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INSTITUTO LATINO-AMERICANO

DE ARTE, CULTURA E
HISTÓRIA (ILAACH)

CINEMA E AUDIOVISUAL

DESCONSTRUÇÃO DE DIREÇÃO DE ARTE


A Festa de Babette (1987)

ELIAN EMANUEL COUTINHO ROEHRS

Foz do Iguaçu
2022
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1. RESUMO
Martina e Philippa são filhas de um pastor protestante em um vilarejo remoto na Dinamarca.
Em momentos diferentes de suas vidas, elas recebem convites para deixar o lugar, tanto para casar-se
com um general belga, quanto para construir carreira ao lado de um famoso tenor francês. Ambas
decidem permanecer e dedicam a vida aos mais necessitados no interior da comunidade, oferecendo
comida, companhia e cuidados. Certa noite, uma francesa chamada Babette, fugindo da violência da
Comuna de Paris de 1871, pede abrigo na casa delas. Anos depois, Babette ganha na loteria e é chamada
para retornar à França, mas ela decide ficar. Ninguém na vila sabe, mas Babette é uma cozinheira
experiente, que foi chef em um famoso restaurante da capital francesa. O fato passou despercebido na
aldeia pois ao longo dos anos ela se dedicou a fazer a simples sopa de pão que as irmãs serviam. No
entanto, o dinheiro da loteria dá a Babette a oportunidade de realizar um jantar inesquecível para as
irmãs e outros convidados como forma de agradecimento. O longa mostra detalhadamente o preparo, a
refeição e os efeitos que ela tem sobre os convidados. Antes do jantar, os membros da comunidade
discutiam uns com os outros e se acusavam o tempo inteiro. Aos poucos – e auxiliado pelo alimento
preparado - a conversa começa a ser preenchida com lembranças. Dos fornos simples de uma aldeia
afastada de tudo, sai um jantar nobre. O segredo não está nos ingredientes nem no talento de Babette,
ainda que este seja importante, mas está principalmente na entrega com que ela faz os pratos. Babette
cozinha com o corpo e a alma presentes. O longa passa a mensagem de que o bem pode ser feito em
qualquer lugar, sob quaisquer circunstâncias e que nossas ações, feitas com boa vontade, têm uma força
transcendente.
A direção de arte em A Festa de Babette (1987) é parte essencial da experiência sensorial
de quem assiste ao longa. Todas as personagens que vêm de fora têm as vestes coloridas. Em contraste,
no vilarejo remoto, tudo é cinzento, nublado, sem saturação.

O diretor e também roteirista do filme, Gabriel Axel, nos primeiros momentos do longa já
propõe a paleta de cores e suas motivações para a obra: “entre tons de azul ligeiramente diferentes, a
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fronteira entre o céu e a terra é quase imperceptível” (COSTA, 2020). Na cinzenta paisagem
dinamarquesa, essa primeira imagem prenuncia a comunhão que, naquele lugar, existe entre as coisas
terrenas e as coisas celestes:

A imagem revela-nos moradias quase camufladas na paisagem, como se fossem


fósseis, como se nos dissessem que as pessoas que ali vivem não deixarão nenhum
breve traço sobre a terra, pois, desde já, encontram-se imiscuídas no pó ao qual
um dia retornarão. (COSTA, 2020)
As paredes são sujas, as vestes são humildes, o ambiente como um todo é escuro.

“O contraste delicadamente delineado é acrescido em alguns trechos da narrativa por


diálogos reiterativos” (FIGUR, 2016). É o caso do General Lorens Loewenhielm, que se diz
insignificante diante da pureza da vida que ele presencia no vilarejo; e ainda do tenor Achille Papin,
que, desolado, reacende sua paixão pelas artes quando o canto de Filippa é comparado aos raios de sol
na parede.
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Com Babette, a lógica não é diferente. Em uma noite chuvosa, ela aparece de surpresa na
casa das irmãs Martina e Filippa. Elas conduzem suas vidas simples quando alguém chega, andando
com dificuldade, trajando uma capa escura. Mais tarde, com o auxílio dos planos mais fechados, pode-
se perceber que - por baixo da capa – Babette usava uma roupa vermelha, colorida, característica não
só de quem vem de fora do vilarejo, como também para evidenciar a urgência com que ela precisava
ser acolhida.

Essa chegada transforma lentamente a vida de todos no vilarejo, não somente das irmãs,
principalmente na comida. As irmãs preparavam para comer e servir aos mais velhos e incapacitados
um mingau de pão e cerveja escuro, marrom e pegajoso. Babette começa a preparar uma sopa mais
saborosa e vistosa, pechincha nas compras (as irmãs revelam que passaram a economizar depois de sua
chegada) e limpa as janelas: “ato significativo, símbolo de renovação, nova visão” (SELIGMAN, 2016).
A narrativa revela que se passaram 14 anos desde aquela noite chuvosa em que a francesa
chegou de forma inovadora. Ao invés de adotar uma escolha “preguiçosa” (vale lembrar que nem
sempre é uma escolha ruim) e apenas colocar em forma de texto a passagem do tempo, Axel revela que
houve uma espécie de simbiose: os ambientes se tornam mais claros, as pessoas interagem mais. Babette
– no entanto - também absorve um pouco das características daquela vida simples, o que está expresso
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no seu figurino. Com o auxílio dos elementos da direção de arte, o diretor consegue mostrar um corte
na linearidade e um avanço temporal de forma sutil, mas criativa.

Um mensageiro de fora do vilarejo, com roupas coloridas – vermelho e amarelo berrantes –


revela a Babette que ela ganhara dez mil francos. A câmera sempre acompanha lentamente os
movimentos de chegada e de partida desses viajantes, como que com um olhar ansioso, vê lentamente
partir em plano médio e se afastando em movimento de zoom até um grande plano geral, mais uma vez,
expressão de solidão.

O figurino escolhido pelos convidados da festa é preto, mais elegante que o habitual, porém
expressa simplicidade, sobriedade, um luto permanente pela morte do patriarca religioso.
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O único a vestir cores mais chamativas é o convidado de fora do vilarejo, o General Lorens
Loewenhielm. Ele é também o único a dominar as práticas da boa mesa (etiqueta) e a expressar o prazer
que a comida refinada o proporcionava.

Ao entrar na sala de jantar, os convidados se deparam com a mesa posta por Babette e seu
ajudante. A câmera se movimenta, deslizando pelos objetos, enquanto as personagens sentam-se nas
cadeiras. Quando entraram na sala, eles tinham nos rostos expressões de surpresa. No decorrer do
“travelling” entende-se que tal sentimento é consequência da beleza que eles enxergam.

Quando Babette degusta a taça de vinho, sentido a coloração, aromas e sabores, a


imagem que nos passa é de que seu corpo não está somente passando pela
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experiência dos cinco sentidos humanos, mas sim, pelo um passado vivido em
Paris. (BÁCSFALUSI, 2016)
O jantar permite que vejam a qualidade da matéria. Os vinhos, as frutas saborosas, a massa
folhada e os queijos integram este ritual em “uma poética declaração de amor estética à vida e ao ato de
criar, o que por sua vez, permite a sociabilidade e a comunhão entre as pessoas” (CAMPOS, 2018).
Juntando a espiritualidade daquele povo à materialidade do desfrutar o prazer do alimento, atinge-se um
equilíbrio. “Esse equilíbrio é que levará à verdadeira felicidade, e todos sentem isso quando se perdoam
por situações passadas e cantam juntos em um círculo ao ar livre com o céu estrelado” (COSTA, 2020):
Há neste filme uma estética do não dito, ou do que foi dito de forma transversal –
não há o óbvio, o que se deve dizer está expresso de outras maneiras: na música,
na falta dela, nas locações e cenários, em sua delicadeza e em todas as suas
significações. (SELIGMAN, 2016)
BIBLIOGRAFIA
BÁCSFALUSI, C. M. A uma garfada da felicidade: a gula e o pecado em a festa de Babette.
Boletim de Estudos Clássicos, p. 217-234, 2016. Disponível em: https://impactum-
journals.uc.pt/bec/article/view/61_15. Acesso em: 10 abr. 2023.
CAMPOS, Leonardo. Plano Crítico, 2018. Disponível em:
https://www.planocritico.com/critica-a-festa-de-babette/. Acesso em: 6 Abril 2023.
COSTA, Leandro. Persona Cinema. Medium, 2020. Disponível em:
https://personacinema.com.br/a-festa-de-babette-21aec44fe084. Acesso em: 6 Abril 2023.
FIGUR, Elvio N. Religião e Cinema: Sobrevoo sobre ‘A Festa de Babette’. Sacrilegens,
Juiz de Fora, Janeiro-Junho 2016. 04-23.
SELIGMAN, Laura. Expressões do Sublime e da Delicadeza nas Narrativas do filme 'A
Festa De Babette'. Revista Científica de Cine y Fotografía, Itajaí, 27 Abril 2016. 249-265.

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