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História das mulheres, gênero e raça – Isadora Moraes

Introdução

Segundo Mary Del Priore (2017), a história das mulheres não é só delas, é
também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história
do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram. É a
história da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos.

A história das mulheres é relacional, inclui tudo que envolve o ser humano, suas
aspirações e realizações, seus parceiros e contemporâneos, suas construções e derrotas.
Para que serve a história das mulheres? Para fazê-las existir, viver e ser.

Não se trata de uma história de heroínas ou mártires. Trata-se de enfocar as


mulheres através das tensões e das contradições que se estabeleceram entre elas e seu
tempo, entre elas e as sociedades nas quais estavam inseridas. Trata-se de desvendar as
intricadas relações entre a mulher, o grupo e o fato, mostrando como o ser social, que
ela é, articula-se com o fato social que ela também fabrica e do qual faz parte integrante.

**

A história das mulheres, sugerindo que ela faz um a modificação da “história”,


investiga o modo como o significado daquele termo geral foi estabelecido. Questiona a
prioridade relativa dada à “história do homem”, em oposição à “história da mulher”,
expondo a hierarquia implícita em muitos relatos históricos (Scott 1992: 78).

A pesquisa feminista recente por vezes contribuiu para uma reavaliação do poder
das mulheres. Em sua vontade de superar o discurso miserabilista da opressão, de
subverter o ponto de vista de dominação, ela procurou mostrar a presença, a ação das
mulheres, a plenitude dos seus papéis, e mesmo a coerência de sua ‘cultura’ na
existência de seus poderes (Perrot 1988)

A história das mulheres mudou. Em objetos seus, em seus pontos de vista. Partiu
de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a
uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da
guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma
história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança. (Perrot
2007: 15-16)
Decerto, há um avanço significativo no debate empreendido acerca da presença
pública de mulheres e da sua inserção e participação nos mercados de trabalho. Embora
ainda encontremos disparidade no que tange a temática do trabalho em se tratando de
sexo e gênero, raça e classe. Por isso, considero importantes as análises que almejam
dar visibilidade às experiências de trabalhadoras e que alarguem o entendimento acerca
do tema.

Em Antropologia “estudos da mulher” não são o mesmo que “estudos de


gênero”. No ínterim do debate que empreendem tais estudos, de um lado encontram-se
críticas aos estudos sobre mulheres, pois eles podem ser vistos apenas como identitários
com possibilidades de formação de teorias consideradas parciais. Por outro lado, sobre
os estudos de gênero, alega-se que estes não têm capacidade de compreender sujeitos
concretos (Kofes 1992:20).

De modo geral, “Gênero” relaciona-se com uma estrutura de poder que cria
corpos hierarquizados e que por meio da cultura se institucionaliza e, por conseguinte,
permeia todas as relações sociais. “Mulher” tem a ver com uma percepção dos corpos
em termos biológicos cujas bases são fincadas, especialmente, em torno da reprodução
da espécie.

O debate é complexo e as teorias são múltiplas. Para a historiadora Joan Scott


(1990) gênero é uma categoria de análise, a qual pode ser utilizada para analisar Mulher
como grupo ou categoria. Por isso que, como forma de mediar tais diferenças
epistemológicas, Suely Kofes propõe que Mulher pode ser considerada uma categoria
dentre outras possíveis nas distinções feitas a partir do gênero. Visto que as categorias
“mulher” ou “homem” são mais restritas que as categorias “feminino” ou “masculino”,
portanto as primeiras podem ser integradas às segundas. Mais que isso, para a referida
autora:

Desta forma, não haveria oposição, exclusão ou substituição (mulher e/ou


gênero, gênero por mulher) mas gênero seria um instrumento que mapeia um campo
específico de distinções, aqueles cujos referentes falam da distinção sexual. Quer onde
estão sujeitos concretos, substantivos, homens e mulheres, quer onde nem mesmo
encontremos estes sujeitos. Mas, claro, essa relação ainda instiga, do meu ponto de
vista, interrogações e pesquisas (KOFES 1992:29).
No decorrer do século XIX discursos higienistas eram frequentemente abraçados
e divulgados pelos médicos da época. Tais discursos continham fortes conotações
raciais. Sobre o aleitamento materno, por exemplo, o jornal “A mãi de família”
censurava as mães que entregavam seus filhos às amas de leite, ou seja, entregava-os às
mulheres negras escravizadas. Contra isso, valorizava-se aleitamento materno, pois
“garantia que as crianças brancas não fossem amamentadas por mulheres racialmente
inferiores, haja vista a crença de o leite transmitir qualidades morais aos bebês” (Carula
2016: 282).

Mulheres são o Outro em relação aos homens (Strathern 2009), mas também são
diferentes entre si. A discussão anterior nos mostra que mulheres brancas e mulheres
negras possuíam preocupações diferentes; a primeira era cobrada de ser uma “boa” mãe;
a segunda, era escravizada, desenvolvia o papel de mãe (conforme veremos com
Gonzalez), e ainda era acusada de infectar moralmente crianças por meio do seu leite.

No que tange às diferentes problemáticas de mulheres brancas e negras, nos


Estados Unidos na década de 1980, Davis (2017) aponta que o foco de mulheres
brancas era o processo de conscientização política e o de mulheres negras era o
emprego, na medida em que:

As questões econômicas certamente não parecem tão centrais para mulheres


brancas de classe média quanto para mulheres cujas crianças podem se tornar
irreparavelmente desnutridas caso elas não consigam encontrar um emprego. [...] A
reivindicação de empregos, o combate ao fechamento de fábricas e a repressão aos
sindicatos – essas são lutas das mulheres (Davis 2017: 34).

Nas primeiras décadas do século XX, devido à industrialização brasileira, grande


parte do proletariado passou a ser constituído por mulheres e crianças. De acordo com
Rago (2017), as trabalhadoras do período eram percebidas de diferentes modos: frágeis
e infelizes, perigosas e indesejáveis, passivas e inconscientes, perdidas e degeneradas.
Tais qualificações estão atreladas à visão masculina da identidade de mulheres
trabalhadoras, e não com a percepção enquanto sujeito social, sexual e individual (Rago
2017: 579).

Assim, a noção de “força de trabalho” ocupa um lugar central quando se trata da


exploração das mulheres (Guillaumin 2014: 32), ora quando sua força de trabalho é
vendida nos termos do mercado (com menor remuneração), ora em se tratando do
trabalho doméstico realizado sem salário.

Os efeitos do sexismo são particularmente violentos em se tratando de mulheres


negras. Lélia Gonzalez (1984), ao tratar do duplo fenômeno do sexismo e racismo a
partir, especialmente, das noções de mulata, doméstica e mãe preta, propõe a
necessidade de serem aprofundadas as reflexões sobre a mulher negra não só no que diz
respeito às questões socioeconômicas colocadas pela questão racial, mas ampliar o
debate analisando os diferentes lugares que mulheres negras assumem dentro da cultura
brasileira (Gonzalez 1984: 225).

Nesse sentido, propõe a autora –lelia-, a empregada doméstica – mucama


“permitida” – incomoda a culpabilidade branca porque a permanência daquele papel
desenvolvido compulsoriamente no passado (onde cada forma de trabalho foi associada
a uma raça) reverbera nos papéis desempenhados hoje. Afinal, “Por que será que ela só
desempenhaatividades que não implicam em ‘lidar com o público’?” ou “Por que os
anúncios de emprego falam tanto em ‘boa aparência’?”.

Em se tratando da função materna, se a “mucama” é a mulher; a “mãe preta”, a


mãe. É ela quem cuida (amamenta, limpa, faz dormir) e confere significados, valores e a
própria linguagem – pretuguês – da cultura à criança brasileira. Graças também à “mãe
preta” a cultura negra entra na ordem social brasileira de forma pungente, dado que a
língua materna brasileira não é outra senão o “pretuguês”.

A transmissão de valores por meio da ama de leite para criança de família


burguesa que fora questionado pelo discurso higienista veiculado na imprensa enquanto
uma prática “ruim”, incentivando o aleitamento materno, podemos dizer que se encontra
positivado em Gonzalez (1984) com a transmissão às crianças da cultura negra, e dentre
um de seus aspectos: a língua.

A historiadora grega Eleni Varikas (2016) no livro “Pensar o Sexo e o Gênero”


pontua que nascer mulher tem a ver com “reivindicar o estatuto do puro e simples ser
humano” (2016: 14). Pois, a pertença ao sexo feminino impede o acesso à humanidade
genérica: a percepção da mulher como animal político, tal como são vistos os homens,
“espécie animal mais evoluída” - aspas da autora (Varikas 2016: 16.); encerrando-se
como o próprio sinônimo de humanidade.
Varikas (2016) afirma que não há sequer uma linguagem política para pensar a
liberdade das mulheres ou a ausência dessa mesma liberdade. Será necessário inventar
essa linguagem. Afinal, questiona-se a autora: “de qual gênero é essa história que é a
história do gênero humano?”, apoiada em Claire Demar (1976).

O gênero não pode ser encarado como uma palavra ou categoria generalizável.
Há de se pensar a “diferença dos sexos” como um processo, uma relação (Varikas 2016:
26). De modo que,

A “diferença dos sexos” se revela então em toda a instabilidade do artefato


humano que lhe confere sentido: o que é um homem ou uma mulher numa sociedade,
num dado período, se torna verdadeiro objeto e questão de pesquisa: pesquisa das
fronteiras que estabelecem o sentido comum, inscrevendo os indivíduos no território do
masculino e feminino, das relações de poder que estabelecem esses territórios. (Varikas
2016: 26).

Dessa forma, a relação entre o universal e o particular em que se constrói de


maneira contínua a categoria “mulheres”, a partir da perspectiva da problemática do
gênero, perpassa tanto a diferenciação de mulheres e homens ao longo da história
quanto à própria escrita da história do passado do gênero humano – majoritariamente
masculina (Varikas 2016: 34).

Ainda sobre linguagem, segundo Scott (1990) foram as feministas que


começaram a usar a palavra “gênero” de forma mais próxima do seu sentido literal, isto
é, para tratar da organização social da relação entre os sexos. No que tange às questões
teóricas relativas ao termo “gênero” enquanto uma categoria de análise,
metodologicamente, propõe: “Em lugar de procurar as origens únicas, temos que
conceber processos tão ligados entre si que não poderiam ser separados” (Scott 1990:
20).

Ainda Scott - movida pelas reflexões de Michelle Rosaldo (1974) - desvela que
há de se “procurar não uma causalidade geral e universal, mas uma explicação
significativa” (Scott 1990: 20). Pois,

No seio desses processos e estruturas, tem espaço para um conceito de realização


humana como um esforço (pelo menos parcialmente racional) de construir uma
identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma sociedade dentro de certos limites e
com a linguagem – conceitual – que ao mesmo tempo coloque os limites e contenha a
possibilidade de negação, de resistência e de reinterpretação, o jogo de invenção
metafórica e de imaginação. (Scott 1990: 20).

Dado que a definição de Gênero de Scott (1990) consiste na proposição dessa


categoria como “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos” e, ao mesmo tempo, como “uma forma primeira de significar
as relações de poder” (1990: 21).

Nesta tese, apoiada em Scott (1990), importa-me ressaltar que o uso de tal
categoria não deve ser reduzido ao universo doméstico/familiar/privado, e/ou mais
precisamente falando, ao sistema de parentesco; considerando e incorporando também
junto a esta “instituição” tão familiar de análise – em se tratando de mulheres –, a dita
“vida privada”: os mercados de trabalho, a educação e, por conseguinte, os sistemas
político, cultural e simbólico operantes na sociedade (a vida pública e
suasrepresentações).

Não é minha intenção exaurir as possibilidades interpretativas do conceito de gênero.


Dito isso, Judith Butler (2003) nos informa que há discordâncias agudas em torno do
conceito:

A circularidade problemática da investigação feminista sobre o gênero é


sublinhada pela presença, por um lado, de posições que pressupõem ser o gênero uma
característica secundária das pessoas, e por outro, de posições que argumentam ser a
própria noção de pessoa, posicionada na linguagem do ‘sujeito’, uma construção
masculinista e uma prerrogativa que exclui efetivamente a possibilidade semântica e
estrutural de um gênero feminino. (Butler 2003: 30-31).

Sobre tal debate, mais uma vez subscrevo as mediações entre teorias de gênero e
história das mulheres empreendidas por Suely Kofes (1992) no texto “CATEGORIAS
ANALÍTICA E EMPÍRICA: GÊNERO E MULHER: Disjunções, conjunções e
mediações”, apresentadas anteriormente ainda no início deste capítulo. Visto que
concordo com a referida autora quando propõe que não há motivo para esses elementos
– mulher e gênero – se oporem, pois não precisam ser excludentes ou mesmo
substituíveis.
Argumento que foi uma escolha – de quem escreve a história e de quem
seleciona documentos para legar ao futuro – demarcar o período analisado (virada do
século XIX para o XX) dando ênfase às relações de trabalho em que atuavam sujeitos
masculinos; em detrimento das experiências/compromissos laborais de mulheres de
diferentes níveis sociais (tornando-as veladas e até inexistentes). Uma vez que “as
hierarquias sexuais quase sempre estão a serviço de um projeto de dominação que se
sustenta por meio da divisão sexual do trabalho, a qual é constantemente renovada,
daqueles a quem se procura governar” (Federici 2017: 8).

A vida social costuma-se dividir em dois domínios: o público e o privado. E, por


isso, segundo Lasmar,

A oposição público/privado se verificaria, em maior ou menor grau, em todas as


sociedades humanas e o espaço privado estaria universalmente destinado às mulheres,
enquanto que o espaço público, espaço dos fatos e decisões que afetam a sociedade
como um todo, seria ocupado pela parcela masculina da sociedade. (Lasmar 1996 : 14)

Além destes domínios “público” e “privado”, temos em conta a existência da


oposição entre “margem” e “centro” e/ou “centro” e “periferia” em se tratando de escala
global e nacional. Dito isso, considero fundamental nesta tese dar lume à trajetória de
mulheres que viveram na Amazônia no entresséculos por meio de diferentes arranjos de
trabalho, considerando durante o processo as flutuantes e distintas classes sociais a que
pertenceram.

Sobre o uso de representações de mulheres trabalhadoras, apoio-me em Joan


Scott (1990) quando afirma que devemos dar atenção à maneira como as sociedades
representaram o gênero. Pois, a partir das representações construídas são também
conformadas e articuladas as regras em que se estabelecem as relações sociais, bem
como a constituição do sentido de experiência; e, “sem o sentido, não tem experiência; e
sem o processo de significação, não tem sentido” (Scott 1990: 23).

Em “Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, Silvia Federici


(2017) nos propõe repensar o desenvolvimento do capitalismo utilizando uma lente
feminista, muito embora evite se limitar a realizar/construir uma “história das mulheres”
separada da história da classe trabalhadora do setor masculino.
Ainda na introdução da referida obra, a autora identifica alguns “sujeitos
femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa
desobediente, a mulher que ousa viver só” (Federici 2017: 24).

Decerto, as revistas, jornais, romances dirigidos ao público feminino criaram


uma imagem pública e orgulhosa de certos modelos de mulher (por exemplo, a dona de
casa suburbana) que não só moldaram a vida das mulheres, mas também virou objeto do
seu desejo, algo a ser almejado; o que, segundo Betty Friedan em “A mística feminina”,
nos dá pistas do “problema sem nome” (2021: 36). A autora aponta que:

A dona de casa suburbana era o sonho de toda jovem estadunidense e causava


inveja, diziam, em mulheres ao redor do mundo. A dona de casa estadunidense,
libertada, pela ciência e pelos eletrodomésticos modernos, do trabalho duro, dos riscos
do parto e das doenças de suas avós, era saudável, bonita, educada, preocupada apenas
com o marido, os filhos e o lar. (Friedan 2021: 16).

Concordo com Federici (2017) quando usa a categoria “Mulheres” não pura e
simplesmente a partir da perspectiva que se trata de uma história oculta que deve se
tornar visível; pois, além disso, devemos considerar as formas particulares de
exploração a que são - enquanto coletivo - acometidas, isto é, deve-se reconsiderar a
história das relações no bojo do capitalismo, do ponto de vista da história das mulheres
e das teorias feministas.

Os debates que tiveram lugar entre as feministas pós-modernas acerca da


necessidade de desfazer-se do termo “mulher” como categoria de análise e definir o
feminismo em termos puramente oposicionais foram mal orientados. [...] Se na
sociedade capitalista a “feminilidade” foi construída como uma função-trabalho que
oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história
das mulheres é a história de classes, e a pergunta que devemos nos fazer é se foi
transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular. Se a
resposta for negativa (tal como ocorre quando consideramos a organização atual do
trabalho reprodutivo), então “mulher” é uma categoria de análise legítima. (Federici
2017: 31).
Na mesma medida em que acreditamos que mulher é uma categoria de análise
legítima, acreditamos que a história e a antropologia não podem ser escritas a partir do
ponto de vista de um sujeito feminino abstrato/universal/assexuado.

A tentativa de gerar modelos para dar conta das questões relativas à


subordinação das mulheres já se mostrou falha, dado que nega singularidades e
especificidades experimentadas de acordo com os marcadores sociais. Vide Michelle
Rosaldo (1974) que colocava a hierarquia e/ou subordinação da mulher como originária
da separação dos empregos de mulheres e homens nas esferas doméstica e pública.
Contudo, tal perspectiva não cabe quando nos atentamos para o fato que mulheres
negras sempre trabalharam.

Nesse sentido, a escritora “chicana” Gloria Anzaldua (2000) no ensaio “Falando


em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, em se tratando
do ofício mencionado, defende que “nenhum assunto é muito trivial”; pois, acredita que
o que a valida – e as demais escritoras mulheres de cor e/ou mulheres do terceiro mundo
– como ser humano, igualmente a valida como escritora: história, vida interior/familiar,
economia e visão. Por isso, alerta justamente para o perigo de ser universal na tentativa
de invocar o “eterno” ao ponto de sacrificar o particular, aquilo que é o feminino e o
momento histórico específico (Anzaldua 2000: 233).

Em se tratando da diferença dentro da diferença (gênero e raça, por exemplo)


referente às lutas dos movimentos feministas, no capítulo “Mulheres trabalhadoras,
mulheres negras e a história do movimento sufragista”, tendo como base a realidade
vivida nos Estados Unidos, Angela Davis (2016) destaca que em 1870 um quarto de
toda força de trabalho urbano era constituído por mulheres, embora 70% exercessem
atividades domésticas. Além disso, durante e logo após o período da Guerra Civil, a
maioria das mulheres que trabalhavam fora de casa desenvolvia o ofício de costureira
(Davis 2016: 143). Pode-se dizer que tal realidade é semelhante às condições
experimentadas na Amazônia na época (Fontes 2016).

Davis desvela que para as massas de trabalhadoras a luta precisava dar conta dos
seus problemas imediatos: salários, jornada e condições de trabalho; e, de certo modo,
as causas da luta sufragista pareciam um tanto abstratas (2016: 148). Demorou até o
início do século XX para que as mulheres trabalhadoras levantassem a bandeira
sufragista, quando de fato suas necessidades estiveram alinhadas com o direito do voto,
reivindicando-o para que isso lhes ajudasse em suas lutas próprias, isto é, aquelas
relacionadas às suas lutas de classe em andamento - aqui, surge uma nova perspectiva
para a campanha sufragista, ora influenciada pelo movimento socialista e, por
conseguinte, pelas experiências das irmãs da classe trabalhadora (Davis 2016: 149).

Do ponto de vista das sufragistas “Mulher” era o critério definitivo, mas nem
todas eram consideradas qualificadas; pois, as mulheres negras foram, de certa forma,
invisibilizadas durante a campanha pelo sufrágio feminino, sendo que das 8 milhões de
mulheres trabalhadoras mais de 2 milhões eram negras até a primeira década do século
XX. Na condição de mulheres que sofriam com a combinação das restrições de sexo,
raça e classe, elas tinham um poderoso argumento pelo direito do voto. Mas o racismo
operava de forma tão profunda no interior do movimento sufragista feminino que as
portas nunca se abriram de fato às mulheres negras. (Davis 2016:149).

Contudo, elas apoiaram a luta pelo voto feminino até o último minuto (Davis
2016: 149-150). Outra questão que as diferenciava das trabalhadoras brancas se refere
ao apoio que recebiam de seus companheiros. Consoante a isso, Patrícia Hill Collins
(2017) no artigo “O que é um nome? Mulherismo, feminismo negro e além disso”
aponta que diferente do feminismo negro, o Mulherismo possibilita uma forma de
abordagem da opressão de gênero sem que haja o ataque aos homens negros (2017: 08).
Para esta autora,

Enquanto que a filiação do mulherismo com o nacionalismo negro se relaciona


com uma filosofia histórica e um conjunto de instituições sociais organizados em torno
da centralidade da solidariedade racial para a sobrevivência negra, essa posição pode
trabalhar para isolar o mulherismo de assuntos globais das mulheres. Ao mesmo tempo,
enquanto o feminismo negro está ligado às lutas das mulheres, existentes tanto em nível
nacional como global, promovendo uma agenda política clara em relação ao sexismo,
sua filiação putativa com a brancura promove sua rejeição pela própria população que
pretende servir. (Collins 2017: 18).

Ou seja, para Collins é importante ressaltar que esse tipo de debate ocorre
principalmente entre mulheres negras privilegiadas. Portanto, tais movimentos se
beneficiariam da análise do descompasso entre as perspectivas das mulheres negras
presentes na academia, por exemplo, e do grande grupo de mulheres afro-americanas
que não tiveram acesso ao ensino superior (2017: 18).
Além do voto, a possibilidade de acesso à educação formal (vide a trajetória de
Julieta enquanto acadêmica) também ganha um lugar de destaque na luta de mulheres.
Quando antes excluídas de uma efetiva participação da vida pública em sociedade ou
impedidas do acesso à educação superior, as mulheres no século XIX viviam trancadas
ou isoladas, sujeitas a autoridade de pais, maridos e senhores. Mas nem todas, pois,
mulheres pobres e, principalmente, mulheres racializadas, sempre estiveram no espaço
público desempenhando funções as quais se entende hoje como trabalho informal.

Relativo à época que estamos tratando, Norma Telles (2017) aponta que:

A situação de ignorância em que se pretende manter a mulher é responsável


pelas dificuldades que encontra na vida e cria um círculo vicioso: como não tem
instrução, não está apta a participar da vida pública, e não recebe instrução porque não
participa dela. (Telles 2017: 406).

Contudo, no Brasil na virada do século XIX para o XX surgira a necessidade de


universalização do ensino por meio da democratização da escola primária. Nesse
ínterim, a profissionalização da mulher esteve ligada principalmente ao Magistério,
mediante os cursos de formação representados pelas escolas normais. Essas escolas
representavam uma alternativa para a instrução feminina, mas também atuavam como
um meio de expansão da instrução escolar à população de forma mais ampla, uma vez
que as alunas tornar-se-iam professoras depois de formadas, propõe Antônia Vilaça
Telles (2014).

Mas quando se pensa a questão da mulher negra, percebe-se que o nível de


escolaridade atingido até meados do século XX era muito baixo. Por conseguinte, elas
ficaram relegadas a uma condição marginal em se tratando das atividades econômicas, e
quando não desempregadas ocuparam atividades relativas à prestação de serviços de
baixa remuneração, trabalho ocasional ou por temporada, na função principalmente de
empregadas domésticas (Gonzalez 2020: 58-59).

De fato, existe no Brasil não só uma divisão sexual do trabalho, mas uma divisão
sexual e racial. Portanto, conforme aponta Gonzalez: “não é difícil concluir sobre o
processo de tríplice discriminação sofrido pela mulher negra (enquanto raça, classe e
gênero), assim como seu lugar na força de trabalho” (2020: 56).
Pensando a realidade dos Estados Unidos, Davis (2016) aponta que um número
ínfimo de mulheres negras conseguiu desenvolver papéis que não estivessem ligados ao
campo, à cozinha ou à lavandeira. Na Amazônia tal condição não se mostrou diferente,
mas adicione aqui mulheres indígenas e mulheres vindas do Nordeste sejam elas negras
ou brancas também no desempenho desses papéis (Cancela 1997; Wolff 1999; Fontes
2016). Ainda que extrapolando para a realidade local e para o entresséculos (XIX e
XX), aqui pôde ser visto o que Davis propõe: “racismo e sexismo convergem – e a
condição de mulheres brancas trabalhadoras é associada à situação opressiva das
mulheres de minoria étnica” (2016: 102).

Voltando para a realidade local, a Amazônia, ainda que no entresséculos se


experimentasse um período de ascensão econômico fruto da extração do látex, este não
pode deixar de ser considerado um local à margem onde se vivenciou (e ainda se
vivencia) uma espécie de colonialismo interno brasileiro. Assim, no que diz respeito à
ausência de espaços de educação formal, mais precisamente, universidades na região, a
prática da época era se deslocar para outros pólos do país.

Portanto, enquanto mulheres pobres (principalmente nordestinas) tiveram como


tendência vir para Belém atrás de trabalho e condições melhores na cidade – que
crescera devido a economia gomífera –, conforme veremos ao longo da tese. De outro
lado, as filhas da elite que vivia na Amazônia e/ou filhas de famílias tradicionais locais
encaminharam-se para outros Estados brasileiros e/ou outros países nos quais pudessem
seguir com seus estudos. Esse último foi o caso de Julieta de França.

Conclusão

Neste texto tive como pretensão criar diálogos possíveis por meio do emaranhado de
teorias antropológicas, estudos feministas, de gênero e história das mulheres
apresentados. Estes, ora soam confluentes, ora discordantes, quando se trata dos temas e
categorias que compõem esta tese: mulheres, trabalho, educação e família. Visto que
entendo que eles não são excludentes, mas cambiantes; ou contínuos, melhor dizendo.
Tratou-se também desses assuntos por meio dos marcadores sociais: raça, classe, sexo e
gênero.

Referências:

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