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Centro Universitário São José

Disciplina Projeto Integrador II

Discurso de ódio e liberdade de expressão.


Nazi-negacionismo: O caso do neonazista gaúcho
Siegfried Ellwanger Castan

Aluno: Carlos Eduardo Guedes da Silva


Curso: Direito
Matrícula:20212663

Rio de Janeiro, 01 de outubro de 2022


O objetivo deste trabalho é relacionar o discurso de ódio promovido por meio de
um autor gaúcho de ascendência alemã chamado Siegfried Ellwanger Castan, através de
seus livros que negam o holocausto, com a liberdade de expressão prevista em nossa
constituição. Em suas obras Castan defende que o holocausto nunca existiu e que o
número de judeus mortos durante o regime nazista foi muito menor do que o divulgado
e que tudo não passou de uma grande invenção judaica.
Negar um dos fenômenos mais terríveis já produzidos pela espécie humana; o
massacre de milhões de pessoas principalmente durante a segunda guerra mundial
(1939-1945) pelo regime nazista nos diversos campos de extermínio, que foi fartamente
estudado e documentado por autores do mundo todo, é no mínimo uma
irresponsabilidade. Quando se fala de nazismo, de antissemitismo, da segunda guerra
mundial ou do massacre de milhões de pessoas consideradas inferiores por Adolf Hitler,
não se tratam de interpretações, “achismos” ou opiniões, mas sim da realidade, da
crueldade de uma das maiores atrocidades já produzidas na história e que deve ser
lembrada para não ser repetida1.

Um dos que buscam atenuar as barbaridades cometidas pelo terceiro reich é


Siegfried Ellwanger Castan (1928-2010). Ele foi um empresário brasileiro, escritor e
editor de livros antissemitas e neonazistas. Seus livros se enquadram naquilo que a
historiografia chama de negacionismo do holocausto ou de forma mais abrangente
negadores do nazismo2. Dentre seus trabalhos estão: Holocausto: Judeu ou Alemão?
Nos Bastidores da Mentira do Século, Acabou o Gás!..., O Fim de um Mito, S.O.S para
Alemanha, O Catolicismo Traído: A Verdade sobre o Diálogo Católico-Judaico no
Brasil, Inocentes em Nuremberg. Essa bibliografia, por si só, figura como um grande
exemplo de discurso de ódio contra os judeus principalmente, mas também contra todos
aqueles que tiveram a coragem de lutar contra o regime nazista.
Castan é um dos representantes brasileiros do negacionismo do holocausto e um
partidário da falsa ideia de raças superiores e inferiores ao lado de muitos outros pelo
mundo. Esses negadores usam a pseudo qualificação de historiadores3, no entanto, não
se utilizam de fontes qualificadas, verificáveis e academicamente válidas que possam
dar fundamento, teórico e prático, ao seu trabalho. Esses livros carregam um ódio muito
grande contra os judeus (antissemitismo) e servem de base para fortalecer grupos
neonazistas no Brasil.
No ano de 2002 o Ministério Público do Rio Grande do Sul ofereceu denúncia
contra Siegfried Ellwanger Castan pelo crime de racismo4. Castan recebeu uma
condenação do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de um ano e nove meses de
prisão5 por injúria racial. Seus advogados recorreram ao Superior Tribunal Federal,

1
Ver: https://jornal.usp.br/cultura/e-importante-que-as-pessoas-nao-esquecam-o-que-aconteceu/ - “É
importante que as pessoas não esqueçam o que aconteceu”
2
Ver: MORAES, Luis Edmundo de Souza. In "O negacionismo e o problema da legitimidade da escrita
sobre o passado". Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho de 2011.
3
Sobre a questão profissional a Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º inciso 13 irá dizer: é
livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a
lei estabelecer;
4
Como diz o próprio professor Celso Lafer: Além disso, explica Lafer, "raça não é um conceito
científico, é uma ideia pseudo científica e ultrapassada. Uma análise biológica mostra que não há raças
humanas", explica. Ou seja, os judeus não são uma raça, isso é verdade. Mas ninguém é uma raça,
somos todos integrantes da espécie humana, e ainda assim existe racismo, o racismo acontece contra
certos grupos."; ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60353371
5
https://www.conjur.com.br/2004-set-10/editor_nazista_condenado_dois_anos_reclusao?pagina=16
impetrando um Habeas Corpus (HC 82424)6. Oito dos onze ministros do STF votaram
pela manutenção de sua condenação7.
É importante ressaltar que não existem raças entre os seres humanos modernos 8.
Não há diferenças genotípicas (ou seja, genéticas) que nos diferencie ao ponto de formar
outras raças dentro do gênero homo sapiens sapiens. O que existe é única e
exclusivamente a espécie humana. O que há de fato são diferenças fenotípicas
(características externas, fisiológicas) que infelizmente são utilizadas para desqualificar
as pessoas. Embora não existam raças entre os seres humanos, a derivação racismo
existe e se refere ao ato preconceituoso de diminuir, menosprezar, excluir algumas
pessoas por suas características fenotípicas.
Pode-se perceber claramente que no caso aqui tratado o réu Siegfried Ellwanger
Castan fere de uma forma contumaz, pela insistência do tema em suas obras, a
Constituição Federal de 1988 especificamente no que tange o artigo 5 º, inciso XLII.
Vejamos o que esse dispositivo legal nos diz:
Art 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena
de reclusão, nos termos da lei;9
Embora a nossa constituição garanta o direito à liberdade de manifestação do
pensamento, esse direito não é e nem pode ser absoluto. Comparativamente podemos
perceber como outras nações do mundo tratam do tema liberdade de expressão
relacionado especificamente ao nazismo: atualmente existem no mundo dezesseis países
que criminalização a negação do holocausto nazista – inclusive a Alemanha.10
É fundamental que as pessoas sejam responsabilizadas por aquilo que dizem
quando ferirem a honra a dignidade ou quando as palavras ditas se refiram de forma
odiosa contra qualquer pessoa ou grupo ou tenham a intenção de inferiorizar. Isso se
torna ainda mais grava quando o discurso é proferido por alguém com alguma
influência maior na sociedade como líderes políticos, religiosos ou mesmo um editor de
livros. O pensamento é livre, é íntimo, contudo, sua manifestação deve ser seguida –

6
Ver: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2052452
7
Os Ministros que votaram pela manutenção da condenação foram: os ministros Maurício Corrêa, Celso
de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso e Sepúlveda
Pertence. Já os Ministros: Moreira Alves , Marco Aurélio Mello e Ayres de Brito votaram pela
concessão do habeas corpus. Ver: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60353371; ver também:
https://ensaiosenotas.com/2018/05/23/resumo-o-caso-ellwanger/
8
NEVES, Walter Alves; JUNIOR, Miguel José Rangel; MURRIETA, Rui Sergio (Orgs.). Assim
Caminhou a Humanidade, São Paulo: Palas Athena, 2015.
9
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
10
Os países que integram o rol de criminalização da negação do nazismo são: Alemanha, Áustria,
Bélgica, Eslováquia, França, Hungria, Israel, Liechtenstein, Lituânia, Países Baixos, Polônia, Portugal,
República Checa, Romênia e Suíça. Para maiores informações ver o artigo sobre “Leis que banem a
negação do holocouso”: Lechtholz-Zey, Jacqueline: “Laws Banning Holocaust Denial”. Genocide
Prevention Now.
quando for o caso – de responsabilização. “Pensamentos não delinquem” 11, mas
palavras, atitudes, textos, gestos12 sim.
Sobre isso a constituição irá nos dizer no art 5º incisos: IV e IX:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença;13
Outro dispositivo legal recepcionado pela nossa constituição como a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH) corroboram com o tema da liberdade de
expressão. Vejamos o que o artigo 19 da DUDH diz:
Artigo 19
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.14
Vejamos também o que a Organização das Nações Unidas em seus Princípios de
Camdem diz sobre a liberdade de expressão.
Princípio 12: Incitação ao ódio
12.1 Todos os Estados devem adotar legislação que proíba qualquer promoção de ódio
religioso, racial ou nacional que constitua uma incitação à discriminação, hostilidade
ou violência (discurso do ódio)
12.2 Os Estados devem proibir o abrandamento ou negação de crimes de genocídio,
crimes contra a humanidade e crimes de guerra, mas apenas quando essas declarações
constituírem discursos do ódio, conforme definição no Princípio 12.1.15
A condenação de Siegfried Ellwanger Castan pode ser vista como um marco
jurídico importante para o combate ao neonazismo no Brasil, mas também contra
qualquer discurso de ódio. Segundo o professor Celso Lafer: "O caso foi muito
importante pois a Corte chegou a um entendimento sobre dois pontos: A primeira que
antissemitismo se enquadra como crime de racismo. O segundo ponto foi sobre a
amplitude da liberdade de expressão: existe ou não e quais os limites à liberdade de
expressão"16.
Conclui-se, portanto, que a liberdade de expressão tem sim seus limites,
principalmente quando essa liberdade extrapola as fronteiras da boa convivência e
harmonia e entra no campo do ódio, da discriminação, do racismo e como a história já
nos mostrou isso acaba desembocando em ações de exclusão ou mesmo do extermínio
de populações inteiras.

11
“O princípio da ação ou conduta (Direito Penal de ato). O Direito Penal moderno é um Direito Penal
de ato (Tatstrafrecht) e não de autor (Täterstrafe) ou da vontade (Willensstrafe): o princípio do nullum
crimen sine actione. Não se punem meros pensamentos ou qualidades psicológicas, ideológicas, raciais,
pessoais ou de qualquer índole. Aduza-se o princípio cogitationes nemo patitur – pensamentos não
delinqüem (impede considerar atitudes puramente internas exigindo a manifestação exterior da
vontade, bem como o modo de ser da pessoa humana)”; ver: https://www.editorajc.com.br/limites-do-
ius-puniendi-do-estado/
12
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/23/justica-aceita-denuncia-e-torna-reu-assessor-da-
presidencia-acusado-de-gesto-racista.ghtml
13
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
14
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
15
https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2011/04/Camden-Principles-PORTUGUESE-web.pdf
16
Parecer do professor Celso Lafer que atuou como amicus curiae. Ver:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/948/R162-08.pdf?sequence=4%3E
Bibliografia:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2011/04/Camden-Principles-
PORTUGUESE-web.pdf

https://ensaiosenotas.com/2018/05/23/resumo-o-caso-ellwanger/

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/06/23/justica-aceita-denuncia-e-torna-reu-
assessor-da-presidencia-acusado-de-gesto-racista.ghtml

https://jornal.usp.br/cultura/e-importante-que-as-pessoas-nao-esquecam-o-que-
aconteceu/

https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645773

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2052452

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79052

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60353371

https://www.conjur.com.br/2004-set-10/editor_nazista_condenado_dois_anos_reclusao?
pagina=16

https://www.editorajc.com.br/limites-do-ius-puniendi-do-estado/

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/948/R162-08.pdf?sequence=4%3E

LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e


relações internacionais . Barueri, SP: Manole, 2005.

LECHTHOLZ-ZEY, Jacqueline: “Laws Banning Holocaust Denial”. Genocide


Prevention Now.

MORAES, Luis Edmundo de Souza. In"O negacionismo e o problema da legitimidade


da escrita sobre o passado". Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH •
São Paulo, julho de 2011.
NEVES, Walter Alves; JUNIOR, Miguel José Rangel; MURRIETA, Rui Sergio
(Orgs.). Assim Caminhou a Humanidade, São Paulo: Palas Athena, 2015.

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