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M MEDIEVAL E 0 PENSAMEN Rp eLitics DE SANTO TOMAS Antes de mais nada, que é ? Idade Média? Pidal, cum do da histé. a em trés idades, sintese afortuna- pelo simplismo, sintese ingénua\ _ muito mais incompreensivel do que af elha divisio em seis idades, incapaz @ organizar qualquer pensamento que etenda valer para uma_histéria erdadeiramente universal” (1). Como o mesmo Autor, dado o uso) ite, aceitemos a expressiio dade Média”, num sentido restri , Para designar a época que vai do culo VIII ao século XV, quando pre} cisamente os homens da Renascen comecam a emprega-la, depois a + quele bibliotecério pontificio Gi | vanni Andrea, distinguindo “os an- _tigos da Idade Média dos modernos _ do nosso tempo”. __ A expressiio nao deixa de ser de- preciativa, e bem indica a mentalid: de dos que a difundiram. Apologi: tas da cultura antiga, rejeitando a escoléstica e o latim bérbaro, in- Ps clufam neste desprézo os ideais da Cristandade. Tal é 0 sentido exato - "da “Renascenea”: 0 que renasce é 0 “espirito da cultura paga. E, enquan- to os protestantes preconizavam a yolta ao “Cristianismo_primitivo”, ‘de que consideravam a Idade Média uma deformaciio, os humanistas ena- ‘morados da antigiiidade apresenta- vam éste periodo histérico como um cay ( (ON MENENDEZ PIDAL, La aia tel eid. 2a ed., Espasa-Calpe, os Aires, p. 23, José Pepno Gavao pr Souza paréntese na civilizacio, um prolon- gZamento da barbaric. Teriam sido os tempos do vilain monstre ignoran. ce de Ronsard, dos ttimulos géticos em que no dizer de Paiolo Giovio ja- ziam sepultadas as artes e as letras, O mesmo furor antimedieval era 0 dos homens da “ilustracio”, no século XVIII. Qualificaram os his- toriadores ingléses de dark age aquéles anos revoltos e confusos que Se seguiram 4 queda do Império Ro- mano do Ocidente. Mas para os ilu- ministas téda a Idade Média era “dade de trevas”, contra a qual viria deblaterar Michelet. Vem depois a reabilitacéio da Ida- de Média. Empreende-a primeira- mente o romantismo. Comega no plano estético um movimento de en- tusiasmo passageiro que, entretanto, Suscita estudos mais sérios. Sua fi- losofia, seu estilo de vida, suas ins- tituigdes politicas surpreendem a muitos. H4 um verdadeiro descobri- mento histérico, E, com a crise so- cial e espiritual dos nossos tempos, surge uma forte nostalgia do medie- val. Chega-se assim a compreender, Por exemplo, que os homens da ida- de Média nao podiam viajar de aviaio, mas em compensacéo nao precisavam apresentar passaportes e sujeitar-se as exigéncias das alfandegas para a- travessar as fronteiras. { Para Daniel Rops “o conceito de Idade Média est4 impregnado de ér- ro. N&o se trata de modo nenhum de uma época de transigio, ainda incerta dos seus fins ¢ dos meios, Sl A Me AR aad i oh aa Dicesto Ecoxémico mas de um momento original da his- toria, em que a sociedade teve um sentido profundo de si mesma e do seu destino, em que se cumpriu umd obra inigualada, nigualavel, em que a humanidade conheceu uma uni- dade e um equilibrio excepcionais” (2). Idade Média: luz e nfo trevas. Lu- migre du Moyen-Age, é 0 ensaio em que Régine Pernoud poe diante de olhos a maneira de viver de entao, a contrastar com a vida angus- tiada dos nossos dias tenebrosos. B 0 contraste que inspirou a Nova Idade Média de Berdiaeff. A histé- ria moderna — faz- nos ver o pensador russo — fracassou. O humanismo, em vez de fortalecer 0 ho~ mem, debilitou-o. Es- tamos Assistindo ao fim da cultura que yem da Renascenga e do humanismo, nes- se declinar do Ociden- \ te melancdlicamente anunciado por Spen- gler. EE Berdiaeff % i clama por uma volta { as fontes renovado- y ras do espirito, a uma " | “nova Idade Média”. Desprendendo-se da « aa Eternidade, o homem = passou das profundezas para a su- perficie. Precisa tomar de novo contacto com o seu destino eterno, ‘Ante o espetdculo de um mundo em estado senil, a Idade Média sur- ge para Berdiaeff, Landsberg, Max (2) DANIEL ROPS, L’église de la Ca- thédrale et de la Croisade, Artheme Fayard, Paris, p. 14. im Scheler, Walsh, Rops, Huizinga e tantos outros qual uma idade prima- veril, segundo o esquema historic de Spengler ou Toynbee, pondo em relévo o erescimento, o apogeu e & decadéneia dos organismos sociais. Ninguém vai dizer que a mocida- de 6 uma transigao entre a infancia e a velhice... 1, pelo contrario, uma plenitude. Essa plenitude, na histéria do Ocidente, foi a Idade Mé- dia. Por isso, naqueles tempos se vivia mais intensamente. 0 contraste en- tre a enfermidade e a satide era mais acentuado do que hoje. 0 \frio cor tante eas noites pa- vorosas do inverno eram um mal muito ) mais grave. Obser- va-o Huizinga: “As- sim como o contraste { entre 0 verao e o in- verno era entaio mais forte do que’em nos- sa vida atual, tam= i bém o era a diferenca entre a luz e a escuy PM riddo, o siléncio e 0 P ruido. A cidade mo- P derna mal conhece & 9 — escuridio profunda € { © siléncio absoluto, 0 y efeito de uma s6 vela = ou de uma voz perdi- ao longe”. (3) % preciso ter revivido a Idade Mé- dia em. cidades como Avila ou Siena para bem perceber essas diferengas abismais. Que sensacio de recolhi- mento dentro das muralhas de Avila, onde os palicios parecem conyentos (3) J. HUIZINGA, El otofio de la Edad Media, Revista de Occidente Argentina, Buenos Aires, p. 12. € a catedral se assemelha a uma _ fortaleza! Que alegria ingénua na - Siena policrémica da festa do Palio, _ com seus escudos, estandartes e ban- deiras, com o variado colorido nos “panejamentos dos balcdes ou nos tra- jes dos jograis! Nao era, porém, aquela douceur "de vivre de que se falava na Franca como caracteristica dos tempos an- teriores & Revolugao. Longe disso. Tratava-se de uma exuberancia, uma expansio por vézes brutal, barbara "mesmo, de forcas vitais. A vida na- ' da tinha de doce, mole e efeminado 7 como nas cortes do século XVIII ou ‘na sociedade burguesa do século XIX. ‘Era uma vida dura, _spera, mas simples e ale- gre. Haja vista a cavalaria, a férea pos- _ ta ao servico das no- bres causas. Inculca- va-se no cavaleiro a piedade, o dever de protecéo aos fracos. _ _ Ainda nao se conhe- cia o cortesio, nem o burocrata. Mas a Idade Mé- a plenitude espiritual, “sobretudo nos séculos XII e XIII. Basta lembrar osynomes de Sao Ber- nardo, Sao Francisco de Assis e Sao Boayentura, Sio Domingos de Gus- _ mao e Santo Tomas de Aquino, ou daqueles reis e rainhas que sdbre a purpura vestiam o burel francisca- ‘no: Siio Luis de Franca, Santa Isa- bel de Hungria, Sio Fernando de Castela. A ordem medieval _ Nenhuma época da histéria teve como a Idade Média tao apurado | senso da Ordem e da Hierarquia, Trata-se, alias, de duas nogdes cor. relatas, sendo esta wltima um pres- Suposto necessdrio daqui Ordem © @ reta disposicao das coisas conser- vando cada uma o lugar que Jhe com- pete. Parium dispariumque rerum aus cuique loca tribuens dispositio, definia-a Santo Agostinho (4). §@ Pode haver ordem sem hierarquia no caso de unidades puramente quan- titativas, como se di com um reba. nho, uma pilha de tijolos ou uma Plantacio de café. Em se tratande de valores humanos, ha inevitavel- mente coisas iguais e desiguais — parium dispariumque e a ordem esta em as- sinalar a posic¢dio de cada uma conforme a sua categoria. A sociedade medie. val tinha diante de si um fim superior que dava sentido 4 vida e The servia de critério para ordenar tédas as coisas, para hierarquizar os valo- res, Vivia_ efetiva- seus -.cctta dos seus fins e dos meios”, como diz Daniel Rops, com “um sentido profundo de si mesma e do seu destino”. Cada um sabia porque trabalhar, sofrer, yi. ver @ morrer. Nada da angustia tra. gia de nossa 6poca existencialista, nem tio pouco o ceticismo parvo dos tempos do positivismo. Todos perfeitamente compenetrados de que © mundo € yerdadeiramente um “cos- (4) De Civitate Dei, L. XIX, c. XII. Economaico ms mos”, um todo ordenado segundo um plano divino. A “sacralidade” da civilizagao me- dieval, que desapareceu com a pro- Sressiva secularizagio da vida nos Estados modernos, nio era mais do que 0 reconhecimento de que o ho- mem deve orientar ‘tédas as suas agoes para Deus. Assim se compre- endiam as atividades culturais: as ciéncias, as artes, as profissdes, os divertimentos. O temporal subordi- nava-se hierdrquicamente ao eter- no e era penetrado pelo sobrenatu- ral. Nada existia de meramente pro- fano. O homem tinha consciéncia de estar neste mundo de passagem, um Peregrino em demanda da Eternida- de, Ea Igreja estava presente em tudo: os Sacramentos acompanhi vam a vida do homem do bergo ao timulo, as corporagdes nasciam das confrarias, a cavalaria era um fruto da agio da Igreja, os dramas littr- gicos e os “mistérios” faziam re- nascer a tragédia, esquecida desde os tempos da antigiiidade classica. O mesmo Santo Agostinho ensi- nava que a observancia da ordem nos faz aleangar a Deus e a sua nao observiincia nos faz perder a Deus: Ordo est quem si tenuerimus in vita, perducet ad Deum, et quem nisi te. nuerimus in vita, non perveniemus ad Deum (5). A ordem intelectual tem as suas leis e assim também a ordem moral, regulando a vida de cada homem, no uso da sua liberda- de. Sendo sociedade composta de homens, a ordem politica, esta neces- sariamente subordinada A ordem mo- ral: a lei humana fundamenta-se na lei natural, que é um reflexo da lei eterna no homem, (3) De Ordino, n. 27, A ordem politiea na Idade Média A ordem politica medieval pode ser compreendida nesta sintese: UNIVERSALISMO da cristandade e PARTICULARISMO comunitario. a uniao de povos da mesma cultura, — sob a égide da mesma Fé. \Bsses_ povos tém plena consciéncia de par- ticiparem de uma civilizacéo comum, © que se nota principalmente em cer tas ocasides critieas, como por exem-_ plo em face da ameaga muculmana ou no movimento das cruzadas. Dai resulta a formagio de uma comuni- dade natural de nagdes, a res pu- blica christiana, que durard até os tempos do protestantismo e juridica- mente ter desaparecido da Europa com os tratados de Vestfalia, esta- belecendo o direito internacional na base do equilibrio das poténcias. Nao se deve confundir universalis- mo e€ cosmopolitismo. A idéia cos- mopolita era conhecida do mundo antigo, e patrocinada sobretudo pe= lo estoicismo, sob a forma de uma — cidadania mundial conferida ao in- dividuo, ao passo que na Idade Média © que se afirma nfo é a integracio direta do individuo mas uma comu- nidade jntegrada por outras y communistas communitatum. Nao — Se conhece o homem isolado e sem raizes na tradicéo da sua gente, da sua cidade natal, da sua regiao ou pais de origem. Falam os alemaes da Heimat e os espanhdis da patria chica, e estas expressées indicam co- munidades que imprimem um como — que sélo caracteristico nos seus ha- ~_ bitantes. Uma consciénei nacional ainda nfo esta nitidamente formada, se vive muito mais a nacio do que nos tempos modernos com todos os seus nacionalismos exacerbados. “& justamente porque ainda nao ha ‘nacionalismo, nao ha t&o pouco in- fernacionalismo. A universalidade qnedieval nao é internacional, mas ~ ecuménica. Assim € que se deve entender o "Sacrum Imperium, no qual vem a se ‘transfigurar o Império Romano. Se- vundo Bryce, a antigiiidade nos le- ‘ee ‘as idéias de uma religido uni- versal ¢ de um império universal (6). ca No Sacro Império Romano-Alemio onjugam-se ésses dois legados, gra- eas aquela unidade espiritual muito diyersa da unificacdo pelas armas e ) pelas leis, caracteristica do Império _ de Roma. _Realizado pelos povos catélicos no plano temporal, o universalismo da Cristandade projeta-se num plano su- perior: a Igreja, Corpo Mistico de Cristo; a comunhao dos santos, li- gando a terra ao Céu, onde ha tam- pém ordem e hierarquia, a hierar- quia dos espiritos celestes desde os Anjos e Arcanjos até os Querubins e Serafins. “Assim como os individuos no se acham diretamente em face das grandes organizagdes do Tmpério, da Cristandade, mas s6 através de or- ganizacoes intermedidrias, também na ordem interna de cada Estado éles hao se acham dispersos e isolados Hiante do poder central. Florescem “por téda parte as pequenas comuni- Fades, a ponto de haver um eclipse Go Estado na presenca do PARTICU- | ae (@) J. BRYCE, Le Saint Empire Romain Germanigue, trad. E. Domergue, A, Co- ‘lin, Paris, 1890, p. 119. nit Dicrsro Eco LARISMO das comunas com franquias, dos misteres organiza corporativamente e da hierarquia feudal em que cada senhor € um pequeno soberano dentro de seus do- minos. Isso nfo significa um desconheci- mento do valor pessoal do indivi- duo, pois éste se afirma precisamen- te através dos circulos sociais nos quais a sua atividade esté empenha- da, circulos que o protegem contra qualquer possibilidade de absorgio totalitaria pelo corpo politico. No dizer de von der Heydte, “o pensa- mento politico da alta Idade Média parte da idéia do Todo, mas atribui a cada uma das partes, integral- mente consideradas, até ao Indivi- duo, um valor proprio” (7). Cada grupo tem uma tarefa a cumprir no seio da coletividade. Cada povo tem a sua missio no grémio da Cristan- — dade. Cada homem individualmente tem uma vocacio inconfundivel. Integracéo das ordens ‘na Ordem Onde podemos perceber de manei- va bem sugestiva a harmonia entre © particularismo dos grupos e a uni- dade total do Estado 6 no sistema de representacao politica usual entre os povos da Idade Média. Nao elaboraram os homens daque- la época uma teoria da representa- cio, como o fazem os adeptos do go- vérno representative em nossos dias. O mesmo se pode dizer do corpora- tivismo. A Idade Média costuma ser apresentada como o periodo dureo da prdtica do regime corporativo. Os (1) F, A. FREIHERR VON DER HEYD- TE, Die Geburisstunde des Souverinen — Regensburg, 1952, p. 15. fh Sete Maes subdued Dicesto Econémico que procuram hoje restauré-lo come- ¢am por levantar planos doutrind- Tios e construgdes tedricas. Nada disto se viu na Idade Média, quando © corporativismo rasceu esponta- neamente das condigdes econémicas do tempo e da aplicacdo ao trabalho do principio da cooperagao social, fruto da caridade crista. Tanto no aso do corporativismo como no da representacéio politica, tivemos por téda parte, na Europa medieval, um sistema comum e coerente, niio es crito nos livros mas na experiéncia, na histéria, nos‘ costumes. Era a Politica baseada na Tradigio, ao con- trério dos tempos modernos, em que os sistemas, oriundos de revolugdes, aplicam ideologias abstratas. Co- mo fizeram os romanos com o direi- to, os homens da Idade Média cons- truiram empiricamente as suas ins- tituigdes politieas, sem perder de vi ta o ideal que os unia. Ha, pois, téda uma teoria da re- presentagéo politica que se despren- de da experiéncia histérica medieval. Nas Cortes Gerais de Portugal e Espanha, no Parlamento inglés, nos Estados Gerais da Franca ou nas Dietas germanicas encontramos os Mesmos pressupostos e alguns carac- teristicos semelhantes, nao obstante as variedades locais préprias de uma époea em cujo decurso se desconhe- ceram as padronizagées politico-ad- ministrativas e jamais se pensou em exportar regimes politicos e consti- tuigdes. Poderiamos alinhar o: pressupostos fundamentais: I. A sociedade politica 6 um con- junto hierarquico de familias e ou- tros grupos sociais. De maneira ne- nhuma pode ser reduzida a uma sim- seguintes 115 ples soma ou massa de individuos, os “cidadios”, que se manifestam, através do sufragio universal, para constituir o poder pelo critério quan- titativo e anti-hierdrquico da maio- ria, Il 0 Estado forma um Todo, sem ser de modo algum totalitério, pois em sua composigio entram outros “todos” menos extensos mas perfei- tos na sua natureza, Os yinculos sociais nestes tiltimos sio por assim dizer mais “apertados” que na socie- dade total, correspondendo @les a idéia de “comunidade” (@emeins- chaft) da terminologia sociol6gica de Ténnies, enquanto o Estado se situa no plano conceptual da “so- ciedade” (Gesellschaft). III. O poder do Estado equivale & soberania politica, Ao seu lado, coexistem miiltiplos poderes que e= xercem, na sua érbita de acéo, uma soberania social. Esta expressiio, que poderd chocar os ouyidos dos juristas contemporfneos habituados a0 monismo do Hstado centralizador, 6 usada nos discursos de Vazquez de Mella e na “Teoria das Gértes Gerais” claborada por Anténio Sar- dinha tendo A vista a experiéncia medieval. Dentro de tais pressupostos a r¢- presentag&io politica se fazia_pelas categorias sociais. Clero, Nobre- za e Povo so as “ordens” ou classes nas quais se nos apresenta a visao retrospectiva da sociedade medieval, os trés “bragos” do Reino como em Portugal se dizia. No tocante is assembléias das “ordens” ou “esta- dos”, tal divistio correspondia A qua- lifieagio social dos individuos atra- vés dos respectivos grupos em cujo Ambito se desenrolava a atividade de a cada um. Mas é preciso nao esque- matizar demais e nao procurar na _Jdade Média planificacoes e sime- trias rigidas inexistentes. Se a es- frntura da sociedade era profunda- mente hierarquiea, nem por isso a ordem decorrente desta hicrarquia chegara a se estratificar nos trés estados, com as suas prerrogativas juridicas bem definidas, como acon- teceria nos séculos XVII e XVIII, durante o chamado “Antigo Regi- me”. Dai o serem muitos bispos também senhores, saindo freqiiente- ‘mente das camadas populares; ou ainda, em certas regides, um bur- _gués se tornar nobre ao comprar uma terra nobre. A familia de um -barao agregavam-se os servos, ¢ também os monjes residentes em seus dominios figuravam entre os familiares. Deixando de lado os com- péndios e mergulhando nos textos — conelui Régine Pernoud — a no- cio de “trés classes da sociedade” torna-se “facticia e sumaria” (8), ‘A representacio de tipo corpora- tivo que prevaleceu na Idade Mé- dia nfo era, pois, uma representaciio de classe no sentido moderno desta expressao. Tinha por base nfo tan- to a classe quanto 0 grupo, segundo aquela concepcfo da sociedade como conjunto de familias e outras coleti- vidades. Um nobre representava os interésses dos seus agregados e dos eclesisticos que com éle conviviam. Os representantes das comunas fa- Javam em nome de homens de dife- rentes classes da sua cidade. Em Portugal, a partir de certa época, ao Jado dos eclesidsticos, dos nobres e dos procuradores dos conselhos, to- REGINE PERNOUD, Lumiére du Moyen-Age, B. Grasset, Paris, p. 10. mavam assento em Cértes os le; tas, formando o “quarto braco”, e embora de origem plebéia, patrocina- vam a causa do monarca, junto ao qual serviam. Agrupamentos diver- sos, misteres diferentes constituiam outras tantas ordens. Os representantes de cada grupo tornavam-se os portadores das aspi- racées dos seus companheiros e re- cebiam um mandato com poderes li- mitados. Nfo se conheciam ainda os deputados falando em nome dessa entidade genérica a que se chama “povo”, com mandato amplo e sem limites, que torna impossivel con- trolar a plena correspondéncia en- tre a vontade dos eleitores e a dos eleitos. Bem o observa Bigne de Villeneu- ve: “fiste mandato limitado e im- perativo permitia uma representacio tao fiel e exata quanto possivel da fisionomia real do pafs e das vonta- des verdadeiras dos diversos inte- ressados reunidos nos seus agrupa- mentos... Uma tal representaciio é feita essencialmente 4 base de com- peténcia” (9). (9) MARCEL DE LA BIGNE DE VIL- LENEUVE, Traité général de l'état, II, R. Sirey, Paris, 1931, p. 35. Ainda o mes- mo Autor: “Quanto 4 representacho de base corporativa e por mandato impera- tivo, cla se apresenta_com uma simplici- dade, uma preocupagio de boa fé e de mo que néo pode deixar de nos im- pressionar, Estas qualidades nos pare- cern suscetiveis de tornar o sistema utill- zavel ainda em nossos dias, Elas se afir~ mam ainda melhor quando comparadas com as construgdes modernas, muito mais engenhosas sem diivida, muito mais six bias nas suas disposic6es, mas tio com plexas e artificiais que nao apresentam na realidade das coisas sendo uma ima: gem absolutamente deformada e quas¢ nunca manifestam a preocupacao de se porem de acérdo com elas” (op. cit., Th f}t20) sah Outro caracteristico importante a assinalar na representacio medieval 6 a funcdo consultiva, em matéria de legislagio. Por vézes, é certo, as Cortes deliberam. Cabe-lhes, por exemplo, decidir quanto a novos tri- butos ou A alteracio dos impostos Mas G6rgiio legislativo supremo é 0 Rei, cabendo-Ihe egurar o bem comum acima dos interé: de clas- se ou de grupo. Os legistas, que tem junto de si, formam um corpo técnico, uma espécie de assessoria: sfio os homens competentes para re- digir as leis. Isto se deve entender num Estado construfdo na base da descentrali- zagio e das autarquias sociais com seus poderes normativos e discipli- nares. O fato de pertencer ao poder real a suma faculdade legislativa nao implica, por si mesmo, em abso- lutismo ou interferéncia ao poder central na esfera das liberdades de cada grupo. Minimas eram as fun- Ses do Rei no concernente A admi- nistracfio geral do pais. Circunstan- cias extrinsecas a essa organizacio social 6 que favoreceram mais tar- de o absolutismo. A monarquia me- dieval 6 essencialmente aquela que os tratadistas lusitanos denomina- ram a “monarquia limitada pelas ordens”. Nesse tipo de regime mondrquico- representativo, 0 Rei reina e gover- na com a Cérte, sem porém adminis- trar. Na monarquia absoluta, 0 Rei tende a concentrar em si todos os po- deres, dando inicio & centralizaciio politico-administrativa do Estado moderno, Na monarquia constitu- cional, o Rei reina e niio governa, mantendo-se entretanto ainda mais acentuado 0 mesmo centralismd, com 117 | outro érgao de govérno, que passa a ter todos os poderes, por represen- tar 0 povo soberano, e vindo a con- fundir-se assim o que na Idade Média estava perfcitamente discriminad autoridade e representacio. A ordem politica medieval é 0 Rei como expressio da unidade do Poder, © Estado ctipola da sociedade, as au- toridades sociais florescentes e as ordens integradas na Ordem. Aquino . Estamos considerando a_socied: de temporal. Na sociedade espi tual, a Igreja, hi também uma OR- DEM, e hd também Ordens. Vamos a um convento da Ordem Dominicana em Paris. La encontraremos um frade cor- pulento e distrafdo, de pouco falar e de manefras um pouco estranhas, chegando mesmo a surpreender os seus irmios de hébito. § A fama da sua sabedoria e virtudes tinha por comensal. Contaya-se que — em certa ocasifio, admitido & mesa de Sua Majestade, deixara-se ficar com os olhos fitos no ar sem ao menos atender com a devida reve- yéncia & presenca do soberano. 4, em meio ao alméco, quando os outros conversavam, o distrafdo frade dei- xava escapar uma exclamacio: — Ergo conclusio contra manicheos! Descobria afinal um argumento de- cisivo contra os terriveis herejes com os quais esgrimia pela pena. De outra feita, estando a caminhar meditabundo pelos corredores do convento, alguns irmaios da Ordem o chamavam para junto de uma ja- a } “gritando com espanto: — i Tomas! Venha ver um boi ar!” Acorreu pressuroso o frade tuo e diante dos que se riam da “peca em que cafra, sem perder a “ealma, replicou tranqiiilamente: — Julguei que fosse mais facil um boi voar do aue um frade mentir...” Homem de vida contemplativa, ao " yeceber uma visita do Franciscano Frei Boaventura de Bagnorea, per- mtando-Ihe é@ste onde féra buscar nta sabedoria, limitava-se a’ apon- wr o Crucifixo, diante do qual sofa ssar horas e horas genuflexo em oraciio. _ Temos diante de nés Santo Tomas, uja*Suma Teolégica se comparou ‘muito a propésito com uma catddral " gética, transmitindo-nos suas pagi- nas a sintese plenamente claborada - da escolastica medieval. _ Ha também na sintese tomista uma filosofia politica. TE, tratando-se de um homem aparentemente tao alheio & realidade, podériamos su- por que sua obra aparentasse aque- Je mesmo feitio da “Reptblica” de Platio, sonhando com uma cidade "ideal, ou fésse concebida em térmos de hipdteses abstratas como o “Con- trato Social” de Rousseau. Nada disso, porém. Surpreende mas. Causa admiracio 0 senso po- Iitico, 0 espirito pratico que demons- tra ao escrever 0 tratado sébre o govérno dos principes ao Rei de Cipro, ou a resposta & Duquesa de Brabante, que o consultara sobre a ‘maneira de tratar os judeus nos seus dominios. Nesses optiséulos, nos tépicos da ‘Suma referentes @ temas politicos, “nos Comentarios a sro de i ki y ‘ao leitor a objetividade de Frei To-- Avistételes, mostra-se Santo Tomas, como nas demais partes da sua filo-— sofia, muito mais chegado ao mesmo Aristételes do que a Platio, pois tem os pés fincados sébre a terra sélida da experiéncia. Reflete-se na teoria politica do Aquinense a experiéncia _ politica dos homens do seu tempo. Sua fi- losofia da sociedade e do Estado é por exceléncia uma filosofia da or- dem. Na Summa contra Gentiles, escreve: Oportet quod Omnes parti- culares ordines sub illo universali ordine contineantur ab illo descen- dant (III, 98). E exemplifica preci- samente com a ordem politica: todos os domésticos vivem numa certa or- dem estabelecida pelo pai de famf- lia a que estfio sujeitos; da mesma forma, o pai de familia e todos os outros da sua cidade acham-se numa certa ordem nas suas relagdes entre si e com os governantes da cidade, a qual por sua vez esta sujeita A or- dem geral do reino. A ordem 6 estabelecida pela lei, norma racional em que se funda- menta o direito, Na segunda parte da Summa Theologica (I.a Iae., ques- tio 90 e seguintes), estuda Santo Tomas a hierarquia das leis: lei hu- mana, lej natural, lei eterna. Con- sidera ainda a lei divina positiva, no Antigo e no Novo Testamento. & principalmente af e nas questdes re- ferentes A justica (Ia. Ilae., ques- tées 57 e seguintes) que se encontra a sua filosofia juridica. A lei é uma ordenacéio racional, rationis ordina- tic. Se hé uma ordem universal, 6 porque a estabeleceu um Legislador ou Ordenador universal e supremo, Deus, As leis dadas pelos homens, que nao se conformem com esta 01 bs Dicesto Economico dem, nfio merecem o nome de lei. Representam antes uma iniqiiidade, uma corrupgiio da lei. Por sua vez, a autoridade que nao prové o bem comum e impede os homens de reali- zarem a ordem é uma autoridade ti- ranica.. Reproduz Santo Tomas o ensinamento tradicional da Igreja Obre a origem do poder politico, con- substanciado na expresso de Siio Paulo: todo Poder vem de Deus. Mas o poder esta a servico da or- dem. Por isso, 0 homem é obrigado obedecer aos principes enquanto a ordem da justica assim o requer, € se o govérno 6 usurpado, ou se pre- ceitua o injusto, n obriga- dos a obedecer-lhe, a niio ser aciden- talmente, para evitar escindalo ou algum perigo maior. Tratando do govérno pira-se Santo Tomas na licao’ poli- tica dos tempos em que viveu. O melhor regime, a seu ver, isto é, a monarquia com elementos de aristo- cracia e com certa participagio dada ao povo no govérno, poe diante de nés a monarquia temperada ou “li- mitada pelas ordens” da pratica me- dieval. Refere-se também a exem- plos da antigiiidade e analisa as trés formas de govérno da divisao aristo- télica, com as respectivas corrupedes, para concluir pela exceléncia de re- gime de um s6 com a colaboracao dos optimates e aquela participacao as- segurada ao povo. Seré a monarquia hereditdéria ou eletiva? Sem ferir de frente o problema, Santo Tomas parece a primeira vis- ta optar por esta tiltima. Assim o tém entendido alguns autores. Por certas passagens de, suas obras mais conhecidas, né-lo apresentam como ideal, ins- 119 partidério da monarquia eletiva. Mas © assunto melhor se larece, e com mais seguranca podemos penetrar no pensamento do Doutor Angélico s0- bre a constituicéo da realeza, se re corrermos aos seus Comentarios 2 Politica de Aristételes e ainda a um sermio até ha pouco tempo inédito, Multa sunt mirabilia, publicado em 1946 por Leclereq na Reyue Thomis- te (10), Ai confronta Santo Tomas o pode® do rei com a realeza de Cristo, e 0 pelos seguintes atribu- unidade, poder plendrio, ampla jurisdigio, eqitidade de justica. Nos Comentarios a Aristételes, considera que em si mesma, per se, a melhor forma de monarquia € a eletiva, por ser duvidoso que qualidades terao os filhos do rei. Entretanto, per accidens, acidentalmente, é melhor tomar governante pela sucessao he- reditdvia, pois nas eleigdes pode ha- ver funesta dissensio entre os elei- tores, e além disso os eleitores po- dem ser maus, acontecendo de elege- rem mau governante. Ora, a politi- ca é dominio do acidental ea contin- géncia humana nao se pode aprisio- nar no esquematismo das constru- cées abstratas. A realeza heredita- ria 6, pois, o regime mais adequado & condic&o real do homem, sem que se deva porém pretender um tipo de govérno absolutamente melhor pa- ra todos os povos. Tudo depende das cireunsténcias concretas, da forma- co histérica, da prépria indole do povo. Conforme o caso, sera reco- (10) Entre nés, 0 referido escrito foi comentado por Arlindo Veiga dos Santos, profundo conhecedor e fiel intérprete do Pensamento politico do Doutor Angélico, Veja-se 0 seu artigo De xe thomistica, in Reconquista, volume I (1950), p. 199. { 3 mendavel um govérno mais autori- tério ou um regime de franquias mais amplas, um acesso maior ou _menor dado ao elemento popular. Tendo presentes estas observa- ges, podemos concluir com Marcel Demongeot e Arlindo Veiga dos San- tos: 0 ideal politico de Santo ‘Tomas de Aquino é o regime misto da MO- NARQUIA ARISTO-DEMOCRATI- CA. E tal é a realidade politica dos tempos em que Santo Tomas viveu, Lemos na Summa Theologica, Ia, Iae., g. 105, art. 1.9: “A-boa ordem governativa de uma sociedade ou uma nagdo (aliqua civitate vel gen- te) requer duas condigses. A pri- Meira € que todos tenham uma cer- ta parte no poder, visto assim ser garantida a paz do povo e téda gen- te estimar e defender essa organiza- 40. Além disso, que um sé homem seja estabelecido no poder e presida a todos, tendo abaixo déle alguns homens que dirijam em raziio do seu valor, os quais sejam eleitos de entre todos, ou que pelo menos to- dos possam elegé-los”, Talis vero est omnis politia bene commixta, conclui Santo Tomas. His ai o ideal da monarquia tem- perada: realeza, na medida em que um s6 detém o poder supremo; aris- tocracia, enquanto alguns estéo no govérno por causa do seu valor; e democracia, na medida em que to- dos participam do poder ou podem escolher os governantes.’ A aristo- cracia deve fundamentar-se nos ser- vigos prestados a coletividade, isto é, na virtude e nao na simples férca ow riqueza. Caso contrério, teria- mos a oligarquia. Quanto a um re; me puramente democrdtico, éle nao seria orientado para a virtude mas para a liberdade, que 6 um bem rela- tivo, tudo dependendo do seu uso. Santo Tomas tem diante de si a lem- branga do pecado original. Dai uma concepgao realista da natureza hu- mana. O homem esta muito longe de ser o “homem naturalmente bom” de Rousseau. Rejeitado éste pressu- posto do liberalismo moderno, niio se pode conceber um regime que deixe a liberdade abandonada a si mesma — acabando alids por aniquilar-se — mas tudo esta em ordenar a li- berdade para a realizagao dos supe- riores fins do homem. E tal deve ser 0 fruto da boa ordem governati- va, de téda politia bene commixta, Tlustra Santo Tomas o seu pensa- mento com o exemplo dos hebreus. Moisés e seus sucessores eram che- fes wnicos. Tinham ao seu lado os setenta e dois Ancidos, escolhidos segundo um critério seletivo de ya- lores. E o regime era também de- mocratico, pois a escolha se fazia no conjunto do povo e pelo proprio Povo. CONCLUSAO Chegamos aos fins do século XIII. Agitam-se as cidades italianas, a preludiarem os tempos modernos, formando o clima propicio para de- Senvolyer-se uma no¢&o que a Ida- de Média nao conheceu: a “raziio de Estado”. O florentino Dante Alighieri es- ereve a Divina Comédia. Se a Su- ma Teolégica de Santo Tomas foi a eatedral gética do pensamento da Idade Média, a Divina Comédia é a Suma Teolégica posta em versos. Homem profundamente medieval, Dante, por alguns aspectos da sua din malidade e da sua vida, 6 ja um homem moderno. Antecipando- Se aos escritores da Renascen¢a, es- creve a primeira das Utopias. Sonha com a monarquia universal quando j4 yacila em seus fundamentos o Santo Império, quando a ordem medieval esté na iminéncia de sofrer um gol- pe profundo. O cantor da Divina Comédia entoa, no De Monarchia, o canto do cisne do pensamento politico medieval. Com a revolta de Lutero fragmenta-se a Cristandade. E a ordem ecuménica dos tempos me- dievos passa para a histéria. Mas a Tdade Média nfio é apenas o passado histérico. Lerou-nos ume cultura, uma diretriz para o pensa- mento e para a vida, uma tradicfio capaz de se renovar inspirando no- vas formas de convivéncia social. Seu universalismo é uma resposta & aspiracio frustrada dos povos que tém procurado em vio uma organi- zacio estével para a comunidade das nacées, impossfvel de aleancar sem restabelecer primeiro a unidade dos prinefpios. Seu pectoral co- munitdrio aponta o tinico eaminho™ a seguir se quisermos defender efi- cazmente as liberdades concretas dos homens, nos grupos em que estao seus interésses, fortalecendo ésses grupos contra 0 polvo socialista do Estado ab- sorvente e centralizador. Sua pritica da representaciio politica oférece pre- ciosas sugestées para resolver a cri- se do sistema representativo — e niio & de hoje, entre nés, o anseio mais de uma vez demonstrado pelas classes produtoras, por uma representacio auténtica junto aos poderes publi- cos, fora do quadro artifical dos par-_ tidos: af est&o, para atesté-lo, as conferéncias de Teresépolis e Araxd, — ou em data mais recente as afirma- cGes feitas ao ser lancado o Movi- mento de Recuperacio da Lavoura e durante a reunifio dos industriais efetuada éste ano em Sao Paulo. Por tudo isso, a Idade Média no — é sé um capitulo da Histéria. 148 A Idade Média é uma lic¢fo para a Idade Nova.

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