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Diversidade, espacgo e relagées étnico-raciais O Negro na Geografia do Brasil Renato Emerson dos Santos (Org.) auténtica Territérios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em Sao Paulo e Rio de Janeiro" Raquel Rolnik F comum, nas refertncias que slo feits &posigdo dos pretos e pardos nas clades brasileiras, a meng 3 inexistncia de guetos ~ bairos onde so confna- das certas minoras, porimposigdes econmicas cou ravais como sinal de ausén- ci de qualquer tipo de segregagao racial. guetonore-amescano snttiza a ima semde discriminago rcialaberiae da dominago brane, No plo oposio estaria 0 Brasil, onde pretos e brancos pobres comparilham o espago das vils efavela, numa espécie de promiscuidade aval sustntada pelo lago comum da miséra e da opressio econdmica, Essa suposigdo nos motiva a querer percorrer favelase vilas para tentar mapear 4 insergdo territorial dos pretos e pardos nas cidades, seja localizando esse grupo mais precisamente no tecido urbano, seja penetrando em seus espagos cotidianos de vida e socializagao. Infelizmente, por ora podemos contar com muito pouco material empirico para tal pretenstio, Na verdade, 0 tema empirico do negro nas cidades até agora foi pouco explorado nos textos brasileiros da sociologia do negro ou da sociologia urbana. Os ‘mais importantes trabalhos na drea da sociologia do negro nio discutem especiti ‘mente a questo urbana, e muito menos de um ponto de vista fisico-terrtorial. Por outro lado, a sociologia urbana tem trabalhado a questo da insergio das classes populares na cidade brasileira sem recorté-las do ponto de vista étnico. Os poucos trabalhos que se referem ao tema, produzidas em geral no ambito da antropologia, trazem descrigées ¢ andlises apenas de instituigSes negras especificas, como terrei- ros religiosos ou escolas de samba, Assim, embora de forma ainda preliminar & fragmentéria, procuraremos agui percorrer os espagos negros nas cidades de Sao “Texto escrito em 1989 e publica pela primeira vex ma Revista de Estudos Afo-Asidicos 17 ~ CEAA. Universidade Cindido Mendes, stembro de 1989. Paulo ¢ Rio de Janeiro, buscando suas origens e ligagOes, a partir do final da eseravi- dio, ¢ atentando para sua particular inserigdo na cidade ao longo do tempo. Nose inten! existe um territrio negro especifico nessas cidades, territério que tem uma histéria, i uma tadigto, Embor tl quadrocaresa ainda deum rablho empiico mais profundo ¢ detahado para se conslidar, & perfetameate plusvelfalar-se em sepregao { rica, disriminagdoe domingo branca nesassociedades histria do Rio ed i Sto Paulo émareada pela marginalizagdo cestgmatizato do teririo negro. ao delinear grosseiramente esse quadro, € demonstrar que E também nossa inteneIo, aqui, apresentar e discutir © proprio conceito de tervt6rio urbano, espago vivido, obra coletiva construfda pega a pega por um certo _Etupo social. Assim, a0 falarmos de terrtérios negros, estamos contando nao apenas uma historia de exclusdo, mas também de construgdo de singularidade e elaboracao ddeum repertério comum, Nas cidades brasileira em plenaeseravido (e mesmo em seus tltimos anos, a partir de meados do séeulo XIX), o negro ou era escravo, ot liberto, ou guilombola, Se escravo, seu espago era definido pela senzala e pelas regras de hierarquia que introduziam a diferenga social em um contexto urbano pouco segregado. A maior parte desses eseravos era encarregada do servigo doméstico e habitava as casas senhoriais, em sobrados contiguos nos centros das cidades. Neste, as regides de servigo, animaiseescravos localizavam-se fora doediicio principal, junto aum pio, Em Sao Paulo, como no Rio de Janeiro, senhores de escravos habitavam também em chhiearas nos aredores da cidade, que reeditavam o projeta da senza rural importante salientar que mesmo a senzala, desenhada pelos senhores bran- 0s coma espago de confinamento dos eseravos~ fieiras de quartos sem janelas ot mobiliafechando-se em pitios de onde se podia vigid-los e comandi-los - acabou por se configurar como terri negro, Para os negrosdestettoralzados da Africa € trazidos ao Brasil pela maquina comercial europea, a senzala representava a sub- inisao brutalidade dos senhores, Porém, ni eram sé o olhar vigilante do senhor€ 4 violencia do trabalho eseravo que estruturavam cotidiano dos habitantes da senzala, Foi amiém no interior dessa arquitetrarotalitria que floresceu ese desen- volveu um devir negro, afirmago da vontade de solidariedade e autopreservagdo j { j ; | ‘que fundamentaya a existéncia de uma comunidade africana em terras brasileiras. cconfinamento na terra de exilio foi capaz de transformar um grupo ~ cujo tinico lago cera ancestralidade africana —em comunidade, Um dos suportes mais s6lidos desse repert6rio negro foi, desde a senzala, 0 proprio corpo, espago de existEncia, continente ¢ limite do escravo. Arrancado do lugar de origem e despossuido de qualquer bem ou artefato, era o escravo porta- dor ~ nem mesmo proprietirio — apenas de seu corpo. Bra através dele que, na senzala, o escravo afirmava e celebrava sua ligagao comunitstia; foi através dele, também, que a meméria coletiva pode ser transmitida, ritualizada. Foi assim que 0 jo da senzala, simbolo de segregasiio ¢ controle, transformou-se em terreiro, DDveranat, ago €MLAgCE trucos © NECN Wa Grocer Bo Bes 76 (A I — lugar de celebragdo das formas de ligagdo da comunidade. A partir daf, o terreiro passou a ser um elemento espacial fundamental na configuragio dos territ6rios egros urbanos ~ sto terreiros de samba, de candomblé, de jongo que atraves- sam a hist6ria dos espagos afro-brasileiros nas cidades. ‘A rua era também territério dos eseravos. A contigilidade dos sobrados nas zonas centrais da cidade contribufa para que fosse intensa a circulagio de escravos domésticos: buscando gua nos chafarizes, indo ou voltando com a roupa ou os dejetos para jogar nos rios, carregando cestas perto dos mercados, transportando ‘objetos de um ponto a outro da cidade. Em 1854, a populagio de Sao Paulo, em torno de 30 mil habitantes, era composta por oito mil escravos, quase 1/3 de sua populagio livre.’ Na cidade do Rio de Janeiro, em 1860, havia cem mil escravos para ‘uma populagao total de 250 mil habitantes, 60% dos quais envolvidos com o servi- 0 doméstico (Souza Suva, 1870) Nas ruas do Centro, eseravos domésticos misturavam-se aos de ganho, aluga- dos por seus senhores por hora ou dia. Ser escravo de ganho era um dos caminhos | possfveis para a conquista da liberdade, na medida em que possibilitava a compra da alforria através da formagiio de um pecilio pr6prio. Somam-se a estes 08 libertos pelas vérias vias institucionais, brechas na legislagdo que regulava a escravido que aumentavam & medida que findava.o século e intensificava-se a agio abolicionista. O contingente de libertos nas cidades chegou a proporgées surpreendentes nesse perio do, Em Sio Paulo, em 1872, dos 12 mil negros da cidade ~ ainda 1/3 da populagio — ‘apenas 3.800 eram escravos, No Rio de Janeiro, dos 125 mil pretose pardos da cidade, {quase a metade da populagio total, eram 47 mil os escravos.* Os libertos exerciam varios oficios — de sapateiros a burbeiros, cirurgides, lavadeiras e, as mais comuns, quitanda e cangalha.* Além de possibilitar 0 acesso a liberdade pelas vias insttucto- nais, a cidade oferecia também uma chance maior de anonimato para os escravos cevadidos das fazendas. Por isso mesmo, nessas cidades negras foi se tecendo uma rede de socializagio e sobrevivencia negra paralela & eseravidio que cada vez mais representava uma alternativa conereta a senzala [Nos limites da senzala estava a demarcagdo da autonomia desse teritério negro sob a escravidio ~ 0 corpo do eseravo era propriedade do senhor. $6 a fuga © a libertagZo eram capazes de romper esse limite, devolvendo ao honrem escravo 0 oder sobre sua propria vida, Daf nasce 0 quilombo, zona libertada da escravidio. Pe TEm 1854, Sio Paulo tina 31.824 habitames, dos quais ‘Constavam ainda 922 estrangetos. (os dados nfo ineluem as vias de Senhora do 0, Pinheitos ou Penha). CF BASTIDE; FERNANDES, 1975. + sRecenscamentos da populagto do Império do Brasil a que se procedeu no dia 10 de agosto de 1872, Quadros Gerais”, + Quit e “eangalha” eam expresses com as quais a comunidade negra se referia spective rome a atvidades dos vendedores de ruse caregadores. 1834 eram lies @ 8.068 escravos. feria, como Nossa “Tuco SiC Hs CONES MARA IVCOADS CADE GH Sho Pao € RO JD 77 Embora a maior parte da historiografia dos quilombos refira-se aqueles situados ‘em zonas rurais, havia também —crescentemente & medida que se aproximava o fim do perfodo escravocrata ~ quilombos urbanos.’ Bsses locais ou eram cOmodos e casas coletivas no centro da cidade ou nicleos semi-rurais ~ as rogas das periferias urb: nas, bastante semelhantes wo que sio hoje as rogas de periferia dos terreiros de candomblé nas cidades. Nicleos negros importantes nasceram desse tipo de confi- ‘guragao; € 0 caso, por exemplo, do bairro do Bexiga, em Sio Paulo, origindrio do ‘quilombo do Saracura, Outros pontos focais do territério negro urbano eram os mereados e espagos das irmandades religiosas negras. Nos mercados abasteciam-se os vendedores e as, “negras de nagao”, quituteiras que se espalhavam pelos espacos pablicos da cidade; Wwam-se os ervandios africanos, fundamentais para as préticas cura- ali também sit tivas dos pais-de-santo e as obrigagdes de seus filhos. As irmandades funcionavam como ponto de agregagiio. Em seus terreiros, nas festas religiosas, os negros danga- vam © batuque. Muitas, como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosario dos Ho- ‘mens Pretos de Sto Paulo, chegaram a abrigar libertos e, como a Confraria dos Remé- dios, envolveram-se diretamente na campanha abolicionista, articulando quilombos : as redes de apoio urbanas.® ; © impacto da aboliglo foi, no entanto, diferente para as duas eidades. Desde logo € preciso ressaltar que, para © processo brasileiro como um todo, a aboliglo representou o deslocamento da populac3o negra como miio-de-obra e a importagio nijo $6 da idéia do trabalho livre e assalariado, como também de um grande contin- ‘gente de mao-de-obra européia,1ss0 ocorreu de forma mais radical em Sao Paulo, eixo dindmico da economia brasileira no momento da aboligao. A crise da escravidlio intensificou-se no momento em que a cafeicultura paulis- ta, numa fome voraz por terras e homens, avangava em dirego ao veste da provincia, cem ritmo de ferrovia, A maior fonte possfvel para a compra de escravos, 0 trifico, cstava entdo sendo desmantelada pela mesma méguina que a havia montado séculos antes — 0 capital inglés. Agora que 0 lucro ndo estava mais em fazer mercadorias navegarem pelos mares, era preciso criar mercados locais nos continentes aonde cesses mares chegavam, Assim, a pressfo inglesa pelo fim do tréfico aumentou até sua cextingdo final, em meados do século, Quando perceberam a inevitabilidade do proces- 0 abolicionista, os fazendeitos empressirios do café paulista comecaram a pensar na substituiglio da mao-de-obra Palmares, qllombo stad ma Sera da Batiga, Alagoa, no século XVII, fm sido o grande tema as histras de quilonbos. Ver Frits (1978), Careiro (1958) © Moura (1972), hiss do quilombo do Jabaguar,aldlatetigio sitada no camino de Santos, & um exempo ‘essa ligasio. A ala mais radical ao movimento aboicionista, sem poder dcisoio no Prlaneo, Dissou 4 apolar com dinero a retaguseda orgaizativa fugas em massa e alfrias de escravos. Jabaquara funcionava como reduto para onde AntGnio Bento seus caifizes encaminhavam os fugitives, CF. Fontes (1970). Dvcsiont,engo €magons acorns @ Neco 4 Groce 0 Bras, 78 EI a ESS A “solugdo” da questo foi o deslocamento de mithares de europeus, sobreti- do italianos, paras eras paulists. Os primeiros foram subsidiados peo govern de Sfo Paulo ¢ encaminhados até as fazendas; porém, logo a imigraso espontinea superou a subsiiada e Sao Paul ialanizou-se. A substiuigdo do escravo negro pelo imigrante livre foi acompanhada de um discurso que difundia a solueio como attematva progress, na medida em que europe “iilizadoselaboriosos" trariam sua cultura pra ajudaradesenvolveranagdo. Aalterativa implicou tambgm formu Tago de uma teria racial: a raga negra estava condenada pela bestilidad da esra vidio e a vinda de imigranies europeus tara elementos éinicos superiores que, biravés da miscigenacio, poderiam branquearo pas, numa espécie de transfusSo de puro. oxigenado sangue de una raga live. Em Sto Paulo, es formulag implicou uma intense rorganiacSo tential, 6 aque a partir do sim quartel do séeulo XIX, a cidade, que até ent era um centro comercial modesto, tomou-seo centro da expansiocafzir, Antes de mais nada, a cidade veria sua populagSo aumenta rapidamente em poueas décadas, fruto, sbretudo, da entrada de imigrantes. Em 1886, dois anos antes

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