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/2004
técnico-científica do ICPG ISSN 1807-2836 105
Resumo
É primordial, para quem atua na área da Educação Infantil, a compreensão e o conhecimento das fases do desenho infantil e sua
relação com a evolução do desenvolvimento humano. Da mesma forma, é importante saber que o desenho é a manifestação de
necessidades vitais pelas quais a criança terá que passar, ou seja, conhecer e agir sobre o mundo e comunicar-se com este mundo.
O objetivo deste trabalho é refletir sobre a importância do educador nessas etapas de desenvolvimento da criança. É compreender,
ainda, que a observação é um dos meios que o educador poderá utilizar na construção desse aprendizado para fazer desabrochar
na criança um olhar sensível e pensante. Para isso, ele não poderá agir apenas como facilitador desse processo. Permeando
informações de natureza mais teórica, o educador poderá estar desafiando e incentivando, ampliando as experiências, o conheci-
mento e aprimorando a capacidade de criação e de expressão artística da criança.
• Realismo fortuito – a criança procura representar o obje- posicionando frente à vida, descobrindo o significado que a vida
to como uma totalidade. tem para si e percebendo-se como criadora de sua própria histó-
Subdivide-se em: ria. Lowenfld (1977) estabelece três fases para o desenho infantil.
a) Desenho involuntário – a criança desenha só para fa-
zer linhas, sendo que, nesse estágio, repete o movi- 2.1.1. PRIMEIRA FASE
mento pelo simples prazer e
b) Desenho voluntário –a criança percebe certa semelhan- A primeira fase divide-se em três etapas: etapa da garatuja
ça entre os traços e o objeto real. Ela enuncia a inter- desordenada, etapa da garatuja ordenada e etapa da garatuja no-
pretação que o desenho lhe dá. Mais tarde, diz o que meada.
pretende desenhar, mas o resultado a faz interpretar
Na fase da garatuja desordenada, a criança não tem cons-
seu desenho de forma diferente. Em outra situação, o
ciência da relação traço-gesto; muitas vezes, nem olha para o que
desenho, afinal, corresponde com a sua interpretação
faz. Seu prazer é explorar o material, riscando tudo o que vê pela
inicial. Então, percebe que pode representar, através
frente. Segura o lápis de várias formas, com as duas mãos ou
do desenho, tudo o que deseja.
alternando. Não usa o dedo ou o pulso para controlar o lápis. Faz
• Incapacidade sintética – a criança desenha cada objeto movimentos de vaivém, vertical ou horizontal; muitas vezes, o
de forma diferente, considerando seu ponto de vista para corpo acompanha o movimento.
diferenciá-los. Pode desenhar uma figura humana, mas
Na fase da garatuja ordenada, a criança descobre a relação
desenhar os olhos, a boca e os cabelos ao lado do corpo
do gesto-traço. Passa a olhar o que faz, começa a controlar o
como se não fizessem parte dele.
tamanho, a forma e a localização do desenho no papel. Descobre
• Realismo intelectual – a criança procura desenhar não que pode variar as cores. Começa a fechar suas figuras em formas
só o que pode ver no objeto, mas todas as suas fases. circulares ou espiraladas. Perto dos três anos, começa a segurar o
Desenha de acordo com sua noção momentânea dos lápis como o adulto. Copia intencionalmente um círculo, mas não
objetos. um quadrado.
• Realismo visual – a criança representa apenas os aspec- Na etapa da garatuja nomeada, a criança faz passagem do
tos visíveis do objeto. Há um aprimoramento de sistema movimento sinestésico, motor, ao imaginário, ou seja, representa
de desenho construído no estágio anterior. o objeto concreto através de uma imagem gráfica. Distribui me-
lhor os traços no papel. Anuncia o que vai fazer, descreve o que
A criança, ao desenhar, tem uma intenção realista. O realis- fez, relaciona o desenho com o que vê ou viu, sendo que o signifi-
mo evolui nas diferentes fases do desenho infantil até chegar ao cado do seu desenho só é inteligível para ela mesma. Começa a
realismo visual, que é o realismo do adulto. Para o adulto, o dese- dar forma à figura humana.
nho tem que ser idêntico ao objeto. Já para a criança, o desenho,
para ser parecido com o objeto, deve conter todos os elementos 2.1.2. SEGUNDA FASE
reais do objeto, mesmo invisíveis para os outros. Assim, a criança
desenha de acordo com um modelo interno: a imagem que sabe do
objeto que vê. Na segunda fase - a pré-esquemática -, os movimentos
circulares e longitudinais da etapa anterior evoluem para formas
reconhecíveis, passando de conjunto indefinido de linhas para
2.1. O DESENHO INFANTIL SEGUNDO LOWENFELD uma configuração representativa definida. A criança desenha o
que sabe do objeto e não uma representação visual absoluta;
Quanto mais auto-confiante a criança, mais ela se arrisca a seus desenhos apresentam características, não porque possuam
criar e a se envolver com o que faz. A criança segura se concentra uma forma de representação inata, mas sim porque está no come-
com mais facilidade nas atividades. Consegue se soltar e acreditar ço de um processo mental ordenado.
no que faz. De acordo com Streinberg ( apud LOWENFELD, 1977,
p.128), 2.1.3. TERCEIRA FASE
Aprender a desenhar, desenhando. Embora essa afirmação possa
parecer destituída de significado, ela é muito verdadeira: a ação de
desenhar é que é a escola do desenho. O mesmo vale para as outras Na terceira fase, chamada esquemática, a consciência da
atividades artísticas: aprende-se a pintar, pintando; aprende-se a analogia entre a forma desenhada e o objeto representado se afir-
esculpir, esculpindo: aprende-se a escrever, escrevendo, e assim por
ma. Nessa fase, a representação gráfica é muito mais tardia que a
diante.
lúdica verbal, enquanto a brincadeira simbólica e a linguagem já
estão bem formadas. A criança já constrói grandes cenas dramá-
Nenhum treino ou exercício de coordenação motora fará ticas brincando, mas só nessa fase começa a organizar seus dese-
com que a criança expresse sua criatividade. Uma criança segura nhos. A representação das figuras humanas evolui em
tem maior capacidade de envolvimento, de concentração e de complexibilidade e organização.
prazer em criar. É importante a ela sentir-se livre para poder expres-
sar-se em seus desenhos. Assim, a criança se desenvolve em De acordo com a abordagem construtivista, o conhecimento não
harmonia e se organiza no contexto espaço/temporal, se está pré-formado no sujeito, nem está totalmente pronto, acabado,
determinado pelo meio exterior, independente da organização do
indivíduo. A aquisição de conhecimento processa-se na troca, na
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interação da criança com o objeto a conhecer. Em outras palavras, autor da teoria das inteligências múltiplas, vê, no primeiro movi-
o ato de conhecer parte da ação do sujeito sobre o objeto, só se
mento, uma forma de conhecimento intuitivo, construída a partir
efetua com a estruturação que ele faz dessa experiência. Isso signi-
fica que o conhecimento é adquirido não pelo simples contado da da interação com o objeto físico e com outras pessoas, adquirido
criança com o objeto cognoscente, mas pela atividade do sujeito através do sistema de percepções sensoriais e interações motoras,
sobre esse objeto, a partir do que ele aprende, do que ele retira, do estimuladas pelo mundo externo, mesmo em crianças com dificul-
que organiza da experiência (PIAGET, 1976, p.47). dades ou limitações físicas.
Seu pensamento em ação, sua pesquisa, é exercitada atra- 2.2.3. O TERCEIRO MOVIMENTO
vés do exercício gestual que se manifesta em garatujas que, nesse
momento, não têm significado simbólico. Esses rabiscos, de iní-
cio, são incontrolados e, geralmente, longitudinais. Dos rabiscos Ação = Pesquisa = Exercício = Interação = Símbolo = Or-
nascem formas circulares, triangulares, quadrangulares, irregula- ganização = Regra =
res. Esses diagramas vão combinando, se agregando, compondo- Chamada a idade de ouro do desenho, a fase em que a
se. As formas vão se tornando cada vez mais complexas. criança vive e elabora soluções criativas para expressar o espaço,
Gardner (apud MARTINS; PICOSQUE; GUERRA, 1998), o a sobreposição, o que tem por baixo ou por trás das coisas, crian-
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do uma lógica e uma coerência perfeitamente adequadas aos seus res mencionados anteriormente no que diz respeito à expressão
intentos. A criança tem a intenção de buscar semelhanças em gráfica da criança.
suas representações, procurando convenções e regras com certa O desenho infantil é composto por fases, etapas, estágios,
exigência. A criança vive intensamente a leitura e a produção sig- movimentos, qualquer que seja a nomenclatura usada para definir
nificativa do mundo. Há uma realidade que está presente no pró- que o desenho evolui conforme o próprio crescimento da criança,
prio desenho, que ganha uma vida interna, reflexos de percep- dentro do seu processo de desenvolvimento como ser humano.
ções, sentimentos e pensamentos. Ou seja, as garatujas ou os rabiscos aparecem na fase sensório-
motora, etapa da teoria do desenvolvimento humano desenvolvi-
Organizar as coisas no espaço significa localizar em cima, ao lado de da pelo estudioso Jean Piaget, onde a criança explora materiais e
cá e ao lado de lá (que depois a criança vai nomear de esquerdo e movimentos, não na fase pré-operatória, onde a criança começa a
direito). A criança mostra que é capaz de organização, representan- construir e a representar. Segundo Fischer, (2003,p.15),
do a linha da terra, o chão (...) Outro limite de espaço que as
crianças costumam representar é o céu, que aparece como se fosse A cada novo mundo criado, também são criados obstáculos especí-
um teto e não uma massa de ar. Nesta fase em que as crianças ficos que precisam ser resolvidos e vivenciados, e a diversão desses
começam a representar, ela vai também começar suas primeiras mundos está exatamente em resolvê-los superando as expectativas
construções: uma madeira e um prego formam um rádio (...) e as ansiedades criadas. Nestes mundos as crianças podem se dar ao
(ZILBERMANN, 1990, p.157) luxo de errar para avaliar o resultado, sem medo de punição que
agregue sofrimento.
do a autonomia necessária para criar. das pesquisas realizadas, não existindo divergências profundas
Segundo Pillar (1996), ao observar o desenho de uma cri- entre esses pensadores.
ança, podemos aprender muito sobre o seu modo de pensar e Dessa forma, é importante mencionar que o conhecimento
sobre as habilidades que possui. Quando, em um desenho, os das fases do desenho infantil deve contribuir para a construção
braços de uma figura humana saem da cabeça e não do tronco, do imaginário das crianças, sendo mais um recurso que o educa-
por exemplo, significa que a criança ainda não tem construído dor poderá utilizar para melhor compreendê-las. Somando conhe-
interiormente, em seu pensamento, o esquema corporal de uma cimento, análise e compreensão da produção infantil, o educador
figura humana. Isso nada tem a ver com o fato de ela não estar perceberá o significado mais profundo do ato de criar, expressão
enxergando direito, de estar com problemas de motricidade fina, das idéias e dos sentimentos da criança.
ou ainda, de não estar apta a desenhar com destreza. Desenhar Considerando o prazer que a criança possa sentir com o
figuras humanas possibilita à criança estruturar suas idéias sobre seu gesto, além de estar construindo sua noção espacial e desen-
a figura humana. volvendo em suas ações, habilidades motoras, através de todo
No mesmo sentido, quando as crianças escrevem letras e esse processo, o educador poderá orientar suas ações pedagógi-
algarismos espalhados, representa o que têm construído sobre as cas com relevância, mérito e qualidade.
relações espaciais, se direita/esquerda ou em cima/embaixo. Não
existe “o todo” integrado em seu pensamento; o desenho ou a
4. REFERÊNCIAS
escrita refletirá a forma que ela tem de ver o mundo, e não aquela
que a maioria dos adultos considera correta.
O papel do educador é muito importante nesse processo. FISCHER, Julianne. O lúdico e a abstração. Curso de especializa-
Ele não é apenas um facilitador. É alguém que deverá desafiar, ção em Educação Infantil. 15p. Apostila. Indaial: ICGP, 2003.
incentivar, procurar ampliar as experiências e os conhecimentos LOWENFELD, Viktor. A criança e sua arte. 2 ed. São Paulo: Mes-
da criança. Com a criança pequena, o educador não necessitará tre Jou, 1977.
utilizar-se de técnicas muito elaboradas. MARTINS, Mirian Celeste. PICOSQUE, Gisa; GUERRA, Maria T.
É importante que a criança tenha oportunidade de dese- Telles. A língua do mundo: Poetizar, fluir e conhecer arte. São
nhar livremente, em papéis e em tamanhos e texturas diferentes, Paulo: FTD, 1998.
em posições variadas, com materiais diversos. Quando a criança MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbone. Resu-
vai dominando seus movimentos e gestos, as propostas devem mo de cursos filosofia e linguagem. Campinas: Papirus, 1990.
ser diferentes: desenhar em vários tempos e ritmos, fazer passeios
NEVES, Lygia Helena Roussenq. O impulso criativo da infância.
e expressar o que observou no papel, incentivar o desenho cole-
Curso de especialização em Educação Infantil. Apostila. Indaial:
tivo, desenhar as etapas percorridas após uma brincadeira ou
ICGP, 2003.
jogo e muitas outras podem ser feitas com a criança para ajudá-la
a aprimorar suas capacidades de desenhar. Os educadores que PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de
vivem diariamente com essas crianças vão sendo também incenti- Janeiro: Zahar, 1976.
vados por elas a criar, sempre e cada vez mais, novas atividades. PILLAR, Analise Dutra. Desenho & escrita como sistema de re-
Segundo Neves (2003), presentação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
Criar brincando – esse o duplo verbo que traduz o dia-a-dia da infân- PILLAR, Analise Dutra. Desenho e construção do conhecimento
cia. A maturação de si em borboleta, o pousar no sol, o estar além de na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
estrelas. Em um único gole, sorve a água de todos os mares, mais
três cachoeiras, mais nove riachos. Em seu íntimo cessa toda e ZILBERMANN, Regina (org.). A produção cultural para a crian-
qualquer guerra. Fala em idiomas incríveis, num linguajar que flui do ça. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
espírito. A criança se guia pelo Deus que lhe habita, dentro. Pode
tudo o que adulto não pode (ou não se permite): ser criança, por
exemplo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS