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Beijo na boca trocado entre os primeiros cristãos como forma de cumprimento
- Olá, Sara- Disse ela olhando depois para a Maria.- E tu, pequenina? Já
estás menos envergonhada?
Ela ficou em silêncio de olhar caído e expressão intimidada.
- Tem que lhe dar mais algum tempo, mãe- Disse eu olhando para ela
enquanto afagava os seus cabelos.- Ainda lhe é tudo muito estranho.
Preparei o prato com alguns frutos que lhe entreguei e que ela comeu de
cabeça baixa e olhar recolhido.
- Já chegaram os nossos irmãos?- Perguntei, deixando a Maria comer
em paz.
- Sim, filha. Estão à tua espera.
- A mãe tome conta dela, está bem?
- Claro que sim.
- Eu volto já, querida. Come tudo aquilo que quiseres- Ela assentiu sem
tirar os olhos do prato.
Desloquei-me até à sala onde todos se encontravam sobre almofadas de
seda, ouvindo as palavras finais da oração que meu pai entoava.
-...livra-nos, senhor, do mal, aperfeiçoa-nos no Teu amor, santifica-nos e
congrega-nos no reino que preparaste para nós, amém.- Fizemos todos o sinal
da cruz, repetindo o amém final.- Como nos ensinou o nosso irmão Paulo,
dizendo: “Quando vos reunis, tenha cada um de vós um cântico, um
ensinamento, uma revelação, um discurso em línguas, uma interpretação”.
Seguindo este princípio, gostaria de partilhar convosco aquilo que penso a
respeito dos últimos acontecimentos. Sei que se encontram assustados. A
imposição do imperador é desajustada com a nossa realidade, no entanto,
gostaria de vos dizer que não considero errado prestar sacrifício aos deuses
pagãos. Todos nós sabemos que são deuses de pedra. Porquê arriscarmos a
prisão por causa de um ritual que nada significa para nós...
Estava indignada com a posição de meu pai. Como podia ele, que me
ensinara tudo sobre Cristo, dizer tais coisas!
- Não concordo, meu pai- Disse eu levantando-me bruscamente.
- Sara! Gostarias de acrescentar algo?
- Sim, meu pai. Gostaria de dizer que não concordo com essa posição,
pois se Cristo se sacrificou por todos nós, também nós temos a obrigação de
nos sacrificarmos por ele- Fiz uma breve pausa, encarando nossos irmãos.-
Ontem, quando vinha para casa, encontrei uma criança que chorava perdida de
seus pais. Estes tinham sido levados pelos soldados, vincando a sua fé em
Cristo, pois teria sido muito cómodo para eles prestar sacrifício a esses deuses
de pedra e assim continuarem em liberdade. Mas eles preferiram a prisão,
apesar de tudo. Lembrem-se da atitude do nosso bispo Inácio. O quanto ele
ficou alegre por lhe ter sido dada a oportunidade de provar o seu amor por
Cristo- Desloquei-me a uma das prateleira onde se encontravam os
manuscritos, retirando aquele que relatava a vida do bispo de Antioquia.-
Ouçam, irmãos. Que estas palavras vos inspirem: “Venha o fogo, venha a
cruz; venham os ataques das feras, os golpes e as calandras; torçam-me os
ossos, mutilem-me os membros, esmaguem-me o corpo inteiro; lancem sobre
mim os tormentos cruéis do demónio - desde que eu possa alcançar Jesus
Cristo”.
- Não sejais tão radical, filha. Esses são os nossos mártires; pessoas
santas. Nós... nós somos apenas pobres pecadores.
- Que não vos acomodeis a isso, meu pai. Tenham como exemplo os
pais dessa criança que também são pecadores, mas que mesmo assim não
negaram a sua fé. Foi nosso senhor Jesus Cristo que disse que todo aquele que
O negar diante dos homens, será negado diante de seu Pai.
Nesse mesmo instante, o som de alguém a bater à porta invadiu a casa
num arrepio gelado. Como ninguém abriu a porta, acabaram por arrombá-la.
Os soldados irromperam pela casa num passo apressada, tomando para si as
saídas. Corri de imediato para junto da Maria, erguendo-a nos braços. Ela
afundou a cabeça no meu peito, evitando olhar para os soldados que tinham
levado os seus pais, e que agora, uma vez mais, pareciam querer privá-la de
uma nova família.
O comandante desenrolou o édito proclamado por Décio, lendo-o em
voz alta: