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Quem vive bem, irá morrer bem

A regra geral "quem vive bem, irá morrer bem" deve ser
mencionada antes de tudo, pois sendo a morte nada mais que o
fim da vida, é certo que quem viver bem até o final da sua vida,
morrerá bem; nem pode morrer doente quem que nunca
estiver doente; por outro lado, quem nunca tiver vivido bem,
não poderá morrer bem. A mesma coisa é observável em
muitos casos similares: todos que houverem percorrido o
caminho certo poderão chegar aos seus destinos; ao contrário,
aqueles que vaguearem por aí, jamais chegarão ao final de sua
jornada.

Também, quem se aplicar diligentemente aos estudos, logo se


tornará sábio doutor; mas aqueles que não se dedicarem, serão
ignorantes. Mas, talvez, alguém mencione o exemplo do Bom
Ladrão, que viveu de maneira errada e morreu corretamente.
Este não é o caso; pois o Bom ladrão teve uma vida santa e,
portanto, teve uma morte também santa. Mas, mesmo
entendendo que ele dispendeu grande parte dos seus dias na
maldade, outra parte de sua vida foi tão bem dispendida que
ele facilmente se arrependeu de seus pecados e ganhou as
maiores graças do céu.
Queimando com o amor de Deus, ele abertamente defendeu
nosso Salvador das calunias de Seus inimigos; e dirigiu-se com a
mesma caridade a seu vizinho, ele repreendeu e admosteu,
dizendo: "Nem sequer temes a Deus, estando na mesma
condenação? Quanto à nós, é de justiça; pagamos por nossos
atos; mas ele não fez nenhum mal" (Lc 23, 40-41). Nem estava
ele morto quando, confessando e chamando por Cristo, ele
pronunciou estas nobres palavras: "Jesus, lembra-te de mim
quando vieres com teu reino" (Lc 23, 42). O Bom Ladrão então
chegou para ser um daqueles que chegaram por último na
vinha e, no entanto, recebererão a mesma recompensa dos
primeiros.

Verdade, por isso, a sentença "quem vive bem, irá morrer


bem"; e "quem viver mal, morrerá mal". Nós temos que
concordar que é mais perigoso adiarmos nossa conversão dos
pecados para a virtude: muito mais feliz são os que aceitam o
jugo do Senhor desde sua juventude, como disse Jeremias; e
extremamente abençoados são aqueles "que não são
contaminados por mulheres, e em cuja boca não se encontram
mentiras, pois estão sem manchas, em frente ao trono de Deus.
Estes foram resgatados dentre os homens, como primícias para
Deus e para o Cordeiro" (Ap 14,3-5). Exemplos são Jeremias,
São João, "mais que um profeta", e acima de todos, a Mãe de
nosso Senhor, bem como todos a quem Deus reconheceu.
A primeira grande verdade, agora, está estabelecida, pois uma
boa morte depende de uma
boa vida.
ara viver bem, deve-se morrer para o mundo

Agora, para viver bem é necessário, em primeiro lugar, morrer


para o mundo antes de morrer em corpo. Todos que vivem para
o mundo estão mortos para Deus: não podemos de nenhum
modo viver para Deus, exceto se primeiro morrermos para o
mundo. Esta verdade está tão plenamente revelada nas
Sagradas Escrituras, que apenas infiéis podem negá-la. Mas,
como toda verdade deve ser proclamada pela boca de duas ou
três testemunhas, vou citar os santos apóstolos, São João, São
Paulo e São Tiago, por que através deles o Espírito Santo, o
espírito da verdade, falou plenamente.

Escreve São João: "Já não conversarei muito convosco, pois o


príncipe deste mundo vem, contra mim ele nada pode" (Jo
14,30). Aqui o demônio é dito "o príncipe deste mundo", que é
rei de todos os vícios; e por "mundo", é entendido a companhia
de todos os pecadores que amam o mundoe são amados por
ele. Um pouco depois, o evangelista continua: "Se o mundo vos
odeia, sabei que, primeiro, odiou a mim. Se fôsseis do mundo, o
mundo amaria o que era seu; mas porque não sois do mundo e
minha escolha vos separou do mundo, o mundo, por isso, vos
odeia." (Jo 15, 19). E em outro ponto: "Não rogo pelo mundo,
mas pelos que me deste, porque são teus" (Jo 17, 9). Aqui,
Cristo claramente nos diz que por "mundo" significa quem,
com o príncipe do mundo, devem ouvir no último dia: "Vão,
conforme predito, para o fogo eterno." (cf Ap 20, 19). São João
acrescenta em sua epístola: "Não ameis o mundo, nem o que
há no mundo. Se alguém ama o mundo, não está nele o amor
do Pai. Porque tudo o que há no mundo - a concupiscência da
carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho da riqueza - não
vem do Pai, vem do mundo. Ora, o mundo passa com suas
concupiscências; mas o que faz a vontade de Deus permanece
eternamente" (1Jo 2 16-17).

Vamos agora ouvir como São Tiago fala em sua epístola:


"Adúlteros, não sabeis que a amizade com o mundo é inimizade
com Deus? Assim, todo aquele que quer ser amigo do mundo
torna-se inimigo de Deus" (Tg 4,4). Então, São Paulo, aquele
vaso da eleição, escreve em sua Primeira Epístola aos Coríntios,
para todos que tem fé: "Vossas necessidades vão além deste
mundo", e em outro lugar, na mesma Epístola: "Mas por seus
julgamentos o Senhor nos corrige, para não sejamos
condenados com o mundo" (1Co 11,32).

Aqui nos é dito claramente que o mundo inteiro será


condenado no último dia. Mas por "mundo" não significa céu e
terra, nem aqueles que vivem nele; mas somente aqueles que
amam o mundo. Os justos e piedosos, em quem reina o amor
de Deus, não a concupiscência da carne, estão no mundo, mas
não são do mundo: mas os perdidos em vícios não apenas estão
no mundo, eles também pertencem a este mundo; pois não o
amor de Deus, mas a concupiscência do mundo reina em seus
corações, ou seja, luxúria e a concupiscência dos olhos, a
avareza e o "orgulho da vida", que é a estima por eles mesmos
acima dos outros; então eles imitam a arrogância e o orgulho
do demônio, não a humildade e suavidade de Jesus Cristo.
A finalidade desta admoestação é a caridade, que procede de
coração puro, de boa consciência e de fé sem hipocrisia. (1Tm
1 ,5)

Vamos iniciar pela fé, que é a primeira das virtudes que existem
no coração do homem justificado pela fé. Não sem razão, o
apóstolo acrescenta "sem hipocrisia" a fé. Pela fé vêm a
justificação, desde que seja verdadeira e sincera, não falsa e
afetada. A fé dos heréticos não conduz à justificação, pois não é
verdadeira, é falsa; a fé dos maus católicos não conduz à
justificação por que não é sincera, mas afetada. É afetada de
duas maneiras: quando nós não acreditamos realmente, mas
somente fingimos acreditar; ou quando, apesar de acreditar,
não é vivida, como acreditamos que deve ser. Nestas duas
situações é que as palavras de São Paulo na epístola a tito
devem ser compreendidas: "Afirmam conhecer a Deus, mas
negam-no com seus atos". (Tt 1,16a) Desta maneira os santos
padres Jerônimo e Agostinho interpretam estas palavras do
apóstolo.

Agora, desta primeira virtude de um homem justo, nós


podemos facilmente entender quão grande deve se a multidão
daqueles que não vivem bem, e, da mesma maneira, morrem
no pecado. Eu vejo infiéis, pagãos, heréticos e ateístas que são
completamente ignorantes da arte de morrer bem. E entre
católicos, quantos existem que "afirmam conhecer a Deus, mas
negam-no com seus atos". Quem reconhece ser virgem a mãe
de Nosso Senhor, mas não teme blasfemar contra ela? Quem
preza orar, jejuar, ser caridoso e outras boas obras, mas ainda
se permite vícios opostos? Eu omito outras coisas que são
conhecidas de todos. Aqueles dizem possuir fé "sem hipocrisia",
que não acreditam naquilo que dizem crer, ou não vivem de
acordo com os mandamentos da Igreja Católica; e, por isso,
demonstram pela sua conduta que ainda não começaram a
viver bem, nem podem tr esperança de uma morte feliz, exceto
se por uma graça de Deus aprenderam a arte de morrer bem.

Outra virtude de um homem justo é a esperança, ou uma "boa


consciência", como São Paulo no ensina. Esta virtude vêm da fé,
pois não há como ter esperança em Deus sem conhecer o Deus
verdadeiro ou não acreditar Nele como todo-poderoso e
misericordioso. Mas, para exercitar e fortalecer nossa fé, para
que possa ser chamada não apenas esperança, mas também
confiança, uma boa consciência é necessária. Como se
aproximar de Deus e pedir seus favores, quando sabe ter
cometido pecados e não tê-los expiados por uma correta
penitência? Quem pede um benefício ao inimigo? Quem pode
esperar ser perdoado por ele, se reconhece ter estado contra
ele?

Escute o que um homem sábio pensa da esperança dos ímpios:


"A esperança do ímpio é como a palha levada pelo vento, como
espuma miúda que a tempestade espalha; é dispersa como
fumaça pelo vento, fugaz como a lembrança do hóspede de um
dia" (Sb 5, 14). Assim o sábio admoesta o ímpio, que sua
esperança é fraca, não forte; fugaz, não persistente; eles,
enquanto estão vivos, ainda tem alguma esperança, em algum
momento devem se arrepender e reconciliar-se com Deus; mas
quando a morte lhes chegar, a menos que o Todo Poderoso por
alguma graça especial mover seus corações e inspirá-los
verdadeiro arrependimento, sua esperança será transformada
em desespero, e eles dirão junto aos demais ímpios: "Sim,
extraviamo-nos do caminho da verdade; a luz da justiça não
brilhou sobre nós, para nós nãsceu o Sol. Cansamo-nos nas
veredas da iniqüidade e perdição, percorremos desertos
intransitáveis, mas não conhecemos o caminho do Senhor! Que
proveito nos trouxe o orgulho? De que nos serviram riqueza e
arrogância? Tudo isso se passou como uma sombra" (Sb 5, 6-
9a).

Portanto, deixemos o sábio nos corrigir, se queremos viver e


morrer bem, nós não devemos permanecer no pecado, mesmo
que por um momento, nem nos permitir enganar por um vã
confiança, que ainda teremos muitos anos para viver e e
poderemos utilizar estes anos para ganhar nosso perdão.
Três Conselhos Evangélicos
Assim nos fala São Lucas: Tendes os rins cingidos e acesas as
vossas lâmpadas. Sede semelhantes aos homens que esperam o
seu senhor ao voltar das núpcias para lhe abrirem a porta
quando ele chegar e bater (Lc 12, 35-36). Esta parábola pode
ser entendida de duas maneiras: como preparação para a
chegada do Senhor nos últimos dias; ou para Sua chegada no
dia da morte de cada um. Nós iremos explicar esta parábola
pelo segundo sentido, entendida como preparação para a
morte, que sobre todas as coisas é tão absolutamente
necessária para nós.

As núpcias do Senhor

O Senhor nos ordena a observar três coisas: primeiro, nós


devemos "cingir os rins"; depois, devemos ter "lâmpadas
queimando nossas mãos"; terceiro, estarmos atentos "vigiando"
em expectativa a chegada de nosso julgamento, estando
ignorantes do momento de sua chegada, assim como
ignoramos a chegada dos ladrões.

Expliquemos estas palavras: "cingir os rins". O sentido literal


destas palavras é que devemos estar preparados ara seguirmos
adiante e encontrar o Senhor quando a morte nos chamar para
nosso particular julgamento. A comparação comas vestimentas
estarem cingidas é relacionada aos costumes das nações
orientais de utilizarem longas vestes; e quando estão
preparados para iniciar uma longa jornada, eles tomam suas
vestes e as cingem, isto é, apertam, para evitar que nelas
tropecem. De acordo com o mesmo costume dos orientais, São
Pedro escreve: Cingi, portanto, os rins do vosso espírito, sede
sóbrios e colocai toda vossa esperança na graça que vos será
dada no dia em que Jesus Cristo aparecer.(1Pe 1, 13). E São
Paulo na Epístola aos Efésios diz: Ficai alerta, à cintura cingidos
com a verdade, o corpo vestido com a couraça da justiça (Ef
6,14).

Ter nossos "rins cingidos" significa duas coisas: primemiro, a


virtude da castidade; segundo, estar pronto para encontrar
nosso Senhor vindo para o julgamento, particular ou geral. Os
Santos Basílio, Agostinho e Gregório Magno citam a primeira
explicação. E, verdadeiramente, a concupiscência da carne,
sobre todas as paixões, nos impede de estarmos prontos para
encontrar Cristo; por outro lado, nada nos faz mais prontos para
encontrar o Senhor, que a castidade virginal. Isto podemos ler
nos Apocalipse, sobre as virgens que seguem o Senhor. E o
apóstolo diz: O solteiro cuida das coisas que são do Senhor, de
como agradar ao Senhor. O casado preocupa-se com as coisas
do mundo, procurando agradar à sua esposa. A mesma
diferença existe com a mulher solteira ou a virgem. Aquela que
não é casada cuida das coisas do Senhor, para ser santa no
corpo e no espírito; mas a casada cuida das coisas do mundo,
procurando agradar ao marido (1Cor 7,32-34).

Agora expliquemos outro dever do servo fiel e diligente: äs


lâmpadas devem estar acesas". Não é suficiente para o servo
ter os "rins cingidos", para que possa facil e livremente
encontrar o Senhor. Uma lâmpada acesa é requerida para
mostrá-lo o caminho, por que à noite deve estar vigilante à Sua
espera, quando retornar do banquete nupcial. Aqui, "lâmpada"
significa a lei de Deus que aponta o caminho correto. Diz Davi:
Vossa palavra é um facho que ilumina meus passos, uma luz em
meu caminho (Sl 119, 105).

A "lei é uma luz" diz Salomão no Livro dos Provérbios. Mas a


lâmpada não pode iluminar ou apontar o caminho se estiver
dentro da casa, ela deve ser erguida pelas nossas mãos. Muitos
existem que conhecem as leis divinas e humanas, mas cometem
muitos pecados, ou se omitem de bons e necessários trabalhos,
por que não possuam uma lâmpada erguida em suas mãos, por
que seu conhecimento não se estende às atividades diárias.
Quantos homens existem que ouviram a palavra e cometem
sérios pecados, por que quando agem não consultam a lei do
Senhor, mas suas vontades, desejos e paixões. Se o Rei Davi,
quando viu Bersabéia nua, tivesse lembrado da lei "não desejai
a mulher do próximo", ele nunca teria cometido tão grave
crime; mas como estava deliciado com a beleza da mulher,
esqueceu a lei divina. Este homem, tão justo e abençoado,
cometeu adultério. Donde, nós devemos ter a lâmpada da lei,
não escondida no nosso quarto, mas em nossas mãos, e
obedecer estas palavras do Espírito Santo, que nos diz para
meditarmos sobre os mandamentos dia e noite. Aquele que
mantém em frente a seus olhos os mandamentos, sempre
estará pronto para encontrar o Senhor, não importa o momento
de sua chegada.

O terceiro é último dever do servo é "vigiar" estando incerto


sobre quando chegará o Senhor: Bem-aventurados os servos a
quem o senhor achar vigiando, quando vier! (Lc 12, 37) Nosso
Senhor não quer que saibamos o momento de nossa morte,
para que possamos pecar à vontade, e empreendermos nossa
conversão pouco antes da morte. A Divina providência dispos as
coisas de tal modo que nada é mais incerto que a hora da
morte: alguns morrem no ventre da mãe, alguns tão logo
nascem, outros já muito velhos, alguns na flor da juventude;
alguns sofrem por um bom tempo, ou morrem subitamente, ou
se recuepram de doenças gravese quase incuráveis; e quando
parecem estar sãos e curados, a doença ataca novamente. Esta
incerteza Jesus alude nos Evangelhos: Se vier na segunda ou se
vier na terceira vigília e os achar vigilantes, felizes daqueles
servos! Sabei, porém, isto: se o senhor soubesse a que hora
viria o ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria forçar a sua
casa. Estai, pois, preparados, porque, à hora em que não
pensais, virá o Filho do Homem (Lc 12, 38-40). Para nos
convencer da incerteza do momento de nossa morte ou de
quando virá nos julgar, nada é mais frequente nas Escrituras
que a palavra "vigiar" e também a comparação com o ladrão.

Destas considerações resta evidente como grande pode ser a


negligência e ignorência, para não dizer cegueira e loucura da
parte da humanidade, que, mesmo estando advertida pelo
Espírito da Verdade, que não pode mentir, que deve estar
preparada a morte, esta grande e difícil questão, da qual
depende eterna felicidade ou miséria, ainda poucos deixam-se
elevar pelas palavras ou poder do Espírito Santo.
O erro dos ricos deste mundo
Além de tudo que já foi ditto, eu devo acrescentar uma
refutação a certo erro muito prevalente entre os ricos deste
mundo, que muito os afasta de uma vida correta e uma boa
morte. O erro consiste nisto: o rico supõe que toda riqueza que
possui é absolutamente sua propriedade, se justamente
adquirida; e, portanto, podem legalmente gastá-la ou
disperdiçá-la e ninguém pode lhes dizer: “Por que você fez isto?
Por que se vestir tão ricamente? Por que organizar festas tão
suntuosas? Por que gastar tão prodigamente com teus
cachorros e falcões? Por que gastar tanto em jogos e outros
prazeres semelhantes”. E eles respondem: “O que é isto para ti?
Não é correto eu gastar o meu dinheiro para fazer aquilo que eu
desejar?”

Este erro é sem dúvida, mais grave e pernicioso: considerar que


os ricos são mestres das suas propriedades com relação aos
demais homens; embora, em relação a Deus, eles não sejam
mestres, mas apenas administradores. Esta verdade pode ser
provada com muitos argumentos: Do Senhor é a terra é o que
nela existe, o mundo e seus habitantes (Sl 24, 1). E ainda: Não
preciso do novilho do teu estábulo, nem dos cabritos de teus
apriscos, pois minhas são todas as feras das matas; há milhares
de animais nos meus montes. Conheço todos os pássaros do
céu, e tudo o que se move nos campos. Se tivesse fome, não
precisava dizer-te, porque minha é a terra e tudo o que ela
contém. (Sl 50, 9-12).

E no primeiro livro de Crônicas, quando Davi ofereceu para a


construção do templo três mil moedas de ouro e sete mil
moedas de prata e mármore em grande abundância; e quando
movidos pelo exemplo do Rei, os príncipes das tribos
ofereceram cinco mil moedas de ouro, dez mil moedas de prata,
dezoito mil de bronze e cem mil de ferro, então Davi disse ao
Senhor: A vós, Senhor, a grandeza, o poder, a honra, a
majestade e a glória, porque tudo que está no céu e na terra
vos pertence. A vós, Senhor, a realeza, porque sois
soberanamente elevado acima de todas as coisas. É de vós que
vêm a riqueza e a glória, sois vós o Senhor de todas as coisas; é
em vossa mão que residem a força e o poder. E é vossa mão
que tem o poder de dar a todas as coisas grandeza e solidez.
Agora, ó nosso Deus, nós vos louvamos e celebramos vosso
nome glorioso. Quem sou eu, e quem é meu povo, para que
possamos fazer-vos voluntariamente estas oferendas? Tudo
vem de vós e não oferecemos senão o que temos recebido de
vossa mão. (1Cr 29, 11-14) O testemunho de Deus pode ser
acrescentado através das palavras do profeta Ageu: A prata e o
ouro me pertencem - oráculo do Senhor dos exércitos (Ag 2,8).
Assim falou o Senhor, para que o povo compreendesse que
nada seria necessário caso o Senhor ordenasse sua construção,
pois a Ele pertencem todo ouro e prata deste mundo.

Devo acrescentar dois outros testemunhos das palavras de


Cristo, no Novo Testamento: Havia um homem rico que tinha
um administrador. Este lhe foi denunciado de ter dissipado os
seus bens. Ele chamou o administrador e lhe disse: Que é que
ouço dizer de ti? Presta contas da tua administração, pois já não
poderás administrar meus bens (Lc 16, 1-2). O “homem rico”,
aqui, significa Deus, como dissemos a pouco, pois como diz o
profeta Ageu, dele é o ouro e a prata. Por
“administrador”entenda-se os homens ricos, como explicam os
santos padres Agostinho, Ambrósio e o Venerável Beda sobre
esta passagem.

Se o Evangelho, então, deve ser acreditado, todo homem rico


deste mundo deve reconhecer que suas riquezas, justa ou
injustamente adquiridas, não são suas: se ele as adquiriu
corretamente, ele é apenas o administrador; se injustamente,
ele não é nada além de um ladrão. E desde que o homem rico
não é mestre de suas riquezas, por consequencia, quando
acusado de uma injustiça frente a Deus, Deus pode retirá-las
através da morte ou tomando-as, pois assim esta indicado
nestas palavras: Presta contas da tua administração, pois já não
poderás administrar meus bens. Para Deus sempre haverá
meios de reduzir um rico à probreza, retirando os bens de sua
custódia. Naufrágios, roubos, tempestades de granizo, pragas,
muita chuva, seca e outras aflições são as muitas vozes de Deus
dizendo ao rico: já não poderás administrar meus bens.

Mas, então, ao final da parábola, nosso Senhor diz: fazei amigos


com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar,
eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16, 9). Ele não
quer dizer que as esmolas são dadas a Ele, mas que os ricos não
são ricos, propriamente falando, mas somente sombras Dele.
Isto é evidente em outra passagem do Evangelho de São Lucas:
Se, pois, não tiverdes sido fiéis nas riquezas injustas, quem vos
confiará as verdadeiras? (Lc 16, 11)

O significado destas palavras é: se nas injustas riquezas ou seja,


nas falsas riquezas, não tiverdes sido fiéis dando tudo
liberalmente aos pobres, quem vos confiará as verdadeiras que
fazem um homem realmente rico? Esta é a explicação dada por
São Cipriano e Santo Agostinho.

Em outra passagem do mesmo evangelho, que pode ser


considerada como um comentário sobre o administrador
injusto: Havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho
finíssimo, e que todos os dias se banqueteava e se regalava.
Havia também um mendigo, por nome Lázaro, todo coberto de
chagas, que estava deitado à porta do rico. Ele avidamente
desejava matar a fome com as migalhas que caíam da mesa do
rico... Até os cães iam lamber-lhe as chagas. Ora, aconteceu
morrer o mendigo e ser levado pelos anjos ao seio de Abraão.
Morreu também o rico e foi sepultado. estando ele nos
tormentos do inferno (Lc 16, 19-23a). Este rico era certamente
um daqueles que supõe ser mestre de seu próprio dinheiro e
não adminsitrador, e portanto ele imaginou não estar
ofendendo a Deus quando estava vestido de púrpura e linho, e
celebrava suntuosamente todos os dias, tinha seus cães e
bufões. Talvez tenha dito a si mesmo: eu gasto o meu dinheiro,
não ataco ninguém, eu não violo as leis de Deus, eu não
blasfemo nem juro em falso, observo os dias santos, honro pai e
mãe, não mato, não sou adultero, não roubo, não dou falso
testemunho, não desejo a mulher do próximo, nào faço nada
disto. Mas se é este caso, por que ele foi para o Inferno, ser
atormentado no fogo? Devemos reconhecer que aqueles
enganados, que supõe ser mestres absolutos de seu dinheiro,
devem responder por muitos graves pecados, que as Santas
Escrituras deveriam mencionar. Mas como nada mais é dito,
entendemos que os adornos supérfluos e caros, seus
magníficos banquetes, a multidão de servos e cães, enquanto
não possuía nenhuma compaixão pelo pobre é causa suficiente
para condená-lo aos tormentos eternos.

Portanto, podemos estabelecer uma regra clara para viver e


morrer bem, e sempre considerar que iremos prestar contas a
Deus de nosso palácios luxuosos, jardins, muitos servos,
esplendor nas vestimentas, banquetes, gastos desnecessários,
que afetam a multidão de pobres e doentes, que procuram
pelos nossos superfluos, que chorar a Deus, e no dia do
julgamento não pararão de clamar contra todos homens ricos,
até que sejam condenados às chamas eternas.
Três virtudes morais: piedade, justiça e sobriedade.
Embora as três virtudes teologais fé, esperança e caridade
incluam todas as regras para viver bem e, portanto, morrer
bem; o Espírito Santo, autor de todos os livros da Sagrada
Escritura, para melhor compreensão da necessária arte de viver
corretamente, acrescentou piedade, justiça e piedade, das
quais fala o apóstolo Paulo na Epístola a Tito: Manifestou-se,
com efeito, a graça de Deus, fonte de salvação para todos os
homens. Veio para nos ensinar a renunciar à impiedade e às
paixões mundanas e a viver neste mundo com toda sobriedade,
justiça e piedade, na expectativa da nossa esperança feliz, a
aparição gloriosa de nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo
(Tt 2, 11-13).

Este, portanto, é o sexto conselho para viver e morrer


corretamente: que negando a impiedade e os desejos do
mundo, nós vivamos sóbria, justa e piedosamente neste
mundo. Aqui um resumo para toda lei divina, reduzida a uma
curta sentença: Aparta-te do mal e faze o bem, para que
permaneças para sempre (Sl 36, 27). No mal há duas coisas; a
distância de Deus e proximidade com as criaturas, de acordo
com o profeta Jeremias: Porque meu povo cometeu uma dupla
perversidade: abandonou-me, a mim, fonte de água viva, para
cavar cisternas, cisternas fendidas que não retêm a água (Jr 2,
13). O que o homem deve fazer para afastar-se do mal? Ele
deve negar a impiedade e os desejos carnais. A impiedade nos
afasta de Deus e os desejos carnais nos tornam meras criaturas
do mundo. Para fazer o bem, nós devemos cumprir a lei e viver
sóbria, justa e piedosamente. Sóbrios em relação a nós, justos
em relação ao próximo, piedosamente em relação a Deus.

Mas nós entraremos um pouco mais em detalhes, com o


objetivo de facilitar a prática deste salutar conselho. O que é,
então, a impiedade? O contrário da piedade. O que é a
piedade? A virtude ou dom do Espírito Santo, pelo qual
reconhecemos o Senhor, adoramos a Deus e o veneramos como
nosso Pai. O Espírito Santo nos ajuda a compreendermos que se
desejarmos agradar a Deus, devemos cari de amores por ele
piedosamente a ponto de não admitir impiedade. Pois há
muitos cristãos que parecem ser piedosos rezando a Deus,
participando do adorável sacrifício, ouvindo sermões e
catequeses, mas, ao mesmo tempo, blasfemam contra Deus,
juram em falso ou quebram seus votos. E o que mais é isto
senão fingir ser piedoso, mas ao mesmo tempo ser impiedoso?

É proveitoso para aqueles que desejam viver corretamente,


adorar a Deus e negar toda impiedade. Sim, qualquer sombra
de impiedade. Pois será de pouco lucro ouvir a missa diária se
também blasfemar contra Deus ou jurar por seu santo nome,
Temos que cuidadosamente alertar que o apóstolo não diz
apenas para evitar a impiedade, mas toda impiedade, ou seja,
qualquer tipo de impiedade, nào apenas as mais graves, mas
também as leves. E isto é dito contra quem não hesita jurar sem
necessidade; quem em lugares sagrados olha para mulheres de
modo inconveniente, para não dizer lascivo; quem conversa
durante a missa; e comete outras ofensas; como se não
acreditasse que Deus está presente e observasse até mesmo os
mais leves pecados. Nosso Deus é um Deus ciumento: Não te
prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto. Eu sou o
Senhor, teu Deus, um Deus zeloso que vingo a iniqüidade dos
pais nos filhos, nos netos e nos bisnetos daqueles que me
odeiam, mas uso de misericórdia até a milésima geração com
aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos (Ex
20, 5-6).
Isto o próprio filho de Deus nos ensinou com seu exemplo.
Embora manso e humilde de coração, “ultrajado, não retribuía
com idêntico ultraje; ele, maltratado, não proferia ameaças”
(1Pe 2,23), mas quando “encontrou no templo os negociantes
de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas”,
com grande zelo, “fez ele um chicote de cordas, expulsou todos
do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo
chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos
que vendiam as pombas: Tirai isto daqui e não façais da casa de
meu Pai uma casa de negociantes”(Jo 2, 14-16). E isto ele fez
duas vezes no primeiro ano de sua pregação, e novamente no
último ano de seu ministério, de acordo com o testemunho dos
três evangelistas.

Vamos proceder agora para a segunda virtude, que direciona


nossas ações ao próximo. Esta é a virtude da justiça, da qual o
apóstolo fala que negando os desejos do mundo, vivemos
justamente. Aqui, no dito “afastai-vos do mal, fazei o bem” é
incluída; pois não é possível alcançar a verdadeira justiça para
com o próximo quando os desejos carnais prevalecem. Os
desejos carnais significam “a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a soberba da vida”(1Jo 2, 16). Estas
não são de Deus, mas do mundo. Assim como a justiça não
pode ser injusta, os desejos carnais não podem, de nenhuma
maneira, estarem unidos a verdadeira justiça. Uma criança
deste mundo pode, de fato, afetar a justiça em suas palavras,
mas não pode realizá-la em obras e verdade. O apóstolo diz que
não apenas devemos viver justamente, mas ele explicou que
devemos negar os desejos carnais, temos que compreender
que o veneno da concupiscência deve primeiro ser extirpado
antes que a boa árvore da justiça possa ser plantada em nosso
coração. Ninguém pode questionar o que significa viver
justamente, pois todos nós sabemos que a justiça nos leva a dar
a cada um o respeito devido, como diz o apóstolo: Pagai a cada
um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o imposto; o
tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem
deveis o temor e o respeito (Rm 13, 7). Para o comerciante,
devemos o preço acordado; para o trabalhor, seu salário; e
assim em todas atividades. E com muito maior razão aqueles a
que esta atribuída a administração dos bens públicos, devem
agir com a máxima atenção, não deixando-se influenciar por
pessoas, sejam parentes ou amigos próximos. Se, então, nós
desejamos aprender a arte de morrer justamente, ouçamos o
que diz o homem sábio clamando: "amai a justiça, vós que sois
juízes na terra". Escutemos São Tiago em sua epístola: Eis que o
salário, que defraudastes aos trabalhadores que ceifavam os
vossos campos, clama, e seus gritos de ceifadores chegaram aos
ouvidos do Senhor dos exércitos (Tg 5,4).
Agora falemos da terceira virtude, chamada sobriedade, para a
qual os desejos carnais não são menos contrários que para a
justiça. E aqui não entendemos a sobridade apenas como a
virtude contrária a bebedeira, mas como a virtude da
temperança ou moderação, que faz um homem regular os
desejos de seu corpo de acordo com a razão, não de acordo
com suas paixões. Atualmente esta virtude é raramente
encontrada entre os homens; os desejos carnais parecem
parecem ter se apoderado dos ricos deste mundo. Mas aqueles
que são sábios não seguem o exemplo dos tolos, embora estes
sejam quase inumeráveis, devemos seguir somente o exemplo
dos sábios. Salomão, que era certamente o mais sábio dos
homens, pediu a Deus: Eu te peço duas coisas, não mas negues
antes de minha morte: afasta de mim falsidade e mentira, não
me dês nem pobreza nem riqueza, concede-me o pão que me é
necessário, para que, saciado, eu não te renegue (Pv 30, 7-9a).
E o sábio apóstolo Paulo diz: Porque nada trouxemos ao
mundo, como tampouco nada poderemos levar. Tendo alimento
e vestuário, contentemo-nos com isto. (1 Tm 6,7-8).

Estas são palavras muito sábias, pois por que cuidarmos de


acumular riquezas, quando não podemos carregá-las conosco
para o lugar que a morte nos conduzir. Cristo, nosso Senhor era
mais sábio que Salomão e Paulo, pois ele era a Sabedoria
propriamente dita, também disse: Bem-aventurados os que têm
um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus! (Mt 5,
3) e de si mesmo: As raposas têm covas e as aves do céu,
ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça
(Lc 9, 5).Quanto mais devem ser verdadeiras estas palavras que
sai boca destes três sábios homens? E, se a isto acrescentarmos
que nossas desnecessárias riquezas não são nossas, mas
pertencem aos pobres, como é a opinião dos santos padres,
não são os homens estúpidos que cuidadosamente cuidam das
coisas da terra que irão ser condenados ao inferno?

E se, então, queremos aprender a arte de viver e morrer


corretamente, não sigamos a multidão que acredita e valoriza o
que vê, mas sigamos a Jesus Cristo e aos apóstolos, que pela
palavra e exemplo nos ensinaram que as coisas presentes
devem ser desprezadas e a glória do grande Deus e Salvador
Jesus Cristo deve ser desejada a esperada. E, verdadeiramente,
tão grande é esta glória, que esperamos pelo retorno de nosso
Senhor Jesus Cristo, que todas as glórias passadas, riquezas e
alegrias deste mundo, serão consideradas como nada, e
aqueles chamados tolos e infelizes, que confiaram em assuntos
tão importantes em palavras sábias, serão salvos.
Por que rezar?
A necessidade de oração é repetida tão insistentemente nas
Sagradas Escrituras que nada mais é mais claramente pedido
que este dever. Embora o Todo Poderoso conheça nossas
necessidades, como Nosso Senhor nos fala no Evangelho
segundo São Mateus, Ele deseja que peçamos, e pela oração
recebamos como que por mãos espirituais. Escuta Nosso
Senhor em São Lucas: é necessário orar sempre sem jamais
deixar de fazê-lo (Lc 18,1b) e vigiai, pois, em todo o tempo e
orai (Lc 21,36). Escuta o apóstolo: orai sem cessar (1Ts 5,17) e o
livro do Eclesiastico: nada te impeça de orar sempre (Eclo
18,22).

Estes preceitos não significam que não devemos fazer outra


coisa, mas somente que nunca devemos nos esquecer de tão
essencial exercício e fazer uso frequente dele. Isto Nosso
Senhor e seus apóstolos nos ensinaram, pois mesmo nunca
tendo deixado de rezar, não negligenciaram a pregação ao
povo, confirmando suas palavras com sinais e milagres. E deve-
se dizer que eles sempre rezavam e com muita frequencia.
Neste sentido devem ser compreendidas estas palavras: meus
olhos estão sempre fixos no Senhor (Sl 24,15) e também:
bendirei continuamente ao Senhor, seu louvor não deixará
meus lábios (Sl 33,2) e as palavras sobre os apóstolos:
permaneciam no templo, louvando e bendizendo a Deus (Lc 24,
53).
Os frutos da oração são três vantagens: mérito, perdão e graças.
Quanto ao mérito da oração, temos o testemunho de Cristo no
evangelho: Quando orardes, não façais como os hipócritas, que
gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas,
para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já
receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu
quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai,
que vê num lugar oculto, recompensar-te-á (Mt 6,5-6). Por estas
palavras, o Senhor proibe a prece em local público como
vanglória, para ser visto pelos outros. Caso contrário, podemos
rezar no templo e encontrar uma "quarto" em nosso coração e,
então, rezar para Deus "em segredo". As palavras
"recompensar-te-á" significam o mérito, pois como Ele disse
sobre os fariseus, já receberam sua recompensa, ou seja,
reconhecimento humano. Aquele que orar no silêncio de seu
coração, que olhar somente para o Senhor, devemos entender
que serão recompensadas pelo Pai que vêm em segredo.
Quanto ao perdão pelos pecados cometidos, conhecemos a
prática da Igreja, que quando o perdão é desejado, a oração
deve-se unir ao jejum e esmolas; embora muitas vezes jejum e
esmolas sejam esquecidos, a oração é essencial.

Enfim, pela oração podemos receber muitas graças, como nos


ensina São João Crisóstomo em seus escritos sobre a oração,
nos quais ele emprega uma comparação com as mãos humanas.
Embora o homem nasça nu e necessitado de todas as coisas,
não pode queixar-se do Criador, por que recebeu suas mãos, o
orgão acima de todos orgãos, através do qual podemos obter
alimento, casa e tudo mais. Do mesmo modo, o homem
espiritual não pode fazer nada sem a assistência divina; ele
possui o poder da oração, o orgão espiritual mais importante,
através do qual Deus pode facilmente prover todas as nossas
necessidades.
Seis condições para a oração correta

Vamos agora falar do método para rezar corretamente,


necessário para a arte de viver corretamente e, por
conseqüência, morrer corretamente. Comecemos pelo que diz
o Senhor: Pedi e se vos dará. Buscai e achareis (Mt 7,7). São
Tiago, em sua epístola, explica que a frase deve ser
compreendida com uma condição: se nós pedirmos
propriamente: Pedis e não recebeis, porque pedis mal (Tg 4,3).
Devemos entender da seguinte maneira: aquele que pedir os
dons para viver de maneira justa, sem dúvida será atendido; e
aquele que pedir por perseverança na vida até a sua morte, e
pedir por uma morte feliz, também com certeza obterá.
Portanto, nós explicaremos as condições da oração, para que
saibamos rezar bem, viver bem e morrer bem.

A primeira condição é a fé, de acordo com as palavras do


apóstolo: Porém, como invocarão aquele em quem não têm fé?
(Rm 10,14a), com as quais São Tiago concorda: mas peça-a com
fé, sem nenhuma vacilação (Tg 1,6a). Mas a necessidade de fé
não deve ser entendida como se fosse importante acreditar que
Deus deva certamente atender ao que é pedido, pois neste caso
nossa fé seria provada falsa e então não obteríamos nada.
Devemos acreditar que Deus é mais poderoso, mais sábio e
mais digno de fé; e que Ele sabe, que tem poder e está
preparado para atender nossos pedidos, se entendê-lo
apropriado e útil para nós, receberemos o que pedimos. Esta fé
Cristo pediu aos dois homens cegos que curou: Credes que eu
posso fazer isso? (Mt 9, 28) Com a mesma fé Davi rezou pelo
seu filho adoentado, como provam suas palavras, pois ele
acreditava não ser seguro que Deus atenderia suas preces, mas
que somente Deus seria capaz de conceder tal graça: Quem
sabe, talvez o Senhor terá pena de mim e o menino ficará bom?
(2Sm 12,22) Disto não se pode duvidar. Com a mesma fé o
apóstolo Paulo rezou para se livrar de um "espinho na carne".
Pois o apóstolo rezou com fé, e sua fé não era falsa se ele
acreditava que Deus poderia lhe conceder a cura que pedia,
embora não tenha obtido o que pedia. E com a mesma fé a
Igreja pede por todos heréticos, pagãos, cismáticos e maus
cristãos que possam ser converter, e, no entanto, é certo que
nem todos se converterão.

Outra condição muito necessária para rezar é a esperança. Pois


ainda que pela fé, que é conseqüência da compreensão, nós
não acreditemos que Deus atenderá nossos pedidos; pela
esperança, que é um ato de desejo, podemos firmemente nos
apoiar na bondade divina e termos confiança que Deus poderá
nos atender. Esta condição Deus requer do paralítico, para
quem diz: Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados
(Mt 9,2). O mesmo pede o apóstolo para todos, quando diz:
Aproximemo-nos, pois, confiantemente do trono da graça, a fim
de alcançar misericórdia e achar a graça de um auxílio oportuno
(Heb 4,16). E muito antes dele, o profeta apresenta Deus,
falando: Quando me invocar, eu o atenderei; na tribulação
estarei com ele (Sl 90,15). Mas como a esperança brota da fé
perfeita, quando a Escritura requer fé nas grandes coisas, ela
acrescenta algo sobre esperança. Assim lemos em São Marcos:
Em verdade vos declaro: todo o que disser a este monte:
Levanta-te e lança-te ao mar, se não duvidar no seu coração,
mas acreditar que sucederá tudo o que disser, obterá esse
milagre (Mc 11,23). Que a fé produz confiança, podemos
entender destas palavras do apóstolo: mesmo que tivesse toda
a fé, a ponto de transportar montanhas (1Co 13,2b). João
Cassiano escreve em seu Tratado sobre a Oração que um sinal
certo que nossos pedidos serão atendidos, ocorre quando em
oração, nós não duvidamos que Deus certamente nos atenderá,
e não hesitamos de nenhuma maneira, mas derramos nossas
orações com alegria espiritual.

A terceira condição é a caridade, pela qual nos libertamos dos


pecados; pois os amigos de Deus obtém os seus dons. Assim
fala Davi em um Salmo: Os olhos do Senhor estão voltados para
os justos, e seus ouvidos atentos aos seus clamores (Sl 33,15). e
em outro: Se eu intentasse no coração o mal, não me teria
ouvido o Senhor (Sl 65, 18). E no Novo Testamento, o Senhor
mesmo confirma: Se permanecerdes em mim, e as minhas
palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes
e vos será feito (Jo 15,7). E o amado discípulo fala: Caríssimos,
se a nossa consciência nada nos censura, temos confiança
diante de Deus, e tudo o que lhe pedirmos, receberemos dele
porque guardamos os seus mandamentos e fazemos o que é
agradável a seus olhos (1Jo 3,21-22).

Isto não é contrário à doutrina. Quando o publicano suplica por


perdão de seus pecados, ele retorna para casa "justificado";
pois um pecador arrependido não obtém perdão por ser
pecador, mas por estar arrepedido; pois como pecador ele é
inimigo de Deus; como penitente, amigo de Deus. Aquele que
peca, desagrada a Deus; mas quem se arrepende de seus
pecados, faz o que mais agrada ao Senhor.

A quarta condição é a humildade, pela qual o suplicante, confia


não em sua própria justiça, mas na bondade de Deus: Fui eu
quem fez o universo, e tudo me pertence, declara o Senhor. É o
angustiado que atrai meus olhares, o coração contrito que teme
minha palavra (Is 66,2). E o Livro do Eclesiástico acrescenta: A
oração do humilde penetra as nuvens; ele não se consolará,
enquanto ela não chegar (a Deus), e não se afastará, enquanto
o Altíssimo não puser nela os olhos (Eclo 35,21).

A quinta condição é a devoção, pela qual não devemos rezar de


maneira negligente, como muitos costumam fazer, mas com
atenção, sinceridade, diligência e fervor. Nosso Senhor
severamente adverte aqueles que rezam apenas com os lábios.
Assim Ele nos fala em Isaias: O Senhor disse: Esse povo vem a
mim apenas com palavras e me honra só com os lábios,
enquanto seu coração está longe de mim (Is 29, 13). Esta
virtude é fruto de uma fé viva e consiste não apenas no hábito
de orar, mas na ação. Para aqueles que com fé firme e atenção
consideram a grandeza de Sua Majestade Nosso Senhor, quão
grande é nossa insignificância, e como são importantes nossos
pedidos, não pode fazer diferente que rezar com grande
humildade, reverência, devoção e fervor.

Aqui devemos acrescentar o testemunho importante de dois


santos padres. São Jerônimo escreve: começo pela oração: não
devo orar se não acreditar; mas se eu tiver fé verdadeira, este
coração, que Deus vê, posso limpá-lo; posso bater no peito,
posso molhar minhas faces com minhas lágrimas, posso
negligenciar toda atenção ao meu corpo e tornar-me fraco;
posso me jogar aos pés do meu Senhor, molhá-los com minhas
lágrimas e secá-los com meus cabelos; me apoiar na cruz, e não
abandoná-la enquanto não obtiver misericórdia. Porém mais
frequentemente durante minhas orações encontro-me
caminhando pela cidade e sendo levado por pensamentos
maus, entretenho-me em coisas das quais me envergonho de
falar. Onde está nossa fé? Supomos que Jonas rezou assim? Os
três jovens? Daniel na cova dos leões? Ou o bom ladrão na
cruz?

São Bernardo, no seu Sermão sobre os Quatro Métodos da


Oração, escreve: sobretudo nos impele, durante o tempo de
oração, entrar no quarto celestial, no qual o Rei dos Reis
encontra-se sentado em seu trono, cercado por inumerável e
glorioso exército de almas abençoadas. Com tal reverência, tal
temor, tal humildade, nos aproximamos com pó e cinzas, nós
que não somos nada além de pequenos insetos rastejantes.
Com tal temor, seriedade, atenção e solicitude deve tão
miserável homem estar próximo da divina majestade, na
presença de anjos, na assembléia dos justos? Em todas nossas
ações temos necessidade de vigilância, especialmente na
oração.

A sexta condição é a perseverança, que nosso Senhor em duas


parábolas recomenda: uma sobre o amigo importuno que pede
dois pães em um horário inconveniente, no meio da noite, e
recebe pela sua perserverança (Lc 11,5-8); outra sobre a viúva
que pede sem esmorecer para que o juiz a livre de seu
adversário; e o juiz, embora sendo iníquo, homem que não
temia nem Deus nem os homens, sobrepujado pela
perseverança da mulher, livrou-a de seu inimigo. Destes
exemplos o Senhor conclui, que muito mais perseverantes
devemos ser na oração a Deus, porque ele é justo e
misericordioso. E São Tiago completa: Deus concede
generosamente a todos, sem recriminações (Tg 1,5). Ou seja,
ele concede seus dons liberalmente a todos que pedem, e "sem
recriminações" por serem inoportunos, pois Deus não tem
limites em suas riquezas nem em sua misericórdia.
A importância do jejum
Seguindo a ordem dada pelo anjo, agora falaremos sobre o
jejum. Nossa intenção é explicar a arte de viver justamente,
porque nos preparará para morrermos justamente. Para jejuar
de maneira correta, três coisas são suficientes, assim como
escrevemos sobre a oração: a necessidade, os frutos e um
método apropriado.

A necessidade de jejuar é dupla, derivada da lei humana e


divina. Da divina, nos fala o profeta Joel: Por isso, agora ainda -
oráculo do Senhor -, voltai a mim de todo o vosso coração, com
jejuns, lágrimas e gemidos de luto (Jl 2,12). A mesma linguagem
utiliza o profeta Jonas, que testemunha sobre os ninivitas, que
para acalmar a ira de Deus, proclama um jejum; e, no entanto,
na época não havia nada dito sobre jejum na lei. Da mesma
forma aprendemos das palavras de Nosso Senhor: Quando
jejuares, perfuma a tua cabeça e lava o teu rosto. Assim, não
parecerá aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai que
está presente ao oculto; e teu Pai, que vê num lugar oculto,
recompensar-te-á. (Mt 6,17-18).

Profeta Jonas, ícone da Igreja Ortodoxa


Russa, pintado no século XVI (Monastério
de Khizi, Karelia, Russia)
Podemos acrescentar as palavras de um dos santos padres,
Santo Agostinho, que fala: "nos Evangelhos e epístolas, ao longo
de todo Novo Testamento, eu vejo o jejum como um preceito.
Mas em certos dias nos é dito para não jejuarmos; e os dias em
que devemos jejuar não está definido pelo Senhor ou
apóstolos." São Leão (Papa Leão I) diz em seu sermão sobre o
jejum: "aquilo que era figura das coisas futuras foram deixadas,
uma vez que o seu significado foi realizado. Mas a utilidade de
jejuar não passou com o Novo Testamento; deve ser
piedosamente observado, pois o jejum é sempre lucro para a
alma e o corpo". As palavras "Adorarás o Senhor teu Deus e a
ele só servirás" (Lc 4,8) foram dadas aos primeiros cristãos. São
Leão não quer dizer que os cristãos devem jejuar da mesma
maneira que os judeus estavam acostumados. Mas, que o
preceito dado aos judeus deve ser observado também pelos
cristãos seguindo a determinação dos pastores da igreja quanto
ao tempo e maneira.

Os frutos e as vantagens do jejum são facilmente provadas.


Primeiro, é útil porque ajuda a preparar a alma para a oração e
contemplação das coisas divinas, com disse o anjo Rafael: a
oração é boa com jejum. Moisés por quarenta dias preparou
sua alma jejuando, antes de falar com Deus; Elias jejuou por
quarenta dias, com o objetivo de estar pronto, tanto quanto
permite as limitações humanas, para conversar com Deus; e
Daniel, por um jejum de três semanas, estava preparado para
receber as revelações de Deus. A Igreja definiu jejuns nas
vigílias de grandes festividades, para que os cristãos estejam
prontos ao celebrar as solenidades divinas. Os santos padres
falam desta utilidade do jejum. Não posso deixar de citar São
João Crisóstomo: o Jejum é um suporte para a alma, nos dá
asas para subir aos céus e apreciar as mais altas contemplações.

Outra vantagem do jejum é que sacrifica a carne; e tal jejum é


particularmente agradável a Deus, pois a Ele agrada quando
crucificamos a carne, com seus vícios e concupicências, como
São Paulo nos ensina na Epístola aos Gálatas e diz sobre si
mesmo: Ao contrário, castigo o meu corpo e o mantenho em
servidão, de medo de vir eu mesmo a ser excluído depois de eu
ter pregado aos outros (1Co 9,27). De maneira semelhante
falam Teófilo, São Ambrósio, São Cipriano, São Basílio, São
Jerônimo e Santo Agostinho. E nos ofício das orações, a Igreja
canta: "Carnis terat superbiam potûs cibique Parcitas."
(Moderação na bebida e comida sacrificam o orgulho da carne).

Outra vantagem é que honramos Deus em nossos jejuns,


porque quando jejuamos em sua intenção, nos o honramos.
Assim fala o apóstolo Paulo na Epístola aos Romanos: Eu vos
exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes
vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este
o vosso culto espiritual (Rm 12,1). Deste culto espiritual, São
Lucas fala quando menciona a profetisa Ana: Depois de ter
vivido sete anos com seu marido desde a sua virgindade, ficara
viúva, e agora com oitenta e quatro anos não se apartava do
templo, servindo a Deus noite e dia em jejuns e orações (Lc
2,37). O grande Concílio de Nicéia no V Canon, pede jejum
durante a Quaresma, como um presente solene oferecido pela
Igreja para Deus. Da mesma maneira escreve Tertuliano no seu
livro "Ressureição da Carne", onde ele chama alimentos secos e
já sem sabor tomados tardiamente como sendo sacrifícios
agradáveis a Deus; e São Leão I, no segundo sermão sobre o
jejum fala que para seguramente receber todo os frutos do
jejum, o sacrifício de abstinência é mais valioso quando
oferecido para Deus, aquele que nos dá tudo que precisamos.

A quarta vantagem do jejum é ser realizado como penitência


por um pecado. Muitos exemplos na Sagradas Escrituras
provam este ponto. Os ninivitas agradaram a Deus pelo jejum,
como testifica Jonas. Os judeus fizeram o mesmo, jejuando com
Samuel ganharam a vitória sobre os inimigos. O ímpio rei Acab,
jejuando e vestindo roupa de sacos, satisfez parcialmente a
Deus. Nos tempos de Judite e Ester, os judeus obtiveram
misericórdia de Deus por nenhum outro sacrifício além de
jejuns, choros e lutos.

Por fim, jejuar é meritório e muito poderoso para obter favores


divinos. Ana, embora já com o ventre seco, mereceu por jejuns
ter um filho. São Jerônimo interpreta assim esta passagem: ela
chorou e não tomou alimentos e então Ana, por sua
abstinência, mereceu dar à luz um filho. Sara, por um jejum de
três dias, libertou-se de um demônio, como podemos ler no
livro de Tobias. Mas também há uma passagem importante no
Evangelho de São Mateus: Quando jejuares, perfuma a tua
cabeça e lava o teu rosto. Assim, não parecerá aos homens que
jejuas, mas somente a teu Pai que está presente ao oculto; e
teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á (Mt 6,17-
18).

As palavras "recompensar-te-á" indica que dará um prêmio; em


oposição a outra palavra: Quando jejuardes, não tomeis um ar
triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido
para manifestar aos homens que jejuam. Em verdade eu vos
digo: já receberam sua recompensa (Mt 6,16). Pois os hipócritas
ao jejuarem, recebem seu prêmio, ou seja, a admiração
humana; os justos também recebem seu prêmio, o
reconhecimento divino.
O Modo de Jejuar
Agora explicarei brevemente a maneira pela qual devemos
jejuar, para que nosso jejum seja proveitoso e útil, nos conduza
à uma vida justa, e, por conseqüência, à uma morte justa.
Muitos jejuam em todos os dias indicados pela Igreja: nas
vigílias, dias de semana e durante a Quaresma. Alguns jejuam
também durante o Advento, prepararando-se piedosamente
para a Natividade de Nosso Senhor; ou nas sextas-feiras, em
memória da paixão de Cristo; ou aos sábados, em honra a
Nossa Senhora Virgem Mãe de Deus. Mas, qualquer que seja o
motivo, é questionável se estão aproveitando bem as vantagens
do jejum. O principal objetivo do jejum é a mortificação da
carne e que o espírito seja fortalecido. Com este propósito,
devemos nos restringir apenas à dietas não prazerosas. Assim
nossa mãe a Igreja nos orienta a termos apenas uma refeição
completa por dia, e sem comer carnes vermelhas ou brancas e
partir apenas ervas ou frutas.

Cristo no Deserto.
Pintura de Moretto da Brescia, (Metropolitam
Museum of Art/NY)
Tertuliano assim qualifica em duas palavras, no seu livro "A
Ressureição da Carne", quando chama o limento daqueles que
jejuam como "refeições tardias e secas". Há aqueles que
certamente não observam estes preceitos, que nos dias de
jejum comem em apenas uma refeição tudo que comeriam
durante num dia normal, que almoçam e jantam ao mesmo
tempo, que para apenas uma refeição preparam tantos pratos
de diferentes peixes e outras coisas agradáveis, que não parece
algo para piedosos jejuadores, mas um banquete nupcial que
continua através da noite. Estes que assim jejuam, certamente
não aproveitam os benefícios do jejum.

Também não obtém os frutos de um jejum piedoso quem,


apesar de comer moderadamente, nos dias de jejum não se
abstem de jogos, festas, disputas, discussões, músicas lascivas,
e atitudes imoderadas; ou ainda pior, cometem crimes como se
fossem dias comuns. Escutem o que diz o profeta Isaias sobre
este tipo de pessoas: De que serve jejuar, se com isso não vos
importais? E mortificar-nos, se nisso não prestais atenção? É
que no dia de vosso jejum, só cuidais de vossos negócios, e
oprimis todos os vossos operários. Passais vosso jejum em
disputas e altercações, ferindo com o punho o pobre. Não é
jejuando assim que fareis chegar lá em cima vossa voz. (Is 58, 3-
4) Então o Todo-Poderoso corrige o povo, porque nos dias de
jejum, preferem fazer a sua vontade e não a vontade de Deus;
por que não perdoam seus devedores, como rezam para serem
perdoados por Deus; não são capazes nem de esperar para
cobrar seu dinheiro. Também passam o tempo que deveria ser
utilizado em orações ocupados em disputas e discussões. Assim
agindo, ao invés de ocuparem o dia atendendo coisas
espirituais, como deve-se fazer em dias de jejum, eles estão
somando pecados novos aos pecados anteriores, atacando ao
próximo.

Estes e outros pecados devem ser evitados por pessoas


piedosas, que desejam que seu jejum agrade a Deus e seja útil
para si mesmo. Estes poderão ter esperança em uma vida justa
e em um dia, morrer de maneira santa.
Os frutos da esmola
Em primeiro lugar, ninguém duvida que as Sagradas Escrituras
pedem esmolas. A sentença que nosso supremo e justo Juiz
proferirá contra os ímpios no último dia é suficiente, mesmo
supondo que não tenha nada mais contra nós: Retirai-vos de
mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e
aos seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer;
tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me
acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não
me visitastes (Mt 25,41-43). E um pouco depois: Em verdade eu
vos declaro: todas as vezes que deixastes de fazer isso a um
destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer (Mt
25,45).

Se não há muito a dizer sobre a necessidade de dar esmolas, há


muito mais sobre os frutos, pois estes são abundantes.
Primeiro, esmolas salvam a alma da morte eterna, sejam elas
uma forma de satisfação ou disposição de receber as graças.
Esta doutrina é claramente ensinada nas Sagradas Escrituras.
No livro de Tobias podemos ler: a esmola livra do pecado e da
morte, e preserva a alma de cair nas trevas (Tb 4,11); no
mesmo livro, o anjo Rafael afirma: a esmola livra da morte: ela
apaga os pecados e faz encontrar a misericórdia e a vida eterna
(Tb 12,9). E Daniel disse ao rei Nabucodonosor: Queiras então,
ó rei, aceitar meu conselho: resgata teu pecado pela justiça, e
tuas iniqüidades pela piedade para com os infelizes; talvez com
isso haja um prolongamento de tua prosperidade (Dn 4,24 ).

Esmolas também, se dadas por um homem justo, e com


verdadeira caridade, são meritórias para a vida eterna: isto o
Juiz dos vivos e mortos pode testemunhar: Vinde, benditos de
meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a
criação do mundo, porque tive fome e me destes de comer; tive
sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e
me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes
a mim (Mt 25, 34-36). E logo após: Em verdade eu vos declaro:
todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes (Mt 25,41).

Maria Madalena aos pés de Jesus

Em terceiro lugar, esmolas são como um batismo, porque levam


consigo tanto os pecados quanto a punição, de acordo com as
palavras do Eclesiástico: A água apaga o fogo ardente, a esmola
enfrenta o pecado (Eclo 3,33). A água extingue completamente
o fogo, de tal modo que a fumaça permanece. Desta maneira
ensinam muitos dos Santos Padres, como São Cipriano, São
Ambrósio, São João Crisóstomo e São Leão, cujas palavras é
desnecessário citar. Esta, portanto, é uma grande vantagem,
que pode inflamar em todos os homens o amor às esmolas.
Mas isto não pode ser entendido de qualquer modo, mas
apenas aquelas que são procedidas de grande contrição e
caridade, tais como Santa Maria Madalena, que, em lágrimas de
verdadeira contrição, lavou os pés do Senhor; e tento comprado
o mais precioso perfume, derramou-o sobre Seus pés.
Em quarto lugar, as esmolas aumentam a confiança em Deus e
produzem alegria espiritual; embora isto seja comum a outras
obras de caridade, dá-se de modo particular com as esmolas,
pois através delas prestasse um serviço especial a Deus e aos
irmãos, e esta obra é claramente reconhecida como boa. Daí a
palavra de Tobias: A esmola será para todos os que a praticam
um motivo de grande confiança diante do Deus Altíssimo (Tb
4,12). E o apóstolo, na sua Epístola aos Hebreus, diz: Não
percais esta convicção a que está vinculada uma grande
recompensa (Hb 10, 35). São Cipriano, no Sermão sobre as
Esmolas, a chama de "grande conforto dos fiéis".

Em quinto lugar, as esmolas conciliam a boa vontade de muitos


que rezam por seus benfeitores e obtém para eles tanto a graça
da conversão, ou o dom da perseverança, ou um aumento de
méritos e glória. De todas estas maneiras devem ser
compreendidas estas palavras do Nosso Senhor: fazei-vos
amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos
faltar, eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16,9).

Em sexto lugar, as esmolas demonstram disposição para


receber a graça da justificação. Deste fruto Salomão nos fala no
livro dos Provérbios, onde afirma: É pela bondade e pela
verdade que se expia a iniqüidade (Pv 16,6a). E quando Cristo
ouviu falar da liberalidade de Zaqueu: Senhor, vou dar a metade
dos meus bens aos pobres e, se tiver defraudado alguém,
restituirei o quádruplo. Disse-lhe Jesus: Hoje entrou a salvação
nesta casa (Lc 19, 9b-10a). Também lemos nos Atos dos
Apóstolos o que foi dito à Cornélio, que ainda não era um
cristão, mas deu grandes esmolas: As tuas orações e as tuas
esmolas subiram à presença de Deus como uma oferta de
lembrança (At 10,4). Deste ponto Santo Agostinho prova que
Cornélio, pelas suas esmolas obteve de Deus a graça da fé e
perfeita justificação.

Por fim, esmolas são um instrumento para aumentar os bens


materiais. Isto afirma o homem inteligente: Quem se apieda do
pobre empresta ao Senhor, que lhe restituirá o benefício (Pv
19,17). E também: O que dá ao pobre, não padecerá penúria
(Pv 28,27). Jesus nos ensinou esta verdade pelo seu próprio
exemplo, quando ordenou a seus discípulos que distribuíssem
os cinco pães e dois peixes; em retorno receberam doze cestos,
dos quais serviram-se por muitos dias. Tobias também distribui
fartamente aos pobres e, em curto espaço de tempo, obteve
grandez riquezas. A viúva de Sarepta, deu a Elias apenas um
refeição e um pouco de óleo, obeteve de Deus por este ato de
caridade, abundância de alimentos e óleo, que por longo tempo
não terminaram.
Como dar esmolas
Agora iremos discutir um pouco o método de dar esmolas; pois
é especialmente necessário para viver bem e ter uma morte
feliz.

Primeiro, devemos dar esmolas com pura intenção de agradar a


Deus e não obter reconhecimento humano. Isto Nosso Senhor
nos ensina quando diz: Quando, pois, der esmola, não toques a
trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e
nas ruas, para serem louvados pelos homens.Quando deres
esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita.
(Mt 6,2-3). Santo Agostinho expõe esta passagem assim: a mão
esquerda significa a intenção de dar esmolas para obter honras
mundanas e outras vantagens temporais; a mão direita significa
a intenção de conceder esmolas para ganahr a vida eterna, ou
para glória de Deus, e por caridade ao próximo.

Segundo, nossas esmolas devem ser dadas pronta e


voluntariamente, tal que não pareça ter sido extorquida através
de súplicas, nem adiada dia após dia. O homem sábio diz: Não
digas ao teu próximo: Vai, volta depois! Eu te darei amanhã,
quando dispões de meios (Pv 3,28). Abraão, temente a Deus,
pediu aos anjos para ir à casa dele, não esperou que lhe
pedissem, e disse a Ló para fazer o mesmo. E lemos que Tobias
também não esperou que o pobre viesse a ele, mas procurou-
os por si mesmo.

Terceiro, devemos das esmolas com alegrias, não tristeza. O


Eclesiástico diz para mostrar contentamento. São Paulo escreve:
Dê cada um conforme o impulso do seu coração, sem tristeza
nem constrangimento. Deus ama o que dá com alegria (2 Cor
9,7).

Quarto, nossas esmolas devem ser dadas com humildade, pois


o homem rico deve lembrar que recebe muito mais do que el
dá. Sobre este ponto, São Gregório fala: quando der bens
terrenos, o homem encontrará muito proveito em controlar seu
orgulho e relembrar cuidadosamente as palavras de seu Mestre
celestial: eu vos digo: fazei-vos amigos com a riqueza injusta,
para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos
tabernáculos eternos (Lc 16,9). Para através de suas amizades
adquirir tabernáculos eternos, aqueles que dão, sem dúvida,
devem lembrar de oferecer seus dons para os pobres, não para
os ricos.
Em Jope havia uma discípula chamada Tabita - em
grego, Dorcas. Esta era rica em boas obras e
esmolas que dava (At 9,36).
Quinto, nossas esmolas devem ser dadas abundantemente, em
proporção aos nossos bens. Assim fez e nos ensinou Tobias, o
mais generoso em dar esmolas: se tiveres muito, dá
abundantemente; se tiveres pouco, dá desse pouco de bom
coração (Tb 4,9). E o apóstolo ensina que as esmolas devem ser
dadas para alcançar a benção, não com avareza. São João
Crisóstomo acrescenta: não apenas dar, mas dar
abundantemente, isto é esmola. E, no mesmo sermão, repete:
aqueles que desejam ser ouvidos por Deus quando dizem
"tenha piedade de mim, oh Deus", de acordo com a divina
misericórdia, devem ter misericórdia para com os pobres, na
medida de suas posses.

Por fim, acima de todas as coisas, quem desejar ser salvo e ter
uma boa morte, diligentemente deve perguntar-se, através de
leituras e meditações, ou consultando homens santos e sábios,
se suas supérfluas riquezas podem ser mantidas sem cometer
pecado, ou se devem dá-las para os pobres; o que deve ser
compreendido como supérfluo e quais são os bens necessários.
Pode ocorrer que algumas riquezas moderadas sejam
supérfluas, enquanto outras grandes riquezas seja
absolutamente essenciais.

E desde que este tratado não requer estudos escolásticos


aprofundados, irei brevemente citar algumas passagens da
Escritura e Santos Padres. As Escrituras dizem: não podeis servir
a Deus e à riqueza (Mt 6,24) e quem tem duas túnicas dê uma
ao que não tem; e quem tem o que comer, faça o mesmo (Lc
3,11). E no capítulo 12 de São Lucas é dito sobre quem tem
grandes riquezas, que nem sabe o que fazer com elas:
Insensato! Nesta noite ainda exigirão de ti a tua alma. E as
coisas, que ajuntaste, de quem serão? (Lc 12,20). Santo
Agostinho explica que estas palavras indicam que o homem rico
perecerá porque não sabe utilizar suas riquezas supérfluas.

São João Crisóstomo afirma em sua 34a. homília ao povo de


Antioquia: tens algumas posses? O interesse dos pobres está
confiado a ti, sejam teus bens frutos de justos trabalhos ou
herdados de teus pais. São Agostinho, nos Comentários sobre o
Salmo 147: nossos bens supérfluos pertencem aos pobres; se
não forem dados a eles, nós possuímos o que não temos
direito. São Leão fala: bens temporais são dados para nós pela
liberalidade de Deus, e Ele pedirá contas deles, pois foram
concedidos a nós. São Tomás ensina que as riquezas temporais
que possuímos, por lei natural pertencem aos pobres. E
também que o Senhor nos pede para dar aos pobres não
apenas a décima parte, mas todos bens supérfluos. O mesmo
autor assegura que esta é a opinião comum de todos teólogos.
E acrescento também, que se alguém quiser obedecer
estritamente a letra da lei, não é apenas convidado a dar seus
bens para os pobres, é obrigado a fazê-lo pela lei da caridade,
pois tanto faz se escaparmos do inferno por seguirmos a lei ou
por verdadeira caridade.

-- Do Livro A Arte de Morrer Bem, de São Roberto Belarmino,


bispo (século XVIII)

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