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O Monitoramento Psicossocial Nas Penas A
O Monitoramento Psicossocial Nas Penas A
No contexto brasileiro, 1 a política criminal nos últimos anos vive de modo simultâneo e, de certa
forma, antagônico, um movimento pelo endurecimento das penas, e também, um movimento de
preservação da convivência familiar e comunitária na justiça e execução penal.
Por um lado, escutamos apelos locais e nacionais, articulados a tendências internacionais, 2 para
entrarmos na “guerra contra o crime”, o que tem se configurado como um movimento político-penal
pautado em um modelo de governo centrado na exclusão social pelo encarceramento. De fato, um
movimento pelo endurecimento das penas que privilegia o aumento da duração das penas privativas
de liberdade, cumpridas integral ou parcialmente, em regime fechado. Esse endurecimento é
justificado nos (e pelos) casos, cada vez mais abrangentes, de condutas tipificadas como crime de
natureza grave, de extremo potencial ofensivo à coletividade. 3
Por outro lado, mesmo que essa relação “crime-punição” se constitua e permaneça como um dos
principais argumentos de muitas ações propositivas em políticas criminais, que sustentam a prisão
como referência central, é essa mesma relação “crime-punição”, revista por muito reformadores, que
serve também como contra-argumento para configuração de um novo paradigma no sistema penal.
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
Deste modo, escutamos também outros apelos locais e nacionais que, articulando-se às tendências
internacionais, assumiram e se conformaram ao arca-bouço conceitual-filosófico contido nas Regras
de Tóquio (1990). Percebemos, no interior da justiça criminal e do sistema penal, um movimento
político--institucional, isto é, um movimento de preservação da convivência familiar e comunitária, no
âmbito da justiça criminal e execução penal, em que são enfatizadas as ações direcionadas à
“humanização” das penas, justificadas nos casos, cada vez mais abrangentes, de condutas
tipificadas como crimes de natureza leve, de baixo e médio potencial ofensivo à coletividade, as
Penas e Medidas Alternativas (PMAs), tal como são conhecidas no Brasil.
Um movimento que tem como propósito a contraposição ao paradigma prisional e, neste ato, à
produção e à afirmação de uma nova configuração do monitoramento penal. Com o propósito de
romper com o paradigma prisional, as alternativas penais postulam as liberações dos muros das
prisões, do arsenal de chaves das sucessivas grades e das supostas divisórias das celas, de todo o
sistema de segurança e de disciplina que constituiu o modo de monitoramento penal do regime de
pena privativa de liberdade. Mas, no momento em que as alternativas penais atravessam os muros
da prisão e são, desde seu início, cumpridas no território da cidade, tornam a comunidade um campo
de execução, de responsabilização e de reparação penal. Deixam de demandar as contenções
físicas dos muros, grades e celas responsáveis pelo controle penal (prisional), mas sim, produzem
uma demanda por um novo modelo de monitoramento penal, sustentados pelas equipes técnicas e o
apoio de uma rede social (penal).
Se, no regime de privação de liberdade já é possível destacar a importância das equipes técnicas no
funcionamento dos estabelecimentos prisionais, no regime alternativo à prisão, o seu lugar é
superdiomensionado. Nas prisões, a equipe técnica é a instância que fornecerá a legitimação
técnico-científica que toma a prisão como tratamento penal, constituída predominantemente por
profissionais da área de Serviço Social e de Psicologia (e, com menor regularidade, pelos
profissionais da área da Psiquiatria, Direito, Pedagogia, entre outros). Já no modelo de
monitoramento penal nas alternativas à prisão, as equipes técnicas deixam de atuar somente no
acompanhamento/regulação e no trânsito entre regimes, para assumir o protagonismo nas ações,
em conjunto com a rede social de apoio, definida pelos locais que receberão os cumpridores de
PMAs para o desenvolvimento de alguma atividade, transformada em sanção penal (como o
trabalho, na modalidade de prestação de serviço à comunidade; e a educação, na modalidade de
limitação de final de semana).
Uma vez que afirmamos que o corpo técnico está constituído historicamente como saber (científico)
e estratégia de regulação do social desde o nascimento da prisão, na proposta das PMAs, este corpo
técnico não ocupará somente o lugar de sanções normalizadoras – que podem ser mais ou menos
questionadas no modo de pensar e de fazer das atuações dos técnicos –, mas lugares efetivamente
privilegiados na produção deste novo modelo de monitoramento das alternativas penais.
O objetivo deste artigo é analisar o monitoramento psicossocial como um modelo, como o modo de
funcionamento do monitoramento penal extramuros, demarcando o lugar ocupado pelas PMAs, no
sistema penal brasileiro, e pelas equipes técnicas e as redes sociais nas PMAs.
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
Nosso primeiro eixo de análise será o destaque ao lugar que as PMAs ocupam e ao modelo de
monitoramento penal que produzem no sistema punitivo brasileiro, recorrendo a um mapeamento
dos parâmetros legislativos, dados estatísticos, entre outras informações sobre as PMAs, no
contexto brasileiro, a partir da década de 1990, articulando isso tudo a uma discussão teórica sobre
as PMAs (Baratta, 1986; Crawford, 2009; Wacquant, 2001; Ancel, 1998; Pratt, Brown, Hallsworth,
Morrison, 2005; Crawford, 2009; Christie, 2003; Blanton, Stuart; Eijnden, 2001; Cohen, 1979, 1985).
O segundo eixo de análise destacará o lugar ocupado pela equipe técnica e rede social de apoio e o
modo de funcionamento do monitoramento penal (psicossocial) que se produz no sistema punitivo
extramuros, articulados a uma problematização ético-política da atuação técnica dos especialistas
em geral (Guirado, 1996; Baremblitt, 1992; Altoé, 2004; Rodrigues, 2007) e, em especial, no sistema
penal (Passetti, 1999).
2. O modelo de monitoramento penal extramuros das PMAs no Brasil
A aplicação e a execução de alternativas penais, que não façam uso de penas privativas de
liberdade ao redor do globo, têm recebido os mais diferentes nomes: sanção alternativa, sanção não
custodial, punição intermediária, pena alternativa, sanção na comunidade etc.
Tais alternativas são apresentadas por seus defensores como o “melhor” 7 conjunto de sanções
jurídicas operado dentro do sistema da Justiça Criminal, por evitar os prejuízos sociais e penais do
aprisionamento e, desta forma, se contrapondo ao paradigma prisional no Sistema Penal.
Esta “melhor” forma de punir das PMAs é fundamentada na preservação da convivência familiar e
comunitária, o que demanda um modo de monitoramento penal extramuros prisionais, apresentado
como uma nova perspectiva de punição, como uma moderna política penal, que se baseia na
premissa de que o crime é um fato social e um ato humano e o processo de lidar com o crime não é
concluído, uma vez que a infração foi legalmente definida e equiparada a uma sanção imposta por
lei. Haveria ainda a necessidade de compreender o crime como um fenômeno social e individual, de
impedir sua repetição, de finalmente avançar além da qualificação jurídica da infração (Ancel, 1998).
A reforma penal brasileira, de 1984, produziu a Lei de Execução Penal ( LGL 1984\14 ) ( Lei
7.210/1984) que, na consolidação da perspectiva do tratamento penal no Sistema Penitenciário
Brasileiro, pode ser considerada um marco histórico na justiça penal e na legislação brasileira.
Podemos verificar, no texto desta lei, a presença dos princípios da prisão como modelo punitivo
pautado no tratamento (correção, ressocialização, reintegração, reabilitação etc.) que, como
destacado por Foucault (1987), surge historicamente na modernidade desde o século XVIII e XIX,
tais como: (1) o isolamento social (Foucault, 1987, p. 207-227, grifo nosso) previsto na pena privativa
de liberdade (arts. 87 a 146 da Lei 7.210/1984); (2) os saberes e as técnicas (Foucault, 1987, grifo
nosso), que fornecem legitimidade científica ao sistema penal no suporte à gestão no interior das
prisões, com a classificação dos perfis da clientela, o acompanhamento das penas e a regulação
entre os diferentes regimes de pena (fechado, semiaberto e aberto; livramento condicional, 8 Centros
de Observações Criminológicas – COC, as Comissões Técnicas de Classificação – CTC, Assistência
material, à saúde, jurídica, educacional, social, religiosa – arts. 10 a 27 da Lei 7.210/1984). 9
Nesse mesmo parâmetro legislativo, instituído desde a década de 1980, as alternativas penais à
prisão estão previstas nas Penas Restritivas de Direitos (PRD) em diferentes modalidades (arts. 147
a 155 da Lei 7.210/1984; Prestação de Serviço à Comunidade – PSC; Limitação de Final de Semana
– LFS; Interdição Temporária de Direitos). Por outro lado, somente a partir da década de 1990 é
possível apontar a difusão das PMAs, demonstrada pela: (1) propagação dos parâmetros legislativos
( Lei 9.714/1998, 11.340/2006; 11.343/2006; 9.099/1995; 10.259/2001); (2) aumento significativo de
sua aplicação judicial; 10 (3) proliferação dos serviços; 11 e, mais recentemente, (4) sua
especialização segundo a tipologia penal. 12
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nos projetos e programas de PMAs no território nacional, pode-se destacar a convivência familiar e
comunitária como característica comum. As alternativas à prisão colocam em discussão alguns dos
princípios que sustentam a centralidade da prisão como tratamento penal no sistema punitivo
(isolamento social; saberes e práticas disciplinares).
Pode-se dizer que as alternativas penais rompem com o princípio de isolamento social do paradigma
prisional, na sua modalidade de “disciplina--bloco” 13 (da pena privativa de liberdade em regime
fechado). Todavia, é neces-sário reconhecer que o fato de o não cumprimento das PMAs poder
provocar sua conversão para pena privativa de liberdade em regime fechado faz com que o
aprisionamento se mantenha como referência paradigmática nas PMAs, mesmo que em situações
limites (de seu descumprimento).
E, no que se refere ao uso dos saberes e das técnicas que sustentam a “disciplina-mecanismo” 14 da
prisão como estratégia de tratamento penal, verifica-se que este princípio prisional não somente
permanece, mas é superdimensionado e aperfeiçoado. Cria-se uma nova configuração de
monitoramento penal, caracterizada por uma ação de execução penal que, desde seu início, tem um
exercício disciplinar fora dos muros da prisão, preservando o direito à convivência comunitária e,
neste ato, criando estratégias de controle penal a partir de uma rede sociopenal extramuros das
prisões. 15
Nesse sentido, pensando no trânsito entre as liberações e as sujeições (Deleuze, 1992) dos
diferentes regimes de regulação sociopenal, é possível afirmar que as PMAs representam as
liberações de um sistema penal cujo (paradigma e) controle é exercido pelos muros da prisão,
contudo, neste ato, acabam por produzir novas sujeições na execução penal cumprida no território
da cidade, cujo monitoramento é exercido pelo aparato técnico-penal que produzirá e acompanhará
uma rede social (e penal) de apoio local. É possível, ainda, destacar o lugar privilegiado ocupado
pelas equipes técnicas no exercício do controle penal, tanto nas liberações como nas sujeições às
novas estratégias de regulação sociopenal.
Nesse contexto, os técnicos não serão responsáveis somente por acompanhar o cumprimento da
pena e/ou o trânsito entre regimes mais duros e/ou mais brandos, mas vão protagonizar e ocupar
vários lugares e funções que se instituem nesse novo modelo de monitoramento penal extramuros.
Diante de tais rupturas, permanências e novas configurações do monitoramento penal próprio das
PMAs, não podemos considerar uma completa autonomia do sistema das alternativas penais frente
ao paradigma do sistema prisional. Pois, ao mesmo tempo em que as PMAs rompem com o
isolamento social, o seu descumprimento pode provocar justamente a sua conversão à pena
privativa de liberdade, em regime fechado, mantendo a prisão como referência paradigmática nas
PMAs, mesmo que relativo ao seu descumprimento. Além do fato do não cumprimento das PMAs
poder provocar a conversão em pena privativa de liberdade, mantendo como referência o regime
prisional fechado, o monitoramento das PMAs pressupõe novas estratégias de regulação social
extramuros que aglutinam a sanção normalizadora à sanção legal da pena. O modelo de
funcionamento das PMAs está fundamentado em uma tecnologia social que demonstra uma
permanência da sanção normalizadora da disciplina (persuasão), disciplina que esta presente no
paradigma prisional e reconfigurada no monitoramento penal extramuros.
3. O monitoramento psicossocial nas PMAs: uma discussão teórica
As PMAs podem ser pensadas dentro da ideia de uma nova forma de governo do crime e do
comportamento desviante, um rearranjo das relações de poder, de controle e punição nas
sociedades contemporâneas, que procura reformular o sistema penal (Pratt, Brown, Hallsworth,
Morrison, 2005).
As PMAs têm se espalhado rapidamente como uma nova forma de prática penal. Elas são
concebidas como um espaço para ação penal disciplinadora numa perspectiva sociopsicológica, que
procura fortalecer a capacidade de autorregulação do indivíduo por meio de uma série de
intervenções, utilizando--se de tecnologias psicossociais para correção ou conformação de condutas
individuais em relação às normas jurídico-sociais. O desviante ou infrator, sujeito e objeto do saber
dos programas e serviços voltados ao cumprimento de PMAs é entendido como um indivíduo com
aptidões cognitivas, emocionais e éticas para assumir a responsabilidade pessoal de autorregulação
racional.
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
Um ponto fundador e, ao mesmo tempo, problemático das PMAs é o conceito de “crimes com menor
potencial ofensivo”, que turva o campo da política criminal, pois a tradicional distinção entre o crime e
a desordem se dilui, quando as PMAs acabam por se configurar como uma espécie de política penal
do comportamento, pela qual o Estado penal age como persuasor na mudança de comportamento
de forma a reforçar a responsabilidade individual. A ideia é que os cumpridores ajudariam a si
mesmos, a partir da reflexão de sua própria conduta psicossocial, pela procura do bem-estar nas
áreas do trabalho, saúde, educação, numa perspectiva de combate à criminalidade articulada com as
proposições de políticas sociais. A mudança de comportamento promovida por uma PMA não
residiria apenas na persuasão individual, mas também pela abordagem de uma equipe
multidisciplinar no decorrer do monitoramento da pena, centrada na mudança do comportamento em
acordo com as normas jurídico--sociais (Crawford, 2009).
Destacamos o uso da linguagem no controle social pela regulação, ocupando espaços no discurso
das PMAs, nas práticas e intervenções dos militantes e profissionais responsáveis pela operação da
tecnologia penal das PMAs por meio do atendimento psicossocial. Trata-se de um tipo de regulação
responsiva, que necessariamente passa pela cooperação e participação ativa dos cumpridores – dos
regulados – e a conformidade pela persuasão.
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comunicador (Blanton, Christie, 2003). O operador da PMA enfatiza as atitudes positivas e não
somente o desvio; a PMA agiria como um comunicador que procura afastar o indivíduo do desvio,
uma tentativa de influência social e psicológica para maximizar a pena ou medida. Assim sendo,
verifica-se que na execução das PMAs, a deviance regulation theory oferece um arcabouço teórico e
conceitual pelo qual são justificadas as novas tecnologias de controle penal (e social), notadamente
no contexto do comportamento individual e particularmente no monitoramento psicossocial do
cumpridor de PMAs.
As PMAs acabam permitindo uma maior intensificação do controle dos indivíduos, quando o
cotidiano, as redes sociais e o território da cidade são tomados por um clima de política punitiva. Se
por um lado é enfatizada a “in-tervenção penal mínima” nos discursos oficiais das PMAs, o efeito da
difusão das PMAs sugere o oposto, mostrando a criação de uma considerável gama de instrumentos
de sanção e ampliação do intervencionismo sociopenal sobre a esfera da vida cotidiana, apesar das
afirmações ao contrário.
Cohen (1979, 1985) também adverte sobre os efeitos da difusão das PMAs, quando destaca o
aumento do intervencionismo estatal e/ou penal na regulação do comportamento desviante. O autor
considera que as alternativas à prisão e seus serviços se tornam facilmente suplementos. Ou seja,
no processo de institucionalização das PMAs, a implementação de serviços ou programas
regulatórios cresce quanto maior for o número de clientes. Tal fenômeno é analisado por Cohen em
sua teoria da net-widening, apontando as implicações nas mudanças formais na intervenção e
controle social do Estado, em nome do “bem-estar e reabilitação”. A rede é alargada por meio de um
controle social mais difuso e a malha desta rede é estreitada. “Em outras palavras: as ‘alternativas’
não se configurariam como alternativas, mas como novos programas que suplementam o sistema
existente ou então o expandem atraindo novas populações”. 20
Neste sentido, o monitoramento psicossocial aplicado na execução das PMAs, operado pelos
serviços e programas de PMAs, buscaria a conformidade do comportamento dos cumpridores, por
meio da disciplina e do controle, às normativas jurídico-sociais e da convivência social. Desta forma,
todos aqueles considerados desviantes, ou seja, aqueles que de alguma forma se desviam da norma
pretendida como universal são clientes e/ou público (virtual) deste sistema de punição, que exerce o
controle sobre indivíduos por meio do reforço de códigos de conduta, pelo uso de motivações que
possam ir além da penalidade específica.
A análise do papel que os agentes técnicos e a rede social ocupam nos serviços de execução de
PMAs, na operação do monitoramento psicossocial, será ilustrada pelo destaque aos princípios
metodológicos, aos procedimentos e às rotinas técnicas contidas no Manual de Monitoramento de
PMAs, 21 que não existe como parâmetro normativo, mas serve como referência metodológica
produzida pelo órgão governamental 22 responsável pelo fomento das políticas nacionais das
alternativas penais.
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
Quanto à rede social de apoio, segundo está descrito, é constituída por entidades parceiras que
“disponibilizam as vagas e viabilizam a execução penal propriamente dita” e por entidades
representativas da comunidade “que legitimam e influenciam esta prática, dentre elas: OAB,
universidades, organizações não governamentais voltadas para a área de Justiça, Cidadania e
Direitos Humanos”. 23 Produz-se uma estrutura institucional formal que propõe, suporta e fundamenta
a criação de uma rede social de apoio territorializada responsável pela execução e regulação
(monitoramento, fiscalização) do fluxo/ trânsito da população penal submetida às PMAs.
Produz-se, assim, uma estrutura institucional formal, cuja referência é reiteradamente (da equipe)
técnica, que propõe, suporta e fundamenta a criação de uma rede social de apoio territorializada,
responsável pela execução e regulação (monitoramento, fiscalização) do fluxo/trânsito da população
(penal) submetida às PMAs.
São listados os seguintes procedimentos: (1) avaliação; (2) encaminhamento; (3) acompanhamento;
(4) e, ainda, um procedimento complementar de capacitação, cadastramento e capacitação das
entidades parceiras.
Segundo o Manual, o procedimento de avaliação é realizado pela equipe técnica, por “profissionais
de Psicologia e de Serviço Social, separadamente, junto ao apenado com a garantia de sigilo das
informações”, 28 com o condenado/autor do fato ilícito encaminhado ao órgão da execução
competente, a fim de propor a pena ou a medida e a entidade parceira adequada ao perfil dos
mesmos. Esta avaliação resultará no sumário psicossocial, encaminhado ao juiz. 29
Além do fato de a clientela da PMA ser composta por um cidadão identificado socialmente como
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1.2 Cadastramento: assinatura de termo de convênio firmado entre a entidade e o respectivo órgão
da execução.
Neste contexto, a equipe técnica terá um lugar privilegiado quando exerce a função de constituir esta
rede social de apoio. Um primeiro momento de provocação/chamamento às entidades para
participarem da composição da rede (captação: pesquisa preliminar, análise e pré-seleção, decisão);
passando ao momento de composição da rede territorializada (cadastramento); para propor um
trabalho contínuo com a rede (capacitação). E, como forma de registro, contará com um roteiro de
Levantamento de Dados para Cadastramento de Entidades; de Diagnóstico Institucional, com
Evolução; e de Termo do Convênio.
Por meio do trabalho com a rede social, as PMAs transformam a comunidade num novo espaço
territorial e social para administração individual e coletiva daqueles tipificados como desviantes ou
infratores, se estabelece uma microrrede jurídico-moral de relações entre os operadores da
tecnologia psicossocial, da rede social (penal) e os administrados.
A equipe técnica terá a função de constituir e manter, no espaço e no tempo, a rede social de apoio,
assumindo a responsabilidade de delimitar a gestão socioespacial dessa modalidade de execução
penal, como é possível verificar a partir da descrição, também, dos procedimentos de
encaminhamento e de acompanhamento, tal como constam no Manual (2002, grifo nosso).
Observa-se que o corpo técnico tem um lugar de cuidador que facilitará o acesso e a permanência
do cumpridor à rede sociopenal (apresentação e/ou acompanhamento do cumpridor ao local de
cumprimento da pena ou medida); ao mesmo tempo em que, em seguida, este corpo técnico ocupa
um lugar de regulador que facilitará o controle e a fiscalização da execução penal (controle de sua
frequência). E, como forma de registro, contará com a Ficha de Encaminhamento e Ficha de
Frequência mensal.
“(…) verificar o cumprimento da pena/medida junto ao beneficiário, bem como promover a sua
reinserção e reeducação. O acompanhamento é realizado, simultaneamente, no órgão da execução
e na entidade parceira onde o beneficiário se encontra. Também é realizado um conjunto de
atividades com beneficiários para permitir uma análise sistemática de seu comportamento” (Brasil,
2002, p. 22).
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
A equipe técnica registra dados sobre o acompanhamento com o cumpridor em documentos intra
(Evolução de caso) e interinstitucionais (Relatório Mensal, assinado em conjunto com o
representante da “entidade parceira”; Declaração sobre Incidente, Avaliação Final, Declaração de
Cumprimento de Pena); e, também, registra dados sobre o acompanhamento com a rede social em
documentos intra (Atualização do Diagnóstico Institucional) e interinstitucionais (Relatório de Visita).
A entidade parceira registra seus dados e pareceres sobre o cumpridor e o cumprimento da PMA
(Avaliação Periódica, Comunicação de Incidente, Avaliação Final). E, ainda, o cumpridor também
registra seus dados avaliativos sobre a experiência de PMA (Avaliação Periódica, Avaliação Final).
Nesta rede documentária das rotinas, fica evidenciado que a tecnologia psicossocial – em especial,
neste procedimento de acompanhamento – quase que se funde com a esfera do monitoramento
penal de fiscalização, sem deixar de ser marcado pela inscrição do aspecto correcional e/ou de
cuidado da sanção penal, materializando então a duplicidade da relação de controle e de
cuidado/“reinserção social” do cumpridor de PMAs.
Diante do exposto, pode-se afirmar que apesar de a rede social de apoio se constituir como condição
de existência das alternativas penais extramuros, é a equipe técnica que sustentará o monitoramento
penal (psicossocial) nas PMAs, pois: (1) vincula-se formalmente a diferentes instâncias do sistema
de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública) e de execução penal (secretarias
municipais e estaduais); (2) atua como gestores e/ou técnicos dos serviços; (3) tem como clientela os
cumpridores de PMAs e rede social; (4) produz um conjunto de procedimentos técnicos (avaliação,
captação/cadastramento/capacitação de entidades, encaminhamento, acompanhamento) que vão
constituir a ação institucional centrais nos serviços de PMAs.
Os procedimentos técnicos descritos podem ser analisados por múltiplos aspectos, dos quais
destacaremos a articulação com as contribuições de Foucault (1987) sobre os instrumentais do
mecanismo disciplinar (exame, vigilância hierárquica, sanção normalizadora), em diálogo com as
discussões de Deleuze (1992) das disciplinas e da sociedade de controle.
Se o exame, como um instrumento disciplinar que inverte a economia da visibilidade, produz uma
individualidade no campo documentário e transforma o indivíduo em um caso (Foucault, 1987, grifo
nosso), constitui-se o fundamento no procedimento de avaliação social e psicológica realizada pela
equipe técnica com o condenado/infrator de ato ilícito (baixa, média, alta complexidade), cujo
resultado consta em uma série de documentos (entrevista psicossocial, com parecer e evolução do
caso, sumário psicossocial). Mas este mesmo exame é redimensionado no contexto do
monitoramento das PMAs, no sentido em que é ampliado no espaço e no tempo pelos demais
procedimentos previstos na captação/cadastramento/capacitação, encaminhamento e
acompanhamento.
No espaço, quando a rede social passa a constituir parte do objeto do procedimento avaliativo. Ou
seja, quando é atribuída à equipe técnica a responsabilidade de avaliar, formar, capacitar a rede
social de apoio e, ainda, efetivar o encaminhamento. E, assim, a equipe técnica assume a
responsabilidade de delimitar a gestão socioespacial desta modalidade de execução penal
demonstrada na série de documentos intra (Levantamento de Dados para Cadastramento de
Entidades; de Diagnóstico Institucional, com evolução) e interinstitucionais (Termo do Convênio).
No tempo, quando o exame se torna contínuo e modular no cumprimento de uma PMA; quando é
responsabilidade da equipe técnica desenvolver um acompanhamento periódico durante todo tempo
da PMA, tanto do cumpridor quanto da rede social de apoio às PMAs, demonstrado pelos diversos
documentos previstos em relação aos primeiros (entrevista psicossocial com parecer e evolução do
caso, relatório mensal, avaliação final, declaração de cumprimento de pena), mas com destaque ao
instrumental de declaração sobre incidente, emitido por ocasião de descumprimento da PMA; mas
em relação também aos segundos (relatório de visita, atualização do diagnóstico institucional).
Do procedimento de avaliação, destacamos duas fases: a fase judiciária (“a fim de propor a pena ou
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
a medida e a entidade parceira adequada ao perfil dos mesmos”) e a fase de execução penal
(captação/cadastramento/capacitação da rede social).
Sobre a fase judiciária, o lugar privilegiado que as equipes técnicas ocupam no monitoramento penal
das PMAs, em relação ao procedimento de avaliação com o “condenado/autor do fato ilícito”,
evidencia a colonização do judiciário pelas disciplinas (Fonseca, 2002), 31 quando o processo de
julgar é dividido e/ ou delegado à decisão técnica (“sugestão de encaminhamento”, “caráter
sugestivo”).
Mas, na fase de execução penal, o lugar privilegiado que as equipes técnicas ocupam no
monitoramento das PMAs, em relação ao procedimento não somente de avaliação, mas também de
encaminhamento e de acompanhamento (relatórios periódicos, finais e eventuais – como a
“declaração sobre incidente”), evidencia a maneira como as equipes técnicas colonizam a própria
gestão do monitoramento penal extramuros.
A partir desta difusão contínua e modular das técnicas de exame, é possível pensar no
redimensionamento também da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora (Foucault, 1987, p.
153-164, grifo nosso) inscritas no território da cidade nos serviços de PMAs, tomadas também como
instrumentais dos mecanismos disciplinares, documentados nas ações de cumprimento das PMAs.
A equipe técnica estenderá o controle penal sobre o cumpridor, incluindo também a rede social no
jogo da fiscalização da execução penal. Uma ramificação dispersa da vigilância hierarquizada, em
que é delegada uma nova função de centralidade à equipe técnica (hierarquização múltipla,
automática e anônima). Um domínio vertical e horizontal/lateral, uma vigilância generalizada,
inclusive com a participação da própria rede social (avaliação periódica, comunicação de incidente,
avaliação final) e do cumpridor (avaliação periódica, avaliação final) neste processo.
O monitoramento das PMAs demanda também uma problematização sobre o instrumental da sanção
normalizadora do mecanismo disciplinar que se caracteriza por fundamentar a norma no campo
social, a micro/infrapenalidade e sanções do e no cotidiano.
O monitoramento psicossocial nas PMAs pressupõe, tal como consta no Manual, o “modo como o
corpo político interage com o corpo técnico do sistema de alternativas penais” (Brasil, 2002, p. 17); a
articulação do mundo jurídico (conduta, fiscalização e cumprimento da pena/medida) e o mundo
psicossocial (comportamento, acompanhamento, reinserção social). Tal descrição pode ser
analisada a partir da duplicidade nas tecnologias disciplinares, tal como apontada desde Foucault
(1987) e Castel (1987), que propõem um cuidado, desde que sob controle; uma proteção, desde que
sob tutela.
Mas, no caso das PMAs, não é somente a sanção normalizadora penal dentro das prisões (disciplina
bloco); e nem a extensão da sanção normalizadora para as demais áreas da vida social como nas
áreas de saúde, educação, trabalho etc. (disciplina mecanismo). Mas, sim, a configuração de uma
sanção normalizadora penal inscrita no território da cidade. Uma sanção penal a “céu aberto”,
quando verificamos o esgarçamento dos mecanismos disciplinares e a produção de uma nova
configuração das estratégias de regulação sociopenal.
5. Problematização do protagonismo técnico nas PMAs: entre o controle e a resistência
A Psiquiatria se articula ao Direito Penal, mesmo que por meio de alianças e conflitos; quando a
cena institucional trata de um infrator que rompeu com a racionalidade (inimputabilidade) e/ou com a
vontade (semi-imputabilidade), ou simplesmente pela patologização do comportamento criminoso
(Foucault, 2001). Quando a Psicologia, aliada ao Serviço Social, se articula ao Direito Penal
alternativo, acaba por produzir uma cena institucional caracterizada por uma classificação
comportamental com o prognóstico sobre as possibilidades de (re)adaptação, por um
acompanhamento do cumprimento da pena, mas também, por sua participação e/ou centralidade da
própria gestão da ação penal extramuros.
A dispersão e a onipresença técnica na execução penal extramuros devem ser analisadas a partir
das reflexões éticas e políticas sobre as tecnologias psicossociais que implicam na problematização
dos lugares que os técnicos ocupam. Uma busca por desenhar os modos refinados de reprodução e
de produção de práticas técnico-científicas legitimadoras da associação do Direito Penal às práticas
de exclusão social, mesmo (e por) que extramuros.
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O monitoramento psicossocial nas Penas e Medidas
Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
Se nos princípios, procedimentos e rotina da equipe técnica no monitoramento das PMAs (avaliação,
encaminhamento, acompanhamento) verificamos seus fundamentos no (inevitável) exame modular e
contínuo do modo de regulação social na atualidade, o modo de operar tais instrumentais pode
imprimir possibilidades de práticas que não trabalham somente para o controle penal, mas também,
e principalmente, nas estratégias generalizadas de sua problematização, como pontos de
resistências presente nas relações de poder 32 e/ ou de linhas de fuga. 33 Uma reflexão ético-política
sobre a dispersão técnica na execução penal extramuros implica justamente na problematização dos
lugares que os técnicos ocupam e do modo como tais lugares podem ser ocupados.
Para tanto, faz-se necessário problematizar tanto o objeto (punição), como o lugar da tecnologia
psicossocial neste contexto sociopenal. Perguntar não somente sobre como funciona o paradigma
prisional, mas também sobre o paradigma punitivo de modo geral (intra e/ou extramuros); e, ainda,
sobre o lugar privilegiado da técnica neste contexto (penal).
Diante de todos esses questionamentos, passamos a uma pergunta central sobre o objeto-questão
punição. Se o movimento pelas PMAs tem o propósito de rompimento com os princípios do
paradigma prisional, será que a mesma busca pelo aperfeiçoamento da punição seria suficiente para
se apresentar como uma prática de ruptura com o Sistema Penal na atualidade?
Faz-se necessário, então, tal como o fazem os abolicionistas penais (Passetti, 1999), propor um
questionamento quanto à naturalização do castigo no sistema penal (do caráter vingativo e reativo da
pena), neste caso, o quanto as PMAs perduram como sanção normalizadora (penal) fora do sistema
prisional.
Nesse sentido, como estratégia de reflexão sobre o sistema punitivo, para além da articulação
político-institucional e operacional para a execução das PMAs, é preciso provocar uma discussão
ampliada nos diferentes espaços sociais sobre os critérios punitivos e sua relação com a questão
social, posto que os antagonismos são expostos nos encontros nossos de cada dia, nos meios
acadêmico-profissionais, político-deliberativos e da população em geral; e pauta do dia nos mais
diferentes meios de comunicação. Questões não somente sobre como o paradigma prisional
funciona (ou deixa de funcionar), mas também como funciona o sistema penal a “céu aberto”.
Tais questões podem e/ou devem ser levadas ao cotidiano das práticas concretas de PMAs, o que
nos encaminha para os segundos passos no processo de problematização proposto: a análise do
lugar que os técnicos ocupam neste novo modelo e modo de funcionamento do monitoramento
penal.
As equipes técnicas ocupam um lugar privilegiado no monitoramento penal nas PMAs, quando
“colonizam” o judiciário, tal como apontado por Foucault (apud Fonseca, 2002); mas, também,
quando “colonizam” a própria gestão da ação de execução penal extramuros.
Mas, nesse mesmo contexto, é possível verificar possibilidades de resistência e/ou de linhas de fuga,
35
em especial, no que se refere à prática do Direito. Mesmo nesta perspectiva de “desconfiança” de
Foucault “quanto à forma do Direito”, pode-se apontar a configuração de uma positividade desta
atitude crítica:
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O monitoramento psicossocial nas Penas e Medidas
Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
“(…) a atitude ‘positiva’ em relação ao direito em Foucault deve ser pesquisada nos trabalhos do
autor que permitem pensarmos formas possíveis de resistência ao poder normalizador. E
entendemos que o tema de resistência à normalização, para o autor, implica o problema de ‘governo’
(entendido no sentido amplo de arte de governar). O tema da resistência à normalização em
Foucault implica compreendermos em que medida o ‘governo de si mesmo’ pode se opor ao
‘governo em que se é submetido por um outro’ (Fonseca, 2002, p. 259).
Enfim, colocam-se questões de como atuar tecnicamente sem normalizar, principalmente, quando a
atuação ocorre no âmbito (da sanção) penal. Como despenalizar tais tecnologias de controle penal?
Como despsicologizar a psicologia? Como desassistencializar o Serviço Social?
Se a função do corpo técnico nas PMAs é atravessada pela sanção normalizadora no controle penal
(avaliação contínua, encaminhamentos formal-burocráticos e/ou fiscalizadores), seu funcionamento
pode ser tomado em sua dimensão transversal por ocupar uma instância de articulação entre os
diversos atores institucionais envolvidos (sistema de justiça, rede social de apoio, políticas públicas,
comunidade, cumpridor de PMA e sua família). Desta forma, efetivamente, o corpo técnico pode
deixar de ocupar um lugar institucional quase que exclusivamente de controle/monitoramento penal,
com encaminhamentos formal-burocráticos e/ou regulatórios, para também atuar a partir de
pressupostos emancipatórios na política criminal.
Desta forma, é possível, neste procedimento avaliativo, também com a ajuda dos abolicionistas
penais (Passetti, 1999), pensar em princípios ético--políticos que possam fundamentar o exercício
técnico nas PMAs. Ao invés do ilícito, tomar a situação-problema; 37 ao invés do criminoso, tomar a
relação infrator-vítima (para além de pensar em uma perspectiva do comportamento criminoso); ao
invés do castigo, tomar a resposta-percurso 38 como parâmetros de discussão ético-metodológica.
E, ainda, estas mesmas reflexões e princípios podem ser considerados como parâmetros de
discussão no que se refere ao trato do procedimento avaliativo contínuo e documentário da equipe
técnica com a rede social. Se, por um lado, a rede social também pode ser tomada como objeto
avaliativo (e de controle); por outro, pode ser colocada em um lugar de interlocutora nas ações
institucionais das PMAs, inclusive na problematização coletiva não somente sobre a naturalização do
castigo no sistema penal alternativo, mas dos enfrentamentos das novas demandas que emergem
desse modelo de monitoramento penal extramuro.
Se por um lado, o trabalho técnico pode simplesmente constituir uma rede social penal reprodutora
do estigma prisional no contexto extramuros e/ou contribuir para a engrenagem que exacerba o
controle penal sobre o cotidiano; por outro, são estes mesmos técnicos, que ao serem responsáveis
por formar esta rede social (punitiva), podem também promover discussões ampliadas sobre o lugar
do sistema penal na atualidade, intra e extramuros.
A execução penal extramuros cria espaços coletivos e padrões disciplinares, assim, as PMAs podem
ser caracterizadas como uma modalidade de execução penal que acontece em uma rede social
territorializada, partindo da premissa do envolvimento e participação da sociedade/comunidade,
objetivando a promoção da cidadania. As redes sociais podem ser pensadas, também, como parte
de um processo de retirada da exclusividade da autoridade penal pela supervisão e manutenção das
condutas e comportamentos nos espaços públicos na cidade.
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O monitoramento psicossocial nas Penas e Medidas
Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
A rede de apoio social pode auxiliar na produção/mapeamento de novos territórios para o cumpridor
de uma PMA, conseguindo alterar o lugar social que pode ocupar na estrutura e dinâmica
institucionais. Mas, para isso, faz-se necessário discutir e problematizar os paradoxos característicos
de uma ação institucional de execução penal comunitária: como trabalhar com a questão penal fora
dos muros da prisão. Para tanto, há de se debater não somente o encarceramento, mas o caráter
vingativo da pena (típica do suplício como estratégia punitiva) e, também, o caráter corretivo da
sanção normalizadora (típica da disciplina como estratégia punitiva), favorecendo, dessa forma, uma
discussão sobre a naturalização do castigo como estratégia punitiva. Eis um desafio ao corpo técnico
e à rede social no cotidiano institucional das PMAs, de problematização no território social sobre a
naturalização do castigo no sistema penal.
6. Considerações finais
As PMAS são apresentadas como uma nova instituição socializadora, uma ambiciosa reversão no
processo de “dilaceramento” da cidadania (onde família, escola, sociedade falharam). E de forma
operativa, as PMAs constituem uma nova microfísica do poder, de Foucault, ou seja, uma rede de
poderes locais marcada pelas interações entre indivíduos e grupos, buscando definir/ incultar normas
de conduta, reproduzir valores e disseminar orientações para a ação social com as dimensões
subjetivas e objetivas para prevenção das variadas formas de criminalidade, desvio e violência.
As PMAs vêm cumprir um papel instrumental (exercido pelo corpo técnico) de gestão (controle) da
sociedade, inibir comportamentos onde a punição alternativa e a responsabilização do cumpridor
estão para garantir a governabilidade do cotidiano e estabelecimento da civilidade.
Diante do que foi apresentado, é possível apontar rupturas das PMAs com o paradigma prisional,
quando a execução penal passa a pressupor a formação e a manutenção de uma rede social
territorializada. Mas também, é possível verificar permanências e novas configurações do sistema
sociopenal, pois o seu funcionamento pressupõe novas estratégias de regulação social extramuros
que aglutinam a sanção normalizadora à sanção legal da pena por meio do trabalho da equipe
técnica e da rede social, sendo difícil considerar uma autonomia do sistema das alternativas penais
frente ao sistema prisional.
Embora o discurso das PMAs seja do desencarceramento, podemos verificar o aumento da punição
por meio de um maior controle penal, demonstrado não só pela superpopulação carcerária, mas
também pelo rápido e consistente crescimento daqueles cumprindo penas alternativas à prisão. A
crise das prisões e a expansão dos domínios do direito penal promovido pelas alternativas à prisão
são acima de tudo uma (re)legitimação do controle social por parte do Estado.
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O monitoramento psicossocial nas Penas e Medidas
Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
Pela análise do lugar da equipe técnica na execução das PMAs, percebemos como as alternativas à
prisão apresentam-se como novas estratégias de regulação social, como um modelo de
monitoramento sociopenal. O corpo técnico ocupa o lugar de facilitador/cuidador entre os
cumpridores e a rede social, ao mesmo tempo em que este corpo técnico ocupa um lugar de
facilitador/regulador da/na rede de controle da execução penal.
Neste sentido, uma atuação técnica nas PMAs que questione sua inserção normalizadora
possibilitará reconfigurar o lugar que ocupa na rede sociopenal alternativa. Partindo dessa
perspectiva, a equipe técnica pode assumir com a rede social um protagonismo mais propositivo de
uma ação penal territorializada, criando estratégias generalizadas de problematização sobre a
naturalização do castigo e da ação penal extramuros.
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O monitoramento psicossocial nas Penas e Medidas
Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
2 A referência à política de tolerância zero, adotada em Nova Iorque, resume as ideologias ao redor
do globo preconizadas pelo endurecimento punitivo a infrações consideradas menores e ações
agressivas de imposição da lei em espaços públicos como escolas; ações de publicização de nomes
de infratores; políticas de máxima vigilância nas cidades (Bowling, 1999; Fyfe, 2005).
3 No Brasil, a Lei de Crimes Hediondos ( Lei 8.072/1990), além de instituir uma hierarquia na
gravidade de alguns crimes, estabelece que, em tais casos, a pena será cumprida integralmente em
regime fechado. Em 2003, é estabelecido que o regime seja inicialmente fechado, possibilitando a
progressão de regime durante o cumprimento da pena. E, atualmente, temos projetos de lei (PLS
190/2007, PLS 75/2007, PLS 30/2008) que propõem o aumento da permanência no regime fechado
e/ou o aumento do controle técnico para regulação do trânsito entre os diferentes regimes de pena
(exame criminológico).
4 A questão do efeito criminógeno das prisões evoca uma gama de teorias e teóricos. Aqui
recorremos somente a Baratta (1986) para ilustrar o debate. Segundo o autor, a pena dessocializa
pelas seguintes razões: (1) “desculturação” do indivíduo: a redução do contato com o mundo externo
e o distanciamento progressivo com os valores e modelos de comportamento da sociedade; (2) a
“prisionalização”, ou seja, a incorpo-ração da cultura carcerária; o indivíduo é educado a se
reconhecer como criminoso e bom preso.
5 Vigiar e punir, de Foucault (1987), tornou-se um clássico nos estudos, históricos e atuais, da
prisão. O autor aponta a prisão como uma estratégia punitiva e corretiva, articulando-a ao modo
como a modernidade iria instituir suas estratégias de regulação social (controle e cuidado para com a
população por meio da “governamentalidade”). Deleuze (1992), dialogando com as reflexões sobre a
emergência de uma sociedade disciplinar na modernidade, proposta por Foucault (1987), propõe a
discussão a respeito de uma passagem da sociedade disciplinar, pautada na distribuição do espaço,
no controle da atividade, no controle do tempo e na composição de forças, na moldagem e
especialização de estratégias de enclausuramento como na família, escola, fábrica, hospital, prisão;
para uma sociedade de controle na atualidade, mais especificamente, a partir da segunda metade do
século XX, pautada pela interpenetração dos espaços e formação de redes, do controle contínuo no
tempo, na modulação constante e universal que regularia em regimes abertos as malhas do tecido
social.
6 Utilizamos o recurso etnográfico da participação observante, pelo qual se pode afirmar que os
autores, profissionais inseridos no campo estudado, mantiveram (e mantêm), simultaneamente,
aproximação e distanciamento analíticos com o “objeto” (Durham, 1978, 1998; Velho, 1987).
7 “A solução não é punir menos, mas punir melhor”, chamada de uma campanha nacional pelas
alternativas penais do Conselho Nacional de Justiça, veiculada nos meios de comunicação, como
também no sítio oficial da instituição. Disponível em: [www. cnj.jus.br]. Acesso em: 25.04.2010.
8 Questões polêmicas, tal como apontado na nota n. 3, abordadas na Res. CFP 9/2010, do Conselho
Federal de Psicologia, que trata como falta ético-disciplinar a realização de exame criminológico.
9 Cabe acrescentar que a atividade do trabalho é apontada por Foucault (1987, p. 207-227) como
um terceiro princípio da prisão como tratamento penal, também presente na Lei 7.210/1984 ( LEP (
LGL 1984\14 ) ) como recurso a ser utilizado na pena privativa de liberdade (arts. 28 a 37 da Lei
7.210/1984) e também na pena restritiva de direito (arts. 149 a 150 da Lei 7.210/1984). Apesar da
importância da análise, tal princípio não será posto em discussão neste artigo.
10 No ano de 2008, foram registrados 558.830 casos de aplicação de PMAs e 446.764 casos de
pessoas presas. No entanto, é necessário destacar que dentro desse universo, 101.019 são penas
alternativas e 457.811 são medidas alternativas. Gomes (1999) afirma que penas alternativas são
sanções de natureza criminal, e medidas alternativas são instrumentos que visam a não aplicação ou
não execução da pena de privação de liberdade ao autor de infração penal, permitindo que, sem
deixar de reconhecer sua culpa, haja solução negociada, por meio do cumprimento de exigências
que podem ser ou não similares às penas alternativas.
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O monitoramento psicossocial nas Penas e Medidas
Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
11 Desde 2008, existem 19 Varas de Execução de Penas e Medidas Alternativas (Vepma) e 306
Centrais ou Núcleos responsáveis pela execução e monitoramento das PMAs.
12 A Portaria Depen 4/2010, do Departamento Penitenciário Nacional, que trata dos critérios para
financiamento com recursos do Fundo Penitenciário Nacional, estabelece como uma das prioridades,
no tocante a PMAs, as ações que “contemplem o monitoramento dos infratores nas áreas da
violência doméstica e familiar contra a mulher, da saúde mental e do uso abusivo de drogas, da
violência nos estádios; dos acidentes de trânsito; dos crimes ambientais; e do porte ilegal de armas”
(art. 11, V, d , da Portaria Depen 4/2010).
13 “(…) instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funções negativas: fazer
parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo” (Foucault, 1987, p. 184).
14 “(…) um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder, tornando-o mais rápido,
mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma sociedade que está por vir. O
movimento que vai de um projeto ao outro, de um esquema da disciplina de exceção ao de uma
vigilância generalizada, repousa sobre uma trans-formação histórica: a extensão progressiva dos
dispositivos de disciplina ao longo do Século XVII e XVIII, sua multiplicação através de todo o corpo
social, a formação do que se poderia chamar grosso modo a sociedade disciplinar” (idem).
15 Uma coisa é a disciplina-mecanismo que regula a pena privativa de liberdade e seu regime
progressivo/regressivo. Outra coisa é a disciplina-mecanismo se estender para as mais diversas
facetas do cotidiano, levando sua marca penal da infrapenalidade quando imprime uma regulação do
que constitui uma conduta adequada ou inadequada do ponto de vista social. Outra coisa, ainda,
diferente das duas anteriores, é uma ação penal que, desde seu início, tem seu exercício disciplinar
fora dos muros da prisão, justamente por preservar o direito (fundamental) à convivência familiar e
comunitária. Enfim, uma ação penal que se sustenta pelo exercício disciplinar no campo da
execução penal, sem a ruptura das relações socioafetivas do cumpridor de PMA, assegurando a sua
permanência e trânsito no território da cidade.
19 A proposta da deviance regulation theory está na autorregulação das pessoas (aqui cumpridores
de PMAs), com base na percepção das consequências sociais de se desviar das normas de
comportamento, mais do que nas consequências percebidas de conformidade com as normas de
comportamento (Blanton, Christie, 2003; Blanton, Stuart, Eijnden, 2001).
20 “In other words: ‘alternatives’ become not alternatives at all but new programs which supplement
the existing system or else expand it by attracting new populations” (Cohen, 1979, p. 307).
21 Brasil. Ministério da Justiça. Manual de monitoramento das penas e medidas alternativas. Brasília:
Secretaria Nacional de Justiça/Cenapa, 2002.
23 Brasil. Ministério da Justiça. Manual de monitoramento das penas e medidas alternativas cit., p.
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Alternativas (PMAs): uma tecnologia disciplinar
15.
24 Idem, ibidem.
25 Idem, ibidem.
26 Idem, p. 16.
27 Idem, ibidem.
28 Idem, p. 35.
29 Idem, p. 22.
30 De acordo com o Manual de monitoramento das penas e medidas alternativas (2002), os casos
considerados de baixa e média complexidades são avaliados como “aptos ao encaminhamento
imediato” (p. 32), sendo que o de média complexidade ainda precisará de um “acompanhamento
sistemático” (p. 55); e o de alta complexidade é aquele “que tem quadro agudo de neurose, psicose,
psicopatia, dependência química e necessita de avaliação psiquiátrica” (p. 32).
31 Ao analisar as relações das contribuições de Foucault no campo jurídico, observa-se que: “na
medida em que a lei funciona mais e mais como norma (no sentido foucaultiano), a forma possível do
direito torna-se mais e mais comprometida com os mecanismos de normalização. Em tal hibridação,
lei e ordem social aparecem como dependentes uma da outra, misturam-se, o que reafirma a forma
normalizada do Direito” (Fonseca, 2002, p. 258).
32 O termo resistência é tratado aqui tal como Foucault (1995) discute, como aspecto presente em
toda relação de poder.
34 Ver nota 7.
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