarizada. Talvez, por isso, tenha esta teoria dos
costumes selvagens ou instantâneos motivado a oposição de alguns doutrinadores.
Acresce que a ambiguidade (incerteza) conatural a uma expressão da vontade dos
Estados, não suportada por uma prática anterior que a pudesse tornar menos
contestável, parece comprometer a desejável segurança jurídica.
Ainda assim, a tendência actual – reforçada por algumas pronúncias do TIJ – vai
no sentido de, em domínios mais recentes do direito internacional (v.g., no moderno
direito do mar, no direito do espaço extra-atmosférico, no direito internacional do
ambiente etc.), se aceitarem as sobreditas práticas normativas, a despeito da
volatilidade que as caracteriza. Uma coisa é certa: a maior celeridade do processo de
formação de um costume «selvagem» permite ao direito internacional adaptar-se
dinamicamente, de forma muito mais eficaz, às crescentes solicitações e exigências de
prontidão que a realidade da vida internacional lhe coloca.

4 – O problema da oponibilidade do costume e o estatuto do objector


persistente

Importa agora averiguar se, e em que medida, pode um Estado recusar que um
costume lhe seja oponível.
Como linha de princípio, deve salientar-se que, em reverência às exigências de
certeza e segurança jurídicas, não é lícito aos Estados, em particular aos recentemente
constituídos, porem em causa a validade de processos costumeiros anteriores e, por
conseguinte, a existência de normas consuetudinárias já formadas. Uma parte da
doutrina, não deixa, ainda assim, de admitir a contestação ulterior a um costume
preexistente, fundada na alteração superveniente das circunstâncias (JÓNATAS
MACHADO). Directriz esta relativamente à qual não podemos senão ser algo
reticenciosos, dado o potencial de disrupção (desestabilização) que encerra.
Igualmente de rejeitar, pelas mesmas razões, será a pretensão de Estados recém
independentes contestarem costumes anteriores, alegadamente conservadores do
status quo e, portanto, favoráveis aos interesses das antigas potências coloniais
148

(JÓNATAS MACHADO, na esteira de BAUMANN).


Parece, todavia, ser de admitir que possam os Estados subtrair-se à força
obrigatória dos costumes, ainda durante o processo de formação destes (I.
BROWNLIE). Quer dizer: sempre que um Estado, de modo firme, persistente e
inequívoco, objecta à criação de uma determinada norma costumeira, sem contudo
lograr os seus intentos – isto é, sem conseguir evitar a respectiva formação –, essa
norma não lhe será, depois, oponível. Num tal caso, pode afirmar-se que, em razão da
sua conduta esse Estado adquiriu o estatuto de objector persistente.

No caso das Pescarias, por ex., o TIJ decidiu que, por força de uma oposição firme e reiterada
da Noruega, a fixação da extensão do mar territorial em três milhas marítimas não constituía uma
norma costumeira de alcance geral, oponível àquele Estado. De modo idêntico, no célebre caso Haya de
la Torre, versando uma questão de asilo diplomático, em que foram oponentes o Peru e a Colômbia,
extrai-se a conclusão de que um costume não é, em princípio, oponível a um Estado que, ab initio, tenha
protestado contra a respectiva prática, desde que – sublinhe-se – esse protesto haja sido exprimido no
momento da formação da norma e não posteriormente.

Uma importante ressalva, no entanto, se impõe: jamais podem s Estados opor-


se à formação e subsequente aplicação a si próprios de uma norma costumeira que
possua a natureza de direito internacional imperativo ou jus cogens. Com efeito, em
semelhante circunstância – talqualmente se verifica em outras situações – os
interesses meramente particulares ou individuais de um Estado, apesar de porventura
atendíveis em abstacto, deverão, em concreto, ceder o passo perante normas que
tutelam valores essenciais para a comunidade internacional.
Problema diverso é o de saber se serão ou não oponíveis aos Estados normas
de costume que hajam sido criadas por outros sujeitos de direito. A questão tem
relevância, desde logo, no que respeita às organizações internacionais, que, muitas
vezes, invocam perante Estados membros, e até em face de Estados terceiros, certas
normas costumeiras que tiveram origem em práticas por si adoptadas (veja-se o que, a
propósito, dissemos, mais acima, no ponto 3.1). Tudo se torna, sem dúvida, mais
complicado no plano das relações entre a instituição internacional e os Estados não
membros, uma vez que, mesmo dando de barato que as cartas constitutivas
contenham a solução para tais casos – e, reconheça-se, não será essa a hipótese mais
provável –, ainda assim as interrogações subsistem, pois que, como é sabido, de
149

harmonia com o princípio da eficácia relativa das convenções internacionais, os


tratados constitutivos não são, em regra, oponíveis a terceiros. O que então significa
que só o instituto do reconhecimento – que mais à frente estudaremos – se revelará
capaz de, em definitivo, conquanto casuisticamente, trazer luz sobre o real alcance e a
oponibilidade das referidas normas consuetudinárias.
Mas poderá também estar em causa a oponibilidade de actos que emanam de
pessoas privadas. E se, à primeira vista, uma resposta negativa pareceria impor-se, a
verdade é que, designadamente em sede contratos internacionais (v.g., os contratos
de investimento entre um Estado e um particular estrangeiro) – lex mercatória – os
dados da realidade se encarregam, por vezes, de contrariar aquela suposição, vendo-
se os Estados, com inusitada frequência, compelidos a observar também normas de
origem privada.

5 – A prova do costume

As especiais características exibidas pela fonte costumeira, determinam que se


revista de particular acuidade o problema da prova das normas consuetudinárias.
Como observa J. L. BRIERLY, para se provar a existência de um costume torna-
se necessário recorrer à prática dos Estado, analisando a forma como estes se
comportam e a razão de ser dessa conduta, intentado averiguar se se sentem
obrigados a agir de certo modo.
Constitui opinião corrente que, no âmbito de um processo jurisdicional
internacional, quando invocada uma norma costumeira regional ou local, é sobre o
Estado demandante que deve recair o ónus da prova. Inversamente, tratando-se de
um costume de alcance geral, caberá ao Estado demandado demonstrar – se assim
entender por bem – que, de modo constante e inequívoco, se opôs à respectiva
formação (CARRILLO SALCEDO). Mas, que dificuldades se levantam a quem pretende
fazer a prova das normas de costume internacional? E quais são os principais meios de
prova a que é possível recorrer?

Prova do elemento material

No que tange à prática, a prova da sua existência é, por vezes, bastante


complicada – muito mais tratando-se, como muito bem pode suceder, de um costume
150

que surge da omissão ou de uma atitude passiva (AZEVEDO SOARES). E isto, tanto em
virtude da escassa publicidade dada aos comportamentos diplomáticos, como por
força das cautelas que, habitualmente, rodeiam as tomadas de posição dos Estados na
cena internacional. Por outro lado, há que ter em conta a possibilidade de por detrás
de uma constância comportamental estarem certos factores conjunturais (v.g.,
coincidência circunstancial de interesses, ameaças externas, oportunidades favoráveis,
etc.) que comprometem a sua genuinidade.
Não obstante as dificuldades que se erigem, a multiplicação de repertórios das
práticas nacionais e, bem assim, os estudos comparativos e compilações que, acerca
de tais práticas, têm sido elaborados pelas organizações internacionais ao longo das
últimas décadas, vão contribuindo para minimizar as dificuldades inerentes à prova do
elemento material do costume,

Prova do elemento psicológico

Os aludidos obstáculos à prova do elemento material do costume mais se


agudizam, porém, estando em causa a prova do elemento psicológico. E porquê?
È que se naquele estamos, apesar de tudo, a lidar com factores objectivos – os
comportamentos mantidos ao longo de certo tempo – neste, pelo contrário, a
demonstração da existência de uma opinio juris implica que se averiguem
determinadas intenções ou convicções, o que somente a partir de alguns indícios
resultará exequível.
É certo que, como, inter alia, sublinham GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE
QUADROS ou, mais recentemente, JORGE BACELAR GOUVEIA, existe uma presunção
juris tantum (ilidível) de obrigatoriedade de uma prática geral, constante e uniforme,
ou seja, supõe-se que a esta última (corpus) anda, habitualmente, associada uma
opinio juris (animus). Deste modo, para ilidir tal presunção, importa demonstrar que a
referida prática resulta de motivos de mera oportunidade ou conveniência. Haverá, no
entanto, de convir-se, que semelhante critério está longe de poder resolver todas as
situações, quanto mais não seja porque, não raras vezes, as propaladas intenções dos
Estados estão em manifesta contradição com os seus actos.
Face a uma tão grande dose de incerteza, a codificação do direito costumeiro
151

pode, a coberto de dúvida, contribuir para uma maior segurança jurídica, sobretudo no
que toca à opinio juris.

Como vimos já (cfr., supra, ponto 1.5), o artigo 13.ª da Carta das Nações Unidas, bem como o
artigo 15.º do Estatuto da Comissão de Direito Internacional, referem-se às operações de codificação e
desenvolvimento progressivo do direito internacional. Em que consistem?
Apesar de na prática nem sempre se tornar clara a destrinça, reitera-se que por codificação
deve entender-se a conversão de normas costumeiras num corpo de normas escritas, sistematicamente
agrupadas; por desenvolvimento progressivo, uma operação de afirmação ou consagração de normas
novas com base no direito já existente.
Por mor do exposto, compreender-se-á que a passagem dos costumes a escrito, compelindo os
sujeitos de direito internacional a afrontarem, directa e claramente, o problema da opinio juris,
contribui, de facto para atenuar as apontadas dificuldades de prova conaturais ao elemento psicológico
das normas consuetudinárias. Saliente-se, ainda, que as normas codificadas conservam uma existência
costumeira autónoma (J. COMBACAU/SERGE SUR).

Para ambas as dimensões – a material e a psicológica – vários são os elementos


de prova do costume de que é possível lançar mão.
Sem prejuízo de outros meios igualmente idóneos, é usual recorrer-se à prática
diplomática, à troca de notas entre governos, às declarações políticas oficiais, aos
actos de protesto, às decisões dos tribunais internacionais (ou até, em certos casos,
dos tribunais internos), às decisões e práticas das organizações internacionais, às
tomadas de posição dos governos junto de instâncias internacionais, incluindo,
naturalmente, as de carácter jurisdicional, aos comentários dos Estados aos projectos
da Comissão de Direito Internacional, aos tratados, aos arquivos históricos, etc.. Todos
eles, isolada ou conjugadamente, poderão, com efeito, atestar a existência de
precedentes e/ou de uma convicção de obrigatoriedade jurídica a eles associada.

6 – Renovação do costume e sua importância actual

Aqui chegados, será porventura avisado questionar a importância do costume


numa sociedade internacional em permanente mutação – hoje mais do que nunca –,
com a qual parece não se coadunar um processo (ainda) demasiado lento de formação
de normas jurídicas. Por outro lado, as crescentes exigências de certeza e segurança
nas relações internacionais chocam com a atitude dúbia que certos Estados
evidenciam perante algumas das normas costumeiras, em particular face ao costume
152

universal – no entender de alguns grupos de Estados demasiado “europeu”… A


acrescer a tudo isso, não são, como acabámos de ver, de pequena monta e de fácil
resolução os problemas de prova que as normas consuetudinárias suscitam, quer
quanto à sua existência, quer, por vezes, quanto à sua cronologia.
Que lugar, pois, para a fonte consuetudinária na comunidade internacional
hodierna?
Um lugar, apesar de tudo, insubstituível. Na verdade, a despeito das
imperfeições técnicas acima relevadas, a quase inexistência (ou incipiência) dos
mecanismos de criação autoritária do direito internacional, constitui terreno
bonançoso para o costume conservar a sua importância. Importância essa, aliás,
reforçada através de uma reciclagem ou renovação que, nas últimas décadas se vem
operando nesta fonte do direito das gentes.
A adaptação do costume aos novos tempos torna-se visível, desde logo, quanto
ao respectivo processo de constituição. Para além de uma progressiva suavização do
requisito da antiguidade da prática, também a opinio juris se concebe hoje de forma
menos estrita do que no passado. Acresce que, em alguns casos, se assiste até a uma
desfiguração do processo tradicional de formação da norma consuetudinária
(emergência dos «costumes selvagens» - cfr., supra). Circunstâncias estas que
contribuem para um mais rápido surgimento das normas consuetudinárias, com as
vantagens que daí advêm em termos de capacidade de resposta do direito
internacional aos desafios que, continuamente, se lhe colocam.
Passa, em segundo lugar, a revalorização da fonte costumeira pelo papel da
jurisprudência internacional na certificação da existência dos costumes, na precisão do
seu conteúdo, da sua intencionalidade e do seu alcance e, por conseguinte, na sua
correspondente aplicação a todo o tipo de litígios. Sublinhe-se, com JIMÉNEZ DE
ARECHAGA, que, da segunda metade da década de sessenta do séc. XX em diante, o TIJ
tem-se, primordialmente, debruçado sobre casos em que esteve em jogo a
interpretação e aplicação de normas consuetudinárias. E fê-lo, diga-se, dando, quase
sempre, mostras de grande equilíbrio e prudência, assim contribuindo, com o prestígio
de que se revestem as decisões judiciais, para credibilizar a fonte costumeira.
Em terceiro lugar, a renovação do costume radica na originalidade patenteada
ao nível dos conteúdos, sobretudo no que toca a normas consuetudinárias surgidas em
153

domínios mais recentes das relações internacionais (v.g., no âmbito do moderno


direito internacional económico).
Por derradeiro, não deve esquecer-se, quer o papel de destaque da fonte
costumeira nas formação das normas de jus cogens (com o que – sublinham
GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS – acaba o direito consuetudinário por
reger a título principal aquelas matérias que constituem o núcleo essencial do direito
das gentes), quer a sua importância no preenchimento das lacunas do direito
internacional convencional (AZEVEDO SOARES).

IV – OS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

Sumário: 1 – Uma fonte autónoma. 2 – Natureza jurídica 3 - Função: carácter supletivo. 4 –


Exemplos. 5 – Aplicação na ordem internacional: generalidade e transponibilidade. 6 – Importância e
autonomia futura.

1 – Uma fonte autónoma

Retomando a análise do artigo 38.º do ETIJ, verifica-se que, na alínea c) do nº 1,


se prevê a possibilidade de o Tribunal, no julgamento dos litígios que lhe forem
submetidos, aplicar os «princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações
civilizadas» – designação esta hoje, evidentemente, ferida de anacronismo.
E a questão que, desde logo, se coloca é a de saber se possui ou não carácter
autónomo esta fonte de direito internacional.
Negaram-no os autores voluntaristas (positivistas), para quem a aplicação de
princípios gerais de direito no âmbito das relações internacionais pressuporia uma
prévia e expressa autorização inserta numa convenção internacional. Daí que,
verdadeiramente, eles não dispusessem de autonomia em relação à fonte
convencional. Termos em que a previsão constante da alínea c) do nº 1 do artigo 38.º
do ETIJ mais não representaria do que uma (essa) autorização convencional concedida
ao Tribunal pelos Estados que são partes no seu Estatuto, sendo que apenas por
virtude dela o recurso àqueles princípios se tornaria possível (os princípios gerais de
direito como base de decisão privativa do Tribunal – CARDOSO DA COSTA). Isto,
naturalmente, sem prejuízo de outros tribunais internacionais poderem, beneficiar de
uma autorização similar.
154

Na falta de um acordo interestadual, vertido num qualquer tratado, jamais os


princípios gerais de direito – não obstante o seu valor jurídico intrínseco – lograriam
impor-se, por si próprios, aos sujeitos de direito internacional e, consequentemente,
aos juízes e árbitros internacionais.
Será isto assim?
A resposta não poderá deixar de ser negativa. Existe, com efeito, uma prática já
antiga (remonta a finais do séc. XVIII) e constante de recurso aos princípios gerais de
direito enquanto fonte directa e autónoma de direito internacional. Tais precedentes,
muito antes da criação do Tribunal Permanente de Justiça Internacional (antecessor do
TIJ), deram lugar à formação de um costume, nos termos do qual aqueles princípios
dispõem, a se, de força obrigatória na ordem jurídica internacional. De sorte que já a
versão de 1920 – data em que foi criado o TPJI – do actual artigo 38.º do ETIJ mais não
representou do que a codificação desse costume preexistente, funcionando assim o
preceito em causa, não como regra constitutiva, mas meramente declarativa da
aludida prática (AZEVEDO SOARES).

Será bom recordar que o Tribunal Permanente de Justiça Internacional – órgão judicial da
Sociedade das Nações – viria, em 1945, aquando da criação da ONU, a ser substituído pelo Tribunal
Internacional de Justiça, sendo que o Estatuto deste último reproduz, quase integralmente (a própria
numeração dos artigos se manteve), o Estatuto do TPJI.

Conclui-se, portanto, que, de forma explícita no ETIJ, se reconheceu o carácter


directo e autónomo da fonte de direito internacional que ora consideramos, isto é, se
lhe reconheceu força jurídica sem que esta radicasse numa qualquer autorização
convencional. Vale por dizer que a alínea c) do nº 1 do ETIJ – nos antípodas das
correntes positivistas – permitiu uma tomada de consciência mais nítida da
subordinação dos Estados a determinadas regras, independentemente do seu acordo
voluntário (CARDOSO DA COSTA). Daí, à época, o seu carácter revolucionário
(LAUTERPACHT).

2 – Natureza jurídica

O carácter autónomo dos princípios gerais de direito em relação às demais


fontes de direito internacional coloca, todavia, o problema da sua natureza jurídica.
Sim, não se confundindo, designadamente, com as convenções internacionais nem
155

com o costume e figurando, em resultado disso, numa alínea própria do nº 1 do artigo


38.º do ETIJ, o que são e donde provêm, afinal, esses princípios?

Na esteira de AFONSO QUEIRÓ, poderá afirmar-se que os princípios gerais de


direito constituem um conjunto de máximas ou directrizes jurídicas pré-estaduais,
umbilicalmente ligadas à ideia de Direito e ao princípio da Justiça, autónomas em
relação às decisões do legislador constituinte e cuja validade e obrigatoriedade não
depende do facto de serem acolhidas na constituição escrita dos Estados.
No que diz respeito à sua proveniência, respigam-se na doutrina correntes
doutrinais (declarada ou aparentemente) divergentes.
Assim, para alguns (v.g., QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, A. QUEIRÓ, CARDOSO
DA COSTA, AZEVEDO SOARES, etc.), os princípios gerais de direito seriam princípios de
direito interno. Para outros (v.g., SCELLE, TUNKIN, ETC.), bem ao invés, tratar-se-ia de
princípios de direito internacional público. Para um terceiro grupo de autores (v.g.,
ROUSSEAU, GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, BACELAR GOUVEIA, JÓNATAS
MACHADO etc.), eles tanto poderiam pertencer ao direito internacional como ao
direito interno.
O que dizer acerca desta divisão de opiniões?
Tomaremos como adequada a primeira das teses referidas. Três razões
principais justificam a nossa opção.
Em primeiro lugar, o argumento histórico. Com efeito, uma análise dos
trabalhos preparatórios do artigo 38.º do ETIJ revela-nos que, ao utilizarem a
expressão “princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas”, os
autores daquela disposição pretenderam reportar-se a princípios de direito interno,
consagrados na generalidade das ordens jurídicas nacionais. Essa ampla aceitação in
foro domestico constituiria o respaldo necessário para a sua aplicação no plano
internacional. Na verdade, como certeiramente observa J. L. BRIERLY, «o direito
privado, normalmente mais desenvolvido do que o internacional, tem constituído
sempre uma espécie de armazém de reserva de princípios onde este se vai fornecer».
Para mais – ainda em reverência à mens legislatoris, como, de resto, ao próprio
teor literal do artigo 38.º –, esta interpretação restritiva da noção de princípios gerais
de direito tem por si, como vimos atrás, o facto de só ela permitir conferir
156

especificidade e autonomia a esta fonte de direito internacional, apartando-a das


convenções internacionais e do costume, o que não sucederia caso considerássemos
também abrangidos pela expressão os princípios promanantes do direito
internacional.
Em terceiro lugar, uma razão de carácter lógico-formal milita em favor da
solução apontada. É que, destinando-se os princípios gerais de direito, conforme
iremos ver adiante, a suprir as lacunas do direito convencional e consuetudinário, não
faria sentido que eles tivessem a mesma natureza dos princípios (de direito
internacional) cujas lacunas visam colmatar (AFONSO QUEIRÓ; AZEVEDO SOARES)…
Vale por dizer que aquilo que, efectivamente, faz sentido é eles provirem de outro
ordenamento (o interno ou estadual).
A segunda doutrina supracitada assenta num equívoco, qual seja o de
repousar numa confusão entre os princípios gerais de direito e os princípios
fundamentais do direito internacional. Ora, a verdade é que estes últimos não são uma
fonte formal de direito internacional, ou seja, não constituem um processo técnico de
criação ou revelação de normas jurídico-internacionais. Trata-se, isso sim, nas palavras
de QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, de normas gerais que se deduzem a partir do espírito
dos costumes e tratados em vigor, carecendo, portanto, de autonomia em relação a
essas fontes de direito internacional. Possuem uma natureza constitucional, pois que
se ligam umbilicalmente ao particular modo de ser da comunidade internacional,
impondo-se aos Estados e demais sujeitos de direito internacional com um carácter de
necessidade (SORENSEN). É o caso, inter alia, dos princípios da igualdade e da
soberania dos Estados, da integridade territorial, da continuidade do Estado, da
proibição do recurso à força, da não ingerência, da autodeterminação, do respeito
pelos direitos humanos (proibição do genocídio, da escravidão, da tortura, etc.), da
liberdade do alto-mar, etc.. Diferentemente, conforme se disse já, os princípios gerais
de direito são uma terceira fonte distinta e dotada de autonomia, com a qual, por
consequência, as restantes fontes formais enunciadas no artigo 38,º do ETIJ se não
confundem.
A terceira directriz enferma do mesmo vício, mas parece assentar no
pressuposto de que uma reiterada aplicação de determinados princípios gerais de
direito no plano internacional poderá convertê-los, a certa altura, em normas
157

costumeiras de idêntico conteúdo, com o que acaba, afinal de contas, por perder
nitidez, quase se desvanecendo, a fronteira entre princípios de direito interno – que
são, originariamente, os princípios gerais de direito – e princípios de direito
internacional que, justamente, são aqueles que inspiram e dão sentido aos costumes e
convenções internacionais em vigor. Dito de outra forma, o reiterado acolhimento e
aplicação de certos princípios gerais de direito pela jurisprudência internacional
conduz à perda da sua autonomia inicial, acabando por ser assimilados, por via
consuetudinária, pelo próprio direito internacional. Daí o dizer-se, relativamente a
esses, que tanto podem ser princípios oriundos do direito interno como princípios de
direito internacional. Sendo esse o caso, haverá, no entanto, de convir-se que passarão
a relevar da alínea b) do nº 1 do artigo 38.º do ETIJ (costume internacional) e não
propriamente da alínea c) do mesmo preceito…

3 – Função: carácter supletivo

Dado por assente que os princípios gerais de direito são, para efeitos da alínea
c) do nº 1 do artigo 38.º do ETIJ, princípios de direito interno, cabe olhar agora à sua
específica função nesse âmbito.
Visam eles obviar a uma situação de non liquet, isto é, de denegação de justiça
por falta de direito (convencional ou costumeiro) aplicável ao caso concreto sub judice.
O recurso aos princípios gerais de direito serve, exactamente, para obstar a esse
presumível impasse, permitindo aos juízes estatuir sem terem de sair da órbita do
direito positivo. Dito de outra forma, os princípios gerais de direito constituem uma
fonte supletiva de direito internacional.
Pode, efectivamente, concluir-se – conforme, de resto, advertimos, supra, no
início do presente capítulo – que a ordem de enunciação das fontes formais de DIP no
artigo 38.º do ETIJ não é arbitrária ou indiferente; é antes uma ordem sucessiva de
utilização ou de aplicação. Significa isto que, no julgamento dos diferendos que lhe
sejam submetidos, o juiz internacional deverá, em primeiro lugar socorrer-se das
convenções internacionais e do costume (por esta ordem) e só depois, comprovado
que esteja o sobredito interstício normativo ou lacuna de regulamentação do direito
internacional, aos princípios gerais de direito.
Acrescente-se que fonte supletiva não significa fonte subsidiária. De facto, esta
158

última expressão inculca uma ideia de hierarquização entre as fontes formais de


direito internacional – algo que, como vimo já, não se verifica. Apenas na falta de
convenção ou costume se recorre aos princípios gerais de direito, mas tal não permite,
de todo, concluir estarmos em presença de uma fonte secundária ou subordinada às
duas primeiras. Do que se trata – insiste-se – é, apenas e tão só, de uma ordem
sequencial de tomada em consideração, que encontra a sua razão de ser no carácter,
simultaneamente, menos abstracto e aleatório e, portanto, mais densificado dos
tratados e das normas consuetudinárias.

Coisa distinta, mas já fora do contexto específico da alínea c) do nº 1 do artigo


38.º do ETIJ, será a possibilidade de, aquando da aplicação de convenções
internacionais ou normas costumeiras ao caso decidendo, serem mobilizados
princípios – agora sim, quer de direito internacional, quer de direito interno – com
vista a ser alcançada uma solução materialmente justa. Opção metodológica esta cujo
bem fundado se antolha para quem, partindo de uma concepção monista acerca do
relacionamento entre os ordenamentos jurídicos internacional e interno (cfr., infra,
Cap. III) e não encare o momento da realização concreta do direito como uma
operação acrítica, silogística e meramente lógico-dedutiva, reconheça aos princípios
jurídicos as importantes funções legitimadora, interpretativa, integradora e de
complementação que habitualmente se lhe apontam (BACELAR GOUVEIA).
Alvitramos ser essa, em qualquer circunstância, a atitude desejável dos
aplicadores do direito internacional, pois que os princípios jurídicos (internos ou
internacionais) se revelam imprescindíveis para determinar o real sentido e alcance
das normas de direito positivo, possibilitando, nas palavras de JÓNATAS MACHADO,
uma sua interpretação (e integração) harmonizadora, bem como sistematicamente
coerente, do ponto de vista axiológico e normativo.
Cremos que reside aqui – isto é, na não distinção entre esta genérica
convocação de princípios jurídicos para o momento reconstrutivo da realização
concreta do direito internacional e a referida utilização supletiva de princípios gerais
de direito para suprir as lacunas do direito convencional e costumeiro, ex vi da alínea
c) do nº 1 do artigo 38.º do ETIJ – a razão de ser da confusão que vem grassando em
159

alguns sectores da doutrina jusinternacionalista acerca da natureza jurídica dos


princípios gerais de direito.

4 – Exemplos

Sabemos já o que são e para que servem, à luz da alínea c) do nº 1 do artigo


38.º do ETIJ, os princípios gerais de direito. Circunvagando o olhar pelas ordens
jurídicas internas, vai sendo tempo agora de sabermos quais são alguns deles.
De entre os mais conhecidos e utilizados, permitimo-nos destacar v.g., os
princípios do abuso de direito, do enriquecimento sem causa, da boa-fé, da
responsabilidade baseada na culpa, da reparação integral do prejuízo, de que a lei
especial prevalece sobre a lei geral, do ónus da prova, da igualdade das partes, do
contraditório, dos direitos adquiridos, da protecção da confiança, do estoppel (ninguém
se pode prevalecer das suas próprias faltas ou, num processo judicial, adoptar uma
atitude contrária a algo que previamente admitiu, com prejuízo para a contraparte –
venire contra factum proprium non valet), do efeito útil, do caso julgado (res judicata),
etc..
Como se vê, trata-se, na verdade, de princípios acolhidos em praticamente
todos os sistemas jurídicos do mundo (v.g., o romano-germânico, o anglo-saxónico ou
de common law, o chinês, o indiano, o islâmico, etc.), os quais, verificando-se uma
certa identidade material das relações tuteladas, poderão aplicar-se analogicamente e
colmatar as lacunas da ainda – em alguns domínios – assaz fragmentária
regulamentação internacional.

Peguemos em alguns exemplos de aplicação de princípios gerais de direito pela jurisprudência


internacional que nos são apresentados, entre outros autores, por AZEVEDO SOARES e DÍEZ DE
VELASCO, para que melhor nos possamos inteirar da respectiva utilidade no preenchimento de lacunas
do direito convencional e costumeiro.
No caso Lena Goldfields, tratava-se de analisar uma situação em que esta empresa havia sido
convidada pela ex-URSS a proceder à exploração de minas de ouro sitas no seu território, as quais
viriam, algum tempo transcorrido, a ser abrangidas por medidas de nacionalização adoptadas por
aquele Estado. A concessionária obteve ganho de causa, tendo o tribunal arbitral constituído para
solucionar o litígio considerado que a URSS enriquecera injustamente (princípio do enriquecimento sem
causa), em virtude de se ter apropriado, sem qualquer compensação, dos capitais e do trabalho
investidos na mencionada exploração até à nacionalização.
160

No caso da Fábrica de Chorzow, que opôs a Alemanha à Polónia – na sequência da


nacionalização por parte do segundo Estado, de uma fábrica que a Alemanha vendera antes a nacionais
seus (recorde-se que as populações da Silésia se encontravam, ao tempo, divididas entre ambos os
Estados) – o Tribunal Permanente de Justiça Internacional fez apelo ao princípio segundo o qual a
ninguém é lícito prevalecer-se das suas próprias faltas e, bem assim, ao princípio do abuso do direito.
No caso das indemnizações da guerra da Turquia, o Tribunal Permanente de Arbitragem fez
alusão ao princípio da reparação integral do prejuízo.
Por fim, no caso Aramco (Arabian American Oil Company), o tribunal arbitral que julgou a
contenda invocou o princípio dos direitos adquiridos, sustentando não ser oponível à multinacional
Aramco um contrato celebrado entre a Arábia Saudita e a Satco (Saudi Arabian Maritime Tankers, Ltd.),
que contrariava uma prévia concessão de exploração e transporte de petróleo à Aramco.

5 – Aplicação na ordem internacional: generalidade e transponibilidade

A utilização de princípios gerais de direito enquanto fonte de direito


internacional, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 38.º do ETIJ, dependerá da
verificação cumulativa de dois requisitos: o da generalidade e o da susceptibilidade de
os princípios a convocar serem transpostos para o ordenamento jurídico internacional.
Quanto à primeira condição (generalidade), ressalta claro que só poderão
aplicar-se internacionalmente aqueles princípios que façam, efectivamente, jus à sua
designação, isto é, que beneficiem de suficiente generalidade. Quer dizer, será mister
serem comuns e acharem-se consagrados na maior parte dos sistemas jurídicos
nacionais ou internos. De afastar serão, pois, aqueles que sejam próprios apenas deste
ou daquele país ou sistema de direito.

Saliente-se, a propósito, que a composição do Tribunal Internacional de Justiça – assente, ex vi


do artigo 9.º do respectivo Estatuto, na representação dos principais tipos de civilização e dos principais
sistemas jurídicos do mundo – constitui garantia bastante da generalidade dos princípios oriundos do
direito interno, aos quais, justamente, em cada momento, haja sido reconhecido tal atributo pelos juízes
daquele órgão jurisdicional.

Advirta-se, porém, que generalidade não equivale a unanimidade. Esta não é


exigida; nem no plano universal, nem, tão-pouco, no plano regional, em que é,
significativamente, menor o número de Estados envolvidos. Do que se conclui ser, em
regra, necessário, mas também suficiente, que os princípios gerais de direito
mobilizados para a solução de determinado litígio vigorem na maior parte dos sistemas
jurídicos (do mundo ou de certa região, conforme os casos). Não é, pois, obrigatório
161

que vigorem em todos eles.


À luz do requisito da generalidade, deve ter-se por excluída a aplicação, ex
officio, pelos juízes de princípios, hipoteticamente, consagrados apenas na ordem
jurídica dos Estados que pleiteiam no Tribunal (princípios comuns às Partes em litígio).
Semelhante possibilidade parece ser de conjecturar, tão-somente, no caso de aquelas
estarem de acordo em invocá-los; nunca por iniciativa do TIJ (SORENSEN).
No que diz respeito à segunda condição (transponibilidade), assenta ela no
suposto de poderem existir princípios que, embora comuns à maior parte dos sistemas
jurídicos nacionais, não sejam adaptáveis à ordem internacional. Daí a exigência,
materialmente fundada, de que para esta sejam transponíveis ou «transportáveis»
(BASDEVANT).
A despeito da «unidade axiológica do Direito», que constitui o pressuposto da
utilização dos princípios gerais de direito na ordem internacional (CARDOSO DA
COSTA), não pode abstrair-se das características específicas que esta apresenta, bem
como da natureza própria das relações a tutelar. Daí que só possam os juízes e árbitros
internacionais socorrer-se daqueles princípios (quer de direito privado, quer de direito
público) que se revelem compatíveis ou conciliáveis com a particular intencionalidade
do direito internacional. Razão por que, no que toca às relações estritamente
interestaduais, parecem, por exemplo, mal afeiçoar-se ao ordenamento internacional
os princípios gerais em matéria de relações de família ou de direito penal…
O requisito da transponibilidade projecta-se numa consequência prática de
indiscutível relevo: se porventura estiverem em concorrência vários princípios gerais
de direito para a solução de determinado litígio, deve dar-se preferência ou primazia
àquele ou àqueles que melhor se harmonizem com a ordem jurídica internacional, em
detrimento daquele ou daqueles que, hipoteticamente, exibam um grau mais elevado
de generalidade nos diversos sistemas de direito nacionais ou internos.

6 – Importância e autonomia futura

Constituirão os princípios gerais de direito, como admitem alguns autores, uma


fonte «transitória e recessiva» de direito internacional?
É certo, como vimos já, supra, no ponto 2, que a repetida aplicação de alguns
desses princípios na resolução de casos da vida internacional, poderá, a certa altura,
162

convertê-los em verdadeiras normas costumeiras de idêntico conteúdo, cessando de


fazer sentido a compartimentação estanque entre princípios de direito interno e
princípios de direito internacional.
A tendência parece, pois, ser a de um progressivo e inelutável estreitamento da
margem de autonomia dos princípios gerais de direito enquanto princípios oriundos do
direito interno, capazes de obviar às dificuldades advindas dos interstícios normativos
do direito das gentes, nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 38.º do
ETIJ. Tendência esta que, ad futurum, poderá, inclusive, levar a que se torne,
igualmente, menos nítida a diferença entre a utilização de princípios gerais de direito e
o julgamento ex aequo et bono, previsto no parágrafo segundo daquela disposição
(cfr., infra).
De notar, contudo, que o que acabámos de dizer é, sobretudo, válido para as
matérias clássicas do direito internacional. Em contrapartida, nos domínios novos das
relações internacionais, dada a inexistência ou escassez de precedentes
jurisprudenciais em que os julgadores possam respaldar-se para a resolução de litígios,
o recurso aos princípios gerais de direito, enquanto princípios (apenas ainda) de direito
interno, tende, efectivamente, a assumir uma importância acrescida.

V – OS ACTOS JURÍDICOS UNILATERAIS

1 – Noção e importância. 2 – Actos jurídicos unilaterais do Estado. 2.1 – Requisitos. 2.2 –


Exemplos de manifestações unilaterais de vontade admitidas pela jurisprudência internacional. 2.3 –
Tipologia. 3 – Actos jurídicos unilaterais das organizações internacionais. 3.1 – Variedade terminológica
e tipologia.

1 – Noção e importância

Apesar de não mencionados no artigo 38.º do ETIJ, e da contestação que por


vezes suscita o seu carácter jurídico-normativo, não pode hoje duvidar-se que também
os actos jurídicos unilaterais – sejam dos Estados ou das organizações internacionais –,
para além de contribuírem para a formação das normas consuetudinárias
(funcionando como precedentes), integram o elenco das fontes formais de direito
internacional.
Mas o que vem a ser um acto jurídico unilateral?
É acto na medida em que se consubstancia num facto voluntário, isto é resulta
163

de uma voluntas exprimida pelo seu autor. É jurídico porquanto se destina a produzir
efeitos de direito, quer dizer, a criar direitos ou obrigações, para o próprio sujeito que
o adopta (acte autonormateurs) ou para terceiros (acte hétéronormateurs). E é
unilateral visto ser imputável ou emanar de um só sujeito de direito internacional.
Descontadas essas características comuns, deparamo-nos actualmente, com uma
enorme diversidade de actos unilaterais, quer quanto à respectiva origem, quer no
tocante ao seu regime formal, quer no que respeita à sua substância (J. COMBACAU/S.
SUR).
A proliferação das organizações internacionais a partir da segunda metade do
séc. XX, propiciou um espectacular aumento do número e da importância dos actos
jurídicos unilaterais, anteriormente circunscritos aos dimanados dos Estados.
Estes últimos, porque respaldados no princípio da soberania, não suscitam
especiais problemas a propósito do respectivo alcance e oponibilidade. Outro tanto
não se dirá, porém, acerca dos actos unilaterais das organizações internacionais, que,
não suportados naquela majestas estadual, colocam o problema de saber até que
ponto vinculam os Estados membros e – sobretudo – os não membros.
A diversa natureza (e intencionalidade) que exibem essas duas categorias de
actos unilaterais, recomenda, pois, uma sua análise separada.

2 – Actos jurídicos unilaterais do Estado

2.1 - Requisitos

Estes actos – inspirados, aliás, na figura dos negócios jurídicos unilaterais do


direito interno – são, por conseguinte, manifestações unilaterais de vontade (da parte
de um só Estado), intencionalmente dirigidas à produção de certos efeitos jurídicos no
plano das relações internacionais. Ao adoptá-los os Estados são, fundamentalmente,
guiados pela prossecução de interesses próprios.
Para que os aludidos efeitos logrem concretizar-se, torna-se, porém, necessário
estarem preenchidos alguns requisitos, a saber, a imputabilidade, a oponibilidade, a
publicidade e a autonomia.
A imputabilidade ao Estado implica que o acto unilateral haja sido emitido por
uma entidade capaz de vinculá-lo internacionalmente (v.g., Chefe de Estado, Chefe do
164

Governo, Ministro dos Negócios Estrangeiros, representantes diplomáticos, etc.) e


que, ao adoptá-lo, não tenha extravasado os limites da sua capacidade jurídica. De
outra sorte, como se compreende, o acto em causa deixará de ser atribuível a esse
Estado.
A oponibilidade a terceiros (v.g., a outros Estados, a organizações
internacionais, a órgãos jurisdicionais, etc.) postula, por sua vez, a existência de
compatibilidade entre o acto unilateral e o direito internacional, mormente com os
seus princípios fundamentais.

As mais das vezes, o problema da oponibilidade dos actos jurídicos unilaterais tem subjacente o
princípio da relatividade, quer dizer, em regra, estão somente em causa as relações entre alguns,
poucos, Estados (no limite, por ex., poderá tratar-se apenas da oponibilidade do acto X, adoptado por A,
face ao Estado B).
Mas há também casos em que se coloca o problema, mais geral, da validade internacional de
certos actos unilaterais. Assim, por diversas vezes, o Conselho de Segurança já considerou nulos (por
isso que inoponíveis) actos unilaterais de anexação territorial, em virtude da sua flagrante contradição
com normas de jus cogens.

A publicidade, em terceiro lugar, significa que a vontade do Estado deverá ter


sido exteriorizada de forma suficientemente nítida, com um objecto bem definido, em
termos que não deixem dúvidas quanto aos respectivos significado e alcance.
A autonomia, por último – característica sem a qual os actos jurídicos
unilaterais não serão fonte de direito internacional –, pressupõe que o acto unilateral
se não encontre ligado a outra fonte – convenção ou costume –, sob pena de não
produzir, por si próprio, os efeitos jurídicos a que tende, mas de, justamente, os
provocar ou originar de forma indirecta, através dessa hipotética outra fonte com a
qual se ache conectado, e cujos efeitos, em regra mais vastos, acabam por consumir
ou absorver aqueles que, directamente, derivam do acto unilateral. Destarte, não
serão, por ex., autónomos os actos unilaterais que (apenas) se emitem em virtude da
prévia conclusão de um tratado. É, inter alia, o caso da ratificação, da reserva, da
adesão, da denúncia, etc.. Os respectivos efeitos jurídicos consistem, afinal, na mera
concretização de uma convenção internacional, pelo que a validade de tais actos
haverá de depender da sua compatibilidade ou conformidade com essa convenção.
Diga-se, em abono da verdade, que nem sempre resulta fácil distinguir os actos
165

unilaterais (declarações dos Estados ou resoluções de organizações internacionais) que


se quedam circunscritos ao terreno das meras proclamações políticas daqueloutros
que, havendo já transposto a fronteira da normatividade, se revelam capazes de criar
direitos e obrigações (cfr., supra, o que, acerca da soft law, dissemos no ponto 9 do
capítulo introdutório). Talvez por isso alguns autores (v.g. K. MAREK, C. CHAUMONT,
M. BOS, etc.) relutem, ao arrepio da doutrina dominante, em inclui-los no elenco das
fontes formais do direito internacional.
Deste modo, além dos quatro requisitos supramencionados, será sempre
importante proceder a uma rigorosa interpretação das declarações unilaterais no
quadro da presuntiva intenção do seu autor, das circunstâncias que as rodearam, bem
como das reacções que suscitaram nos destinatários respectivos e, em geral, na
comunidade internacional, sendo que, em caso de dúvida, se afigura judicioso o
intérprete precatar-se, optando por atribuir-lhes um sentido e um alcance mais
restritivos (cfr., a propósito, o caso da fronteira entre Burkina Faso e Mali, julgado pelo
TIJ em 1986).
De notar, por último, que, pela sua própria natureza, os actos jurídicos
unilaterais dispensam a aceitação pelos destinatários. De resto, muitos deles não são
sequer actos receptícios, ou seja, não carecem de ser levados ao conhecimento de um
sujeito determinado, pelo que apenas reflexamente produzem efeitos na esfera
jurídica de terceiros.

2.2 – Exemplos de manifestações unilaterais de vontade admitidas pela


jurisprudência internacional

Não tem sido rígido ou fechado o entendimento dos tribunais internacionais,


em especial do TPJI e do TIJ, acerca dos actos jurídicos unilaterais. Pelo contrário, nas
suas decisões, espacejadas por várias décadas, têm dado mostras de uma flexibilidade
e de uma abertura assinaláveis, tanto no que diz respeito à proveniência desses actos,
como aos seus destinatários – caso estes sejam determináveis –, como, ainda, no que
toca ao respectivo regime formal.
Entre outras coisas, firmou-se, por ex., em sede jurisprudencial, poderem os
actos jurídicos unilaterais do Estado provir de diversas autoridades, designadamente,
do poder executivo ou do poder legislativo, não terem, necessariamente, de visar
166

outros Estados, admitindo-se como plausível que se dirijam à própria opinião pública
nacional, e poderem revestir-se de um formalismo mais ou menos solene ou
desataviado.
Considerou, v.g., o TPJI ter a Noruega ficado internacionalmente vinculada por
intermédio de uma simples declaração verbal, feita em 1919, pelo Ministro dos
Negócios Estrangeiros ao Embaixador dinamarquês. Idêntica conclusão haveria de
formular, mais tarde, o TIJ, com base em comportamentos tão díspares como, por ex.,
um comunicado do Presidente da República, uma conferência de imprensa conjunta de
um Chefe de Estado e de um Ministro da Defesa, um discurso de um Ministro dos
Negócios Estrangeiros na Assembleia Geral da ONU, uma nota da embaixada da França
na Nova Zelândia, etc. (exemplos de QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).
Bem ilustrativo é, a este respeito, o leading case dos Ensaios Nucleares, que
opôs a Austrália à França, havendo o TIJ admitido que as declarações (unilaterais) das
autoridades francesas (no caso, do Presidente da República e do Ministro dos Negócios
Estrangeiros), renunciando à realização futura de ensaios nucleares à superfície em
certas ilhas do Pacífico, operaram a vinculação internacional da França (cfr. MARIA
LUÍSA DUARTE).

Através destes exemplos – e muitos outros haveria –, se poderá compreender melhor a


particular sensibilidade que apresenta esta matéria e, por conseguinte, o enorme cuidado que, por via
de regra, os governantes e outros altos representantes dos países colocam nas suas declarações
públicas, por forma a evitarem, inadvertidamente, vincular o seu Estado no plano internacional.

2.3 - Tipologia

Coincidem os autores na identificação dos actos unilaterais do Estados


susceptíveis de exibir a característica da autonomia e, portanto, de valeram a se,
constituindo fonte de direito internacional. São eles o reconhecimento, o protesto, a
notificação, a promessa e a renúncia.
Atentemos no seu significado.
O reconhecimento é um acto através do qual um Estado comprova a existência
de certos factos, situações ou actos, aceitando que lhe sejam oponíveis (com os efeitos
jurídico-internacionais que deles derivam), em virtude de os reputar conformes ou de
harmonia com o direito internacional. Poderá, v.g., estar em causa o reconhecimento
167

de um novo Estado na comunidade internacional, o grau de efectividade de um


governo ou o reconhecimento de insurrectos e beligerantes, a representatividade de
um movimento de libertação nacional, a nacionalidade concedida a um indivíduo, a
alteração de uma fronteira, a oponibilidade de normas costumeiras de uma
organização internacional a Estados não membros, etc..
O protesto é um acto jurídico unilateral semelhante ao reconhecimento, mas
de sentido oposto; por isso soi dizer-se que constitui o contraponto negativo do
reconhecimento, De facto, por seu intermédio, o Estado exprime discordância face a
determinada situação ou acto jurídico por a (ou o) considerar em desconformidade
com o direito internacional, visando, com essa atitude, impedir que, no futuro, tal
situação (ou acto) lhe seja oponível e reservando-se a possibilidade de vir a impugná-la
(lo), se assim entender por bem ou lhe convier.
A notificação, por sua vez, serve para levar, oficialmente, ao conhecimento de
um terceiro um facto, uma situação ou um documento (AZEVEDO SOARES), daí
resultando certas consequências jurídicas (v.g, a notificação ao Secretário-Geral da
ONU da subscrição da cláusula facultativa de Jurisdição obrigatória, nos termos do
artigo 36.º, nº 2 do ETIJ, ficando, a partir de então, esse Estado vinculado à jurisdição
do Tribunal).
A promessa difere dos actos já referidos pela circunstância de se não reportar a
factos ou actos já existentes, mas sim a direitos novos que irão nascer em benefício de
um terceiro. Através, portanto, deste outro acto unilateral, o Estado compromete-se a
adoptar (ou a abster-se de adoptar), no futuro, determinado comportamento. Não o
fazendo, abre-se a possibilidade de, violando o princípio da boa-fé, incorrer em
responsabilidade internacional, o que atesta não se traduzir a promessa num acto
inócuo quanto ao seu alcance.
A renúncia, por último é um acto por meio do qual um Estado – autolimitando-
se – extingue ou abdica da titularidade de um direito, ou prescinde de exercê-lo (v.g., a
renúncia aos títulos de soberania sobre uma parcela de território). Ora, não se
podendo presumir as limitações à soberania (muito menos as autolimitações) as
renúncias devem ser expressas, jamais se podendo presumir.
168

3 – Actos jurídicos unilaterais das organizações internacionais

Com o crescente protagonismo das organizações internacionais na vida


internacional, têm ganho especial relevo, como se disse já, os actos unilaterais por elas
emitidos. Estes, porém, pouco apresentam em comum com os actos jurídicos
unilaterais do Estado.
De facto, os actos produzidos pelas organizações internacionais, obedecendo,
em primeira linha, ao disposto nas respectivas cartas constitutivas, consubstanciam
um direito derivado, assente numa lógica colegial, e reclamam um procedimento
escrito, em ordem a poderem produzir os seus efeitos. Inversamente, podem os actos
unilaterais do Estado provir de uma única autoridade (actos “desprocedimentalizados”)
e não têm, obrigatoriamente, de ser adoptados sob a forma escrita (J.
COMBACAU/S.SUR).

Apesar de a comunidade internacional se não reconduzir ao modelo de um Estado Mundial,


dotado de um poder legislativo institucionalizado e de um parlamento, à semelhança do que acontece
no plano interno (AZEVEDO SOARES), não falta quem veja no conjunto dos actos emanados pelos órgãos
de certas organizações internacionais (v.g., as resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de
Segurança da ONU), um arremedo de «legislação internacional» ou de um «poder quase legislativo» (M.
BEDJAOUI). A tese em apreço tem logrado curso, sobretudo, entre os novos Estados, saídos do
movimento da descolonização, que dispõem de uma ampla maioria no seio da Assembleia Geral da
ONU, mas haverá de reconhecer-se que só com boa vontade poderá sufragar-se um tal entendimento
das coisas.

3.1 – Variedade terminológica e tipologia

A regra em matéria de actos jurídicos unilaterais das organizações


internacionais é, lamentavelmente, a de uma certa confusão terminológica, quando
não – o que é pior – a de alguma ambiguidade conceitual.
Para esta situação concorrem os próprios tratados constitutivos que, além de,
com frequência, não definirem o real alcance dos actos unilaterais susceptíveis de
serem adoptados pelas organizações, ainda promovem o laxismo terminológico, ao
autorizarem a emanação de actos diferentes dos expressamente tipificados.

Como afirma, MARIA LUÍSA DUARTE, a Carta das Nações Unidas constitui, a este propósito, um
dos exemplos mais eloquentes. Assim, por exemplo, preceitua o artigo 13.º que a Assembleia Geral
169

adopta “recomendações”, ao passo que, mais à frente, proclama o artigo 18.º que aquele órgão plenário
toma “decisões”. No que toca ao Conselho de Segurança, se os artigos 25.º e 27.º aludem às suas
“decisões”, estabelece o artigo 36.ºa possibilidade de ele “recomendar”…

A isto haverá que acrescentar o facto de a prática dos órgãos de determinadas


organizações internacionais – nomeadamente, da Assembleia Geral das Nações Unidas
– em nada contribuir para uma desejável clarificação, assistindo-se, amiúde, a uma
denominação sem qualquer critério dos actos unilaterais elaborados no seu seio
(QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Não é, assim, de estranhar que sejamos confrontados
com a adopção de actos (terminologicamente) tão díspares como resoluções,
declarações, decisões, pareceres consultivos, recomendações, sentenças, programas,
programas de acção, cartas, etc..

Sem embargo da mencionada variedade terminológica, olhando à substância


das coisas – que sempre deverá sobrepor-se ao mais puro nominalismo –, é de
considerar que o termo genérico resolução permite recobrir todos os actos unilaterais
dimanados das organizações internacionais, qualquer que seja a sua natureza, o seu
recorte jurídico e o seu alcance. Isto, naturalmente, sem prejuízo de, no que respeita,
aos actos de natureza jurisdicional, se apresentarem como mais adequadas as
designações específicas de sentenças, acórdãos ou julgamentos (J. COMBACAU/S.
SUR).
Mas, não sendo todas as resoluções idênticas em termos materiais ou
substantivos, importa que, em função da respectiva natureza e objectivos, as
classifiquemos como decisões, recomendações ou pareceres.
As decisões consistem em actos unilaterais de autoridade das organizações
internacionais que impõem um certo comportamento aos destinatários. São, portanto,
juridicamente obrigatórios (vinculativos). É, por exemplo, o caso das decisões do
Conselho de Segurança da ONU, actuando ao abrigo do Capítulo VII da Carta. De notar,
contudo, que, ao lado dessas decisões dotadas de eficácia externa, podem,
igualmente, as organizações internacionais, com base nos tratados constitutivos ou
até, por vezes, num poder implícito de auto-organização, adoptar decisões, com
eficácia interna, destinadas, nomeadamente, a assegurar o bom funcionamento da
organização, a sua saúde financeira, a eficácia dos seus procedimentos, a nomear
170

funcionários, agentes ou juízes de órgãos jurisdicionais, a criar órgãos subsidiários, a


produzir regulamentos internos, regimentos, etc..
As recomendações, por seu turno, não possuem esse carácter vinculativo.
Através delas, limita-se a organização internacional a propor aos destinatários uma
determinada conduta. A designação jurídica coincide aqui, pois, com o sentido
corrente da expressão. O seu carácter meramente incitativo ou exortatório permite
afiançar que se trata, tão-somente, de actos de valor permissivo, conquanto, em regra,
criadores de uma situação jurídica nova. Sendo desprovidos de efeitos obrigatórios, a
sua hipotética inobservância não acarreta especiais consequências jurídicas. Ainda
assim, conforme assinalámos já, supra, ponto 9 da Introdução, aqueles sujeitos de
direito que, efectivamente, adoptarem o comportamento recomendado têm a garantia
de que não se tornarão incursos em responsabilidade internacional. As
recomendações podem dirigir-se, quer aos Estados (membros ou não membros da
organização), quer a outras organizações internacionais, quer mesmo a empresas ou a
particulares, dispondo de um valor moral (DÍEZ DE VELASCO) e de um impacto político
nada negligenciáveis. Acresce que um simples recomendação poderá contribuir para a
subsequente formação de um costume, traduzindo ou exprimindo uma opinio juris
acerca de determinado problema internacional. Pense-se, inter alia, nas
recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas (artigos 10.º e ss. da CNU).
Também os pareceres não constituem actos juridicamente obrigatórios. Como a
respectiva designação sugere, por seu intermédio limita-se a organização internacional
a emitir uma opinião sobre um assunto ou questão jurídica jurídica que lhe haja sido
suscitada (pensemos, por exemplo, nos pareceres consultivos do Tribunal Internacional
de Justiça, nos pareceres do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, nos pareceres do
Parlamento Europeu, etc.). Queda-se, pois, a organização em causa por essa pronúncia
opinativa acerca do problema levado à sua consideração, não chegando a propor a
adopção de qualquer comportamento, razão por que possuem os pareceres um
alcance ainda mais limitado do que as recomendações. Em geral, os pareceres podem
ser obrigatórios ou facultativos. No primeiro caso, é imposta a sua emissão; no
segundo, avaliar-se-á a conveniência (ou não) da sua solicitação. Por outro lado,
podem ser vinculativos ou não vinculativos, consoante tenham ou não de ser seguidas
as conclusões neles exaradas ou formuladas. Neste último caso, porém, como bem se
171

compreende, o “parecer” não o é verdadeiramente, convolando-se numa autêntica


decisão.

Problema que se coloca a respeito dos actos unilaterais das organizações


internacionais é o de saber se está sujeito a controlo ou sindicância o hipotético
desvalor (procedimental, formal ou substantivo) de que padeçam.
Em organizações internacionais de integração (supranacionais), como, v.g., a
União Europeia, tal controlo é exercido, centralizadamente, pelo Tribunal de Justiça da
União Europeia, através de mecanismos como o recurso de anulação ou a excepção de
ilegalidade (cfr., respectivamente, artigos 263.º e 277.º do TFUE) ou pelos tribunais dos
próprios Estados-membros, no âmbito de casos concretos submetidos à sua
apreciação (questões prejudiciais de invalidade – cfr. artigo 267.º do TFUE).
Já em organizações de cooperação (intergovernamentais), são bem mais
precárias as possibilidades de sindicância. O próprio Tribunal Internacional de Justiça,
não se coibiu, por exemplo, de proclamar uma presunção de regularidade ou validade
dos actos unilaterais adoptados por órgãos da ONU. Apenas uma flagrante contradição
com princípios de jus cogens poderá, em abstracto, levar o Tribunal a exercer algum
tipo de controlo, conquanto apenas no âmbito da sua competência consultiva, com as
limitações que lhe são inerentes (cfr, infra, Cap. IV).
Os tempos mais recentes – designadamente, a propósito de resoluções do
Conselho de Segurança que aplicam sanções a pessoas e/ou entidades suspeitas de
desenvolverem actividades ligadas ao terrorismo – têm, no entanto, sido pródigos em
novidades, surpreendendo-se decisões de tribunais internos, do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos e do Tribunal de Justiça da União Europeia que reconheceram aos
destinatários das aludidas resoluções do Conselho de Segurança o direito de recorrer a
um tribunal e de nele exercitarem a sua defesa, em face de medidas que reputem de
violadoras dos seus direitos fundamentais (MARIA LUÍSA DUARTE).

VI – A JURISPRUDÊNCIA E A DOUTRINA

Voltando ao artigo 38.º do ETIJ, observamos que, no parágrafo 1º, d), dessa
disposição se faz referência às decisões judiciais (jurisprudência) e aos ensinamentos
172

dos mais altamente qualificados publicistas das várias nações (doutrina) como meios
auxiliares para a determinação das regras de direito.
Reitera-se que nem a jurisprudência nem a doutrina são verdadeiras fontes –
em sentido formal –; daí que, para esta alínea d) se revele desapropriado o termo
«aplicará» (constante da parte inicial do preceito), que, na verdade, não é válido senão
para as fontes formais: essas sim o Tribunal poderá e deverá aplicar.
Com efeito, a jurisprudência e a doutrina não criam normas jurídicas; servem
apenas e tão só para provar a sua existência. Deste modo, o Tribunal Internacional de
Justiça aplica as regras convencionais, costumeiras, etc., socorrendo-se, em caso de
dúvida, da jurisprudência e da doutrina, em ordem a melhor descortinar tais regras
e/ou a precisar o seu conteúdo e a sua concreta intencionalidade, o que, como bem se
compreende, se reveste de especial importância no caso das normas consuetudinárias.
Adquire, assim, propósito qualificá-las como fontes auxiliares de direito internacional.
Importa ainda relevar que, dadas as características próprias da comunidade
internacional e, correlativamente, do direito que a esta se aplica, a jurisprudência e a
doutrina assumem neste ordenamento uma importância bem maior do que aquela
que possuem no direito interno.

Por jurisprudência deve entender-se o conjunto das decisões dos tribunais


internacionais (incluindo os arbitrais) e internos.
Escora-se a função de meio de determinação do direito que é reconhecida à
jurisprudência na autoridade própria das decisões jurisdicionais; autoridade essa
resultante das garantias de imparcialidade, objectividade e transparência,
genericamente, oferecidas pelos processos judiciais e pela própria composição das
jurisdições internacionais.

A composição do Tribunal Internacional de Justiça, por exemplo, assenta, como vimos já, na
representação dos principais tipos de civilização e sistemas jurídicos do mundo (artigo 9.º do ETIJ), o
que, a coberto de dúvida, cauciona a existência das sobreditas garantias que sempre devem rodear a
tomada de qualquer decisão judicial.

O prestígio das decisões judiciais pode, todavia, ficar algo abalado sempre que
se permite aos juízes ou árbitros a publicitação das suas discordâncias nos acórdãos,
com o risco óbvio de ser transmitida para o exterior – rectius, para os destinatários da
173

sentença – uma ideia, nada reconfortante, de divisão ou fractura num colectivo de


juízes (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Significa isto que, do ponto de vista da
mencionada autoridade e ulterior acatamento das decisões de um tribunal
internacional (e, diga-se, apenas deste ponto de vista), seria, quiçá, preferível, criar no
público em geral a sensação de que as mesmas são proferidas por unanimidade ou,
pelo menos, a de que não resultam do factor aleatório das simples maiorias
conjunturais…
O que é certo é que, nomeadamente no que diz respeito ao Tribunal
Internacional de Justiça, se faculta aos seus juízes a possibilidade de publicitarem os
respectivos dissentimentos, através da opinião individual e da opinião dissidente.

A opinião individual é a de um juiz que, concordando com o sentido da decisão (se fosse apenas
ele a decidir, teria decidido da mesma forma), discorda, todavia, da respectiva fundamentação, isto é,
dos motivos ou razões em que se baseou o Tribunal para chegar a tal veredicto. Através deste
expediente tem o juiz em causa a possibilidade de justificar a sua discordância, explicando, ao mesmo
tempo, por que razão aceita ou adere ao sentido da decisão que foi proferida.
A opinião dissidente (que vulgarmente se designa voto de vencido) é aquela que é exarada por
um juiz minoritário, que discorda do próprio sentido da decisão (sendo ele a decidir, teria decidido num
outro sentido).

Refira-se, a concluir este ponto, que se vem assistindo, nas últimas décadas, a
uma multiplicação das decisões judiciais, com a consequência evidente de serem cada
vez em maior número os precedentes que, mais tarde, é possível invocar. Deste modo,
a uma jurisprudência internacional, dispersa, fragmentária e predominantemente
arbitral, foi, aos poucos, sucedendo um corpo homogéneo e sistematizado de
decisões, que, posteriormente, se revelam de inestimável préstimo para aqueles que
têm por missão aplicar o direito internacional – em especial, as normas costumeiras,
cuja existência ou conteúdo são, não raro, por demais controversos.

Por outro lado, ao falar-se em doutrina, no contexto específico dos meios de


determinação das normas de direito internacional, tem-se em vista o conjunto das
opiniões dos autores (jusinternacionalistas) acerca de problemas jurídicos
internacionais. Não obstante a sua relevância e o seu merecimento intrínseco, tais
juízos ou tomadas de posição não vinculam os sujeitos de direito, podendo, todavia,
condicionar a sua actuação.
174

Numa outra acepção, que nada tem a ver com a questão em apreço, doutrina significa a
posição de actores internacionais relevantes (Chefes de Estado, Chefes de Governo, etc.) sobre
determinados problemas políticos. Neste sentido se fala, por exemplo, em doutrina Monroe, Stimson,
Brejnev ou Bush. Apesar de poderem, por vezes, ter certas implicações jurídicas, o certo é que se situam
no terreno estritamente político, aí encontrando a sua razão de ser.

Menos decisivo do que no passado, o papel da doutrina continua a ser


importante no que respeita a dois vectores fundamentais: na determinação das
normas de direito positivo – maxime, as consuetudinárias, cujos precedentes carecem,
muitas vezes, de ser explicitados – e no contributo para a evolução futura do direito
internacional (desenvolvimento progressivo).

VII – A EQUIDADE

No parágrafo segundo do artigo 38.º do ETIJ prevê-se ainda a possibilidade


(excepcional) de o TIJ, mediante autorização das partes envolvidas nos litígios, decidir,
ex aequo et bono, isto é, segundo critérios de equidade.
Mas, em que consiste a equidade?
Não é, decerto, uma fonte de direito, visto não servir para criar normas
jurídicas. Trata-se, isso sim, de um conjunto de critérios de razoabilidade e bom senso,
propícios a solucionar idealmente os casos concretos, à luz do sentimento dominante
de justiça. Deste modo, a equidade desempenha uma função complementar ou de
«justiça correctiva» (JANIS), em relação às fontes de direito internacional.
Em abstracto, pode a equidade visar três objectivos distintos, assinalados por
GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS: atenuar a aplicação do Direito, sempre
que haja fundadas razões para acreditar que uma aplicação estrita das normas
jurídicas conduzirá a injustiças ou iniquidades (equidade secundum legem);
complementar o Direito aplicável, funcionando como regime subsidiário, no caso de
serem detectadas lacunas de regulamentação (equidade praeter legem); ou, ainda,
afastar o Direito, desde que as partes, expressamente, o prevejam (equidade contra
legem).
Pois bem, de entre os três objectivos alternativos que a equidade se destina a
alcançar, bem se poderá dizer que à equidade secundum legem sempre o juiz
internacional e, genericamente, o intérprete de qualquer norma jurídica deverá
175

recorrer, independentemente de qualquer autorização expressa nesse sentido, sob


pena de, a não proceder dessa forma, estar, à partida, a demitir-se de levar a cabo a
sua missão com a competência e a probidade exigíveis.
Já, porém, no que tange à equidade praeter legem e contra legem se afigura
indispensável uma habilitação clara e inequívoca conferida às partes litigantes.
Simplesmente, é nossa convicção não dever admitir-se o recurso à equidade contra
legem, no contexto do parágrafo segundo do artigo 38.º do ETIJ, quer por razões de
segurança jurídica, demais a mais num ordenamento com as características do
internacional, quer porque aceitar esse tipo de equidade conduziria, a nosso ver, a um
completo desvirtuamento da função jurisdicional. Será, pois, de rejeitar a atribuição de
tão amplos poderes ao Tribunal pelos Estados em litígio.
Vale isto por dizer que, em concreto, se apresenta como possível (e desejável) o
recurso à equidade secundum legem ou, mediante autorização expressa dos Estados
que pleiteiam no TIJ, à equidade prater legem. Cremos, portanto, que a esta última se
reporta, verdadeiramente, o parágrafo segundo do artigo 38.º.
176

CAPÍTULO III
RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO INTERNO

Sumário: I – Considerações preliminares. II – As soluções teóricas. 1 – Teses dualistas. 2 – Teses


monistas. 2.1 – Monismo de direito interno. 2.2 – Monismo de direito internacional. 2.3 – Posição
adoptada. III – Soluções positivas. 1 – Técnicas de incorporação. 2 – Contributo do Direito Comparado.
IV – Recepção do direito internacional na ordem jurídica portuguesa. V – Hierarquia entre normas
internacionais e internas.

Bibliografia principal: Antonio Cassese, Modern Constitutions and International Law, RCADI,
1985-III; Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, 4ª edição, Coimbra Editora, 1988;
Canelas de Castro, Portugal’s World Outlook in the Constitution of 1976, BFD, Vol. LXXI, Coimbra, 1995;
C. Heinrich Triepel, Völkerrecht und Landesrecht, Berlim, 1899; Cristina Queirós, As relações entre o
Direito da União e o Direito Constitucional interno dos Estados, RFDUP, 2006; D. Freitas do Amaral/Nuno
Piçarra, O Tratado de Lisboa e o princípio do primado do Direito da União Europeia: uma “evolução na
continuidade”, RDP, 2009; Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público – Conceito e Fontes,
Vol. I, Lex, 1998; Francisco Ferreira de Almeida, Relações entre o direito internacional e o direito interno
português, De Legibus, nº 1, 2013; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007; Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros,
Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Almedina, 1993; Hans Kelsen, Das Problem der
Souveränität und die Theorie des Völkerrechts, 1920; H. Tourard, L’internationalisation des constitutions
nationales, Paris 2000; J. da Silva Cunha, Direito Internacional Público – Introdução e Fontes, 5ª edição,
Almedina, 1991; J. Silva Cunha/Maria Assunção do Vale Pereira, Manual de Direito Internacional Público,
2ª edição, Almedina, 2004; Jonatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestelegal, 2020; Jorge
Bacelar Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª
edição, Almedina, 2015; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia,
2016; José Manuel Cardoso da Costa, «O Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das
Comunidades Europeias», in AB UNU AD OMNES. 75 Anos da Coimbra Editora – 1920-1995, Coimbra
Editora, 1998; Maria Luísa Duarte, Direito Internacional Público e Ordem Jurídica Global no Século XXI,
AAFDL, 2019; Rui Medeiros, Relações entre normas constantes de convenções internacionais e normas
legislativas na Constituição de 1976, O Direito, 1990; Rui Moura Ramos, «A convenção Europeia dos
Direitos do Homem. Sua Posição Face ao Ordenamento Jurídico Português», in Da Comunidade
Internacional e Do Seu Direito. Estudos de Direito Internacional Público e Relações Internacionais,
Coimbra Editora, 1996; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª edição, Coimbra Editora, 2014.

I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Não se contesta serem diferentes os procedimentos de criação e de aplicação


das normas jurídicas internacionais e internas. Partindo desta comprovação empírica,
177

várias perguntas nos assaltam o espírito.


Surgida uma norma no espaço internacional, e dada a obrigatoriedade de os
órgãos estaduais promoverem a sua aplicação no plano interno, de que forma será ela
aí recebida? E uma vez concretizada essa incorporação, quais as relações de hierarquia
(ou de preferência aplicativa) que se estabelecem entre a norma internacional e as
normas de direito interno? E que dizer, ainda, das contradições normativas ou
desconformidades, hipoteticamente existentes, entre uma norma internacional e uma
norma interna?
A resposta a estes problemas práticos dependerá de uma prévia tomada de
posição acerca de uma intrincada questão teórica, que se situa a montante e cuja
dilucidação, permitirá compreender as diversas soluções positivas consagradas nas
constituições dos Estados. Referimo-nos à querela doutrinária entre dualismo e
monismo.

II – SOLUÇÕES TEÓRICAS

As soluções teóricas, acerca do relacionamento entre os dois ordenamentos


jurídicos – o internacional e o interno ou estadual –, encontram-se, pois, nas teses
dualistas ou pluralistas e nas correntes monistas, sendo que estas últimas se cindiam
tradicionalmente no monismo de direito interno e no monismo de direito internacional.
Numa palavra, face à existência de duas ordens jurídicas, autores há que as
consideram absolutamente independentes uma da outra, a ponto de serem
necessárias normas específicas destinadas a regular as suas relações recíprocas
(dualismo), enquanto outros se apoiam antes na tese da essencial unidade axiológica
do mundo jurídico, cabendo então falar-se de um mesmo sistema (monismo).

1 – Teses dualistas

A teoria dualista tem as suas raízes na doutrina voluntarista da vereinbarung


ou vontade colectiva, à qual nos havíamos já referido. Foi inicialmente defendida por
H. TRIEPEL, que na sua obra Volkrecht und Landesrecht, de 1989, expôs as
coordenadas fundamentais do seu pensamento quanto ao assunto vertente.

Alguns anos mais tarde, Triepel viria a reafirmar a sua posição num curso ministrado na
Academia de Direito Internacional da Haia, publicado em 1923 com o título Les rapports entre le Droit
178

International e le Droit Interne. Outros autores secundariam, posteriormente, as suas ideias, casos, v.g.,
de ANZILOTTI – com a sua obra Il Diritto Internazionale nei giudizi interni, de 1905 – PERASSI, STRUPP,
etc.. Após um compreensível aggiornamento, a teoria dualista como que reverdeceu e continua a
exercer uma clara influência na doutrina italiana.

Atentemos, de forma sucinta, nos principais argumentos em que se apoiam as


teses dualistas.
Para os seus partidários, existiria uma separação radical entre o ordenamento
jurídico internacional e as ordens jurídicas internas, separação essa fundada numa
tríplice diferença: quanto à origem do direito positivo, pois que no direito interno ela
encontrar-se-ia na vontade singular do Estado, enquanto o direito internacional
proviria da vontade colectiva de vários Estados (vereinbarung); em matéria de sujeitos
das relações jurídicas, que seriam os indivíduos e as pessoas morais no direito interno
e os Estados no direito internacional; e, por último, no tocante à natureza jurídica de
ambos os ordenamentos, uma vez que o interno apresentaria uma estrutura de
subordinação, ao passo que o internacional seria essencialmente coordenador.
Esta linha clara de separação entre as duas ordens jurídicas produziria
consequências inarredáveis: por um lado, só poderiam as normas internacionais
produzir efeitos na esfera estadual depois de transformadas em direito interno; por
outro, em virtude de serem estranhos um ao outro, não seriam configuráveis
quaisquer conflitos de competência entre os dois sistemas; cada um deles regularia
relações distintas.
Que críticas podem dirigir-se à concepção dualista, formulada nos termos
acima explicitados?
A primeira prende-se com a circunstância de a vontade colectiva (vereinbarung)
ser apresentada como constituindo a origem e o fundamento de obrigatoriedade do
direito internacional. Trata-se esta, com efeito, de uma doutrina voluntarista, inspirada
numa ideia de soberania absoluta, há muito ultrapassada. Acresce que, mesmo dando
de barato que explica – e saliente-se que o não faz de forma aceitável – o fundamento
do tratado, não consegue explicar o fundamento do costume, visto que só ficcionando
a realidade poderá tal fundamento reconduzir-se a uma vontade colectiva.
A segunda crítica assenta no ilogismo subjacente a uma estrita
compartimentação entre os sujeitos de direito interno e os sujeitos de direito
179

internacional. É que facilmente se pode comprovar a existência de normas com


diferentes destinatários em ambos os ordenamentos. Assim, há já – e cada vez mais –
um número considerável de normas de direito internacional cujos destinatários
directos são pessoas físicas; como, reciprocamente, abundam as normas de direito
interno, v.g., a maior parte das que integram o direito público, que se dirigem aos
próprios Estados.
Em terceiro lugar, não é, igualmente, aceitável a asserção de que, para
relevarem na ordem interna, as normas internacionais necessitam sempre de um
qualquer acto de recepção ou de transformação. Para rebater esta ideia, basta que nos
detenhamos a examinar a forma como os tribunais internos aplicam o direito
internacional geral ou comum: desde que concretizado em disposições self-executing,
ele é aplicado directa e automaticamente (AZEVEDO SOARES). Mas o mesmo acontece
com outras normas internacionais dotadas de aplicabilidade directa, v.g., os
regulamentos da União Europeia, que atingem a esfera individual sem que as
autoridades estaduais se interponham.
Por último, hoje mais do que nunca, cai por terra o argumento de que
inexistem conflitos de competência entre os dois sistemas, em resultado de,
alegadamente, cada um deles regular relações distintas. Na verdade, num tempo de
tendencial internacionalização de todos os fenómenos, como é aquele em que
vivemos, assiste-se a uma crescente interpenetração das questões internas e
internacionais, por isso que susceptíveis, quase todas, de regulação por ambos os
ordenamentos jurídicos.

2 – Teses monistas

Como se observou acima, as teorias monistas repousam na premissa de que


todo o Direito – interno ou internacional – constitui uma unidade (um sistema único).
Não há, todavia, unanimidade entre os partidários das correntes monistas. Mais
exactamente, encontram-se eles divididos em dois grupos, consoante o primado é
atribuído ao direito interno (monismo de direito interno) ou ao direito internacional
(monismo de direito internacional)

.
180

2.1 – Monismo de direito interno

Esta tese, hoje de escasso relevo, assenta num voluntarismo extremo,


porquanto, sobrevalorizando a ordem interna, apresenta o direito internacional como
mero produto de uma autolimitação ou autovinculação dos Estados, isto é, como uma
espécie de direito estadual externo, que, no limite, se reduziria a uma declaração de
intenções sobre comportamentos futuros com incidência nas relações internacionais
(AZEVEDO SOARES), nada sucedendo no plano da responsabilidade internacional, caso
tais comportamentos acabassem por não se concretizar.
Defendida por autores como ZORN, WENZEL ou JELLINEK, a doutrina em apreço
acaba por negar a existência do direito internacional enquanto disciplina autónoma da
ciência jurídica, esquecendo, nomeadamente, que há normas internacionais cuja
vigência e aplicação no plano interno não dependem da vontade do Estado. É o que,
por exemplo, acontece com aquelas que integram a noção de direito internacional
geral ou comum, em particular as que possuam a natureza de jus cogens, ou com as
regras relativas a privilégios e imunidades diplomáticas; isto para já não falar da
impossibilidade de os Estados invocarem as disposições do seu direito interno com o
intuito de se furtarem ao cumprimento dos seus compromissos internacionais (cfr.
artigo 27.º da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969), o que,
mesmo nas situações de substituição revolucionária de governos, não deixará de ser
assim: o princípio da continuidade do Estado postula, efectivamente, a subsistência ou
manutenção das obrigações internacionais previamente assumidas pelo governo
deposto.
Por aqui se vê que esta variante das correntes monistas esbarra, na verdade,
em obstáculos de tomo, quer do ponto de vista doutrinal, quer no plano puramente
prático, que vivamente aconselham a sua rejeição.

2.2 – Monismo de direito internacional

Nos antípodas da anterior, situa-se a concepção antivoluntarista do monismo


com primado do direito internacional. Numa versão mais radical (KELSEN), defende-se
a homogeneidade da ordem jurídica, assentando, todavia, essa uniformidade no
suposto de que as normas internacionais se situam num plano superior às internas.
181

Qualquer contradição normativa redundaria na invalidade destas últimas, o que, em


bom rigor, apenas seria conjecturável caso, estruturalmente, a comunidade
internacional replicasse o modelo de um Estado federal.
Saliente-se, em todo o caso, que para os mais moderados, como, v.g.,
VERDROSS, a ordem internacional delimita o campo de actuação da ordem jurídica
interna, rectius do legislador interno. Este não fica, contudo, sujeito a uma constrição
total da sua liberdade conformadora; pelo contrário, ainda dispõe de considerável
margem de manobra. Já na sua versão mais radical (KELSEN), a corrente em apreço
aponta, com efeito, em qualquer caso, para a nulidade da norma interna que contrarie
a internacional.
Resulta do que acabámos de ver que, em boa verdade, a soberania se encontra
na comunidade internacional, aparecendo o Estado como uma entidade não soberana,
em termos de produção normativa, ou, pelo menos, com uma soberania
crescentemente entibiada ou esbatida. Será esta conclusão aceitável?
A relativização da majestas estadual constitui, efectivamente, um dado
irrecusável do momento presente. A globalização que caracteriza os tempos actuais
conduz, de modo inevitável, a uma diluição das prerrogativas tradicionalmente ínsitas
no conceito de soberania. Daí, no entanto, a prognosticarmos, o fim do Estado
nacional, a breve trecho, vai, certamente, uma grande distância. O que, por
conseguinte, recomenda não devermos, igualmente, sufragar a versão mais radical da
corrente ora sob apreciação. Os dados da realidade parecem, de resto, confortar a
bondade deste entendimento: só excepcionalmente o efeito directo de certas normas
internacionais determina o reconhecimento da ilegalidade e a consequente
invalidação das normas internas que as contrariem ou que com elas se apresentem
discrepantes, assim se demonstrando o alcance limitado do princípio do primado do
direito internacional (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

2.3 – Posição adoptada

Que dizer acerca desta controvérsia doutrinal?


Uma coisa temos por sem dúvida: na sua versão mais radical, nenhuma das
correntes expostas se poderá, verdadeiramente, acolher.
Deve, contudo, salientar-se que, de algumas décadas a esta parte, se vem
182

assistindo a um claro esbatimento da querela, propiciado pelo surgimento de formas


moderadas ou mitigadas de dualismo e monismo, com propósitos conciliatórios. Disto
mesmo nos davam conta autores como, v.g., LAUTERPACHT e, entre nós, AFONSO
QUEIRÓ, ou, em momento ulterior, PAUL REUTER. No essencial, convergem os mais
moderados na ideia de que a opção pelo dualismo ou pelo monismo, determinando,
embora, diferentes modos de recepção das normas internacionais, não contende, de
modo significativo, com os resultados práticos da respectiva vigência no plano interno.
Assentou-se, destarte, em que todos os Estados devem adequar o seu ordenamento
interno às obrigações internacionais que assumem, sendo certo que, no caso de
incumprimento desse dever, só excepcionalmente, como se disse – e sem prejuízo do
desencadeamento dos mecanismos próprios da responsabilidade internacional –, a
consequência jurídica de uma contradição normativa entre uma norma internacional e
uma norma interna será a da invalidade desta última (GONÇALVER PEREIRA/FAUSTO
DE QUADROS).
Afigura-se-nos, não obstante, ser a tese do monismo com primado do direito
internacional (na sua versão moderada) aquela que se revela mais consentânea com o
actual estádio de desenvolvimento das relações internacionais. E porquê? São,
fundamentalmente, duas as razões que justificam a nossa escolha.
Em primeiro lugar, mercê do número cada vez maior de normas de direito
internacional que são válidas no plano interno independentemente da vontade dos
Estados (H. MOSLER). Enquadram-se, por certo, nesta categoria as que fazem parte do
direito internacional geral ou comum, constituindo autêntica reserva de direito
internacional (AZEVEDO SOARES) e, de entre estas, sobretudo, aquelas que visam
tutelar os dois valores primaciais da comunidade internacional: a paz e a dignidade da
pessoa humana. Mas dela fazem parte, igualmente, as que emanam de organizações
internacionais do tipo da União Europeia e sejam dotadas de aplicabilidade directa.

A aplicabilidade directa na ordem interna dos Estados membros de algumas normas do Direito
da União Europeia representa um dos corolários do princípio do primado do direito europeu, princípio
este subjacente ao funcionamento de todo o sistema jurídico da União. Tal como vem sendo entendido,
quer pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quer pela doutrina, resulta o princípio
do primado de uma verdadeira imposição do próprio direito europeu e não, como se poderia pensar, de
183

uma concessão do direito interno dos Estados membros. Ora, bem é de ver que semelhante concepção
apenas poderá fundar-se numa teoria monista com primado do direito internacional.

Em segundo lugar – e a esta ideia havíamos já aludido –, pela circunstância de a


globalização que é própria do tempo que vivemos conduzir a uma redução do leque de
matérias que, tradicionalmente, faziam parte do chamado domínio reservado dos
Estados. Com efeito, se exceptuarmos aquelas que, ex rerum natura, estão
incindivelmente ligadas à jurisdição interna do Estado (como, v.g., as formas políticas
internas, a repartição de competências legislativas, o funcionamento dos tribunais, o
direito eleitoral, o regime dos trabalhadores da Administração Pública, etc.), vão,
actualmente, escasseando os domínios tão-somente relevantes in foro domestico e,
por isso, insusceptíveis de regulamentação internacional; com o que as directrizes que
emanam do direito das gentes reduzem, cada vez mais, o campo de actuação
autónoma do legislador interno, assim contribuindo para credibilizar o pressuposto
básico das teorias monistas: a unidade essencial do mundo jurídico.

III – SOLUÇÕES POSITIVAS

A opção pelo dualismo ou pelo monismo ou condiciona, evidentemente, as


soluções positivas, consagradas nas constituições estaduais, acerca da recepção do
direito internacional na ordem interna.
Na antecâmara da análise dos modos de incorporação dos vários tipos de
direito internacional na ordem jurídica portuguesa, aludiremos às técnicas de recepção
abstractamente concebíveis e, num segundo momento, àquelas que no Direito
Comparado tendem a preponderar.

1 – Técnicas de incorporação

Na esteira da generalidade dos autores, portugueses ou estrangeiros, pode


afirmar-se que são, basicamente, três os sistemas configuráveis de recepção do direito
internacional na ordem interna dos Estados. Quais são eles?
O primeiro, tributário de uma concepção monista – rectius, do monismo com
primado do direito internacional –, é aquele em que o Estado aceita, sem quaisquer
entraves, a vigência do direito internacional na ordem interna. Num tal caso,
estaremos perante uma recepção ou incorporação automática das normas
184

internacionais, sendo que estas, independentemente da sua origem formal, do seu


objecto e do seu conteúdo, vigoram internamente na qualidade de normas de direito
internacional e não enquanto normas internas, isto é, conservam a sua natureza
originária. Claro que mesmo neste sistema pode a Constituição impor leves restrições
– v.g., a condictio juris da publicação ou outras condições de eficácia – à imediata
vigência interna de certas normas de direito internacional. É o que, designadamente,
sucede, no caso português, relativamente às convenções internacionais, como
veremos adiante. Tais requisitos de eficácia não desfiguram, porém, o carácter
automático da recepção.
O segundo sistema pensável, inspirado no dualismo, é aquele em que, bem ao
invés, o Estado se “opõe” à vigência do direito internacional na ordem interna; daí que
a Constituição exija que o legislador ordinário reproduza a norma internacional através
de um acto normativo da sua competência, designando-se esse procedimento por
técnica da transformação. Desta feita, as normas internacionais perdem, portanto,
essa qualidade, passando a vigorar na ordem estadual como normas de direito interno.
Isto sem embargo de, v.g., em matéria de interpretação ou de integração das suas
lacunas ser mister lançar mão dos critérios próprios do direito internacional. Importa
realmente não olvidar que, muito embora “travestidas” por uma roupagem formal de
direito interno, essas normas foram, na origem, normas internacionais.

Refira-se que, em bom rigor, pode a transformação ser explícita ou implícita. No primeiro caso,
exige-se, de facto, da parte do legislador ordinário, a adopção de um acto normativo expresso, que tem
a virtualidade de converter a norma internacional em norma interna, permitindo que na ordem estadual
possa ela produzir os seus efeitos. Já a transformação implícita pressupõe que previamente se assente
em que, do procedimento de conclusão da norma internacional, façam parte determinados actos –
diríamos, quase legislativos – dos órgão estaduais que têm por efeito conferir eficácia interna àquela
norma.

Por fim, o terceiro sistema admissível apresenta uma natureza híbrida ou mista,
assentando numa distinção entre as normas surgidas no espaço internacional, em
função do respectivo conteúdo. Assim, as normas internacionais com uma
determinada natureza ou respeitantes a certas matérias (v.g., as de direito
internacional geral ou comum) vigoram automaticamente no plano interno; as demais,
com uma natureza ou um conteúdo diversos (v.g., as de direito internacional
185

particular) só mediante um acto de transformação adquirem relevância internamente.


Denomina-se este sistema, duplamente influenciado pelo monismo e pelo dualismo,
cujos pressupostos visa conjugar, de recepção semi-plena.

2 – Contributo do Direito Comparado

Antes de nos debruçarmos sobre o modo de recepção do direito internacional


na ordem jurídica portuguesa, convirá fazer um breve excurso por alguns direitos
estrangeiros, a fim de dispormos de uma panorâmica geral dos mais utilizados
sistemas de incorporação das normas de direito internacional no plano interno.

No direito alemão, vigora o sistema da recepção automática para o direito


internacional geral ou comum, cujos princípios prevalecem sobre as leis, criando
directamente direitos e deveres para os habitantes do território federal.
Quanto ao direito internacional convencional (particular), o respectivo
procedimento interno de conclusão é equiparado ao procedimento legislativo, pois
que se exige a intervenção dos órgãos competentes da legislação federal, mediante a
adopção de uma lei interna. Trata-se, por conseguinte, de um sistema (dualista) de
transformação.

No direito brasileiro, a Constituição Federal não faz expressa referência à


recepção do direito internacional geral ou comum. Diga-se, no entanto, que a Emenda
Constitucional nº 45/2004, prevendo que os tratados sobre direitos humanos que
forem aprovados, em dois turnos, em cada Casa do Congresso Nacional, por três
quintos dos votos dos membros respectivos, serão equivalentes às emendas
constitucionais, significa que a influência do monismo de direito internacional se vai
fazendo sentir, conquanto ainda ao jeito de um pálido tremeluzir.
Relativamente aos demais tratados ou convenções internacionais, compete ao
Presidente da República celebrá-los, após o que serão aprovados pelo Congresso
Nacional através de decreto legislativo. Voltam, posteriormente ao poder executivo
(Presidente) para ratificação. Significa isto que se verifica uma recepção por
transformação, não sendo, portanto, de admirar que, afora os aludidos instrumentos
convencionais que possuam dignidade formalmente constitucional, a generalidade dos
tratados tenha um valor ou posição hierárquica paritários com a legislação ordinária, o
186

que, no tocante ao seu relacionamento, propicia a aplicação da máxima lex posterior


priori derrogat (a lei posterior prevalece sobre a lei anterior) ou, se for o caso, o
critério da especialidade: lex specialis derrogat legi generali (a lei especial derroga a lei
geral).

No direito espanhol, as normas e princípios de direito internacional geral ou


comum beneficiam, igualmente, de uma incorporação automática na ordem interna.
Apesar de, a esse respeito, o direito constitucional ser omisso, tanto a jurisprudência
como a doutrina se acham irmanadas no entendimento de que aquele tipo de direito
internacional faz, implicitamente, parte integrante do ordenamento jurídico espanhol.
Também para os tratados se consagra uma recepção automática, sem embargo
de, para aqueles que assumam maior relevância política, se exigir, antes da vinculação
internacional, uma autorização prévia das Cortes Gerais, autorização essa que, quando
em causa esteja a participação de Espanha em organizações de tipo supranacional,
deverá revestir a forma de lei orgânica. A vigência interna estará ainda dependente da
publicação no Boletín Oficial del Estado.

No direito francês, não se contesta, igualmente, a vigência incondicionada


(recepção automática) do direito internacional consuetudinário geral. Uma vez mais,
apesar de a Constituição lhe não fazer expressa referência, é essa a solução para que
convergem a jurisprudência e a doutrina.
No que se refere aos tratados, aplica-se, em geral, à semelhança do que sucede
no direito espanhol, o sistema recepção automática, submetida apenas à condictio
juris da publicação. De notar, contudo, que, para certo tipo de convenções
internacionais (v.g., tratados de paz, os que envolvam obrigações financeiras, os que
modifiquem disposições de natureza legislativa, os que tenham por objecto o estado
das pessoas, os que impliquem cessões ou anexações territoriais, etc.), se exige a
aprovação ou ratificação por intermédio de lei parlamentar. Neste caso, porém, a
votação dos deputados incide sobre as disposições do projecto de lei de autorização, e
não sobre as normas do tratado propriamente ditas. Diga-se, a talho de foice, que aos
tratados ou acordos regularmente ratificados ou aprovados se atribui, sob condição de
reciprocidade de aplicação pela outra ou outras partes, um valor superior ao das leis.
187

No direito italiano, prevê a Constituição a adaptação (submissão) do


ordenamento jurídico italiano às normas de direito internacional geralmente
reconhecidas. Tal adaptação é, a um tempo, directa, automática, permanente,
contínua e completa (SERENI). Trata-se, por conseguinte, de um sistema de recepção
automática, que a doutrina não hesita em qualificar desse modo, não obstante a forte
influência que em Itália, como se disse já, continuam a exercer as correntes dualistas.
No tocante ao direito convencional, compete ao Presidente da República
ratificar os tratados internacionais, requerendo, quando necessário, a autorização das
Câmaras (Câmara dos Deputados e Senado da República), sendo esta concedida sob a
forma de lei.

No direito norte-americano, descontada a possibilidade de celebração de


executive agreements, o poder de vinculação internacional dos Estados Unidos aos
tratados internacionais é repartido entre o Presidente e o Senado (por maioria de 2/3
dos votos), consagrando a Constituição uma cláusula geral de recepção automática.
Quanto ao direito internacional geral, deve entender-se – como, de resto,
reiteradamente, o fazem a jurisprudência e a doutrina – que, a fortiori, se encontra
abrangido por esse mesmo sistema de recepção. Preza a verdade afirmar, todavia, que
se assiste hoje a uma certa resistência na aplicação automática do direito
consuetudinário internacional no direito interno norte-americano (JÓNATAS
MACHADO).

Por fim, no direito do Reino Unido, a recepção automática do direito


internacional geral ou comum resulta de um precedente já antigo, traduzível pela
conhecida formulação de W. BLACKSTONE: «International Law is part of the Law of the
Land». A constituição não escrita do Reino Unido considera, portanto, o direito
consuetudinário geral como parte integrante do direito interno, dispensando-se
qualquer acto formal de recepção.
No que se refere aos tratados (direito internacional particular), vigora, no
entanto o sistema da transformação, cuja consagração se afeiçoa à divisão interna de
poderes entre a Coroa (detentora do treaty-making power, materializado na
competência para a conclusão e ratificação das convenções internacionais) e o
188

Parlamento. Assim, só poderá um tratado vigorar internamente mediante a aprovação


de uma lei de autorização (Act of Parliament), por parte deste órgão (IAN BROWNLIE).

Que conclusões formular a partir do exposto?


Certamente a de que, no que respeita ao direito internacional geral ou comum,
a prática internacional mais recente (e muitos outros exemplos haveria) parece
legitimar a conclusão de que é o sistema de recepção automática aquele que hoje
obtém acolhimento na generalidade das Constituições dos Estados. E mesmo nos
casos em que a Lei Fundamental é omissa, o “tandem” jurisprudência/doutrina
encarrega-se de, prontamente, coonestar tal solução.
Quanto ao direito internacional particular, a tendência não é tão clara,
subsistindo ainda a recepção por transformação em alguns ordenamentos jurídicos.
Ainda assim, é justo reconhecer que, por vezes, a requestada intervenção do legislador
não se destina propriamente a reproduzir a norma internacional através de um acto da
sua competência, mas, tão-apenas, a autorizar uma ratificação subsequente.
Significa isto que são as correntes monistas com primado do direito
internacional aquelas que, actualmente, mais parecem inspirar as soluções positivas, o
que vai de encontro à nossa tomada de posição acerca da controvérsia
dualismo/monismo, acima expendida,

IV – RECEPÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL NA ORDEM JURÍDICA


PORTUGUESA

Cumpre, de seguida, examinar a questão de que nos temos vindo a ocupar à luz
das disposições pertinentes do ordenamento jurídico português.
Ora, logo no artigo 7.º da CRP se enunciam os princípios fundamentais pelos
quais se rege o Estado Português nas relações internacionais, bem como a filosofia que
a estas deve presidir. E isto, quer no plano universal, quer no plano regional, em
particular atendendo à qualidade de Estado membro da União Europeia.
É, todavia, o artigo 8.º que regula o modo de recepção do direito internacional
na ordem jurídica portuguesa, razão por que a este iremos dedicar as considerações
subsequentes.

Reza assim esse preceito constitucional:


189

1 – As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante


do direito português.
2 – As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas
vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o
Estado Português.
3 – As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que
Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos
respectivos tratados constitutivos.
4 – As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas
instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos
definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito
democrático.

Deve, desde já, salientar-se que assenta em alguns equívocos a redacção desta disposição
constitucional. Com efeito, não resulta claramente perceptível o critério fundamental que presidiu à
elaboração da norma em apreço. Terá sido o da eficácia subjectiva (geral ou particular) das normas de
direito internacional, o do tipo de fonte de direito internacional (costume, convenção ou acto unilateral)
que revela essas normas ou um outro, resultante da conjugação dos dois primeiros (CANELAS DE
CASTRO)?
Em nosso entender, o legislador constituinte terá pretendido referir-se a três distintas
categorias de direito internacional, ainda na formulação do preceito não haja logrado os seus intentos,
Que categorias são essas? O direito internacional geral ou comum (artigo 8.º, nº 1), o direito
internacional particular (artigo 8.º, nº 2) e o direito de organizações internacionais (em especial, ainda
que não apenas, o Direito da União Europeia (artigo 8.º nº 3). Mais tarde, acerca da recepção e da
posição hierárquica deste último, viria a ser acrescentado um nº 4, de cuja interpretação nos
ocuparemos mais à frente.
Simplesmente, quanto ao nº 1, parece ter sido desacautelada a possibilidade de em causa
estarem normas convencionais (universais ou para-universais) de direito internacional geral ou comum.
De facto, conquanto as mais das vezes assim suceda, não é obrigatório que esse direito provenha de
fonte consuetudinária.
Em sentido inverso, desconsiderou-se, no nº 2, a hipótese de o direito internacional particular
poder ter origem na fonte costumeira (costumes regionais e locais), havendo-se, erradamente, partido
do princípio de que é, necessariamente, convencional.
Esta dupla circunstância coloca evidentes problemas interpretativas que, de um modo ou de
outro, a doutrina tem procurado superar.
E também a respeito dos números 3 e 4 várias dificuldades se erigem, recomendando que,
numa futura revisão da CRP, seja repensado e devidamente reformulado o preceito em análise.
190

- Direito internacional geral ou comum – artigo 8.º, nº 1

É pacífico na doutrina portuguesa que, relativamente, ao direito internacional


geral ou comum, o artigo 8.º, nº 1, da Constituição consagra uma cláusula geral de
recepção automática. De facto, outra coisa se não pode depreender da formulação
«…fazem parte integrante do direito português».
Se, portanto, como outrora sentenciara W. BLACKSTONE, esse tipo de direito
internacional “is part of the law of the land”, não se exige qualquer acto formal de
recepção ou incorporação (v.g., aceitação, aprovação, etc.), podendo (e devendo),
nomeadamente as entidades públicas e os operadores judiciários proceder à sua
aplicação imediata (JÓNATAS MACHADO), com o sentido que o direito internacional
lhe atribui (MARIA LUÍSA DUARTE).
Mas que tipo de normas ou princípios integram a noção de direito internacional
geral ou comum? Já o sabemos (cfr., supra, o ponto 3 da Introdução). Trata-se de um
acervo de normas que podem reclamar-se de vinculação relativamente à generalidade
dos Estados (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA), assumindo, nesse sentido, a
natureza de uma espécie de «direito constitucional internacional». É, designadamente,
o caso das normas de costume geral (algumas delas, de natureza imperativa ou jus
cogens), os tratados universais ou quase universais, justamente aceites como direito
internacional geral (v.g, a Carta das Nações Unidas, a Convenção sobre o Genocídio, os
Pactos Internacionais sobre direitos humanos, etc.), e, ainda, se já assimilados pelo
direito internacional nos termos supra-expendidos (Cap. II), os próprios princípios
gerais de direito.
De estranhar seria, pois, que para esta categoria de direito internacional,
atenta a sua natureza, se houvesse consagrado outra técnica de recepção na ordem
jurídica portuguesa que não a da recepção automática ou plena. A incongruente
arquitectura normativa do artigo 8.º da CRP coloca, no entanto, um problema: quid
juris, no que toca à recepção em Portugal de convenções internacionais cujas normas
devam considerar-se como fazendo parte do direito internacional geral ou comum?
Não havendo, aparentemente, o legislador constituinte equacionado esta
possibilidade, parece não haver margem para isentar esse tipo de convenções
internacionais do procedimento interno de conclusão a que se reporta o nº 2 do artigo
191

8.º, o qual, inter alia, abrange os actos de aprovação, de ratificação (no caso dos
tratados solenes) e de publicação no Diário da República. Exigências estas plenamente
cabidas para o direito internacional convencional particular, mas cujo cumprimento,
verdadeiramente, se dispensaria para os tratados que possuam a natureza de direito
internacional geral. Também estes, por conseguinte, fazendo, em bom rigor, parte
integrante do direito português, nos termos do estipulado pelo artigo 8.º, nº 1,
deveriam aí ter sido, expressamente, contemplados. Bastaria, para tanto, que, mais
avisadamente, nesse preceito o legislador constituinte tivesse aludido às normas e aos
princípios consuetudinários ou convencionais, de direito internacional geral ou comum.

- Direito internacional particular (artigo 8.º, nº 2)

Para as normas constantes de convenções internacionais, enveredou,


igualmente, a CRP pelo sistema da recepção automática, ainda que, desta feita,
condicionada.

Recordemos que a nossa Constituição adopta a designação genérica de convenções


internacionais, englobando estas, em rigor, dois tipos distintos de instrumentos normativos, a saber, os
tratados solenes (que carecem de ratificação) e os acordos em forma simplificada (que dela não
necessitam). Na doutrina e na prática diplomática, contudo, os termos tratado e convenção são, em
geral, considerados sinónimos (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Isto sem embargo de
outras denominações serem também, por vezes, utilizadas: v.g., acordos, cartas, pactos, protocolos, etc.
(GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA).

Porquê uma recepção automática? Porque não se exige que o legislador


português (Assembleia da República ou Governo) reproduza as convenções
internacionais através de um acto da sua competência (lei ou decreto-lei). As normas
delas constantes vigorarão em Portugal enquanto normas de direito internacional,
conservando, portanto, essa sua natureza originária. Não são, pois, transformadas em
direito interno.
E porquê uma recepção condicionada? Na medida em que a CRP impõe que
sejam as convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas (na
verdade, aprovadas terão de ser todas elas, ao passo que a ratificação, como se sabe,
só para os tratados solenes é requerida) e, bem assim, publicadas oficialmente no
Diário da República. Tais condições (a aprovação, a ratificação e a publicação), insiste-
192

se, não desvirtuam a natureza automática ou plena da recepção, constituindo meros


requisitos de eficácia (CANELAS DE CASTRO), quer dizer, requisitos que, uma vez
preenchidos, desembargam a sua operatividade interna (a produção dos seus efeitos).
Acresce ainda que, na parte final do nº 2 do artigo 8.º, se preceitua que as
convenções internacionais vigorarão na ordem interna enquanto vincularem
internacionalmente o Estado português. Que significado devemos atribuir a este
inciso?
Um duplo significado. Vejamos porquê.
Por um lado, só poderá uma convenção internacional iniciar a sua vigência na
ordem interna a partir do momento em que entra em vigor na ordem internacional.
Deste modo, o simples facto de um tratado haver sido aprovado, ratificado e publicado
em Portugal não constitui garantia bastante da sua vigência interna, pois pode muito
bem suceder que não tenha sido ainda atingido o número mínimo de ratificações que
esse tratado exige para a respectiva entrada em vigor no ordenamento jurídico
internacional. Num tal caso, como observam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA,
falta o pressuposto essencial da recepção, qual seja o da existência da própria norma
internacional a ser recebida… Vale isto por dizer que a aprovação, a ratificação e a
publicação podem, em determinados casos, ser condições necessárias (sê-lo-ão
sempre), mas não suficientes para a vigência interna de uma convenção internacional.
Por outro lado, e inversamente, se por qualquer razão, na ordem externa,
deixarem as convenções internacionais de produzir os efeitos jurídicos a que tendem,
isto é, deixarem de valer ou de ter eficácia (v.g., em virtude de denúncia, caducidade,
etc.), cessará também, automaticamente, a sua relevância (vigência) interna.
Resulta do exposto que, entre nós, cumpridas que estejam as condições acima
enunciadas, nada obsta a que o juiz português aplique directamente, enquanto fonte
imediata de direito interno, as normas constantes de convenções internacionais, desde
que consubstanciadas em disposições self-executing, quer dizer, normas que não
reclamem qualquer intervenção – internacional ou interna – destinada à sua
«regulamentação».

Problema suscitado pelo artigo 8.º nº 2, da CRP, diz respeito ao modo de


193

inserção, no plano interno, dos costumes regionais e locais (bilaterais) – também


direito internacional particular, mas ao qual nenhuma menção se faz naquele preceito
constitucional.
De que forma resolver essa questão controvertida?
Alguns autores, partindo do critério da fonte e não da eficácia (geral ou
particular) das normas de direito internacional (cfr. o que, sobre isso, dissemos mais
acima, no início deste ponto IV), situam, a nosso ver erradamente, o problema no nº 1
do artigo 8.º da CRP.
Sustentava, por exemplo, SILVA CUNHA que, em matéria de relações
internacionais, o Estado português se rege pelo princípio da independência nacional,
sendo que esta constitui a projecção da soberania na ordem externa. Ora, na falta de
preceito constitucional expresso, restringir, por algum meio, aquele princípio,
redundaria numa inaceitável (constitucionalmente precludida) autolimitação dessa
majestas. Assim, consagrando o artigo 8.º da CRP uma excepção ao princípio segundo
o qual cabe, em exclusivo, ao Estado português a criação do direito destinado a vigorar
no seu território, deveria ser interpretado restritivamente. Donde, não estando
directamente contemplados os costumes regionais ou locais no artigo 8.º, nº 1
(supondo que, com base no critério da fonte, somente aí teria cabimento aludir à
recepção do direito consuetudinário), não se poderia, em conformidade, admitir a sua
vigência automática em Portugal. Bem ao invés, deveriam tais costumes ser
transformados em direito interno, consagrando, portanto, o artigo 8.º, nº 1, uma
cláusula de recepção semi-plena.
MOURA RAMOS, GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, MARIA LUÍSA
DUARTE, etc., igualmente atidos ao critério da fonte, propugnam solução diversa.
Critica aquele primeiro autor a noção de soberania que subjaz á posição de SILVA
CUNHA. Na senda da doutrina largamente dominante, considera como sendo de
recepção automática a cláusula do artigo 8.º, nº 1, fazendo, por isso, uma outra
interpretação da norma em apreço, no que aliás viria a ser secundado por outros
doutrinadores: encontrando-se nela consagrada (ou pressuposta) a prevalência do
direito internacional geral ou comum relativamente ao direito interno, no seu espírito
se deveria incluir a previsão de todas as normas consuetudinárias, incluindo as de
âmbito regional ou local, pelo que também estas estariam abrangidas pelo sistema de
194

recepção automática
AZEVEDO SOARES, por seu turno, respaldado num outro critério, que se supõe
ter sido o do legislador constituinte (o da eficácia geral ou particular das normas
internacionais), propende para entendimento distinto. Sublinha (segundo cremos, bem
– cfr., supra) que o artigo 8.º distingue três grandes categorias de direito internacional:
o direito internacional geral (nº 1), o direito internacional particular – a despeito de só
as convenções internacionais haverem sido tomadas em consideração – (nº 2) e o
direito das organizações internacionais (nº 3 e agora também nº 4). De sorte que
apenas pela via da interpretação extensiva se logrará resolver o problema da
incorporação dos costumes regionais e locais no nosso ordenamento jurídico. Em que
termos? Caberia distinguir os costumes regionais ou locais em cuja formação Portugal
tivesse participado (v.g., um costume da Europa Ocidental) daqueles a que o nosso
país fosse alheio (v.g., um costume da América Latina). Os primeiros, inserir-se-iam
através da recepção automática prevista no artigo 8.º, nº 1. De facto, uma
interpretação extensiva deste preceito permitiria considerá-los como gerais perante os
Estados por eles vinculados. Os segundos, pelo contrário, só mediante uma declaração
de aceitação ou um acto de reconhecimento expressos, constantes de um instrumento
internacional, poderiam vincular o Estado português. Quer dizer: somente através da
cláusula do artigo 8.º, nº 2, fariam a sua inserção na ordem jurídica portuguesa. Sim,
porque do que então se trataria seria da celebração de um acordo ou convenção
internacional com os Estados já vinculados por essas normas costumeiras.
Que posição tomar perante esta divisão de opiniões?
É nossa convicção que, destinando-se o artigo 8.º, nº 2, a regular a
incorporação do direito internacional particular na ordem jurídica portuguesa, nele se
deveria ter feito referência aos costumes regionais e locais (bilaterais); e não no nº 1,
que – já o frisámos – cura do direito internacional geral ou comum. A nossa
Constituição é, todavia, omissa a esse respeito, o que parece conduzir a um
perturbante impasse. Sucede, porém, como acertadamente salientam GONÇALVES
PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, que, mesmo não mencionado o direito
consuetudinário particular em qualquer dos números do artigo 8.º, seria absurdo
concluir que esse direito não vigora em Portugal, muito embora possa vincular
internacionalmente o Estado português…
195

Deste modo, afigura-se-nos que o melhor caminho será o de alargar o alcance


da letra do artigo 8º, nº 1, através de uma interpretação extensiva, recorrendo, em
especial, aos elementos sistemático e teleológico. Haverá, na verdade, de convir-se
que, atenta a natureza intrínseca das normas costumeiras regionais e locais, aquilo que
faz sentido é submetê-las ao regime de recepção automática incondicionado,
consagrado naquele primeiro número do artigo 8.º da CRP. Isto sem perder de vista
que se trata de direito internacional consuetudinário particular, não cabendo, por
conseguinte, ficcionar a sua transmutação (ainda que apenas para os Estados a ele
subordinados) em direito internacional geral (vide, a propósito, J. BACELAR GOUVEIA).
Já no que tange aos costumes regionais ou locais para cuja formação não haja
concorrido o Estado português, não se vislumbram razões para que a questão deva,
sequer, ser tomada em linha de conta. Com efeito, se, para que essas normas
costumeiras passem a vincular Portugal, se exige (como parece evidente) uma
declaração de aceitação inserta num instrumento normativo internacional; se exige,
por outras palavras, a conclusão de um acordo internacional com os Estados já
vinculados por tais normas, para quê, então, autonomizar essa hipótese? É que, num
tal caso, recairemos no âmbito da formação convencional do direito internacional,
ficando na sombra o da formação espontânea, que é próprio do processo costumeiro.
Entendemos, em suma, e neste ponto estamos de acordo com SILVA CUNHA,
que o problema da vigência dos costumes regionais e locais na nossa ordem jurídica só
assume relevo autónomo no que concerne àqueles em cuja criação haja intervindo o
Estado português (mediante a adopção de precedentes e a afirmação de uma
convicção de obrigatoriedade).

A respeito do assunto vertente, não colhem, em particular, o nosso aplauso as perspectivas dos
professores SILVA CUNHA e MOURA RAMOS.
A primeira, em virtude de assentar num conceito de soberania que, segundo cremos, não
quadra com o entendimento que hoje prepondera, quer no que toca ao modo com deve processar-se a
convivência entre Estados, numa comunidade que se pretende cada vez mais integrada, quer,
reflexamente, no que se refere à forma de relacionamento entre os ordenamentos jurídicos
internacional e interno. Isto leva o autor – pensamos – a fazer uma interpretação, a um tempo,
demasiado formalista e restritiva das disposições constitucionais relevantes.
A posição de MOURA RAMOS (não obstante a similitude do resultado prático a que conduz),
pelo facto – já assinalado – de ter subjacente uma distinção entre tipos de fontes formais de direito
196

internacional (costume e convenção) – compreendendo-se, dessarte, que o direito internacional geral


ou comum proviesse apenas da fonte costumeira –, quando, a nosso ver, terá sido outro o critério que
presidiu à feitura do artigo 8.º da CRP: o da categorização do direito das gentes em direito internacional
geral e direito internacional particular, facto este que implica dever dispensar-se uma atenção
preferencial à eficácia subjectiva das normas, independentemente da fonte de que dimanam. De resto,
esta mesma objecção poderá também ser feita à tese de SILVA CUNHA.

- Direito de organizações internacionais (artigo 8.º, nº 3 e 4)

O nº 3 do artigo 8º foi acrescentado à versão inicial do texto, aquando da


revisão constitucional de 1982, com a finalidade de adequar a nossa ordem jurídica à
previsível adesão de Portugal às, então, Comunidades Europeias – hoje União
Europeia.
De facto, na redacção originária do artigo 8.º não se encontrava arrimo para
sustentar a constitucionalidade da vigência interna de actos unilaterais emanados dos
órgãos de uma organização internacional supranacional. Daí a necessidade sentida de
se consagrar uma disposição de carácter genérico, na qual, designadamente, o direito
produzido pelas instituições europeias (direito europeu derivado) fosse juridicamente
enquadrável.
Qual o sistema adoptado para a recepção desse direito?
Pela leitura do referido nº 3 do artigo 8.º, imediatamente se conclui tratar-se,
uma vez mais, de um sistema de recepção automática, com a particularidade de se
afirmar que as normas em causa gozam de um regime de aplicabilidade directa.

Será, antes de mais, conveniente recordar que a aplicabilidade directa de uma norma de direito
internacional se reconduz a uma sua relevância na ordem interna, não intermediada pelos órgãos
estaduais, quer dizer, tal norma aplicar-se-á de forma automática ao Estado e aos indivíduos (que logo
se poderão prevalecer dos direitos nela enunciados) sem que seja necessário adoptar qualquer acto de
adaptação ou transposição para o ordenamento interno (v.g., a aprovação, a ratificação ou a
publicação). Advirta-se, porém, que aplicabilidade directa poderá não significar aplicabilidade imediata.
Será o caso de regulamentos da União Europeia que não contenham normas self-executing, e que,
portanto, reclamem a prática de actos internos de execução (cfr. artigo 291.º do TFUE)
Diferente é o conceito de efeito directo, que significa a susceptibilidade de uma norma – desde
que clara, precisa e incondicional e esgotado que esteja o prazo de transposição para o direito interno –
ser invocada pelos particulares junto dos órgãos jurisdicionais nacionais, quer contra o Estado (efeito
197

directo vertical), quer contra outros particulares (efeito directo horizontal), mesmo não beneficiando do
sobredito regime de aplicabilidade directa.

Acontece, porém, que o preceito do nº 3, de que agora curamos, estabelece


duas condições para que o direito das organizações internacionais de que Portugal seja
membro beneficie dessa aplicabilidade directa: impõe-se, por um lado, que as normas
em causa hajam sido adoptadas pelos órgãos competentes dessas organizações e, por
outro, que se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos o
mencionado regime de vigência (aplicação) automática.
Quanto a esta segunda condição, importa notar que o único acto normativo de
direito comunitário derivado a que o Tratado de Roma (tratado que instituiu a
Comunidade Económica Europeia), expressamente, atribuía aplicabilidade directa era o
regulamento (artigo 189.º e, mais tarde, 249.º) E, todavia, em resultado do contributo
emprestado, quer pela jurisprudência comunitária, quer pela doutrina, para a
clarificação do problema vertente, deixou de contestar-se que igualmente a outros
actos deveria ser reconhecido efeito directo – v.g., às decisões (de forma a ser
preservado o seu efeito útil ou a sua eficácia prática) e, até, às directivas (enunciadoras
de uma obrigação clara e incondicional) –, como desse atributo, ademais,
beneficiavam certas disposições dos tratados constitutivos das Comunidades ou de
convenções internacionais concluídas pela (hoje) União Europeia.
Dificuldades advinham, contudo, do facto de, na redacção originária do artigo
8.º, nº 3, se prever a aplicabilidade directa de normas emanadas de organizações
internacionais de que Portugal fosse membro, mas apenas desde que tal se
encontrasse expressamente estabelecido nos respectivos tratados constitutivos. Ora,
aquando da revisão constitucional de 1989 suprimiu-se o advérbio expressamente, o
que terá significado uma implícita aquiescência ao efeito directo, em Portugal, de
outros actos de direito derivado, para além dos regulamentos. Garantia-se, portanto,
nas palavras de MARIA LUÍSA DUARTE, a abertura da cláusula a actos normativos de
organizações internacionais cuja eficácia directa, no silêncio dos tratados constitutivos,
resultasse da prática institucional e, bem assim, do labor jurisprudencial (caso,
designadamente, das directivas).
198

A propósito das directivas, convirá esclarecer que, diferentemente dos regulamentos – os quais
possuem carácter geral e abstracto e são directamente aplicáveis –, se trata de actos de direito europeu
derivado que, nos termos do disposto no artigo 288.º do TFUE, vinculam os destinatários (Estados-
membros) quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais liberdade
quanto à forma e quanto aos meios. A directiva não é, portanto, directamente aplicável (embora, como
se disse, possa ter efeito directo), só estando os Estados, empresas e particulares autorizados a dela se
prevalecerem depois de transposta (não transformada…) para o plano interno. De acordo com o nº 8 do
artigo 112.º da CRP, a transposição é efectuada, conforme os casos, através de lei, decreto-lei ou
decreto legislativo regional, sendo que essa transposição deverá ocorrer no prazo fixado aquando da
adopção da directiva (em regra, dois anos). Caso um Estado membro não proceda à transposição de
uma directiva, expor-se-á a que a Comissão desencadeie um processo por infracção ou intente uma
acção junto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Já as decisões apresentam um carácter concreto
ou específico. Ex vi do mesmo artigo 288.º do TFUE, são (tal como os regulamentos) obrigatórias em
todos os seus elementos e, desde a adopção do Tratado de Lisboa, podem ou não designar destinatários
específicos (v.g., um ou vários Estados membros, uma ou várias empresas ou particulares). Se o fizerem,
apenas para estes serão obrigatórias.

Uma derradeira dúvida assalta o espírito do intérprete, em resultado de uma


aparente minudência: o facto de no nº 3 do artigo 8.º da CRP, ora sob apreciação, se
falar em normas e não em actos de organizações internacionais. Na verdade a
terminologia adoptada parece indiciar que os actos não normativos, designadamente
as decisões da União Europeia, cujos destinatários sejam sujeitos individualizados dos
Estados membros, se não acham abrangidos pelo aludido regime de incorporação do
direito europeu derivado. E, no entanto, conforme vimos, tanto a jurisprudência como
a doutrina se têm pronunciado no sentido da admissibilidade do efeito directo de
certas decisões, sem embargo de se não consubstanciarem em verdadeiras normas
(regras gerais e abstractas).
Como interpretar, pois, quanto ao ponto considerado, o nº 3 do artigo 8.º?
Afigura-se-nos que os interesses gerais da União Europeia, sobretudo no que
toca à desejável produção de um efeito uniforme dos actos por ela emanados em todo
o espeço integrado da União, justificam - determinam, até – que façamos uma
interpretação extensiva do termo normas, de sorte a permitir englobar também os
actos (CANELAS DE CASTRO), sem o que ficaria, por certo, comprometida a consecução
daquele desiderato.
199

Advirta-se que, embora acrescentado ao artigo 8º na antecâmara da adesão de


Portugal às Comunidades Europeias, esse nº 3 regula, na verdade, a recepção dos
actos emanados de quaisquer organizações internacionais de que o nosso Estado seja
membro. Assim é que será, igualmente, através dessa cláusula, que, por exemplo, se
inserem na ordem interna as resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia
Geral da ONU, as sentenças de tribunais internacionais, como o Tribunal Internacional
de Justiça ou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, etc..

O nº 4 do artigo 8.º, por seu turno, viria a ser introduzido na nossa Lei
fundamental aquando da sexta revisão constitucional, ocorrida em 2004 e, não
deixando de reiterar a recepção automática do direito da União Europeia – desta feita,
apenas deste (ao estipular que ele se aplicará internamente nos termos definidos pelo
direito da União) –, remete, sobretudo, para a posição que, à luz da teoria ou princípio
do primado, esse direito ocupa relativamente ao direito interno, incluindo o próprio
direito constitucional. Razão bastante para que analisemos esse preceito no âmbito do
ponto seguinte, dedicado ao problema da hierarquia entre normas internacionais e
internas.

Sublinhe-se, ainda assim, desde já, que se reporta o artigo 8,º, nº 4, quer ao direito europeu
originário, isto é, aquele que consta dos tratados que instituíram as Comunidades Europeias e a União
Europeia, bem como daqueles outros que, em momentos subsequentes, os alteraram, quer o direito
europeu derivado, quer dizer, aquele que emana das instituições (órgãos) da União Europeia e que deve
ter no direito originário o seu padrão material de validade.

V – HIERARQUIA ENTRE NORMAS INTERNACIONAIS E INTERNAS

Feita uma análise global do modo de inserção das normas internacionais na


ordem jurídica portuguesa, pode, em resumo, afirmar-se que a nossa Constituição,
partindo de uma concepção monista, se mostra francamente aberta ao direito
internacional e aos seus princípios fundamentais, que assume como seus. Uma leitura
conjugada dos artigos 7.º e 8.º não autoriza, efectivamente, outra conclusão.
Mas, no quadro das relações entre o direito internacional e o direito interno,
sobeja ainda o problema, aliás de suma importância, do valor hierárquico das normas
internacionais recebidas face às diversas fontes do direito português. Do seu adequado
esquadrinhamento dependerá também a sorte de uma questão conexa e não menos
200

relevante: a das eventuais discrepâncias e contradições de conteúdo (ou a da mera


aplicação sucessiva) entre normas oriundas dos dois ordenamentos.
E, no entanto, a Constituição da República Portuguesa não os resolve em
nenhuma das suas disposições, desde logo no artigo 8.º (excepto no seu nº 4,
introduzido em 2004, quanto ao direito da União Europeia), que seria o local
apropriado para o efeito.
Em consequência, são os subsídios da doutrina, ancorados nas regras da boa
hermenêutica jurídica, que vão permitindo apontar vias possíveis de solução para
questões essenciais que a nossa Lei Fundamental, incompreensivelmente, deixou em
aberto. A omissão da CRP causa tanto maior estranheza quanto difere das soluções
consagradas em algumas Constituições estrangeiras, sobretudo na alemã, cujo artigo
25.º, por exemplo, terá sido uma das principais fontes de inspiração do nosso artigo
8º, nº 1 (CANELAS DE CASTRO).
Procuremos, pois, equacionar e, se possível, solucionar os principais problemas
atinentes ao valor hierárquico das normas internacionais recebidas em Portugal, tendo
em conta as várias categorias de direito internacional contempladas no artigo 8.º da
Constituição.

- Direito internacional geral ou comum

Quase unanimemente, os autores atribuem ao direito internacional geral ou


comum um valor supralegal. Já no que toca à sua posição hierárquica em relação à CRP
as opiniões dividem-se: para alguns, aquele direito terá de ceder perante a Lei
Fundamental do Estado; para outros, o direito internacional geral ou comum tem valor
supraconstitucional. Que dizer então acerca das duas vertentes da questão acabadas
de enunciar?
No que respeita à legislação ordinária, parece, com efeito, não haver margem
para grandes hesitações. No artigo 8.º, nº 1, a Constituição considera as normas e os
princípios de direito internacional geral ou comum como fazendo parte integrante do
direito português (cfr., supra). Ora, que outro significado atribuir a esta expressão,
utilizada na parte final do preceito, senão o da primazia daquele tipo de direito
internacional relativamente ao direito interno infraconstitucional?
Se, por hipótese, uma lei ordinária pudesse contrariar um princípio imperativo
201

de direito internacional geral ou comum, este deixaria, ipso facto, de fazer parte
integrante do direito português, convertendo-se, por isso, em letra morta o artigo 8.º,
nº 1, da CRP, e, concomitantemente, aparecendo esvaziada de sentido a própria noção
de direito internacional geral ou comum – por definição, um direito dotado de
relevância erga omnes. Tratar-se-ia, por outras palavras, de uma contradictio in
adjectu.
E no que se refere à posição deste direito perante a Constituição? Entendemos
que idêntica conclusão haverá de formular-se. Na verdade, somos de parecer que as
razões apontadas para sustentar a supremacia do direito internacional geral sobre a
legislação ordinária valem, mutatis mutandis, para atestar a respectiva superioridade
em relação à própria Lei Fundamental.
É bom recordar que, no direito internacional geral ou comum, estão em causa
regras básicas da convivência interestadual; princípios que tutelam valores aos quais,
consensualmente (ou quase…) na comunidade internacional, se entendeu atribuir
especial relevo, encontrando-se, em virtude disso, solidamente radicados na
consciência jurídica geral. Como permitir, pois, que um Estado possa fixar normativos
constitucionais que derroguem aquele direito, justamente, comum a todos? Demais a
mais, apresentando alguns desses princípios a natureza de jus cogens – direito
imperativo limitador da soberania dos Estados e, portanto, do poder constituinte. O
que significa, afinal de contas, assumir-se o jus cogens como «pressuposto de
legitimidade da própria Constituição» (JÓNATAS MACHADO).
Mas, para além da razão de carácter lógico-dedutivo acabada de expor, uma
outra poderá invocar-se, com base no artigo 16.ºda CRP, em cujo número 2 se
preceitua que «os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do
Homem». Quer isto significar que, em matéria de direitos fundamentais, vigora um
princípio de interpretação em conformidade com a Declaração Universal (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA), o que, a nosso ver – assumindo esta a natureza de
direito internacional geral ou comum –, aponta, implicitamente, para a superioridade
hierárquica deste direito em relação à CRP. No mesmo sentido se pronunciam
também, v.g., JORGE MIRANDA (ainda que parcialmente), GONÇALVES
PEREIRE/FAUSTO DE QUADROS, JÓNATAS MACHADO e MARIA LUÍSA DUARTE.
202

Salienta esta última autora que a interpretação e a integração dos preceitos constitucionais
relativos aos direitos fundamentais se encontram sujeitas ao critério da conformidade com a DUDH,
devendo o regime nela previsto, se mais favorável, prevalecer sobre o consagrado na Constituição.
Tratar-se-á, por conseguinte, de acolher o critério do nível mais elevado de protecção, vertido no artigo
53.º da Carta dos Direito Fundamentais da União Europeia, à luz de um novo paradigma de
internormatividade comunicante.

Não obstante o que ficou dito, entendemos que a discussão em torno desta
problemática, embora porventura interessante de um ponto de vista meramente
teórico, é, em larga medida, desprovida de sentido útil ou de alcance prático. E
porquê? Pela razão simples de não ser crível que um Estado promulgue leis ou
consagre normas na sua constituição que contrariem os princípios de direito
internacional geral ou comum. Daí que, descontadas algumas situações excepcionais,
não sejam, verdadeiramente, nesta sede, configuráveis situações de colisão ou conflito
entre normas internas e internacionais.

MOTA DE CAMPOS E AZEVEDO SOARES parecem também inclinar-se para idêntico modo de
compreensão das coisas. Este último, à guisa de hipótese académica, interroga-se: «Se a nossa
Constituição, em vez do actual art. 7.º, consagrasse um artigo estipulando que Portugal se rege nas
relações internacionais pelos princípios da desigualdade entre Estados, da solução dos conflitos pela
força e da ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, qual o sentido ou valor a atribuir a tal
norma?».
Por certo nenhum Estado adoptará normas desse teor, ainda que a sua praxis política possa,
quotidianamente, desmentir as proclamações do seu direito.

- Direito internacional convencional (particular)

Irresolvido na CRP parece estar o problema das relações entre o direito


internacional pactício (particular) e o direito ordinário interno. Apesar disso, inclina-se,
maioritariamente, a doutrina para a tese do valor supralegal das convenções
internacionais, no que, aliás, tem sido acompanhada pela jurisprudência, sobretudo a
do Tribunal Constitucional.
Atentemos nas razões que podem ser mobilizadas para defender aquela
posição, que é também a nossa.
Como sublinham GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, bastaria que as
convenções internacionais não tivessem um valor inferior às leis para que – por
203

aplicação directa do princípio lex posterior priori derrogat – prevalecessem sobre as


normas constantes de uma lei interna anterior. Mas só reconhecendo-se-lhes um valor
supralegislativo é que elas poderão, ademais, prevalecer sobre as leis internas
posteriores, o que, em decorrência, originaria a invalidade ou ineficácia de uma lei
interna discrepante com uma norma de direito internacional convencional vigente na
nossa ordem jurídica.
Ora, esta segunda possibilidade parece encontrar decisivo apoio na letra do
artigo 8.º, nº 2, da CRP. Nele se diz, efectivamente, que as convenções internacionais
«…vigoram na ordem interna… enquanto vincularem internacionalmente o Estado
Português». Poderemos, então, logicamente inferir que, caso se permitisse a uma lei
interna alterar ou revogar, em momento subsequente, as normas de direito
internacional convencional já recebido, estas deixariam de vigorar na ordem interna,
apesar de continuarem a vincular internacionalmente o Estado português…. Quer
dizer, estar-se-ia a fazer tábua rasa do mencionado inciso constitucional.
Certo é, porém, que o argumento, na aparência inatacável, não convence
inteiramente alguns autores, designadamente os constitucionalistas supracitados.
Poder-se-ia, com efeito, interpretar num sentido algo diverso a expressão referida no
número 2 do artigo 8.º da Constituição: destinar-se-ia ela a estabelecer uma simples
condição necessária, mas não suficiente, da vigência interna do direito internacional
convencional. O mesmo é dizer que seria sempre necessário as convenções
internacionais vincularem internacionalmente o Estado português para que pudessem
também vigorar no plano interno; nada impediria, contudo, que, entre nós, o lugar por
elas ocupado na hierarquia das fontes fosse paritário relativamente à legislação
ordinária.
Não cremos, todavia, que assim seja.
A interpretação acabada de referir somente seria aceitável, caso na
Constituição se houvesse, v.g., estipulado que as convenções internacionais vigoram
na ordem interna a partir do momento em que começam a vincular
internacionalmente o Estado português. Aí sim, haveria fundamento para conjecturar a
possível consagração, no artigo 8.º, nº 2, de uma condição, tão-apenas, necessária,
mas não suficiente, da vigência interna das convenções internacionais. A verdade, no
entanto, é que a expressão utilizada pelo legislador constituinte não foi «a partir do
204

momento em que…», mas antes «enquanto vincularem internacionalmente o Estado


Português». Donde a conclusão, que se nos apresenta como inarredável, de que não
poderão aquelas deixar de vigorar internamente durante o lapso temporal (é este,
objectivamente, o significado de enquanto) em que vincularem internacionalmente
Portugal. E tal só ocorrerá – já se vê – mediante o reconhecimento da supremacia do
direito internacional convencional em relação às leis internas (anteriores ou
posteriores).
Duas outras razões (ambas assinaladas, entre outros, por GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA E CANELAS DE CASTRO), conquanto de menor peso,
poderão ser convocadas para atestar a superioridade hierárquica das convenções
internacionais.
A primeira prende-se com a já evidenciada atitude de grande abertura da CRP
face ao direito internacional, atitude essa claramente perceptível nos artigos 7.º e 8.º
da nossa Lei Fundamental. Tal filosofia constitucional inspiradora das relações
internacionais do Estado português, se não postula, ao menos indicia – parece – o bem
fundado da tese do carácter supralegal do direito internacional convencional. A
segunda atende ao critério de ordenação dos diversos actos sujeitos a publicação no
Diário da República (artigo 119.º da CRP): as convenções internacionais precedem os
diplomas legislativos, figurando em segundo lugar, logo após as leis constitucionais.
Assente, pois, como linha de princípio a primazia das convenções internacionais
relativamente ao direito interno infraconstitucional (legislação ordinária e
regulamentação administrativa), resta saber se isso vale em termos absolutos, ou seja,
independentemente da natureza das normas – internacionais ou internas – que
estejam em causa (v.g., tratado ou acordo em forma simplificada versus lei orgânica,
lei ordinária comum, lei regional ou regulamento). Pode, na verdade, parecer algo
incongruente, à luz do sistema constitucional de fontes, que, por exemplo, um acordo
em forma simplificada prevaleça sobre uma lei de valor reforçado (GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA). A este respeito, configurando uma situação de
antinomia normativa entre uma lei da AR, em matéria da sua competência reservada,
e um acordo em forma simplificada aprovado pelo Governo, proclama JÓNATAS
MACHADO, a coberto de dúvida, a prevalência daquela sobre este último.
Pela nossa parte, entendemos serem duas razões principais a justificar que a
205

mencionada primazia normativa das convenções internacionais valha, efectivamente,


em qualquer circunstância.
A primeira é a de que na CRP, mormente no nº 2 do artigo 8.º, se não encontra,
seriamente, respaldo para, na matéria em apreço, estabelecer quaisquer distinções. É
certo que, numa perspectiva estritamente jurídico-constitucional, aparenta não fazer
sentido que, por exemplo, um acordo em forma simplificada aprovado pelo governo,
hipoteticamente discrepante com a Lei de Bases do Sistema Educativo (matéria de
reserva absoluta de competência legislativa da AR – artigo 164.º, i), da CRP), possa
sobre esta prevalecer. Mas, descontando o facto de a suposição, ou suposições
similares, serem relativamente inverosímeis, diga-se que, se nos conseguirmos libertar
daquela visão algo redutora, partindo, antes, de um mais abrangente ponto de mira
jurídico-internacional, concluiremos que, num mundo cada vez mais integrado,
escasseiam as zonas de conflitualidade potencial entre os regramentos internacionais
e internos, sendo que as exigências próprias do relacionamento interestadual
tenderão a secundarizar a questão (hoje mais formal do que substantiva) das fontes
(internacionais ou internas) e dos órgãos encarregados de as produzirem. Isto,
evidentemente, com um limite: a necessária conformidade das convenções
internacionais (tratados ou acordos) com a CRP (cfr., infra).
A segunda razão, que com a anterior directamente se interpenetra, prende-se
com a necessidade de, nesta sede problemática, procedermos – sob pena de
indesejável unilateralismo – a uma auscultação da prática internacional. E que dados
nos são revelados através dessa indagação? Desde logo, o da tendência clara – que
parece, de alguma sorte, ter-se manifestado também entre nós, aquando da revisão
constitucional de 1997 – para uma subalternização da figura do tratado solene,
crescentemente preterido, mesmo quando estão envolvidas matérias de maior
dignidade, em favor dos acordos em forma simplificada, cujo procedimento de
conclusão é mais célere.
Ora, desconsiderando o que acaba de dizer-se, não seria judicioso extrair da
dicotómica classificação das convenções internacionais em tratados e acordos
quaisquer consequências no plano da sua posição hierárquica no elenco das várias
fontes de direito, em termos de, v.g., somente aos tratados solenes (e, eventualmente,
aos acordos aprovados pela AR) ser reconhecida primazia sobre a legislação ordinária.
206

Se é verdade que, por força do princípio da não ingerência, o direito internacional se


não imiscui nas formas políticas e constitucionais internas, temos para nós – buscando
arrimo no artigo 27.º da CV – que, reciprocamente, estas não poderão condicionar ou
torpedear a sua operatividade, salvo se em causa estiver uma situação de patente
inconstitucionalidade material (mas não, obrigatoriamente, orgânica ou formal,
conforme já assinalado – cfr. artigo 277.º, nº 2, da CRP).
Firmado, pois, o entendimento de que o direito internacional convencional
possui (sempre) valor supralegal, importa agora perguntar qual seja a natureza do vício
ou irregularidade de afecta uma norma interna que contrarie o disposto numa
convenção internacional. Tratar-se-á de uma invalidade (JORGE MIRANDA), de uma
ilegalidade, por analogia com as situações de violação de leis dotadas de supremacia
sobre outras leis (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA), ou antes de uma ineficácia
(GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS)?
Inclinamo-nos para esta última hipótese, visto as sanções da invalidade ou da
inconstitucionalidade atípica (ilegalidade) não aparentarem coadunar-se muito bem
(como realçam GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS) com a forma de
relacionamento entre a ordem jurídica internacional e a interna. Tal relacionamento
não se reconduz, consabidamente, a um modelo federal, pelo que a sanção da
ineficácia ou inaplicabilidade estará mais de acordo com o monismo de direito
internacional (versão moderada), que, precisamente, havíamos elegido como a mais
razoável corrente doutrinal em matéria de relações entre direito internacional e
direito interno.
Assim, toda a vez que uma lei interna contrariar o disposto numa convenção
internacional, deverão os tribunais portugueses recusar-se a aplicar tal lei, no todo ou
em parte, enquanto durar a vigência internacional dessa convenção (ibidem).
Bem menos controvertido se apresenta o problema do valor hierárquico das
convenções internacionais face à Constituição. De facto, nela se encontra prevista,
como se disse já (artigos 278.º e ss.), a sujeição dos tratados ou acordos à fiscalização
da constitucionalidade, seja a fiscalização sucessiva (concreta ou abstracta), seja a
fiscalização preventiva. Dúvidas não se levantam, por conseguinte, quanto ao carácter
infraconstitucional das convenções internacionais.
207

Uma ressalva, não obstante, se impõe: tratando-se, como pode tratar-se, de direito
internacional convencional geral ou comum (vimos já, supra, que o direito internacional geral não
promana, obrigatoriamente de fonte costumeira), este situar-se-á num plano superior à própria
Constituição, não fazendo, portanto, sentido submetê-lo ao supracitado regime de fiscalização. Em
nosso entender, indevidamente, a Lei Fundamental portuguesa não considerou esta possibilidade.
Mesmo devendo reconhecer-se que uma eventual fiscalização da constitucionalidade de normas de
direito internacional geral contidas numa convenção internacional é hipótese demasiado remota,
atentas as específicas características desse direito…

- Direito das organizações internacionais e direito europeu

E sobeja abordar uma derradeira questão, a qual, até à sexta revisão


constitucional de 2004, que introduziu o nº 4 do artigo 8.º, fora deixada mais ao
menos ao acaso: a das relações de hierarquia (ou de primazia) entre as normas (em
rigor, todos os actos) emanadas das organizações internacionais de que Portugal seja
membro (muito em especial, a União Europeia) e o direito interno.
Das duas vertentes do problema, menos problemática é, seguramente, a que se
reporta ao direito interno infraconstitucional. De facto, a afirmação contida no artigo
8.º, nº 3, da CRP, de que as normas oriundas daquelas organizações vigoram,
directamente, na ordem interna, aponta, sem dúvida, para a primazia ou prevalência
do direito europeu em relação ao direito interno.
Mas prevalência apenas sobre o direito interno anterior ou também sobre o
posterior?
A ideia atrás defendida do valor supralegal das convenções internacionais,
autoriza-nos agora a concluir – até a fortiori, tendo em vista os especiais deveres de
solidariedade e lealdade reclamados pela participação dos Estados em entidades de
tipo supranacional (CANELAS DE CASTRO) – que idêntica solução valerá,
designadamente, para o direito europeu: este prevalecerá automaticamente sobre as
normas internas já existentes, que porventura estejam desconformes com as suas
disposições, como, de modo idêntico, terá primazia sobre aquelas que sejam
adoptadas em momento ulterior e que, igualmente, colidam com esse direito
supranacional (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA).
Pode até dizer-se que, ao aderir a esse tipo de organizações internacionais,
todo o Estado membro consente numa espécie de delegação de poderes soberanos em
208

favor da instituição, o que, irrecusavelmente, abrange uma transferência do exercício


de poderes normativos em certos domínios. Isto mesmo parece, de resto, estar
implícito no artigo 8.º, nº 3, da CRP, sem embargo de se não consubstanciar tal
preceito numa cláusula geral autorizativa da limitação da soberania estadual e,
correlativamente, inibitória do exercício do poder normativo, em determinadas
matérias, por banda do Estado português.
Acresce que, quer o nº 6 do artigo 7.º, quer (sobretudo) o nº 4 do artigo 8.º da
nossa Lei Fundamental, comprovam o bem fundado daquilo que acaba de dizer-se.
Estipula o primeiro que «Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito
pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da
subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial,
de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma
política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em
comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à
construção e aprofundamento da União Europeia». E dispõe o segundo: «As
disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas
instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem
interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios
fundamentais do Estado de direito democrático».
Refere-se este último preceito constitucional, quer ao direito europeu originário
ou primário («disposições dos tratados que regem a União Europeia»), quer ao direito
europeu derivado («normas emanadas das suas instituições»), remetendo, ainda que
algo furtivamente, para a teoria do primado do direito europeu («nos termos definidos
pelo direito da União»).
A consequência ou sanção para uma norma estadual (infraconstitucional) que
contrarie uma norma de direito europeu não será, por certo, a da invalidação da
primeira, mas, tão-só, a da sua ineficácia ou inaplicabilidade, quer dizer, será mister
observar uma prioridade ou preferência na aplicação do direito europeu. Isto à luz de
uma ideia de «primazia funcionalmente adequada» (JÓNATAS MACHADO).
E que dizer acerca da segunda vertente do problema, isto é, a das relações
entre o direito das organizações internacionais supranacionais, sobretudo o direito da
União Europeia, e a CRP?
209

Uma resposta adequada não poderá desligar-se da dilucidação de uma questão


conexa, não menos importante, qual seja a do exacto alcance do princípio do primado
do direito europeu. Em que consiste tal princípio?
Na sugestiva formulação de P. PESCATORE, o princípio do primado do (então)
direito comunitário sobre o direito interno dos Estados membros correspondia a uma
vera «exigência existencial» daquele direito supranacional. E, na verdade, a União
Europeia constitui um espaço de integração – não de mera coordenação entre os seus
membros –, pelo que assenta, enquanto condição da sua própria subsistência
enquanto comunidade ou união (também jurídica) – na uniformidade de interpretação
e aplicação do direito europeu (originário e derivado) na totalidade do seu território.
Ora, este objectivo só resultará completamente logrado caso se entenda que aquele
direito prima sobre todo o direito interno, incluindo, portanto, a própria Constituição.

Também há já largos anos, HANS-PETER IPSEN, referindo-se ao primado do direito comunitário,


o considerava como a principal manifestação do «Prinzip der Sicherung ihrer Funktionsfahigkeit» (isto é,
princípio da garantia da capacidade para o cumprimento da função das Comunidades) e, por isso, em
último termo, como garante da própria subsistência das comunidades.

Vale por dizer que o princípio do primado deve ser absoluto e incondicional
(GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Assim, na verdade, tem sido ele,
repetidamente, encarado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União,
mormente a partir do Acórdão proferido em 1978, no emblemático caso Simmenthal,
havendo-se consolidado o entendimento de que, por força da sua específica natureza,
o direito da União não pode ver-se afastado por normas internas, quaisquer que elas
sejam. Daqui decorre algo já oportunamente relevado: traduz-se o primado numa
imposição do direito europeu e não propriamente numa concessão do direito interno
dos Estados membros.
Se no malogrado projecto de uma Constituição para a Europa se consagrava,
expressamente, o princípio do primado (artigo 1-6.º), o mesmo não acontece no
Tratado de Lisboa, com o que serão os contributos da jurisprudência e da doutrina a
permitirem precisar o respectivo alcance.
Por outro lado, olhando ao disposto na Constituição portuguesa, se o citado
número 6 do artigo 7.º se reconduz, nas palavras de MARIA LUÍSA DUARTE, «a uma
210

cláusula de aceitação de limitações à soberania em função dos objectivos da


construção europeia», conquanto nele se ressalve o necessário respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático, o número 4 do artigo 8.º
remete, precisamente, por seu turno, para as implicações do princípio do primado,
reiterando, na sua parte final, a imprescindível salvaguarda dos princípios
estruturantes do nosso ordenamento jurídico-constitucional, rectius do Estado de
direito democrático.
Quer dizer: ao aceitar que o direito europeu se aplica em Portugal «nos termos
definidos pelo direito da União» (teoria do primado), a CRP assume a primazia
(aplicativa) daquele direito sobre (todo) o direito interno, abrindo, no entanto, a porta
a que sobre uma norma de direito europeu possa, eventualmente, incidir um juízo de
inconstitucionalidade, caso ela colida ou ponha em causa algum daqueles princípios
fundamentais que, a todo o transe, importa preservar.
Mas de que princípios ou valores se trata, afinal?
Entre outros, do princípio democrático, do princípio da separação de poderes,
do princípio da legalidade (nas suas várias dimensões), do princípio da
proporcionalidade, do princípio da tutela jurisdicional efectiva, do princípio da
protecção da confiança, etc., e, em geral, da tutela da dignidade da pessoa humana e
do núcleo essencial dos direitos fundamentais.
Ora, atenta a natureza desses princípios e valores fundamentais – que a União,
igualmente, assume e proclama – e sabendo-se que o próprio Tratado da União
Europeia, no artigo 4.º, nº 2, respectivo, impõe o respeito pela identidade nacional dos
Estados-membros, reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais
de cada um deles, forçoso será concluir que se apresenta como muito remota a
possibilidade de uma hipotética desconformidade de uma norma de direito europeu
com o aludido «radical básico de princípios» (CARDOSO DA COSTA) que deve
permanecer incólume ou intangível.
Isto sem esquecer que a utilização do mecanismo do reenvio prejudicial, por
parte do Tribunal Constitucional português, em ordem a deferir ao Tribunal de Justiça
da União a resolução das questões atinentes à interpretação e validade das normas de
direito europeu, sempre permitiria relegar para uma intervenção de ultima ratio o
211

exercício dos poderes de controlo daquela instância jurisdicional nacional,


materializado num eventual juízo de inconstitucionalidade.

O reenvio prejudicial é um mecanismo de cooperação judiciária entre os tribunais nacionais e o


Tribunal de Justiça da União Europeia, previsto no artigo 267.º do TFUE, que se destina a assegurar a
interpretação e a aplicação uniformes do direito europeu. Trata-se, em regra, de um instrumento
facultativo para o juiz nacional, mas assume carácter obrigatório sempre que as questões prejudiciais
sejam suscitadas perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam, à face do direito
interno, passíveis de recurso. Em qualquer caso, o reenvio apenas se justifica quando o julgador interno
tenha dúvidas acerca do sentido e alcance de determinada norma de direito União Europeia. A decisão
proferida pelo Tribunal de Justiça da União será vinculativa, quer para o órgão jurisdicional que reenvia,
quer para todos os órgãos jurisdicionais em Estados-membros da União Europeia.

No âmbito dos direitos fundamentais, os riscos de antinomia serão ainda


menores, visto que, ex vi do artigo 53.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, se impede qualquer interpretação das suas normas que seja de molde a
restringir ou lesar os direitos humanos e as liberdades fundamentais consagrados,
designadamente, em fontes constitucionais.
Reitere-se, a concluir, que não postula o princípio do primado uma típica e
estrita relação de hierarquia (ou de supra/infra ordenação) entre o direito europeu e
(todo) o direito interno. Do que, em rigor, se trata é – insiste-se – de uma preferência
aplicativa daquele, o que, designadamente, haverá de pressupor que, no momento da
realização/aplicação concreta do Direito, os vários poderes públicos do Estado –
vinculados que se encontram ao princípio da cooperação leal – artigo 4.º, nº 3, do
TFUE – decidam o caso concreto, conferindo plena eficácia às normas europeias, cuja
primazia assenta no respectivo regime de aplicabilidade directa e/ou efeito directo. E
isto numa perspectiva de inter-normatividade e de complementaridade funcional
entre ordenamentos jurídicos, que, notoriamente, se afasta da visão clássica da
Constituição como «espaço fechado e autorreferencial» (MARIA LUÍSA DUARTE).
212

CAPÍTULO IV
SUJEITOS DO DIREITO INTERNACIONAL

Sumário: I – Considerações preliminares. II – O Estado. III – As organizações internacionais. IV –


Os povos não autónomos. V – O indivíduo. VI – As organizações não governamentais e as sociedades
transnacionais. VII – Os casos particulares da Santa Sé e da Ordem Soberana de Malta.

Bibliografia principal: Afonso Queiró, Direito Internacional Público, Coimbra, 1960; Antonio
Casesse, Le droit international dans un monde divisé, Berger-Levrault, Paris, 1986; Azevedo Soares,
Lições de Direito Internacional Público, 4ª Edição, Coimbra Editora, 1988; Direito de Autodeterminação
dos Povos, in Regimes Jurídicos Internacionais, Vol. I, Universidade Católica Editora – Porto, 2020;
Benedita Menezes Queirós, A Proteção Internacional dos Refugiados, in Regimes Jurídicos
Internacionais, Vol. 1, Universidade Católica Editora - Porto, 2020; Christian Tomuschat, Obligations
arising for States without or against their will, RCADI, 1993-IV, vol. 241; Francisco Ferreira de Almeida,
Os Crimes Contra a Humanidade no Actual Direito Internacional Penal, Almedina, Coimbra, 2009;
Codificação e desenvolvimento progressivo do direito internacional penal, BFD, Vol. LXXXVIII, Tomo II,
2012; A humanização do direito internacional, BFD, Vol. XCIII, Tomo II, 2017; Francisco Resek, Direito
Internacional Público: Curso Elementar, 17 ed., São Paulo, Saraiva, 2018; Gonçalves Pereira/Fausto de
Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, Almedina, 1993; Hein Kötz, Vertragsrecht,
2º ed., Tübingen, 2012; Ian Brownlie, Princípios de Direito Internacional Público, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1997; J. L. Brierly, Direito Internacional, 4 edição, Fundação Calouste
Gulbenkian,1965; Jónatas Machado, Direito Internacional, 5ª edição, Gestegal, 2020; Jorge Bacelar
Gouveia, Manual de Direito Internacional Público – Uma Perspectiva de Língua Portuguesa, 5ª edição,
Almedina, 2020; Direito internacional penal – Uma perspectiva dogmático-crítica, Almedina, Coimbra.
2008; Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6ª edição, Principia, 2016; Quoc
Dinh/Daillier/Pellet, Droit International Public, LGDJ; Malcom Shaw, International Law, Eighth Edition,
Cambridge University Press, 2017; Maria Isabel Tavares, Direito Internacional Humanitário, in Regimes
Jurídicos Internacionais, Vol. I, Universidade Católica Editora – Porto, 2020; Responsabilidade
Internacional dos Estados por Factos Internacionalmente Ilícitos, in Regimes Jurídicos Internacionais, Vol.
I, Universidade Católica Editora – Porto, 2020; Rosalyn Higgins, Time and the Law: International
Perspectives on na old problema, ICLQ, 2000, vol. 46; Wladimir Brito, Direito Internacional Público, 2ª
ediºão, Coimbra Editora, 2014; Verdross/Simma, Universelles Völkerrecht – Theorie und Praxis, Duncker
& Humbolt, 2010.

I – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Analisados já (no Cap. II) os diversos procedimentos técnicos de criação de


normas jurídicas internacionais, impõe-se agora olhar para aqueles que,
simultaneamente, são seus autores e destinatários: os sujeitos de direito internacional.
213

Ora, parece não oferecer dúvidas que apenas podem ser considerados como tal
aquelas entidades que sejam destinatárias directas das normas internacionais e, por
isso, titulares de uma situação jurídica subjectiva que brota ou deriva dessas normas
(H. MOSLER).

Também no já citado parecer consultivo do TIJ, de 1949, sobre a reparação dos prejuízos
causados às Nações Unidas, esta instância judicial, ao admitir que a ONU tinha capacidade para ser
titular de direitos e obrigações internacionais, se haveria de socorrer de igual critério para definir a
personalidade jurídica internacional, critério esse que vale, de resto, de modo similar, para a aferição
desse atributo no direito interno.
CARRILLO SALCEDO acrescenta ainda ser próprio dos sujeitos de direito internacional a
legitimidade de reagirem perante o incumprimento das normas internacionais ou, para os autores de tal
inadimplemento, o facto de incorrerem em responsabilidade internacional. Destaca, por seu turno,
JÓNATAS MACHADO, como expressões da personalidade internacional, o direito de estabelecer relações
diplomáticas, o jus tractum e a legitimidade processual. Haverá, no entanto, de convir-se que mais não
são estes, porém, do que importantes corolários da titularidade da aludida situação jurídica subjectiva
que directamente ocasionam as normas internacionais.

Para além, todavia, daquele denominador comum, é inquestionável que são


muito diferentes entre si os vários sujeitos de direito internacional, tanto no que se
refere à respectiva natureza, como no que toca à amplitude dos seus direitos.
Até meados do séc. XX, estimava-se que a subjectividade jurídica internacional
constituía um reduto exclusivo dos Estados. ANZILOTTI chegou mesmo a afirmar, em
1905, que a existência de outros sujeitos de direitos e obrigações distintos dos Estados
seria simplesmente inconcebível em direito internacional.

Enquanto fenómeno meramente transitório, o direito internacional clássico não ignorou, já o


sabemos, a existência de grupos de insurrectos ou beligerantes que se afirmavam pela força – sendo o
respectivo estatuto proporcional ao seu poder efectivo –, visando derrubar as autoridades oficiais do
Estado em cujo território desenvolviam a sua luta armada. Vencendo-a, convertiam-se em Estados,
sendo derrotados, desapareciam. Hoje, estas figuras, após um longo período de declínio, recuperaram
alguma da sua importância pretérita.

Da segunda metade do séc. XX em diante, contudo, a fisionomia da sociedade


internacional haveria de transformar-se radicalmente. Aos poucos, a prática
encarregar-se-ia de fazer perimir a doutrina tradicional: o surgimento de novos
sujeitos – que passaram a desempenhar um papel de relevo nos mais variados
214

domínios das relações internacionais – pôs termo ao monopólio dos Estados


soberanos em matéria de personalidade jurídica internacional.
Assim é que, num contexto já analisado no capítulo I, as organizações
internacionais, os povos não autónomos, o indivíduo (pessoas físicas e grupos
minoritários), as organizações não governamentais, as sociedades transnacionais, etc.,
ascendem à qualidade de actores da cena internacional.
Na esteira de A. CASSESE, pode começar por reconhecer-se a maior
importância do Estado relativamente aos restantes sujeitos no desenvolvimento das
relações internacionais. Ele é, na verdade, o único de entre todos que beneficia do
atributo da soberania, exercendo, de forma estável, duradoura e plena, uma
autoridade exclusiva sobre um determinado território. Por esse facto, os Estados
constituem a espinha dorsal da comunidade internacional, moldando-a nos seus traços
mais essenciais. Por força de uma capacidade jurídica plena (GONÇALVES
PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS), calha-lhes na perfeição o epíteto de sujeitos
primários. Já os restantes, em virtude de a sua capacidade ser mais limitada e de um
decorrente menor protagonismo, não podem por ora senão considerar-se como
sujeitos secundários.
Com os povos não autónomos e os insurrectos os Estados partilham uma
característica: a sua existência resulta de um processo de facto, visto não depender de
qualquer decisão dos sujeitos preexistentes, Neste sentido, todos estes são sujeitos
originários de direito internacional. Mas, se, em última análise, todo o direito é
constituído para benefício do homem, também o indivíduo faz jus (hoje mais do que
nunca) a esse mesmo epíteto. Isto sem embargo de a extensão concreta da sua
personalidade jurídica internacional se encontrar ainda largamente dependente do
reconhecimento de direitos ou da imposição de obrigações em instrumentos
normativos adoptados pelos Estados.
Inversamente, quer as organizações internacionais, quer as organizações não
governamentais, quer as sociedades transnacionais apenas se convertem em pessoas
jurídicas internacionais em resultado de uma decisão (acto formal de criação) de
outros sujeitos, permanecendo, subsequentemente, submetidos, em maior ou menos
grau, à vontade dos seus criadores. Razão bastante para que lhes devamos atribuir o
qualificativo de sujeitos derivados ou auxiliares.
215

O alcance da classificação acima esboçada só resultará, porém,


verdadeiramente compreensível depois de estudados, com o detalhe que se impõe, os
vários sujeitos mencionados. Façamo-lo, pois, começando pelo Estado.

II – O ESTADO

Sumário: 1 – Noção. 2 – Elementos constitutivos. 2.1 – A população. 2.2 – O território. 2.3 – O


governo. 2.4 – A soberania. 3 – Competências do Estado. 4 – Responsabilidade internacional do Estado.
4.1 – Responsabilidade por actos ilícitos. 4.1.1 – Pressupostos. 4.1.2 – Consequências: regime-regra e
regime excepcional. 4.1.3 – Causas de exclusão da ilicitude. 4.2 – Responsabilidade internacional
objectiva. 4.2.1 – Noção e significado. 4.2.2 – Origem. 5 – Sucessão de Estados. 5.1 – Noção, significado
e tipologia. 5.2 – Regime jurídico. 5.2.1 – Relações entre o Estado sucessor e os particulares. 5.2.2 –
Relações entre o Estado sucessor e o Estado predecessor. 5.2.3 – Relações entre o Estado sucessor e a
ordem jurídica internacional. 6 – Reconhecimento. 6.1 – Noção. 6.2 – Reconhecimento do Estado:
natureza jurídica. 6.2.1 – Concepção atributiva ou constitutiva. 6.2.2 – Concepção declarativa. 6.3 –
Reconhecimento de governos 6.4 – Reconhecimento de insurrectos e beligerantes.6.5 – Dever de não
reconhecimento. 6.6 – Formas do reconhecimento.

1 – Noção

É objecto de consenso entre os jusinternacionalistas a consideração do Estado


como uma entidade que reúne em si três elementos constitutivos: a população o
território e o governo (M. SHAW). Certo é, porém, que, por si só, esta definição não
permite distinguir o Estado de outras colectividades territoriais que podem reivindicar
idênticas características, apesar de, nem de perto nem de longe, desempenharem o
papel de destaque que aos Estados está reservado nas relações internacionais (caso,
v.g., dos Estados federados ou dos Estados membros de uma confederação, que, em
razão de possuírem uma capacidade jurídica limitada, não devem senão ser
considerados como Estados semi-soberanos).
Algo mais, portanto, importa acrescentar. É que, para além de ser constituído
por um agrupamento de pessoas (substracto pessoal), ser dotado de uma base
territorial e dispor de órgãos governativos que o representam e exprimem a sua
vontade (colectiva), o Estado exibe ainda uma característica fundamental que,
verdadeiramente o singulariza: a soberania ou independência. Trata-se, aliás, do único
sujeito de direito que beneficia de tal atributo.
Desde o seu aparecimento, numa sociedade internacional secularizada –
216

porque forjada num clima de emancipação relativamente ao poder espiritual –, que os


Estados modernos recusaram submeter-se à autoridade de quaisquer outras entidades
políticas; o que propiciou (favoreceu), logo de início, o entendimento da soberania (ou
independência) como poder absoluto.
Actualmente, mesmo com a crescente intervenção de entidades não estaduais
– sobretudo as organizações internacionais – nos assuntos da comunidade
internacional, continua a ser válida, no essencial, a asserção de que os Estados não se
encontram organicamente subordinados a qualquer outro membro dessa comunidade,
circunstância esta que, efectivamente, lhes confere uma protecção jurídica sem igual.

2 – Elementos constitutivos

2.1 – A população

Muito embora o Estado seja muitas vezes encarado como uma entidade
abstracta, não podemos esquecer que a sua existência jurídica repousa em elementos
objectivos, tal como, aliás, resulta da Convenção de Montevideu sobre os Direitos e
Deveres dos Estados, de 1933.
Ora, antes de tudo, consubstancia-se ele numa colectividade de pessoas, não
podendo existir sem população (elemento humano). Esta, nos cerca de duzentos
Estados que compõem o mundo actual, é, em termos numéricos, muto desigual,
oscilando entre algumas dezenas de milhar (nos chamados «micro-Estados» ou
«Estados liliputianos») e as várias centenas de milhões de indivíduos (v.g., na Índia e
na China) (JEAN TOUSCOZ).
Mas o que deve, em rigor, entender-se por população de um Estado?
Em sentido amplo, refere-se o conceito a todos aqueles que vivem e trabalham
no território de certo Estado, isto é, numa palavra, aos seus habitantes (OPPENHEIM).
Mas, se bem virmos, habitantes são também os estrangeiros aí domiciliados. Por outro
lado, os cidadãos nacionais desse Estado radicados no estrangeiro, não cabem na
noção de população ora referida, apesar de, juridicamente, permanecerem ligados ao
país de origem (PIERRE-MARIE-DUPUY).
Numa outra acepção, que se nos afigura preferível, população significa o
conjunto de indivíduos ligados, de forma estável e efectiva, a um Estado através do
217

vínculo jurídico da nacionalidade – os seus nacionais. Vínculo esse que funda uma
competência pessoal exclusiva do Estado, exercitável independentemente do local
onde se encontrem tais indivíduos.

Acabámos de aludir a uma ligação estável e efectiva de um indivíduo a um Estado. Qual o


significado da expressão, designadamente quando esse indivíduo possua duas ou mais nacionalidades?
Os casos Drummond e Nottebohm parecem dar resposta. Afirmou-se no primeiro que
Drummond, cujos bens haviam sido confiscados, era tecnicamente um sujeito britânico, mas
substancialmente francês. No segundo, um cidadão alemão (Nottebohm), receando ser prejudicado
relativamente a negócios importantes em que se envolvera na Guatemala, caso mantivesse a sua
nacionalidade de origem (recorde-se que, aquando da Segunda Guerra Mundial, a Guatemala se havia
declarado hostil à Alemanha), decidiu, em 1939, requerer a nacionalidade do Liechenstein), cônscio de
que não seria difícil obtê-la. Uma vez adquirida esta, e tendo, entretanto, as terras de Nottebohm sido
confiscadas na Guatemala, o Liechenstein, exercendo a protecção diplomática em favor do seu novel
cidadão, submeteu o caso ao Tribunal Internacional de Justiça. Decidiu, porém, Tribunal ser inadmissível
a acção instaurada pelo governo do Principado do Liechenstein, argumentando, entre outras coisas, que
«de acordo com a prática dos Estados, as decisões arbitrais e judiciais e a doutrina, a nacionalidade é um
vínculo jurídico que tem como fundamento um facto social de ligação, uma conexão genuína, interesses
e sentimentos, bem como a existência de direitos e deveres recíprocos. Poderá, portanto, dizer-se que
constitui a expressão jurídica do facto de que o indivíduo a quem é conferida – directamente pelo
Direito ou como resultado de um acto das autoridades públicas – está realmente mais ligado à
população do Estado que atribui a nacionalidade do que a qualquer outro. Uma vez conferida por um
Estado, só permite a esse Estado exercer protecção face a outro se consistir na tradução em termos
jurídicos da ligação com o Estado que o fez seu nacional» (tradução e itálico nossos).
À face do direito internacional, a nacionalidade efectiva deve, por conseguinte, ter subjacente a
existência de laços estreitos (v.g., familiares, sociais, económicos, políticos, etc.) entre um indivíduo e
determinada ordem jurídica, não podendo resultar de uma ligação meramente episódica, concretizada
com propósitos oportunistas.

A nacionalidade pode ser originária, se obtida através dos critérios alternativos


do jus soli (“direito de solo”, isto é, com base no local do nascimento) ou do jus
sanguinis (“direito pelo sangue”, isto é, com base na ascendência), ou derivada, se
resultante de naturalização, casamento, adopção, etc..
Em Portugal, verifica-se uma combinação dos critérios supracitados, sendo que,
nos termos do Decreto-Lei nº 26/2022 – que operou as últimas alterações à Lei da
Nacionalidade –, a nacionalidade portuguesa é, designadamente, atribuída a quem
nasça em Portugal; a quem tenha, pelo menos, um/a avô/ó de nacionalidade
218

portuguesa; a quem seja estrangeiro e resida em Portugal há, pelo menos, 5 anos, com
filhos nascidos em Portugal; a quem, sob certas condições, seja menor, filho de
estrangeiros, e tenha nascido em Portugal; a quem, também mediante o cumprimento
de certos requisitos, tenha nascido nas ex-colónias, etc.. No que diz respeito à
naturalização, de destacar a previsão de um regime especial para judeus sefarditas,
que poderão requerer a nacionalidade portuguesa com base na existência de
requisitos objectivos que atestem a sua ligação a Portugal (apelidos, idioma familiar,
descendência directa ou colateral, etc.).
Associadas, por vezes, ao conceito de população sem com ele, no entanto, se
confundirem, surgem as noções de povo ou nação. Do que se trata?
Enquanto a população é um conceito jurídico e, bem assim, uma realidade
estatística, o povo ou a nação traduzem antes, e por sobre tudo, uma realidade
sociológica e política, assente numa determinada homogeneidade dos seus membros
(QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

Num parecer consultivo de Outubro de 1975, acerca do Sahara Ocidental, também o TIJ
claramente estabeleceu a distinção entre população e povo com base em igual pressuposto.

Lançando mão de um critério compósito, que atenda a dados objectivos, mas


se estribe também num certo número de factores subjectivos, parece apropriado
definir-se povo ou nação como um agrupamento de indivíduos ligados por certas
afinidades étnicas, históricas, culturais, linguísticas, religiosas ou outras, que, ademais,
manifestam predisposição e vontade de viver em comum.
Ora, como se sabe, nenhum princípio de direito internacional impõe que a cada
Estado, enquanto entidade jurídica, deva corresponder uma e uma só nação, enquanto
realidade sociológica. O que, de resto, bem se compreende: legitimar irrestritamente a
autodeterminação de povos não autónomos, passando, muitos deles, a exercer
autoridade sobre territórios provavelmente demasiado exíguos, redundaria numa
nada avisada “balcanização” da sociedade internacional, com a consequente
postergação do princípio da integridade territorial do Estado (PIERRE-MARRIE DUPUY).

Nada obsta, com efeito, a que um Estado englobe várias nações ou, inversamente, a que uma
nação se disperse por vários Estados. Exemplo da primeira situação constituem muitos dos grandes
Estados da comunidade internacional (v.g., a China e a Rússia), bem como aqueles que se situam em
219

regiões onde coexistem várias etnias (caso de boa parte dos Estados africanos, mas também, por ex., da
Polónia, da ex-Checoslováquia, da ex-Jugoslávia, etc.); ilustração da segunda representam, v.g., a
diáspora dos judeus, que deu origem à formação de comunidades judaicas fora da Palestina, a situação
dos curdos, dos albaneses, etc..
Mas, evidentemente, os Estados podem também ser Estados nacionais, em que a realidade
jurídica exprime um fenómeno sociológico, havendo, por isso, coincidência entre Estado e nação (Estado
nacional) – é o caso paradigmático de Portugal.

Nem sempre, contudo, assim foi.


No séc. XIX, à luz do princípio das nacionalidades, promovera-se a identificação
entre Estado e Nação (cfr., supra): cada nação, em ordem a garantir a efectividade da
respectiva soberania, teria o direito de constituir-se em Estado independente,
devendo, portanto, serem tantos os Estados quantas as nações (Estados nacionais).
Caso um Estado englobasse várias nações, expor-se-ia ao desmembramento.
Ora, nem por entretanto se haver abandonado o entendimento acima descrito,
o princípio das nacionalidades deixa de ter uma refracção moderna: referimo-nos ao
direito dos povos à autodeterminação, que, na sua vertente externa, o direito
internacional positivo consagra para algumas situações particulares, designadamente
para os povos submetidos a uma dominação colonial. Porém, sobre ter já, há muito,
soado o toque de finados pelo colonialismo tradicional, trata-se esta de uma
consagração parcial e muito limitada do referido princípio (cfr. o que, a propósito,
diremos infra, acerca dos povos não autónomos).

Das duas vertentes da autodeterminação dos povos (a interna e a externa), só a primeira possui
carácter universal, encontrando-se hoje a dimensão externa do direito de livre disposição algo esvaziada
de sentido, tanto mais que a secessão, salvo porventura no caso de graves violações do jus cogens, é
encarada como uma malsinada causa de desmembramento territorial. O assunto será desenvolvido
mais à frente no local apropriado.

2.2 – O território

Do mesmo modo que se disse não haver Estado sem população, será mister
reconhecer também que um mínimo de base territorial é indispensável à existência (e
subsistência) dos sujeitos primários da comunidade internacional (elemento
territorial). Sim, dissemos bem, um mínimo de base territorial e não um território de
grandes dimensões (ou com determinada extensão), que, a ser exigido,
220

comprometeria irremediavelmente a possibilidade de haver os “micro-Estados” ou


Estados exíguos, a que, mais acima, já havíamos feito alusão.
É, de resto, patente a estreita relação entre território e população, visto
constituir o Estado uma corporação sedentária de base territorial (M. AURIOU). Quer
dizer, a população estadual acha-se estabelecida no interior das fronteiras de um
determinado território, devendo, por conseguinte, ter-se por excluída a ideia de um
“Estado nómada”. Mas, igualmente clara se apresenta a ligação entre território e
governo, pois que «as modernas condições de exercício do poder político e
administrativo implicam a existência de um território, por mais reduzido que seja»
(QUOC DINH/DAILLIER/PELLET). Numa palavra, o território assume-se como
pressuposto e garante da independência e autonomia do Estado, quer no plano
político, quer no plano económico.
Desta dúplice relação se retira a importância do princípio da integridade
territorial, isto é, da tendencial indivisibilidade ou estabilidade do território. Princípio
este enunciado em inúmeros documentos e instrumentos normativos internacionais,
de que se destacam a Acta Final da Conferência de Helsínquia, a Carta das Nações
Unidas, bem como as cartas constitutivas da Organização dos Estados Americanos e da
União Africana. Dele decorre, portanto, uma ideia de preservação dos limites
territoriais originários dos Estados (contemporâneos da sua formação). Isto de modo a
evitar, o mais possível, nas relações internacionais, quaisquer dinâmicas disruptivas.
Ainda assim, não é tal princípio estruturante do ordenamento jurídico
internacional incompatível com mutações territoriais (v.g., rectificação do traçado de
fronteiras), desde que pacíficas (concretizadas pela via de acordo). Tão-pouco
contendem com a existência e a identidade do Estado as disputas territoriais com
Estados vizinhos – permanecendo uma parcela significativa do território sob controlo
do governo (casos da Albânia, antes da Primeira Guerra Mundial, de alguns Estados da
América Latina e de África e, mais recentemente, do Estado de Israel) – ou as
convulsões políticas internas que conduzam a uma mudança de autoridades políticas
(princípio da continuidade do Estado) (M. SHAW e DÍEZ DE VELASCO).

Problema discutido ao longo dos tempos pela doutrina é o da natureza jurídica do território. A
este propósito, quatro teorias principais, de que nos dão conta QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, têm sido
propostas pelos autores.
221

De acordo com a primeira delas – a teoria do território sujeito –, tributária de uma concepção
organicista do Estado, o território, enquanto componente essencial do Estado-pessoa, deve assimilar-se
a um titular de direitos e obrigações. Esta valorização do território, é, porém, inaceitável, visto que, para
além de assentar numa autêntica ficção jurídica, está em manifesta contradição com o direito positivo.
Uma outra directriz – a do território-objecto –, que remonta ao tempo das monarquias
absolutas, em que, como se sabe, se privilegiava uma concepção patrimonial do Estado
(patrimonialismo), assenta numa clara dissociação entre o Estado e o seu território, constituindo, nessa
medida, um progresso doutrinal relativamente à anterior. O laço de existente entre Estado e território é,
todavia, equiparado a um direito de propriedade, isto é, o Estado exerceria sobre o território um
verdadeiro direito real, equivalente àquele que um proprietário exerce sobre o seu terreno, razão por
que também esta doutrina se nos afigura distante da realidade. De facto, mais do que sobre coisas
corpóreas, o poder do Estado é exercido sobre homens e actividades. Não obstante isso, a corrente
exposta tem contado, contemporaneamente, com alguns partidários de renome (casos, por ex., de
LAUTERPACHT e FAUCHILLE).
São, contudo, as duas últimas teorias aquelas que melhor parecem traduzir, do ponto de vista
jurídico, a estreita relação entre Estado e território. Referimo-nos à teoria do território-limite e à do
território título de competência. Os defensores da primeira (v.g., DUGUIT), encaram o território como o
limite físico do poder estadual, ao passo que os partidários da segunda (v.g., BASDEVANT, SCELLE, etc.) o
reconduzem a um título jurídico essencial da competência do Estado. Assim se demonstra que esta
concepção do território título de competência não contradiz, antes pressupõe, a do território-limite,
uma vez que se é verdade que o território confere, efectivamente, ao Estado um título indispensável
para a sua actuação, não é menos certo que, em simultâneo, lhe limita o poder, confinando-o (salvo em
casos excepcionais) a determinado espaço geográfico.

Mas em que consiste, afinal, o território do Estado?


Deve, antes de tudo, frisar-se que o território estadual é delimitado pelas
fronteiras, sem embargo de, como acima se disse, não ser imprescindível que estas se
encontrem perfeitamente delimitadas. Uma fronteira pode ser natural, no caso de
seguir os acidentes naturais (v.g., um rio, uma montanha, um lago, etc.) ou artificial,
quando, por ex., acompanha um paralelo ou um meridiano (AZEVEDO SOARES).
É no espaço compreendido pelo território que o Estado exerce a totalidade dos
poderes que decorrem da soberania – designadamente, políticos, legislativos, judiciais,
administrativos, militares, económicos, etc. – (plenitude), com a concomitante
exclusão da possibilidade de nele serem exercidas competências similares por parte de
quaisquer outros sujeitos de direito internacional (exclusividade) (SERENI).
Ora, do território, lato sensu, fazem parte o domínio terrestre, o domínio fluvial,
222

o domínio marítimo, o domínio lacustre e o domínio aéreo. Façamos-lhes, pois, uma


breve referência.
Quanto ao território terrestre, pouco haverá a dizer. Abrange o solo e o subsolo
(independentemente da profundidade deste último) que se situam no interior das
fronteiras do Estado.
No que toca ao domínio fluvial, compreende ele os cursos de água doce (ou
parte deles) que atravessam o Estado ou o separam de outro (s). Podem revestir uma
dupla natureza: rios nacionais, caso nasçam e desaguem no território estadual; rios
internacionais se, diferentemente, atravessarem (rios sucessivos) ou separarem (rios
contíguos) dois ou mais Estados.
Fazendo parte do domínio público do Estado, os rios nacionais não ocasionam,
em regra, problemas de carácter internacional. Com efeito, a regulamentação da
navegação, da pesca e da exploração industrial e agrícola é da competência exclusiva
do Estado em que se situem (AZEVEDO SOARES). Não já assim, contudo, no que
respeita aos rios internacionais, que, como se percebe, são potencialmente causadores
de conflitos entre Estados vizinhos. Pense-se, v.g., na poluição transfronteiriça, cujos
efeitos encontram, frequentes vezes, nos rios sucessivos ou contíguos veículos
privilegiados de disseminação.

Uma instalação industrial, uma fábrica, uma central nuclear, uma barragem, etc., situadas junto
a uma das margens ou num rio internacional sucessivo, poderão, por motivos diversos, causar graves
danos ambientais em Estados vizinhos. A percepção da existência de recursos naturais compartilhados
impõe, à luz do princípio da cooperação, o estabelecimento de regras destinadas a permitir uma sua
utilização coordenada e a minorar, o mais possível, os riscos de efeitos adversos (v.g. na navegação, na
pesca, na agricultura, na salubridade da água, etc.), nos Estados situados a jusante.

Domínio marítimo (remissão)

Do domínio marítimo, por sua vez, fazem parte determinados espaços


marítimos (superfícies de água salgada), incluindo o solo e o subsolo respectivos,
relativamente nos quais o Estado exerce poderes de soberania (caso das águas
interiores e do mar territorial). Outras zonas marítimas há, no entanto, em que os
Estados costeiros (ou ribeirinhos) se limitam a possuir poderes (mais limitados) de
mera jurisdição funcional, não integrando estas, em virtude disso, o território estadual
223

(caso da zona contígua, da zona económica exclusiva e da plataforma continental).


Destas questões iremos curar, mais desenvolvidamente, infra, no capítulo dedicado ao
regime internacional dos espaços, pelo que nos limitamos agora a remeter para aí.

O domínio lacustre respeita aos lagos, que são superfícies de água doce – assim
se contradistinguindo dos mares internos – totalmente circundadas por terra. São-lhes,
em princípio, aplicadas as normas que vigoram para esses mares, excepto se o lago em
questão comunicar com o mar através de um curso de água que atravesse diversos
Estados, caso em que, ao invés, será aplicável a regulamentação internacional do
domínio fluvial (AZEVEDO SOARES).
Por fim, do território estadual faz ainda parte o domínio aéreo. Estende-se, na
verdade, a soberania de cada Estado ao espaço aéreo suprajacente aos domínios
terrestre, fluvial, marítimo (águas interiores e mar territorial) e lacustre. Como
sublinha M. SHAW, abundaram, até à Primeira Guerra Mundial, as teorias respeitantes
ao regime do espaço aéreo: desde a tese da total liberdade desse espaço, passando
pela directriz, fundada numa analogia com o domínio marítimo, da existência de uma
faixa de “ar territorial” pertencente ao Estado, seguida de uma zona livre mais acima,
até à concepção de uma soberania sobre todo o espaço suprajacente ao território
estadual. A partir, no entanto, daquele primeiro conflito à escala universal, dada a
consciencialização das implicações ao nível da segurança, resultantes da utilização do
meio aéreo, o panorama viria a alterar-se.
Assim, logrou curso, desde então, a ideia da soberania completa e exclusiva do
Estado sobre o espaço aéreo situado acima do seu território; orientação essa que viria
a ser acolhida logo na Convenção de Paris, de 1919, para a Regulamentação da
Navegação Aérea e, mais tarde, na Convenção de Chicago, de 1944, sobre Aviação Civil
Internacional.
Sendo clara na doutrina a distinção, quanto à sua natureza e correspondentes
estatutos, entre o espaço aéreo e o espaço extra-atmosférico (este último um espaço
internacional – cfr., infra), revela-se, porém, assaz problemático acordar num critério
físico de delimitação. Daí que na prática internacional se privilegie um critério
funcional (também não isento de reparos…) que atende menos aos espaços em si
mesmos considerados do que às actividades neles levadas a cabo: serão submetidas ao
224

direito aéreo aquelas que se apoiarem no ar atmosférico e ao direito do espaço extra-


atmosférico as que, diferentemente, não utilizarem o oxigénio do ar como combustível
nem as correntes atmosféricas (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

A encerrar a referência ao território enquanto elemento constitutivo do Estado, bordejemos


ainda o problema dos modos de aquisição do território, acompanhando os autores acabados de citar.
Tratando-se da aquisição de um território não estadual por parte de um Estado – v.g., de uma
terra nullius (território sem dono) ou de territórios habitados por colectividades humanas não
organizadas segundo as formas estaduais (v.g., tribos indígenas) – eram duas as modalidades de
aquisição tradicionalmente invocadas: a ocupação e a contiguidade geográfica. A primeira delas, muito
frequente nas relações internacionais dos séculos XVI a XVIII, possui hoje escasso valor, dado não ser
fácil, actualmente, encontrar territórios susceptíveis de ocupação. Pressupunha, tanto a intenção de
adquirir certo território (animus), como a respectiva tomada de posse e a prática de actos materiais (e
até simbólicos) de soberania (corpus) – regra da ocupação efectiva. A teoria da contiguidade geográfica,
por sua vez, decorre dessa regra da ocupação efectiva (P: REUTER) e tem sido invocada como título
válido de apropriação de certos territórios que, fisicamente, se apresentam como um prolongamento
natural do território estadual. Inspira-se na regra segundo a qual, em matéria de propriedade, as coisas
acessórias seguem a coisa principal. A jurisprudência internacional, contudo, tem-se recusado a
reconhecer a contiguidade geográfica como um modo legítimo de aquisição de territórios. Assim
sucedeu, por ex., no caso das Ilhas de Palmas, em que o Tribunal Permanente de Arbitragem não
coonestou a pretensão de soberania dos EUA sobre tais ilhas – pretensão justamente fundada na
contiguidade geográfica com o arquipélago das Filipinas, sob domínio norte-americano desde 1898 –
atribuindo antes à Holanda os direitos sobre aquelas, pois era este Estado que, de há muito, aí vinha
exercendo certos actos de soberania. Em sentido idêntico se pronunciou, em 2016, o Tribunal
Permanente de Arbitragem, dando razão às queixas territoriais das Filipinas e recusando à China –
acusada naquela zona de uma política de “facto consumado”, nomeadamente através da construção de
ilhas artificiais – o direito ao controlo exclusivo do Mar do Sul da China.
Estando em causa, por outro lado, a aquisição de um território estadual – como, de resto,
passou a ser norma nas relações internacionais mais recentes –, caberá distinguir os modos
convencionais de aquisição (em que se obtém o consentimento do Estado interessado) dos modos não
convencionais (em que a transferência territorial se processa na ausência de tal consentimento).
A aquisição convencional pode assumir a forma de cessão voluntária (outrora, numa altura em
que prevalecia a aludida concepção do território-objecto, equivalente a uma verdadeira venda de
Estado a Estado – como, por ex., sucedeu com a Louisiana, adquirida pelos EUA à França, em 1803, ou
com o Alaska, adquirido também pelos EUA ao Império Russo, em 1867) ou de fusão. De entre os modos
não convencionais, dois haverá que referir: a conquista (hoje um modo não legítimo de aquisição
territorial, dado pressupor o recurso à força) e a prescrição aquisitiva (ou usucapião). A admissibilidade
desta última no direito internacional está longe de ser pacífica. Vários autores a têm rejeitado (v.g., P.
225

REUTER e SERENI), sustentando que, ao contrário do que se verifica no direito interno, não existe
qualquer norma a consagrá-la. Outros, como C. ROUSSEAU, defendem carecer de alcance prático o
debate em torno da questão. Como quer que seja, a prescrição aquisitiva permitiria a um Estado
adquirir um território estrangeiro, no qual, de forma contínua, pacífica, pública e de boa-fé, exercesse a
sua autoridade durante um longo período de tempo, presumindo-se a renúncia do anterior titular aos
respectivos direitos de soberania. Destarte, a posse adquirida de boa-fé converter-se-ia, perante a
passividade do primitivo “proprietário”, num verdadeiro direito de soberania. Certo é que o instituto foi
já algumas vezes aplicado pela jurisprudência internacional: por ex., nos casos das Fronteiras do Canadá,
da Gronelândia Oriental, das Fronteiras da Guiana Britânica etc. (J. L. BRIERLY).

2.3 – O governo

Para além da população e do território, um Estado pressupões ainda um


aparelho político. De facto, enquanto pessoa jurídica (colectiva), só através de um
conjunto de instituições e órgãos que o representem poderá exprimir a sua vontade e
actuar, quer no plano interno, quer no plano internacional (elemento funcional).
Quando em direito internacional se fala em governo como elemento
constitutivo do Estado, não são apenas as respectivas autoridades executivas que
estão em causa, mas, em rigor, os seus diferentes poderes públicos, pelo que é, afinal
de contas, toda a ordem política, legislativa, judicial e administrativa que com o termo
citado se visa englobar (DÍEZ DE VELASCO). Sendo isto verdade, não é menos exacto
que, por força do princípio da autonomia constitucional e política dos Estados, o
direito internacional se não imiscui nas formas políticas internas, apenas tomando em
consideração os órgãos estaduais que operam a vinculação do Estado no plano
externo.
A importância reconhecida ao governo reside, outrossim, na circunstância de
constituir ele um instrumento fundamental para a satisfação das necessidades da
população a seu cargo, fornecendo-lhe os bens e os serviços indispensáveis ao seu
bem-estar e à sua segurança (concepção funcional do Estado). Daqui decorre a
exigência da efectividade governamental – verdadeira condição jurídica da existência
do Estado. Em que se traduz?
Significa, em traços gerais, que o governo deve dar mostras de uma capacidade
real para levar a cabo todas as funções conaturais ao poder estadual, designadamente
a manutenção da ordem e da segurança, no plano interno, e a observância dos
226

compromissos e obrigações internacionais, no plano exterior (QUOC


DINH/DAILLIER/PELLET).

2.4 – A soberania e respectivos corolários

Como se observou já, constitui também atributo fundamental (e exclusivo) do


Estado a soberania.
Nos primeiros tempos da sociedade internacional pós-westefaliana o princípio
da soberania desempenhou um papel decisivo na consolidação da existência dos
Estados recém-formados, ao assegurar-lhes, duplamente, a independência perante o
Papa e perante o Império Romano Germânico.
As obras de autores como JAN BODIN, MAQUIAVEL, VATTEL, HOBBES, HEGEL,
JELLINEK, etc. contribuíram para que a soberania fosse definida como um poder
supremo e ilimitado e servisse, consequentemente, para legitimar teoricamente as
monarquias absolutistas (diferentes, como se sabe, quer da monarquia tradicional,
quer da monarquia constitucional). Mau grado os Estados se encontrarem vinculados à
observância de certas obrigações internacionais, estas resultariam sempre de uma
voluntária autolimitação da sua soberania (cfr. o que dissemos, supra, sobre esta
doutrina), o que, no limite, conduzia à total negação do direito internacional.
A forte reacção que suscitou esta concepção absoluta da soberania levou a que
hoje se entenda o conceito em termos muito diversos, Aceitando-se, embora, que
constitui a fonte das competências estaduais, não pode deixar de concluir-se que a
soberania de cada Estado é limitada por idêntico atributo ou qualidade de todos os
outros que lhe são iguais juridicamente, sendo, portanto, as necessidades de
coexistência entre os sujeitos primários de direito internacional a determinar a
“compressão” daquela majestas. Assim é que cada vez mais se fala em soberania
limitada ou soberania partilhada. Por outro lado, quanto à sua natureza intrínseca, a
soberania como poder (potestas ou auctoritas) parece, entrementes, ter cedido o
passo à soberania como responsabilidade.
Desde há muito que na jurisprudência internacional se vem assimilando
soberania a independência. Ficou célebre, a tal propósito, a formulação utilizada pelo
juiz/árbitro MAX HUBER, no caso das Ilhas de Palmas: «La souveraineté dans les
relations entre États signifie l’indépendence». Ora, tal como definida no Projecto de
227

Declaração sobre os Direitos e Deveres dos Estados, elaborado em 1949 pela Comissão
de Direito Internacional, a independência reconduz-se à capacidade do Estado para
assegurar o seu próprio bem-estar e desenvolvimento, sem interferências externas,
nomeadamente da parte de outros Estados.
Deve ainda acrescentar-se que os três elementos constitutivos do Estado –
população, território e governos – acima mencionados, seriam noções perfeitamente
vazias e inertes na ausência deste outro conceito jurídico de independência (PIERRE-
MERIE MARTIN). Daí que, em bom rigor, mais do que naqueles, seja nesta que reside a
especificidade do Estado (M. SHAW).
O princípio da soberania (ou independência), fazendo parte do direito
internacional positivo, funda as relações interestaduais, havendo sido acolhido no
artigo 2.º, § 1, da CNU, o qual estipula que a Organização se baseia no princípio da
igualdade soberana de todos os seus membros.
Ora, da soberania decorrem certos corolários, dos quais convirá traçar um
breve retrato geral.
O primeiro deles, assinalado, entre outros, por QUOC DINH/DAILLIER/PELLET,
radica na ausência de subordinação orgânica e jurídica do Estado face a outros sujeitos
de direito internacional. Se, até determinada altura, era tão-somente perante outros
Estados que esta decorrência da soberania deveria ser compreendida, faz-se hoje
igualmente necessário afirmá-la no contexto das relações entre Estados e organizações
internacionais, sobretudo as de carácter ou pendor supranacional, que amiúde
reivindicam uma posição de supremacia orgânica relativamente aos seus membros e
até em face de terceiros.
Traduz-se o segundo no direito de jurisdição. Trata-se de um poder estadual
que se desdobra em várias dimensões: a da jurisdição prescritiva ou normativa
(regulação ou disciplina jurídica de certa matéria), o da jurisdição compulsória ou
administrativa (cumprimento compulsório das normas vigentes através de meios
administrativos e policiais) e o da jurisdição adjudicativa ou jurisdicional (sujeição a
julgamento de sujeitos responsáveis pela prática de comportamentos infringentes) (M.
AKEHURST e, na doutrina portuguesa, JÓNATAS MACHADO). Ao direito de jurisdição se
liga uma presunção (relativa) de regularidade dos actos estaduais, presunção esta que,
228

todavia, para aqueles que incidam no domínio reservado dos Estados, quase se
converte numa presunção jure et de jure.

A definição exacta do que seja o domínio reservado dos Estados não se encontra em nenhum
instrumento internacional, Partindo, todavia, de uma noção avançada pelo Instituto de Direito
Internacional, pode dizer-se que a identificação de um tal domínio assenta numa divisão dicotómica das
competências estaduais. De entre elas, umas há que apresentam um carácter vinculado, porquanto o
respectivo exercício está condicionado por directrizes que emanam do direito internacional, ao passo
que outras constituem antes expressão de um poder discricionário, dizendo, por isso, respeito a
actividades estaduais indissociavelmente ligadas à dimensão interna da soberania. Ora, em relação a
estas últimas o direito internacional permanece arredio, razão por que se aproposita o emprego da
expressão domínio reservado. Mesmo sabendo-se constituir tarefa fadada ao malogro a delimitação
material precisa desse reduto inexpugnável da “privacidade” dos Estados.

Também a autonomia constitucional e política do Estado – a que havíamos já


aludido – se integra nos corolários da soberania. A sua significação é a de que, com
excepções muito contadas (doutrina dos direitos humanos e violação do jus cogens),
ao direito internacional não interessam as estruturas e formas políticas internas,
devendo cada povo ou nação gozar de liberdade para escolher o seu próprio regime
político, económico, social e cultural, sem ingerências externas (cfr. a Declaração sobre
os princípios de direito internacional referentes às relações de amizade e cooperação
entre os Estados, de 1970, e, em especial, o que nela se estipula acerca da vertente
interna do princípio da autodeterminação, bem como algumas decisões do TIJ,
designadamente as proferidas no âmbito dos casos do Sahara Ocidental e das
Actividades militares e paramilitares na Nicarágua). Relevante para a ordem
internacional é, tão-somente, que as instituições nacionais demonstrem capacidade
para, em nome do Estado, assumir certos compromissos no plano das relações
internacionais.
Manifestação tradicional da soberania estadual constitui, por último, a
imunidade de jurisdição, que se funda no velho aforismo par in parem non habet
imperium. Mas, para além de, entre iguais, não parecer, efectivamente, fazer sentido o
exercício do poder de jurisdição, duas outras razões de ordem pragmática justificam
aquela imunidade: o receio de parcialidade dos tribunais de um Estado para dirimir
conflitos com outro; e, de qualquer sorte, as dificuldades, que decerto adviriam,
229

quanto à execução de uma hipotética sentença condenatória do Estado demandado.


Incontestável durante muito tempo, a doutrina da imunidade, segundo a qual,
portanto, um Estado (os seus órgãos ou representantes) não pode ser submetido à
jurisdição interna de outro Estado, é hoje, contudo, posta em causa em determinadas
situações. O mesmo é dizer que se foi manifestando a tendência para que uma
imunidade absoluta desse lugar a uma imunidade relativa.
Tal imunidade relativa repousa, desde logo, na distinção, nem sempre isenta de
dificuldades, entre actos jure imperii, isto é, aqueles que relevam do poder de
soberania do Estado (v.g., actos legislativos, judiciais ou executivos), e actos jure
gestionis, ou seja, actos que, diferentemente, derivam do poder de gestão do Estado
(v.g., negócios privados de compra e venda, de arrendamento, de aluguer, etc.), sendo
que só os primeiros estarão recobertos pela imunidade de jurisdição. Num outro
plano, assenta, igualmente, na destrinça entre propriedade do Estado e propriedade
privada dos titulares de cargos públicos – esta última não abrangida pela protecção. E
apoia-se, ainda, actualmente, na dicotomia entre o jus dispositivum (normas
simplesmente obrigatórias, com eficácia inter partes) e jus strictum (jus cogens ou
normas imperativas, com eficácia erga omnes), cujas violações graves (v.g., crimes
internacionais ou desrespeito pelos direitos humanos) poderão (deverão) justamente
levar ao afastamento da sobredita regra tradicional imunidade.
A tendência para um relaxamento do regime clássico obteve acolhimento
favorável na Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos
Estados e dos Seus Bens, de 2005. Com efeito, logo no artigo 5.º respectivo se reafirma
o princípio da imunidade do Estado, relativamente a si próprio e aos seus bens. Por
força do princípio venire contra factum proprium non valet, releve-se, ainda assim, não
poder um Estado invocar essa imunidade num processo judicial em outro Estado, se,
expressamente – por acordo internacional, contrato escrito, declaração ou
comunicação –, tiver consentido no exercício da jurisdição pelo mesmo tribunal
estrangeiro relativamente à mesma questão ou lide (artigo 7.º). Sucede, contudo, que
da Parte III da Convenção (artigos 10.º e ss.), ressalta a mercê concedida à mencionada
imunidade relativa, através da previsão de diversas situações em que aos Estados se
encontra vedada a invocação da imunidade de jurisdição.
Mais exactamente, será o caso das transacções comerciais realizadas por um
230

Estado com pessoa singular ou colectiva estrangeira (artigo 10.º); dos contratos de
trabalho entre um Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que
deveria realizar-se, no todo ou em parte, no território de um Estado estrangeiro (artigo
11.º); dos processos por danos causados a pessoas e bens, isto é, relativos
indemnizações pecuniárias em caso de morte ou de ofensa à integridade física de uma
pessoa, ou em caso de dano ou perda de bens materiais causados por um acto ou
omissão ocorridos, no todo ou em parte, no território de outro Estado (artigo 12.º);
dos processos para determinação da propriedade, posse e utilização de bens móveis ou
imóveis (artigo 13.º); dos processos relacionados com direitos de propriedade
intelectual e industrial (artigo 14.º); dos processos relativos à participação de um
Estado numa sociedade ou outra pessoa colectiva (artigo 15.º); e, ainda, dos processos
judiciais atinentes a navios de que um Estado é proprietário ou explora, se, no
momento do facto que deu lugar à acção, o navio estava a ser utilizado para outra
finalidade que não a de serviço público sem fins comerciais (artigo 16.º).
De notar, porém, que, ex vi do seu artigo 3.º, esta Convenção das Nações
Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos Seus Bens,
designadamente o disposto nos artigos supracitados, não afecta os privilégios e
imunidades diplomáticos e consulares outorgados pelo direito internacional.
Problema que hoje se coloca – e cada vez com maior acuidade, dada a
tendência para a privatização da Administração Pública em domínios como a saúde, a
educação, a assistência social, a segurança, etc. – é o de saber se podem as entidades
privadas dotadas de prerrogativas de direito público (poderes de autoridade)
beneficiar, excepcionalmente, de uma imunidade derivada nos casos de prática de
actos jure imperii, que seriam abrangidos pela imunidade de jurisdição se tivessem
sido praticados por um Estado (HING WEN e, na sua esteira, JÓNATAS MACHADO).
Ora, tudo estará em saber se, efectivamente, está em causa o exercício de poderes
típicos de soberania ou, bem ao invés, actividades puramente comerciais.

3 – Competências do Estado

O Estado é titular de um vasto conjunto de direitos e prerrogativas, quer


aqueles que devem considerar-se inerentes à sua condição de entidade soberana, quer
aqueloutros que o direito internacional expressamente lhe atribui. De entre eles, uns
231

são exercidos no plano interno, outros no plano internacional; em ambos os casos, de


forma plena e com exclusividade. Procuremos, pois, sistematizá-los de forma
adequada.
No que toca às competências internas, há duas vertentes a considerar: a da
competência territorial e a da competência pessoal.
Significa a primeira, em linhas gerais, que o direito internacional reconhece aos
Estados o Direito de exercerem discricionariamente os actos de autoridade que se
revelem necessários ao desenvolvimento de todo o tipo de actividades (lícitas) no seu
território. Em consequência disso, pode o Estado soberano, relativamente a essas
mesmas actividades, recusar os exercício de idênticos poderes (actos de jurisdição ou
de autoridade) por parte de outros sujeitos de direito. A plenitude pressupõe
exclusividade – regra consuetudinária esta que a jurisprudência internacional
reconhecera já em diversas ocasiões, designadamente no âmbitos dos casos Lotus, do
Estreito de Corfu, Haia de la Torre e do Direito de Passsagem em Território Indiano
(GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).
A competência pessoal, por sua vez, está directamente imbricada com o
conceito de nacionalidade, já referido supra. Implica, desde logo, que seja ao Estado,
por norma a título exclusivo, que compete atribuir a sua nacionalidade a pessoas
(singulares ou colectivas), a navios, aeronaves, satélites e demais engenhos espaciais.
Ponto assente é que a jurisdição dos Estados não se exerce apenas em relação
aos seus nacionais; estende-se também aos estrangeiros, já que; à luz do princípio da
territorialidade, a lei do Estado, nomeadamente a lei penal, se aplica a todos os actos
praticados no respectivo território (AZEVEDO SOARES). Em certos casos, pode até
suceder que se aplique a actos praticados por estrangeiros no estrangeiro: deve, na
verdade, entender-se que ao Estado assiste o direito de punir certos actos que hajam
sido cometidos no estrangeiro, por cidadãos estrangeiros, quando, por exemplo,
estejam em causa a segurança desse Estado, uma falsificação da sua moeda, selos,
marcas oficiais, etc.. Isto na senda dos princípios outrora enunciados, em 1931, pelo
Instituto de Direito Internacional.
Mas, estendendo-se aos estrangeiros a competência pessoal dos Estados,
importa saber de que forma devem aqueles ser tratados.
Ora, é comum às ordens jurídicas internas a existência de um direito dos
232

estrangeiros. Trata-se de um conjunto de normas que, assentando, em regra, num


princípio de equiparação entre nacionais e não nacionais, não deixa, contudo, de entre
eles estabelecer uma certa diferenciação, mormente quando esteja em causa o
exercício de direitos políticos e de funções públicas que não possuam carácter
predominantemente técnico (v.g., entre nós, o acesso aos cargos de Presidente da
República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidente de
um supremo tribunal, bem como o serviço nas Forças Armadas ou na carreira
diplomática); tarefas que, dada a sua específica natureza, se entende por bem reservar
aos nacionais (cfr. artigo 15,º, nº 2 e 3 da CRP).
Prevê este mesmo preceito, no seu número 3, a possibilidade de aos cidadãos
dos Estados de Língua Oficial Portuguesa com residência permanente em Portugal
serem reconhecidos, nos termos da lei e em condições de reciprocidade, certos direitos
não conferidos a estrangeiros (com excepção dos cargos e funções
supramencionados). E acrescenta o número 4 poder a lei atribuir aos cidadãos
estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade,
capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de órgãos das
autarquias locais. Relativamente a cidadãos de Estados membros da União Europeia
residentes em Portugal, e, uma vez mais, em condições de reciprocidade, dispõe, por
sua vez, o número 5 poder a lei conferir-lhes o direito de elegerem e serem eleitos
Deputados ao Parlamento Europeu.
Resta saber se bastará a um Estado dispensar aos estrangeiros um tratamento
equiparado ao dos seus nacionais para que, de acordo com o direito internacional, a
sua conduta deixe de ser, em absoluto, passível de críticas.
A resposta não pode deixar de ser negativa. De facto, os Estados não gozam de
total autonomia em matéria de regulamentação do estatuto dos não nacionais, antes
devendo harmonizá-lo com princípios de direito internacional que, relativamente ao
tratamento de estrangeiros (como, de resto, ao de nacionais), impõem o modelo de
um Estado razoável. Em que consiste?
Significa que todo o Estado deve actuar em consonância com os padrões
mínimos de um Estado civilizado (standard minimum), agindo de boa-fé e observando
as suas obrigações perante os cidadãos não nacionais – maxime no âmbito da
protecção judiciária, em que vigoram o princípio de proibição de denegação de justiça
233

e, em juízo, as regras do due process –, jamais os sujeitando a tratamentos desumanos


ou degradantes. Só dessa forma, aliás, será legítimo os Estados esperarem que os seus
pares nas relações internacionais respeitem, quer as suas instituições, quer o seu
ordenamento jurídico (AZEVEDO SOARES).
No que tange, por outro lado às competências internacionais, arrumava-as o
direito internacional clássico na conhecida trilogia, jus tractum, jus legationis e jus ad
bellum, isto é, respectivamente, o direito de celebrar tratados ou convenções
internacionais, o direito de enviar (direito de legação activa) e de receber (direito de
legação passiva) representantes diplomáticos e o direito de fazer a guerra.
Actualmente, fruto da consagração do princípio da proibição do recurso à força nas
relações internacionais, no artigo 2.º, nº 4, da CNU (que apenas admite excepções
muito contadas), das três competências indicadas sobejam unicamente as duas
primeiras.
De notar que o jus tractum pode estar na base de um sem número de situações
(hoje inexistentes ou em franco declínio) que envolvem o exercício de competências
por parte de um ou vários Estados fora do seu território. Não de trata, em tais casos,
de competências plenas, mas antes de um feixe de competências fundadas num título
particular, que, por isso, mais apropriadamente, devem designar-se por competências
territoriais menores. Referimo-nos, inter alia, às fórmulas jurídicas da cessão, do
protectorado (ambos já mencionados noutro local), da servidão, do condomínio, do
mandato e da tutela (pressupondo estes dois últimos um exercício controlado e
supervisionado por organizações internacionais). Do lado dos Estados que, em
resultado dessas obrigações convencionais, se veem amputados de algumas das suas
competências, adquire inteiro propósito falar-se em situações de semi-soberania
(BACELAR GOUVEIA).
Ao jus tractum e ao jus legationis caberá acrescentar-se o direito de reclamação
internacional (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS) – hoje, de resto, um
direito não exclusivo dos sujeitos primários de direito internacional, visto que também
as organizações internacionais a até o próprio indivíduo (este excepcionalmente) dele
dispõem. Analisa-se no possível recurso, por parte do Estado, a certos meios político-
diplomáticos ou jurisdicionais (v.g., protestos, pedidos de inquérito, desencadeamento
de um processo arbitral ou judicial), junto de determinadas instâncias internacionais,
234

como forma de fazer valer os seus direitos e, eventualmente, de ser ressarcido pelos
danos que lhe hajam sido caussados.

4 – Responsabilidade internacional do Estado

4.1 – Responsabilidade por actos ilícitos

É conhecida a distinção entre normas primárias e normas secundárias. As


primeiras são aquelas que impõem determinadas obrigações de conduta aos
destinatários respectivos, enquanto as segundas se destinam antes a fixar as
particulares consequências jurídicas que se ligam à violação das normas primárias (P.
REUTER). Ora, estando em causa no instituto da responsabilidade internacional as
relações jurídicas novas, emergentes da prática de um acto ilícito – rectius, da violação
de uma obrigação internacional primária –, é justamente no terreno das normas
secundárias que, doravante, nos iremos situar.
Advirta-se apenas que, embora, de seguida, se proceda ao estudo da
responsabilidade do Estado, a matéria da responsabilidade internacional vai além
disso, abrangendo, nomeadamente, a responsabilidade das organizações
internacionais – objecto, aliás, de um Projecto de Artigos da CDI, adoptado, na sua
versão final, em 2011 – e de outros sujeitos de direito.
Relativamente aos Estados, o texto base do qual se extraem os lineamentos
fundamentais do regime da sua responsabilidade é o Projecto de Artigos sobre a
Responsabilidade Internacional (PARI), havendo a Assembleia Geral da ONU dele
“tomado nota” através da resolução 56/83, de 12 de Dezembro de 2001. Trata-se de
um documento que, no essencial, codifica as normas consuetudinárias na matéria,
reflectindo o labor da CDI ao longo de várias décadas, com início no já longínquo ano
de 1953.

4.1.1 – Pressupostos

Como se desencadeia a responsabilidade internacional do Estado?


A prática de um acto internacionalmente ilícito constitui o pressuposto
essencial da responsabilidade internacional subjectiva. E tal verificar-se-á sempre que
um Estado viole, por acção (comportamento positivo) ou por omissão
235

(comportamento negativo) uma obrigação internacional (qualquer que seja a sua


origem ou natureza) a cuja observância esteja vinculado.

Consta da aludida versão definitiva do PARI (artigos 1º e 2.º) o pressuposto acabado de


enunciar. Aí, com efeito, se estipula resultar um facto internacionalmente ilícito de um comportamento
(facto jurídico voluntário, portanto), concretizado numa acção ou numa omissão, imputável ao Estado, e
consistente na violação de uma obrigação internacional, aferindo-se o respectivo carácter ilícito com
base apenas no ordenamento jurídico internacional (artigo 3.º). Daí que, quanto a este último ponto,
possamos sustentar que a qualificação de um determinado facto como ilícito pelo direito interno não é
de molde a atestar a sua ilicitude também no plano internacional. Inversamente, a licitude interna de
um acto jurídico (que pode, até, assumir a forma de lei, de acto administrativo ou de decisão judicial)
não preclude o respectivo carácter internacionalmente ilícito. Acrescente-se ainda que a ilicitude
decorre tão-somente de uma desconformidade objectiva de certa conduta com uma norma (obrigação)
primária aplicável ao caso concreto. A intencionalidade do Estado ou o juízo de censurabilidade que o
seu comportamento hipoteticamente suscite (culpa), não relevam para efeitos de estabelecimento da
responsabilidade internacional.

Daqui resulta, pois, ser necessário, em segundo lugar, poder atribuir-se


(imputar-se) tal comportamento (ilícito) ao Estado, com o que a imputação constitui o
segundo pressuposto da responsabilidade internacional. A existência de um vínculo
jurídico que permita associar certa conduta a um Estado, assume-se como condição
indispensável dessa imputação funcional, razão por que os comportamentos
meramente particulares não são de molde a desencadear os mecanismos próprios da
responsabilidade internacional dos Estados. Pois bem, determinado comportamento
será, desde logo, atribuível ou imputável ao Estado caso haja sido adoptado por órgãos
que o representem (imputação directa). Com base no princípio da unidade do Estado,
pouco importam, aliás, a natureza singular ou colegial, centralizada ou descentralizada
de tais órgãos ou o carácter (legislativo, judicial ou executivo) das competências que
exerçam (artigo 4.º, nº 1, do PARI).
Por força de uma ligação mais estreita à actividade dos particulares, é talvez a
função administrativa aquela que, mais frequentemente, oferece ocasião azada para o
surgimento de uma responsabilização internacional do Estado perante cidadãos
estrangeiros, em especial no âmbito dos contratos de concessão, relativamente aos
quais ocorre, por vezes, a violação, por parte do contraente público, das obrigações
contratuais e do princípio dos direitos adquiridos (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).
236

Mas também da actuação dos órgãos legislativos (ou da ausência dela) poderá
resultar a responsabilidade internacional do Estado. Assim, por exemplo, a adopção de
uma lei que contrarie ou colida com obrigações internacionais previamente assumidas
não deixará de produzir esse resultado. O mesmo sucederá no caso de omissão: v.g., a
não promulgação de uma lei indispensável ao adequado cumprimento de certos
compromissos internacionais em matéria de justiça e segurança (A. VERDROSS), de
direitos humanos, de ensino, de saúde, de ambiente, etc.
Quanto ao aparelho jurisdicional, a denegação de justiça, ou seja, a violação da
obrigação internacional (costumeira) que injunge os Estados a conferirem uma
adequada protecção judiciária aos estrangeiros que se encontrem sob a sua jurisdição
(v.g., no que toca ao acesso aos tribunais, às garantias processuais, em geral, e aos
meios de defesa do arguido, em particular, etc.), constitui porventura, neste domínio,
o principal acto ilícito internacional.
Dos artigos 5.º a 11.º do PARI constam, no entanto, outras situações, mais
atípicas, em que se verifica o nexo de imputação entre determinado comportamento
violador do direito internacional e um Estado. É, em primeiro lugar, o caso de uma
conduta (antijurídica) praticada por pessoas ou entidades às quais hajam, legalmente,
sido atribuídas prerrogativas de direito público (poderes de autoridade), desde que,
em concreto, tenham actuado no respectivo exercício (artigo 5.º). Hipótese esta hoje
particularmente plausível, atenta a já referida tendência para a privatização ou
“outsourcing” de actividades que implicam o exercício de poderes públicos (MARIA
ISABEL TAVARES). Pense-se, v.g. na contratação de empresas privadas de segurança
para actuarem em conflitos armados.
Nos termos do disposto no artigo 6.º do PARI deve, igualmente, ser
considerada como acto de um Estado a conduta de um órgão posto à disposição desse
Estado por outro, desde que adoptada no exercício de poderes de autoridade pública.
Será, por exemplo, o caso de as forças armadas de um Estado ou de um corpo de
bombeiros serem postos à disposição de outro, assolado com uma catástrofe
humanitária ou confrontado com um desastre natural, ficando sob a autoridade do
Estado auxiliado.
A imputação de um comportamento ao Estado poderá, em terceiro lugar, advir
das situações de excesso de poder, de actuação contrária a instruções ou ultra vires
237

(artigo 7.º do PARI). Se, por conseguinte, na actuação de um Estado, nos termos dos já
referidos artigos 4,º, 5.º e 6.º, se detectar um excesso de poder, a desobediência a
instruções de um superior hierárquico ou, pura e simplesmente, a conduta de um
órgão que exorbitou do quadro de competências que legalmente lhe foram cometidas
(actos ultra vires), nem por isso logrará esse Estado eximir-se à sua responsabilidade
internacional (v.g., a prática de tortura por parte das autoridades policiais,
relativamente a um cidadão estrangeiro que se encontre detido, com o propósito de
obter uma confissão; ou um soldado que, desobedecendo às ordens do seu superior
hierárquico, bombardeia deliberadamente alvos civis no decurso de um conflito
armado internacional).
Em quarto lugar, contempla o PARI, no seu artigo 8.º, aquelas situações em que
alguém (uma pessoa ou grupo de pessoas), que não é órgão estadual ou entidade
autorizada a exercer prerrogativas de poder público, actuou, de facto, sob o comando
(sob as instruções) ou sob o controlo de um Estado. Assim sucedendo, tal actuação
será, outrossim, imputável a este último. Tudo está, porém, em saber qual o
significado a atribuir às expressões “sob a direcção” (ou sob as suas instruções”) ou
“sob o controlo” constantes do preceito citado. A este respeito transparece da
jurisprudência internacional uma oscilante incerteza. Se, por exemplo, no caso das
Actividades Militares e Paramilitares na Nicarágua e Contra Esta, avaliando a eventual
responsabilidade dos EUA na actuação dos “Contra”, o TIJ parece ter-se socorrido de
um critério apertado, talvez demasiado rígido, ao exigir prova de um controlo efectivo
(à guisa de um autêntico poder de direcção), materializado na emissão de instruções
específicas, já o TPIJ, no caso Tadic, apreciando se os crimes cometidos por Tadic
haviam sido cometidos num conflito armado internacional, se bastou com o
parâmetro, bem mais flexível, do controlo global, que, diversamente, dispensa a prova
dessas instruções. Esta segunda interpretação parece melhor afeiçoar-se ao teor literal
do artigo 8.º do PARI, do qual, aparentemente, transparecem dois níveis alternativos
de controlo (sob as instruções ou sob a direcção, por um lado, ou sob controlo, por
outro). De resto, a não se entender assim, tornar-se-ia, quiçá, muto problemática a
imputação de um comportamento ilícito ao Estado, nas hipóteses previstas na
disposição em apreço.
Ocupa-se seguidamente o PARI (artigo 9.º) de outro tipo de actos susceptíevis
238

de serem imputados ao Estado: aqueles que hajam sido adoptados por particulares na
ausência ou carência de autoridades oficiais. Trata-se de uma situação excepcional e
transitória, em que uma pessoa ou um grupo de pessoas, que não possuem qualquer
ligação funcional com o Estado, assumem e exercem poderes de autoridade pública na
ausência das autoridades oficiais (v.g, na sequência de uma catástrofe natural, de uma
convulsão política interna, de um conflito armado, de uma ocupação estrangeira, etc.).
Em sexto lugar, prevê o artigo 10.º do PARI a possibilidade de serem
considerados como actos do Estado certos comportamentos levados a cabo por grupos
de insurrectos (ou insurgentes). Tal ocorrerá, designadamente, se no território em que
tais grupos desenvolvem a sua luta se verificar uma substituição de governos:
ascendendo o movimento de insurrectos ao poder, as suas condutas serão,
naturalmente, imputadas ao Estado em questão (nº 1 do artigo 10.º). Mas o mesmo
sucederá se o grupo em causa lograr cindir o primitivo território estadual e, portanto,
constituir um novo Estado, hipótese em que os respectivos comportamentos serão
considerados como actos desse novo Estado (nº 2 do artigo 10.º).
Culminam estes casos de imputação indirecta a que temos estado a aludir com
o disposto no artigo 11.º do PARI. Aí, com efeito, se configura a situação em que um
Estado reconhece, adoptando-o como seu, o comportamento (particular) de outrem.
Quando praticado, tal comportamento é, portanto, meramente privado, logo
insusceptível de ser atribuído ao Estado. Só a posteriori este o coonesta e o assume
como seu, modificando a respectiva natureza (um acto privado convola-se,
subsequentemente, em acto estadual). Foi, v.g., o caso do ataque e invasão da
Embaixada dos Estados Unidos em Teerão, em finais dos anos 70 do séc. XX., bem
como da tomada de reféns que se lhes seguiu: tais comportamentos, ab initio da
responsabilidade de indivíduos desinvestidos de qualquer status oficial (não se tratava
de órgãos ou agentes estaduais), foram depois objecto da chancela (do aval ou do
consentimento) do regime do Ayatollah Khomeini, convertendo-se,
consequentemente, em actos imputáveis ao Irão.

O terceiro pressuposto da responsabilidade internacional subjectiva reconduz-


se à ocorrência de danos ou prejuízos. É certo que depois de, demoradamente,
discutida a questão no seio da CDI, optou esta por não erigir o dano em pressuposto
239

autónomo da responsabilidade do Estado. Algo contraditoriamente, porém, na Parte II


do PARI, consagrada ao conteúdo da responsabilidade internacional, enuncia o artigo
31.º o dever de reparação dos danos, materiais ou morais, causados ao Estado (s)
vítima (s) com a prática do acto internacionalmente ilícito…
Poderá afirmar-se ser suficiente imputar a um Estado determinado
comportamento ilícito para que a sua responsabilidade internacional logre (teórica e
abstractamente) estabelecer-se. Imagine-se, por exemplo, que, contrariamente ao
disposto numa convenção internacional de que é parte, um Estado não adopta certas
medidas de prevenção da ocorrência de danos ambientais transfronteiriços a que se
comprometera (vinculara), danos esses que acabam por não se produzir. Dir-se-á, pois,
que, num tal caso, esse Estado incorrerá em responsabilidade internacional, a despeito
de a sua conduta não haver causado prejuízos a terceiros. Mas, na ausência destes,
quedar-se-á essa responsabilidade circunscrita a um plano (quase) puramente
platónico, cessando de fazer sentido falar-se num dever de reparação a cargo do
Estado autor.
Destarte, a mise en oevre da responsabilidade haverá, efectivamente, de
implicar a ocorrência de danos (concretos, palpáveis, de natureza material ou moral),
pois só a respectiva verificação permitirá fundar a pretensão ressarcitória do Estado
vítima.

Por último, um Estado apenas incorrerá em responsabilidade internacional


estabelecido que esteja o nexo de causalidade entre determinado comportamento que
haja adoptado e os danos sobrevindos. Quer dizer, será mister demonstrar-se que
estes resultaram ou foram consequência adequada do facto praticado pelo agente
(Estado autor).

Como se pode ver, os pressupostos da responsabilidade internacional revelam assinalável


proximidade com os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, no plano interno. Na
verdade, da leitura do artigo 483.º do Código Civil português, retira-se a conclusão de que um facto
voluntário do agente, que infrinja objectivamente uma qualquer norma disciplinadora da vida social
(ilicitude), funda, havendo nexo de imputação, ocorrência de danos e nexo de causalidade, uma
obrigação de indemnização (ANTUNES VARELA).
240

Refira-se, em todo o caso, que poderão os pressupostos supramencionados


verificar-se de forma mais subliminar (ou menos linear), abrindo caminho ao
surgimento da responsabilidade de um Estado por comportamentos de outro. Serão,
nomeadamente, os casos de um Estado que preste ajuda ou assistência a outro na
comissão de um acto internacionalmente ilícito (artigo 16.º do PARI); do exercício dos
poderes de direcção ou de controlo sobre outro Estado (artigo 17.º do PARI); ou da
coacção exercida sobre outro Estado (artigo 18.º do PARI).

4.1.2 – Consequências: regime-regra e regime excepcional

Regime-regra

Uma vez verificados os pressupostos acima identificados, pode dizer-se que o


Estado se torna incurso em responsabilidade internacional. Mas em que é que tal,
concretamente, se traduz?
A generalidade dos autores (v.g., ACCIOLY, COHN, GUGGENHEIM, M. SHAW,
OPPENHEIM, P. REUTER, SCHWARZENBERGER, TUNKIN, entre muitos outros) aponta
como constituindo a principal consequência da responsabilidade internacional o
surgimento de uma relação jurídica nova (de carácter bilateral) entre o Estado autor
do acto ilícito e o Estado lesado por essa infracção à ordem internacional (cfr., supra,
ponto 2.5 do Cap. I), sendo que, ao direito subjectivo deste último de exigir a
reparação dos danos que lhe tenham sido causados, corresponde o dever correlativo,
que impende sobre aquele, de proceder a essa reparação (artigo 31.º do PARI).
O dever de reparação de danos como consequência da violação de um
compromisso (ou de um dever geral) constitui, aliás, um princípio geral de direito,
aplicável também no ordenamento jurídico internacional, como, de resto, o TPJI
reconhecera já no caso da Fábrica de Chorzow, datado de 1928. Enunciam os artigos
34.º e seguintes do PARI as três modalidades em que esse dever de é susceptível de
consubstanciar-se, a saber, a restitutio in integrum, a reparação por equivalente (ou
indemnização em sentido estrito) e a satisfação. Atentemos no seu significado.
Desejavelmente, deverá a reparação, tanto quanto possível, apagar as
consequências do acto ilícito, restabelecendo o statu quo ante, isto é, a situação que
241

teria existido caso aquele não tivesse sido praticado (reposição da situação actual
hipotética). Ora, só a restitutio in integrum (restituição integral ou restituição em
espécie) permite a total obliteração dos efeitos emergentes da comissão de actos
ilícitos, pelo que – como se afirmou no mencionado caso da Fábrica de Chorzow e,
anos mais tarde, no caso Texaco Calasiatic – é ela a consequência normal do
incumprimento de obrigações internacionais.
Assim, como refere AZEVEDO SOARES, se um Estado ocupou um território
estrangeiro, deverá restituí-lo; se promulgou uma lei que colide com os seus
compromissos internacionais, deverá revogá-la; se, injustamente, expropriou bens de
estrangeiros, deverá anular esse acto administrativo expropriativo; se também contra
cidadãos estrangeiros, proferiu uma sentença injusta ou discriminatória, deverá
proceder à sua anulação. A restitutiu in integrum será ainda viável naquelas situações
em que sobrevêm danos materiais como resultado da prática do acto ilícito: v.g., a
reconstrução de um imóvel deliberadamente destruído.
Nem sempre, porém, se revela exequível esta forma de reparação dos danos.
Com efeito, não faltam ocasiões em que, seja pela circunstância de o acto jurídico
(ilícito) em causa haver já produzido efeitos irreversíveis (v.g., a morte de alguém), seja
pelo facto de os danos materiais ocorridos terem redundado num prejuízo definitivo
para o Estado vítima (v.g., a destruição de bens insusceptíveis de recuperação, de
reabilitação ou de reconstrução), não resta outra alternativa senão partir em busca de
outra modalidade de reparação (cfr. artigo 35.º, a), do PARI).
Outras vezes, sendo embora viável a restitutio in integrum, poderá suceder que
ela envolva para o Estado autor do acto ilícito um prejuízo desproporcionado
comparativamente às vantagens que o Estado lesado obteria beneficiando dessa
forma de reparação (cfr. artigo 35.º, b), do PARI); ou que a sua efectivação possa
comprometer gravemente a manutenção do regime político ou até a estabilidade
económica do Estado que infringiu o direito internacional. Em ambos os casos deverá
ter-se por afastada a restituição integral.
Ora, quando, por conseguinte, a restitutio in integrusm seja materialmente
impossível, ou quando, sendo possível, se revelaria injusta e desproporcionada, é a
reparação por equivalente ou indemnização (em sentido estrito) que se apresenta
como mais adequada para compensar o Estado vítima pelos prejuízos causados.
242

Consiste ela no pagamento de uma quantia pecuniária ao Estado vítima,


correspondente ao valor que teria a restituição em espécie, pelo que, em concreto, o
montante da indemnização deve ser apurado de molde a permitir cobrir não apenas o
damnum emergens (as perdas directamente verificadas com a prática do acto ilícito),
mas também o lucrum cessans (a privação de ganhos ou vantagens esperados).
Com dificuldades de não pequena monta se deparam, contudo,
frequentemente, aqueles (nomeadamente, os tribunais internacionais) que têm a seu
cargo a fixação do quantum das indemnizações. Como forma de as minimizar, algumas
regras são usualmente observadas.
Em primeiro lugar, o cálculo do montante da indemnização é feito à luz das
normas de direito internacional, sendo descartados os preceitos de direito interno
que, para esse fim, pudessem também ser mobilizados; depois, o grau do prejuízo
sofrido deve aferir-se por referência ao momento (presente) em que está a ser fixada a
indemnização e não – sob pena de, justamente, a compensação pecuniária não
abranger ou recobrir os lucros cessantes – ao momento da prática do acto ilícito; por
fim, importa excluir qualquer ideia de «indemnização punitiva», pois do que se trata é
tão-apenas da reparação de um prejuízo e jamais de uma sanção (ou pena) a infligir ao
Estado autor.
No artigo 36.º, nº 2, do PARI, consideram-se passíveis de indemnização os
danos economicamente valoráveis, expressão que, segundo os próprios juristas da CDI,
abrange, quer os chamados danos directos ao Estado – ou seja, os que houverem sido
causados ao território estadual em geral, à organização do Estado, em sentido lato, aos
seus bens, no país ou no estrangeiro, às suas instalações militares, aos locais
diplomáticos, aos navios, aeronaves, etc. –, quer os danos indirectos, isto é, os sofridos
pelos seus nacionais (tanto as perdas patrimoniais, como os danos morais).

Interessante, pelo seu ineditismo, foi a solução dada pelo TIJ, quanto ao problema da
indemnização, no caso Gabcíkovo-Nagymaros (CIJ, Recueil…, 1997). De facto, concluindo que ambas as
partes haviam cometido actos internacionalmente ilícitos e que, por isso, ambas estariam obrigadas a
indemnizar, ao mesmo tempo que tinham direito a ser indemnizadas, estimou o Tribunal que a questão
poderia resolver-se satisfatoriamente se cada um dos Estados renunciasse às suas pretensões de
carácter financeiro, anulando-se, de tal sorte, os direitos e obrigações recíprocas
243

Mas, os danos emergentes da violação de uma obrigação internacional podem


ser de carácter puramente moral. Em tal caso, como bem se compreende, não é a
indemnização a forma mais adequada de assegurar uma compensação pelos prejuízos
causados; só uma reparação também ela de carácter moral o poderá garantir:
referimo-nos à satisfação.
A expressão pública de pesar, um pedido oficial de desculpas por parte do
Estado responsável (ou outra qualquer forma de retratação), a cominação de sanções
internas (v.g., medidas administrativas, do foro disciplinar ou de carácter penal) ao
agente autor do acto ilícito, ou até, em circunstâncias diversas, uma simples
declaração de ilicitude proferida por um tribunal internacional (como, por exemplo,
ocorreu nos casos do Estreito de Corfu e Adolf Eichman) tudo são comportamentos –
alguns deles, aliás, contemplados no artigo 37.º, nº 2, do PARI – em que pode
materializar-se esta terceira modalidade de reparação. Ponto é que ela não seja
desproporcionada e não represente gravame excessivo para a dignidade do Estado
responsável, implicando a sua “humilhação” (cfr. o nº 3 desse mesmo artigo 37.º).
Refira-se, a concluir este ponto, que se não exclui, no artigo 34.º do PARI, a
possibilidade de, em concreto – e de modo a garantir uma completa compensação do
Estado lesado –, se proceder a uma combinação das três modalidades de reparação,
exceptuando-se, talvez, a hipotética simultaneidade entre restitutio in integrum e
indemnização, pois que tal se apresentaria como redundante. .
Adicionalmente, três outras consequências acessórias (ainda que, temporal ou
cronologicamente, possam preceder o dever de reparação) se produzem: o dever que
impende sobre o Estado autor de, daí por diante, continuar a cumprir a obrigação
violada (artigo 29.º do PARI); o dever de cessação da prática do acto ilícito, se ele for
continuado, isto é, se perdurar, não se exaurindo os seus efeitos num momento
determinado (artigo 30.º, a), do PARI); e o dever de prestar garantias de não repetição,
se as circunstâncias o exigirem (medidas, acções ou comportamentos que, em
concreto, tais circunstâncias tornem virtuosos, adequados ou recomendáveis) (artigo
30.º, b), do PARI). Serão, sobretudo, o elevado risco de repetição do acto ilícito e a
gravidade de que se revestiu a violação do direito internacional a tornarem imperioso
o cumprimento deste dever. Isto de forma a ser restaurado um desejável clima de
confiança entre os Estados autor e vítima do acto ilícito (S. BARBIER e J. CRAWFORD).
244

Regime excepcional

O regime-regra da responsabilidade internacional, acima descrito, sofre desvios


ou entorses em face da prática de actos ilícitos de especial gravidade, mais
exactamente perante sérias violações de obrigações decorrentes de normas
imperativas de direito internacional geral (artigos 40.º e 41.º do PARI).
Na verdade, como vimos já noutro local, a hierarquização da normatividade
internacional (teorias do jus cogens e das obrigações erga omnes), teve consequências
em sede de responsabilidade internacional, dando, nomeadamente, origem à teoria
dos graus de ilicitude e, portanto, à identificação – a par daquele regime base herdado
do modelo de Westefália – de um regime mais gravoso de responsabilidade subjectiva
do Estado, que, justamente, se desencadeia aquando da infracção a normas de jus
cogens (cfr. o que sobre o assunto fomos avançando nos pontos 9 da Introdução e 3.5
do Capítulo I).
Escorados numa análise exaustiva da prática dos Estados, da segunda metade
do séc. XX em diante, vários juristas da Comissão de Direito Internacional (entre
outros, GARCIA AMADOR, TUNKIN, USHAKOV e, especialmente, ROBERTO AGO),
contribuíram para que esta viesse a adoptar, em 1976, no artigo 19.º de uma primitiva
versão do seu Projecto de Artigos, a já mencionada distinção entre crimes e delitos
internacionais. Puro nominalismo ou não, certo é que o receio de que com a
terminologia adoptada se enveredasse, imponderadamente, por uma
responsabilização criminal dos Estados, determinaria que sobre essa disposição se
viesse, mais tarde, a colocar uma cruz de sepultura.
Como, no entanto, permanecesse essencialmente válido no direito
internacional o distinguo entre actos ilícitos mais e menos graves, consagrou a CDI às
violações qualificadas do direito internacional o capítulo III da Parte II da versão actual
do PARI (os citados artigos 40.º e 41.º).
Resulta, efectivamente, do número 1 do primeiro desses preceitos (artigo 40.º)
que tais formas mais severas de ilicitude resultam da violação grave, por um Estado,
de obrigações decorrentes de normas imperativas de direito internacional (jus cogens).
E acrescenta o número 2 que a violação será grave se envolver o incumprimento
flagrante e sistemático da obrigação em causa.
245

A disposição em apreço abre caminho a algumas reflexões.


Desde logo, coloca o problema da identificação das normas de jus cogens. Tarefa que, na falta
de uma instância internacional vocacionada para o efeito, será, como bem salientou J. CRAWFORD,
confiada à prática dos Estados e ao labor da jurisprudência. Ainda assim, no seu projecto de conclusões
sobre Normas Peremptórias de Direito Internacional Geral, adoptado, em primeira leitura, em 2019, não
se coibiu a CDI – na senda de reiterados alvitres da doutrina – de enunciar uma lista (não exaustiva) de
normas imperativas: proibição de agressão, proibição do genocídio, proibição dos crimes contra a
humanidade, regras básicas de direito internacional humanitário, proibição da discriminação racial e do
apartheid, proibição da escravatura, proibição da tortura e o direito de autodeterminação.
Em segundo lugar, suscita a questão de saber até que ponto se revelou acertado persistir na
exigência do requisito da gravidade da violação da norma imperativa. Não terá com isso a CDI aberto
uma espécie de caixa de Pandora? Cabe, na verdade, perguntar: quid juris, caso a violação do jus cogens
não seja grave (ou tão grave quanto isso)? Aplicar-se-á, num tal caso, o regime-regra da
responsabilidade internacional ou, eventualmente, um regime híbrido (“intermédio”), cujas
consequências jurídicas se encontram ainda por definir? Não poderá isso conduzir a uma inusitada e
indesejável multiplicação dos regimes de responsabilidade internacional, fomentando uma completa
insegurança jurídica? Acresce que, numa outra perspectiva, sempre poderia obtemperar-se ser, por
definição, grave a violação de uma norma imperativa, mormente nos casos de agressão, de genocídio,
de crimes contra a humanidade e de apartheid racial institucionalizado, o que, também a esta luz,
atestaria a desnecessidade de se haver consagrado aquele requisito. Como quer que seja, terá sido
desiderato da CDI «não banalizar o incumprimento» do jus cogens, exigindo-se uma certa magnitude da
violação da obrigação internacional (J. CRAWFORD). Mais precisamente, um incumprimento flagrante e
sistemático, nos termos do disposto no número 2 do artigo 40.º do PARI. Se o termo flagrante parece
apontar para um requestado patamar de intensidade da violação, bem como para a extensão dos
efeitos que produz, o adjectivo sistemático convoca, por sua vez, uma ideia de actuação organizada e
padronizada que se prolonga no tempo.

Mas quais as linhas fundamentais desse regime excepcional (mais gravoso) de


responsabilidade internacional? Que consequências jurídicas específicas
(suplementares) acarreta?
A resposta encontra-se (conquanto apenas parcialmente) no artigo 41.º do
PARI.
Sobre os Estados (sobre todos os Estados da comunidade internacional)
impendem três obrigações internacionais: a obrigação de cooperar, por meios lícitos,
para fazer cessar o acto ilícito (I); a obrigação de não reconhecer a situação criada pelo
acto ilícito de especial gravidade (II); e a obrigação de não prestar auxílio ou assistência
ao Estado autor na manutenção daquela situação (III). Por conseguinte, a uma
246

obrigação de facere (dever de cooperação), juntam-se duas de non facere (deveres de


não reconhecer e de não assistir), mas que, curiosamente, recaem sobre Estados
(directa ou indirectamente) lesados e não sobre o Estado autor do acto ilícito (ZLATA
DRNAS DE CLÉMENT e, na sua peugada, MARIA ISABEL TAVARES). No seu conjunto,
visam tais obrigações promover o isolamento internacional deste último, instando-o a
cumprir o direito internacional.
Uma outra obrigação (alternativa no seu conteúdo), não, expressamente,
plasmada no artigo 41.º, mas porventura reconduzível ao aludido dever de cooperação
e que vai de encontro ao que defende boa parte da doutrina, é aquela que se acha
contida na conhecida formulação aut dedere aut judicare. Quer dizer: nos casos, nada
infrequentes, em que os actos ilícitos mais graves do Estado envolvem,
concomitantemente, a prática de crimes internacionais por parte de indivíduos que
actuam como seus órgãos ou representantes, passará a onerar Estados terceiros – que,
hipoteticamente, tenham sob custódia os acusados – o dever de os entregarem
(extraditarem) (dedere) ou de os sujeitarem a julgamento perante os seus próprios
tribunais (judicare).
Para além destes, outros efeitos ou resultados, no entanto, a nosso ver, se
produzem. No próprio artigo 41.º do PARI tal, de resto, se admite, ao remeter-se, no
seu número 3, para aqueloutras consequências que resultem do direito internacional.
Reportam-se umas ao direito de reacção perante o acto ilícito e outras ao dever
de reparação.
Quanto ao direito de reacção, estando em causa nos actos ilícitos mais graves o
interesse geral da comunidade internacional e a ordem pública, compreende-se que o
direito de reagir perante a violação de princípios fundamentais se não circunscreva ao
Estado directamente lesado e se estenda, portanto, a Estados indirectamente lesados
(no limite, todos os Estados). De facto, como oportunamente se relevou, a infracção a
uma norma de jus cogens (criadora de obrigações erga omnes) constitui uma forma de
ilicitude que afecta a generalidade dos sujeitos de direito internacional, pelo que a
todos assiste o direito de procurar restabelecer a “legalidade internacional”, quer
exigindo a cessação do acto ilícito, a prestação de garantias de não repetição e/ou a
reparação dos danos sobrevindos (artigo 48.º, nº 1 e 2, do PARI), quer adoptando
contramedidas (artigos 49.º e ss.). Numa palavra, de “assunto privado” entre o Estado
247

autor e o Estado vítima, a responsabilidade passa, nestes casos, a um “assunto


público” da comunidade internacional (universalização da responsabilidade) (A.
CASSESE) – cfr., supra, ponto 3.5 do Capítulo I.

Inscreve-se, por exemplo, neste contexto a queixa que, no final de 2019, a Gâmbia (Estado
terceiro) apresentou no TIJ contra Myanmar (antiga Birmânia), em 2019, pelos actos de perseguição
adoptados e/ou tolerados pelo respectivo governo contra o grupo minoritário muçulmano Rohingya;
actos esses alegadamente violadores da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio. Com base no carácter de jus cogens da proibição do genocídio e na natureza erga omnes das
obrigações consagradas naquela convenção, solicitava a Gâmbia ao Tribunal que declarasse Myanmar
responsável pela violação dessas obrigações e que, em conformidade, procedesse esse Estado à
reparação dos danos causados, cessasse a prática de qualquer acto ilícito, prestasse as necessárias
garantias de não repetição e assegurasse o julgamento das pessoas responsáveis pelo crime de
genocídio. Adicionalmente, atenta a natureza dos direitos em causa, o carácter continuado dos actos
ilícitos praticados e a extensão e severidade dos danos infligidos aos membros do grupo Rohingya,
requereu ainda a Gâmbia que o Tribunal decretasse medidas provisórias, de acordo com o disposto no
artigo 41.º do respectivo Estatuto e, bem assim, nos artigos 73,º a 75.º do seu Regulamento. Em 2020,
viria o TIJ a ordenar a Myanmar que se abstivesse de cometer ou a apoiar quaisquer actos de genocídio,
a preservar os meios de prova e a apresentar relatórios regulares ao Tribunal sobre o progresso dos seus
esforços nesse sentido.

Especificamente no que respeita às contramedidas, a sua adopção encontra-se,


em geral, sujeita aos condicionalismos substantivos, procedimentais e temporais
constantes dos artigos 49.º e seguintes do PARI. Avultam, de entre eles, o necessário
respeito pelo jus cogens, designadamente pelas obrigações internacionais em matéria
de recurso à força, de direitos humanos, de direito internacional humanitário e de
privilégios e imunidades diplomáticas e consulares. Acresce que, regra geral, deve o
recurso a contramedidas ser precedido de uma tentativa prévia de solucionar o
conflito por via da negociação ou por quaisquer outros meios pacíficos ao dispor dos
Estados. Cremos, no entanto, que, no caso dos actos ilícitos mais graves – sem
embargo de sempre dever ser respeitado o princípio da proporcionalidade –,
plenamente se justifica uma sua adopção imediata (contramedidas urgentes),
tornando-se, pois, dispensável aquela cautela procedimental, vertida na alínea b) do
número 1 do artigo 52.º do PARI. Solução esta – diga-se – que encontra algum apoio
na letra do número 2 do artigo 52.º do PARI.
248

Parece conveniente, a propósito das considerações expendidas, esclarecer a distinção entre


reacções descentralizadas ao ilícito e reacções centralizadas ou institucionais. Aquelas são as de que,
unilateral ou colectivamente, os Estados lançam mão contra o autor de um acto ilícito, enquanto estas
se traduzem em sanções decretadas por uma organização internacional contra um Estado membro (cfr.,
inter alia, L. A. SICILIANOS, C. LEBEN e D. ALLAND).
Pressupondo a intervenção de um terceiro imparcial (a instituição internacional) encarregado
de, com objectividade, qualificar a infracção ao direito internacional e, em consonância, decidir que
medidas devem ser adoptadas, às reacções centralizadas calha bem o qualificativo de sanções.(v.g., as
sanções do Conselho de Segurança da ONU). Não já assim quanto às reacções descentralizadas, em que
é o próprio Estado (directa ou indirectamente) ofendido que decide acerca do tipo, da intensidade e das
formas de execução das (contra) medidas que vão ser dirigidas contra o autor do ilícito. Daí que para
estas – meras faculdades ao dispor do Estado vítima, autorizadas pelo direito internacional – se afigure,
efectivamente, adequado o termo contramedida, de resto objecto de uma adesão quase unânime na
doutrina.
As contramedidas podem ser retorsões ou represálias. No primeiro caso, trata-se de actos
inamistosos, mas lícitos (v.g., o corte de relações diplomáticas); no segundo, de actos também
inamistosos, porém ilícitos (v.g. o incumprimento de um tratado), mas cuja ilicitude originária acaba por
desaparecer (excluir-se), em virtude de constituírem resposta (permitida pelo direito internacional) a
um outro acto ilícito anterior e porventura mais grave.
Apesar de muito mais organizada e institucionalizada de alguns decénios a esta parte,
subsistem na comunidade internacional hodierna as reacções descentralizadas ao ilícito (características
do modelo de Westefália), coexistindo com as centralizadas ou institucionais, o que é denunciativo de
tendências contraditórias nas relações internacionais dos nossos dias.

No que, por outro lado, se refere ao dever de reparação, em particular à


restitutio in integrum e à satisfação, alguns desvios ao regime-regra importa,
outrossim, assinalar. Vimos, relativamente à restitutio in integrum, que, nos termos do
artigo 35.º, b), do PARI, se encontrará a mesma vedada sempre que envolva para o
Estado autor um prejuízo desproporcionado, em relação às vantagens que o Estado
vítima dela retiraria, ou quando possa, de algum modo, pôr em causa a manutenção
do regime político ou até, em certos casos, a estabilidade económica daquele primeiro
Estado. Pois bem – secundando C. ARANGIO-RUIZ –, parecem não fazer sentido tais
ponderações no caso dos actos ilícitos mais graves: o eventual sacrifício excessivo
imposto ao Estado autor com a reposição da situação actual hipotética dilui-se (perde
significado) perante aquilo que constituiu uma grave infracção a normas imperativas
de direito internacional. Mas o mesmo se diga a propósito da satisfação: se, de acordo
249

com o artigo 37.º, nº 3, do PARI, não poderá ela tomar feição através de
comportamentos tidos como “humilhantes” para o Estado vítima, julga-se despiciendo
ou desajustado tal “escrúpulo” ou minudenciosa precaução em face da prática de
actos que ofendem princípios fundamentais do ordenamento internacional.

Não se furta C. ARANGIO-RUIZ, antigo Relator Especial da CDI, a dar alguns exemplos que
ilustram o que acaba de ser dito. Pense-se, v.g., num regime ditatorial que pratica um acto de agressão
armada; ou num Estado cuja prosperidade económica tenha, em razoável medida, sido alcançada à
custa do trabalho escravo a que, por razões étnicas, religiosas, ideológicas, etc., haja sujeitado uma
parte da sua população; ou ainda em certo tipo de exigências que, à guisa de satisfação, sejam feitas a
determinado Estado (alteração da forma de governo, realização de consultas populares, revogação de
legislação discriminatória, desmantelamento de indústrias de guerra, etc.). Certamente que, nas
hipóteses descritas, perante a prática de actos ilícitos especialmente graves, não caberia prescindir-se
da restitutio in integrum ou das medidas de satisfação reputadas de adequadas, mesmo que tal
pudesse, respectivamente, conduzir ou esboroamento de um regime político totalitário, ao surgimento
de uma crise económica ou à humilhação pública do Estado autor da conduta ilícita.

4.1.3 – Causas de exclusão da ilicitude

Vimos atrás que a prática de um acto internacionalmente ilícito, conjugada com


outros pressupostos ou requisitos, dá origem à responsabilidade internacional do
Estado. Como afirmam GONZÁLEZ CAMPOS/SÁNCHEZ RODRÍGUEZ/SÁENZ DE SANTA
MARÍA, esta implica, porém, uma vontade livre do sujeito, de tal modo que possa
dizer-se serem os danos ocorridos consequência de uma conduta adoptada sem
constrangimentos exteriores. Daí que se não deva apreciar de forma mecânica ou
automática o incumprimento de uma obrigação internacional, abstraindo de qualquer
factor ou circunstância que possa ter condicionado o comportamento do Estado.
Ora, tanto na ordem interna como na internacional, se admite justamente a
existência de determinadas vicissitudes, acasos ou acontecimentos que, uma vez
verificados, conduzem a que se não desencadeiem as consequências normais previstas
pelo ordenamento jurídico para condutas similares, funcionando, pois, como
excepções à aplicação das normas (BASDEVANT).
Tais sucessos ou circunstâncias tornam (temporária ou definitivamente)
inoperante (ou sem efeito) a obrigação internacional violada, inibindo, por
conseguinte, a formulação de um juízo de ilicitude acerca do comportamento estadual.
250

Dito de outra forma, apesar de, aparentemente, reunidos os pressupostos da


consumação de um acto internacionalmente ilícito, algo vai obviar à formulação dessa
conclusão, pelo que, na falta do elemento objectivo da responsabilidade, caberá então
falar-se em causas de exclusão da ilicitude.
A que causas nos referimos?
Dos artigos 20.º a 25.º do PARI constam, sucessivamente, o consentimento, a
legítima defesa, as contramedidas, a força maior, o perigo extremo, e o estado de
necessidade.
Atentemos no respectivo significado.

Consentimento

De harmonia com o estipulado no artigo 20.º do PARI, exclui-se a ilicitude de


um comportamento estadual contrário a uma obrigação internacional quando o
Estado titular do direito correspondente a essa obrigação dê o seu consentimento a
que tal comportamento seja adoptado.
Do que se trata (no entender da própria CDI) é, portanto, de um acordo entre
ambos os Estados, alcançado com base na solicitação (ou pedido) do sujeito passivo da
obrigação, que tem por efeito impedir que, naquele caso concreto (não,
evidentemente, em geral), a mencionada obrigação internacional se aplique; e não se
aplicando esta, cessa, automaticamente, de poder falar-se em ilicitude do acto
praticado.
Para que o consentimento produza a aludida consequência, faz-se, porém,
necessário que a respectiva prestação obedeça a certos requisitos.
Desde logo, deverá estar-se perante um consentimento válido à luz das normas
de direito internacional. O que significa exigir-se que a vontade do Estado seja
exprimida ou manifestada sem vícios (designadamente, o erro, o dolo, a corrupção ou
a coacção), nos exactos termos em que se afere a regularidade do consentimento em
matéria de conclusão de tratados (cfr., supra, ponto 6.2 – II do Cap. II).
Importa, em segundo lugar, que esse consentimento, ainda que tácito ou
implícito (nada, efectivamente, obriga a que haja sido prestado de forma expressa,
admitindo-se, pois, que resulte do comportamento do Estado), seja claro e inequívoco,
nomeadamente quanto aos respectivos alcance e duração.
251

Por outro lado, não devem suscitar-se quaisquer dúvidas relativamente à


efectiva e real manifestação do consentimento, razão por que jamais poderá ele ser
meramente presumido.
Em quarto lugar, deverá ser imputável ou atribuível ao Estado, aplicando-se,
neste âmbito, as normas internacionais que regulam a manifestação de vontade dos
Estados, em especial as que se referem aos órgãos capazes de operar a sua vinculação
no plano internacional.
Exige-se, em quinto lugar, que o consentimento seja anterior à prática do
comportamento a que se reporta, visto que, se outorgado posteriormente, poderia
implicar uma renúncia aos efeitos da responsabilidade internacional, mas não teria a
virtualidade de excluir a ilicitude da conduta do Estado que dele beneficiasse.
Finalmente, só poderá ser invocado enquanto causa de exclusão da ilicitude
dentro dos limites (substantivos e temporais) em que o Estado o haja balizado ou
delimitado.
Existe, no entanto, uma óbvia excepção ao princípio geral do consentimento:
em obediência ao carácter imperativo das normas de jus cogens, será irrelevante, isto
é, não surtirá qualquer efeito, a anuência à prática de um comportamento contrário a
uma norma dessa natureza, pelo que, em tal caso, o acto, se praticado, continuará a
ser internacionalmente ilícito.
Como exemplos de consentimento excludente da ilicitude de uma determinada
conduta estadual, poderão citar-se os casos de operações de resgate e ajuda
humanitária, da actuação de comissões de inquérito ou de detenção de pessoas em
território estrangeiro, de intervenções armadas de caráter humanitário, no âmbito da
Responsabilidade de Proteger (cfr., infra, o que diremos sobre o assunto), etc. (cfr.
GONZÁLEZ CAMPOS/SÁNCHEZ RODRÍGUEZ/SÁENZ DE SANTA MARÍA e MARIA ISABEL
TAVARES).

Legítima defesa

Verificados os pressupostos do recurso à legítima defesa, enunciados no artigo


51.º da CNU, o emprego da força, nesse contexto, por parte de um Estado não pode
ser considerado um acto internacionalmente ilícito.
Vigorando, com efeito, no moderno direito internacional uma genérica
252

proibição de recurso à força nas relações internacionais (norma de carácter


imperativo), nem por isso deixou a CNU de reconhecer aos Estados o direito inerente
de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado
contra um membro das Nações Unidas.
À semelhança do que sucede no estado de necessidade, o Estado que actua em
legítima defesa fá-lo perante um perigo grave que ameaça a sua existência. Todavia,
ao passo que no primeiro caso ao Estado cujo interesse é sacrificado nenhum
comportamento ilícito poderá ser assacado (cfr. infra), as situações de legítima defesa,
pelo contrário, têm subjacente a prévia comissão, por esse Estado, de um acto
internacionalmente ilícito (um ataque armado dirigido contra aquele que invoca a
legítima defesa).
Aquilo, portanto, que, de outro modo, consubstanciaria uma conduta ilícita (o
recurso à força), converte-se numa medida lícita de legítima defesa, se adoptada em
conformidade com o artigo 51.º CNU (cfr. artigo 21.º do PARI). O que equivale a
afirmar-se que apenas um uso defensivo da força (em resposta a um prévio ataque
armado) permitirá afiançar estar-se perante uma causa de exclusão da ilicitude.
Abstraindo, por ora, da controvérsia quanto ao real alcance do conceito de
legítima defesa (apenas reactiva ou também, por vezes, antecipatória? – cfr., infra),
adiante-se não ser ela confundível com as contramedidas (rectius, com as represálias),
visto não poderem estas, jamais, consistir em acções de carácter armado.

Contramedidas

Conforme se relevou, as contramedidas constituem, em geral, um mecanismo


de enforcement do direito internacional (A. OLLIVIER) e, especificamente no que toca à
responsabilidade internacional, um instrumento para a sua efectivação, procurando
compelir o Estado autor do acto ilícito a cumprir os deveres que dela derivam
(reparação, cessação do acto ilícito e prestação de garantias de não repetição).
Para o problema que agora nos ocupa, as contramedidas são,
simultaneamente, uma causa de exclusão da ilicitude (artigo 22.º do PARI), porquanto
determinado comportamento estadual violador de uma obrigação internacional (v.g.,
253

a inobservância de um tratado, um embargo comercial, o congelamento de activos do


Estado ou de seus nacionais, etc.) perde o seu carácter (originariamente) ilícito caso
constitua uma medida de resposta, autorizada pelo direito internacional, a um outro
acto ilícito (habitualmente, mais grave) praticado, previamente, por outro Estado.
À semelhança do que sucede com o consentimento, também aqui, não
obstante a conduta do primeiro Estado (aquele que revida) violar uma norma primária,
existe uma circunstância (o traduzir-se tal conduta numa reacção a um acto contrário
ao direito internacional anteriormente cometido) que, excepcionalmente vai tornar
inoperante aquela obrigação internacional, resultando, por conseguinte, excluída a
ilicitude da (contra) medida adoptada,
De notar que, apenas as represálias estão aqui em causa, visto que só
relativamente a elas se coloca o problema da exclusão da ilicitude. Já as retorsões,
embora inamistosas ou hostis, são actos lícitos, o que significa encontrarem-se fora do
âmbito de aplicação do Capítulo V, da Parte I do PARI.
De afastar, em qualquer circunstância – insiste-se –, serão as medidas de
autotutela que envolvam a utilização da força (represálias armadas), uma vez que,
conforme salientado acima, o recurso descentralizado a acções militares apenas em
situações de legítima defesa será admissível.

Força maior

Colocou-se, de início, à CDI o problema de saber se deveriam ser objecto de


tratamento separado ou conjunto as noções de força maior e caso fortuito. E não
tendo sido possível, através de uma tríplice análise da prática dos Estados, da
jurisprudência internacional e da doutrina, chegar a uma distinção profícua entre
ambas as figuras, que recomendasse consagrar-lhes artigos autónomos, optou-se por
colocar sob o chapéu único da força maior as situações tidas em vista. E que situações
são essas?
Aquelas em que um Estado se vê, inexoravelmente, compelido a desrespeitar
uma obrigação internacional que sobre si impendia, por acção de uma força irresistível
ou de um acontecimento exterior imprevisto, que o colocam perante a impossibilidade
material de actuar de outra forma (cfr. artigo 23.º do PARI); por vezes, até, de se
aperceber que está a adoptar um comportamento que viola o direito internacional.
254

Este carácter não voluntário ou não intencional da conduta do Estado, que é


próprio da força maior, permite, designadamente, apartar esta causa de exclusão da
ilicitude do perigo extremo e do estado de necessidade, como a seguir se verá.
Sublinha a generalidade da doutrina que a aludida impossibilidade material de
actuarem de modo diverso em que se encontram os órgãos estaduais, pode ser obra
da natureza (“act of God”, v.g., catástrofes ou desastres naturais de todo o tipo) ou
fruto da acção humana (v.g., a perda de soberania ou do controlo sobre uma parte do
território estadual, na sequência de uma insurreição ou de um conflito armado),
conduzindo, em qualquer caso, a um inadimplemento, definitivo ou tão-apenas
temporário, de uma obrigação internacional, seja ela de facere ou de non facere.
Para que a ilicitude resulte efectivamente excluída numa situação de força
maior, duas condições deverão, no entanto, verificar-se. Por um lado, faz-se necessário
que a força maior seja, de facto, irresistível e o acontecimento exterior de todo
imprevisto, de tal maneira que o Estado não possa escapar aos respectivos efeitos; por
outro, importa ainda que esse Estado não tenha contribuído (intencionalmente ou por
negligência) para a referida impossibilidade material de observar a obrigação
internacional a que estava vinculado ou não tenha assumido o risco da sua verificação.
Resulta, aliás, esta segunda condição das alíneas a) e b) do número 2 do artigo 23.º do
PARI.

Perigo extremo

Refere-se o perigo extremo a uma situação em que um órgão do Estado adopta


um comportamento contrário a uma obrigação internacional por, em certo momento,
não ter tido outro meio (razoável) de salvar a sua própria vida ou a vida de pessoas ao
seu cuidado (cfr. artigo 24,º do PARI).
Repare-se que, contrariamente ao que sucede nos casos de força maior (em
que a conduta do sujeito é involuntária), no perigo extremo existe – ao menos
teoricamente – uma opção. É certo que essa opção não chega a sê-lo verdadeiramente
na prática, visto que a observância do comportamento exigido pela obrigação
255

internacional, significaria, com alguma probabilidade, a morte para quem actua em


nome do Estado, bem como para as pessoas confiadas à sua guarda. Todavia, ainda
que por instantes fugazes, oferece-se ao agente a possibilidade de representar
intelectualmente uma escolha entre dois caminhos possíveis: cumprir ou violar o
direito internacional. A sua conduta não é, pois, totalmente involuntária.
Tem sido principalmente nos casos de violação de fronteiras, em particular do
espaço aéreo e marítimo dos Estados, que na prática internacional se tem reconhecido
ao perigo extremo o efeito de excluir a ilicitude de determinados factos do Estado.
Atente-se, por exemplo, no caso de um navio público em sérias dificuldades no meio
de uma tempestade, ou por motivo de avaria, cujo capitão procura refúgio num porto
estrangeiro, sem para tanto haver obtido prévia autorização; ou de uma aeronave
militar cujo piloto, confrontado com a iminente falta de combustível, decide aterrar,
igualmente sem permissão, em solo estrangeiro.
Importa, contudo, salientar que a ilicitude da acção ou omissão do Estado
apenas será excluída se houver uma certa proporção entre o interesse protegido e o
interesse sacrificado e, ainda assim, desde que este último deva considerar-se de valor
inferior àquele. Não seria manifestamente o caso de um submarino de propulsão
atómica, vítima de avaria grave, que se dirigisse para um porto estrangeiro, correndo o
risco de aí provocar uma explosão atómica (exemplo de GONZÁLEZ CAMPOS/SÁNCHEZ
RODRÍGUEZ/SÁENS DE SANTA MARÍA)… Numa tal hipótese, a acção do Estado criaria
um perigo maior do que aquele que visava afastar, o que, por força do disposto na
alínea b) do número 2 do artigo 24.º do PARI, teria como consequência a não exclusão
da respectiva ilicitude. Consequência esta que, talqualmente, se produz quando a
situação de perigo extremo se fica, total ou parcialmente, a dever à conduta do estado
que a invoca e dela se pretende prevalecer (cfr. alínea a) do nº 2 do artigo 24.º do
PARI).

Estado de necessidade

Bem mais contestado do que as restantes causas de exclusão da ilicitude, o


estado de necessidade acabaria por ser acolhido nos artigos da CDI, conquanto, por
razões de certeza e segurança nas relações internacionais, em termos assaz restritivos.
Trata-se agora de situações em que um Estado vê um seu interesse essencial
256

(ou um interesse da própria comunidade internacional) ameaçado por um perigo grave


e iminente, não lhe restando outra alternativa que não seja adoptar, em face de outro
Estado, um comportamento que infringe uma obrigação internacional.
Por contraposição às circunstâncias de força maior, caracterizadas por uma
actuação totalmente involuntária do Estado, no estado de necessidade tem este – ao
menos do ponto de vista teórico – a faculdade de optar por agir ou não de forma
contrária à obrigação internacional que o vincula. Aspecto este, conforme já relevado,
comum ao perigo extremo. Simplesmente, enquanto neste caso está em risco a vida
de algumas pessoas físicas, no estado de necessidade verifica-se uma ameaça à própria
existência do Estado, à sua sobrevivência política e económica, ao funcionamento dos
seus serviços essenciais, à sua segurança, etc..
Se no antigo artigo 33.º, adoptado pela CDI em primeira leitura, no ano de
1996, era tão-somente um interesse essencial (individual) do Estado que com a
invocação desta causa de exclusão da ilicitude se visava acautelar, o actual artigo 25.º
do PARI abre, inovadoramente, a porta à possível salvaguarda de um interesse geral de
todos os Estados, isto é, da comunidade internacional no seu conjunto, como, v.g.,
sucederá com a protecção do meio ambiente e a conservação dos recursos marinhos.
De modo a prevenir um recurso abusivo ao estado de necessidade por parte
dos Estados, algumas condições devem estar reunidas aquando da sua invocação: por
um lado, o interesse (do Estado ou da comunidade internacional) que se encontre
ameaçado deve ser realmente essencial, sem embargo de uma adequada apreciação
deste requisito reclamar uma avaliação caso a caso; impõe-se, por outro lado, que a
violação do direito internacional constitua o único meio utilizável para esconjurar o
perigo (grave e iminente); em terceiro lugar, será ainda mister que, com esse
comportamento, não seja posto em causa um interesse também essencial do Estado
ou Estados relativamente aos quais a obrigação existe (vale por dizer que, também
aqui, o interesse sacrificado deve ser menos valioso do que o interesse protegido); em
quarto lugar, não pode o sujeito que invoca o estado de necessidade haver, de
qualquer forma, contribuído para a sua verificação; em quinto lugar, não pode
também invocar-se o estado de necessidade quando a conduta que se pretende
justificar redunda na violação de uma norma de jus cogens; e, por último, deixa de ser
legítimo lançar mão desta causa de exclusão da ilicitude sempre que uma norma
257

convencional ou consuetudinária exclua essa possibilidade, relativamente a


determinada obrigação internacional.

Tanto na prática como na jurisprudência internacionais, o estado de necessidade tem sido


muitas vezes invocado. Foi-o, v.g., pelo governo otomano, no caso da Indemnização Russa, para
justificar (com uma situação económico-financeira sumamente difícil) o seu atraso no pagamento da
dívida contraída com a Rússia; e polo governo grego, com igual fundamento, no caso da Sociedade
Comercial da Bélgica. Em ambos os casos, o TPJI não aceitou a circunstância invocada em concreto, não
obstante a ter admitido de um ponto de vista geral. Também a destruição (bombardeamento) do Torrey
Canyon por ordem do governo britânico, aquando do acidente desse petroleiro, foi justificada com um
estado de necessidade (um alegado perigo grave e iminente de contaminação da costa britânica), sem
que qualquer outro Estado tenha contestado tal actuação. Mais recentemente, foi a Hungria a invocar
esta causa de exclusão da ilicitude, no caso do Projecto Gabcícovo-Nagymaros, para justificar a
suspensão e abandono dos trabalhos a cuja execução estava obrigada pelo tratado de 1977, tendo o TIJ
concluído não haver sido demonstrada, in casu, a existência de um perigo real, grave e iminente para o
ambiente natural daquela região.

Saliente-se, a concluir o tema em apreço, que, nos termos do artigo 26.º do


PARI, não será excluída a ilicitude do comportamento de um Estado que,
hipoteticamente, esteja em desconformidade com uma obrigação decorrente de uma
norma de jus cogens.
Por outro lado, estipula ainda o artigo 27.º do PARI que a invocação de uma
qualquer causa de exclusão da ilicitude não prejudica o cumprimento subsequente da
obrigação internacional de que se trate, se e na medida em que tal circunstância não
mais se verificar (alínea a)), nem exime o Estado do dever de indemnizar por eventuais
perdas materiais causadas pela conduta relativamente à qual a ilicitude resultou
excluída, à luz das disposições precedentes (alínea b).

4.2 – Responsabilidade internacional objectiva

4.2.1 – Noção e significado

Tivemos em conta, até aqui, uma responsabilidade advinda da prática de actos


ilícitos (ou subjectiva), na qual o dever de reparação a cargo do Estado autor se baseia
exactamente na ilicitude de certa conduta.
258

Cabe agora, tendo presentes as transformações entretanto verificadas no


direito da responsabilidade internacional, dedicar breves linhas à responsabilidade
objectiva ou pelo risco, derivada de actividades não proibidas pelo direito
internacional, a que havíamos já feito referência no ponto 3.5 do Capítulo I.
De acordo com a teoria do risco, pode afirmar-se que quem utiliza em seu
proveito coisas intrinsecamente perigosas, deve suportar as eventuais consequências
prejudiciais ou adversas do respectivo emprego (ubi emolumentum, ibi ónus; ubi
commoda ibi incommoda).
No plano internacional, os progressos da ciência e da técnica trouxeram
consigo o desenvolvimento de actividades, em si mesmas não proibidas pelo direito
internacional, mas – por serem ultra hazard ou de risco excepcional – susceptíveis de
causar graves danos ao homem e ao meio ambiente. Daí que tenham sido criados,
através de instrumentos convencionais, alguns regimes jurídicos de responsabilidade
pelo risco, na qual, evidentemente, o dever de reparação não se funda já na ilicitude
do facto praticado (que agora se não verifica), mas tão-só no mero nexo de
causalidade que seja possível estabelecer entre a actividade levada a cabo e os danos
sobrevindos.
Bom será, porém, não esquecer que tendem os Estados a privilegiar e a colocar
o acento tónico na responsabilidade por actos ilícitos, consagrando novas obrigações
internacionais nos mais diversos domínios, designadamente em matéria ambiental –
terreno dilecto de incidência dos deveres de prevenção e de vigilância (due diligence).
Circunstância esta que confere à responsabilidade pelo risco um carácter, subsidiário e
largamente residual.

4.2.2 - Origem

As reservas que os Estados têm manifestado quanto à consagração de um


princípio geral da responsabilidade pelo risco, levaram a que, até ao momento, sejam
muito contadas as situações conducentes a uma responsabilidade (objectiva)
decorrente de actividades não proibidas pelo direito internacional. Foram, assim,
instituídos, conquanto em moldes dissemelhantes, alguns regimes convencionais,
sendo certo que apenas num deles aquela responsabilidade é directamente imputada
ao Estado.
259

Em primeiro lugar, no âmbito da utilização pacífica da energia nuclear foram


concluídas diversas convenções internacionais, merecendo destaque a de Paris, de
Julho de 1960, sobre a responsabilidade civil no domínio da energia nuclear, e a de
Bruxelas, de Maio de 1963, sobre o transporte marítimo de substâncias ou materiais
nucleares.
Também em matéria de poluição dos mares e dos cursos de água por
hidrocarburos e outras substâncias poluentes, as convenções de Bruxelas, de
Novembro de 1969 e de Dezembro de 1971, entre várias outras mais recentes e de
alcance mais circunscrito, consagraram regimes de responsabilidade internacional
objectiva.
No que toca, por outro lado, aos danos causados por engenhos espaciais, a
Convenção de Londres-Moscovo-Washington, de Março de 1972, estabelece diversas
modalidades de responsabilidade internacional, sendo que esta é, no entanto,
puramente objectiva quanto aos danos causados na superfície da terra ou a uma
aeronave em voo.
Ora, das três situações convencionalmente reguladas, acabadas de referir, nas
duas primeiras (energia nuclear e hidrocarburos) a responsabilidade por danos
ocorridos é, objectivamente imputada, conforme os casos, ao explorador das
instalações nucleares (ainda que limitada a um montante máximo), ao proprietário do
navio ou ao responsável pelas instalações de perfuração; apenas será imputada ao
Estado provando-se falta de diligência da parte deste – mas, desta feita, note-se, a
título subjectivo, uma vez que a não observância de um dever de diligência e cuidado
se traduz, como resulta incontroverso, na prática de um acto ilícito.
Já a convenção de 1972 sobre os danos causados por engenhos espaciais,
designadamente os causados na superfície da terra ou a uma aeronave em voo,
determina, com efeito, a responsabilidade objectiva do próprio Estado (C. ROUSSEAU).
Afora estes casos, extrai-se da jurisprudência internacional uma ideia de
responsabilidade objectiva do Estado advinda de danos ambientais transfronteiriços. O
caso da Fundição de Trail, que opôs os Estados Unidos ao Canadá e foi objecto de uma
sentença arbitral, em 1941, constitui, a este respeito, um leading case.
O recurso à arbitragem ficou a dever-se à poluição do ar por fumos de dióxido
de enxofre emitidos por aquela fundição, situada na Columbia Britânica e pertencente
260

a uma empresa canadiana. Esses fumos haviam produzido danos ambientais no Estado
de Washington, causando, durante algum tempo, prejuízos significativos aos
agricultores norte-americanos (R. MARTÍN MATEO).
Firmou-se, a partir de então, o princípio da responsabilidade do Estado pelos
actos de poluição, com origem no seu território, causadores de danos em territórios
limítrofes ou vizinhos, ainda que tais acções poluentes transfronteiriças não sejam
imputáveis ao Estado enquanto tal ou aos seus órgãos (responsabilidade objectiva,
pois, fundada naquilo que poderíamos apelidar de risco anormal de vizinhança). Será,
v.g. o caso de os danos ocorridos terem tido origem em actividades desenvolvidas por
particulares (pessoas físicas ou empresas), havendo o Estado sob cuja jurisdição se
encontrem cumprido todos os seus deveres de vigilância e cuidado.

5 – Sucessão de Estados

5.1 – Noção, significado e tipologia

O problema da sucessão de Estados, que agora iremos abordar, é dos mais


importantes e complexos da teoria do Estado como sujeito de direito internacional.
Do que se trata?
O labor da CDI no âmbito da codificação do direito internacional sobre sucessão
de Estados culminou com a assinatura de duas convenções – a Convenção de Viena
sobre sucessão de Estados em matéria de tratados, de 1978, e a Convenção de Viena
sobre sucessão de Estados em matéria de propriedade arquivos e dívidas, de 1983 –, de
cujo artigo 2.º, § 1, b), comum a ambas, consta uma definição, aliás algo anódina,
deste fenómeno: «Por “sucessão de Estados” entende-se a substituição de um Estado
por outro na responsabilidade pelas relações internacionais de um território».
Ora, implicando, num dado território, a substituição de um Estado por outro,
imediatamente se infere que a sucessão de Estados está ligada, de forma directa, aos
elementos constitutivos do Estado. Mas de que modo?
No que tange à população, certamente que uma mutação completa deste
elemento conduziria a uma sucessão de Estados. Simplesmente, a hipótese é por
demais irrealista ou inverosímil para que a devamos sequer tomar em consideração.
Quanto ao governo, não poderá falar-se em sucessão de Estados nos casos de
261

substituição de governos por via revolucionária. De facto, com base no princípio da


continuidade do Estado, postula o direito internacional, como linha de princípio, a
subsistência ou manutenção da personalidade jurídica dos Estados, ainda quando
neles se alterem, ao longo dos tempos, os respectivos regimes constitucionais. A razão
de ser desta solução radica, desde logo, na necessidade de pôr a coberto Estados
terceiros (sobretudo os direitos de que sejam titulares) dos sobressaltos ou convulsões
que possam ocorrer na vida política interna de cada Estado, evitando que as novas
autoridades políticas pretendam, como por vezes acontece, fazer tábua rasa dos
compromissos internacionais assumidos pelo governo deposto. Mas funda-se,
ademais, no propósito de tutelar os interesses do próprio Estado em que se hajam
verificado as vicissitudes revolucionárias; isto em obediência ao princípio da não
ingerência nos assuntos internos, corolário da autonomia constitucional e política dos
Estados.
Conclui-se, assim, que será uma alteração profunda no elemento território – à
qual, inevitavelmente, se associa uma transformações parcial na composição da
população – a originar uma sucessão de Estados. Mais exactamente, verificar-se-á esta
sempre que as modificações territoriais (definitivas) ocorridas num Estado predecessor
ou de cujos conduzam à sua substituição, nesse território, por um Estado sucessor ou
herdeiro, colocando-se então o problema de saber se, ou em que medida, irá este
suceder nos direitos e obrigações de que aquele fosse titular.

Importará esclarecer que a sucessão de Estados – contrariamente ao que pretendiam autores


como MARTENS ou DESPAGNET, e ao que a terminologia adoptada possa sugerir – não o é no sentido
do fenómeno sucessório do direito privado. Na verdade, se materialmente é inquestionável que ocorre
uma operação de sucessão, já no que respeita às respectivas consequências jurídicas deve afastar-se a
tese de que a posição do Estado sucessor é assimilável à de um herdeiro.
Na sucessão privada prevalece uma ideia de continuidade: o herdeiro encabeça a posição
jurídica do de cujos, assumindo a titularidade dos direitos e obrigações que integrassem a esfera jurídica
deste último. Na sucessão de Estados, ao invés, é o princípio da soberania ou independência que
comanda o processo: o Estado sucessor não é, exactamente, um continuador do Estado predecessor
(frequentemente, aliás, este não desaparece…) pelo que as (muitas) soluções ou elementos de
continuidade, reveladoras da inadequação da doutrina da tábua rasa, se acham, apesar de tudo,
sobrepujadas por uma ideia de descontinuidade ou ruptura.
262

No que respeita à tipologia dos fenómenos de sucessão de Estados, as


convenções internacionais supracitadas (a de 1978 e a de 1983) contemplam cinco
categorias, de resto bem demonstrativas do relevo teórico-dogmático e prático desta
problemática. Vejamos.
Alude, em primeiro lugar, o artigo 15.º da Convenção de 1978 à sucessão
relativa a uma parte do território, que se verifica quando uma parte do território de
um Estado (ou um território por cujas relações internacionais este seja responsável)
passa a fazer parte do território de outro Estado.
A segunda categoria de sucessão, encontra-se prevista no artigo 16.º: Estados
de recente independência. Nos termos da alínea f) do artigo 2.º desta mesma
convenção, Estado sucessor de recente independência é aquele cujo território,
imediatamente antes da data da sucessão, era um território dependente de cujas
relações internacionais era responsável o Estado predecessor (potência colonial ou
metrópole).
Ao terceiro tipo de sucessão de Estados se refere o artigo 31.º da Convenção de
1978. Trata-se da unificação, que acontece sempre que dois ou mais Estados se unam
e formem, desse modo, um Estado sucessor.
Consagra, ainda, o artigo 34.º a categoria da separação, que se verifica quando
uma parte ou partes do território de um Estado se separam para formar um ou vários
Estados sucessores, continue ou não a existir o Estado predecessor.
Por último, na convenção de 1983, viria a ser acolhida uma quinta categoria de
sucessão: a dissolução, que ocorre quando um Estado se dissolve ou desintegra e deixa
de existir, formando as partes do território do Estado predecessor dois ou mais
Estados sucessores (artigo 18.º).
Duas notas aqui se apropositam.
A primeira é a de que, com a consagração superveniente, na Convenção de
1983, da categoria da dissolução, a separação (artigo 34.º da Convenção de 1978) só
tem hoje sentido útil, enquanto categoria autónoma de sucessão de Estados, nos casos
em que continue a existir o Estado predecessor. Desaparecendo este, estar-se-á
perante aquele novo tipo de sucessão, previsto no artigo 18.º da Convenção de 1983
(a dissolução). Constatação esta que haverá, pois, de implicar uma interpretação
actualista do artigo 34.º da Convenção de 1978, o qual admitia a possibilidade de na
263

separação deixar de existir o Estado predecessor.


A segunda é a de que a independência, não deixando, em certo sentido, de
consubstanciar uma separação, apresenta especificidades que justificam que a esta
não seja assimilável de plano. Com efeito, se, por um lado, o território objecto da
sucessão terá de ser geograficamente separado da metrópole, por outro, a população
nele instalada deverá possuir características étnico-culturais distintas e estar sujeita a
um regime político, administrativo, económico e cultural discriminatório (cfr.
Resolução 1541 da AG da ONU).
Muitas são as situações ocorridas na prática internacional – algumas, aliás,
directamente ligadas a Portugal –, susceptíveis de serem enquadradas nas várias
categorias de sucessão acabadas de referir. Assim, a título meramente exemplificativo,
o território de Macau, outrora sob administração portuguesa, passou, em 1999, a estar
sob a soberania da República Popular da China, no que, portanto, constituiu uma
sucessão relativa a uma parte do território. Por outro lado, o movimento internacional
da descolonização, encetado a partir da segunda metade do séc. XX, deu origem a
inúmeros Estados sucessores de recente independência, alguns deles antigas colónias
portuguesas. Já a reunificação da Alemanha, o desmembramento parcial da ex-
Jugoslávia e o desaparecimento da ex-URSS e da ex-Checoslováquia, podem,
respectivamente, integrar-se nas categorias da unificação, da separação e da
dissolução.
Ora, vai sendo tempo de tentar perceber que direitos e obrigações o direito
internacional confere ou impõe aos Estados sucessores. Não sem antes, porém, se
esclarecer que não existe propriamente um regime jurídico congruente e estabilizado
da sucessão de Estados. De facto, a prática internacional no domínio em apreço tem
sido algo incoerente, quando não conflituosa (escasseiam as sucessões de Estados
convencionalmente regradas) e eivada de soluções casuísticas, pelo que as principais
respostas e linhas de força que, ainda assim – quer à luz do direito convencional, quer
com base no direito costumeiro –, seja possível lobrigar revelam considerável
ductilidade.
É ao nível das relações entre o Estado sucessor e os particulares; das relações
entre o Estado sucessor e o Estado predecessor; e das relações entre o Estado sucessor
264

e a ordem jurídica internacional que, juridicamente, se coloca o problema da sucessão


de Estados. Examinemos, pois, separadamente, estas três questões.

5.2 – Regime jurídico

5.2.1 – Relações entre o Estado sucessor e os particulares

Direitos adquiridos pelos particulares

O que aqui se discute é, em primeiro lugar, a sorte dos direitos patrimoniais


adquiridos pelos particulares ao abrigo da ordem jurídica do Estado predecessor. Será
o Estado sucessor obrigado a respeitá-los?
A doutrina não é, a este respeito, unissonante, sendo possível respigar duas
teses de sentido oposto.
A primeira é a corrente clássica ou tradicional, defendida pela maior parte dos
Estados ocidentais, que sustentava dever o Estado sucessor, por razões de certeza,
segurança jurídica e equanimidade, respeitar os direitos adquiridos pelos particulares,
antes da sucessão, à sombra da legislação anterior.

Tal princípio foi várias vezes reafirmado pelo TPJI. Por exemplo, no caso dos Colonos Alemães
na Polónia – objecto de um parecer, em 1923 – foi dito claramente que «direitos privados adquiridos
em conformidade com o direito em vigor não caducam por efeito de uma mudança de soberania».
Alguns anos volvidos, o mesmo Tribunal, reponderando a questão no caso dos Interesses Alemães na
Alta Silésia, haveria de confirmar a tese, já antes advogada, reconhecendo ao princípio dos direitos
adquiridos a natureza de princípio de direito internacional geral ou comum. E também no caso da
Expropriação da Fábrica de Chorzow, julgado em 1927, se declarou que o desrespeito por aquele
princípio tornaria o Estado sucessor incurso em responsabilidade internacional.

De início, o entendimento descrito circunscrevia-se às situações jurídicas


emergentes da celebração com o Estado predecessor de contratos de direito privado
(direitos privados stricto sensu). Mais tarde, com o propósito de salvaguardar a posição
jurídica dos concessionários privados, viria também a estender-se aos direitos
resultantes da conclusão de contratos de direito público (v.g., contratos
administrativos de concessão de bens do domínio público).
Esta desejável manutenção das concessões outorgadas pelo Estado
predecessor, com a correlativa sub-rogação do Estado sucessor nos direitos e
265

obrigações daí advindos, foi igualmente afirmada nos casos Mavrommatis e Franco-
Helénico dos Faróis, respectivamente em 1925 e 1934 (DÍEZ DE VELASCO).
A outra directriz irrompeu após a Segunda Guerra Mundial e tinha como
principais partidários os países socialistas e do terceiro mundo. A tese tradicional do
respeito pelos direitos adquiridos foi, então, criticada e rotulada de intrinsecamente
desigualitária por ter subjacente princípios da Economia de Mercado e, em resultado
disso, atentar contra a soberania dos Estados sucessores, maxime na sua vertente
económica, ao irrogar-lhes a assunção de pesados compromissos económicos e
financeiros a cuja criação haviam sido, evidentemente, alheios.
Tal injustiça seria, aliás, tão mais flagrante, quanto é certo serem, muitas vezes,
os Estados sucessores Estados de recente independência, com economias ainda frágeis,
que resultariam insuportavelmente entibiadas, caso lhes fosse imposta uma espécie de
hipoteca financeira que, a prazo, poderia redundar numa autêntica asfixia económica
desses Estados.
Para mais, a “soberania permanente de cada povo e de cada Estado sobre as
suas riquezas e recursos naturais”, tantas vezes conclamada, teria como inelutável
consequência que a todo o Estado devesse ser reconhecida plena liberdade de
conduzir a sua política económica, nomeadamente em matéria de nacionalizações;
algo que a doutrina dos direitos adquiridos entravaria.
Por todas estas razões, seria lícito ao Estado sucessor ignorar as situações
jurídicas preexistentes, não arrostando com o ónus de compromissos financeiros por si
não assumidos.
Face às duas concepções divergentes acabadas de expor, a doutrina inclina-se
hoje, maioritariamente, para uma solução equilibrada e conciliatória, que não
cooneste a pretensão de os Estados sucessores fazerem tábua rasa dos direitos
adquiridos pelos particulares, com prejuízo manifesto da estabilidade, certeza e
segurança no relacionamento internacional, mas que também não desconsidere a sua
soberania. Defende-se, deste modo, como linha de princípio, que o Estado sucessor se
encontra vinculado aos compromissos assumidos pelo Estado predecessor – a fortiori
se, convencionalmente, tiver aquele reconhecido perante este o dever de respeitá-los
–, só podendo eximir-se à respectiva observância por razões económico-financeiras
atendíveis e mediante o pagamento de uma indemnização justa e adequada (não
266

meramente simbólica). O desrespeito, puro e simples, por direitos adquiridos sob o


império do ordenamento jurídico anterior fá-lo-á incorrer em responsabilidade
internacional, com as consequências daí advindas.

Nacionalidade

Um dos problemas mais candentes colocados pela sucessão de Estados diz


respeito ao impacto deste fenómeno na nacionalidade dos indivíduos. Sobre ele
guardariam, todavia, as convenções de 1978 e 1983 um prudente silêncio, pois que da
prática dos Estados na matéria transparecia uma considerável volatilidade e
inconstância.
Duas ideias se assumem, nesta sede problemática, como cruciais.
Por um lado, a de que todo o indivíduo tem direito a uma nacionalidade, daí
resultando que ninguém pode ser, arbitrariamente, privado da sua nacionalidade nem
do direito de mudar de nacionalidade (cfr. artigo 15.º da Declaração Universal dos
Direito do Homem, de 1948).
Por outro, e consequentemente, a de que o direito internacional procura, a
todo o transe, evitar as situações de apatridia, merecendo destaque a Convenção
relativa ao Estatuto dos Apátridas, de 1954 e a Convenção para a Redução dos Casos
de Apatridia, de 1961. Haverá, na verdade, de convir-se que «a perda do direito a ter
direitos» (expressão com que MATTHEW GIBNEY ilustrou a condição do stateless) se
revela totalmente incompatível com a humanização do direito das gentes.
Ora, o forte acicate que os diversos casos de sucessão de Estados ocorridos na
Europa, na década de noventa do séc. XX, constituíram para a CDI, desembocou na
adopção por esta, em 1999, de um Projecto de Artigos sobre a Nacionalidade das
Pessoas Físicas em caso de Sucessão de Estados, o qual reflecte a tendência para a
limitação da tradicional competência exclusiva do Estado na determinação de quem
são os seus nacionais, segundo uma lógica de protecção dos direitos humanos e de
banimento da referida situação de “limbo jurídico”, própria do sateless.
Quais as principais soluções aí acolhidas?
Saliente-se, antes de mais, que o problema da nacionalidade assume contornos
diversos consoante continue ou não a existir o Estado predecessor. O primeiro caso
poderá dar ensejo a um conflito positivo de leis de nacionalidade e, portanto, a
267

situações de dupla ou múltipla nacionalidade; o segundo, pelo contrário, a um conflito


negativo de leis de nacionalidade (havendo vários Estados sucessores), com o inerente
risco de apatridia (I. ZIEMELE). Uma coisa é certa, também aqui à atribuição da
nacionalidade por parte do Estado sucessor deverá presidir o já mencionado critério da
conexão genuína (efectiva) entre o Estado e o indivíduo, conexão essa cuja existência
poderá demonstrar-se através de elementos como, v.g., a filiação, a residência
habitual, a vida profissional, etc..
Ditaria a lógica que, em resultado de uma sucessão de Estados os nacionais do
Estado predecessor perdessem a nacionalidade desse Estado e adquirissem a
nacionalidade do Estado sucessor. Circunstâncias várias impedem, no entanto, que a
essa regra não possa senão reconhecer-se um valor meramente indicativo.
No que constitui uma concretização do direito à nacionalidade consagrado no
referido artigo 15.º da DUDH, logo no artigo 1º do Projecto da CDI se prevê que cada
indivíduo que, à data da sucessão de Estados, possuía a nacionalidade do Estado
predecessor (independentemente do modo como a tenha adquirido), tem o direito à
nacionalidade de, pelo menos, um dos Estados em causa (Estado predecessor e/ou
Estado sucessor).
Estabelece, por sua vez, o artigo 5º do Projecto uma presunção de
nacionalidade dos indivíduos que tenham residência habitual no território objecto da
sucessão, o que acaba, portanto, por funcionar como prevenção da apatridia (cfr.
artigo 4.º).
De suma importância é o artigo 11.º, que dispõe poder um indivíduo optar por
conservar a nacionalidade do Estado predecessor (caso este continue a existir) ou
adquirir a nacionalidade do Estado sucessor (ou de um dos Estados sucessores), desde
que – bem entendido – reúna os pressupostos para o efeito. Este direito de opção
traduz a tendência actual para à razão do Estado se sobrepor, por vezes, a vontade do
indivíduo.
Questão que poderá colocar-se é a de saber se impende sobre o Estado
sucessor uma obrigação de atribuição da (sua) nacionalidade a indivíduos que com o
respectivo território possuam uma ligação estável e efectiva (designadamente com
base no critério da residência habitual). Não obstante algumas divergências doutrinais,
uma resposta positiva parece impor-se naqueles casos em que a não outorga da
268

nacionalidade possa redundar numa indesejável situação de apatridia (i. BROWNLIE, J.


BLACKMAN, RITA DUARTE).
Claro está que as respostas para o problema da nacionalidade variam em
função do tipo de sucessão de Estados que esteja em causa. Mais simples de
solucionar é, seguramente, o caso da unificação, visto que desaparecendo os Estados
predecessores, aos indivíduos que eram seus nacionais é atribuída a nacionalidade do
Estado sucessor. (artigo 21,º). Já na sucessão relativa a uma parte do território estipula
o artigo 20.º do Projecto da CDI que, de harmonia com o critério da residência
habitual, deve o Estado sucessor atribuir a sua nacionalidade aos residentes na parte
do território objecto da mudança ou da substituição de soberania. Idêntica solução
tende a prevalecer – e uma vez mais respaldada no critério da residência habitual –
nos casos de separação e de dissolução (artigos 23.º e 34.º). Isto, sem prejuízo de
alguma discricionariedade de que, nesta matéria, gozam os Estados sucessores, quanto
aos factores que reputam de determinantes para a atribuição da sua nacionalidade.
Torna-se, pois, claro que o aludido princípio segundo o qual, por efeito da
sucessão de Estados, os indivíduos perdem a nacionalidade do Estado predecessor e
adquirem a nacionalidade do Estado sucessor exprime, efectivamente, uma tendência,
que, todavia, por força do exercício do direito de opção do indivíduo (artigos 11.º, 20.º,
23.º e 26.º) poderá não se confirmar em concreto. Acresce que sucessos vários são
susceptíveis de introduzir uma complexidade adicional num problema já de si envolto
em alguma indefinição: por exemplo, o facto de haver nacionais de determinado
Estado que nele não residam ou, inversamente, seus residentes habituais que sejam
nacionais de um Estado estrangeiro; a existência, no território objecto da sucessão, de
grupos ou comunidades étnicas, culturais ou religiosas minoritárias, cuja identidade
caiba preservar; os direitos dos menores; a defesa da unidade familiar; etc.. E não se
olvide ainda a já aventada possibilidade de, continuando a existir o Estado
predecessor, sobrevirem casos de plurinacionalidade (outrora malquistos, mas
actualmente admissíveis, retrogradada que se encontra a concepção da nacionalidade
como vínculo exclusivo – e excludente – entre uma pessoa e determinado Estado).
269

5.2.2 – Relações entre o Estado sucessor e o Estado predecessor

São, fundamentalmente, quatro os problemas a considerar neste âmbito: o da


sorte do sistema jurídico do Estado predecessor, o da transmissão de bens, o da
transmissão de arquivos e o da transmissão de obrigações.

No que toca ao primeiro, o princípio da soberania territorial sugere uma


solução de ruptura: a sucessão de Estados conduzirá a uma substituição da ordem
jurídica do Estado predecessor (legislação, regulamentação administrativa,
competência dos tribunais, etc.) pela do Estado sucessor. Não obstante, ainda por
força daquele princípio e de modo a não ser posta em causa a segurança jurídica (C. DE
VISSCHER), bem como a boa administração do território, poderá o Estado sucessor
optar por algumas soluções de continuidade, aceitando, ainda que transitoriamente, a
coexistência de diferentes legislações. Nada impede também – será até desejável que
assim aconteça – ser este problema regulado por via de acordo entre o Estado
predecessor e o Estado sucessor, como, v.g., sucedeu em 1990, com o Tratado de
União entre a RDA e a RFA.

O caso da ocupação dos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu pela União Indiana, em
1961, é apresentado por GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS como constituindo exemplo de
uma solução de continuidade no domínio da legislação. Com efeito, reconhecendo a sua importância na
vida jurídica local, a Índia viu-se compelida, após a ocupação militar, a manter em vigor, naqueles
territórios, o direito privado português (contido, em larga medida, no Código Civil de Seabra).

Quando aos bens, socorreu-se a Convenção de 1983, no seu artigo 8.º. de uma
definição ampla, considerando como tais os «bens, direitos e interesses que, à data da
sucessão de Estados e em conformidade com o direito interno do Estado predecessor,
pertenciam a este Estado».
À luz do direito internacional costumeiro, em resultado da sucessão de Estados,
passam para o Estado sucessor os bens móveis ou imóveis que pertencessem ao
Estado predecessor - princípio este que a Convenção de 1983 viria a codificar, ainda
que de modo diferenciado no seu alcance em função dos vários tipos de sucessão.
Se na hipótese de unificação, o artigo 16.º consagra a solução óbvia, ao
estipular que os bens de cada um dos Estados predecessores passam automática e
integralmente para o Estado sucessor, surpreende-se nas demais categorias de
270

sucessão uma espécie de geometria variável que se explica pelas especificidades que
cada uma delas revela.
Assim, no que diz respeito à sucessão relativa a uma parte do território, na
ausência de acordo entre os Estados envolvidos, transferem-se para o Estado sucessor
todos os bens imóveis do Estado predecessor situados no território objecto da
sucessão, o mesmo sucedendo com os bens móveis deste último Estado, ligados à sua
actividade na parcela territorial em causa (cfr. artigo 14.º, a) e b) da Convenção de
1983).
Relativamente aos Estados sucessores de recente independência, transparece
do artigo 15.º um propósito claro de, nesta matéria, lhes dispensar um tratamento
mais favorável do que aquele que é conferido aos demais Estados sucessores.
Preceitua, em termos gerais, a alínea a) do número 1 dessa disposição que passam
para o Estado sucessor os bens imóveis do Estado predecessor situados no território
objecto da sucessão. E idêntica solução consagra a alínea b) para aqueles bens imóveis
situados no estrangeiro que, tendo pertencido ao território ao qual respeita a
sucessão, se tenham, entretanto, durante o período colonial, tornado bens do Estado
predecessor. Acrescenta ainda a línea c) que passarão, igualmente, para o Estado
sucessor de recente independência outros bens imóveis, que não os mencionados nas
alíneas precedentes e também situados no estrangeiro, para cuja criação haja
contribuído o território dependente, na medida dessa contribuição. No que tange, por
seu turno, aos bens móveis, reafirmam as alíneas d), e) e f) a regra da
transmissibilidade, quer para aqueles que se encontrem relacionados com a actividade
do Estado predecessor no território objecto da sucessão (d)), quer no tocante aos que,
tendo pertencido a esse território, se tenham, durante o período de dependência,
convertido em bens do Estado predecessor (e)), bem como àqueles, não enquadráveis
nas alíneas d) e e), para cuja criação tenha contribuído o território dependente, na
medida dessa contribuição (f). De salientar ainda que eventuais acordos entre o Estado
predecessor e o Estado sucessor de recente independência, destinados a regular o
problema da sucessão de bens em termos diversos do preceituado nos parágrafos 1 a
3 do artigo 15.º, não podem ser alcançados com menoscabo de um princípio axial da
nova ordem económica internacional: o já aludido princípio da soberania permanente
de cada povo sobre as suas riquezas e recursos naturais (cfr. o número 4 do artigo
271

15.º).
No que se refere à separação, estabelece a alínea a) do número 1 do artigo 17.º
que passam para o Estado sucessor os bens imóveis do Estado predecessor situados no
território a que respeita a sucessão. Quanto aos bens móveis, haverá que distinguir
aqueles que se encontrem ligados à actividade do Estado predecessor no território em
causa dos demais, que se não enquadrem nessa categoria. Os primeiros passarão
integralmente para o Estado sucessor (b)), ao passo que os segundos serão para este
transferidos numa proporção equitativa (c)). Sem prejuízo do regime descrito, ressalva
ainda o parágrafo terceiro a possibilidade de a sucessão dar azo a uma compensação
justa e equilibrada entre o Estado predecessor e o Estado sucessor.
Por último, no caso de dissolução – novel categoria de sucessão introduzida
pela Convenção de 1983 –, para além dos bens imóveis situados no território objecto
da sucessão, passarão igualmente para o Estado sucessor, numa proporção equitativa,
os situados no estrangeiro, que, naturalmente, pertencessem ao Estado predecessor
(cfr. alíneas a) e b) do número 1 do artigo 18.º). No que se reporta aos bens móveis, as
soluções convindas são em tudo similares às previstas para as hipóteses de separação
(cfr. alíneas c) e d) do número 1 do artigo 18.º em confronto com as já citadas alíneas
b) e c) do número 1 do artigo 17.º). A única diferença que, acerca dos bens, se detecta
entre estas duas categorias de sucessão de Estados reside, pois, tão-somente, em
alguns dos bens imóveis situados no estrangeiro, que, no caso da dissolução (mas não
no da separação), se transmitem, equitativamente, para o Estado sucessor. Diferença
esta que, de resto, bem se compreende, atenta a circunstância de, na dissolução,
deixar de existir o Estado predecessor. Acrescente-se ainda a concluir que, também
aqui, se acautela, no parágrafo segundo respectivo, a possibilidade de, entre os
Estados envolvidos, sobrevir uma compensação equitativa.

Dando conta dos delicados problemas jurídicos que por vezes se levantam nas situações de
sucessão de bens imóveis do Estado predecessor no estrangeiro (sobretudo, os locais das missões
diplomáticas), GONZÁLEZ CAMPOS/SÁNCHEZ RODRÍGUEZ/SÁENZ DE SANTA MARIA fornecem o exemplo
da tentativa de venda, por parte do Governo Federal da antiga Jugoslávia, dos edifícios da Embaixada e
a residência do embaixador em Madrid, que teve como resposta imediata uma «Nota Verbal» da
Embaixada da Croácia, solicitando ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha, como medida
preventiva, o desencadeamento de um embargo a essas projectadas transacções, até que se resolvesse,
272

em termos definitivos, o problema da transferência da propriedade da ex-República Socialista


Federativa da Jugoslávia.

Um terceiro problema a considerar neste âmbito diz respeito aos arquivos do


Estado predecessor, isto é, nos termos do artigo 20.º da Convenção de 1983, todos os
documentos da mais variada natureza e proveniência, produzidos ou recebidos por
esse Estado no exercício das suas funções, que, à data da sucessão lhe pertencessem e,
justamente, se encontrassem conservados ou preservados como arquivos.
A regra geral, para os vários tipos de sucessão de Estados, é a da transmissão
(completa ou parcial) dos arquivos (originais ou meras reproduções) ao Estado
sucessor.
Uma vez mais, é de evidência intuitiva que na unificação os arquivos dos
Estados predecessores passarão na íntegra para o Estado sucessor (cfr. artigo 29.º).
No que se refere à sucessão relativa a uma parte do território, dispõe o artigo
27.º da Convenção que a transferência de arquivos para o Estado sucessor deverá ser
feita por acordo entre os Estados envolvidos. Na falta desse acordo, passarão,
naturalmente, para o Estado sucessor os arquivos que se revelem necessários para
assegurar uma normal administração do território objecto da mudança de soberania
(nº 2, a), do artigo 27.º), bem como outros, exclusiva ou principalmente, ligados aos
interesses desse território (nº 2, b), do Artigo 27.º).
Aos Estados sucessores de recente independência, para além dos arquivos
idênticos aos mencionados no artigo 27.º, atribui ainda a Convenção de 1983 o direito
à restituição total daqueles que, tendo pertencido ao território a que respeita a
sucessão, se hajam entretanto convertido, durante o período de dependência, em
arquivos do Estado predecessor (cfr., respectivamente, as alíneas b), c) e a) do número
1 do artigo 28.º).
No que toca à separação e à dissolução, rutilam soluções similares: transmissão
para o (s) Estado (s) sucessor (s) dos arquivos indispensáveis à normal administração
do território objecto da sucessão e, bem assim, daqueles outros que, de qualquer
modo, se encontrem directamente ligados a esse território (crf., respectivamente,
artigos 30.º e 31.º). No caso, todavia, da dissolução, atento o desaparecimento do
Estado predecessor, consagra, adicionalmente, o número 2 do artigo 31.º o direito de
o Estado sucessor obter, de forma equitativa e tendo em conta todas as circunstâncias
273

relevantes, outros arquivos que não os mencionados no parágrafo 1 do mesmo


preceito.
De assinalar, por derradeiro, os deveres de cooperação e de boa-fé que nesta
matéria impendem sobre os Estados predecessores.

E sobeja tratar neste número da transmissão de dívidas, isto é, nos termos do


disposto no artigo 33.º da Convenção de 1983, de quaisquer obrigações financeiras do
Estado predecessor para com outro Estado, organização internacional ou outro sujeito
de direito internacional.
Embora, por si só, uma sucessão de Estados não afecte os direitos e obrigações
dos credores (artigo 36.º), há, não obstante, que ter em conta certas particularidades
impostas pelos vários tipos de sucessão.
Mais fácil de resolver é, também a este respeito, o caso da unificação, pois, de
acordo com o artigo 39.º as dívidas dos Estados predecessores transmitem-se, na
íntegra, para o Estado sucessor.
Na sucessão relativa a uma parte do território, a transmissão de dívidas para o
Estado sucessor deve, preferencialmente, ser regulada por meio de um acordo entre
os Estados envolvidos (cfr. o número 1 do artigo 37.º), Na ausência, porém, tal acordo,
as dívidas do Estado predecessor passarão para o Estado sucessor numa proporção
equitativa, que atenda, em particular, aos bens, direitos e interesses transmitidos para
o Estado sucessor (cfr. o número 2 do artigo 37.º).
Ao arrepio de um princípio geral de transmissão (equitativa) das dívidas do
Estado predecessor, consagra o artigo 38.º uma solução claramente diferenciada para
os Estados sucessores de recente independência. Aí se prevê, com efeito, que nenhuma
dívida do Estado predecessor se transmite para o Estado sucessor; isto – já se vê –
numa clara tentativa de preservar os equilíbrios económicos fundamentais desses
Estados recém-independentes. Ressalva, no entanto, esse mesmo preceito a
possibilidade de, através de acordo, se ajustar uma fórmula distinta, tendo em conta a
ligação entre as dívidas do Estado predecessor conexionadas com a sua actividade no
território objecto da sucessão e os bens, direitos e interesses que hajam sido
transmitidos para o Estado sucessor (cfr. o número 1 do artigo 38.º). À semelhança do
que vimos suceder relativamente aos bens (cfr. o supracitado número 4 do artigo
274

15,º), esse hipotético acordo não poderá, todavia, pôr em causa o princípio da
soberania permanente de cada povo sobre as suas riquezas e recursos naturais, nem,
tão-pouco, comprometer a estabilidade económica do Estado de recente
independência (cfr. o número 2 do artigo 38,º).
Quando à separação e à dissolução, consagram, respectivamente, os artigos
40.º e 41.º soluções em tudo idênticas, com base no aludido princípio da transmissão
equitativa das dívidas do Estado predecessor. De modo que, se coisa diversa não for
acordada entre os Estados implicados na mudança de soberania, haverá que proceder
à já referida ponderação entre duas variáveis: as dívidas do Estado predecessor e os
bens direitos e interesses transmitidos para o (s) Estado (s) sucessor (s).

Analisados os vários regimes de transmissão de bens e de obrigações financeiras aplicáveis às


diversas categorias de sucessão de Estados, importará salientar que, na prática internacional, se assiste,
por vezes, à conclusão de acordos entre os Estados interessados, que, se em alguns casos consagram
soluções próximas das contempladas no direito convencional da sucessão, em outros estabelecem
regramentos distintos. Pense-se, por exemplo, nos acordos firmados entre os Estados sucessores da ex-
União Soviética (rememorando, em especial, o diferendo pretérito entre a Rússia a Ucrânia acerca da
titularidade da frota do Mar Negro); ou nos acordos entre a República Checa (actual Chéquia) e a
Eslováquia, na sequência da dissolução da ex-Checoslováquia, os quais, com base num critério territorial
e, simultaneamente, proporcional, (uma proporção de 2 para 1, em benefício da República Checa),
visaram regular o problema da transmissão de bens e de dívidas, bem como o da repartição das forças
armadas; ou, ainda, no acordo entre os Estados sucessores da ex-Jugoslávia, prevendo o recurso à
arbitragem como meio de resolução de divergências.

5.2.3 – Relações entre o Estado sucessor e a ordem jurídica internacional

Cabe, nesta sede, examinar três questões distintas: a da sucessão em matéria


de tratados; a da sucessão na qualidade de membro de uma organização internacional
e a da sucessão na responsabilidade internacional.

No que respeita à primeira, se bem virmos, o Estado sucessor é um terceiro


relativamente às convenções internacionais concluídas pelo Estado predecessor; logo,
por força do princípio geral da relatividade dos efeitos dos tratados (cfr., supra, Cap. II),
275

aquelas tenderão a não se lhe aplicar. A fortiori se estivermos perante um tratado


bilateral de que fosse parte o Estado predecessor e este, por hipótese, tiver
desaparecido. Com efeito, neste tipo de convenções a extinção de uma das partes
contratantes coenvolve a extinção do próprio tratado. Pode, assim, concluir-se que a
sucessão de Estados tem amiúde por efeito a redução do campo de aplicação
territorial dos tratados.
Nesta matéria a Convenção de Viena de 1978 não consagra, porém, um regime
unívoco; antes respostas ou soluções que variam em função do tipo de sucessão que
esteja em causa.
Quanto à sucessão relativa a uma parte do território, vigora a regra da tábua
rasa, ou seja, não está o Estado sucessor vinculado aos tratados previamente
celebrados pelo Estado predecessor, não “herdando”, por conseguinte, quaisquer
direitos ou obrigações convencionais anteriores. Dispõe, na verdade, a alínea a) do
artigo 15.º que os tratados do Estado predecessor deixarão de estar em vigor no
território objecto da sucessão. Concomitantemente, ex vi da alínea b), estender-se-ão
a esse mesmo território os efeitos dos tratados concluídos pelo Estado sucessor, a não
ser que tal se revele incompatível com os respectivos objecto e fim ou altere
radicalmente as condições da sua execução.
No tocante aos Estados sucessores de recente independência, a regra é,
igualmente, a da descontinuidade (intransmissibilidade ou tábua rasa) e acha-se
consagrada no artigo 16.º da Convenção de 1978, que estipula não estarem esses
Estados obrigados a manter em vigor um tratado ou a passar a ser parte dele pelo
facto de, à data da sucessão, tal tratado se encontrar a produzir efeitos no território
objecto da mudança de soberania. Deve, contudo, sublinhar-se que, especificamente
no que tange aos tratados multilaterais (quer estivessem ou não em vigor, à data da
sucessão, no território objecto da sucessão), conferem os artigos 17.º e 18.º conferem
aos Estados sucessores de recente independência a faculdade – qual direito
potestativo – de, mediante uma mera notificação de sucessão, se tornarem parte
deles, salvo se o tratado for fechado ou restrito, se a participação do novo Estado for
incompatível com o objecto ou o fim desse tratado ou se alterar radicalmente as
condições da sua execução. Solução esta que parece demasiado favorável aos
276

interesses do Estado de recente independência, não tomando na devida conta a


vontade das restantes partes no tratado.

Refira-se, como curiosidade, que, havendo a mencionada notificação de sucessão por parte de
um Estado de recente independência, destinada a fazer constar a sua qualidade de parte num tratado
multilateral, se mantém qualquer eventual reserva a esse tratado que fosse aplicável à data da
sucessão, a menos que aquele exprima intenção contrária ou formula uma espécie de “reserva à
reserva” já existente (cfr. artigo 20.º).

Dos artigos 21.º a 30.º da Convenção de 1978 constam ainda algumas regras
específicas aplicáveis aos Estados sucessores de recente independência,
nomeadamente relativas à possibilidade de vinculação a uma parte de um tratado ou à
opção entre disposições diferentes (artigo 21.º) e a tratados bilaterais (artigos 24,º e
ss.).
Já nas hipóteses de unificação, de separação e de dissolução (esta última, por
analogia com os casos de separação) o critério geral é, pelo contrário, o da
continuidade de todos os tratados, salvo se os Estados envolvidos tiverem
convencionado coisa diversa ou se a própria natureza do tratado (o seu objecto e o seu
fim) se revelar incompatível com a respectiva aplicação ao Estado sucessor. Tal
continuidade poderá ser territorialmente mais ampla ou mais restrita em função da
vontade manifestada pelo Estado sucessor e pelas outras partes no tratado (cfr,
respectivamente, os artigos 31.º e ss. e 34.º e ss.). Trata-se de soluções recomendadas
pela singularidade destas categorias de sucessão, às quais – feita a necessária
ponderação entre a soberania do Estado sucessor, os interesses dos outros Estados
parte e os próprios interesses da comunidade internacional – muito melhor se afeiçoa
a regra da transmissão dos tratados do que a doutrina da tábua rasa. A prática dos
Estados revela-se, no entanto, assaz oscilante, surgindo matizado e corrigido, com
inusitada frequência, o critério da continuidade; o que, de resto, a própria Convenção
de 1983 claramente admite, ao haver introduzido, como se relevou, alguma
flexibilidade no regime descrito.
Saliente-se, para concluir este ponto, que a regra da tábua rasa, aplicável nos
casos da sucessão relativa a uma parte do território e dos Estados sucessores de
recente independência, ou até, hipoteticamente, em outras categorias de sucessão por
vontade dos Estados implicados (cfr., supra), conhece, todavia, excepções, algumas
277

delas outras tantas excepções ao princípio da eficácia relativa das convenções


internacionais. Na verdade, transmitem-se (sempre) ao novo Estado sucessor: a) – os
tratados codificadores de normas consuetudinárias preexistentes ou, por maioria de
razão, de normas de jus cogens, bem como aqueles que consagrem normas entretanto
convertidas em costume internacional e, portanto, vinculativas de Estados terceiros –
tudo, por conseguinte, hipóteses de obrigações impostas pelo direito internacional aos
Estados, independentemente de qualquer tratado (artigo 5.º); b) – em obediência ao
princípio uti possidetis, os tratados “reais”, que fixam regimes de fronteira ou outros
regimes territoriais (artigo 11.º); e, c) – os tratados que criam situações objectivas, tais
como uma desmilitarização, uma neutralização, a liberdade de navegação em certas
zonas, etc., situações das quais, portanto, resultam obrigações, restrições ou direitos
relativamente ao uso de um qualquer território (artigo 12.º).

A aplicação ao Estado sucessor de tratados que versem regimes de fronteira (artigo 11.º da
Convenção de 1978) funda-se, como se disse, no princípio uti possidetis juris (ou das fronteiras
intangibilidade das fronteiras históricas traçadas pelo colonizador), o qual propicia a manutenção do
statu quo ante, Tal princípio surgiu na América Latina, ainda no séc. XIX, havendo sido mais tarde
estendido ao movimento da descolonização no continente africano (THOMAS FRANK), com o fito de
preservar a independência e a estabilidade dos novos Estados, que, desejavelmente, deveriam estar a
salvo de disputas ou contenciosos territoriais com os seus vizinhos.
A questão colocou-se, por exemplo, no caso da delimitação da fronteira marítima
Guiné/Senegal. Tratava-se, entre outras questões suscitadas, de saber se o acordo celebrado em 1960
entre Portugal e a França (Estados colonizadores), relativo à fronteira marítima, constituía ou não direito
aplicável aos dois novos Estados. A Guiné-Bissau, não contestando, embora, a validade da dita regra da
continuidade dos tratados criadores de fronteiras, sustentava a existência de excepções à mesma,
nomeadamente uma suposta excepção para fronteiras marítimas. Certo é, porém, que o tribunal
arbitral encarregado de apreciar o caso claramente rejeitou, na sua sentença de 31 de Julho de 1989, a
pretensão daquele Estado, afirmando a extensão do âmbito de aplicação espacial do princípio uti
possidetis às águas fluviais ou lacustres, ao mar, ao subsolo, à atmosfera, etc., nenhuma razão havendo,
portanto, para que o respectivo alcance se cingisse, tão-somente, aos limites administrativos (terrestres)
de cada possessão colonial.
Dos “tratados reais” se distinguem os concluídos intuitu personae, ou “tratados pessoais” (v.g.,
tratados de aliança), que, tendo por base uma relação de especial proximidade, afinidade ou ligação
entre as partes, não podem ser invocados pelo Estado sucessor ou ser-lhe oponíveis.
278

Relativamente à sucessão na qualidade de membro de uma organização


internacional, constitui entendimento corrente que o Estado sucessor não é admitido,
automaticamente e de pleno direito, nas organizações internacionais de que fosse (ou
seja) membro o Estado predecessor, não lhe sendo, tão-pouco (inversamente) imposto
esse estatuto ou condição.
Significa isto que, querendo, deverá o Estado sucessor requerer a sua admissão
na organização internacional em causa, de acordo com o procedimento de adesão
contemplado no respectivo tratado constitutivo. Regra esta, aliás, cuja justificação se
apresenta de dardejante clareza quando o Estado sucessor se mantém como membro
de tal organização (caso típico da descolonização).
Em abstracto, poder-se-ia apenas considerar azado a desencadear uma
sucessão automática o caso da dissolução, em que desaparece o Estado predecessor.
Mesmo aí, porém, algumas razões objectivas desaconselham essa solução: imagine-se,
por exemplo, que se trata de uma organização internacional fechada ou restrita, de
integração, de aliança política, etc..

Não obstante o que acabou de dizer-se, um conspecto da prática internacional impõe que
relevemos a cíclica ocorrência de situações em que se verificam, senão excepções, pelo menos alguns
desvios à regra geral. Foram, inter alia, os casos da Índia e do Paquistão, na sequência do
desmoronamento do Império das Índias (só o Paquistão teve de requerer, formalmente, a sua admissão
à ONU – ónus que a Índia não suportou, dado haver sido considerada sucessor único daquele império, o
qual já antes tinha assento na Organização Mundial); da Síria e do Egipto, que, rejeitada uma fusão na
República Árabe Unida, não tiveram de se submeter, ex novo, ao procedimento de adesão à ONU; da
Alemanha reunificada, que sucedeu, mediante simples notificação, à RFA (mas não à RDA) na qualidade
de membro das organizações internacionais de que aquele Estado fazia parte; da Rússia e das
Repúblicas Checa e Eslovaca, que sucederam, respectivamente, à ex-URSS e à ex-Checoslováquia na
ONU (no primeiro caso, verificando-se, inclusive, uma automática sub-rogação no exercício do direito de
veto – especial prerrogativa de que gozam os membros permanentes do Conselho de Segurança); etc.
(cfr. QUOC DINH/DAILLIER/PELLET).

E resta, neste número, curar do problema da sucessão em matéria de


responsabilidade internacional. Tradicionalmente, a questão parecia fácil de resolver,
porquanto a regra geral da não transmissão da imputação dos actos lícitos ou ilícitos
excluía qualquer ideia de continuidade, devendo, pois, ter-se por afastada a sucessão
em matéria de responsabilidade internacional, activa ou passiva. Doutrina clássica esta
279

que a jurisprudência dos tribunais internacionais coonestava, recusando-se a admitir a


transferência para o Estado sucessor das obrigações decorrentes da prática de actos
ilícitos por parte do Estado predecessor.
Em tempos mais recentes, porém, fruto da prática dos Estados, bem como da
acção conjugada de alguma doutrina (v.g., O’ CONNELL, DUMBERRY, J. CRAWFORD,
etc.), da jurisprudência (v.g., caso Lighthouse), do labor de organizações internacionais
(v.g., o Instituto do Direito Internacional, através de uma resolução de 2015) e da
própria CDI (a partir de 2017, com o relator especial PAVEL STURMA), foi logrando
curso a ideia de que aquela orientação tradicional, por demasiado rígida, não se
revelava a mais adequada em termos de equidade e justiça material. De facto, ignorar
factores como, por exemplo, o tipo de sucessão de Estados em causa, muito em
especial as categorias da unificação e da dissolução (em que deixa de existir o Estado
predecessor), ou o eventual carácter continuado (duradouro) do acto ilícito, poderia
fragilizar sobremaneira a posição do Estado vítima (ou lesado), privando-o da
possibilidade de obter reparação pelos danos que lhe houvessem sido causados. Daí
que alguns propugnem uma solução mais heterogénea e flexível, que, a um pronto,
atenda à tipologia da sucessão de Estados e ao circunstancialismo de cada caso
concreto.
Apesar do bem fundado das reflexões ora expendidas, julgamos, contudo, que
elas não são de molde a fazer perder valimento à regra clássica da não sucessão em
matéria de responsabilidade internacional. Coisa diversa será a possibilidade de, por
via de acordo ou de acto unilateral (v.g., declarações dos Estados sucessores) ser ela
voluntariamente postergada em situações específicas, à luz de exigências de justiça e
equanimidade (v.g., a voluntária assunção de responsabilidade por parte das
Repúblicas Checa e Eslovaca, bem como da Alemanha unificada, face a actos ilícitos,
respectivamente, praticados pela ex-Checoslováquia e pela República Democrática da
Alemanha).
280

6 – Reconhecimento

6.1 - Noção

Falou-se já do reconhecimento no contexto dos actos jurídicos unilaterais do


Estado (cfr., supra, Cap. II). Numa sociedade, como a internacional, em que a patente
carência de representação orgânica e institucional constitui, quiçá, ineliminável
predicado, o reconhecimento assume-se como instituto fundamental do direito das
gentes.
Através do reconhecimento, um Estado (ou outro sujeito de direito
internacional), verificando a existência de determinada situação ou acto jurídico, em
cuja criação (ou adopção) não interveio, e considerando-a (o) como lícita (o) à luz do
direito internacional, consente, ou implicitamente admite, que tal situação ou acto
jurídico lhe seja oponível, isto é, aceita que os respectivos efeitos ou consequências
jurídicas se lhe apliquem, assim dotando, jure imperii, certos factos de significação
“legal” (M. SHAW).
Suprindo, de alguma forma, a falta de autoridades centrais fortes na
comunidade internacional, o instituto do reconhecimento empresta alguma
estabilidade e coerência às relações internacionais, permitindo joeirar os factos e
clarificar os vínculos jurídicos entre os vários sujeitos de direito, em particular os
Estados, impedindo-os, nomeadamente, de, perante a mesma situação, adoptarem,
em momentos sucessivos, comportamentos díspares ou contraditórios, motivados por
razões de mera oportunidade política.
Como se observou já, são inúmeras as situações passíveis de reconhecimento.
De entre elas, as mais importantes são, sem dúvida, as que dizem respeito ao
reconhecimento de um Estado novo e de um governo novo. A ambas se destina o
número seguinte.

6.2 – Reconhecimento do Estado: natureza jurídica

O Estado é, conforme vimos, constituído por população, território e governo, só


o sendo, no entanto, verdadeiramente, se, para além de possuir esses elementos
constitutivos, for uma entidade soberana ou independente.
Mas como (e quando) nasce a personalidade jurídica do Estado?
281

A resposta a este problema passa, directamente, pelo debate acerca da


natureza jurídica do reconhecimento, o qual, ao longo dos tempos, se tem alimentado
de duas concepções divergentes: a teoria atributiva ou constitutiva e a teoria
declarativa.

6.2.1 – Concepção constitutiva ou atributiva

De acordo com esta primeira corrente, proposta pelos autores voluntaristas


clássicos (CAVAGLIERI, TRIEPEL, JELLINEK, etc.), a existência de um novo Estado na
comunidade internacional pressupõe a aceitação (ou o consentimento) dos Estados
preexistentes, aceitação essa exprimida através de um acto (discricionário) de
reconhecimento. O que, portanto, implica ser este um quarto elemento constitutivo
do Estado, a par do substracto populacional, da base territorial e do aparelho de
governo.
Sem o reconhecimento a personalidade jurídica do Estado não lograria formar-
se, o que equivale a dizer – de harmonia, aliás, com os pressupostos essências do
voluntarismo – que é sempre a vontade dos sujeitos primários originais que, em último
termo, determina a entrada de um novo membro para a comunidade internacional.
Por isso, à luz desta doutrina, é o reconhecimento que, em rigor, constitui o Estado e
lhe atribui a qualidade de sujeito de direito internacional (valor constitutivo ou
atributivo).
Basta, contudo, pensar-se na nublosa situação jurídica em que mergulharia um
Estado reconhecido por uns, mas não por outros (que consequências adviriam de uma
tal capitis deminutio, v.g., no plano da vinculação daquele às normas de direito
internacional ou em sede de responsabilidade internacional), para que a concepção
em apreço suscite fundadas reservas.

6.2.2 – Concepção declarativa

A tese declarativa, como a designação logo deixa transparecer, assenta num


suposto totalmente diverso: o surgimento de um novo Estado resulta de um processo
de facto, sendo, por conseguinte, um dado objectivo e não contestável. A
personalidade jurídica nasce da mera reunião, numa determinada entidade, dos três
elementos (população, território e governo) imprescindíveis à constituição do Estado
282

soberano.
Através do reconhecimento, os membros preexistentes da comunidade
internacional limitam-se a comprovar (constatar) tal facto, condicionando, daí por
diante, os efeitos internacionais da soberania do novel Estado, mas não lhe atribuindo
qualquer estatuto jurídico. Este reside já, originariamente, nos referido elementos
constitutivos. Ora, não servindo para atribuir a qualidade de Estado (ou criar a
soberania), senão, apenas, para declará-la ou constatá-la, será mister concluir pelo
valor meramente declarativo do acto de reconhecimento.
Pode então dizer-se que a não outorga do reconhecimento não constitui óbice
a que determinado Estado exista; assim como deve, inversamente, relevar-se que um
acto de reconhecimento, em si e por si mesmo considerado, de nada valerá na
ausência dos elementos constitutivos do Estado.

O direito internacional admite, é certo, o reconhecimento prematuro de entidades que, não


reunindo ainda os atributos indispensáveis à existência de um Estado, virão, previsivelmente, a alcança-

los num prazo mais ou menos alargado (reconhecimento de beligerantes – cfr., infra). Não se trata,

porém (ainda), de reconhecimento de Estados. Este poderá sobrevir em momento subsequente, caso a
situação fáctica evolua no sentido da sua admissibilidade,

Dito isto, seríamos porventura levados a concluir que o reconhecimento se


reconduz a um mero e inócuo formalismo. Nada, porém, de mais errado. Secundando
FAUCHILLE, poderá dizer-se que, antes do reconhecimento, o Estado possui
simplesmente capacidade de gozo, mas não de exercício dos seus direitos de
soberania; o que, portanto, significa diferir sobremaneira, no que toca ao exercício das
diversas competências estaduais, a situação jurídica do novo membro da comunidade
internacional antes e depois do reconhecimento pelos seus pares.
Se, no seu território, o Estado não reconhecido tem, v.g. o direito de defender
as respectivas integridade e independência, de assegurar a sua prosperidade e, em
decorrência, de se organizar livremente, legislando, administrando e julgando (cfr.
artigo 3.º da Convenção de Montevideu sobre os Direitos e Deveres dos Estados), já no
âmbito das relações internacionais é notoriamente mais limitada a sua liberdade de
acção.
Com efeito, não podendo compelir os demais Estados a considerarem oponíveis
283

no seu território os actos por si praticados, o Estado que não haja sido objecto de
reconhecimento vê, em muito, reduzido o alcance extraterritorial da sua legislação, da
sua regulamentação administrativa ou das sentenças dos seus tribunais. Por outro
lado, a falta de reconhecimento, não obstando, embora, a que sejam encetados, de
modo fragmentário, certos contactos não oficiais com terceiros – v.g. missões
oficiosas, relações comerciais ou consulares, acordos de escassa amplitude, etc.
(SALMON; DÍEZ DE VELASCO) –, frena, contudo, inevitavelmente, o entabulamento
oficial de relações diplomáticas solenes, ao nível das embaixadas, com os Estados que
tenham recusado outorgar o reconhecimento.
Deve, pois, frisar-se que, se o reconhecimento tem um indiscutível valor
declarativo quanto à existência, de jure, de um Estado, dado servir, tão-somente, para
comprová-la ou certifica-la (cfr., v.g., o artigo 12.º da Carta da OEA), não deixa, ainda
assim, na prática internacional (sobretudo, a mais recente) de comportar igualmente
uma dimensão constitutiva, discernível no que respeita ao pleno exercício das
competências internacionais do novo Estado (VERDROSS; DÍEZ DE VELASCO). Assim, de
resto, se compreende o afã das múltiplas iniciativas em que, por norma, se desdobram
os Estados recém-formados, com o intuito de obterem o reconhecimento pelo maior
número possível de Estados e organizações internacionais. Até porque, tratando-se de
um acto essencialmente livre e discricionário, poderão alguns recusar-se a outorgá-lo
ou subordinar essa outorga ao cumprimento de certas condições ou parâmetros,
designadamente em termos de autodeterminação, democracia, Estado de Direito e
direitos humanos (pense-se, inter alia, nos casos problemáticos de Taiwan, da
República Turca de Chipre do Norte, do Kosovo, da Abecásia, da Ossétia do Sul, etc.).

6.3 – Reconhecimento de governos

Contornos diversos assume o reconhecimento de governos. Trata-se agora de


saber em que medida uma autoridade política que, num determinado Estado,
ascendeu ao poder fora da regularidade ou ao arrepio das formas constitucionais
normais (v.g., por via revolucionária ou na sequência de um golpe de Estado) e se
arvora em representante desse Estado no plano internacional, o é ou não validamente.
Significa isto que pode reconhecer-se um Estado, mas não o seu governo. Já as
mudanças de governo nos termos constitucionais não devem merecer de terceiros
284

qualquer tomada de posição, sob pena de inaceitável desrespeito pelo princípio da


autonomia constitucional e política do Estado (vertente interna da autodeterminação).
São, tradicionalmente, duas as posições doutrinais acerca do reconhecimento
de governos: a doutrina da legitimidade – a partir do séc. XX, designada doutrina da
legitimidade democrática ou de Tobar, em homenagem ao Ministro dos Negócios
Estrangeiros do Equador, que a perfilhou em 1907, e que, mais tarde, viria também a
ser propugnada pelo Presidente norte-americano Wilson – e a doutrina da efectividade
ou doutrina de Estrada, este, Ministro dos Negócios Estrangeiros do México.
A primeira, tem as suas raízes na Santa Aliança, de 1815, criada para travar o
liberalismo e o secularismo que grassavam na Europa, afirmando a ideia da
legitimidade dinástica dos membros das Casas Reais mais antigas. Governos que não
preenchessem tais requisitos não seriam legítimos e, portanto, não deveriam ser
reconhecidos. No séc. XX, porém, esta doutrina trasmudou-se numa concepção de
legitimidade democrática, com base na qual o reconhecimento só poderia ser
outorgado aos governos cujo poder – embora com origem numa revolta ou insurreição
– fosse sancionado (legitimado), a posteriori, através de mecanismos democráticos de
sufrágio ou consulta popular (v.g., um referendo). Dificilmente conciliável com o
princípio da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados, viria, ainda assim,
esta corrente a ser muitas vezes invocada pelos EUA e por vários outros Estados
ocidentais, fundando, designadamente, o não reconhecimento de alguns governos
ligados ao movimento comunista, como, por exemplo, os de Cuba e da China.
A doutrina da efectividade, por sua vez, parte de um critério distinto: deverão
apenas ser reconhecidos os governos que exerçam uma autoridade real (efectiva)
sobre os respectivos territórios e se mostrem, ainda que imperfeitamente, capazes de
assegurar o cumprimentos dos compromissos internacionais do Estado. Revelar-se-ão
deletérias quaisquer tomadas de posição acerca da legitimidade ou da legalidade das
novas autoridades. Por outras palavras, será a realidade fáctica, política e jurídica
interna a impulsionar, nuns casos, ou a sofrear, noutros, o acto de reconhecimento,
mesmo que o pragmatismo subjacente a esta directriz possa ter um custo em termos
de promoção da paz, da democracia e dos direitos humanos.
Os ditames da Realpolitik têm imposto a prevalência do critério da efectividade
sobre o da legitimidade: os Estados tendem a considerar como interlocutores válidos
285

no plano internacional aqueles governos que melhor estejam em condições de garantir


a satisfação dos seus próprios interesses. Apesar disso, tem-se assistido, nos últimos
tempos, a um tímida tentativa de recobramento da doutrina da legitimidade, quer à
luz do jus cogens, quer com base na força irradiante do direito internacional dos
direitos humanos, o que haverá, simultaneamente, de pressupor uma outra
compreensão do princípio da não ingerência e, porventura, insuflar um sopro de vida
ao propalado dever de não reconhecimento.

A crise vivida na Venezuela, em 2019, parece atestar isto mesmo. Com efeito, parte substancial
dos Estados e organizações internacionais não reconheceu, então, os resultados dos diversos actos e
processos eleitorais realizados naquele país, em particular a reeleição de Nicolás Maduro, em 2018.
Muitos países interromperam relações diplomáticas com a Venezuela e alguns chegaram mesmo a
nomear embaixadores junto de Juan Guaidó, Presidente da Assembleia Nacional, que viria, em Janeiro
de 2019, a autoproclamar-se Presidente da Venezuela. Na sua Declaração de 10 de Janeiro de 2019, em
nome da União Europeia, sobre o novo mandato do Presidente Maduro, a Alta Representante chegaria
mesmo a afirmar que as eleições realizadas no pretérito mês de Maio não haviam sido livres nem justas,
pelo que o seu resultado não tinha qualquer credibilidade, apelando à marcação de novas eleições
presidenciais, em conformidade com as normas democráticas internacionalmente reconhecidas. Preza a
verdade afirmar, no entanto, que nunca, em rigor, chegou a ser reconhecido um governo de Juan
Guaidó, nos termos do direito internacional. Guaidó foi reconhecido, isso sim (nomeadamente pelo
Governo português), como Presidente interino com legitimidade para convocar e organizar eleições
presidenciais livres, o que acaba, apesar de tudo, por comprovar as limitações inerentes à doutrina da
legitimidade.

Quanto aos seus efeitos, o reconhecimento de governos, para além de clarificar


o problema da representação internacional do Estado, permite garantir o respeito, na
ordem jurídica de terceiros, pela sua legislação, normas regulamentares e actos
administrativos, bem como assegurar aos respectivos representantes diplomáticos e
consulares os privilégios e imunidades que o direito internacional lhes confere. Por
outro lado, também no que toca à responsabilidade por actos ilícitos se dissipam as
dúvidas que, em matéria de imputação e de dever de reparação de danos causados a
outrem, pudessem subsistir.
286

6.4 – Reconhecimento de insurrectos e beligerantes

Sem dúvida menos importante do que na sociedade internacional de antanho –


a despeito de uma aparente revivescência com a Primavera Árabe, a partir de 2010 –,
nem por isso poderia deixar-se sem menção o carácter específico de que se reveste o
reconhecimento de insurrectos e beligerantes.
Como se disse já, reservam-se estas designações para os casos em que parte da
população de um Estado se rebela, provocando uma guerra civil, com o objectivo de
desmembrar-se desse Estado, cindindo o seu território, ou ocupar definitivamente o
poder, derrubando as anteriores autoridades oficiais.
O recurso a acções violentas (actos contra a segurança de pessoas ou bens) por
parte destes grupos, conduz muitas vezes Estados terceiros afectados com o conflito,
ou a própria mãe-pátria, a reconhecerem os rebeldes como insurrectos ou como
beligerantes.
Trata-se, porém, de situações distintas. Vejamos.
O reconhecimento dos rebeldes como grupo de insurrectos precede
habitualmente o seu reconhecimento como beligerantes e ocorre num contexto de
incerteza e volatilidade da situação política, a qual de modo algum recomenda um
reconhecimento prematuro de Estado. Deste modo, é sobretudo motivado por razões
de ordem prática o reconhecimento de insurrectos: destina-se, concretamente, a
colocar os membros do grupo sob a alçada do direito internacional humanitário, em
particular do Protocolo Adicional II, de 1977, às Convenções de Genebra de 1949,
instrumento esse que versa, justamente, sobre conflitos armados não internacionais. A
consequência imediata desse reconhecimento é a de deixarem aqueles de poder ser
tratados como delinquentes comuns, beneficiando da protecção e das garantias
fundamentais conferidas por aquele Protocolo (cfr. artigo 4.º e ss.).
Mas, se os insurrectos controlarem já uma parte significativa do território no
qual desenvolvem a sua luta, dispuserem de um governo estável e de um exército
organizado e, além disso, se mostrarem dispostos, na condução das hostilidades, a
respeitar o jus in bello – designadamente as normas de direito internacional
humanitário relativas à protecção da população civil e ao tratamento dos prisioneiro
de guerra – e os deveres de neutralidade, poderão ser reconhecidos como
287

beligerantes; facto que, desde logo, terá por efeito convolar uma inicial guerra civil
num conflito armado internacional, sujeito, desta feita, ao Protocolo Adicional I, de
1977, às Convenções de Genebra de 1949.
Sendo a própria mãe-pátria a proceder ao reconhecimento, desonera-se da
responsabilidade para com outros Estados pelos danos que a estes hajam sido
causados pelos beligerantes. Ao invés, sendo um Estado terceiro a outorgar o
reconhecimento, fica a mãe pátria isenta de responsabilidade pelos actos dos rebeldes
para com esse Estado, subsistindo, todavia, a sua responsabilidade em face daqueles
que se tenham recusado a reconhecê-los. Deduz-se, pois, do exposto que, após
haverem sido reconhecidos, os beligerantes adquirem, de facto, os direitos e deveres
de um Estado (AZEVEDO SOARES).
Deverá, contudo, relevar-se que o reconhecimento prematuro de beligerantes
por parte de um Estado terceiro, relativamente a um grupo que não reúna ainda os
requisitos necessários para tal, constituirá ingerência nos assuntos internos do Estado
em cujo território os rebeldes operam (RIEDEL).

Constituem, inter alia, exemplos históricos de reconhecimento de beligerantes o dos Estados


Unidos em relação às colónias espanholas da América do Sul, no decurso da luta pela respectiva
independência, bem como o de vários Estados europeus relativamente aos Estados do sul dos Estados
Unidos, durante a Guerra da Secessão (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).

No que respeita à natureza e características do reconhecimento de insurrectos


e beligerantes, algumas especificidades haverá que assinalar.
Por um lado, apresenta tal reconhecimento um carácter constitutivo. Com
efeito, não retiram os rebeldes directamente do direito internacional a sua capacidade
jurídica. Ela advém, justamente, do acto de reconhecimento, sem embargo de, no caso
dos insurrectos, ser, como se disse, uma capacidade assaz circunscrita, cingindo-se à
esfera do direito internacional humanitário.
Por outro lado, é transitório, no sentido em que um de dois resultados poderá
produzir-se: ou bem o governo legal triunfa e o reconhecimento ficará ferido de
caducidade; ou bem o movimento revolucionário logra obter êxito na sua luta,
provocando o desmembramento do Estado anterior ou a substituição do respectivo
governo, colocando-se então, respectivamente, um problema de reconhecimento de
288

Estado ou de governo.
Em terceiro lugar, o reconhecimento de insurrectos e beligerantes constitui
manifestação de uma competência discricionária: não impende sobre a mãe-pátria ou
sobre Estados terceiros qualquer dever de reconhecimento.

6.5 – Dever de não reconhecimento

O reconhecimento traduz-se, quase sempre, num acto livre e discricionário –


algo que o Instituto de Direito Internacional confirmara já numa resolução de 1936. O
não ser, pois, outorgado no quadro de um procedimento centralizado nem
corresponder ao exercício de uma competência vinculada dos Estados, decorre, em
igual medida, da estrutura algo descentralizada da comunidade internacional e da
soberania dos seus sujeitos primários.
É certo que, v.g., quanto ao aparecimento de um novo Estado, deverá o
reconhecimento, sob pena de inaceitável arbitrariedade, ter correspondência na
efectividade do poder exercido pelas autoridades de governo no respectivo território.
Importa, ainda assim, sublinhar que o direito internacional é, manifestamente, pouco
impositivo em termos de condições materiais e procedimentais do exercício da
competência para reconhecer.
No actual estádio de desenvolvimento do direito internacional, problema que
poderá colocar-se é, todavia, o de saber se para um Estado ser reconhecido
validamente é ou não necessário ter-se constituído de forma lícita ou regular à luz das
normas e princípios fundamentais daquele ordenamento. Uma resposta positiva
conduzir-nos-á a aceitar, de jure condito, a existência de um dever de não
reconhecimento de situações ilícitas, com o consequente entibiamento do princípio da
efectividade que emblemava o direito das gentes pós-westefaliano.

Conforme já referido, a questão em apreço suscitou-se, pela primeira vez, de forma


consistente, aquando da invasão da Manchúria pelo Japão, em 1931. Ora, tanto a nota de protesto
enviada pelo Secretário de Estado norte-americano, LEWIS STIMSON, ao governo japonês,
imediatamente a seguir ao incidente, como a resolução confirmante da “doutrina Stimson”,
subsequentemente adoptada, em 1932, pela Assembleia Geral da Sociedade das Nações, como,
sobretudo, a declaração retroactiva de desaparecimento do Estado de Manchukuo, após a derrota do
289

Japão na Segunda Guerra Mundial, parecem, essencialmente, ter-se fundado na ilicitude da situação
constituída em 1931. Em contraponto, no entanto, a anexação contemporânea da Etiópia pela Itália, em
1935, na sequência de um (similar) recurso ilícito à força, não ensejaria qualquer resolução
condenatória por parte da SDN, idêntica à de 1932, beneficiando, até, o novo “Império da Itália e
Etiópia” do reconhecimento de quarenta e quatro Estados – um número, à época, muitíssimo
significativo…

Os limites jurídicos que, desde o início do séc. XX, foram impostos aos Estados
na sua tradicional competência de recurso à guerra, até à consagração definitiva do
princípio da proibição do recurso à força nas relações internacionais, no artigo 2.º,
número 4, da CNU – o qual comporta excepções muito contadas –, não autorizam,
efectivamente, hoje, outra conclusão que não seja a de que o moderno direito
internacional integra hoje, vertido em diversos instrumentos normativos, um dever de
não reconhecimento de um Estado (ou de qualquer outra situação) que se tenha
constituído através de um uso ilícito da força.
Mas mais. Como se relevou a propósito das consequências jurídicas
emergentes da prática de actos ilícitos estaduais de especial gravidade – aqueles que
resultam da violação do jus cogens –, impende justamente sobre os Estados, ex vi do
artigo 41.º do PARI, um dever de não reconhecimento das situações que deles derivem,
mesmo quando estas não tenham na sua base um recurso à força militar (pense-se,
por exemplo, em certos casos de desrespeito pelo princípio da autodeterminação dos
povos ou de violação grave e reiterada de direitos humanos).
Sendo isto aparentemente incontroverso, já se revelará, no entanto, prematuro
sustentar a existência de um dever geral de não reconhecimentos de situações ilícitas
ou contrárias ao direito das gentes fora do âmbito material das infracções ao direito
internacional imperativo.

6.6 – As formas do reconhecimento

Muito embora o direito internacional não imponha a observância de qualquer


forma especial para a outorga do reconhecimento, a verdade é que na prática
internacional algumas modalidades é possível divisar.
Atentemos nas mais comuns.

Reconhecimento de direito (de jure) e reconhecimento de facto


290

Deve começar por afirmar-se que não são inteiramente rigorosas estas
designações, as quais tês, todavia, atrás de si uma já longa tradição.
De facto, tal como aduzem QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, todo o acto de
reconhecimento é um acto jurídico, produtor de efeitos jurídicos, no que toca à
capacidade de determinado sujeito ou entidade nas relações internacionais, pelo que
entre o reconhecimento de direito e o reconhecimento de facto existe apenas uma
diferença de grau, não uma diferença de natureza.
Assim, enquanto o reconhecimento de direito é definitivo, pleno e irrevogável
(não reversível), o reconhecimento de facto é, por contraposição, provisório, limitado e
revogável (reversível). Pode dizer-se que, sempre que um novo Estado se encontra em
vias de formação ou constituição, o reconhecimento de facto obvia aos inconvenientes
que poderiam advir de um reconhecimento (definitivo) prematuro e precipitado.
Através do primeiro, em face de uma situação de contornos ainda pouco claros ou mal
definidos, aquele que reconhece evita comprometer-se inadvertida e inapelavelmente.
Consolidando-se, no futuro, o nascimento desse novo membro da comunidade
internacional, o reconhecimento de facto converter-se-á em reconhecimento de jure;
se, pelo contrário, não chegar a consumar-se a respectiva independência, o
reconhecimento (provisório) será revogado.

Como exemplos de reconhecimento de facto nas relações internacionais, fornecidos pelos


autores supracitados, podem indicar-se os dos três Estados bálticos, Estónia, Letónia e Lituânia,
reconhecidos de facto, em 1918, e de jure, apenas quatro anos mais tarde; o das províncias da Geórgia,
Arménia e Azerbaijão, cujo reconhecimento de facto, outorgado em 1920, viria a ser mais tarde
revogado, na sequência da reconquista empreendida pelas forças bolcheviques; o da Indonésia pelos
Estados Unidos, em 1946 – três anos, portanto, antes da independência desse Estado –; o de Israel,
também pelos Estados Unidos, logo após a proclamação do nascimento do Estado judaico; etc..

Reconhecimento individual e reconhecimento colectivo

Por norma, consubstancia-se o reconhecimento num acto individual que, no


plano jurídico, não compromete (ou vincula) senão o outorgante (reconhecimento
individual). Nada impede, porém, que em circunstâncias particulares da vida
internacional vários Estados procedam, em conjunto, ao reconhecimento de um Estado
recém-formado (reconhecimento colectivo).
Da natureza das coisas decorrem o maior impacto político-diplomático e,
291

consequentemente, a maior força internacional do reconhecimento colectivo. E nem


por ser menos frequente do que o reconhecimento individual, deixam de abundar, na
prática dos Estados, os exemplos de reconhecimento colectivo.

Foi, v.g., o caso do reconhecimento, por parte dos Estados membros da, então, Comunidade
Europeia, incluindo Portugal, dos três novos Estados que emergiram, do desmembramento parcial da
ex-Jugoslávia, na década de noventa do séc. XX: a Bósnia-Herzegovina, a Croácia e a Eslovénia. Mais
recentemente, foi também o que sucedeu em relação ao Kosovo, em 2008, por parte de vários Estados,
na sequência da sua declaração unilateral de independência, em 17 de Fevereiro daquele ano.

Reconhecimento expresso e reconhecimento implícito

Como a terminologia aqui utilizada logo faz supor, o reconhecimento expresso –


aliás, a forma mais corrente – implica a adopção de um acto jurídico solene que,
inequivocamente, traduz ou exprime o reconhecimento do novo Estado, enquanto o
reconhecimento implícito apenas se deduz a partir da adopção de determinados
comportamentos.
Tudo estará, pois, em saber quais sejam, em concreto, os comportamentos ou
actos susceptíveis de legitimar a conclusão de que subjacente ao respectivo
desencadeamento ou prática se encontra uma intenção de reconhecer. O que equivale
a dizer que o reconhecimento implícito coloca um problema de prova. E se, por
exemplo, o estabelecimento de relações diplomáticas com o novel Estado constitui,
sem dúvida, uma forma de reconhecimento implícito ou tácito, o mesmo já, por certo,
se não poderá afirmar do mero entabulamento de relações comerciais.
292

III – AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

Sumário: I – Teoria geral (traços essenciais): 1 – Considerações preliminares. 2 – Noção. 3 –


Classificações. 4 – Personalidade jurídica. 5 – Atribuições e competências. II – A Organização das Nações
Unidas. 1 – Contexto em que foi criada. 2 – Objectivos e princípios em que se baseia o seu
funcionamento. 3 - A estrutura da ONU: membros e órgãos. 3.1 – Competências dos órgãos principais. 4
– Sistema de segurança colectiva e manutenção da paz e da segurança internacionais (remissão).

I – Teoria geral (traços essenciais)

1 – Considerações preliminares

A passagem da sociedade internacional relacional à sociedade institucional


(RENÉ-JEAN DUPUY) – ideia a que já aludimos – assentou na progressiva
consciencialização operada nos Estados – percepção essa catalisada pelo progresso
técnico e pela crescente interdependência económica – de que uma adequada
prossecução de objectivos comuns reclamaria a edificação conjunta de mecanismos
internacionais sólidos, cuja existência fosse permanente e não meramente episódica.
As primeiras organizações internacionais surgiram em finais do séc. XIX e inícios
do séc. XX. Como mais atrás se observou, eram ainda bastante rudimentares, tendo
por modesto escopo a gestão comum de certas actividades, facto que lhes valeu o
epíteto, quiçá algo excessivo, de «serviços públicos internacionais». As comissões
fluviais internacionais do Reno e do Danúbio, bem como as várias uniões
administrativas de carácter essencialmente técnico (v.g., a União Postal Universal e a
União para a Protecção da Propriedade Intelectual), constituem exemplos desses
primeiros arremedos de institucionalização da comunidade internacional.
Após a Primeira Guerra Mundial, a criação, em 1919, no âmbito da Conferência
de Paz de Versalhes, da Sociedade das Nações – a qual viria a ser a primeira
organização internacional de vocação universal – e, bem assim, a correspondente
entrada em funcionamento do Tribunal Permanente de Justiça Internacional e da
Organização Internacional do Trabalho, representaram, sem dúvida, experiências
sumamente importantes no caminho da construção de um poder internacional
superior ao dos Estados e assente na rule of law.
A verdade, contudo, é que a superação do interestadualismo clássico só de
forma assaz vagarosa e titubeante se foi processando. É que, não obstante a sua
293

importância para a evolução das relações internacionais, eram muito limitadas ainda a
independência e a vida própria das organizações surgidas entre os dois conflitos à
escala mundial. Não foi senão depois de 1945 que ganhou corpo um amplo movimento
internacional tendente a dotar as instituições criadas – aliás, um número considerável
delas –, tanto no plano universal, como ao nível regional, de real autonomia e de
efectivos poderes de decisão.
As novas organizações internacionais diferem bastante entre si, quer no que
toca ao respectivo âmbito territorial de acção, quer no que respeita à sua estrutura
jurídica, quer ainda quanto ao seu objecto, isto é, aos fins por si prosseguidos. Da
Segunda Guerra Mundial em diante, são praticamente infindáveis os exemplos que, a
propósito, podem fornecer-se. Assim, por exemplo, no domínio das relações políticas e
diplomáticas, foram criadas a Organização das Nações Unidas (ONU), de vocação
universal, bem como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização de
Unidade Africana (OUA), hoje União Africana (UA), de carácter regional; no âmbito das
relações militares, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla
inglesa) e o, entretanto já extinto, Pacto de Varsóvia; em sede de cooperação
económica, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, de alcance
universal, e a Comunidade Económica Europeia (CEE), de cariz regional; no campo das
relações culturais, a Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura
(UNESCO); na esfera da medicina e da saúde pública, a Organização Mundial de Saúde
(OMS); etc..

2 – Noção

Tanto quanto se pode dar uma definição de organização internacional, que, por
demasiado doutrinal, sempre se revelará redutora da realidade multiforme, afigura-se-
nos teoricamente satisfatória a noção de G. FITZMAURICE, retomada mais tarde por
outros autores, e já avançada no Capítulo I: consistem as organizações internacionais
em associações voluntárias de Estados, criadas por tratado, dotadas de uma estrutura
orgânica permanente e possuidoras de personalidade jurídica internacional própria
(distinta da dos Estados membros).
Bastante próximo deste é o conceito proposto por R. BINDSCHEDLER, para
quem uma organização internacional constitui uma associação de Estados instituída
294

por tratado, que prossegue objectivos comuns aos seus membros e que possui órgãos
próprios para a satisfação das funções (atribuições) específicas da organização.
Atentemos nos elementos que ressaltam das duas noções referidas.
Por um lado, o fundamento convencional: enquanto sujeitos derivados de
direito internacional, as organizações internacionais não poderiam ser criadas senão
por iniciativa de uma vontade exterior. Vontade esta que é exprimida, num tratado
multilateral, pelos sujeitos (Estados) preexistentes da comunidade internacional.
Apresenta esse tratado uma natureza constitucional, visto que – sendo hierarquizada a
ordem jurídica interna de qualquer organização internacional – se converte em padrão
de referência para aferir da validade dos actos emanados dos respectivos órgãos
(direito secundário). Dele constam, habitualmente, a enunciação dos fins da
organização, os princípios norteadores da sua actividade, as competências dos seus
órgãos e correspondentes procedimentos deliberativos, etc., razão por que possui,
igualmente, primazia normativa sobre outros tratados ou acordos concluídos pelos
Estados membros ou pela própria organização (cfr., v.g. o artigo 103.º da CNU), tudo
se reflectindo em apertadas regras relativas, quer à formulação de reservas, quer aos
procedimentos de revisão.
Em segundo lugar, a existência de órgãos próprios: tratando-se de pessoas
colectivas, as organizações internacionais dispõem de órgãos através de cujos titulares
exprimem uma (a sua) vontade (colectiva). Tais órgãos são, pois, elementos da própria
organização, sendo que o respectivo comportamento é, directamente, um
comportamento desta. Nisto consiste a imputação.
Em terceiro lugar, o carácter de permanência dessa estrutura orgânica, que,
designadamente, permite distinguir as organizações internacionais, conquanto não
apenas em virtude de tal factor, das relações acidentais entre Estados – fundadas
também em tratados, embora se não destinem a dar vida a uma nova entidade – e das
conferências internacionais, cuja existência é efémera, mau grado algumas tenderem a
eternizar-se… Acresce que a característica em apreço (a permanência dos órgãos)
implica que entre a organização internacional – sujeito sem base territorial – e um ou
mais Estados membros sejam concluídos os chamados accords de siège (acordos de
instalação), para que no respectivo território possa aquela dispor das infraestruturas e
condições materiais exigidas para o seu funcionamento.
295

Por último, o atributo da personalidade jurídica internacional distinta da dos


seus membros. Significa este elemento que as organizações internacionais são centros
autónomos de imputação de direitos e obrigações, com o que se mostram capazes de
exprimir uma vontade juridicamente não confundível com a dos Estados membros,
individualmente considerados. As principais manifestações desse atributo serão
analisadas mais à frente.

3 – Classificações

Proceder a uma classificação exaustiva das organizações internacionais não é,


por certo, tarefa fácil. A enorme diversidade das organizações hoje existentes,
acompanhada dos muitos critérios a que é possível recorrer em ordem a alcançar tal
objectivo, retiram, mesmo aos mais optimistas, quaisquer veleidades de uma
sistematização completa.
Uma adequada taxinomia, parece, não obstante, resultar da adopção dos três
critérios principais já referidos no ponto 1, ou seja, o do âmbito territorial de acção, o
da estrutura jurídica (ou dos poderes) e o do objecto (ou das atribuições).

Quanto ao âmbito territorial de acção

A prática internacional revela, sob este ponto de vista, a coexistência de


organizações universais (ou de vocação universal) e de organizações regionais.
As primeiras, como a designação deixa adivinhar, estão abertas a todos os
Estados da comunidade internacional, circunstância que lhes confere uma considerável
heterogeneidade. A adesão de um novo Estado membro concretizar-se-á mediante a
mera observância dos requisitos constantes das suas cartas constitutivas, sendo que,
por norma, não são colocados entraves de maior a qualquer alargamento. Como
exemplos podem apontar-se os da Organização das Nações Unidas (ONU), do Banco
Mundial – que, mais rigorosamente, é composto pelo Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) e pela Associação Internacional de
Desenvolvimento (AID) –, do Fundo Monetário Internacional (FMI), da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), da União Postal Universal (UPU), etc..
Já as organizações regionais, por contraposição, se encontram abertas a um
reduzido número de Estados, que nelas se agrupam por critérios estritamente
296

geográficos, geo-políticos, económicos, militares, étnico-religiosos ou outros. O seu


âmbito de actuação e participação mais restrito redunda numa muito maior
homogeneidade. É o caso, entre muitas outras, da União Europeia (EU), do Mercado
Comum do Sul (MERCOSUL), da Organização dos Estados Americanos (OEA), da União
Africana (UA), da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO ou OTAN, em
português), da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), da Liga dos Estados Árabes
(LEA), etc..

Quanto à estrutura jurídica (ou aos poderes)

Á luz deste outro factor de distinção, podem distinguir-se as organizações


internacionais de cooperação das de integração, também designadas, respectiva e
impropriamente, intergovernamentais e supranacionais.

Apesar de há muito adoptados pela doutrina, não são, com efeito, os mais adequados os
vocábulos intergovernamental e supranacional, que derivam dos termos governo e nação, quando o que
aqui está em causa é o Estado (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Seria, por isso, preferível e
mais rigoroso falar-se em organizações interestaduais (ou de cooperação), distintas, do ponto de vista
da estrutura jurídica e dos poderes atribuídos, das supraestaduais (ou de integração).

As organizações de cooperação – o tipo clássico e mais frequente de


organizações internacionais – geram relações horizontais de mera coordenação de
soberanias estaduais (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS). Visam, tão-
somente, no âmbito da sua esfera de acção, promover e criar mecanismos
institucionais de cooperação entre os Estados membros. São, por isso, muito ténues,
senão mesmo inexistentes, as limitações à soberania destes.
Daqui decorrem algumas importantes consequências no que diz respeito à
composição dos órgãos destas organizações, aos correspondentes procedimentos
deliberativos e os efeitos dos actos por elas adoptados na ordem jurídica dos Estados
membros (ibidem). Vejamos.
Nos órgãos deliberativos têm assento representantes dos Estados membros,
297

em regra delegados dos repectivos governos, subordinados às directrizes e instruções


destes. A habitual regra da unanimidade em matéria de votação – conquanto sofra,
por vezes, desvios, mediante a tomada de certas deliberações por maioria qualificada
– significa, na prática, atribuir um direito de veto a cada Estado membro, com o
consequente bloqueio das decisões e, portanto, uma assumida sobreposição dos
interesses nacionais aos interesses gerais da organização.
Por outro lado, as resoluções emanadas pelas organizações interestaduais
dirigem-se aos Estados membros, jamais tendo por destinatários directos os
indivíduos, seus nacionais. Entre qualquer deliberação e os sujeitos internos (pessoas
físicas) interpõem-se sempre os órgãos estaduais (ausência de aplicabilidade directa).
Importa ainda salientar que, salvo raras excepções – de entre as quais se conta
a das resoluções imperativas do Conselho de Segurança da ONU –, não dispõem estas
organizações de mera cooperação de poderes suficientes para impor decisões
(vinculativas) aos seus membros (AZEVEDO SOARES), lançando mão, por isso, de
simples recomendações.
Os exemplos de organizações interestaduais, dada a sua profusão na
comunidade internacional, são pouco menos dos que infindáveis. Bastemo-nos,
portanto, com a indicação de algumas das mais conhecidas, como sejam, v.g., a ONU e
as suas várias agências especializadas, a OEA, a UA, a NATO, a OCDE, a Associação
Europeia de Comércio Livre (EFTA, na sigla inglesa), etc..
Por sua vez, as organizações de integração envolvem, para os Estados
membros, uma limitação da sua soberania, o que, em concreto, se traduz numa
abdicação/“transmissão” de determinados poderes, tradicionalmente ínsitos naquele
atributo, em favor da organização. Como resultado disso, prevalecem entre esta e os
seus membros vínculos de subordinação ou, se preferirmos, relações verticais de
integração; isto, naturalmente, sem embargo de continuarem a existir domínios em
que subsistem as relações de simples coordenação.
Atentemos nos reflexos disto nos planos atrás considerados.
Em primeiro lugar, mesmo forçando um pouco a nota, pode afirmar-se que a
estrutura interna das organizações de integração tende, de certo modo, a replicar a
repartição clássica de poderes que conhecemos do sistema estadual. Nelas, com
efeito, se descortina uma espécie de poder legislativo, dotado de competência para
298

adoptar normas gerais e abstractas, obrigatórias para os Estados membros (sujeitos de


direito interno incluídos), de um poder executivo cujo exercício fica, por vezes, a cargo
de dois órgãos em regime de complementaridade, e de um poder judicial com
competência obrigatória ou compulsória.
Em segundo lugar, é suposto os titulares dos órgãos deliberativos desta classe
de organizações internacionais exercerem as suas funções, dando mostras de
independência em relação aos Estados. Para tanto, actuam em nome próprio, devendo
ser encarados como funcionários internacionais e não como representantes dos
governos dos Estados membros. Tratando-se, aquando da tomada de decisões, de
exprimir uma vontade realmente internacional e integrada (supraestadual), e não
propriamente de uma vontade dirigida à salvaguarda dos interesses particulares de
cada Estado, compreende-se que as votações se rejam, quase sempre, pela regra da
maioria.
Constitui ainda importante traço distintivo das organizações de integração o
facto de se encontrarem habilitadas a aprovar actos unilaterais que são obrigatórios
(vinculativos) para os Estados membros («exequíveis de pleno direito no seu
território») e, em simultâneo, directa e imediatamente aplicáveis aos indivíduos ou
grupos de indivíduos. Razão bastante para que não apenas aqueles mas também estes
tenham acesso directo aos tribunais que integram a estrutura orgânica deste tipo de
organizações internacionais.
A União Europeia, o Mercosul, a Comunidade Andina e o Benelux, são alguns
dos exemplos de organizações de integração ou supraestaduais ou, pelo menos, de
organizações que se aproximam (ou aproximaram), em maior ou menor medida, do
arquétipo acima descrito.

Quanto ao objecto (ou às atribuições)

Trata-se agora de uma classificação que atende aos fins prosseguidos por cada
organização internacional (reveladores, portanto, do seu objecto social). Fins ou
objectivos que se encontram consignados nas cartas constitutivas.

Relativamente a qualquer pessoa colectiva, designam-se por atribuições os fins (ou interesses)
que ela está incumbida de prosseguir. E, à luz do princípio da especialidade, somente poderá exercer os
poderes que lhe forem cometidos para alcançar os respectivos fins institucionais. Para tal, dispõe de
299

órgãos (decisórios, de fiscalização, consultivos, etc.), que são centros institucionalizados de poderes
funcionais (ou competências). Um hipotético desvio dos fins assinalados à organização, constituirá uma
actuação ultra vires, por parte dos seus órgãos.

Ora, sob o ponto de vista considerado, parece apropriado agrupar as


organizações internacionais em duas espécies distintas: as de finalidades gerais e as de
finalidades especiais.
As primeiras, no dizer de P. REUTER, são aquelas cujo objecto incide sobre o
conjunto das relações internacionais pacíficas e sobre a solução de todos os conflitos
internacionais. A ONU representa na perfeição este tipo de organizações. Muito
embora, no contexto muito específico do pós-guerra, a manutenção da paz e da
segurança internacionais haja sido guindado a fim principal da Organização Mundial, a
verdade é que a sua concretização efectiva reclama a concomitante prossecução de
um sem número de outras finalidades, quais sejam, designadamente, as da
cooperação económica, social, cultural, científica, humanitária, etc.. Mas também, v.g.,
a OEA e a UA se enquadram na categoria das organizações internacionais com
finalidades de carácter geral. De facto, se aquela visa alcançar a segurança continental,
a solução pacífica de controvérsias e diferendos e a cooperação económico-social, esta
tem como objectivos precípuos a unidade, a solidariedade, a defesa da independência
e da soberania e a cooperação entre os Estados membros nos mais variados domínios.
Dirigem-se, por seu turno, as organizações de finalidades especiais à
consecução de um determinado objectivo, sendo que são quase inumeráveis as
subespécies a considerar. Existem, por exemplo, entre muitas outras, organizações de
cooperação económica (casos do Banco Mundial, do FMI, da EFTA, da OCDE, etc.),
organizações de cooperação militar (como a NATO e o extinto Pacto de Varsóvia),
organizações de cooperação social e humanitária (como é o caso de diversas
instituições especializadas da ONU, tais como a Organização Internacional para a
Alimentação e Agricultura – FAO – a OIT, a OMS, etc.) e organizações com finalidades
culturais, científicas e técnicas (a UNESCO), a Organização internacional de Aviação
Civil – OIAC – a UPU, a Organização Marítima Internacional – OMI –, etc.).
300

4 – Personalidade jurídica

A personalidade jurídica das organizações internacionais é dupla,


manifestando-se, simultaneamente, porém de forma diversa, em dois planos distintos:
o interno e o internacional (PIERRE-MARRIE DUPUY).
Ora, se no que toca à personalidade jurídica interna daquelas, sempre os
Estados deram mostras de grande compreensão e abertura, jamais a contestando,
outro tanto não se diga relativamente à personalidade jurídica internacional, mesmo
quando essa atitude reticenciosa não encontrava já qualquer respaldo na
jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça. Mas, como aduzem QUOC
DINH/DAILLIER/PELLET, aceitar a personalidade jurídica internacional de outras
entidades, representa para os Estados soberanos o reconhecimento de que passam a
dispor de “concorrentes” nas relações internacionais, titulares de direitos e obrigações
idêncticos aos seus. Significa, por outras palavras, admitir, a contragosto, o fim do seu
antigo monopólio em matéria de subjectividade jurídica internacional.
Analisemos separadamente as duas dimensões referidas.

Personalidade jurídica interna

Como se sabe, as organizações internacionais são sujeitos sem base territorial.


Não dispondo de território próprio, apenas poderão exercer as suas actividades e levar
a cabo as suas tarefas no território dos Estados membros onde se encontrem sediadas
ou, ocasionalmente, no dos Estados onde prestem qualquer tipo de assistência
operacional. Daí que, à semelhança do que ocorre com qualquer outra pessoa moral,
se coloque também para elas o problema de saber em que medida poderão aí adquirir
bens, celebrar contratos de prestação de serviços, litigar na justiça, etc..
E, na verdade, é-lhes reconhecido um conjunto de aptidões e capacidades
jurídicas, que o direito dos Estados membros liga à titularidade da personalidade
jurídica, em ordem a que possa, legitimamente, cada organização internacional, no
exercício das suas actividades de administração corrente, estabelecer relações com as
pessoas físicas e morais instaladas em tais Estados.
A explícita atribuição de personalidade jurídica de direito interno às
organizações internacionais pode constar de diversos instrumentos normativos, mas é
301

nas respectivas cartas constitutivas que mais frequentemente figura o reconhecimento


desse predicado (PIERRE-MARIE DUPUY).

Veja-se, por exemplo, o caso do artigo 104.º da CNU, subsequentemente reproduzido nos
tratados constitutivos das instituições especializadas da «família das Nações Unidas» (caso, v.g., da
UNESCO), que dispõe: «A organização gozará, no território de cada um dos seus membros, da
capacidade jurídica necessária ao exercício das suas funções e à realização dos seus objectivos».
Também, entre muitos outros, nos tratados-base da OEA, da EU e da NATO é possível encontrar
disposições análogas.

A concreta definição do conteúdo e das modalidades de exercício das


capacidades jurídicas outorgadas às organizações internacionais na ordem interna fica
a cargo das convenções de instalação (accords de siège) – concluídas entre aquelas e o
Estado onde irão estabelecer a sua sede –, bem como das legislações nacionais dos
Estados membros.
De notar, contudo, que por efeito da atribuição de personalidade jurídica
interna às organizações internacionais, estas não são, pura e simplesmente,
equiparadas ou assimiladas aos nacionais dos Estados membros. Importa realmente
não olvidar que toda e qualquer organização internacional é titular de determinados
privilégios e imunidades (v.g., imunidade de jurisdição, inviolabilidade dos locais,
privilégios financeiros e fiscais, etc.), consagrados nos tratados constitutivos (cfr., por
exemplo, o artigo 105.º da CNU) ou nos acordos de instalação, os quais lhe conferem
um estatuto sui generis, derrogatório do direito comum (PIERRE-MARIE MARTIN).
É, sobretudo, no âmbito da celebração de contratos com pessoas privadas que
se manifesta o exercício da personalidade jurídica de direito interno. Pode, v.g., tratar-
se contratos de aquisição de materiais e equipamento (mobiliário, maquinaria,
material informático, etc.), de prestação de serviços (de manutenção, de limpeza, de
consultoria, etc.), de arrendamento de imóveis, de impressão gráfica, de recrutamento
de agentes, de investigação científica, etc.. Três problemas jurídicos então se colocam
com particular acuidade: o do órgão habilitado a representar a organização
internacional aquando da sua conclusão; o da determinação do direito aplicável a
esses actos de natureza contratual; e o da resolução dos diferendos eventualmente
emergentes da correspondente execução.
No que se refere ao primeiro, não haverá dificuldades de maior: será o
302

funcionário (ou o órgão colegial executivo) hierarquicamente mais elevado, de acordo


com a ordem jurídica interna da organização – por exemplo, o Secretário-Geral, no
caso da ONU, o Director Geral, no caso da OIT, a Comissão Europeia, no caso da EU,
etc. –, a assumir e a protagonizar a representação da organização.
Quanto à lei aplicável aos mencionados contratos, a questão é mais delicada.
Para alguns deles (v.g., os de fornecimento de bens ou de prestação de serviços),
porque atinentes à mera gestão privada da organização, em que esta, justamente,
actua como pessoa moral de direito privado, por certo não repugna que sejam
submetidos ao direito do Estado hospedeiro. Para outros (v.g., os de recrutamento de
pessoal, os de investigação científica, etc.), directamente ligados à organização
enquanto tal, já será porventura mais avisado evitar qualquer referência expressa a
uma lei determinada (estadual), devendo antes buscar-se no direito internacional e
nos princípios gerais de direito o respectivo regime jurídico regrador.
No que tange, por fim, à solução de (hipotéticas) controvérsias, devido à
imunidade de jurisdição de que gozam as organizações internacionais – o que, por
sistema, poderia conduzi-las a arguir a incompetência dos tribunais internos junto dos
quais fossem accionadas (demandadas) pelos seus co-contratantes privados –, a via
mais adequada para evitar qualquer denegação de justiça parece ser a da arbitragem
internacional (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET e PIERRE-MARIE DUPUY).

Personalidade jurídica internacional

Sentindo ameaçada a sua posição sobressaliente nas relações internacionais,


em resultado do aparecimento de entidades autónomas, por vezes beneficiárias
directas das obrigações jurídicas impostas aos Estados, manifestaram estes, de início,
como se disse, uma clara renitência em aceitar (reconhecer) a personalidade jurídica
internacional das organizações internacionais.
Reflexo disto, são raros ainda hoje os tratados constitutivos em que os Estados
aceitam fazer menção expressa a um tal atributo ou qualidade, reconhecendo sem
peias ou embaraços a plena capacidade jurídica das organizações para exercerem as
suas funções e, por conseguinte, para prosseguirem os fins a que se encontram
adstritas.
Antes mesmo da doutrina, foram a prática e a jurisprudência internacionais
303

que, de forma inequívoca, responderam afirmativamente ao problema de saber se as


organizações internacionais disporiam ou não de subjectividade jurídica no plano
internacional (DÍEZ DE VELASCO).
É certo que quando os Estados criam uma organização internacional lhe
atribuem poderes limitados, em consonância com os fins específicos que a esse novo
sujeito de direito internacional incumbirá prosseguir. Deverá, por isso, a noção de
personalidade jurídica ser encarada como um conceito relativo e não absoluto (M.
AKEHURST). Mais do que perguntar, em abstracto, se uma determinada organização
dispõe de personalidade jurídica internacional, será sobretudo avisado indagar que
direitos e poderes é, em concreto, capaz de exercitar.
O precedente judicial mais importante acerca da personalidade jurídica das
organizações internacionais é o já aludido Parecer consultivo do Tribunal Internacional
de Justiça, de 1949, no caso Reparation of Injuries.

Conforme se disse já, este parecer consultivo do TIJ teve como causa próxima o assassinato do
conde Folke Bernadotte, mediador das Nações Unidas na Palestina, em 1948. Considerando que as
autoridades israelitas haviam actuado de forma negligente, quer na prevenção do crime, quer na
punição dos seus autores, pretendiam as Nações Unidas pôr em marcha uma reclamação internacional
de indemnização. Registava-se, todavia, incerteza quanto à questão prévia de saber se a ONU, enquanto
organização, teria ou não capacidade jurídica, à luz do direito internacional, para desencadear uma tal
reclamação e, consequentemente, para obter o ressarcimento ou reparação dos danos causados a si
própria e à vítima.

Apreciando o caso, viria o Tribunal a concluir, sem grande discussão, pela


oponibilidade erga omnes da personalidade jurídica internacional da ONU,
reconhecendo, em resultado disso, a faculdade de a Organização Mundial apresentar a
dita (ou qualquer outra) reclamação por perdas e danos, de acordo com os princípios
do direito das gentes. Findara assim a controvérsia em torno do problema de saber se
poderiam os Estados criar entidades cuja personalidade jurídica fosse invocável
perante terceiros (personalidade jurídica objectiva); demais a mais relativamente a
uma organização, como a ONU, da qual faziam parte cinquenta Estados da
comunidade internacional (à época a maior parte dos seus membros) e dotada de tão
vastos poderes.
A pronúncia do TIJ no caso vertente revestiu-se ainda de um interesse adicional
304

em sede de direito das organizações internacionais: serviu para demonstrar que nem
todos os poderes de tais organizações têm de constar expressamente dos seus
tratados constitutivos. Elas gozarão, além disso, dos poderes implícitos que se revelem
necessários ao cumprimento da sua missão (rectius à prossecução das suas atribuições
– cfr., infra, o ponto seguinte). Releve-se que, v.g., dos artigos 104.º e 105.º da CNU
apenas se retiraria a personalidade jurídica da organização face ao direito interno dos
Estados membros; não perante terceiros (M. ALMEIDA RIBEIRO e M. AKEHURST).
Ora, dispondo de personalidade jurídica internacional, as organizações
internacionais são sujeitos de direito internacional. Cabe, pois, perguntar pelas
principais consequências ou manifestações dessa qualidade ou estatuto, maxime no
que respeita aos direitos de que são titulares.
Deverá começar por enfatizar-se o carácter funcional dessa personalidade
jurídica. Com efeito, não podem as organizações internacionais exercitar as
capacidades jurídicas que lhes são atribuídas senão dentro de certos limites: os que
resultam da necessidade de realização dos fins de interesse geral assinalados nas
cartas constitutivas, sem que desse âmbito, em circunstância alguma, lhes seja
permitido extravasar, sob pena de desvio de poder (PIERRE-MARIE DUPUY e C.
CHAUMONT).

Louvando-se neste princípio da especialidade, o Tribunal Internacional de Justiça recusou, em


1996, dar parecer consultivo sobre a questão, suscitada pela OMS, da (i)licitude da utilização de armas
nucleares por um Estado, considerando que aquela, enquanto organização vocacionada para a
cooperação internacional em matéria de protecção da saúde, saíra da esfera das suas atribuições
estatutárias.

Se, porém, uma organização actuar dentro dos parâmetros assinalados, que,
funcional e materialmente, sempre a condicionam, duas consequências haverá que
pôr em evidência.
Por um lado, os actos jurídicos por si adoptados, tendo embora por base um
acordo de vontades (unânime ou maioritário) dos Estados membros, são imputáveis à
organização enquanto ente corporativo autónomo e distinto destes. Por outro lado, e
como acima deixámos já subentendido, será mister reconhecer-lhe, enquanto sujeito
de direito das gentes, uma aptidão para o exercício de determinados direitos na ordem
internacional. Direitos que, tradicionalmente, se encaravam como decorrências inatas
305

e exclusivas da soberania estadual.


Atentemos nos mais significativos.
As organizações internacionais gozam de poderes normativos que se
consubstanciam na adopção de actos jurídicos unilaterais (cfr, supra, Cap. I), de
alcance geral ou individual (decisões, recomendações ou pareceres) – um direito
derivado (ou secundário) que deve estar em conformidade com o direito originário (ou
inicial), constante do tratado constitutivo. De entre esses actos, alguns há cujo campo
de aplicação se circunscreve à vida interna da própria organização (relativamente a
eles, esta é, pois, simultaneamente autora e destinatária), constituindo, portanto,
manifestação de um poder de autorregulação); outros, ultrapassando o quadro interno
da instituição, irradiam os seus efeitos para o exterior, condicionando juridicamente a
conduta de diferentes sujeitos de direito internacional, em particular dos Estados
membros da organização, razão por que, de modo diverso, traduzem a concomitante
existência de um autêntico poder regulamentar externo (J. DEHAUSSY).
Todas elas dispõem, outrossim, salvo indicação em contrário das cartas
constitutivas, do jus tractum, isto é, do direito de concluir tratados com Estados
membros, com Estados não membros ou com outras organizações internacionais.
Tanto o âmbito, como as modalidades de exercício dessa capacidade contratual variam
sobremaneira em função do tipo de organização em causa e dos fins que lhe incumba
prosseguir.

Saliente-se que o treaty making power de uma organização internacional não se refere, como é
obvio, aos tratados elaborados ou concluídos sob a sua égide, mas em que apenas são partes os Estados
membros. Diz respeito, isso sim, àqueles em que a própria organização seja parte celebrante.

Também o jus legationis é um direito próprio destes sujeitos de direito


internacional, sendo que, tal como em relação aos Estados, se desdobra em direito de
legação activo e direito de legação passivo. Significa, no primeiro caso, a possibilidade
de a organização internacional enviar missões diplomáticas para junto de Estados
membros, de certos Estados terceiros ou de outras organizações (procedimento que
constitui, de resto, prática habitual, v.g., das Nações Unidas e da União Europeia); e no
segundo, a faculdade (inversa) de receber representações diplomáticas permanentes
dos Estados membros.
306

Geralmente apontado como corolário da personalidade jurídica das


organizações internacionais é, em quarto lugar, o supramencionado direito de, através
de reclamação internacional, obter o ressarcimento dos danos causados por Estados
membros ou não membros ao seu património ou aos seus funcionários e agentes. Tal
reclamação pode, por exemplo, efectivar-se através da mera opção pela via negocial
ou consistir antes num protesto, num pedido de inquérito, no desencadeamento de
um processo judicial ou arbitral, etc., mas sempre, evidentemente, em consonância
com as disposições estatutárias da instituição em causa.

Poderá ver-se neste direito de apresentar reclamações internacionais a manifestação do


exercício de uma competência pessoal das organizações internacionais relativamente aos seus agentes,
os quais são, por isso, beneficiários de uma protecção funcional quando actuam, enquanto funcionários
internacionais, no território de um Estado terceiro, Numa sua decisão de Setembro de 1964, o Tribunal
Administrativo da OIT considerou fundar-se num «princípio geral do direito da função pública
internacional» essa protecção exercida por uma organização internacional em favor dos seus
funcionários e agentes.
A outro título (o de uma competência “pessoal” em sentido amplo, que incide, não sobre
pessoas, mas, em rigor, sobre coisas), podem ainda as organizações internacionais exercer controlo
sobre navios exibindo o seu pavilhão ou sobre aeronaves e engenhos espaciais matriculados por elas
(PIERRE-MARIE DUPUY).

5 – Atribuições e competências

Princípios da especialidade e da subsidiariedade

O já por diversas vezes referido princípio da especialidade funda-se no


entendimento (importado da teoria geral do direito administrativo interno) segundo o
qual as organizações internacionais constituem meios ou instrumentos de prossecução
comum de objectivos de interesse geral (QUOC DINH/DAILLIER/PELLET); e significa,
concretamente, que estas apenas gozam das competências atinentes a esses
objectivos ou fins próprios, os quais, tecnicamente, se designam atribuições. Dito de
outro modo, dispõem somente dos poderes funcionais expressamente conferidos pelo
acto institutivo (enumerated powers). Isto – note-se – por contraste com o Estado,
que, enquanto entidade soberana, é titular imediato de todos os direitos e obrigações
reconhecidos pelo direito internacional.
Ligado a esta mesma ideia se encontra o princípio da subsidiariedade, que foi
307

introduzido no domínio específico do, então, direito comunitário pelo Acto Único
Europeu, de 1986, em matéria de protecção do ambiente, havendo sido mais tarde
generalizado pelo artigo 3.º - B (depois artigo 5.º), disposição que viria a ser
incorporada no Tratado da Comunidade Europeia pelo Tratado de Maastricht, de 1992.
Entretanto, o Tratado de Lisboa, assinado em 2007 e entrado em vigor em 1 de
Dezembro de 2009 – que integra o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado sobre
o Funcionamento da União Europeia (TFUE) –, consagrou o princípio da
subsidiariedade no artigo 5.º, nº 3, do TUE. Destina-se ele a regular o exercício das
competências não exclusivas da União, vedando a intervenção desta sempre que
determinada questão possa ser tratada, de forma satisfatória, pelos Estados membros,
seja a nível, central, regional ou local. A sua importância manifesta-se sobretudo no
âmbito dos processos legislativos, havendo o Tratado de Lisboa reforçado os poderes
dos parlamentos nacionais (mecanismo de alerta precoce) e do próprio Tribunal de
Justiça da União (controlo a posteriori) no que toca ao controlo da respectiva
observância.

Teoria das competências implícitas

É, como vimos, nos tratados constitutivos que se procede à concreta


delimitação das competências dos órgãos das organizações internacionais. Não raro,
todavia – o que decorre da natureza das coisas –, revela-se limitada a capacidade de
previsão dos autores desses actos instituidores, confrontando-se, amiúde, as
diferentes organizações com a falta de poderes (competências) necessários ao
desempenho das tarefas que lhes estão cometidas
Em virtude disso, e fruto da acção conjugada da doutrina e da jurisprudência,
foi sendo construída a teoria das competências implícitas (aparentada com a implied
powers theory do direito constitucional norte-americano), de acordo com a qual, para
além dos poderes expressamente atribuídos, deverão ainda reconhecer-se às
organizações internacionais os que sejam instrumentais desses, isto é, aqueles que,
sem haverem sido conferidos de modo expresso, se apresentem, no entanto, como
indispensáveis ou imprescindíveis à cabal prossecução dos objectivos de cada
organização (por conseguinte, poderes implícitos).
Importará, contudo, fazer uma aplicação cautelosa, prudente e parcimoniosa
308

da teoria em questão – mera directiva de interpretação das cartas constitutivas –, pois


do que se trata não é, em circunstância alguma, de alargar as atribuições ou fins da
organização, mas, tão-só, de estender ou ampliar as competências dos seus órgãos
com o exclusivo propósito de optimizar a respectiva actuação à luz das funções que
lhes caiba exercer.

Em momentos distintos, HACKWORTH e G. FITZMAURICE, juízes do Tribunal Internacional de


Justiça, advertiram para os riscos que podem advir de uma utilização abusiva da teoria das
competências implícitas (designadamente o de poder tal utilização traduzir-se numa ilegítima revisão
dos tratados constitutivos das organizações internacionais), apontando-lhe o objectivo único de tornar
eficazes e operativos os poderes explícitos (expressos) plasmados nas cartas constitutivas.
Nas organizações interestaduais, em que as limitações à soberania dos Estados membros não
se presumem, mais se torna evidente a necessidade de observar alguma cautela na interpretação e
aplicação concreta da teoria das competências implícitas. Não tanto assim, porém, nas organizações
supranacionais, em cujos tratados constitutivos consta, por vezes, uma autorização expressa para a
criação de poderes novos ou, inclusive, de órgãos subsidiários que os órgãos estatutários entendam
como necessários ao desempenho das suas funções.

Refira-se que foi justamente fazendo apelo à teoria das competências implícitas
que o Tribunal Internacional de Justiça, no supracitado Parecer Consultivo lavrado no
caso dos prejuízos sofridos ao serviço das Nações Unidas, de 1949, reconheceu a
competência da ONU para proteger os seus funcionários, sustentando que «pelo
direito internacional, deve entender-se que a Organização tem os poderes que,
embora não expressamente estipulados na Carta, lhe são conferidos por implicação
necessária, na medida em que são essenciais para o cumprimento dos seus deveres». E
o mesmo terá sucedido, por exemplo, aquando da criação, pelo Conselho de
Segurança, no início dos anos noventa do séc. XX, dos Tribunais Penais Internacionais
para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, criação essa que também apenas à luz da
sobredita teoria poderá entender-se.

Sejam expressas ou implícitas, certo é que a autonomia financeira de qualquer organização


internacional constitui instrumento indispensável de protecção da suas competências e, portanto, em
última análise, garantia da efectividade da sua personalidade jurídica. Daí que os poderes financeiros das
organizações internacionais, traduzidos na aprovação do seu orçamento e na determinação da quota-
parte que deverá ser suportada por cada Estado membro, assumam, de facto, enorme relevo.
Não possuindo receitas próprias – ou delas dispondo em grau muito diminuto –, as
309

organizações internacionais necessitam efectivamente das contribuições financeiras dos Estados


membros. Podem essas contribuições ser voluntárias (caso muito raro…) ou obrigatórias, ao abrigo do
tratado constitutivo. O não cumprimento tempestivo, por parte daqueles, das suas obrigações é
porventura um dos mais graves problemas com que actualmente se confrontam as organizações
internacionais. A tal não é alheia a circunstância de a ascensão à independência de um grande número
de povos não autónomos, na sequência da descolonização, ter dado origem ao aparecimento de um
grande número de Estados (ainda) subdesenvolvidos, o que ocasionou uma significativa diversificação
(e/ou engrossamento) das tarefas de muitas organizações (v.g., ao nível da assistência técnica e
operacional, financeira, social, humanitária, etc.), com o consequente e também considerável
incremento das suas despesas.

II – A Organização das Nações Unidas

Pela sua importância jurídica e política nas relações internacionais, impõe-se,


nas linhas subsequentes, um tratamento na especialidade da Organização das Nações
Unidas.

1 – Contexto em que foi criada

A criação da Organização das Nações Unidas não pode desligar-se do fracasso


por que se saldou, no pós-Primeira Guerra Mundial, a actuação da sua antecessora: a
Sociedade das Nações. Constituía esta, igualmente, uma organização política de
vocação universal, cujo Pacto instituidor ocupava os primeiros artigos do Tratado de
Paz de Versalhes. Para além de garantir a paz e a segurança internacionais,
promovendo a solução pacífica de conflitos, visava ainda assegurar a cooperação
económica e social entre os seus membros, bem como superintender na administração
de territórios colonizados.
A regra da unanimidade nas votações da Assembleia e do Conselho (artigo 5º
do PSN) acentuou a vertente intergovernamental desta organização internacional,
favorecendo a prossecução dos interesses nacionais (egoísticos…) dos Estados
membros. Haverá, por outro lado, de convir-se que a não ratificação do PSN por parte
do Senado dos EUA, frustrando as intenções do Presidente Wilson, traçou, logo ao
sopro de arranque, um destino sombrio a uma organização que, como se não bastasse,
teve ainda de confrontar-se com o ressentimento de potências como a Itália e a
Alemanha, no seio das quais os nacionalismos exacerbados encontraram terreno fértil
para se expandir.
310

Na falta de condições para reabilitar ou reconstituir a Sociedade das Nações, as


bases da futura organização institucional da comunidade internacional viriam a ser
lançadas em 1944, na Conferência de Bretton Woods, através da criação de
organizações universais de cooperação económica (o FMI e o BIRD), quando se tornara
já claro que os Aliados sairiam vencedores da Segunda Guerra Mundial. Nesse mesmo
ano, a Conferência de Dumbarton Oaks serviu para ser elaborado o primeiro projecto
da futura Carta das Nações Unidas, cujo nascimento era já, então, irreversível.
Em 1945, consumada a derrota do Eixo, as grandes potências emergentes do
conflito – Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido –, reunidas em Ialta,
negociaram a repartição do poder e das esferas de influência na comunidade
internacional do pós-guerra, acordando, desde logo, na configuração institucional da
futura Organização das Nações Unidas, assente num claro desserviço ao princípio da
igualdade dos Estados, muito em particular no que dizia respeito à consagração da
prerrogativa do direito de veto (de que, juntamente com a China e a França, seriam as
principais beneficiárias) no seio do Conselho de Segurança.
Finalmente, da conjugação das decisões da Conferência de Ialta com o projecto
previamente elaborado em Dumbarton Oaks, foi possível preparar um projecto
definitivo da Carta das Nações Unidas e submetê-lo, de seguida, à Conferência de S.
Francisco. No âmbito desta viria a concretizar-se, a 26 de Junho de 1946, a assinatura
do texto final da Carta, que entraria em vigor em 25 de Outubro do mesmo ano.
À criação da Organização das Nações Unidas presidiu o objectivo essencial de
assegurar a manutenção da paz e da segurança internacionais (cfr. o Preâmbulo e o
artigo 1.º da Carta); não, certamente, aquela “paz podre” do período entre as duas
Guerras Mundiais, que a comunidade internacional de todo não impetrara, a despeito
de para ela haver contribuído…; mas uma paz duradoura que impedisse a eclosão de
um terceiro conflito à escala planetária, com consequências ainda mais devastadoras
para a humanidade do que aquelas que haviam já tido os dois primeiros.

2 – Objectivos e princípios em que se baseia o seu funcionamento

Compulsando os dois primeiros artigos da CNU, revelam-se-nos os grandes


objectivos que as Nações Unidas visam alcançar, bem como os princípios fundamentais
que regem o seu funcionamento.
311

Objectivos ou atribuições da ONU

A manutenção da paz e da segurança internacionais é, como se disse, a


finalidade (atribuição) primordial da organização (artigo 1.º, nº 1). O particular
contexto histórico em que esta surgiu explica a preocupação obsidente dos autores da
CNU de, por todos os meios, procurarem preservar as gerações vindouras do flagelo da
guerra. Para tal, instituiu aquela um sistema de segurança colectiva que será objecto
de análise em sede própria.
O desenvolvimento das relações cordiais e amistosas entre os Estados,
pressuposto necessário, aliás, da concretização do objectivo precedente, aparece
indicado em segundo lugar (artigo 1.º, nº 2) como fim da ONU.
Constitui, igualmente, finalidade da Organização Mundial a cooperação
internacional em ordem à resolução de problemas económicos, sociais, culturais e
humanitários, no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana
(cfr. o número 3 do artigo 1.º).
Almejam as Nações Unidas, em quarto lugar, funcionar como ponto de
encontro dos Estados da comunidade internacional, propiciando a harmonização das
suas actividades, em ordem à consecução dos objectivos previamente enunciados
(artigo 1.º, nº 4).
São, como se comprova, muito extensas e ambiciosas as atribuições da ONU;
de tal forma que mal se vê como poderiam ser adequadamente prosseguidas sem a
circunstanciada previsão na Carta de princípios gerais norteadores da actividade da
organização.

Princípios em que se baseia o seu funcionamento

E, com efeito, constam do artigo 2,º da CNU vários princípios de alcance geral
que pautam a actuação concreta das Nações Unidas. Mais do que princípios
específicos da Carta, trata-se de autênticos princípios fundamentais de direito
internacional, que dão corpo ao já bordejado direito constitucional internacional. Este
facto tem conduzido diversos autores (v.g., MÜLLER e WILDHABER) a apelidarem o
tratado fundador da ONU de tratado-constituição ou mesmo de constituição da
comunidade internacional.
312

Mencionado logo no artigo 2.º, nº 1, da CNU, o princípio da igualdade soberana


dos Estados goza, em geral, de plena aplicação no funcionamento dos órgãos da ONU,
designadamente no seu órgão plenário – a Assembleia Geral. Todavia – numa tentativa
de não abrir caminho àquilo que se revelara uma das principais debilidades estruturais
da SDN –, surge este princípio director da Organização Mundial caldeado através de
uma concomitante «organização aristocrática da comunidade internacional»
(GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS), que se revela na composição (membros
permanentes) e processo de votação (direito de veto) do Conselho de Segurança. Dir-
se-á, portanto, que, quanto a um aspecto nevrálgico do funcionamento da ONU (a
manutenção da paz e da segurança), a própria Carta se encarrega de derrogar um
princípio solenemente proclamado, com carácter geral, nesse artigo 2,º, nº 1…
Seguidamente, aparece enunciado o princípio da boa-fé (artigo 2.º, nº 2), que, a
bem do adequado funcionamento da organização, aos Estados membros incumbirá
observar no cumprimento das obrigações emergentes das suas relações recíprocas.
Dele decorre (também neste contexto) a exigência de comportamentos lhanos,
honestos, transparentes e previsíveis. A rectidão ou lealdade de que cada Estado dê
mostras na sua actuação concreta permitirá, naturalmente, não defraudar as legítimas
expectativas dos seus pares, garantindo que, no ordenamento internacional, sejam
alcançados os patamares mínimos de segurança jurídica.
Alude o número subsequente do preceito em apreço ao princípio da solução
pacífica dos conflitos – condição sine qua non da manutenção da paz e da segurança
internacionais. Sempre que um conflito internacional ecloda ou se manifeste, implicará
o acatamento deste princípio que os Estados membros se socorram dos diversos
métodos (político-diplomáticos ou jurisdicionais) indicados no artigo 33.º da CNU
(obrigação de meios); disposição que encima o respectivo Capítulo VI, justamente
consagrado à solução pacífica de controvérsias.
O quarto princípio fundamental por que se rege a ONU surge plasmado no
artigo 2.º, nº 4. Traduz-se numa genérica proibição de recurso à força (ou simples
ameaça desse recurso) que impende sobre os membros das Nações Unidas nas suas
relações internacionais, nomeadamente contra a integridade territorial ou a
independência política de qualquer Estado. Este princípio articula-se com o anterior: a
imposição de um dever de solução pacífica de conflitos internacionais é consequência
313

necessária da consagração de um princípio geral de renúncia à guerra. Mais


logicamente, portanto, deveria ter sido a inversa a respectiva ordem de enunciação.

3 – A estrutura da ONU: membros e órgãos

Uma análise da estrutura da ONU passará, inevitavelmente, pela referência aos


seus membros e pelo exame dos seus órgãos.

No que toca aos membros da Organização Mundial, os artigos 3.º e 4.º da Carta
distinguem duas categorias: os membros originários (aqueles que tendo participado na
Conferência de S. Francisco ou assinado previamente a Declaração das Nações Unidas
de 1942, assinaram e ratificaram a CNU) e os membros admitidos (aqueles que, por
decisão da Assembleia Geral, sob recomendação do Conselho de Segurança, se
tornam, ulteriormente, membros da organização).
Para estes últimos, o artigo 4.º estabelece como condição de admissão o serem
“amantes da paz” e revelarem aptidão para cumprir as obrigações contidas na Carta, A
entrada para a organização de Estados territorialmente exíguos, como, v.g., o
Principado do Liechtenstein, o Principado do Mônaco, Andorra, São Marino, as Ilhas
Maldivas, as Ilhas Salomão, as Ilhas Marshall, etc., parece, no entanto, atestar o
escasso relevo atribuído àquele segundo requisito, porquanto ressalta óbvia a
incapacidade desses “micro-Estados” para cumprirem algumas das obrigações
consagradas na CNU (GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS).
Aquando da constituição da ONU, o número de Estados membros era de 51. Em
1955, fruto de um certo apaziguamento da tensão entre os Estados ocidentais e os do
bloco socialista, foi admitido um grupo de dezasseis Estados, entre os quais Portugal.
Com o movimento da descolonização, entrou para a ONU, durante a década de
sessenta do século passado, um grande número de Estados, na sua maioria afro-
asiáticos, com o que, em Janeiro de 1970, ascendia já a 126 o número de membros da
organização. No decurso dos anos oitenta, o crescimento prosseguiu a bom ritmo (em
1980 a ONU contava com 154 Estados membros), mas não foi senão no início da
década de noventa, mercê dos novos Estados saídos do desmembramento (dissolução)
da ex-União Soviética e da ex-Jugoslávia, que novo salto quantitativo seria dado (em
1993, eram 185 os membros da ONU).
314

Desde então, têm sido admitidos pequenos países, sobretudo asiáticos (antigas
colónias insulares britânicas), tais como, o Kiribati, Nauru e Tonga, em 1999, e Tuvalu,
em 2001. Timor-Leste, cuja independência foi alcançada a 20 de Maio de 2002 aderiu
nesse mesmo ano, tal como a Suíça – respectivamente, o 190.º e o 191.º membros da
organização. O caso da Suíça é interessante, uma vez que, de há muito, a sua
população vinha rejeitando o ingresso na ONU, por entender que tal poria em causa o
tradicional estatuto de neutralidade desse Estado. As últimas adesões foram as de
Montenegro, em 2006, e do Sudão do Sul, em 2011, o que perfaz um total de 193
Estados membros.
Como notam GONÇALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS, a admissão à ONU
ganhou acerta altura um indiscutível relevo prático, dado equivaler ao reconhecimento
do Estado aderente, com todas as consequências daí advindas em termos de projecção
da soberania no exterior. Tal explica que, por exemplo, a República de Taiwan não seja
membro das Nações Unidas, face à persistente recusa da ONU em aceitar a teoria das
duas Chinas.

Quanto aos órgãos da ONU, retira-se do artigo 7.º, nº 1, da Carta serem seis os
seus órgãos principais: a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho
Económico e Social, o Conselho de Tutela (que, entretanto, suspendeu as suas
actividades), o Tribunal Internacional de Justiça e o Secretariado. Mais se preceitua no
número 2 da mesma disposição ser possível a criação dos órgãos subsidiários que as
circunstâncias justifiquem.

Além dos órgãos da ONU propriamente ditos, importa salientar que o Sistema (ou Família) das
Nações Unidas engloba três tipos distintos de entidades. Desde logo, as instituições especializadas, que,
respondendo às necessidades de cooperação internacional do pós-guerra, foram sendo criadas, nas
mais diversas áreas, sob a égide da organização e com esta articuladas mediante tratados específicos,
nos termos dos artigos 57.º e 63.º da Carta (casos, v.g., da FAO, do BIRD, do FMI, etc.). Em segundo
lugar, organizações com estreitas ligações institucionais à ONU, que, todavia, não são instituições
especializadas (v.g., o GATT e a AIEA – Agência Internacional para a Energia Atómica). Por fim, os
organismos especializados, que consistem em complexos de órgãos subsidiários, visando prosseguir um
objectivo específico (v.g., a UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância –; o ACNUR – Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados –; o CNUCED – Comissão das Nações Unidas para a
Cooperação e o Desenvolvimento –; etc.). Na base do funcionamento equilibrado do Sistema das
315

Nações Unidas estão os princípios da autonomia, da complementaridade e da coordenação (E. J.


OSMAÑLZYK e M. ALMEIDA RIBEIRO).

3.1 – Competências dos órgãos principais

A Assembleia Geral é o órgão plenário da ONU, já que é composta por todos os


Estados membros (artigo 9.º da CNU). Não obstante, e à semelhança de outros órgãos
colegiais congéneres (v.g., as assembleias parlamentares nacionais), funciona, as mais
das vezes, em comissões, que são seis: a Comissão de Desarmamento e Segurança
Internacional; a Comissão Económica e Financeira; a Comissão Humanitária, Social e
Cultural; a Comissão Política Especial de Descolonização; a Comissão Administrativa e
de Orçamento; e a Comissão Jurídica. Em regra, os assuntos que fazem parte da
agenda são apreciados primeiro por estas e só em momento subsequente submetidos
à discussão e aprovação do plenário. O directo e imediato exame de certas questões
pelo plenário ocorre, excepcionalmente, quando se pretenda conferir-lhes especial
destaque ou relevo político-diplomático.
Resulta do artigo 10.º que a AG dispõe de uma competência genérica, podendo
«discutir quaisquer questões ou assuntos», desde que, naturalmente, se enquadrem
nos fins da organização e nas funções de qualquer dos seus órgãos. Isto com uma
ressalva, porém, decorrente da primazia atribuída ao Conselho de Segurança, em
matéria de paz e segurança internacionais, no equilíbrio institucional da ONU:
«enquanto o Conselho de Segurança estiver a exercer, em relação a qualquer
controvérsia ou situação, as funções que lhe são atribuídas na presente Carta, a
Assembleia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa controvérsia ou
situação, a menos que o Conselho de Segurança o solicite» (artigo 12.º, nº 1).
Aquela primazia do CS viria, contudo, a ser atenuada, aquando da crise da
Coreia – iniciada em 1948 –, com a adopção, pela AG, da Resolução 377, a 3 de
Dezembro de 1950, que ficaria conhecida como Resolução Acheson (do nome do
Secretário de Estado norte-americano que a propusera) ou Resolução da União para a
Paz. De acordo com ela, sempre que, em virtude do exercício do direito de veto por
parte de um dos membros permanentes, o Conselho de Segurança – numa situação de
ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão – não possa desempenhar as
funções que a Carta lhe cometeu em matéria de paz e segurança internacionais,
316

deverá a Assembleia Geral examinar imediatamente a questão e, em conformidade,


fazer aos Estados membros as recomendações que se lhe afigurem apropriadas acerca
das medidas colectivas a adoptar, incluindo, nos casos mais graves, o emprego da força
armada. Ainda que esta sub-rogação, coonestada pela Resolução 377, não
consubstancie propriamente uma transferência de competências do Conselho de
Segurança para a Assembleia Geral, a verdade é que se revela dificilmente compatível
com o artigo 11.º, nº 2 e 3 da CNU, cuja ratio é exactamente a oposta. Teve, no
entanto o mérito, de, conquanto limitadamente, permitir contornar a paralisia ou
inércia de um Conselho de Segurança demissório em algumas situações de crise
internacional, como, por exemplo, a crise da Coreia, de 1950, a crise israelo-egípcia do
Suez, de 1956, a crise jordano-libanesa, de 1958, etc..
No âmbito da referida competência genérica está a AG autorizada a emitir
simples recomendações – actos, como visto, desprovidos de carácter obrigatório, mas
que podem indiciar a existência de um costume internacional ou estar na génese da
sua formação. De todo o modo, ex vi do nº 2 do artigo 11.º, sempre que determinada
situação reclame uma actuação concreta, deverá a AG submeter o assunto em causa
ao Conselho de Segurança.
Dispõe, igualmente, a AG de um conjunto de competências específicas, que se
reportam à vida interna da organização, designadamente o exame de relatórios
fornecidos pelos demais órgãos, competências relativas ao regime internacional da
tutela (que hoje constituem letra morta), competências orçamentais e financeiras,
eleição dos membros não permanentes do Conselho de Segurança, eleição dos
membros do Conselho Económico e Social, etc. (artigos 15.º a 18.º da CNU).
Relativamente a estas, as deliberações da AG possuem força jurídica obrigatória
(autênticas decisões, portanto), salvo aquelas que, eventualmente, tenham a ver com
a manutenção da paz e da segurança internacionais.
No seio da AG, que, nos termos do artigo 20.º, se reúne em sessões anuais
ordinárias e nas sessões extraordinárias exigidas pelas circunstâncias, as deliberações
são, via de regra, alcançadas através de maioria simples dos membros presentes e
votantes (artigo 18.º, nº 3); somente as decisões sobre questões mais importantes
requerem maioria de dois terços dos membros presentes e votantes (artigo 18.º, nº 2).
Esta referência aos ”membros presentes e votantes” visa excluir as abstenções, pelo
317

que, para o apuramento das maiorias necessárias, só os votos positivos e negativos são
tomados em consideração.
Do nº 2 do artigo 18.º consta uma enumeração meramente exemplificativa das
aludidas questões importantes, sem prejuízo de poder a AG atribuir essa mesma
qualidade a outros assuntos que lhe caiba apreciar. A identificação de novas questões
importantes é, todavia, em si mesma, questão não importante, devendo, pois, resultar
da pronúncia de uma maioria simples (artigo 18.º, nº 3).
Refira-se ainda, por derradeiro, que, dada a sua representatividade, a AG,
embora de há muito dominada pelo bloco de países afro-asiático, se assume como
forum privilegiado para a realização de estudos vários, debates e conferências sobre
temas de interesse geral (JÓNATAS MACHADO). O único português a presidir à AG da
ONU foi Diogo Freitas do Amaral, entre 1995 e 1996.

O Conselho de Segurança é um órgão composto tão-somente por quinze


membros (até à alteração da Carta, em 1965, eram apenas onze): cinco membros
permanentes (a China, a França, o Reino Unido, a Rússia e os EUA) e dez não
permanentes. Estes últimos são eleitos pela AG – atendendo à respectiva contribuição
presumível para os objectivos da organização e de acordo com um critério geográfico
equitativo – por um período de dois anos, sem que, todavia, nenhum membro que
termine o seu mandato possa ser imediatamente reeleito para o biénio seguinte
(artigo 23.º, nº 1 e 2). Decerto que, nos primeiros lustros do séc. XXI, uma composição
que fora pensada para o contexto específico do pós-Segunda Guerra Mundial se revela
pouco auspiciosa, deixando de fora Estados de crescente peso geopolítico e
demográfico.
Ao CS foi atribuída uma especial preponderância no domínio da preservação da
paz e da segurança internacionais, o que de modo decisivo se reflecte, tanto na sua
composição, como no procedimento de tomada de decisões (deliberações) e,
evidentemente, nos poderes funcionais (competências) que lhe estão cometidos.
Nos termos do disposto no artigo 27.º, o CS delibera (sempre) por maioria
qualificada de nove votos. O procedimento deliberativo varia, no entanto, consoante
se apreste o Conselho para apreciar uma questão processual ou procedimental ou
antes uma questão material ou de fundo.
318

No primeiro caso (questões meramente processuais ou procedimentais), para


que uma resolução seja adoptada serão necessários quaisquer nove votos: de
membros não permanentes apenas (que são dez no total) ou de alguns desses
membros eleitos e de um ou vários membros permanentes. Já, porém, tratando-se de
deliberação acerca de uma questão material ou de fundo (naturalmente, mais
importante), continuando a ser exigidos nove votos (favoráveis), cinco de entre eles (ou
meras abstenções – cfr. infra) deverão, obrigatoriamente, ser dos cinco membros
permanentes. O que equivale, portanto, a dizer que a estes últimos se confere, nas
questões materiais, um poder ou direito de veto, o qual se traduz na possibilidade de,
através desse voto negativo, paralisar a tomada de uma projectada resolução
(recomendação ou decisão) do CS.
Tudo, no entanto, se torna mais complicado quando, excepcionalmente, se
levantem dúvidas acerca da natureza da questão a ser discutida. Nessa eventualidade,
impõe-se que, num momento prévio, se proceda à respectiva qualificação, incumbindo
ao próprio CS fazê-lo através de uma primeira votação. Sucede que o acto de qualificar
(como processual ou como material) uma questão de natureza ambígua ou duvidosa é,
em si mesmo, considerado questão material, pelo que, logo aí, qualquer membro
permanente poderá fazer uso do seu direito de veto.
Eis-nos assim em presença do chamado sistema do duplo veto: um qualquer
membro permanente pode, na primeira votação, opor-se a (vetar) que certa questão
seja qualificada como meramente processual ou procedimental (1º veto) e, quando,
subsequentemente, o CS inicia a discussão dessa questão (assim qualificada como
material) tem aquele ao seu dispor a referida prerrogativa de obstar a que,
relativamente a ela, qualquer, ou uma determinada, resolução seja adoptada (2º veto).
Claro que poderá, legitimamente, pôr-se em causa a consideração do próprio
acto de qualificar uma questão – e, por isso, do procedimento deliberativo a ser
seguido – como questão material, entendimento esse que permite aos membros
permanentes valerem-se desse especial e exclusivo privilégio que é o direito de veto.
Parece até claro tratar-se de um exemplo acabado de questão de cariz
procedimental… Certo é, todavia, que, não fora este o sistema congeminado, o direito
de veto ver-se-ia, acto-contínuo, esvaziado de sentido: com efeito, estando em
maioria, os membros não permanentes tenderiam a qualificar, sistematicamente,
319

como procedimentais as questões duvidosas… Entende-se, destarte, o alcance da


frase, «não há veto sem duplo veto», uma vez que só este mecanismo permite colocar
os membros permanentes a coberto de hipotéticos expedientes processuais dos
Estados não permanentes.

Numa tentativa de evitar os inconvenientes do regime descrito, a Assembleia Geral adoptou,


em Abril de 1949, uma resolução em que indicava trinta e cinco categorias de questões processuais ou
de procedimento. Atento, contudo, o respectivo valor de mera recomendação, o Conselho de Segurança
não se encontra vinculado ao seu conteúdo. De qualquer forma, parece claro integrarem esse tipo de
questões adjectivas aquelas que, v.g., se prendem com a aprovação do regimento interno do CS, com a
inscrição de um determinado assunto na ordem do dia, com os convites dirigidos a um Estado para
tomar parte nas sessões de debate de certa matéria, com a decisão de investigar um conflito, com a
criação de órgãos subsidiários, etc.. Ora, pode um dos membros permanentes considerar que uma
dessas questões, aparentemente, de cariz tão-apenas prodedimental, seja susceptível de conduzir à
tomada de decisões relevantes do ponto de vista substantivo, o que dará ensejo a um hipotético duplo
veto nos termos acima explanados.

Sobre o problema que nos ocupa, convirá ainda acrescentar que a prática do CS
deu lugar à formação de um costume contra legem (cfr., supra, Cap. II, III). Na verdade,
se de acordo com a letra do artigo 27.º, nº 3, a ausência de um voto afirmativo (isto é,
positivo), por parte de um dos membros permanentes, equivale a veto, o certo é que,
paulatinamente, se foi aceitando, no seio do CS, que a mera abstenção não tinha por
efeito a paralisação da decisão; só um voto negativo produzirá esse resultado. Nada
hoje parece, portanto, impedir que uma resolução do CS incidente numa questão
material seja adoptada com a abstenção dos cinco membros permanentes, desde que,
como é óbvio, tenha recolhido nove votos afirmativos dos membros não permanentes
(STAVROPOULOS). Duvidoso, porém, é saber se esta decorrência necessária do
mencionado costume contra legem, entretanto formado, não será contrária ao espírito
da Carta (ANTÓNIO PATRÍCIO).
Por força do artigo 24.º da CNU, cabe ao CS, como se disse já, a «principal
responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais». Ora, no
exercício dessa competência, poderá, nos termos dos artigos 33.º e ss., dirigir
recomendações aos Estados envolvidos num conflito, com vista à sua solução por
meios pacíficos, e, nos casos de ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão,
instar as partes em litígio, ex vi do Capítulo VII, a aceitarem as medidas provisórias que
320

se lhe afigurem aconselháveis (virtuosas) ou adoptar recomendações ou decisões,


susceptíveis, estas últimas, de envolver o desencadeamento de sanções não militares
ou até, nas situações mais graves, de sanções militares contra o Estado infractor.
Teremos ensejo mais à frente de voltar a este assunto.

O Conselho Económico e Social é composto por cinquenta e quatro membros.


Cada ano serão eleitos pela Assembleia Geral 18 membros para um mandato de três
anos, sendo que cada membro cessante pode ser reeleito para o período imediato
(cfr. artigo 61.º da CNU).
Como nota M. ALMEIDA RIBEIRO, dada a extensão e amplitude das
competências do ECOSOC, são estas melhor identificadas por exclusão do que por
inclusão. De facto, constituindo o desenvolvimento económico e social dos povos
pressuposto essencial da paz, da estabilidade e da cooperação internacionais (artigos
55.º e ss. da CNU), bem poderá afirmar-se que, exceptuando os assuntos estritamente
políticos e administrativos, se encontram sob a alçada deste órgão – como, de resto a
sua designação deixa entrever – todas as questões atinentes à cooperação económica,
social, cultural, sanitária e no âmbito dos direitos humanos.
Enquanto órgão de carácter consultivo, poderá, inter alia, o ECOSOC fazer ou
iniciar estudos e relatórios acerca de assuntos internacionais de carácter económico,
social, cultural, educacional, de saúde e conexos, bem como fazer recomendações, a
respeito de tais matérias, à Assembleia Geral, aos Estados membros e às organizações
especializadas (cfr. o nº 1 do artigo 62.º). Compete-lhe, outrossim, emitir
recomendações destinadas a assegurar o respeito pelos direitos humanos e liberdades
fundamentais, preparar projectos de convenções internacionais a submeter à AG e
convocar conferências internacionais que versem temas da sua competência (cfr.
números 2 e 3 do artigo 62.º). Contam-se ainda entre os seus poderes a coordenação
das actividades das organizações especializadas, aí se incluindo a obtenção de
relatórios regulares ou de informações por parte destas, a prestação de assistência e o
fornecimento de informações ao Conselho de Segurança, a prestação de serviços
solicitados pelos membros da ONU e pelas organizações especializadas, etc. (artigos
63.º e ss.).
Preceitua o artigo 67.º que cada membro do Conselho Económico e Social tem
321

direito a um voto (nº 1) e que as suas decisões são tomadas por maioria dos membros
presentes e votantes (nº 2).
Depreende-se, por seu turno, o artigo 68.º que o ECOSOC funciona, quer em
plenário, quer em comissões. De entre estas, haverá uma de assuntos económicos e
sociais e outra para protecção dos direitos humanos, podendo ser criadas outras cuja
existência se revele necessária ao adequado desempenho das funções deste órgão.
Além de reuniões breves ao longo do ano, realiza-se no mês de Junho uma sessão de
quatro semanas, em Genebra ou em Nova Iorque.
Desde o aumento do número dos seus membros (na versão original da Carta
eram apenas dezoito) – conquanto não somente em virtude desse factor – que o
ECOSOC tem revelado, por notória ineficiência e desorganização, crescentes
dificuldades de funcionamento.

O Conselho de Tutela, sucessor da Comissão de Mandatos da Sociedade das


Nações, foi criado para controlar o exercício da tutela internacional (expressão devida
ao Presidente norte-americano, Roosevelt) sobre territórios não autónomos (cfr. artigo
86.º e ss. da CNU).
Ao contrário do mandato, a tutela foi concebida como uma situação
temporária, destinada a favorecer o trânsito para a autodeterminação dos territórios
por ela abrangidos. Pressupunha, por força do artigo 79.º, a conclusão de um acordo
de tutela, do qual constavam as condições de administração do território em causa,
bem como, naturalmente, a indicação da autoridade encarregada dessa administração
(a potência mandatária).
Tratava-se, pois, de uma função de carácter internacional, confiada a uma
autoridade administrante, que, todavia, no território não autónomo não exercia
poderes de soberania. À ONU, através do Conselho de Tutela, cabia fiscalizar e
supervisionar – nomeadamente, examinando os relatórios enviados pelos Estados
administradores ou as petições das populações submetidas ao regime de tutela,
realizando visitas periódicas aos territórios, etc.) – o curso da administração.
Após a ascensão à independência, em 1994, do último território sob tutela – o
Arquipélago de Palaos, situado no Pacífico –, o Conselho de Tutela esgotou a sua
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missão, tendo suspendido as suas actividades em Novembro desse mesmo ano.


Espera-se, portanto, que, formalmente, desapareça numa próxima revisão da Carta.

O Tribunal Internacional de Justiça, sucessor do Tribunal Permanente de Justiça


Internacional, tem a sua sede no Palácio da Paz, na Haia, e é o principal órgão
judiciário das Nações Unidas, sendo formado por quinze juízes, eleitos pela Assembleia
Geral e pelo Conselho de Segurança de entre pessoas que satisfaçam os requisitos
enunciados no artigo 2.º do ETIJ. A sua composição poderá ainda integrar um ou dois
juízes ad hoc, que as partes estão autorizadas a designar sempre que o Tribunal não
inclua juízes da sua nacionalidade (artigo 31.º, nº 2 e 3, do ETIJ).
O TIJ exerce uma competência contenciosa, no âmbito da qual profere
sentenças ou acórdãos, e uma competência consultiva, concretizada na emissão de
pareceres consultivos (cfr., respectivamente, artigos 36.º e 65.º do ETIJ).

No que diz respeito à primeira, deve salientar-se que o Tribunal se encontra


apenas aberto aos Estados; em princípio tão-somente àqueles que sejam parte no ETIJ
(o que é, desde logo, o caso de todos os membros da ONU), embora, sob certas
condições determinadas pelo Conselho de Segurança, se permita que Estados não
parte (sobram apenas uns quantos…) tenham igualmente acesso a esta instância
judicial (a delimitação, ratione materiae, da competência do TIJ consta dos artigos 34.º
e ss. do seu Estatuto).
Dizer isto, todavia, não significa que não possam os particulares (pessoas
físicas) ver os seus direitos contendidos no TIJ. Bem ao contrário, muitos dos casos já
julgados pelo Tribunal (mormente, em matéria de responsabilidade internacional)
resultaram do exercício da protecção diplomática por parte de alguns Estados, que,
por essa via, buscam protecção e tutela jurisdicional para os direitos e interesses dos
seus nacionais.
A competência contenciosa do TIJ é, como regra, facultativa, ou seja, os
Estados (diferentemente dos particulares junto dos tribunais internos) só estão
submetidos à jurisdição do Tribunal, relativamente a determinado litígio, se nisso
convierem (artigo 36.º, nº 1, do ETIJ). Digamos, pois, que ao funcionamento da (desta)
justiça internacional preside um princípio do consentimento ou da consensualidade.
Ora, a expressão do consentimento dos Estados a submeterem os litígios entre
323

si ocorridos (ou susceptíveis de no futuro ocorrerem) à apreciação do TIJ pode assumir


diversas formas.
Perante um conflito já existente, há duas vias para a respectiva submissão ao
TIJ: o acordo especial e o forum prorogatum.
Consiste o primeiro num compromisso em que as partes envolvidas num
conflito de carácter internacional aceitam recorrer ao TIJ para que este, no exercício da
sua competência contenciosa, o possa apreciar e julgar.
Já o forum prorogatum – expressão com origem no Direito Romano e que,
literalmente, significa jurisdição prorrogada ou adiada – consiste numa extensão ou
alargamento da jurisdição do TIJ a um caso que, de outro modo, ficaria fora da sua
alçada. Assim, pode, por exemplo, suceder que certas atitudes do Estado demandado
sejam encaradas pelo Tribunal como significando uma aceitação tácita da sua
competência. Será o caso de, mesmo na ausência de qualquer acordo entre ambos,
um Estado instaurar contra outro, junto do TIJ, uma acção contenciosa e de, não
obstante, este se considerar competente para julgá-la, em virtude de o Estado
demandado espontaneamente se apresentar em juízo a discutir a causa, não
formulando qualquer objecção quanto à subsequente decisão de fundo que o Tribunal
irá proferir (como, v.g. se verificou no caso Haya de la Torre, que opôs a Colômbia ao
Peru, em 1951). Ora, por força do princípio da boa-fé, não pode o Estado que
tacitamente haja reconhecido a competência do TIJ, nos termos supra-expendidos, vir
depois, hipoteticamente, contestá-la, em flagrante contradição com o seu
comportamento anterior (com efeito, venire contra factum proprium non valet). Mas,
no forum prorogatum, o consentimento (ad hoc) do Estado demandado, embora
procrastinado ou adiado, pode ser também expresso: v.g., através de uma carta
enviada ao escrivão do Tribunal (procedimento adoptado, v.g., nos casos do Estreito de
Corfu, que opôs o Reino Unido à Albânia, em 1952, e Djibouti vs. França, em 2008).
Fundamental é que o consentimento (tácita ou expressamente) prestado seja
absolutamente inequívoco, pois que, constituindo o forum prorogatum um mecanismo
flexível de aceitação da competência do TIJ, não poderá (deverá) converter-se em
arma de arremesso político, visando “forçar” um Estado a reconhecer artificialmente a
jurisdição do Tribunal ou a admitir que não está interessado em solucionar
determinado conflito por meios pacíficos (V. POULIOT).
324

Se, por outro lado, não existir ainda qualquer conflito, outras possibilidades se
abrem. Desta feita, continuando a ser necessário, o consentimento dos Estados é, no
entanto, dado por antecipação (antes e independentemente da ocorrência de
qualquer diferendo ou litígio), convertendo-se, pois, em quase obrigatória ou
compulsória a competência do TIJ. Tal (quase) obrigatoriedade da jurisdição do
Tribunal poderá advir (resultar) de um consentimento convencional ou do encontro de
dois consentimentos unilaterais.
No primeiro caso (consentimento convencional), do que se trata é da conclusão
de convenções bilaterais ou multilaterais (casos, v.g., do Pacto de Bogotá, de 1948, da
Convenção Europeia, de 1957, para a solução pacífica de controvérsias, etc.) versando
o tema genérico da solução pacífica de conflitos, nas quais os Estados parte
reconhecem como obrigatória a jurisdição do TIJ, acordando submeter-lhe futuros
(eventuais) litígios que entre si venham a ocorrer; ou, diversamente, da inserção, num
qualquer tratado, de uma cláusula compromissória (de sujeição) (AFONSO QUEIRÓ),
estipulando esta que será o TIJ a resolver possíveis conflitos emergentes da
interpretação ou aplicação desse tratado (apenas esses) que entre as partes
hipoteticamente se suscitem.
No segundo caso (consentimento unilateral), está em jogo a atribuição de
poderes jurisdicionais ao TIJ mediante a subscrição da cláusula facultativa de jurisdição
obrigatória ou compulsória – o artigo 36.º, nº 2, do ETIJ. Atentemos no seu modo de
funcionamento. Os Estados parte no Estatuto, ou aqueles que a ele adiram, não ficam,
ipso facto, vinculados a todas as suas disposições. Existe uma particular cláusula
(justamente, esse artigo 36.º, nº 2) pela qual eles não ficam automática e
imediatamente obrigados. Para que o fiquem, faz-se necessário que cada um, de per
se, através de um acto jurídico unilateral (uma notificação a enviar ao Secretário Geral
da ONU), declare aceitar a jurisdição obrigatória do Tribunal para todos (ou alguns)
futuros litígios jurídicos. Como se vê, esta cláusula apenas se torna operativa quando
os Estados parte no Estatuto a subscrevem (a título individual). Daí designar-se
facultativa. Mas uma vez subscrita, a jurisdição do Tribunal passa a ser obrigatória,
explicando-se assim a sua designação aparentemente paradoxal. Por outro lado, como
a declaração através da qual um Estado reconhece como obrigatória a jurisdição do
TIJ, nos termos descritos, não pressupõe, antes independe, de qualquer acordo
325

especial com outro Estado, há-de ser por força do encontro de dois consentimentos
unilaterais que o Tribunal vai, em concreto, exercer a sua competência contenciosa.

Além de um número significativo de Estados continuar a ignorar a cláusula facultativa de


jurisdição obrigatória, muitos outros têm acompanhado a sua subscrição da formulação de reservas
(umas de carácter temporal, visando reduzir a duração do seu compromisso unilateral; outras de

natureza substantiva, com o intuito de excluir certas categorias de litígios do âmbito da declaração

aceitação da competência do TIJ) – facto que, em muito, tem contribuído para limitar o alcance prático
do artigo 36.º, nº 2, do ETIJ.
Recorde-se, a propósito, que foi pelo facto de a Indonésia não ter aceitado a jurisdição
obrigatória do Tribunal (até ao momento, cerca de 75 Estados o fizeram, o último dos quais o Irão, em
2023) que no caso Timor Gap Portugal se viu compelido a demandar apenas a Austrália. Em
consequência disso, o Tribunal viria a não apreciar o fundo da questão por haver entendido tratar-se de
um caso de litisconsórcio necessário (passivo).
Exemplo de aceitação quase irrestrita da competência contenciosa do TIJ é constituído pela
declaração do representante da Suécia à ONU, em 1957: «Em nome do Real Governo da Suécia, declaro
que esta aceita como compulsória ipso facto e sem acordo especial, em relação a qualquer outro Estado
que aceite a mesma obrigação, a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça nos termos do artigo
36.º, parágrafo 2, do Estatuto do referido Tribunal, pelo período de cinco anos a contar de Abril de 1957.
Esta obrigação será renovada por períodos com a mesma duração, salvo se for comunicada a intenção
de a revogar com pelo menos seis meses antes do termo de cada período. A suprarreferida obrigação é
aceite apenas com referência a situações ou factos subsequentes a 6 de Abril de 1947».
Já o Estado português, numa declaração proferida em 19 de Dezembro de 1955, renovada em
2005, aceitou a jurisdição do TIJ com algumas reservas temporais e substantivas, ainda que de alcance
limitado (cfr. Aviso nº 251/2005, de 27/05/2005 – DR – I Série – A, 27 de Maio de 2005).

Do exposto se infere que nas situações ora examinadas (aceitação da jurisdição


do TIJ antes da ocorrência de qualquer conflito) o Direito Internacional (rectius, a
justiça internacional) tende a aproximar-se do modelo do direito interno no que toca
ao controlo dos factos anti-jurídicos e à correlativa cominação de sanções.
Nos termos do artigo 40.º do ETIJ, as acções são instauradas no TIJ mediante
notificação do acordo especial (caso por esta via hajam as partes litigantes atribuído
poderes jurisdicionais ao Tribunal) ou através de uma petição escrita dirigida ao
escrivão (nas demais situações). Deverão ser indicados, nesse momento inicial, o
objecto da controvérsia e as partes (Estados) que pleiteiam. Estas são representadas
por agentes e podem, perante o Tribunal, ser assistidas por consultores ou advogados
326

(artigo 42.º).
O processo compreende duas fases: uma escrita e outra oral (ou dos debates
orais – artigos 43.º e ss.). Em homenagem aos princípios da igualdade das partes e do
contraditório, ambas se encontram minuciosamente reguladas no ETIJ.
Preceitua esse mesmo artigo 43.º, nº 2, que do processo escrito constará a
comunicação ao Tribunal e às partes de memórias, contramemórias e, eventualmente,
réplicas. Se julgado necessário ao cabal esclarecimento dos factos e, portanto, à
descoberta da verdade material, poderá, ainda, o TIJ decidir a realização de algumas
diligências instrutórias, designadamente apresentação de documentos, inquéritos,
vistorias ou visitas aos locais. No processo oral, por seu turno, procederá o Tribunal à
audição de testemunhas, peritos, agentes, consultores e advogados (artigo 43.º, nº 5).
As audiências são públicas (princípio da publicidade das audiências), a menos
que o Tribunal decida o contrário ou as partes requeiram um julgamento à porta
fechada (artigo 46.º).
Logo que os agentes, consultores e advogados tiverem concluído a
apresentação da sua causa, o presidente dará por encerrados os debates, seguindo-se
o momento em que o Tribunal se retira para deliberar (artigo 54.º). As decisões são
tomadas por maioria dos presentes, cabendo ao presidente, ou ao juiz que o substitua,
resolver, com o seu voto de qualidade, qualquer impasse, em caso de empate na
votação (artigo 55.º).
Consagra o artigo 56.º, nº 1, o dever de fundamentação da sentença: «a
sentença deverá declarar as razões em que se funda», conferindo-se aos juízes
vencidos o já referido direito de exporem os motivos da sua discordância, através da
opinião individual ou da opinião dissidente (cfr., supra, ponto VI do Cap. II).
A eficácia das decisões do TIJ circunscreve-se às partes (Estados) litigantes e ao
caso concreto sub judice (artigo 59.º) – regra que pretende excluir a obrigatoriedade
dos precedentes.
Nos termos do artigo 60.º, a sentença é definitiva e inapelável. O que bem se
compreende: havendo um só grau de jurisdição e sendo, portanto, o TIJ, para todos os
efeitos, um tribunal de última instância, não fará sentido, em princípio, recorrer das
decisões por si proferidas… Excepcionalmente, porém, admite-se que, a pedido de
qualquer das partes (demandante ou demandado), o tribunal interprete o acórdão
327

(pedido de aclaração da sentença, sempre que os respectivos sentido e alcance hajam


sido de molde a suscitar controvérsia (artigo 60.º, in fine). Contempla, por outro lado,
o artigo 61.º a possibilidade de revisão de uma sentença (reabertura do processo)
aquando da descoberta de um facto novo, de natureza decisiva (isto é, susceptível de
conduzir a uma alteração do sentido da decisão), facto esse que, no momento da
prolação da sentença, fosse desconhecido do Tribunal e também da parte que o
invoca, desde que, naturalmente, tal desconhecimento lhe não seja imputável a título
de negligência. Deverá, de qualquer sorte, o pedido de revisão ser feito no prazo de
seis meses a partir da descoberta desse facto novo e nunca depois de transcorridos dez
anos da data da sentença (nº 4 e 5 do artigo 61.º).
O curso normal do processo contencioso, acima descrito, pode ser
incidentalmente interrompido e alterado em virtude da suscitação ex officio, por
iniciativa das partes, ou até de terceiros, de determinadas questões que tenham a ver
com a competência do Tribunal, com a preservação dos direitos das partes na acção ou
com a salvaguarda dos direitos de Estados não intervenientes no pleito. Trata-se dos
chamados incidentes processuais, que podem assumir a forma de excepções
preliminares, de medidas provisórias (ou conservatórias) ou de intervenção.
Vejamos.

Excepções preliminares. Por força do estipulado no artigo 36.º, nº 6, do ETIJ,


qualquer controvérsia sobre a jurisdição do Tribunal relativamente a determinado caso
concreto será resolvida por decisão do próprio Tribunal, o que, portanto, significa que
este é juiz da sua própria competência. Ora, processualmente, as objecções do Estado
demandado à jurisdição (ou competência) do TIJ designam-se, justamente, excepções
preliminares. De referir, contudo, que em casos muito contados, poderá ser o próprio
Estado demandante a delas lançar mão, com o propósito de salvaguardar direitos de
Estados terceiros que pudessem ser afectados com o julgamento.
Uma excepção preliminar poderá ser julgada procedente ou improcedente. No
primeiro caso, o Tribunal declarar-se-á incompetente para julgar a causa, findando,
imediatamente, a instância. No segundo, ao invés, o TIJ considerar-se-á competente e
o processo seguirá o seu curso normal. Uma coisa é certa: à luz do princípio da
328

economia processual, deverá o Tribunal apreciar as excepções preliminares in limine


litis, ou seja, logo no início do processo, antes, por conseguinte, de se debruçar sobre a
questão de fundo. Como se compreende, não faria sentido relegar a apreciação das
excepções preliminares para uma fase mais avançada da instância, com o risco de o
Tribunal se declarar, então, incompetente para julgar a causa, ficando feridos de
inutilidade superveniente todos os actos já praticados ou diligências entretanto
efectuadas…
As excepções preliminares são susceptíveis de respaldar-se em argumentos de
diversa índole. Mais exactamente, a incompetência do Tribunal para apreciar o caso
sub judice pode ser alegada ratione personae, ratione materiae, ratione temporis, ou
por falta de interesse em agir.
No primeiro caso (excepção preliminar ratione personae), considera o Estado
demandado não haver locus standi por banda do demandante, isto é, direito de estar
em juízo, ou aduz não haver sido cumprido o princípio do consentimento
(consensualidade) em que se baseia o funcionamento do TIJ (cfr., supra).
No segundo (excepção preliminar ratione materiae), é alegada a inexistência de
um conflito actual e de carácter internacional.
Na terceira hipótese (excepção preliminar ratione temporis), invoca o Estado
demandado a expiração do prazo de validade de um compromisso unilateral ou
convencional, relativo à aceitação da jurisdição obrigatória do TIJ, ou a possível
apreciação de factos anteriores a tal aceitação.
Por fim, no quarto exemplo (falta de interesse em agir) o Estado demandado
considera não existir, da parte do demandante, interesse processual, quer dizer,
necessidade de usar o processo e fazer prosseguir a acção – Rechtsschutzbedürfnis –
ainda que, porventura, seja sua a titularidade da relação material litigada.

Medidas provisórias ou conservatórias. Trata-se agora de um expediente,


integrado nos poderes de instrução do TIJ, que apresenta evidentes analogias com as
providências cautelares (não especificadas) no âmbito do direito processual civil
interno. Como é sabido, visam estas impedir que, durante a pendência de qualquer
acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere, de tal maneira que a
respectiva sentença, ainda que favorável às pretensões do titular do direito, se veja
329

desprovida de eficácia (A. VARELA/M. BEZERRA/S. NORA). Pretendem, pois, dito de


outra forma, acautelar o efeito útil da acção, combatendo o periculum in mora (o
prejuízo inerente à demora do processo). Dos procedimentos cautelares ou
conservatórios pode socorrer-se o presuntivo titular do direito, devendo então o
tribunal proceder a uma summaria cognitio, a fim de avaliar da oportunidade de os
decretar. Visto carecerem se autonomia (dependem de uma acção já pendente ou em
vias de ser intentada), as providências cautelares são meros incidentes ou preliminares
das acções.
Pois bem, no processo internacional está, igualmente, previsto o recurso a este
tipo de medidas, desta feita designadas medidas provisórias ou conservatórias ou
medidas de protecção interina: «o Tribunal terá a faculdade de indicar, se julgar que as
circunstâncias o exigem, quaisquer medidas provisórias que devam ser tomadas para
preservar os direitos de cada parte» (artigo 41.º, nº 1, do ETIJ). Em causa poderão,
concretamente, estar a salvaguarda dos meios de prova, a necessidade de evitar um
agravamento ou um alastramento do diferendo, a protecção dos direitos «de cada
parte» ou a garantia do efeito útil da sentença (M. A. VALE PEREIRA).
Para decretar medidas provisórias (v.g., a autorização para a prática de certo
acto, a imposição de uma abstenção ao requerido, a obrigação de suspender
determinada actividade, o dever de preservação de meios de prova, etc.) deverá o TIJ
estar convencido da iminência de um prejuízo irreparável e do risco sério de
agravamento do conflito, sendo de natureza discricionária (a própria redacção do
artigo 41.º, nº 1, o atesta) a competência que, nesta matéria, exerce.

Intervenção. No artigo 62.º do ETIJ encontra-se previsto o pedido de


intervenção de um Estado numa causa, quando esse Estado entender que a decisão a
proferir pelo Tribunal é susceptível de comprometer (atectar) um interesse seu de
carácter jurídico. Em se tratando da interpretação de uma convenção na qual sejam
partes outros Estados, além dos litigantes, é o próprio escrivão quem notificará todos
os Estados interessados, ficando estes com o direito de intervir no processo, mas
devendo, caso tal intervenção se concretize, sujeitar-se à interpretação dada no
acórdão (artigo 63.º).
Muitos dos pedidos de intervenção estão fadados ao malogro, pois o Tribunal
330

pretende evitar que este expediente processual seja abusivamente utilizado para
estender, de forma indirecta, a sua competência, com o consequente desrespeito pelo
princípio do consentimento prévio dos Estados que aceitaram a jurisdição do Tribunal
para um particular conflito. De referir, todavia, que o Estado beneficiário da
autorização para intervir na lide não adquire, ipso facto, o estatuto de parte no
processo. Tal só ocorrerá mediante o consentimento dos litigantes.

Quanto à competência consultiva do TIJ, determina o artigo 96.º da CNU que


poderão a Assembleia Geral ou o conselho de Segurança solicitar parecer consultivo ao
TIJ sobre qualquer questão jurídica. Acresce que, mediante autorização daquela,
outros órgãos da ONU e organismos especializados têm ao dispor idêntica
possibilidade, conquanto, naturalmente, apenas no tocante a questões jurídicas que se
relacionem com a sua esfera de actividades (cfr. artigos 96,º, nº 2, da CNU e 65.º do
ETIJ). Dispõe este último preceito que as questões sobre as quais for solicitado o
parecer consultivo ao Tribunal lhe serão submetidas através de petição escrita, que
deverá conter uma exposição do assunto a apreciar e ser acompanhada de todos os
documentos necessários para uma sua melhor elucidação.

O Secretariado é o sexto órgão principal da ONU. Trata-se de um órgão de


carácter administrativo, cuja competência é predominantemente técnica. Dispõe o
artigo 97.º da CNU que é composto pelo Secretário-Geral e pelo demais pessoal
exigido pela organização.
O Secretário-Geral é nomeado pela Assembleia Geral mediante recomendação
do Conselho de Segurança – havendo sido o seu mandato fixado em cinco anos
renováveis – e é o principal funcionário da ONU. Cabe-lhe actuar, nessa qualidade, em
todas as reuniões da Assembleia Geral, do Conselho de Segurança e do Conselho
económico e Social, desempenhando, ainda, outras funções de que seja incumbido por
esses órgãos. Anualmente, elabora um relatório sobre os trabalhos da organização,
que submete à Assembleia Geral (artigo 98.º).
Não se esgota, porém, a sua missão no desempenho de tarefas meramente
administrativas e burocráticas. Antes exerce, amiúde, com base no artigo 99.º da
Carta, funções eminentemente políticas, que têm, aliás, vindo a assumir uma
importância cada vez maior.
331

É que, se, por um lado, ele é, perante os Estados e a comunidade internacional,


o rosto visível da ONU, por outro, a inércia patenteada pelo Conselho de Segurança em
muitas situações de crise, concorreu para uma acentuação da vertente político-
diplomática na resolução de conflitos internacionais e, portanto, para um
correspondente reforço do protagonismo do Secretário-Geral nesse domínio. Tornam-
se, assim, frequentes os casos em que estabelece contactos com as partes desavindas,
oferece os seus bons-ofícios, faz propostas ou elabora planos de paz, etc., numa
actividade diplomática que, notoriamente, vai além do previsto na Carta.
O norueguês Trygve Lie, eleito em 1946, foi o primeiro Secretário-Geral da
ONU. Seguiram-se o sueco Dag Hammarskjöld, em 1953, o birmanês U. Thant, em
1961, o austríaco Kurt Waldheim, em 1972, o peruano Perez de Cuellar, em 1981, o
egípcio Boutros Boutros-Ghali, em 1991, o ganês Kofi Annan, em 1996, o coreano Ban
Ki-moon, em 2007, e o português António Guterres, em 2017, que se mantém em
funções.

4 – Sistema de segurança colectiva e manutenção da paz e da segurança


internacionais (remissão)

Para além da cooperação económica e social, da protecção dos direitos


humanos e da descolonização, sobressai como função (atribuição) principal da ONU a
manutenção da paz e da segurança internacionais. Com vista a garantir a sua
adequada prossecução, instituiu a Carta um sistema de segurança colectiva, no qual o
Conselho de Segurança assume um papel sobressaliente. Teremos ocasião de analisar
os seus contornos essenciais no capítulo dedicado ao princípio da proibição do recurso
à força e suas excepções, razão por que nos limitaremos agora a remeter para aí.

Francisco António de M. L. Ferreira de Almeida


2023/24
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ÍNDICE ABREVIADO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………………………. 2

CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL………… 34

CAPÍTULO II – FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL……………………………… 61

CAPÍTULO III – RELAÇÕES ENTRE O DIREITO INTERNACIONAL E O DIREITO


INTERNO…………………………………………………………………………………………………………… 176

CAPÍTULO IV – SUJEITOS DE DIREITO INTERNACIONAL…………………………… 212


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