Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ROUSSO, Henry. O Arquivo Ou o Indício de Uma Falta.
ROUSSO, Henry. O Arquivo Ou o Indício de Uma Falta.
Henry Rousso
85
estudos históricos • 1996 - 17
possível? Basta ver o vigor dos debates recentes, seu caráter irracional, carregado
de ideologia, ou até mesmo de fantasias, sobre os arquivos contemporâneos,
sua inacessibilidade real ou presumida, a expectativa em relação a eles, pard
compreender que o problema ultrapassa o meio dos arquivistas, dos conserva
dores ou dos historiadores e tem a ver hoje em dia com o espaço público mais
amplo. Isso fica especialmente claro em relação à história da Segunda Guerra
Mundial ou à do sistema soviético, cuja queda acarretou um súbito acesso (ainda
assim lin1itado) a jazidas documentais que durante décadas se acreditou estarem
enterrddas para todo o sempre nas gavetas secretas das burocracias totalitárias.
Em outras palavras, exatamente no momento em que toda uma corrente
intelectual, inscrita na "pós-modernidade", denunciava a possibilidade de uma
restituição objetiva do passado, baseada em vestígios tangíveis, a demanda social
por uma história que diga a verdade, que exija uma maior "transparência" em
relação aos arquivos mais recentes, tornou-se cada vez mais premente.
Essa tensão contemporânea nem por isso relega à feira de antiguidades
as questões tradicionais suscitadas pelo uso de arquivos. Ao contrário, essas
questões podem pelmitir, num certo sentido, reenquadrar os termos do debate.
A utilizaçào de um "arquivo" pelos historiadores só pode ser compreen
dida sob a luz da noção de "fonte". Chamaremos de "fontes" todos os vestígios
do passado que os homens e o tempo conservaram, voluntariamente ou não -
sejam eles originais ou reconstituídos, minerais, escritos, sonorOs, fotográficos,
audiovisuais, ou até mesmo, daqui para a frente, "virtuais" (contanto, nesse caso,
que tenham sido gravados em uma memória) -, e que o historiador, de maneird
consciente, deliberada e justificável, decide erigir em elementos comprobatórios
da infolmação a fIm de reconstituir uma seqQência particular do passado, de
analisá-la ou çle restituí-Ia a seus contemporâneos sob a forma de uma narrativa,
em suma, de uma escrita dotada de uma coerência interna e refutável, portanto
de uma inteligibilidade científica.
Se admitirmos essa definição inicial, o "arquivo" no sentido comum do
telmo, isto é, o documento conservado e depois exumado para fins de
co,!!provação, para estabelecer a materialidade de um "fato histórico" ou de
uma ação, não passa de um elemento de infOImação entre outros. A dificuldade
consiste então distinguir as fontes - os vestígios - urnas das outras, a fIm de
em
86
o Arquivo ou o Indício de uma Falta
87
estudos históricos • 1996 - 17
•
passado. Ora, ainda que se trate aí de um debate real, nào é esse o nosso
objetivo. Ao contrário, queremos menos sublinhar as diferenças que evidenciar
as características comuns a toda fonte histórica e, dessa forma, convidar à
reflexão não sobre o método histórico e as técnicas do historiador, mas antes
sobre os próprios fundamentos da atividade historiadora.
Um testemunho colhido ou um documento conservado só de ixam de
ser vestígios do passado para se tornarem "fontes históricas" no momento em
que um observador decide erigi-los como tais. Toda fonte é uma fonte
"inventada", assim como todo "indivíduo histórico", no sentido em que falava
Max Weber, é uma construção, um tipo ideal. A "narrativa histórica" começa
com o estabelecimento de um co rpus coerente, inteligível sob o ponto de vista
de uma investigação precisa, e não. sob o ponto de vista de um passado que se
pretenderia simplesmente restituir em sua verdade recôndita. Em outras pala
vras, a constituição da narrativa não é a etapa fmal - o livro de históiia - a que
se chega depois de acumulada a documentação; é intrínseca ao próprio
procedimento daquele que interroga o passado. A narrativa começa com as
seqüência do passado, vai, ele também, criar um vestígio, deixar uma marca,
uma mediação. Simplificando, é raro que dois historiadores que se fazem a
mesma pergunta sobre um mesmo acontecimento ou um mesmo período
estabeleçam córpus idênticos e construam seu(s) fatoCs) da mesma maneira - o
que não diminui em nada, se seu procedimento for rigoroso, a conftabilidade
de seu trabalho.
Escrito, oral ou ftlmado, o arquivo é sempre o produto de uma
linguagem própria, que emana de indivíduos singulares ainda que possa
exprfrnir o ponto de vista de um coletivo (administração, empresa, partido
político etc.). Ora, é claro que essa língua e essa escrita devem ser decodificadas
�
e af) isadas. Mas, mais que de uma simples "crítica interna", para retomar o
vocabulário ortodoxo, trata-se aí de uma forma particular de sensibilidade à
alteridade, de "um errar através das palavras alheias", para retomar a feliz
1
expressão de Arlene Farge É esse encontro entre duas subjetividades o que
importa, mais que o terreno sobre o qual ele se dá ou o tipo de rastro que o
torna possível através do tempo.
88
•
o Arquivo ou o Indício de uma Falta
89
estudos históricos. 1996 - 17
consciência pois assinala a distância irreduúvel que nos separa do passado, essa
4
"terra estnmgeira,, O trábalho do historiador é por définição uma operação
seletiva, que depende do que foi efetivamente conservado, depende da sua
•
90
o Arquivo ou o Indício de uma Falta
Notas
91