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A Lei da Gravidade não rege o voo dos anjos

a Maria Lúcia Merola

Os Cantos
I

Os deuses, que traçam o caminho


através da nossa dificuldade em percorrê-lo,
são pontos de luz inseridos nos mapas da eternidade.

Medidas que nossos cálculos não preveem,


intensidades que nosso padrão não alcança
para entender de braços abertos
que o coração deste peito
ainda não aprendeu a dor de bater sorrindo.

O ritmo que determina a distância


entre nós e os anjos
pode ser apenas
uma fração amarga
no doce movimento das estrelas.

II
Pão
a Ora Goldfriend

A fome que me encontra hoje


não é mais um jejum sublimado e voluntário
ou herança legada pela espécie humana
como recurso que me justifique estar vivo.

Minha fome hoje busca um pão pelo deserto interno


onde o milagre de encontrá-lo
seja a resposta ao sacrifício da procura
e a compreensão íntima dessa graça
permita enfim que ele se multiplique.

III

Se luzes mágicas tocam a noite do amanhecer,


olhos noturnos, cegos por tanta luz, negam o dia.

Depois, o elo que conduz os fantasmas


do nosso castelo interior será incinerado lentamente,
varrido com rastros que não levaram a lugar algum de nós,
os ausentes de sol, em quem a direção apenas prevê limites
e o coração saturado oscila entre o desejo e o sono.

Quando luzes mágicas tocarem a noite do amanhecer,


o tempo denunciará em sopranos que estivemos atribuindo
a mecanicidade caduca dos relógios
à alegria viva e giratória dos parques,
acreditando em escadas que conduziam a precipícios,
investindo lúdicos nas asas que havíamos construído em sonhos
em meio à tirania da selva.

As feras não medem distâncias


e acreditam ser a mesma
a areia dos desertos e das praias.

Dúbias, rugem debaixo do sol suportando voos de cera


enquanto bélicos, doces e alados, indomáveis pela conquista
os arcanjos insultam o pânico das jaulas em plena batalha.

Entre a vertigem do ar
e a abdicação completa das asas
nossos pássaros roubam-se indecisos
perante a miragem do voo
e a conquista silenciosa do ar
subvertendo rápido a estreita condição
de serem também belas feras emplumadas.

Aprenderão a sagrada ousadia das uvas


destilando melhor o vinho do seu sacrifício
para o ácido vinagre dos tempos?

Resta-lhes como resgate, o canto.


A grande possibilidade fugaz
porém eterna, se lembrada.

E que tal canto discorra então


sobre a longa trajetória que o trouxe
do seio escuro da terra como semente
à agonia e êxtase de ser flor um dia,
à sublime condição de ser todo o jardim
traduzido numa única pétala
à luz enfim que lhe dá brilho
e imprime a forma pela qual a lemos viva,
sublime, alheia a praias, desertos ou canções:
mágica luz, flor por um dia!

E se luzes mágicas tocam o dia de amanhecer...


Mágica luz! Mágica luz!
Flor de todos os dias!

IV

A urgência do circo
impede que saibamos o script de antemão.
Além disso é necessário levantar a lona,
dispor cadeiras, preparar o sorriso do palhaço
e compreender também que nem sempre é tempo de aplausos
mesmo porque os papéis são muitos e faltam atores nessa troupe.

É então
que o domador de feras
vê-se equilibrista, mágico e acrobata
e a velocidade inadiável do espetáculo
exige sempre o melhor de seu desempenho.

Quando ele abre seus olhos azuis pintados


o circo está vazio e os ursos já foram dormir.
Olhando para o alto, a lona azul do teto é um céu de estrelas
costurado de sereno.
V

O caminho, que também é feito de desertos


me diz que eles são escaldantes e muitos.

E por mais enfática


que seduzindo a febre afirme,
miragens nunca serão oásis de verdade.

VI

O Itinerário de Ariel

Por rumos que se confundam


jamais se definam.
Nunca determinar o itinerário em xeque-mate
como quem já conhece o fim.

Sobretudo
o mar quer que se continue assim:
Eleitos do naufrágio
fomos nós, os poucos sobreviventes,
dar à Praia da Conquista.

Era a vida.
E nós, quase abissais
contemplamos então nos olhos uns dos outros
o mesmo ar que se respira em conjunto
quando somos
nada mais
que réus absolutos do mesmo sono.

VII

Ouvir de braços abertos


a canção meteórica das estrelas
pode custar a dor
de nossas máscaras caindo
pela larga extensão
do sorriso
em silêncio
que o estreito alcance delas
aos ruídos
não comporta

VIII

E então o silêncio prevalece sobre os dias,


passam-se anos e qualquer definição ainda será um limite
à concessão elétrica e muda da manhã que surge infinda
transformando o pavor trôpego no puro ritmo a devorar espaços
que existe nos balanços e no coração que oscila:
Pêndulos em parques diferentes...

IX
Rerum Natura
a William Blake
I

Dizia uma alta montanha:


- Pacto de solidão que não fiz,
a que propósito serve
a febre incomum de indivíduo
que abrange toda a floresta de que sou feita?

E pelas suas lâminas cortantes de seda


o vento respondia em seu hálito gelado
no farfalhar das grandes árvores:
- O sentimento que ninguém vê!

E uma das grandes árvores


no limiar de sua terceira vida, perguntava:
- Que história meu ser abriga
de semente tão distante
se passos a percorrer em fábulas
não se pronunciam em minhas raízes?
A terra que em acalanto dormia
levantou sua voz de húmus
e solene cantou por entre o musgo:
– O nascimento e a morte
que são tua herança guardada em mim:
Teu berço e teu túmulo!

II
A verdejar na floresta
um pássaro branco pousado
ouviu o final da canção
e quis da terra saber
qual o segredo do voo.

E a terra outra vez cantou


através de seus lábios de lama:

Sou largo útero para o fundo


e cumpro cega gestação
de minerais e cigarras.
Por vezes me sinto redonda
e é remota essa lembrança
parece uma gravidez constante
que nunca encontra a resposta de um parto
Intuo rios em meus sonhos...
sei de um mar louco e embriagado
porque um latejar salgado me indispõe
e é um sabor meu que trago de outro lugar
pulsando bravio neste ventre negro.
Nada sei da arte do voo,
pois não sou vento.

III

Mas posso contar que uma tarde


um outro pássaro veio
trazendo um fruto encontrado
que caiu de seu bico amarelo
e que hoje é a árvore de três vidas
que não sabe de onde veio.

Muitas outras primaveras


e outros pássaros voaram
até que um ninho fosse feito.

De dois ovos azuis pintados


um, as serpentes comeram
o outro, indaga segredos
de mistérios dos quais não me componho.

Quanto à montanha,
se esquecesse a metafísica
de sua imponente altura
sentiria que em seu íntimo
há uma cidade soterrada
e um mapa claustrofóbico e imóvel
está impresso em camadas geológicas
mais reais, embora inertes,
que sua pretensa solidão
Volto a dormir, antes que para vocês
o infortúnio,
faça de mim
um vulcão!

X
A Mandala e o Vitral
a Jalaluddin Rumi
Busquei a métrica de cada cor
para enjaular o sol através dos vidros
no piso gelado da minha catedral sem teto

Tarde da noite
o céu era uma realidade entrevista
pelas paredes nuas
e a lua infiltrava-se em brilhos azulados
cumprindo sua trajetória de sol noturno
em zodíaco de pedra

Encontrei
num rastro de luz que alcancei fugaz
estilhaços vermelhos e amarelos
que aos cacos
descreviam histórias, ilíadas,
apontando o círculo das direções
em minhas janelas entreabertas
e me vi também ali
escrevendo este poema para os deuses
de frente para a eternidade
nu e destemido
livre, numa oração sem palavras
de mãos postas e braços abertos:
anjo sem tempo

XI
Preparação para Fênix

Partiu-se o espelho em vários outros


e sua imagem remota despiu-se de reflexos
Não há sombras que me tragam medo
Aprendi com o sol as consequências da luz
e engulo a seco minha sede de mim
enquanto filtro o sal que me queima
para celebrar em substâncias próprias
um fermento interno que me traga o pão
O fogo interno que consome as horas
é o mesmo que agora em milagres me alimenta

XII
Voo

O jardim encantado de sombras


cede espaço à liberdade das flores.

Sua partida para o Éden,


trouxe o reparo das minhas asas.

XIII
Noto

O vento gelado do inverno aponta para dentro


como só sabem ser esses dias frios.

Minha sina das facas à poesia,


meu momento neutro em meio ao dia
que cumpro como um ritual que arde,
queima às vezes, e corta.

Mas não impede que os sinos mais próximos


repiquem acesos a hora e o silêncio.

A esmo é que não saio.


Este ano o carnaval será dentro do meu quarto.
Serei Pierrô, Arlequim e Colombina!
Um samba enredo costurado dia após dia
com a bainha desfeita pelo gasto na avenida.

Tento falar dos ventos e são minhas tempestades o que trago à risca,
bebo labaredas enquanto um traço de velocidade
me impede torto que eu veja a pista.
Saio cedo enquanto ainda há estrelas
e cozinho para a cidade fria, embora minha fome maior
fosse envenenar o mundo em alcaloides.

Porventura meu desejo é degustar poetas e pinturas,


brindar num carrossel mais um destino que um começo
de evidência tão pitoresca quanto o coreto de uma praça.
Ainda pertenço, sim, à estrutura da massa.

Como padeiro, tenho hora para ser dono da rua


e me calo quando saem os pães.
Quando chove muito, a umidade relativa do ar
compromete a levedura. É preciso estar sempre atento.

A princípio tudo aparece em branco e preto


mas com o tempo, o forno começa a contar seus segredos
e ainda que as respostas deem seus naipes em pálidos matizes
novas cores terminam sempre num arco-íris sobre os edifícios.

E além da aparente e casual neblina muitas vezes


devo confessar impune e num travo de felicidade
...que estranhos perfumes me perseguem.

O Livro das Revelações

Alfa

Além do universo visível


reside a memória dos deuses,
pérolas a quem servimos
ainda como o rude das ostras.

Visão

Quando eu finalmente beijar meus espelhos


sem que a miragem quebre-se em meus lábios
saberei que será a hora da neve cobrir
as pegadas deixadas pelo acaso sem tempo.
Haverá um paraíso em cada olho
e o alcance deles, aos meteoros
suplantará em brilho o incômodo estático
de qualquer resquício ou qualquer inferno
que porventura possa ter construído
em delírios ou sonhos.

Raga

Beijamos o céu
enquanto nossas bocas ainda cantam
o arado entre dentes da última colheita
e o trigo amarga lêvedo seu futuro de pão entre as estrelas.

Na rotunda brinca um sorriso pintado de cenário


e das coxias
– ainda que às plateias famintas seu texto não atenda –
Deus sussurra breves canções de êxtase
falando do significado dos mundos: maná plausível!
Não há noite, tarde ou dia
nem quem atue ou assista.

Regras mecânicas cumprem


vagando espirais da eternidade
sua rota a nos impor limites e chão.

Que a revelação de um amanhecer redentor nos atravesse!


Invadam finalmente as crianças
os parques abandonados onde já brincamos um dia
e que o ranger dos balanços agora
coincida com uma revoada de pássaros livres.

Assim, a fúria dos deuses implacáveis


irá ninar os vampiros
para depois decepá-los em seus leitos de morte
Então surgirá Adlux e sua legião de arcanjos
para cantar durante o pesadelo
e brincar com as crianças
transformando o pavor trôpego
no puro ritmo a devorar espaços
que existe nos balanços e no coração que oscila.
A referência é um pêndulo;
Permitam jardins ao redor das indústrias e automóveis!
depois, e só depois, quebrem todos os relógios!

A Fonte dos Desejos

Adônis me conduzia
e, buscador ingênuo, cheguei enfim
à Fonte dos Desejos
e pedi meu antigo rosto.

"Qual deles?" perguntou-me a voz da fronte


de ser humano e de ser água
da voz da Fonte.

Traga de volta o mais belo,


o da primeira juventude!

"Não seria esse o mais belo.


Se o mais belo é o que pediste
não é ele o dessa idade.
Queres, dentre todos, aquele
que em realidade é o mais belo?"

Sim, respondi, eu quero!

"Pois olha teu rosto na Fonte e vê:


que o teu mais belo rosto é este:
o de hoje,
cujo sopro anima o presente
que agora sustentas
a esta parte do teu próprio tempo
como ser na Terra.
Beija, pois, tua fronte
e celebra
a tua vida
o teu destino
que aqui te trouxe
a ouvir teus desejos na Fonte.
Beija. Beija tua própria boca na água da Fonte!"

Epithalamium

Poderia compor uma canção neste momento


para que o lirismo transformasse a justiça dos deuses
numa moldura confortável.
Mas a sede de ser humano e de ser tosco
me encontra aqui, impávido perante o alto
mergulhado no limite do que compreendo.

Tudo o que sei é o que vivo, quando muito!


E minhas verdades não sustentam sua gramatura na balança
porque não sou, não estou, não comporto.
Pesa um estreito mas ainda há amplitudes e relevos em minhas pinturas.

Às vezes vou até o mar e os ventos trazem consolo


Mas jamais ecoam a voz dos que se foram.

As conchas são monocórdios e o mar não conforta.

Então começo tudo outra vez em branco


compondo novas canções para amigos que continuam partindo
príapo impotente perante urgência de prazer e despedidas,
encomendando pincéis junto ao próximo entardecer
enquanto os jornais imprimem a vida em preto e branco todos os dias,
cantando as musas durante o pesadelo para honrar as horas de batalha,
todas elas, da que se faz pelo pão cotidiano
à que se é pelo pão da vida consubstancial.
Nem uma vírgula vã!

Do Porto e suas Vozes

Todos os adeuses traduzem palavras não proferidas,


mensagens que os oceanos não souberam guardar do eco das ondas,
as conchas não puderam repetir às crianças que brincavam na praia
e aves do entardecer consideraram um capricho
escrito nas areias rosadas de um verão.

Distante dos que ama e que no porto o esperam,


guarde dentro de sua bagagem cigana e hermética
um livro de poemas para ler ao acaso e sem tempo,
mais perto do universo em expansão que de sua cama,
mais eloquente em presságios que os oráculos de Delfos em acertos,
alegre por considerar a trajetória dos voos dos aeroplanos
um reflexo cósmico das gaivotas em transe e mais nada.

Um coração magnífico ri seus internos


enquanto o tempo costura meias de viagem quase por descuido
e outros seguem o compasso do relógio
no mesmo ritmo que o coração impávido suporta a violência dos ponteiros,
como o poeta negro Edu Natureza
escreveu um dia nas paredes de um viaduto.

Mas se sua alma for livre e isenta,


alheia a aeroportos ou canções de despedida,
então sim a luz falará por si mesma,
solta como alguém que esperasse amanhecer no mar
indiferente aos navios e seus tamanhos,
encantada com o brilho e humildade absoluta das estrelas
que ainda estivessem ali…

Silêncio. É a vez do sol no poema.


Ode a Walt Whitman

Do meu pequeno quarto uma janela abre-se para o mundo


e contemplo livre o sabor de uma nova estação
na dimensão sonora e reverberante de uma tarde de domingo.

Crianças brincando perto e um cão latindo ao longe,


aviões que porventura passam e fogos de artifício celebrando alguma vitória
porque isto é o que está à minha frente:
A paisagem de um recanto qualquer numa cidade do Brasil
um dia antes do aniversário de Walt Whitman.

E daqui, sem o alarde dos fogos,


quero também celebrar minha vitória sobre mim mesmo
cantar o prazer de ouvir os sons mais usuais
com ouvidos atentos de quem descobrisse
a graça da chuva caindo sobre as folhas
mas de uma forma que ainda tivesse surpresa e impacto
como no primeiro dia dos mundos recém criados por Deus.

A vida que passa pode ter um encanto oculto por trás da cena,
das notícias do mundo ao barulho dos vizinhos
dos freios dos automóveis a uma criança que chora sabe-se lá onde.

Que a bruxa se entretenha com seus próprios caldeirões!


Olhemos a estrada com olhos de fada madrinha!
Então a varinha de condão poderá ser de utilidade e valia
e o caminho será fartamente coberto pelas flores
lembrando Delos, no dia do nascimento do deus Apolo.
Assim como Leto, a de áureas tranças, depois de tantas tempestades,
poderemos reconhecer finalmente que o propósito da vida
é enobrecer a poesia e evocar o divino.
E poderemos nós também gerar os deuses gêmeos.
Só o sagrado conta, assim como a alma,
que é tudo o que se perpetua
e este momento, que é tudo de que dispomos.

Só o sagrado em nós permanece.

Esfinge

Com um sorriso que ri para dentro


sigo estradas que me levam onde sequer planejei.
Como quem voasse em círculos ao entardecer
rio para dentro quando penso na amplitude de céus por conquistar
e os círculos de voo transformam-se em espirais ascendentes
na direção de todos os paraísos e pássaros que desconheço.

Eu não teria a sabedoria dos arquitetos


para planejar a pavimentação das ruas
que a simplicidade dos anjos em curso agora me aponta
em pedrinhas de brilhantes
nem teria também a consistência dos alicerces
ou a leveza inenarrável dos aeroplanos
para manter a trajetória dos aeroportos em transe.

Meu destino é não saber a cor da próxima manhã


e ainda assim esperar por um sol que seja claro
para brilhar no céu do meu país interior.

Sei que o alimento que porventura me atende


contém a receita intransponível do segredo
e não tenho como plantá-lo eu mesmo:
ele cai do céu como um maná que as estrelas concedem
e milhões de outras galáxias ordenam.

Voar me sustenta ao mesmo tempo que me apavora.


Sigo avante porque meu destino pássaro me trouxe
e voar é a condição daqueles que são alados pela conquista
onde a decolagem se faz ao sabor de uma canção.

Ômega

Atrás das pilastras do tempo


reside um deus cego e surdo
alimentado a migalhas e água de chuva.

Por vezes sua voz insurge-se do branco dos mármores


e ele canta alguma saga que ouviu contar
em seus sonhos de almirante.

Meus soldados ainda não aprenderam


essa linguagem de pedra
porque não sabem que são mudos.

Algum dia, após muitos dilúvios


as cidras serão maceradas em vinhos embriagantes
e Deméter trará sua colheita de trigo
distribuindo pães entre personagens famintos.
Será um sinal da formação rija
de um exército quixote
a conquistar enciclopédias adentro
loucos moinhos de vento e girassóis ao sol.

Do Tempo de Vinho e Rosas

A Biologia dos Seres Alados

Cultivei algumas flores


de um aroma independente.

As ervas que tomaram de assalto o jardim


foram cortadas na manhã deste primeiro dia de primavera
enquanto abelhas sobrevoavam todo o tempo
atentas ao pólen essencial de cada uma das roseiras
e assim transplantaram, transcenderam
os limites visíveis do jardim sem muros
que sem asas eu não vi aberto.

Mas ouvi sentinelas dizerem


que toda a floresta está por florescer
e que na selva as feras cederam espaço
a um novo ecossistema de encanto.
Então numa dessas suaves manhãs de despertar
Deus finalmente dançará com as crianças.

Carrossel
Brilho pelo silêncio de futuros dias que virão.

Espero mudo palavras que me conduzam a um lugar


onde o barulho das armas não atinja os corações abertos.

Sei apenas que minha alma é flor de todos os dias,


de todas as estações e estrelas e sóis
e que ainda posso cantar o conteúdo
das atmosferas em transe por tempestades à risca
e olhar profundo a perspectiva da noite inteira
já que relâmpagos noturnos permitem
a visão aterradora da chuva em sua total poesia.

Meu coração é criança simples cantando no parque


perto dos balanços e do carrossel de madeira
em meio aos trovões e raios dos céus magníficos.
Uma criança malcriada que os deuses
estão ensinando silenciosamente a voar.

Varanasi

Um chamado me atende
e incomodado pela ausência
sou obrigado a voltar à eterna Varanasi.

Uma sentinela viva tomou forma


na cidade dos mortos.

Em Benares entrei como mendigo.


Hoje, em jejum, peço pelos famintos e loucos de Deus
e as chaves de Kashi me pertencem.

Sou aquele que tem acesso ao trono do mundo


e ama ser um escravo do Rei.
Ainda que tenha o tesouro
nada me pertence.

Lex Dei

As naves de Orion retornarão


para autuar o tráfego das direções
tomado pelos aeronautas cegos por tanta luz.

Nesse dia as insígnias serão incineradas


junto às piras dos uniformes dos guerreiros.
Todos estarão nus perante Deus.

Trégua

Passo em revista um olhar sobre os soldados


para estabelecer um vínculo estratégico
entre o fogo da batalha premente
e meu número restrito de guerreiros.

Pelos campos do Valhala há cheiro de suor e sangue


e os trapos desfraldados ao vento
são espantalhos testemunhas da paisagem nos estandartes.

Tenho cantado o clamor dos campos de guerra


como epopeias de brinquedo
que desmerecem a prática de cada verso
e não exercem as rédeas do domínio
cedendo aos caprichos dos moinhos
para desvantagem irrecuperável da infantaria.

Qual o sentido da batalha se a discórdia não me conduz


à conquista da linha de frente do meu próprio exército?

Reconhecer minha covardia enquanto general


tem sido a tática desta luta.
Enquanto engrenagem esta trégua se perguntou
pelo fim de todas as guerras
implorou a volta do sono mas não o terá,
inseriu-se pertinente pelas entranhas,
cúmplice reverberante de todos os desertores.

Mas à máfia do Hades


com essa canalha do degredo!

Passo em revista um olhar sobre os soldados


para estabelecer um vínculo estratégico
entre o fogo da batalha premente
e meu número restrito de guerreiros

Estou acenando à volta dos conflitos!


Assim eu também vivo a luta
entre as trevas que me prendem
e a redenção que é minha luz
e não considero o quanto o que é noite em mim
procura decifrar, noturna, o milagre do meu dia
querendo contrapor a lua ao sol.

Esta é minha pintura de guerra


e quero prolongá-la à exaustão de um tango
que será minha dança de combate comigo.

Seremos só nós dois sob as nuvens de um dia cinzento.


A chuva trará uma resposta a esse ritual.
Lavará os campos de batalha
onde depois plantarei trigo, milho e um vinhedo.

Cada colheita trará em seu íntimo os cantos de guerra silenciosos


que a água velou flexível do ventre negro da terra
e calará a fome de todos os meus guerreiros com seu pão
inebriando com seu vinho de amor minha doce amada
a quem então conquistarei quando sagrado herói de meu brinquedo.

Eclipse

O caminho até o sol


é extenuante e leve.
O suor que brincava em sulcos pela face
era apenas parte das leis terrestres,
como lágrimas ao contrário.

Um fogo incendiou minhas paisagens


e a rota dos tuaregues encontrou seu oásis numa praia
que nunca esteve nos mapas nem registros.

Segui uma das caravanas enquanto ainda era noite


e reconheci o cheiro de mar por trás do deserto
quando afinal amanheceu.

Então fui ter em todos os portos,


no Cais de Todos os Adeuses
apenas um limite visível para o mar,
limiar de dois mundos distintos e necessários:
Porto de Nenhuma Conclusão.

Dali me sagrei almirante, boto e Netuno.


Navegar, ainda que ilógico, sempre foi preciso.
Céus à vista, porque o resto é mar e travessias.

Instalação para o Circo do Sol

A sua presença sob as leis impenetráveis do sol


exige de mim a veracidade de quem faz parte da luz.
E se o brilho impiedoso de sua estrela
incendiar o palco de um pequeno universo
poderei em uníssono assistir flashes do Paraíso
insultando em sorrisos as trevas indomáveis
que habitam o pânico das jaulas pusilânimes

Ode ao Luna Park

O que sabia sobre a vida o sentir e os seres


tem matizes diferentes
nas lentes deste novo telescópio.

Aprendi que o tempo é de uso exclusivo dos relógios


e que o jardim das temperaturas, por exemplo
concede sua primavera microscópica
às necessidades internas do paraíso rodopiante.

Um traço do mistério
reside no fato de que no caleidoscópio
as cores repetem o mesmo sentido em outra escala.

O outro conecta-se à ousadia de ler a vida


num filme mudo em sentido horizontal:
Carrossel telegráfico em dia de domingo.

A Geografia do Agora

Estradas que cruzam desertos... onde me levarão?


Venham todas as tempestades, o calor abrasante ou a sede.

Minha rota prosseguirá e tratarei de ser simples perante o sublime,


como no primeiro dia dos mundos.
Estradas que cruzam desertos
certamente não passarão ao largo das pirâmides
mas narrarão em seus quilômetros
a matemática solene dessa minha existência,
ainda que a esfinge não proponha qualquer enigma
ou exija que o segredo se decifre pelo espelho.

Estradas que cruzam desertos,


eu prossigo porque é minha sorte.
Se me doerem os pés continuarei de rastros
e marcarei a sangue um percurso luminoso nos caminhos.

Isso torna muitas vezes os deuses das areias mais propícios.


Reza a lenda que assim nos resgatam em aeroplanos.
Não importa. Eu continuo.

Vencida a fúria dos tuaregues


minha caravana conquista a febre das miragens
e parte em alegria silenciosa a traçar o próprio mapa desta saga:
solerte, alheia a princípios ou fins, sua geografia é o agora.

Gazal

Muitas vezes os degraus me levam ao porto


outras, me conduzem para o alto mar.
Quando as escadas sobem e descem
anjos me dão as mãos como no sonho de Jacó.

São essas, escadas dentro de escadas


e que me remetem à maior, em espiral.
É a que percorro há algumas vidas
e que termina sempre num novo começo.

Elaborada como um carrossel em giro pelo universo


ela requer um manual próprio de como evitar vertigens.
Dela, somos libertados pela construção de um par de asas
e pela extensão da via sacra de um verdadeiro sorriso
como aqueles que Leonardo nos legou e que riem para dentro.

Balada para uma Conquista

Pelo contrário do espelho


tenho mirado as vésperas de mim
e adiado meus exércitos
sedentos de outra guerra de reflexos

Jack in the Box

Minha alma de palha


suporta um espantalho
amigo dos pássaros

Exílio

Do ponto mais alto em Apollo

Longas espirais formadas por vinhedos, montanhas e planícies


são meu abrigo, caminho distante que me traz mais para perto
e me lembra a dimensão divina da minha alma latejando.

Assim também a pequena erva que oscila alegre


pelos caminhos da próxima colina e as pequenas borboletas ocres
são uma face plácida do rosto de Deus aqui.
Batem os sinos as seis horas da tarde,
uma prece que agora cumpro sem palavras
e que mesmo os mais belos poemas não ultrapassam.

Canto a vida que fora agora se celebra


e este silêncio anunciado que dentro se prontifica.

Raga

As cordas deste instrumento, belas e alegres


como o som dos grilos que surgem todas as noites,
encantam estrelas quietas repetindo o céu absolutas
na lucidez fria dos lagos ao redor.

Houve um tempo em que não toquei


para depois poder me perder em mil canções.
Hoje a música visita um universo entre meus dedos.
Respiro o sol e ele me sorri ecoando aqui dentro
e refletindo quieto o dia que minha alma canta
como um outro lago traçado nas notas da paisagem.

As nuvens incomuns num céu de Agosto

Nuvens incomuns num céu de agosto.


Meu coração que ansiava nestes dias
por um entardecer avermelhado
bateu junto com o sol em brasas
pondo-se atrás dos grandes carvalhos da colina.

As árvores suspensas sobre um tapete dourado de folhas


que o verão impiedosamente seco transforma
em efeitos de uma visão que flutua em têmperas.

Assim também calam-se as supostas vozes da minha floresta


Porque todos os pássaros decidiram o destino da paisagem.

Acima de mim o universo sideral.


Quem sou eu aqui parado se não estiver presente a tudo isso?
Vultos negros de pinheiros e palmeiras
contra um fundo azul perdidamente encontrado de estrelas.

Emaús

Quem são estes dois homens caminhando pela estrada?


Levam bagagens no escuro mas parecem
voar pela noite sob um céu de mil estrelas.

Quem são estes dois homens como duas rimas


percorrendo a estrada como num poema?
Para onde vão nesta madrugada?
Pássaros noturnos transportando o dia,
conversando vivamente como se não dormissem jamais.

A pista é estreita e eles continuam amplos.


O tempo é contado e eles sorriem mistérios.
Nenhuma dimensão confunde
seus passos precisos que vão para onde.
Preciosas pegadas ficarão quando o dia amanhecer.

Outros perguntarão:
- De quem são essas marcas que algumas vezes se mesclam
e parecem ser apenas uma?
Como dois versos rimando ao longo da estrada
dizem que vão para dentro,
vindos de uma jornada ao longo do dia.
Enquanto isso a lua amarela
beija o lago frio da madrugada
e deles, não se sabe quem vai ou quem fica.

Ainda que duas asas jamais se encontrem


elas pertencem ao mesmo voo
e fazem voar o mesmo pássaro

Oração para um céu de outono

E talvez o que de mais real possa dizer


seja sobre o reflexo do sol através das folhas
dos plátanos deste começo de outono,
tornando-as transparentes e translúcidas:
mosaicos de luz e clorofila num final de tarde.

Que meu coração, uma folha na Arvore da Vida


tenha a quietude necessária perante todas as estações
e saiba secar quando chegar sua hora de inverno
e florescer na devida primavera
para voar no outono e ser semente de outro mundo:
anjo sem tempo vestido de natureza algum dia.

Que eu possa ser simples como um céu


com a grandeza interior de um Cheyenne
e sublime como a última estrela e a primeira,
apenas astros que brilham e mais nada,
sem qualquer hierarquia priorizando os holofotes.

Que meu amor, como um pomar após sua colheita


saiba contar sobre cada centímetro de terra para depois esquecê-la,
ocupado apenas em germinar novamente e amar ainda mais
quando a chuva, voltando, vier me lembrar de ser feliz.

Autorretrato

Poucas histórias poderia contar.


A maior parte delas seria inenarrável e a melhor de todas
fica disponível neste instante de verso que transgride
o acaso de qualquer canção que pudesse atravessar.

Poucas histórias narrariam


a subida e ao mesmo tempo os tropeços
deste pequeno gólgota que tem pulsado firme
ao vento e sombras de uma música sem limites
partindo direto para alguma suposta ressurreição.

Precisaria do matiz rubro de mil tintas negras


para contar do sangue e da derrota confinados
apenas para compor um hino bélico onde não houvesse luto.

Hoje há apenas uma doce canção de paz que me acorda


colhendo pequenas e anônimas flores pelos caminhos da vinha
em monossílabos que suplantam universos
a cada teorema proposto.
Que mais resta a dizer se me despi?

Anjo ao acaso e sem tempo,


olho a trajetória das aves que neste inverno surgem
rumo a outras novas matemáticas de vento sem palavras.

Entrecortado neste amargo adeus há algo que migra


enquanto outra parte se redime num país sem estações.
Aqui todas as fontes são de eterna primavera
e os pássaros, dádivas livres de todos os verões:
Encanto sublime de toda revoada
aberta para o sol de todos os trópicos

Adágio sob um céu de cobre

Sob o teto de um céu cáustico e entorpecente


errei a porta todas as vezes
e não encontrei senão os desertores dos oásis prometidos
parados na Praia da Conquista
e a água procurada, distribuída entre os degredados em pleno meio dia
hora em que o sol não projeta sombras
e os culpados se ocultam na massa disforme
desse exército covarde em sua guerra de reflexos.

Não se ensaia um tango consigo mesmo por engano fardo


nem da morte se prescrevem imediatas receitas
se dela sempre um inédito fato se anuncia
entre as hordas de tuaregues acontecidos desta caravana.
Mas um homem de Deus é eleito enfim
para ascender em seu convívio por destino aceito.

Bordei numa colcha de cetim nesta manhã de domingo


todos os retalhos tortos do que aprendi hoje cedo.
Preguei botões de prata nas casas do medo que senti ontem
e desfiz o nó de várias velhas gravatas coloridas
num brechó de palhaços que encontrei aqui ao lado.

Quando olhei firme pela janela do firmamento neste outono


vi os mesmos cegos parados no porto sem nenhuma conclusão...

Enquanto eles discutiam o próximo acerto de inverno


uma onda sussurrou abusada
o melhor passo a retroceder: dali mesmo!

Não sei o que isso pôde dizer à sua noite de febre duvidada;
há males que vem para o bem:
Os danos do ultimo Dilúvio
Lavaram a urina dos muros

Ciranda Muiraquitã
a João Guimarães Rosa

Era uma vez uma concha que abrigava em seu íntimo calcário
toda a imensidão do oceano em noites de estrelas.
E os navegantes incautos que tocaram sua superfície branca
ouviram as histórias de ondas e mares distantes
que sua voz de tímpano contava
sobre marinheiros de ébano curtidos a sol e sal
em sua bravura de beleza embriagada.

E a concha abrigava em seu íntimo todos os sete mares


e a imensidão dos olhos do menino que lhe encantava mineral, o fado.

E contava o menino aos almirantes a postos


da concha que era o próprio mar em que estavam e ouviam...
E em suas canções de criança todos os oceanos eram resposta clara
à sua voz de Arcanjo Gabriel quando chamou Maria.

E todos os oceanos a postos se continham gotas


no interior da concha acústica de cálcio. Puro desejo.

E vai que um dia o menino acorda em outra concha


por direito de lenda ser e agir de acordo.
E a concha...

Mas qual delas, diria o poeta para além da história


com sua voz marinheira, também de anjo...

Dizem que mesmo em sagas assim difuso


um deus movido a sol e sal
mostra-se Rei. E é tudo.

Pouco sabemos da natureza fugaz da criança


que tece mistérios que nem o mar comporta.
Mas sabemos o gosto do Absoluto
de sabor inconfundível, fantástico e exato.

Além do mais, ele era boto, almirante e Netuno.


E era menino, sabia tudo.

A Volta das Miragens

Pequeno Réquiem em forma de Brinquedo


Habeas Corpus

As cores e os adjetivos todos


pertencem ao coração em forma de turbina nos aeroportos.
Por mais que o ruído imperativo estabeleça
formas ilusórias de reger cada momento
o silêncio do voo das naves é a conclusão real de cada partida
e um recomeço a cada nova manhã ignorada.
Só o inusitado conta.
Todo o restante a Caronte. Catraca.

Canções para um novo inverno

Tuaregues e castelos de areia

O deserto tem segredos para contar.


Há muito tempo havia um mar aqui.
O trabalho a fazer é transformá-lo em oceano outra vez...
Quanto mais próximo se chega
mais o calor e a aridez aumentam.
Sem ondas. Apenas dunas.
Mas não se iluda com as estações!
Vá para o meio da terra árida
brincar com castelos de areia como numa praia,
seguindo pegadas como num deserto...

Qual oásis pode ser verdade?


Como discernir miragens que encantam à primeira vista,
iludindo meu coração com promessas de delírio
para depois, cegar meu desejo tuaregue
com areia cruel e sede impiedosas?

A viagem deve ser feita a sangue e suor


para traçar o rastro luminoso nos caminhos...

Sujo de areia e sedento mas livre de ilusões!

Queria transformar este destino trôpego por mim mesmo,


tornar as coisas mais fáceis nesta caravana...
Mas não posso!

E esse oásis, se por acaso encontrá-lo


será apenas um descanso para os camelos
e alguma boa música noturna dos beduínos
antes de prosseguir a viagem através do destino, em pleno deserto.

A vida é apenas uma nota nas cordas da harpa de Deus.


Nós continuamos. Como a música.

Às vezes a vida é um jogo


e as peças, feitas de areia.

É necessário considerar a umidade relativa do ar


e estar alerta aos ventos do sul que possam inesperadamente
alcançar esse tabuleiro.

Peças feitas de areia se desvanecem no deserto


como ilusões finalmente se vão...
É uma sina sobreviver dia a dia
Com a frescura do sempre novo e terno tempo...
E repetir o nome de Deus como o primeiro beijo na amada
dormindo ainda a meu lado sob esta palmeira num dia ensolarado.

A vida é hoje. Tudo mais é pura especulação imobiliária.

Jerusalém

As torres dos minaretes


acima das espirais de fumaça de âmbar e mirra
apontam a direção dos céus em obeliscos roubados
enquanto o coração dos homens permanece claustrofóbico
intrigado e encalacrado em suas teias.

Jerusalém de sempre para nunca mais!


Almádena vibrando eternidades do alto de suas colinas,
velha cidade onde emoção e sentimento se calam
e o tempo é uma mensagem de lodo submersa em cada pedra.

Poderia decompor sua vida em desalinho


como um poema loucamente desordenado
com as rimas ao avesso num compasso de algemas
procurando em dominós a resposta equivalente de existir
frente a vertigem do tempo nas ladeiras e dos precipícios
numa descendente inevitável e que sempre foi assim.

Mas este é um poema que emudece na máscara de mil vozes


quando os ecos respondem chamando à oração e ao retorno
cinco vezes ao dia, incondicionalmente...

Jerusalém que também se cala resignada à fé que permeia suas ruas,


sangue percorrendo escadas e vielas para despertar no coração cansado
das grandes mesquitas e na massa humana que preenche cada centímetro
onde Deus é uma compreensão coletiva e um sentimento ainda possível.

Al-Aksa é dentro de você.

2007

Cadernos de Viagem

Recurso

Repousam no meu peito


duas mãos postas em oração de segredo.
E o ar rarefeito das atmosferas em transe
traga o sublime numa fração de segundos.

Anjo que traduz nas entrelinhas


revela agora a trama de tantos verbos sem rima!

Revela o amanhecer em nós,


o alvorecer de cada momento,
a conversão de toda a primavera
na flor mais doce
na flor mais simples
do jardim que plantei um dia
por descuido, por certezas
de que as sementes gerariam versos
e alimentariam a sagacidade dos pássaros
decididos a voar para bem longe
muito além de onde o ruído da matilha
pudesse alcançar o fugaz abstraído das nuvens.
20.01.08

Nome aos Bois

A ferro e fogo
tenho impresso pegadas
e farejado pistas por onde passo

Mas nada posso predizer


com as marcas pelo avesso

Não se pode trilhar a esmo


o percurso que as estrelas nos deram
num destino em fogo olímpico aceitado
O preço desse itinerário
é conseguir acender o vulcão adormecido
e esperar serenamente o próximo porto
para depois acenar adeus às sereias que encantam
e pisar terra firme em pleno voo
29.05.08

A linha vertical do tempo

O segredo não está no solo mas no espelho


e mesmo nele, o que é esquerdo vai do direito
e a gente acaba sempre numa contramão
costurada pela pista do tempo,
vestindo pierrots em arlequins convertidos.

Risos de soslaio...

Era uma vez um baile de pervertidos


seguindo os passos como numa canção
até que tudo virou nada, não se sabia se tango ou duelo.

O fato é que ele cometeu rumos contrários


e ela entrou sozinha numa canção
permanecendo louca nos estribilhos,
bebendo do refrão como num eterno retorno
repetindo a musa que sempre fora
num destino sem eira nem beira
Assim, transformei as tramas desse enredo:

Era uma vez


um baile de pervertidos
seguindo os passos como numa toada.

Ele, virou a música que ela gostava.


Ela, é claro, entrou de cabeça na canção.
22.01.08

Emblema

Recursos do meu peito


escondidos numa paleta;
as cores à mostra mas lá dentro, nos sobretons.

Vozes que se levantam


muitas vezes pelo avesso,
o sempre avesso!

Qual canção então poderia cantar


para um novo inverno?
Invento um mote:
Se a face mecânica das horas vacilar,
faço um inferno!

Subo então direto para o céu


sem perspectiva alguma de ascensorista.
05.03.08

Teorema

Um dia meu Príncipe virá,


uma brisa em seus cabelos,
o universo no seu corpo
e um beijo prolongado de despertar
após um sono de mil fábulas.

Então todas as noites serão dias


e a eternidade repousará todas as manhãs
emergindo sublime na luz brilhante dos seus olhos.

No Paraíso ao lado
um Buda sorri quieto
de todas essas histórias
(segredo vivido de não se contar)
16.03.08

Histórias contadas

Alguém filtra as notícias que a rua grita.


Sou apenas mais um que não eu mesmo
procurando a esmo um rosto no espelho
- intimidade em efeito de reflexos.

Raios partam enfim esse sortilégio


e fixem sua luz dilapidante
para que um mínimo sorriso
possa contar de toda dor do circo movente
e do resgate providencial do palhaço.

Antes não havia nada.


Agora em cada velha esquina
surge um anjo itinerante
(e ele sempre esteve ali).

Sou apenas mais um rosto


que não eu mesmo.

Mas a voz desse palhaço


que ouço em noites de chuva
como o trompete de Miles Davis, conta tudo.
Então eu tento de tudo,
provo de todas as receitas para ser feliz sem perder o ponto.

Um dia prometo que conto


todas as estrelas do céu
só pra depois enfeitar o circo com elas
feito um bolo de amor e chuva de se comer aos poucos.

Romance
a Ora Goldfriend

A valsa do nosso encontro


surgiu numa despedida
num baile de máscaras
onde ficamos nus no final
eu e você
dançando alheios à paranoia dos espelhos
correndo o salão como numa pista de gelo

E a orquestra tornou-se então


junto do nosso Amor
sua própria música e quem

E já não éramos então nós mesmos

Em uníssono
fizemos do nosso sonho o próprio baile
e da noite que corria solta
o universo que simplesmente brincava ao nosso redor
sem o peso das catracas,
sem a gravidade das sombras
30.04.11

Termo

Vestir o casaco de ovelha negra


como quem pressentisse um fim.

O mar desta vez


mais perto do naufrágio!
As bússolas, todas ao contrário
não esclarecem a hora e a passagem
e o degredo continua a ser sempre
o porto mais próximo de nenhuma conclusão.

Vestir a aventura sensível


através da neblina
sem ocupar os binóculos do tempo
nem omitir as tempestades à risca.

A busca do segredo muda


enquanto ele permanece o mesmo.

Não há faróis em alto-mar.


Tudo brilha.

O nível de uma certa nudez

Faltam-me os verbos
e o registro dos sonhos conjugados.

Trouxe por isso


esta tarde possível entre meus dedos
neste brinquedo que entardece uma dose do poema.
A poesia por um breve momento mais vivida do que escrita.

O pequeno milagre da invenção


suplanta em milênios os degraus obtusos da Torre de Babel.
Caixa de Brinquedos

Boneca Russa

Hoje, vou chegar mais tarde


e abrir uma porta
que dará em outra porta
que por sua vez abrirá outra porta
que foi onde tudo começou um certo dia.

Uma verdade conterá outra verdade.

Era uma vez eu e você


numa rua com pedrinhas de brilhantes
em ciranda de fazer destino por onde nosso amor passou
sem deixar rumo ou endereço.

Brinquedo de Corda

Coração de brinquedo
há tempos ouvi falar dos temporais
e não quis trazer os raios
às cordas dadas por descuido
- metáforas soltas num playground

Como conto de fadas


a Conquista da Disneylândia
Como final feliz
o despertar de todos os relógios
os pulsos livres do jugo do limite
o sulco da lágrima
em direção à risada solta
meu corpo nu
em forma de adeus.

Lullaby

Sair da hipnose de si
como quem antevisse os espaços
e dispensasse a hora extra no escuro

Dei duro
só pra poder usar batom depois

Hoje, Deus sorri vermelhos


por baixo de seu nobre mustache

A cada nova manhã


danço para Ele ao som de Seu silêncio

E todo por de sol


é uma nova mensagem para o amanhecer

Assim espero por Ele


trazendo as flores para embalar
Seu peito de menino
e me fazer então dormir quieto
no Oceano do Seu Amor
o sono dos espertos
Hertzilya 04.02.10

Os Desertos
Wadi Rum
a Leonardo Mesquita

O vento tem histórias para contar


e sob as estrelas, somos todos crianças iluminadas.
Há muito tempo quis falar com as pedras,
adivinhar-lhes a sabedoria sólida e submissão ao tempo.

Mas falhei. Não ouvi as histórias do vento em sopranos,


não fui criança nem luz e amarguei a areia da vida
trincando nos dentes um gosto de pó.

Mas quando vi o deserto...


Sua dança extática de amplitudes...
Quando vi o deserto fui menino de novo,
adivinhei nas pedras o rosto de cada esfinge
e sorri porque não podia dizer mais nada.

E comigo o deserto sorriu um calor por dentro,


abraço de não se poder terminar, um beijo para sempre,
amado Wadi Rum!
E um deserto interno então foi descoberto.

Não há como traçar mapas na areia


mas eu trouxe comigo as pegadas dos beduínos,
trouxe a areia das dunas nos sapatos
nos caminhos que se mesclavam e onde eu encontrava
todas as respostas na sola dos meus pés descalços de perguntas.
A lua era nova e as estrelas lidas como puro dia
num céu negro de luz.
E assim o grande Wadi Rum permanece
pulsando agora mesmo neste peito aberto de criança,
trazendo seu coração magnífico
num brinquedo de corda do tamanho de um país
que a memória não se cansa de reproduzir
além do tempo que o sal da areia ainda preserva em suas tintas.
07.08

Diário sem tempo – Diário Suspenso

Houve um tempo num enredo


de tantos verbos em registro,
por conjugações inoportunas que atendiam
o tédio gramatical ordinário e mal dormido.

Hoje, pesam-se os dias de acordo com os níveis de levitação.


O tempo a oco cria sulcos pelo rosto.
Engole-se a vida porque a alma ressuscita
toda vez que não se mastiga nosso próprio fogo a esmo.

Qual combustível?
Gênio de todo vapor ruminante...
...Ser argonauta e ainda poder ser nada...

Deus me livre do abracadabra!


A mágica é o suor cotidiano,
invisível presença:
Sorriso para o alto.
Ascensão para dentro.
16.06.10

Puzzle

Queria incendiar as palavras


para que elas queimassem fundo no seu coração
de poeta adormecido
e tivessem o calor de mil sóis brilhando
no limite de um único entardecer.

Os verbos se calam
perante a visão do vale e de seus verdes,
diante da amplitude e silêncio
de cada pequena flor que surge quando amanhece.

Outra vez sou poeta de tempo algum


e meu exercício diário
é brilhar novamente por uma nova manhã que surja infinda
exatamente como no primeiro dia dos mundos.

O recurso de métrica e rima não justifica


o desejo e a paixão que latejam
o pulsar atento de nenhuma conclusão. Nada permanece.

Acordar ainda se parece com a última canção de ninar aprendida.


Navio sem nome, rumo ou discórdia,
não há faróis em alto mar!

Como falar do compreender mudo que me trazem as histórias?


Como acordar da hipnose de mim sem o remorso de tanta coisa por ser feita?
Quanto valem as esfinges de plantão sobre a minha lápide?

Não há neste paraíso um único anjo que me indique as portas,


nem eu mesmo trouxe os óculos necessários
para suprimir a miopia da paisagem
e alterar a perspectiva do que é luz ou trevas em meu campo de ação.

Mas a total visão do vale


acende como um raio a amplitude do que há para ser visto,
assim como numa tempestade noturna
que em segundos, num único raio, revela para sempre
a dimensão atravessada do que antes era pura noite.

E já não há noite, tarde ou dia.


A memória alcança uma fronteira onde o silêncio impera imediato.
Perceber torna-se um verbo para sempre conjugado
e nas entrelinhas pode-se ler a eternidade composta por monossílabos.

Deus entra agora pela porta da frente


suave, saído de um banho de lavanda e alecrim
e senta-se à mesa que preparei para seu desjejum
alegre e perfumado, como todo universo sabe ser.

O Jardim de Borboletas e a Criança Extasiada

Eu queria um jardim com vista para o precipício


para confirmar a profundidade a esmo a cada dia
ser fausto em dia de borralho
com o demônio em meu encalço
para propagar um destino de cinderela ao fim da história.

Eu queria colher minha discórdia


na forma de acordes dissonantes – um dia eles passam –
só para poder depois brincar de índio nu em dia de domingo.

Fui um dia às touradas


e ali não havia nada.
Só cornos de mim mesmo:
ser touro e ser toureiro!
Ser nada!

E se calhar com o fado


ainda me faço audiência
para concluir essa charada do destino
diante da ausência de alguma possível conclusão nesse confronto.

É uma pena
que o animal transborde os limites da arena
para depois se instalar crescente
em meio à massa dos meus dinossauros
e querer ditar as regras a esta criança
que de tudo sorri
soberana, invisível, divinamente indomável.

Charada

De trás pra frente fiz assim:


conjuguei todas as rimas e o avesso,
no que era torto pus um fim
e recriei tudo outra vez desde o começo.
O que era cedo voltou tarde
e os pierrots fascinaram os arlequins com seu charme.

Ali os contos de fadas tinham código de endereçamento postal.

Poente

Um oásis a cada momento

e um deserto inteiro por conquistar logo em seguida.

Sempre os dois lados da mesma moeda a Caronte

mentindo sobre a unidade de todas as coisas.

Mas eu sigo porque meu destino é pássaro

e todas as portas estão abertas.

Também as feras, que não medem distâncias,

estão soltas, já que as jaulas derreteram

perante os 42° deste verão que ainda não passou.

Estou ou não estou

livre da Lei da Gravidade?


Por meu destino de almirante, tragam-me o mar já de volta

para eu atravessar num golpe, imune à pirataria

mas poeta iludido voluntariamente

por toda sereia que surgir em meus ouvidos.

Eu quero um sol de fim de tarde

para legitimar o incêndio dos meus sonhos pelas nuvens.

Depois tudo passa. Somos cinzas...

Mas só porque antes um sol queimou seu combustível

e imolamos as ilusões em sacrifício.

Sintonia entre os astros e os homens,

nossa única condição é a perda.

Convencer-se disto
é este pedaço de régua a que chamamos vida.

A extensão dessa medida cabe num sorriso de luz,

tão fugaz e preciso quanto o giro de um compasso.

Duas Canções para Jetsun Milarepa

Mahamudra
Aqui, dois pássaros pousaram

Dois faróis. Duas estrelas.

A espiral do tempo dispersa numa nuvem que se esvai...

Dois pássaros voando eternamente

através da luz sem tempo ou espaço.

E o voo

não é mais a conquista do ar,

o ruflar de asas

ou o olhar altivo sobre a geografia do vale.

Voar significa também a quietude do ninho,

o pouso mudo sobre os mais altos ciprestes,

o repouso morno na terra ardente num dia de verão.

Dois pássaros voando mistérios em claro enigma...

Hieróglifos que as ondas desenham e apagam

e a areia da praia esquece,

porque nada há para ser lembrado.

Dois faróis. Duas estrelas.

Luz que cala noite ou dia,


qualquer noção a respeito de existir:

Gesto que tudo contempla e abrange.

17.07.13

II

Dharmakaya

Mais perto do céu que de costume

minha alma transborda e latejante,

imita como um coração apaixonado

o movimento das estrelas mais distantes.

Mais perto do céu que de costume

um anjo traga num sussurro

meus versos ao alcance como um beijo.

Mais perto do céu que de costume

os astros dispersos sobre minha mesa

posta para a toalha da noite.

Mais perto do céu que de costume

trouxe a lua hoje para dentro do meu jardim


até que ela mude para outro signo

e eu, por minha vez, faça a viagem de regresso

para dentro do sol.

17.07.13

Puzzle

Incendiaria palavras
para que elas queimassem fundo
seu coração de poeta adormecido
no calor blindado de mil sóis
brilhando limites de um único entardecer .

Os verbos calam
a visão do vale e seus verdes,
diante da amplitude e silêncio
de cada pequena flor que surge quando amanhece.

Sou mais uma vez de tempo algum


e meu exercício diário
é brilhar por uma nova manhã que surja infinda
exatamente como no primeiro dia dos mundos.

Métrica e rima não justificam


o desejo e a paixão que latejam
o pulsar atento de nenhuma conclusão.

Nada permanece.

Acordar ainda se parece


com a última canção de ninar aprendida.

Navio sem nome, rumo ou discórdia,


não há faróis em alto mar!
Como falar do compreender mudo
que me trazem tantas histórias?
Como acordar da hipnose de mim mesmo
sem remorso de tanta coisa ainda por ser feita?
Quanto valerão as esfinges de plantão sobre a minha lápide?

Não há neste paraíso um único anjo que me indique as portas,


nem eu trouxe os óculos necessários
para suprimir a miopia da paisagem e alterar a perspectiva
do que é luz ou treva em meu campo de ação.

Mas a visão panorâmica do vale


acende como um raio a amplitude do que há,
assim como numa tempestade noturna
um único flash de luz, em segundos,
fotografa para sempre
a dimensão atravessada do que antes foi pura noite.

E já não há noite, tarde ou dia.


A memória alcança uma fronteira
onde o silêncio impera imediato.
Perceber torna-se o oráculo
de um verbo para sempre conjugado
em que nas entrelinhas lê-se a eternidade
composta por monossílabos.

Deus entra agora pela porta da frente


suave, saído de um banho de lavanda e alecrim
e senta-se à mesa que preparei para seu desjejum
alegre e perfumado, como todo universo sabe ser.
21.07.13

Nada e a nossa condição


a João Guimarães Rosa
Não há sequer um poema por cometer...

A indolência das tardes de domingo

é passiva demais nos trópicos.

Não há lugar algum para ir, exceto aqui.

Há planos para uma viagem através:

mero subterfúgio para um tema.

Tropecei cáustico sobre emendas e estrofes

procurando calar com palavras meus apelos,

esbarrando em deuses e mandalas nas entrelinhas

para trazer à superfície a exaustão de todos os poemas,

a conclusão final de todos os meus medos

e um apêndice para a solução tardia dos meus desejos.

Tudo foi devidamente emprestado

como um crédito em forma de vida

dado pela tirania do destino,

sempre a postos como um cérbero

mordendo impiedosamente vezes três.


Inventei, portanto, pontes na neblina,

mapas para todos os precipícios

e escadas que me resgatassem em aeroplanos

sem metamorfoses de adeus.

E restou apenas um gosto amargo em forma de canção:

- Marcha soldado, cabeça de papel...

Mas ela ultrapassa em ser

qualquer rude poema

que não fale da alma.

A fome das águias também conhece as alturas.

Sempre à tona da alma com os poemas!

O verso é um brinquedo

e ele às vezes quer ser vão,

prefere falar às borboletas do quintal sem tecer enredos,

falar ao dragão das fábulas incendiadas

a ter de queimar suas próprias cinzas

na pira do sono e da cega clarividência

para renascer em seu voo de libertação.

Se não houver voos, farei meu itinerário a pé, descalço,


mais inconsequente que um Louco do Tarô.

A viagem também é como esse verso em forma de brinquedo.

Ambos são impermanentes,

Sonâmbulos interpretando o xadrez da realidade

num jogo perdido de antemão. Não há mistério.

O silêncio é a última porta.

O Caderno Azul de Hiroshige

Ramadã

Beijei meus desertos


para afrontar a sede de amplitude
e ruminar o tempo dos camelos de uma vez
atravessando distâncias num átimo.

Mas não deu certo.

Era estreito o que deveria ser amplo


e uma porta sempre dava em outra porta.

Então deixei.
Não pensei mais em medidas
e rasguei todos os calendários
para ficar só com os finais de semana
no quintal da minha Vó Maria
onde fui príncipe, cowboy e índio:
enciclopédia de sonhos soltos num playground.
Tempos depois
quando só sabia contar nos dedos
e tomar um avião era nada mais que brincar de amarelinha,
entre um céu de giz e um inferno de fim de tarde
vi que a vida era pular para dentro da primeira chance
feito um saci de primeira viagem
tentando se esconder de coisa alguma.

Umbílico

Quero abraçar o deserto


para alcançar a fome depois do banquete
e pedir pelo conteúdo dos espaços em branco
preenchendo tranças do tempo com Contos de Fadas,
porque não quero ser curto nem opaco,
construindo pontes na neblina
vendo que à medida que as horas passam
novos dias querem dizer, incertos,
que faltam segundos para trocar as lentes
e contradizer a paisagem local,
virando o dia pelo avesso.

Porém,
reconstruirei pedra sobre pedra,
juntarei uivando todos os meus cacos
denunciando que a tal queda
era apenas ficar distraído
encostado no batente
deixando passar o tempo,
passando a vida a limpo, de rastros
me carimbando torto pelo chão
a chamar os cães plantonistas para decifrar o enigma.

E saber da dor cáustica


de ter de continuar respirando
e comendo o pão que o diabo amassou
se eu também sei fazer pães...
E se não existe coerência nisto
é porque vale ainda que como um grito,
mesmo que ele diga aos surdos:
- Abram alas para os cegos
e ouçam o roer dos mudos!

Absurdo!

Mas não vale um poema a estas alturas do campeonato,


o jogo tem se tornado demasiadamente fútil
além de já terem dito e escrito quase tudo.

Por isso, deem asas à imaginação.


Depois, joguem adubo nos parques!

Assim, aparecerão – depois da chuva, é claro –


novas formas de enfrentar o luar.

Deus finalmente dançará com as crianças


transformando o pavor trôpego
no puro ritmo a devorar espaços
que existe nos balanços
e no coração que oscila:
Pêndulos em parques diferentes...

Permitem jardins
ao redor das indústrias e automóveis.
1985

Perdido

Construo versos que você não pode ouvir


perco beijos que o acaso tem negado
por querer simplesmente o amor em vez da rima.

É como entrar num quarto errado


e mesmo assim trocar completamente a mobília,
pintar as paredes e quebrar todos os espelhos
para depois evadir-se na noite
empenhado até o último
em dirigir somente na contramão.

Voo todos os esquadros


para apontar arestas nos desertos,
e não conhecer seu silêncio velado.

Passa um fado pelo meu coração perdido,


apenas uma gota de suor já lateja um Oceano
seguindo o pulsar de um poro íntimo com seu ritmo sempre aceso.

Eu enfrento a surdez do tempo


porque agora o silêncio é absoluto,
apenas guardei segredos
para ter o que contar a mim mesmo.

Não sei gritar para pedir indicações,


o único endereço que me importa é o do Paraíso,
tudo mais é dantesco e labiríntico,
a conclusão sempre termina num minotauro
com Ariadne não sendo convidada.

De que valem tais contos de fadas?


Já não tenho mais moeda que compre sonhos.
A queda dos anjos é igual a um colapso
na Bolsa de Valores.

Meu resgate é minha perda,


sequestro-relâmpago pelo qual pago e recebo.
Tal é a impermanência.

Porto

As portas estão abertas,


apontam em silêncio o dia e a hora.

Feito um arco-íris eu entro,


quieto,
imparcial sobre as formas:
Resignado sem-tempo.

Afrontam-se os canhões da cidade sonolenta.

Sonâmbulos
eles apenas dissolvem-se.

Eu abraço o Oceano
assim como abraço os desertos
e as estrelas em noites sem lua.

Faço o possível
para cumprir o impossível do tempo:
Cada momento é prova do imediato,
cada voo rasante o universo num piscar de olhos.

Saio da penumbra
e já vislumbro o farol com o qual sonhei.

Calo quando tento


descrever o alto mar que me atravessa.
16.04.12

Mudo por dentro

Eu queria uma canção de amor


que abrisse a porta dos desertos
e escancarasse as janelas de uma vez por todas.

Mas não foi possível.


Eu não tinha as rimas
e não havia solo onde se erguessem
alicerces de propósito.

Os instrumentos emudeceram
perante a estranha coincidência
entre os pássaros da floresta
e os ventos das montanhas quando se calaram.

Não havia movimento.


O sol era um enigma
e a noite uma eternidade,
um poema sem fim nem conteúdo,
mágico chão de estrelas
com pedrinhas de brilhantes.

Queria na verdade um amor em forma de canção,


um beijo aberto ao enredo
do exílio no seu peito.

Um amor deserto
que restabelecesse a música dos ventos
aos sopranos pelas encostas e penhascos
onde só as águias alcançassem,
da mesma matéria-prima que constrói pirâmides, esfinges
e sentimentos desregrados.

Um amor é sempre um quebra-cabeças lido pelo contrário


numa caligrafia organizada mais para o conflito que a solução,
ainda assim é o único sentimento que pode expressar tudo
ou selar tanto o percurso do sangue
quanto o das estrelas bordadas neste céu de conteúdos.

A rosa púrpura

Uma certa rosa pediu à fada dos lençóis


um leito de púrpura por apenas uma tarde
para que pudesse descansar de seus espinhos.
O Tempo ouviu calado o encantamento
e esperou até que amanhecesse.

Quando veio o Sol


(e o Dia era lindo na Primavera!)
a rosa chorava triste,
despida e simples no meio do jardim pleno de luz.

Ao longo de seu caule nu


todas as borboletas, besouros e escaravelhos
vieram tocar de perto sua pureza inédita de flor.

E o peso de tantos insetos vergou sua nudez


impedindo que ela olhasse para o Alto à procura do Sol.

Inconformada, a rosa pediu de volta


seu espartilho de espinhos,
desta vez como se eles fossem escadas que libertassem,
elevadores a jato sem precisão alguma de ascensorista.

Compassivo, o Tempo concedeu-lhe outra vez o encanto.

Depois, em seu hálito de cravo


ela sorriu resignada seu destino de flor
como se houvesse provado de todo néctar
que a dor de seus espinhos a fez compreender então.

E ela foi, desde ali


flor de todo Jardim
e como se fosse ela, a rosa,
por assim dizer o Jardim inteiro
para todas as Manhãs, Espinhos e Perfume.
Rosa somente. Sem rosa, cor ou desejo:
Eclesiastes de flor embaixo do Sol,
origem de todo aroma.
O Jardim Secreto

Meu jardim sofre com o calor intenso do verão,


com o sufoco das horas suspensas
sobre um tapete quente de folhas e sol,
dias abrasantes em que o oxigênio é quase uma miragem
envolta pelo anseio de uma nova estação que se respire.

Ser flor numa terra árida


é ter o compromisso de trazer o belo
seja em meio aos cactos ou às pedras.
É não ter escolha sobre a isenção de espinhos
ou a graça da chuva todos os dias.

Ser flor numa terra árida


é apenas desejar o sol por destino dentro
e a noite como leito num suspiro momentâneo.

É esperar todos os dias


por uma próxima canção
que traga suavemente
o vácuo de uma melodia intraduzível,
a massa lêveda do pão ainda por ser cozido,
o cozinhar a si mesmo a pleno vapor
lido num livro de receitas impenetrável
que ensine como a fórmula dos doces,
salgados e amargos
pode conter o que o fado impôs por descuido, por recurso
para que dali um banquete vazio seja feito
a fim de aplacar as leis invioláveis sobre o sabor.

Paisagens efêmeras
e contos mal estabelecidos
aprendidos de não sei quem.

Resta uma chuva por comemorar


ainda que ela não venha,
ainda que o voo dos morcegos na lua cheia
atravesse esse satélite como um vulto,
ainda que a memória espessa de tanta escravidão
grite o silêncio esperto de tanta algema,
de tantos grilhões ainda por conquistar,
tanta sereia por atravessar ao largo de Circe
com os ouvidos velados à ilusão e malícia do bel-canto.

Era uma vez um jardim secreto


onde uma flor transparente respirava
sua composição de clorofila em belo refletida
só para terminar sua existência visível em questão de horas,
e continuar seu ser além do tempo-flor,
num segredo murmurado para o qual não há respostas.

Assim uma Dakini veio e me contou.

Hinos ao Sol
a Arthur Rimbaud

Sua clarividência que me atravessa


lê impiedosamente cada esquina da minha alma.

Não há segredos à contraluz do que é revelado.

Cantei a saga de cada amanhecer.


Da Morada do Sol a Abu Simbel,
de Karnak ao Golfo de Ácaba.

A luz era sempre a mesma.

Era eu quem vivia no escuro.

Cada milímetro de eletricidade,


um compromisso com o infinito,
cada sopro de vento
um beijo atirado às pedras do deserto.

Mas nenhum afeto fica sendo em vão.

O que restou do tempo que não volta


é essa testemunha incandescente,
uma resposta às tardes mornas de Araraquara
cheirando a doce de laranja e cana-de-açúcar,
da poeira vermelha de Santa Fé do Sul
que tingiu minhas meias,
das praias desertas e calmas de Florianópolis
e da areia sanguínea da Jordânia.

Olhar para o alto é sempre a maior esperança,


a afirmação da luminosidade sempre presente
mesmo quando a noite vem para delimitar sua hora e passagem.

Sol de todas as noites,


de todos os amanheceres, Pai de Todos!
Lembrança única de toda uma vida,
testemunha imutável e silenciosa queimando minha pele e meu sono.

A vida na Terra proclama teu brilhante jugo


como um incenso que sempre se eleva e te alcança!

Tudo o que brilha é um modelo do que és.


Dos incas aos astronautas,
dos arquétipos mais indecifráveis
aos olhos da criança que passa feliz
e que faz com que meu coração
também brilhe a extensão de toda a rua.
II

Oráculo

Li por acaso os cacos deixados


pelo último motim
dos meus santos infiéis,
já em iconoclastas convertidos.

Em búzios adivinhei o som do mar


num evidente oráculo.

Enigmas que vêm à tona decifrados


para que nada mais seja passado a limpo.

Fosse a vida inteira vista num relance


e a vastidão tomada como uma dose de lucidez
em face à quietude espessa de um planeta!

A eternidade resumida num café expresso


e alguém que possa interpretar-lhe a borra
para resumir o calvário na compreensão de um sorriso.

Sol que queima e confunde


para examinar a frieza até então exaltada
no meu coração adormecido.

Um poema que quer falar por si


contra mim que não sei dizer nada.

Um silêncio que se traduz entre meus dedos


enquanto ferve o óleo em minhas pinturas.

Cor transmutada em abismo.


Receio imposto ao itinerário não traçado.

Resta apenas o batom estampado em beijos nas paredes


deste corredor que me leva não sei onde.
Não há sequer memória.
Qualquer paisagem é uma resposta.
Qualquer cartão postal o mesmo que as esfinges.
Chegamos somente até onde o destino impôs
já que nunca entendemos mapa algum.

Fração a que chamamos vida!


Eternidade emitida num único suspiro:
um piscar de olhos de Brahman
onde toda a história da humanidade pode estar contida.

Sol que cega clarividente para depois esclarecer,


não é possível entender num átimo as consequências da luz
sem antes sofrer sua ausência,
sem antes ralar os joelhos no chão
para só depois aprender a manter-se em pé:
soldado a postos para uma luta atenta e sem armas.

Cor transmutada em abismos


num salto de paraquedas,
a compreensão dura poucos segundos
para deixar somente a percepção de um plano de voo
e expressar numa outra condição
esse exercício de ousadia fugaz.

Para poder finalmente entender a delicadeza dos seres alados


que também aprenderam a lucrar sobre a massa de ar quente,
que trouxeram a seu destino-pássaro
a inteligência aérea e necessária
para voar sem dor sobre a imensidão do vale.

20.08.13

Os deuses vêm
a MLML

Houve um tempo de as bênçãos serem bênçãos,


assim como de as lições serem apenas simples lições.

Hoje as bênçãos são grandes lições,


pegadas impressas por quem sabe onde pisa
tatuando marcas cada vez mais opacas, mais imprecisas.

Na verdade, um bom par de asas dispensa de todo o uso de sapatos.

É difícil perseguir os anjos. Vago silêncio.


Por vezes a única pista é só uma direção.
Depois tudo se esvai em nuvens,
até que ao final nós mesmos nos tornamos eles
e junto com os sapatos
vão também nossas asas de cera
- aquelas que havíamos construído em sonhos –
e também nosso degredo remoto de deuses de brinquedo.

Então, é da dor que se produzem voos


e do tempo, se a eternidade estiver em comum acordo,
o risco tentado por querer simplesmente almejar estrelas
e alcançar por sorte e desatino o divino beijo dos anjos
feito rima ao acaso de estrofe em batom encontrada.

Tenho pois, o mar nos olhos


e um segredo por contar preso numa garrafa.

Quando pesam-me as pálpebras do sono


perco o número das ondas e já não sei de cor
a tabuada dos sonhos para decifrar tantas mensagens.

Aprendi, assim, o caminho de memória


pela repetição diária do trajeto,
pelo exercício efêmero de ser boto e ser Netuno.
Falta-me um destinatário e um porto
para descansar a sede pirata que me rouba
e o instinto selvagem que me cega,
Ulisses posto em algemas e denúncias de prazer atado.
Atirarei ao mar minha garrafa
com uma correspondência mágica
sem me importar com a curiosidade do cardume
ou a fúria exata das marés em expansão.

Vou agora mesmo até ao fim da praia


dizer que algum dia baterei em minha porta
isento de sereias ou canções de despedida.

Chegarei a casa desta vez para ficar indefinidamente


e nunca mais dormir fora
nem dentro.

Minhas canções sobre Ítaca


ainda pertencem ao porto de nenhuma conclusão
e esse mar aberto é uma resposta
nem sempre anunciada de sobreaviso.

Por isso, antes de me tornar marinheiro de verdade,


pensei que ser surfista era um meio inteligente
de combinar a aventura sensível
e a viagem arriscada entre meus tubarões de reserva
tendo o mar imenso como nada mais que um argumento de mergulho
em meu coração agora-já de combate.

Louco de Deus e de sol


tenho mirado as vésperas de mim mesmo
e errado com o relógio pelo avesso,
atravessado paredes
pela clarividência dos meus verbos tortos e impotentes,
esperando príapo o retorno da primeira estrela
quando o dia começa tarde, lento, quase adormecendo de novo
para confundir sonâmbulo as cores do natal e da quaresma.

Só um dedo de tempo
e um beijo atirado ao longe
para decifrar os selos árabes
que continuam para além daquela eternidade anunciada
e que ainda não era eterna,
mas apenas um limite e um conceito acreditados
para que no fundo do tacho só restasse uma pergunta:
Quem sou eu quando sou?

Se me raspam o doce, eu amargo.

Viver é um trabalho de calígrafo


sem previsão alguma de nanquim.
A última superfície a preencher é o céu
e ele pode evaporar-se num sopro
para começar tudo de novo:
prana para algum Adão disposto a recriar o mundo
e pecar indefinidamente o paraíso todo.

Que a luz invada a escuridão de nossos parques abandonados


onde um balanço ainda oscila nossa última passagem por ali.
Foi bem agora. Não há mais mistério algum.
Tudo brilha!

Ein Karem 03.09.13

Dardos
a Maria Lucia Merola

Sua flecha dourada de anjo revolto esconde em sua lâmina


o corte duplo que dilacera e reconstitui
só para depois gerar aqueles efeitos colaterais
nos quais perde-se o sono mas também não acordamos de uma vez,
permanecendo num estado de transe para sempre,
recostado no batente do próximo amanhecer
contra o último minuto de noite no cenário:
Atado em frente ao Paraíso sem poder entrar.

Então sua flecha de anjo dourado que me atravessa sem fazer ruídos
divide meu coração em lucidez e só-luz.
Sem reservas entrego meu peito aberto de guerreiro
latejando farto um ritmo já em turbinas,
mas no todo sendo o silêncio
do anjo sem nome quando abençoou Jacó depois da luta.

Intuí calado um ruflar de asas,


roçar de sedas de um longo vestido
ou auréolas perdidas na última tramoia
de um baile de querubins que terminou em duelo,
como sempre acontece no mármore de todos os frisos e panteões.

Vim aqui contar essa estória


a qualquer arlequim que possa aperfeiçoar esse truque
como se ele se tratasse somente de
um tiro ao alvo dado à louca entre um número e outro
no parque de diversões aqui ao lado.

Faz frio na roda gigante!


- assim grita a alcateia da audiência
aos chacais em espasmos
pela próxima vítima sendo condenada ao escuro
dentro da lona.

Mas um homem de Deus é eleito enfim


e ele emerge de seu delírio para reconstruir o circo.

A cortina se fecha e por um segundo


um show de raios se divisa por detrás dos bastidores.

Quando ela se abre alguém está no palco,


só tal qual um ícone alongado para o alto
como as pinturas de El Greco procurando o céu de Toledo.

“- Eles querem pão e circo


e eu lhes prescrevo um jejum de sete dias.

Quando a própria fome se transformar em espetáculo


a mesma audiência estará em cena
para redimir seu jogo a esmo
e plantar outra vez sua colheita de pão devorado.

Que há para contar do chão dos dias


se agora as arestas de todas as esquinas
estão enfeitadas com pedrinhas de brilhantes
para nosso amor passar?”

E foi assim que o Trivelin encontrou de volta


sua comédia del arte quase por encanto
como se nunca tivesse ido de um reino a outro
procurando diamantes, que afinal trouxe
para pavimentar todo o caminho principal
conduzindo ao picadeiro
como o petardo do começo dessa estória.

Olhe! O domador de feras


é o mesmo artista que fez o acrobata,
que por sua vez é o palhaço
e que também faz as pipocas
que a gente compra na entrada.

Ele carrega um espetáculo consigo.


Como o trapézio de onde começou,
oscilando entre a febre das alturas
e o roseiral que plantou atrás do circo
por amor à colombina.

Todos os dias as três fileiras da frente


estão tomadas por uma legião de arcanjos,
transparentes espectadores
regendo o show numa liturgia secreta.

Quando eles se entusiasmam e batem as asas,


penas voam na plateia que está atrás
e todos pensam que são efeitos especiais exclusivos.
Catraca.

Quando eles se vão,


recolhem às vezes a aura que tiraram por descuido
e limpam a poeira dos vestidos impecáveis
antes de entrarem de volta
no Jardim do Éden
comendo a maçã do amor
que Eva aprendeu a fazer com a serpente.

Finda fábula.

31.08.13

Demiurgo
a Maria Lucia Merola

Quem viu cada nova rosa surgindo no jardim?

No inesgotável e árido jardim:


talismã de se viver
cada espinho colhido pelo tempo,
cada métrica de quando ainda não havia versos
e toda a espera de anos era por uma colheita sem fim.

A chuva medida em milímetros cúbicos


e o amor à velocidade da corrente sanguínea
movendo-se por diferenças de pressão...

Virga que não chegou a ser propriamente chuva


mas inerentemente água,
insubstancial e ocorrendo ainda assim
como eco em miragem de sons e gongos:
negra liturgia.

Quem ouviu todas as flores


como um demiurgo apaixonado pelo belo
apenas pela aventura em oxigênio da invenção?

Ato falho.

Jagunço aedo sem destino algum exceto a luta


vou agora mesmo buscar uma resposta
para amortecer as travas do silêncio
e recomeçar como brinquedo de corda que jamais parasse
esquecido numa esquina qualquer de universo
sem sinal algum de transeuntes no farol:

Quem viu cada rosa surgida no jardim?

Concisamente o belo, o efêmero e a intransitável


passagem para uma nova estação...

Breve suspiro de cor que a seiva trouxe


para expressar hermética e silenciosa
a voz negra do seio da terra cantando seu húmus
em uníssono de flor.

Numa região de aridez cáustica o suficiente


para calar a voz que desertos gritam,
cultivar flores é alquimia de jardineiro mágico:
tem a dimensão dos transes dervixes,
a brevidade fugaz das aquarelas
e a imprescindível invisibilidade de um prana:
flash de corisco raio na paisagem temporal,
quando se entende a visão total em questão de segundos
e acabou-se.

A imagem indefinidamente colada nas retinas


sem verbos que a entendam.

Fosse um pássaro
voltaria aqui todos os dias
cantar indefeso esse jardim
enquanto meu voo não partisse.
Fosse aedo
inventaria mil cordéis em odisseias
sem precisão alguma de viola nessa roda
só pra ser dono do repente à minha volta
e recriar a rosa que lavrei em seus cabelos
num pretexto para a próxima primavera.

Passa ao largo uma brisa de outono


e tudo se recria em moto perpetuo ad infinitum.

Para a Via Láctea as estações são nada mais que uma célula,
sequer um átomo.

Velocidade é igual a espaço sobre tempo.

A matéria de que tratam as grandes canções


não tem fórmula, peso ou adubo.
Deus é pura velocidade.
07.09.13

Romãs
a Maria Lucia Merola

Três romãs vieram me contar seus sonhos vivos de natureza


num dia de amanhecerem os alentos
em que o ‘espírito de Deus movia-se sobre as águas’.

Puseram-se diante de mim, entradas pela porta da frente,


num prato de louça em minha mesa, posta para a próxima aquarela
que eu pintaria em meus desejos sem fim.

Queimando em vermelhos de insistência, incêndios de fertilidade,


a primeira me falou de vertigens que sofrera na árvore
em condenações de prosérpinas e perséfones: lenda de tudo,
e de como os homens costumavam conversar com ela
numa linguagem cifrada a ouro e prata
cujo código depois não conseguiam repetir entre eles mesmos.

Há certa fragilidade nessas relações


onde o silêncio fortalece o claro enigma
como janelas abertas para um novo dia.

E em questão de segundos,
impávida sem fim,
a segunda romã me perguntou sobre a terceira,
não mais presente.

Esta, aberta para o Trabalho,


com o passar dos dias queimara sua própria existência
num altar onde se adorava o belo
sem precedentes de qualquer diálogo entre mito e ser.

Alquimia de sangue e húmus


meu coração em triângulos se perguntava
sobre o fado como fruta do destino
a transmutar-se em água e cor sobre um papel…

Imersa em branca folha e entre vozes de chiaroscuro


a terceira romã nos respondeu então em sobretons:
- Ein sof

E assim, num diluir de falas


através do que nos disse em flamejantes
restou o amor que nunca estanca, só abrange,
incenso queimando superfícies para atingir estratosferas.

E ouvimos então da árvore


que tudo sabia desde o princípio sobre o fim de tudo
até que um sfumato calou nossos cinco lábios
numa moldura de sorrisos sem fim.
Sem precedentes.

16.09.13
Equinócio
a MLML

Já é outono no meu peito de criança mal dormida.

Sonhei todas as primaveras para que esta chegasse


trazendo árvores falantes que me contassem a verdade
sobre o mistério da seiva que corre em ascensão
como um modelo de alma aprisionado entre folhas e solo.

Falei dos redemoinhos onde pousei insólito


como num voo ingênuo e inesperado
até que o próximo tsunami passasse
e me levasse de tabela para o próximo vendaval...

Choveu sal nas minhas pegadas...

Não houve adubo, sol ou receita


que me fizesse voltar dinâmico para o meio do campo
para inundar de júbilo meu coração sedento pela próxima colheita.

Das pálpebras insones que agora testemunham


o escafandro rarefeito desta fria claridade
emerge a chuva que esperei neste intermezzo
traduzindo na superfície da terra
a resposta terna ao sol que me queimou em luzes no último verão,
intersecção arterial entre a sirga e os remos,
entre o colapso fauve e a ascensão dos meteoros em transe,
rastro e pista para descrever em segundos toda a história milenar do cosmos
como se ele fosse um brinquedo desmontável de Paul Klee...
Coração que pulsa novos ritmos
onde o silêncio não dispensa ainda alguns ruídos
e as perguntas perdem peso e medida...feito moda de viola.

Tempo de viver respostas,


elevar da argila úmida um novo homem centenário
que possa tratar das equações indeterminadas em termos de igualdade
e da mecânica celeste como num jogo de amarelinha.

Restou entre céus e infernos riscados a giz por Vlaminck


uma cabala sorridente onde brincamos os dias da eternidade
sem a mínima pretensão ao mistério,
em que o equilíbrio podílato da criança em questão
desconhecia de todo a vertigem póstuma do trapézio,
de quando o circo pega fogo em plena corda bamba.

Chove, minha alma!


Chove a virga de todas as possibilidades
no tesouro encardido desta lona furada e vencida,
neste pedaço de universo que não vai além da minha cerca
mas que tem me ensinado mudo aos quatro ventos
que não há um único argumento sequer neste planeta
capaz de negar o sol de todos os dias
de todas as noites
de todas as minhas veias cansadas e já despertas.

Canta, alma sagrada!


Canta livre de rimas, métrica ou sentido
porque o eco do teu sopro vai inundar para sempre
as asas de cada recôndito do sistema solar
repetindo em sopranos como um elétron cúmplice de luz
a trajetória invisível da conquista divina em torno do núcleo
deste coração encantado que te alimenta em espírito!
Para sempre.
Para sempre.
22.09.13
Cordel de Prometeu

ΓΝΩΘΙ ΣΕΑΥΤΟΝ
(Pórtico do Oráculo de Delfos)

a MLML

Por mais que me amedrontem os dilúvios


ou que em raios fulminantes se consuma
o dia em que por voluntário infortúnio
decidi pela luz no fim do túnel
repito incólume a função de Prometeu:
ainda que vencido, vingado!

E que a distância tenha sido muita, pouco importa:


mínimos flashes no escuro
nos divisam profundos precipícios.
- Antevisão -

Por vezes desço ao escafandro.

...Receio dos abismos do rio


onde um seixo movido muda todo o percurso...

Sem que me pesem as roupas dos míopes pecados,


testemunhas oculares da lei da gravidade,
invento em couraças que esse preso engenho abissal
seja um titã rarefeito em sonhos de astronauta.

Ainda não alcancei tecnologia de ponta


que subvertesse a ordem das coisas
e me fizesse levitar de volta à superfície.

Meu peso é meu sangue.

Por isso me deixei estar nesse limbo em úteros


ocupando um parto invisível enquanto fico.
Cada mergulho é uma afronta a essa gênese.
Sei apenas o caminho de ida.
A volta é sempre um enigma no sapato:
se me calço, não me caibo.
Quando me vejo, raro me acho
que me dê na gana.

Deixem-me estar, pois, de pés no chão


em asas firmes que sintam o Absoluto
sem voos de cera.

Decifrem agora esse paradigma, homens,


antes de trazer-lhes o ônfalo mercúrio
para gritar mediúnico aqui da margem
que encontrei heroico o metal nesta bateia.

Desse garimpo fiz meu reino às avessas


apenas para inverter a morfologia dos sentidos,
perpetuar meu ouro
como um símbolo de poder e discórdia
e manter um pé de conflito
que me permitisse olhar pitonís por entre as águas do entorno***
através da clarividência do áureo Rhuo,
deus de todos os rios e montanhas magnéticas.

Saber num relance onde se encontram os veios


em oráculos bem guardados de correnteza sem fim:
olhos de águia,
vigílias de coruja,
voos verticais de falcão:
Nada em excesso

03.10.13

Diâmetros

a MLML
Outra vez, antes de amanhecer
recolhi na toalha de mesa esquecida ao relento
a fria claridade bordada no tecido das constelações
que luziam cúmplices o cobalto da galáxia o tempo todo
enquanto eu dormia.

...umidade traduzida numa bênção...

Cedo, o firmamento é como um rosto mais próximo de estrelas


que um beijo íntimo mergulha no azul profundo antes de acordar o dia:
o amado a despedir-se...

As flores perto, frescas ainda do ar noturno,


revelações cósmicas de orvalho
vivendo o imediato necessário
para captar seu tempo de cor numa aquarela fugaz
enquanto o universo continua a respirar eternidade
numa abóbada ilusória onde tudo é igual,
onde tudo se respira em matemáticas diferentes
sem qualquer medida.

Um homem se ergue perante o Absoluto


e vê o mistério tornar-se aparente numa redoma que se quebra.

O que está acima é igual ao que está abaixo


e nosso xadrez, inequação de fórmulas obtusas
multiplica-se entre regras e chão.

Olhei um último fio de noite que vibrava


com a lua em pleno zênite demarcando a neon
seu compasso gelado, claro e amplo nas pedras do jardim:
ogiva refletida

Rápido, o fim de um astro riscou o céu por faísca de segundos


no corisco definitivo de um sorriso:
tetos de Da Vinci, coração do poema.
Quem teria visto esse trajeto além de mim,
testemunha quieta do sereno que não traguei durante o sono
apenas para despertar agora em rastro luminoso
e receber a resignação do movimento ômega
de um corpo celeste incidindo direto no meu peito
num percurso de sol em apótemas.

Fria claridade.

Desde então aprendi a cantar com o silêncio.

Notas criadas a partir do nada me trouxeram lições apreendidas


por itinerários de deserto sem provisões, quando caminhei em círculos,
considerando que a meta era atingir o núcleo da esfera
sem saber a dimensão do meu através:
plano que não chegara a sólido em percepções.

Apanhei da areia cada maná que a voz de Deus me respondeu em pérolas


e sua compreensão, como a manhã que veio depois
velada num anel de ouro
pela neblina do dia.

O alcance da percepção do sol enquanto esfera


e que nos atinge como um plano de fogo suspenso em enigma de luz
é apenas um símbolo das leis de espaço e tempo
que nossa tradução não corrige nem conjuga.

Hipótese tímida de uma trena que só aprendeu


a rota que vai da extremidade ao centro,
escuro jugo que não se permite percorrer diâmetros
porque não ousa quebrar o espelho de miragens do raio.
Teoremas...

o perfume das flores tem mais verdades


que todos os postulados de Euclides

...vi uma estrela cadente entrando no meu peito


como flor que as cores dramáticas do outono
estabelecem em vermelhos na paisagem das folhas...

A nudez das árvores, que começam a se despir


para renascerem depois,
além da perspectiva alcançável numa estação apenas,
é só uma passagem.

Olho para o jardim florido sem questões


e lembro da cicatriz do verão em sacrifícios para as pétalas
e de como nascer ou brotar
era quase um milagre de dor sem precedentes:
tatuagem exposta nevrálgica na pele da terra.

Nirvana de estrela no ninho do meu peito,


amado que chega: beijo de encontro.
Epifania dos sentidos.

Medidas que nossos cálculos não preveem,


intensidades que nosso padrão não alcança.

25.10.13

Kailash

Três vezes circundei a montanha


antes que a neve caísse em meu rosto.

Um marco deixado entre as bandeiras das colinas,


um murmúrio de ventos revelando rezas
em mensagens cifradas a ouro e prata.

Sussurros de veracidade soprados desde sempre


pelos desfiladeiros e amplitudes ao redor...
52 km em sentido horário.
Poeira nos lábios e na garganta
devido às prostrações.

Calosidades nos pulsos


após tantas fricções nas pedras do caminho
e a alma limpa de um dervixe giratório.

Kailash desde sempre...

...Indus...

Três vezes os senhores de todos os tempos


voltaram-se para me lembrar a linha demarcada
entre a vivência dos limites
e a amplitude dos sonhos por serem sonhados.

Espelhos que desvendaram verdades cruas


mas prontas como um pesto ala genovese
que deveria ser comido frio.
Assim fiz.

A fome que me encontra hoje...


não é mais um jejum sublimado e voluntário...

...Sutlej...

É sentar-se então à mesa e iniciar com um brinde


à luz maior que abençoa todas as refeições,
a responsável pela fome mais sagrada:
a que sempre trazemos como provisão aos nossos dias insanos...

...Brahmaputra...
Nosso desejo maior de nutrir o mundo em alcaloides
é fazer da luz espessa do termômetro, uma neblina
para arrefecer qualquer temperatura
que porventura ainda não tivermos decifrado
apenas para afastar as miragens da febre que encanta
mas não sacia sede alguma.

Ilusão sôfrega...

Hoje os cantis estão cheios de néctar.


A caravana é uma cidade em dia de música.
As abelhas agora produzem mel nas rochas do deserto!

Num espaço sem medidas


com a ampola do tempo feito neve derretida...

Frente a um espelho que não acrescenta nem subtrai,


refletindo alturas sem previsão alguma de alpinistas
na conversão de quatro grandes rios imaculados
circundando um ônfalo:
sede vencida!

...Karnali...

Kailash pairando acima da névoa...

A montanha não precisa ser conquistada.


Basta sua visão em magnitudes
para atingir o Sol além das nuvens
e abraçar atmosferas que gravitam
tanto na Via Láctea quanto nos elétrons em torno do coração.

Imutável despertar sem fronteiras...


12.12.13

Três Fados para Maga

Mouraria
a Magali Merola

Se um fado viesse cantar em mensagens de ansiedade


tantas histórias de um tempo de não existirem cantadores
ao som dos personagens vagando as ruas da Alfama
tomaria da guitarra seu pranto de rio magoado
e comporia meu Tejo num murmúrios de vinhedos.

Tragam-me um pão que adivinho, por clarividência de Caronte


as notas de todas as canções não inventadas
porque tua música é meu vinho
e entre verbos e saudades, conjuguei todos:
cem modos de embriaguez, indicativos ou subjuntivos
e bebo aos goles o presente para não engasgar o passado.

Na palma da minha mão teu nome foi escrito.


Foram sonhos? Se em tatuagens ou cicatrizes já não sei...

Os calos que as facas deixaram em queloides caligrafias


cobriram a tua história. Mas teu coração de cigana
cresceu pulsando sua dança as estradas da minha alma
sem deixar pistas, apenas um vago perfume
que me orienta em noites de chuva e me levam ao mesmo rio
em que comecei a cantar teu Fado com a voz da minha infância.

Teu condão dividiu meu mar em dois


e fez da cisão um Oceano
onde volto todos os dias
a ser peixe em tua coreografia celebrada.
Tua Obra é meu ofício
Eterna Musa, Luz dos meus dias!
Flor do meu peito que se abre, mais nada…

28.12.13

Alfama
a Magali Merola

A noite trouxe segredos que o dia recompôs em outras cores


de amanheceres raiados atravessando nuances e dourados,
larga viagem para tão pouco amor,
memória vaga e latejante em minhas veias
procurando ainda os antídotos que não pude trazer à tua vida...

Minha lira emudeceu em teus cabelos


e tua metamorfose calou fundo meu coração e meu sangue
a esperar teu regresso, num arco-íris entre meus dedos feridos.
Risquei com minhas facas a marca das tuas pegadas
para despistar dos deuses do destino tua passagem
mas o peito aberto gritou cada passo e te segui.

As palavras do teu fado retornando em ecos ao longo dos meus dias


estremeceram lágrimas nas retinas em adeuses
de meu sorriso esperado
num porto a que já não voltas:
cais mudo das tuas respostas
em navio envolto por neblinas...

Se perdido entre as esquinas da saudade


procurar teu perfume em todas as flores
nenhuma responderá tua voz ou viagem: meu acalanto...
Mas ainda assim, incondicionalmente eu canto!

Se estrelas desenham tuas constelações em meu dorso nu


uma coreografia de luzes se alastra rasgando um céu em cicatrizes.
Teu Paraíso é minha tatuagem.
Tua dor que não se apaga, adormece em meu colo de criança,
teu pulso, uma tarefa cumprida num entardecer revolto
tardio como um ipê roxo em fins de primavera.

Dançaste a vida em supostos sonhos negros,


anjo alucinado em minhas brumas de quaresma,
não respondo por meus versos, véus que me perseguem
em pistas imaculadas pela neve
dessa vida que me derrete pouco a pouco
rarefeita em visões lisérgicas e tênues
sem tua presença insone dentro dela:
Redoma.

Moira do tempo, Átropos do que foi palco um dia.


Ísis sem véus e que nunca transgride
a estreita noção entre medo e desejo: mistério desfeito.

Epifanias...

Amor meu, conduz minha viagem que prossegue a pauta agora


sem canções de despedida que possam ousar meu degredo
e que meus olhos não pulverizem presságios que não pude inventar
no primeiro solavanco da carruagem de Elias
que me aguarda à porta da casa bem agora
em seus corcéis arrebatados nesta noite
como no Livro dos Reis...
28.12.13

Fado de Lisboa
a Magali Merola

“Vivo. De quê?
Nem infância ou futuro decrescem.
Numerosas e múltiplas existências
transbordam de meu coração.”
Rilke
Homem insone perante a lição das flores,
sinto-me pequeno diante delas
mas trago inteiro teu jardim por dentro.

Um paraíso que recompõe-se por conta própria;


flores de inverno que começam a surgir
independentes do meu desejo ou sina.

Tudo conspira
além das cordas
e do bojo sonâmbulo da guitarra
a cantar navios
além do Bojador.

Vivo teu inverno ensolarado,


terra prometida do teu Exodus
envolto em tuas canções aos tsunamis.

Assim eu queria teu fado e tua luz sem fim,


Maga flor, farol de todos os meus dias!

O sol de tua luz


fotossintetiza
o esboço das minhas cicatrizes,
marcas coloridas que se transformam
em cartoons de tatuagens
descrevendo sonhos que não dormem.

Para sempre teu perfume perseguindo minha essência,


queimando teu incenso numa saudade marítima
de portos por conquistar
sem dizer adeus às conchas da praia,
flor de um cais já conhecido
e antevisto em percepções de clorofila
escritas nas areias como todos nós.

Nós que se desatam:


Velas ao mar.

Maga flor de todos os meus dias,


anjo sem tempo inquestionavelmente aqui,
eco das ondas
em peito de eterna criança conjugada.
- Meus verbos são teus.

O Todo que hoje vivo


é como o dia em que te conheci
num progresso de coreografias não marcadas
onde cada passo está ainda por acontecer
e é desde sempre a Dança que te imortaliza
neste palco isento de cenários
do meu coração cigano
sem a maquiagem do tempo.

Dança, minha eterna Musa!

A memória de todos os poetas


é apenas um olhar de teu olhar,
um vislumbre de segundos
abraçando toda a dimensão da tua paisagem
mais o céu inteiro:
dimensão rediviva que te perpetua
em constelações de agora-já com o teu nome impresso nelas.

Sem fim, absoluta,


complexo jardim de estrelas:
Maga luz, flor de todos os meus dias!

19.01.14

Cinderela

“Todos os meus ossos dirão: Senhor, quem é como vós?”


Salmos 35:10
a Maria Lucia Merola

Um corisco de meteoros
atravessa a densa neblina habitada dos últimos invernos.

De acordo e trato com o destino,


meu conforto era o borralho.

Mantras murmurados pelos ventos do vale todas as tardes


na expectativa de que os mapas todos se fundissem
numa região abissal completamente conquistada
por geografia de carochinha submissa em tempos de fênix.

Quem determina?

Internos que comandaram e seguiram rumos sequer imaginados,


lampejos de compreensão quase inaudíveis...

Decidi viver o desconforto do Conto de Fadas


na vez da bruxa e deixei que ela se entretivesse
com seus caldeirões de fada madrasta.
Quem pode saber quando virá a hora do Baile?

Saí de foco procurando um sapateiro pelas ruas da cidade,


pés no chão e peito nas alturas,
dono feliz e triste do completo itinerário.

Branca de Neve sabe o tempo todo da maçã envenenada


mas comete sempre o mesmo erro por resignação à fábula.
A princesa da alma conhece a nobreza do destino
e também o reino que o preço do sequestro exige como resgate.

No virar das páginas


que astrolábios inventar então
para beijar esses céus por entre as fendas
de final feliz que nunca chega?

Fábulas e padrões sem medida


seguem cálculos que a previsão não lê,
binóculos e lentes que nossa visão de horizontes
não delineia de resvalo. Não se sabe o fim da história
e a hora é agora, na realidade da vassoura,
na faxina interminável de todos os meus dias
esperando um príncipe que eu sei, existe!

À falta de outros lábios


beijo os espelhos na paixão convexa da própria sina,
expandindo os muros da prisão nesse borralho,
criando sonhos de Bela Adormecida que nunca dormem,
comendo páginas do diário nesta torre
pra divisar os horizontes da Floresta
e digerir o fado que me induz em congestão irreparável de liberdade.

Eu acordo do Livro.
Tudo ao mesmo tempo agora.
Finda fábula!

O Marinheiro

"...And if a strange asks you,


tell him that I am he, a blind man
dwelling on the rocky island of Chios,
whose songs shall be in time to come..."
Homer

"Place me on Sunium's marbled steep,


Where nothing, save the waves and I,
May hear our mutual murmurs sweep;
There, swan-like, let me sing and die;"
Lord Byron
A aceitação paciente do calendário em destino de alto-mar
é virtude de almirantes sabiamente consagrados.

Sina de Argonauta?

Aprendi na Escola de Sagres


a fazer da navegação em si o pão nosso de cada dia,
mesmo que o fermento não desse seu lêvedo a tempo de forno
e a massa amargasse ázima o frigir da fome que nos justifica,
mais nada.

Na alegoria da ponte
para ir de uma margem à outra
é preciso viver a trajetória passo a passo.
Não há sequer como medir os abismos das entrelinhas
ou olhar para trás e marcar um retorno,
tal é o arado resfolegante da vida!

Que o jejum no deserto pós-Egito


valha então o mar dividido como passagem!
Algas e conchas por asfalto
à guisa de pedrinhas de brilhantes...

Pérolas apanhadas então da areia


pelos tombos que as vislumbraram: espólio de batalha!

Atravessei um intervalo de aridez sem me dar conta.


Em tudo, via comprometido
como se usasse óculos escuros de mergulho,
o peso do escafandro a determinar o curso do meu rio...

A atmosfera rara dos voos seguros


sempre forneceu oxigênio e matéria-prima
para o antídoto da asfixia
que anda às voltas na superfície das águas.

Aceitar os limites visíveis a nos impor o passar a vida a limpo


e de rastros
é um bom disfarce esotérico para aquele
que pretende desvendar o labirinto da entrada de Chartres.
O enigma só faz sentido quando percorrido de joelhos,
cada centímetro valendo a extensão de um abraço no destino aceito.

16.02.14

A Abelha e a Cigarra

Assim a vida nos oferece seu fel biliar


que a coragem destila em néctar de redenção tempos depois.

Por vezes não há como envergar o vinco deixado


como pista para que se continue a estrada.
Come-se o pó da rua descalça e cospe-se adiante um tijolo
e que será a fundação de um alicerce por iniciar-se
num futuro nem sempre remoto,
quase sempre mais surpreendente e melhor
que os últimos precipícios de resguardo!

Meu sangue é meu preço. Veias que saltam o garrote que tortura.

Já não trago o gosto hemático ferroso na garganta


que tanto gritou às estrelas de outros dias.
Mesmo a beleza da paisagem parecia envolta por um véu à minha frente.
Sequei as lágrimas no tecido e vesti os óculos de acordar.

Após uma congestão de maresia,


a vida sabe às vezes a champanhe gelada de consolo.

Mas estalei pouco a pouco minha revivida casca de cigarra


pra cantar a primavera das flores novas que surgiam.

Pavio aceso
canto conjugado em explosão de mil versos
perante um exército cego de formigas dos meus medos.
Ein Karem 16.02.14

Manhã de Carnaval

a Maria Lucia Merola

“O oceano da Razão não é visto; homens de razão são vistos;


mas nossas formas são apenas como ondas ou sua espuma.
Qualquer forma que esse oceano use como seu instrumento,
estará com ela lançando sua espuma por toda parte.”
Rumi

Diálogos assim ecoando paredes sem muros...

Quando enfim beijei os lábios de Deus,


borrei seus bigodes com batom.
Mas ele não se importou. Sorriu-me vermelhos
em tempos de desassossego.

Tirou calmamente da algibeira


seu lenço bordado em monograma: ∞

E por delicadeza humana


em pontos de quem bem entende do riscado,
mudando súbito sua divina opinião
guardou-o no outro bolso do manto
e manteve-se à mesa
com meu beijo estampado em seus mustaches desde sempre,
compassivo deus avô do mundo.

Sorvi meu café preto aos goles entre estrelas,


deliciado com o universo posto à minha frente
sobre a melhor toalha de linho deste céu.
Ein Karem, 3.3.14
Tiberíades
a meu Pai

“Porque eis que se pode dizer com toda verdade:


um é o que semeia, outro é o que ceifa.
Enviei-vos a ceifar onde não tendes trabalhado;
outros trabalharam, e vós entrastes nos seus trabalhos.”
João 4, 37-38

As flores de mostarda eram um tapete tênue sob o velho carvalho.

Sua dignidade solitária naquele campo em Oregon House


surgia soberana em sonhos amarelos de Van Gogh
num mês de Abril.

Puro delírio...

Beith El comparou o grão de mostarda ao Reino dos Céus


na mais estreita parábola que ensinou aos homens. (Mat 13, 31)

Pelos prados e colinas, sua voz vibrava


como os cantos dos pássaros
que alimentam o espírito.

Ainda que sem testemunhas de seus voos


ou da visão fantástica de suas cores e matizes
a revelar o ton sur ton
das notas musicais entre as folhagens,
a melodia dos passarinhos
se faz presente e exata a olhos invisíveis.

E as asas de Yassu estavam o tempo todo ao nosso redor


num abrigo de abraços em ninhos internos
com o ar de todo o vale tragado em fôlegos rasantes!
Tudo ao mesmo tempo...

Assim como os anjos no sonho de Jacó


no degradée
do mesmo subir e descer,
o caminho é único entre Céus e Terra:
não há contramão.

No milagre
da multiplicação
os deuses trazem a fome com o pão embaixo do braço.

Ein Karem 10.03.14

Lastro
(Sobre o mudo vasto do mundo)

Somente hoje a atmosfera rarefeita dos meus verbos em transe


conjugou o tempo necessário e desconhecido para atravessar espaços...

Eliminei a primeira pessoa dos pronomes,


assim como perdi todos os subjuntivos.
'Nós' será sempre um novo modo a ser inventado de agora em diante.

Reticências que me conduzem ao asfalto dos caminhos em atalhos


criam a gramática própria das encruzilhadas
com a leveza dos percursos imediatos que prescindem de narrativas...
Não há acordos ortográficos para o despertar.

Cheguei cedo ao porto de nenhuma conclusão:


o mais possível itinerário é partir sempre.

Trouxe por isso um lastro para este barco à deriva.

Meu mar tornou-se Um junto a meu leito de rio.

Navegar hoje é conhecer incondicionalmente da foz à nascente,


viver cada passo da hidrografia
com a surpresa dos mapas em êxtases
enquanto o país interior emaranhado de estrelas
traça em terra a imitação de cada nebulosa acima.

Tempo de balés descrevendo minúcias


que jamais ousaria colocar
no mesmo compasso coreográfico das constelações.
Deus dá os mapas em favor do suor diário em corpo e alma.

Enquanto isso, na cena aberta...

Em degradé o oceano prolonga o mesmo azul do céu


sem resposta alguma das marés de porventura.

Abrem-se as cortinas em ondas.

E os passos descrevem a rota nas areias desta tarde desde sempre


com o eco do destino sendo o fim de alguma praia desconhecida.
Nada permanece.

Meu palco hoje é transbordado: uma parede de água


onde um filme está sempre a ser projetado
para o delírio dos peixes transeuntes
em cumplicidade com os mergulhadores e o peso do escafandro:
Cruz de cada um...

Atmosfera da criação por demais rarefeita


que às vezes embriaga e às vezes é um ar que sufoca:
mas oxigênio suficiente
para desfrutar momentos como obra divina e graça.
Paisagem submersa.

Em instantes posso vislumbrar


numa bola de cristal transparente
passado, presente e futuro pelo vidro da máscara.
O cenário sempre desmente a dramaturgia real.

Ainda assim o destino é sempre a última cartomante.

Encontro Caronte com a mesma intimidade


de quem adentrasse uma tenda disposta ao acaso
numa tarde de circo em dia de domingo.

Por desmerecimento geográfico a cena é única,


tudo acontece num átimo de amarelinhas entre céu/inferno.

A alma da fantasia tornou-se meu mapa.


Minhas roupas são as flores
que colhi nesta manhã de nudez suprema
com o jardim ainda molhado pela neblina.

Tudo está por ser recriado a todo instante.

Flor em teu ser

Nada...
É possível ser flor nesta existência,
ter a consciência febril dos perfumes,
a qualidade quente e úmida da floresta
e a aceitação de cada nova estação surgindo intensa.

Os Tapetes Voadores de Ahmed

Num país fantástico muito distante,


logo no começo de um verão em brasas,
Ahmed, um príncipe fervoroso
também conhecido como 'A Mesquita',
forrou os tetos de vidro de seu palácio
com todos os ricos tapetes que possuía.

Sua decisão causou a migração de centenas de mercadores


que chegaram ao reino
em busca de comercializarem com o belo monarca
um colorido sem fim de Kilins, Kazaks e Shirvans
feitos artesanalmente por uma tradição milenar.

Os súditos, por sua vez, para não tornar a vida palaciana


uma grande conferência de ruídos,
passaram a andar mais delicadamente
sobre os longos assoalhos de madeira
que percorriam toda a extensão do palácio.

II

Ao mesmo tempo,
começaram a sussurrar entre paredes
sobre a possível loucura do príncipe,
que mesmo quando cercado por toda a corte,
sentava-se em seu trono olhando na transparência do teto
o avesso dos tapetes com o deleite solar de quem adivinhasse estrelas.

Mas isso não durou muito tempo.

Certa vez, Ahmed resolveu virar os tapetes


de modo que se visse novamente o delicado colorido das lãs,
tingidas com pigmentos metálicos e terrosos
e que contavam toda uma história de tramas
e percursos geométricos sem fim em seu avesso.

Para comemorar a inversão dos desenhos


ele resolveu dar um grande baile para a corte
numa linda festa de Ano Novo.

III

Todos vestiram suas melhores roupas


e espargiram essências do oriente em seus lenços.

O farfalhar das sedas, tules e cetins


contrapunha-se aos veludos sensuais
próprios para aquela longa noite.
Logo no início de seu perfumado baile,
Ahmed fez um brinde à beleza
e antes de tomar o primeiro gole de seu vinho embriagante,
elevou sua taça mirando as figuras delineadas em finos matizes
que se debruçavam nos vidros do teto
como num céu de outras estrelas.

Quando a orquestra do príncipe começou a tocar os primeiros acordes,


os músicos ficaram atônitos ao perceber
que todos na corte continuavam em silêncio,
com as taças intactas em suas mãos
a olhar para cima,
encantados com o que um dia
pisaram por descuido e sem zelo algum.

O príncipe sorriu comovido


e pediu que os músicos parassem.

Aos poucos, as pessoas da corte perceberam o silêncio


e começaram a se olhar profundamente.
E a sorrir uns para os outros,
como se jamais tivessem sido apresentados.

E voltavam depois os olhos para o alto,


cúmplices do mesmo espírito dos astrônomos e magos
ao descobrirem uma nova constelação.

Foi então que a orquestra começou a tocar uma melodia inesquecível,


diferente de todas as outras que se tinha ouvido até então.

E eles começaram a dançar aquela música,


embalados pelo aroma dos incensos
e pelo torpor dos vinhos envelhecidos na madeira dos carvalhos.

Era como se bebessem da floresta e de seu vento


e sorriam uns para os outros... embevecidos.
Na manhã do primeiro dia
Ahmed tomou seu tapete de oração,
subiu à torre mais alta do palácio
e voou em direção à terra dos poetas itinerantes
para tornar-se um dervixe anônimo e feliz.

Os pisos do palácio
jamais foram revestidos.

Arpeggio
a Fabio Crescimano

Sopros de Vayu em meus ouvidos traduzindo o impacto da paisagem,


gosto da travessia que um faro no vento
sugere olhar sempre com a novidade das lentes
em caleidoscópios.

Acordar todas as manhãs e avistar-se num quarto de espelhos


na imagem multiplicada, alvo real para os dardos da miragem.
Permanecer no eixo, alerta dos 360° que circundam tempestades
não tem fórmulas que apaguem os raios exércitos das ilusões.

É preciso forjar uma espada a cada dia...

...brisa de Éolo derrubando titãs.

(Uma criança surge numa das margens e atira seixos na água.)

Círculos concêntricos na superfície do lago


não determinam a profundidade da pedra lançada ao acaso.

Ondas continuam ad infinitum


para além das margens,
quando aquela visão tenra de sorrisos e cores infantis
já tiver se transformado em homem
e a pedra for realidade submersa esquecida num lodo de algas.
Arpejos

Maruti atravessou da Índia ao Sri Lanka num átimo


para resgatar Sita sem a pretensão de ser herói de saga alguma.

O Mahayana foi composto de ciclópicas verdades


na dimensão de células microscópicas moventes.

Linguagem.

Permanecemos com a serena perturbação


que ensinam as lendas,
desaprendendo as tabuadas e as réguas:
gênese constante.

A hora original? Surpresa legítima


que só os ventos sabem contar de trás pra frente.

O Itinerário dos pássaros

Sempre
o canto dos pássaros
durante todo o dia
evoca um cantar
num tom mais alto
em voos rasantes,
sons de abismos
e mais distante constelação.

Abissal & Sublime.

Aerodinâmica nervosa:
precisa como trajetória de bumerangue
voltando sempre ao mesmo destino
por conhecer o truque das curvas.
Certeza de haver pássaros
mesmo sem vê-los:
a experiência de ouvir
comove visões em asas soltas.

Assim também os anjos


alertas em voos invisíveis,
por nosso fardo e jugo levitam,
e desse grito de liberdade faço meu canto ao rés do chão

Enquanto isso aprendo o gosto


de planar sobre o ar quente
sem ruflar para permanecer indivisível,
solerte sobre profundos.

Tudo asas.

Dharamsala

Decifrar constelações em pleno dia


com a clarividência das aves que migram
guiadas pela luz do corpo...

Grandes lições calam palavras.

Falcões, corvos e pardais compartilham a mesma neblina.

O mesmo céu claro e incondicional a colibris e rapinas


denuncia um sol oculto pela névoa
que se faz presente em toda parte.

Fonte invisível, mistério insondável,


motor plácido que move planetas e homens
com a mão indistinta da eletricidade,
ecossistema impiedosamente divino
de onde surgimos e para o qual retornaremos.
Viver é cumprir uma fagulha de luz,
destino meteórico de estrela cadente.

Ladakh

Amplo, profundo, denso e leve


um amanhecer descreve raios de luz entre meus olhos.

Junto com a visão das altas montanhas


o sono do corpo derrete sua neve
perante o incêndio do sol que tudo vê.

Om de vento desmembrando brisas


que voltam exatas para um único sopro:

Um beijo em meus ouvidos.


Lábios de luz em respostas de silêncios
que jamais ousei perguntar.

Deus é uma grande onda que abraça plenamente


a razão do mar de sua sede.

Meu rio encontra amém seu Oceano num mergulho.

Sobre os itinerários das rotas e migrações


a Márcia Merola

Conte qual o segredo


que você trouxe atado à sabedoria dos passos,
da poeira que a fez levitar de tantos palcos
e dos conveses e proas de tantos navios
que jamais naufragaram suas lendas
nem sequer perderam o gosto de sal nos itinerários.
Conte qual o segredo
que tantas cirandas contornaram ao longo da Terra
enquanto marinheiros cantavam as rotas junto às sereias
que Ulisses trouxe emaranhadas em sonhos
de suas viagens perdidas em sete mares
e Homero prolongou febril em visões clarividentes
como um astronauta.

Cante qual o segredo


desta arena iluminada
onde ousamos pisar quase por descuido
como um soluço perdido no sangue dos percursos
e que as pegadas dos que se foram
estamparam a ferro e fogo na lucidez dos caminhos
onde reconstruímos o agora
na suprema ousadia entre suor, lágrimas e sorrisos:
canções de sal!

Cante!
Segredos são música sem palavras,
gosto marinho que atinge a pineal
antes que lábios beijem úmidos
os ouvidos dos ventos num crepúsculo sem medo.
Cante!

Lição de Aquarela

Quanto conflito pode haver


em poucos centímetros de papel?
Cor, volume, luz e espaço pictórico vivem
uma realidade própria entre suas arestas

Ao contrário de uma fotografia que não lê semitons


nossa vida está transposta em tsunamis e meandros
numa perspectiva onde não cabemos,
amálgama onde tintas se misturam
para formar muito depois
uma palheta através de nossas lentes:
Vida lida de trás pra frente.

Não há ensaios de perspectiva


para a urgência do improviso
quando as veias pulsam.

O amanhecer não tem regras.


A luz que abrange todos os recônditos,
desconhece curvas ou desvios
e dirige muitas vezes na contramão.

Resta-nos o padrão
de consultar sua intensidade
através da projeção dos nossos corpos
em forma de sombra,
o que também é um testemunho da luz
vinda do alto.

Deus projeta suas leituras...

Estar alerta sobre o tabuleiro sem dimensões


sinaliza a grande ventura
de coroar-se em pleno xadrez,
alheio à fricção que entende apenas
o rastejar por entre planos quadrados no assoalho
em preto e branco.

Tudo são asas.


É o jogo em si
que subestima o voo o tempo todo.

Hélices

a Alaa Awad
Hoje eu cantaria para você
uma canção que falasse dos abismos
que escondem universos insondáveis
entre oceanos que nos separam
e ao mesmo tempo nos congregam,
réus impunes do mesmo ar rarefeito
que embriaga e alucina tempestades à risca.

Hoje eu dançaria para você


a liberdade de todas as asas entreabertas
indicando a queda e o extermínio de todos os muros
e a ascensão definitiva de todas as escadas.

Dançaria para você de uma forma iluminada


para contar do voo dos pássaros
surgindo através da neblina
trazendo uma forma de turbina em pleno vácuo
para celebrar a velocidade dos astros
em hélices que exterminassem a noção de tempo.

Emaranhado de estrelas
o ninho morno da Poesia cria, irreparável
essa linguagem muda de estátuas
que não precisa justificar o belo
a não ser pela arrebatada presença das pedras
que um dia foram talhadas
independente dos mapas que nos circundam
e dos limites que aparentemente nos impõem
as longitudes do que sempre está perto...

A grandeza é a mesma.
As impressões talvez mais retumbantes.
Mas a alma que está ali tem a mesma quietude
ampliada em 360 graus sublimes
de decolagens e chão.

Ouvir as castanholas a tempo


na voz dos mármores que pulsam virtudes...
Ainda não parei para me estranhar desde então.

Vou sendo tomado pelo santo ofício


de braços tão abertos
que não há cruz de mundo
que possa refrear meu voo:
Só o puro ar me avança.

Dedilhados versos me contenham para apropriadas estrofes!


Canções que jamais serão vistas!
Marcas que ficarão expostas nas lajes dos rochedos!

Os deuses sempre de plantão nesse panteão de anonimato.


Feliz por ser invisível.
Ninguém dá fé às bênçãos silenciosas.
As flores são testemunhas sem ruído de todo sempre
e não fazem censo ao número excessivo de borboletas
que vêm incondicionalmente beijar todas as pétalas
desta tarde que me encontra aqui
como um amante incinerado de sol.

Meu rio corre sem margens para seu fado de Oceano


e não sinto crédito algum por isso
que não a ousadia suprema
de poder contar estrelas em plena luz do dia
com astrolábios a título de marcapasso:
exocardias num turbilhão de veias,
a jugular exposta num grito de mármore
causando cinzéis de liberdade.

Entro devagar no quarto de espelhos...

Vivo agora universos nas minhas moléculas.


Uma oração em silêncio. Cabe na palma da mão
e pode abraçar um céu inteiro.

Hélices...
Em terras aborígenes
não se afiam bumerangues.

Lavra

Olhar o véu das flores de mostarda nas colinas


já é uma pintura a se viver todos os dias.

Sem tempo para poesia


é preciso rimar o verso cotidiano
caminhando através do amarelo da paisagem
sem escorregar nas entrelinhas.

Cada flor que passa é uma vertigem,


vasto precipício de sentidos
que precisa ser decifrado de forma sorridente
sem fórmulas certas para esquecer o medo.

Todo amanhecer é uma surpresa nunca vista,


experiência que jamais se repete.

Sua recorrência é apenas mais uma miragem


no deserto inevitável
sempre por atravessar.

Matita Perê

Era uma vez uma amarelinha sem inferno.

Ia-se de um céu a outro sem qualquer intenção de limites


ou asas que valessem uma distância entreaberta.

Todo final de tarde


os sacis recolhiam os números dispostos ao acaso
e formavam alguma cabala para que pudessem brincar à noite
contando um mar de estrelas pelo asfalto
antes que as velhas negras os chamassem de volta
para dormir ao relento.

Havia um tempo em que nada era remoto,


a felicidade cabia exata no aro de uma bicicleta
e as notícias do mundo vinham frescas
através do quadro-negro.

Quando inventaram os binóculos para a eternidade


os homens da lei disseram que aquele era um pretexto
para a negação arbitrária da paisagem
e mantiveram seu culto à miopia
que também condenava voluptuosamente
a sexualidade sutil e íntima dos microscópios.

Vertigem.

No entanto, a vida virtual lhes coube melhor que uma luva


ainda que fossem cegos conduzindo outros cegos
e tendo o interior de uma miragem como cenário
a esconder a lava prestes de um vulcão.

Aqui
a perspectiva da floresta dispensa telescópios
porque se agasalha sob o teto da noite negra
onde não há sombra de hierarquia entre os bichos
e um reflexo de lua é só mais um corpo celeste
refletido no lago onde as rãs cantam modestamente
num mesmo uníssono sem precisão de maestros.

Era uma vez uma amarelinha sem inferno.

O que acontecia entre um céu e outro


era costurado feito uma colcha de retalhos
onde cabia o mundo todo e mais um pouco.

Assim a disciplina dos calendários


foi definitivamente extinta
e viver transformou-se numa forma criativa e magnética
de enfrentar o luar com os mesmos olhos abertos
de um pássaro noturno.

O Leão de Dentro

a Radha Vasumathi

Comecei a mergulhar naquele limbo


entrando devagar no palácio de espelhos
como num purgatório
que doesse um paraíso a cinco minutos
sempre por ser alcançado.

Mesmo a 200 km por hora


a larga sucessão de horizontes
perde seu fôlego panorâmico nas retinas incansáveis.

Que liberdade paralela


me funde ao nada e ao já-no-enquanto?

Só o tutano do espírito
capaz de vibrar seu princípio a cada instante
compreende...

Medo de pular as entrelinhas?

Saci bissexto em dia de domingo


adianto a pólvora dos relógios
alcançando um dia útil que permita
incendiar de uma vez por todas
a roça de milho e tecer tranças cegas
nas crinas dos cavalos selvagens do destino
virando o folclore pelo avesso
para estabelecer um vínculo imediato
e impávido com a próxima página.
Nômades não têm pretexto, decididamente.

Tudo é motivo para partir


mesmo que não se conheça o itinerário
e a única coisa a conferir
seja a eventual falta de combustível
para prosseguir adiante
totalmente na contramão
e em estado de alerta.

Adiante no avanço das horas!

Ainda que não se adivinhe o conteúdo


ou se conte quantos quilômetros faltam
para trocar definitivamente as lentes
e subverter a paisagem de uma vez por todas.

A estrada é só o que conta


para intermediar a meta
e a percepção da viagem para dentro:
hélices que o tempo afronta.

Saber dos tutanos do espírito...

Com um espinho de gelo no coração


parto em nômades comícios
para dentro do silêncio
que derretido pelo calor resignado
deixará uma brecha
para que o sol penetre a aorta
e disperse toda sua luz
pelo meu corpo então aceso:

Completo farol para as estrelas!

A Terceira Visão dos Tuaregues


"For contemplation hee and valour formd
For softness shee and sweet attractive Grace,
He for God only, shee for God in him."
Milton - Book III - Paradise Lost

Guarda o coração, esse tesouro,


não como baú de segredos
mas uma chave-mestra que possa abrir todas as portas
e ultrapassar tanto degredo
daquilo que nunca foi tragado pela distância.

Séculos ocultos em caixas de Pandora


seriam um colapso à arquitetura fria dos relógios.

O visível é apenas um repertório de mentiras


que o mundo desfia num rosário de miragens sôfregas
e os homens imprimem ao longo de sua história
paramentados em cega liturgia de ruídos.

O cenário do paraíso dispensa muros na paisagem


tudo está perto e palpável como no primeiro dia dos mundos
sem nada que separe a cálida surpresa da aventura
de sua realidade suprassensível aqui: pura fábula!

(Entre um pulsar e outro


o miocárdio abriga em seu útero livre
a possibilidade de todos os aeroportos!)

Um rio que já tivesse cumprido seu fado de oceano,


tudo às avessas, como séculos ocultos em caixas de Pandora
sendo um insulto à arquitetura fria,
ainda que magnânima, de todos os relógios!

Big Ben
Big Bang
Tanto faz!

Intermezzo:
Ela cantou:
O tempo não volta: enlaça!

E ele em baixo contínuo:


Amor que não estanca, abrange!

Luz através das varandas!


(Cena do Balcão em Romeu e Julieta)

Intraduzíveis sentinelas
da grandeza do espírito
que não conhece tempo, espaço, vida ou morte
os livros sagrados são cantados,
na busca da irreproduzível linguagem do eterno.

Ariadnes em prelúdios,
intercedam fios nessas meadas de presságios,
contos de fada à guisa de faróis,
e deuses que nos mantenham neste mesmo porto
de nenhuma conclusão,
onde o pensar em qualquer partida
já é em si mesmo uma conquista
e o tratar de ser luz, seu único parâmetro.

Enquanto isso, berbere


atravesso tudo a pé, tamaxeque
num voo rasante pela amplitude do vale
triturando uma nova poção mágica
para extrair todos os fôlegos num só golpe:

Tablacadabra

Ecossistema

A uma migalha de pão


que deixada para uma gata
permaneceu impune no muro,
intocável

Bichos matreiros e sagazes,


não se ganha um felino nem com o melhor padeiro
se não houver confiança mútua

E ela se foi por outros muros


outros quandos...

Mas um beija-flor de imediato


em fios de eletricidade
avistou curioso
em telégrafos de assobio

Depois
assustado por algum ruído
voou para flores mais próximas

Rimas não mentem


Todas. Em sufixos e prefixos

Minutos para que um exército de formigas


viesse em valhalas buscar provisões.

Uma fila delas pelo muro,


trouxe o beija-flor de volta em arpejos.

...E a gata
atacou em golpes de trapézios
sem alçar zás de passarinhos!

Ciranda

As alcachofras fosforescentes
assistiram tudo isso junto ao entardecer
pelos muros do hospício
Viver as palavras como enigmas
decifrando a vida em parábolas sem fim
sempre por ser contada, sem desfechos ou prelúdios
sem amarrar conclusões que não condizem,
apenas reticências que jamais prescrevem...

Os Mapas do Destino

O Mistério sussurra segredos em nossos ouvidos


e não compreendemos ao certo
sua linguagem simbólica de brisas e outonos.

Mas a clareza de que o pequeno barco


de nossa existência resignada
segue adiante, conduzido por esse movimento,
traz em seu bojo um ninho de mantras
que faz o oceano transparecer e alargar
fronteiras e geografias que ultrapassam proa e popa.

Assim o barco torna-se o próprio mar e vento,


a viagem e seu almirante:
abrangência silenciosa das pirâmides
em ecossistema de quietudes
ritmo que pulsa tectônico mudos precipícios
e prescinde em sorriso interno do temor das alturas.

O Cerne dos Infinitivos

Manter a vida diária intacta


sem amarras ou conflitos
preferências ou rejeições
e receber tudo com a resignação do Buda
que apenas comia do que caía em seu prato...

Saber nos tutanos do espírito


da imparcialidade das flores
que tudo ouvem e vêem
com o mesmo senso tenro e fresco de presença
e conservam, imaculadas, o belo de seu ser
em guirlandas para todo destino,
incondicionalmente:
seiva que tragou um dia do próprio âmago da terra.

Percurso

Invento verbos que não registro


olhando paisagens que ultrapassam o transferidor.

Há muito tempo
trouxe um fardo que a poeira foi comendo pela estrada
sem deixar rastros, cúmplice e companheiro do vento
que apagou todos os vestígios sem deixar endereços ou mapas.

Hoje, percebi que o hálito úmido da manhã,


perspicaz, envolvia um céu no vale.

Já faz tempo.
que as bússolas foram atravessadas
e os astrolábios beijados em diários de viagem
borrados de batom quando faltavam palavras

Certa vez as estrelas se compadeceram


e vieram se refletir no azul do lago
emaranhando astronautas e argonautas
para consternação geral de satélites e escolas de navegação.
Assim, trezentos e sessenta graus foram cumpridos sem compasso,
sem êxodo, degredo ou promessas de constelações desconhecidas.

Índex

Tudo desenhado desde sempre como num calmo teatro...

É preciso trazer leveza aos bastidores


porque a alma emana dos personagens
e converge para um único reflexo.

Ele chega em raios à fronteira da ribalta,


onde respiram num mesmo ritmo
foco central e audiência.

A gravidade do mundo perecível não alça voos.

Um louco então grita das coxias:

- "Quando Deus vier, que seja de viés


incidir sua luz diretamente no meu peito
e me livrar dessa catraca e da ferrugem
de uma vez por todas!

Meu interesse de antemão em luto armado!

Paguei meus ingressos e meu resgate


e foi ninguém mais que eu mesmo o raptor."

Silêncio.

Mesmo as mais altas intenções


estão cercadas de anjos caídos ao redor.
Por compaixão ao seu resgate
e à reeleição de suas asas derretidas
a luz existe e emana dos olhos
daqueles que não dormem.

Mas o exercício de viver a cada instante


de olhos abertos
pesa nas retinas da carne
porque é feito do mesmo gosto incondicional do limite
- daquele que todos nós comungamos.
E da mesma forma e pela mesma lei
nosso múltiplo ser
não projeta senão uma única sombra.

O limbo arde nas mandíbulas


e inevitavelmente
a fome incomensurável de luz emerge dos tutanos.

É então que um palco se define


ainda que lhe falte um texto e um ponto:
Impronunciável drama.

Não há efeitos especiais para a dor.


Abrem-se grilhões em febre de asas.
As máscaras estão emancipadas.

Arlequim e Pierrô são agora um mesmo e único palhaço


quando o circo pega fogo.

Cortinas

A medida das flores que nascem das pedras

A ordem é recomeçar cada manhã


com a simplicidade tenra de uma rosa
que não questiona sua condição
de refém num amplo jardim
prisioneira de outras cores
ou seu corpete de espinhos
durante seu tempo de vida útil embaixo do sol.

O húmus é cego e justo.

Enquanto o perfume de cada pétala


emite um valor essencial em notas e aromas,
a flor em si não sustenta o rótulo de um preço
pela ascensão unânime de sua natureza bela...

Ela existe.

Essa cotação definitivamente não conhecemos.

Entra-se pelo pórtico do jardim


com os bolsos vazios de sementes,
por isso a entrega é íntegra e resoluta
e a rosa fica assim, ela mesma
sendo o próprio jardim traduzido numa única pétala.

É a rosa que mantém meu coração


batendo seu ritmo de cristal,
por ela todos os poros se respiram outras flores
e a cadência íntima de existir atento
permanece isenta de qualquer outra estação
que não seja agora.

Calo se as palavras saltam em efêmeros,


para conjugar então o puro silêncio das hortaliças
e esperar as porventuras das sementes expostas de um último verão.

Mas a simplicidade da rosa que surge todos os dias


ainda que seja a mesma flor no mesmo canteiro
tem que valer todo o jardim
e seu tênue virtuosismo
abraçar um céu inteiro!

Sobreponha-se sua virginal inocência


à raridade das orquídeas que comovem Hollywood.
Para a justiça do húmus
todas serão apenas flores:
puros sonhos de clorofila
que desconhecem holofotes
ou o farfalhar de ramalhetes nos celofanes,
expressões do mesmo solo
transmitido em símbolos diferentes
na impermanência de um único destino.

De Profundis

Nunca cantei em coro uma canção


para amortecer a fúria do hit parade em uníssono.

Antes, dei a cara à capela na barganha do terror


para ocultar a sede dos vampiros
e fazê-los soar como escalpo derradeiro
em seus leitos de morte
apenas para deixá-los no prejuízo
sem qualquer possibilidade de happy end
no meu filme.

O mundo e seu repertório de mentiras


enquanto o relógio da torre continua
religiosamente parado
tão indecifrável e inútil
quanto um claro enigma.
Cheguei aqui afinal, desertores!

Triturando uma nova poção mágica


para extrair todos os fôlegos trincando os dentes
num só golpe!

É preciso ressuscitar diariamente do sono dos vivos.


Quando o condão se estabelece, por meios desconhecidos,
num auspício que chega sem alardes,
quase como uma epifania do destino,
então a vida ganha um propósito elevado
e alguma potência muito superior ao nosso coração
se eleva, dança, flutua
e move estrelas.

Mas tal mapa não ficou disponível nas prateleiras!

Para esses mistérios, todos os dicionários são obtusos.


A marca tatuada dentro do ser
que é feita a ferro & fogo
chia e fumega vapores
como as ventas dos animais em dias frios de inverno.

Todo restante são trevas exteriores,


onde há choro e ranger de dentes.
E ali também a luz haverá de chegar algum dia!

Só prevalesce mesmo a grandeza de espírito


que não conhece tempo ou espaço,
vida ou morte, renascimento ou circuncisão.

A linguagem da eternidade é irreproduzível,


por isso os livros sagrados são cantados.

Qualquer outro vínculo usual e garantido


não comunga desta mesma eucaristia
que tanto nos arremessa
para muito além
de nossos limites de carne e sangue:
ali tudo são asas.

O gosto nas minhas mandíbulas é de epopeias.


E seu fio de meada, conto de fadas em faróis.

Como pássaro, tiraria nota 10


em fio, assobio e voo rasante!

Aeon

a MLML

Fé na estrada que ruge de vez suas arestas


apontando torta um destino aos escalenos
e reduzindo toda meta e compasso
ao limite de um beco mordaz e sem saída!

Não. Traçarei novamente meu antídoto


e farei dele uma esquina para todos os mundos
armando o coração como um sabre de beduíno
para afagar as lâminas que abrirão caminho
pelo Mar Vermelho.

Meu sangue é meu preço


perante a chama do dragão impune que o tempo esconde
em relógios galvanizados pelo ímpeto do fogo tenaz
enquanto as retinas persistem
e eu grito por Vulcano.

Que deus regurgitado rasparia esse cadinho?

É preciso inventar um mito que refaça a vida


do fundo do tacho de nossas esperanças,
que resgate do mosto a louca embriaguez perdida
na miragem do que um dia ousaram chamar razão,
uma fênix de rastros que conheça de perto
a dança vibratória das najas fulminantes!

O laboratório às escuras
não adivinha os efeitos da vida ao ar livre.
Martelos, definitivamente,
não abrirão picada mato adentro.
Tudo é um fio colorido no espaço pela ilusão de tempo.
Resta-nos a obrigação de sermos grandes
apesar do limite de carne e sangue.
Ergue-nos a precisão de mais um sorriso a estender
nossa capacidade elástica além das medidas,
rugas e intempéries em rosto resignado
frente à impiedade dos calendários.

Ressuscita-nos a febre da redenção conjunta


de todos aqueles que assinaram nosso livro a ferro e fogo:
tatuagem imposta pelo dever de refletirmos estrelas unânimes
com a mesma clareza e dor
de todos os amanheceres que ainda estão por vir.

É usar nova pintura de guerra e partir urgentemente!

A única certeza é que todo sol dói seus brilhos.


Apenas para adoçar essa comitiva de palavras
que me ensinaram a placidez das esfinges
e a abrangência silenciosa das pirâmides.
Não. Nenhum enigma é gratuito.

Tanto Jacó quando Hefesto pagaram seu fado telúrico:


um, pela bênção do Anjo
o outro, pela queda.
Ainda que em cânones diferentes
ambos mancaram sua vez.

Persisto.

Antes claudicar sob o céu de Tétis


a apostar cegamente em asas de cera.
Elas não forjam nenhum olimpo
nem realçam o mármore lapidado de qualquer friso.

O céu que nos protege


Quem me ensinou a placidez das esfinges
e a abrangência silenciosa das pirâmides
criou a chave-mestra para todas as portas
permanecendo tão inefável
quanto o calor da paisagem num dia de março.

Os muezins cantam as horas e a ordem


enquanto os radares ardem em revista seus temas de medo.
Quem serão os demiurgos na matrix?

Tudo prossegue impiedosamente


enquanto persigo os obeliscos...

A luz que em mim seu céu aponta


em janelas que revelaram todos os mistérios
o amanhecer em brasas de seu sol me deu
por mapas panorâmicos em gotas de luz
que prescindem de downloads
ou itinerários.

Rosa dos ventos que brisas não permitiram


por magia demais no corpo dos cataventos,
doces perfumes perseguindo eternidade
para provar que o limite
é o gosto transubstancial
do infinito numa dimensão qualquer,
rio em filigranas que cumpre seu percurso
até um mar que beba seu destino
na conquista potável e nua em sede de dunas
já parte de um grande oceano que a tudo permeia.

A rede de Indra é somente


o sopro transversal de um beijo
no hálito morno aquecendo as pedras no deserto,
travessia que perpassa um gosto de degredo
enquanto abraça o exílio do que perto está.

E a distância fica sendo então


apenas a referência que aproxima,
mecânica celeste que não conhece
nem mar, nem chão, nem estrelas:
puro espaço do qual somos talhados
sem forma, traço ou lugar.

Berimbau

a Naná Vasconcelos

O que vem desse bojo


deixa sempre a esperança
de que a vida seja uma aventura mais do que sensível
e as maiores percepções
tão silenciosas quanto o gosto das galáxias

Viver a audácia sem precedentes


da orquestra inteira na corda de um berimbau
é refletir a vastidão da floresta e seus encantos
sem fronteiras
pura magnitude

É trazer o coração do oceano à superfície da viagem


e ter o mergulho total como a única rota
surgindo da espiral dos redemoinhos
preferencialmente
à linearidade da razão dos surfistas
que pensam caminhar sobre as águas

Seus búzios...
encantos de chuva regendo num flash
o ritmo aceso de trovões e raios
partindo céus e seus abismos

Destino

A telepatia
inimiga dos poetas
entende depressa ao deus-dará
que na beira do mar
à revelia
Escravos de Jó
jogavam caxangá

9.03.16

Dorso

Mosaicos de ouro
na luz do sol percorrendo a casa vazia e suas paredes:
relógios outros que os cantos e rodapés não acompanham.

Eu vou à janela dos infantes


nesta manhã de nevoeiro
esperar por El Rey, o Desejado.

E vejo no jardim adormecido


as íris roxas e a hera que cresce.

O passado é uma medusa


que só se pode avistar por reflexos incidentes e transversais
sem risco então de congelar no tempo
um estandarte de dor
em forma de coração.

Para esta primavera de despedidas


não semeei novos canteiros,
assim, apenas as flores mais persistentes germinaram
da fertilidade obstinada das sementes mais fortes
que surgem cores inesperadas
celebrando a paciência e sabedoria do húmus
que por sua vez, aprendeu a dosagem de fermento
com o magma sagrado dos vulcões
que jamais se estinguem.

A diferença entre os seres vivos


é uma questão de densidade.

mosto
malte
restilo
a transparência estática das garrafas
não conhece o decantar dos campos de colheita:
imolação e glória no Valhala

Ad astra

“...desejo de perseguir em asas


as mais altas estrelas.”
Virgílio

Um véu
dissimula a linha horizontal do tempo
da linha vertical:
membrana que envolve a densa camada de neblina
que perpassa audiência e trapezistas:
vida em estado de urgência
no circo sempre por começar.

Catracas

Há uma gênese nas encruzilhadas


sem evidências que apontem direções
senão a simples nudez de cada momento
experimentando novos arlequins
de improviso.

É de viés que tudo acontece!


Viver pode ser tudo, menos um experimento linear!
E o destino, tão oblíquo quanto um raio
toma de sobressalto a lona tosca
que imita um céu aprisionado
entre um número e outro
enquanto a plateia
entredentes
...ruge.

Nada que a orquestra


aos desconsertos
não soubesse
em ávidos sopranos.

Intermezzo:

Só a ingenuidade dos palhaços


pode ler a tragédia que mente medusas
no reflexo impermanente dos espelhos.

Entreatos

No mais, pura magia!

Efígie

A lenda diz que uma sereia


encontrou certa vez um sapato perdido
entre as pedras limosas da enseada.

Ela fez dele seu ídolo,


construiu um nicho nos abissais
e ofereceu conchas e algas
pensando que fosse a efígie ancestral
de um peixe-deus.

Petardos

Se não houver resignação


o despertar é insuportável.

No pequeno tratado do mundo sutil


o sol começa sua jornada e ilumina um céu inteiro!
O belo persiste intermitente.

Assim, o pulsar desigual dos semáforos


é tão somente uma miragem na estrada ampla,
vida que respira sem rimas
o toque redentor do eterno amanhecer em cada poro
como a alvorada de um cosmos que não tivesse pressa.

Um mistério que se preserva e se prolonga,


consubstancial e transubstancial
e dele ainda emergem outros pranas.

As portas da eternidade
permanecerão abertas o tempo todo.
Somos aqueles que negam a travessia de seu umbral
por sua fantástica e evidente proximidade,
muito maior e mais íntima que nossos próprios umbigos.

Olhar a vida com olhos de boneca que jamais se fecham


entrevendo imparciais
a mágica viva do quarto de brinquedos;
a quietude do olhar
perante a surpresa imparcial da clarividência.

Nem o peso das chaves obsoletas que trazemos por precaução


como apêndices mal dormidos
emite outras respostas além dos ruídos nos bolsos,
os mesmos que ainda acreditam e defendem na ferrugem,
a lei oca das fechaduras
que desconhece o transe libertário dos batentes.

Abram alas para os cegos


e ouçam o roer dos mudos.

Aqui, nem o sono dos surdos é absoluto!

Mediterraneios
Num mar metálico
o sol era um reflexo entre cobres e pratas
quando se punha:
vertigem de quem pôde ler seu tempo
pela clara referência do horizonte
em espelho de ritmos escatológicos.

Alaranjado
ele hesitou seu mergulho
panorâmico e complementar
como um pecado insondável
até tocar sua garganta de fogo
na superfície da linha
e incontestável, beber o mar inteiro
que vencido
escureceu então por entre as brumas.

Ainda sobre os Mediterraneios

Enquanto sofremos de tempos verbais


o mar dispensa gramáticas
num paraíso que não é mais nosso.

O destino incontornável de Perséfone


metade abissal, metade olimpos
me diz que tudo é degredo,
seja semente de romã ou pedra de Sísifo.

Não há saída num castelo de espelhos!


Há que se submeter ao ataque em pleno cadafalso
quando um último anjo então
surgirá em voos convulsivos,
apenas a ponta de um iceberg.

As maiores decolagens
hibernam um plano divino:
escondem seu jugo
num harém de sonhos mirabolantes
em patíbulos.

A nós resta a condenação do amor às miragens


atravessando as realidades que somos,
refletidos e únicos,
assim como um par de asas
dono intacto de um mesmo voo.

Mirobálano

As montanhas do espírito
independentemente se organizam
para me contar os segredos
da luz de todas as manhãs.

Não raro concebem vulcões


que emergem de seu magma
e pulverizam toda geografia estabelecida
abrindo-se em pandoras e pérolas
para depois então sorrirem beijos
iluminados de um único sol
em astrolábios!

Sem mapas...

O amanhecer, ainda que traga sempre


a mesma e verdadeira luz, nunca é ensaiado.
O sol não conhece prestidigitações.
Tudo é simples e legítimo
como no primeiro dia dos mundos.

Assim também nós amanheceremos


como a erva fresca e úmida
ainda coberta pelo orvalho
e prescindiremos das bagagens obsoletas
que cometemos um dia
quando ainda éramos noite
e mais nada.

Misterioso

Lendo a vida como na trama de um tecido


onde o motivo desaparece nas margens
cujo ângulo a visão não alcança
mas que o destino persegue impiedosamente
no panorama suposto para muito além do viés.

Da mesma forma em que a mitologia


continua costurando plenitude e sentido
mesmo com a morte dos heróis,
assim também meu coração
resgata latejante cada momento seu
com o gosto de uma lenda por ser narrada.
Impulsos.

A vida repete o mito.

Nós mesmos teremos de nos reinventar heróis


e escrever na pedra a saga inédita
que até agora ninguém jamais pôde ler
e decifrar no corte preciso dos cinzéis
ou limites vazios e efêmeros da moldura.

Assim ergueram-se a pulso


as pirâmides e os obeliscos
e a matemática fez-se visível mais uma vez
confirmando mistérios sutis entre arestas e céus.

Hieróglifos não conhecem medo


nem dialogam entre si;
o que lhes dá sentido é a morte do tempo
e a permanência do espaço que se abre em visões
cujas marcas a vida torna legítimas a cada dia:
esfinge de corda e constelação,
exílio telúrico de uma sede que nunca tem fim
nem planos.

Astrolábios

Nesta terra amarga, não importa,


vou semear meus doces frutos como um beijo
e colher minha vida num sorriso para dentro.

É aqui que o sol nasce todos os dias!

Ainda que tudo no mundo me devore


continuo persistente buscando os temperos certos
que meu armário na cozinha abriga em perfumes e silêncios,
trazendo dos aromas que tanto me perseguem
a resposta muda que o amor transforma em desejo
e que prescinde de um sabor muito exato
ou mesmo de ingredientes corretos.

Neste grande fogo de ilusões


todos aprendemos que estamos na verdade
cozinhando a nós mesmos
em favor da mais única e possível realidade:
o retorno para Deus neste exato momento!

É Ele nosso mais nobre convidado,


por isso ofereça tudo!

Ele sempre sorrirá sob os bigodes


mesmo que a receita esteja completamente errada.

Deixará no linho do seu guardanapo


um beijo estampado por descuido
para tornar tudo ainda mais memorável
e celebrar a luz de ser a todo instante.
Sândalo
O Amor, fluente em todas as línguas
é um leão entre os homens,
sol que tudo penetra e revela
impregnando a quietude fria e úmida da floresta
inebriada pelo aroma da resina dos sândalos,
rei desperto reconquistando seus domínios
do jugo da escuridão e sonhos de exílio.

À luz, custa o exercício físico da combustão.


Mas a dor do fogo
acende um céu inteiro refletido na paisagem
da qual somos pássaros
declinando abismos em ousadia de voos
dos quais somos lendas
imitando a sutil impermanência das nuvens
expandindo céus & quandos.

Assim, a fênix teve por graças


o presságio de seu incêndio
e fechou-se então um livro ainda em brasas.

Finda fábula abençoada em cinzas


enquanto a exatidão da lenda persiste no calor dos dias
e as grades, derretendo, prescrevem sua babel
vencidas pela manhã que surge infinda,
fosforescente, cometendo a própria luz.

Balada para a casa vazia


Um atalho para a saída do labirinto,
meu pátio é meu desassossego,
aberto púlpito para todos os cômodos vazios acima,
quartos voluntariamente desapropriados
livres de todas as pegadas
olhando vultos que ainda insistem em voltar.
Mar bravio. Uivos nas venezianas.

Vento causticante polindo lembranças e arestas.


Mantras percorrendo pistas,
deixadas pela praia num rastro de escamas
como um netuno que atrasasse a maré baixa
imprimindo brilhos na areia
que as ondas apagarão
antes que se decifre o enigma.

Irônica liturgia divina.

Só ao destino é dado o cetro do martelo como veredito.


As conjunções planetárias
– látegos para o lombo dos homens –
não passam de sorrisos de escárnio
para a grandeza dos deuses.

Coisas que ficaram impressas como folhas secas


e que encontro ao acaso dentro dos livros.
Olho para elas e não sei de onde as trouxe
ainda que guardá-las tenha sido um gesto estratégico
para me remeter a algum lugar onde estive.

Ineficaz, o passado emerge impotente das páginas


como um cartão-postal sem endereço ou remetente.
Certos truques decisivamente não funcionam.
Viver intensamente muitas vezes não deixa nenhuma pista.
Nem mapas.

Mas tenho visto tudo muito de perto – tão de perto


que crio nuvens de calor no espelho a cada suspiro –
essa necessidade de raspar fundo a bateia no areal
a partir de tudo que precisei reinventar
e manter a identidade visível no reflexo do escafandro,
espantalho amigo dos pássaros,
anjo traído pela liberdade das asas,
poeta inefável.

O trem de viver

Prossigamos!
Enquanto algo hiberna e decanta
muito se sedimenta.

A aparente anestesia dos momentos


segue involuntária sequência de outra ordem,
destino traçado que a clarividência não alcança
mas compreende mesmo que nos limbos.

Talvez o obscuro traga tanto desconforto,


densidade que lodo e musgo encerram
em lucidez que ainda não conhece superfícies
nem ondas circulares de remanso.

Canção de Guerra

A única saída é o picadeiro,


lá todos os gatos são pardos
e o trapézio
uma figura geométrica
em estado de calamidade pública.

Todos os acrobatas no mesmo número


e os clowns dispersos numa plateia de ciganos
sofrendo pilhagem sob a mesma lona.
Alma Mater

Unidade, mãe de múltiplos filhos!


As estrelas são assim mesmo, quietas e insubstituíveis num céu intrínseco,
um abraço de distâncias com o mar de luzes no peito em grito aberto
ciranda contínua de onde viemos e estamos.

Sem outros mapas que não abismos de estrelas para onde voltar.

Cartógrafo amador, quantas vezes errei os cálculos e as fórmulas


apenas por temer minhas neblinas!
Mas os faróis sempre perdoam...

Enquanto houver terra e mar


alternar navegação e retorno
tornou-se um mito vivido em segredo
tradução prévia de um ciclo maior e mais tangível
que nenhuma babel pode transpor em alturas.

O trânsito na superfície nunca ignorou


a rota abissal que, turva, meu lastro viu o tempo todo em escafandros,
papiros de lembranças onde o compasso persiste
como um anzol da clareza que inevitavelmente me fisga
e nácar que torna possível a sede almirante de partir
que oceano nenhum sacia nem nega.

Eu me atrevo
mas traço planos frágeis em barcos de papel
enquanto meus piratas cometem pesadelos em pilhagens
contra meus sonhos que nunca dormem e jamais naufragam.

E quanto mais me arrisco, mais salgada fica minha viagem.


Tudo passa excessivamente do ponto,
da compreensão mais insípida
à mais salobre ignorância.

Assim, rota hipnótica do navio


num mar sonâmbulo que se acredita constelação
persegue os astros esquecendo os bancos de corais.

Encalhar nos arrecifes é muitas vezes a possibilidade


de conquistar o continente que os muezins não viram antes.

Lágrimas abissais, suor abissal,


coléricos ou sanguíneos humores que transcendem métrica e rima.
Tudo custa!

As estrelas são a nossa única grandeza.


A epifania, a realidade mais justa,
aquela que traduz a babel imposta e espessa da lei dos homens
num léxico diluído página a página nas entrelinhas:
o cotidiano como a mais possível liturgia
gritando jugulares e cães soltos na garganta.

Não ditei receitas fleumáticas de viagem.


Medi todas e testei in vitro.
E foi assim que o laboratório explodiu naquela tarde,
como num filme de Antonioni
enquanto Pink Floyd.

Ciranda

Ao final, mar e céu nada mais são que uma mesma e intrínseca verdade.
Não há outro mar que não abismos de estrelas.
Tudo está muito perto. Nosso binóculo ao contrário
é que insiste em ver a paisagem na contramão.

Toda ascensão é para dentro.

Meadas

Se as Moiras, filhas da noite, quiserem


um camelo passará pelo buraco de uma agulha.

Mas poderá trazer em seu encalço apenas um único fio


ensarilhado pelos dedos dormentes de Cloto
no fuso do tempo que Láquesis prescrever.

Assim, na roda de fiar


cumprem o destino que nem mesmo Zeus pode alterar.
E para Átropos, o oceano é apenas um hífen
forjado entre dois mundos
cujas lâminas cegas Cronos também não pode medir.

A montanha ainda floresce quando estamos juntos


e o linho azul dos prados desconhece seus tormentos
ou seu tempo de maturação.

As colinas vestem então as tramas de um mesmo céu...

Em sentido inverso
Ariadne mapeou os atalhos
para a saída do labirinto
e chegou nua à câmara do Minotauro
seguida por Teseu.

Mitos... reflexos divinos


que tornam a vida suportável.

Em que constelações marcaremos nossa história?


Seremos apenas o flagrante risco
de uma estrela se esvaindo em luz?

Pouco importa.
O céu, ainda que por uma única vez
foi a expressão fugaz de nossa substância!

O Coração do Sol

Do pântano, onde tudo submerge


uma flor em sorrisos emerge do vazio
e encontra seu caminho de clorofila refletida
através do leve coração do sol
que lhe abraça os sentidos em beleza transformada.

É assim que os jardins alcançam estrelas


e todas as constelações
são um único e mesmo céu
pulsando vivo e tenro
a extensão de todas as veias
no percurso de todos os astros:

Ascensão para dentro

Ein Gedi, 14 Novembro 2017

Axis Mundi
a Jean Rondeau

Eu vi um menino correndo no deserto


perseguindo peixes que só as areias conheceram
num oceano que rebenta no meu peito todas as manhãs.

E ele me entendeu com aquele mar azul de olhos


e disse de seus abissais por entre as nuvens:
Tudo - incondicionalmente - é parte da engrenagem da Luz.

Cumprimos assim a trama no tecido de existir


porque os urdimentos nos conduzem obeliscos
pela única razão do céu que apontam.
Não há destino. Existe é construção.

Quando voltei a Ácaba, já tarde da noite


jurei que nunca mais o canto dos muezins
seria uma garantia de graça ordinária cinco vezes ao dia.
Aprendi então que os minaretes são uma lição de alerta
sobre sermos eternas sentinelas em posição de sentido.
Com frequência
a vida muda em 360o
enquanto teimamos em permanecer a 45
insistindo nos binóculos ao contrário
e vestindo dominós que nunca rimam.

O deserto está por dentro e é dali que tudo começa

Pólen

a Maria Lucia Merola

E suportou com bravura


sua clausura de crisálida
depois de vencer de rastros
uma corrida de mil pernas
entre a voracidade das folhas do jardim
e o olhar afiado de pássaros enormes...

Em seguida,
voou colorido por alguns dias
em sua coroa de coragem,
feito uma flor que se decidisse em movimento,
cobrindo assim todo um céu de abismos
em beijos e perfumes.

Alfanje

a Ahmed Diab

Era uma vez, num trigal dourado,


a vida em acres e hectares.

Em sua gênese,
sulcos revolvidos, marcas e veios
formados ao longo do tempo
que o húmus guardou em véus
de Perséfone, por segredos de abismo
num caminho de conquista da paisagem.
Dos vincos talhados
que curso e fado do arado mapearam
em rastro de encantos,
sementes germinaram.

E na pista
desse itinerário percorrido
Deméter foi coroada em Elêusis.

Se olharmos para trás


não reconheceremos mais o percurso
do nosso próprio rapto.
A visão panorâmica é outra.
Hades é um deus tectônico
quando a superfície fértil e febril
corre célere no filme dos frisos.

Ao longe, do cinzel de um teatro de sombras,


carvalhos imensos cresceram,
recortando a geografia do horizonte
contra um céu único e impávido
e nem sempre o mesmo:
intrépido circo movente.

Desde que a chuva fresca transpirou nossas pegadas


com o suor dos dias e dos fardos
somos agora a colheita dos nossos próprios passos
num deserto sem esfinges.
Nácar

a Thomas Dunford

A vida reverbera o mesmo gosto


que a sabedoria indecifrável dos desertos.

Se houvesse para a Esfinge


uma história dinâmica do tempo,
com todo um existir
exibido em apenas oito segundos,
sua revelação seria nada mais
que areia ao redor do mito.

É no subsolo que residem todas as respostas.

Qual sortilégio em arqueologias


revelaria tal preâmbulo?

Não seria seu olhar adiante,


uma conquista mais plena em significados
que a mera previsão de seu passado
em artifícios?

Que a areia continue a escoar seu funil


pelo estreito espartilho das redomas!

Os astrolábios só desejam mesmo


é beijar um sol por entre as dunas
num batom de ferrugem que possa queimar em silêncios
o metal de todos os instrumentos de medição.

Mandrágora
Babel que traz nas entrelinhas seus próprios dicionários,
enviesada, a vida vai folheando e traduzindo seus avessos
no filme imaginário entre espaço e tempo.

O que me faz sorrir por dentro


é esse colo de confidências
que permeia, ilumina e alarga os horizontes.

Tudo está muito perto.


Nossos binóculos é que insistem
em ver a paisagem na contramão.

Sol

a Ahmed Diab

Por isso e por todo movimento que ronda as estrelas


sua voz é como se mil sinos dobrassem para dentro
e o poder de seu olhar, o risco iridescente das galáxias.

Eu vejo pássaros no seu rosto


contando da transmigração das estações
num voo redentor em forma de príncipe.

Julho 2018

Tarab
A dor jamais adianta seu tempo de ferida
pelo consolo imediato da cicatriz.

Há um movimento perpétuo que desconhece naufrágios


e meu veneno tem se transformado em seu próprio antídoto
Prossigo almirante em meio às tempestades
e não há como adiar o barco ou a viagem
porque o mar dos meus olhos não tem âncoras.

Qibla

No fundo da bateia permanece o que é essencial.


E a raspa do tacho se permite brilhos inesperados.

O garimpo de existir não teria sentido


sem o preço do suor e da lágrima.

Do sal que compõe essa alquimia,


a prova de que há um oceano por dentro.

Sem ondas para movê-lo,


ele seria nada mais que um lago calmo
mas sem vida marinha para sustentá-lo
na verdade e grandeza de seu ecossistema
sem fronteiras.

Abençoados os ventos que provocam tempestades


movendo arestas e desterros.
Avalanche
No mar bravio dos seus olhos sem âncoras
de quem destilou um céu em plena travessia
e num par de armadilhas para rebobinar
passarinho cantou de trás pra frente
sua presença irreproduzível
onde era eternamente uma vez.

Ainda na obscuridade da superfície


conheceu, com certeza,
a clareza estrafosférica dos abismos
ocultos na dimensão das estrelas.

Criar talvez seja mesmo


atravessar o aço do espelho
em detrimento da quebra de todos os paradoxos.

Só por risco,
rir para cima
como nas embalagens:

Cuidado:Vidros
A Mandala de Cinzas

A resina dos incensos espalha sua essência


por ceder resignada à combustão de seu destino
disseminando, estratosférica, todo um percurso em alcances.

Apenas o tempo para conjugar os fatores no infinitivo


em seu espartilho de vidro e cinzas
sem métrica alguma que lhe seja cúmplice.

Em contagem regressiva
também os foguetes são lançados
para além da gravidade
como se a areia fosse uma experiência imperceptível,
independente da posição
em que a ampulheta do acaso estiver.
Num palco inafiançável por marionetes invisíveis
a vida, urgente coreografia
deverá ser irremediavelmente dançada
mesmo que jamais compreendida de antemão:
Impreterível esgrima sem máscaras.

Mesmo que o cenário todo se insurja


e seus atores colapsem, é este o preço.
Moedas de sangue
sem qualquer possibilidade de câmbio,
no mosaico longínquo da pavimentação.

Voar é uma questão de escolha

Sejam reis ou escravos,


todos sustentam o gosto cru
da mesma prisão sem portas.

Pérolas e Sementes
Um sol cria sua ferida de luz entre o coração e as retinas
e uma clara chama incinera sonhos desfazendo-se com eles.

Por caprichos de fênix, sem efeitos colaterais


dancei labaredas fingindo serem fogos de artifício
e purguei o paraíso em conta-gotas
para mobiliar um inferno entre meus dedos
que plantavam pérolas, pensando colher sementes.

O Amor, fluente em todas as linguagens,


embaralha verbos num dialeto invernáculo
onde nada mais se compreende
senão a geografia irregular dos sentidos e sua completa exaustão,
em que nenhuma outra loucura se conjuga
senão a ousadia míope de abandonar a segurança dos mapas
mesmo quando a tênue clarividência previa temporais
em seus oráculos de navegação.

No centro do furacão, onde nada é ameno


o imperativo absoluto é o rodopio.
Quando tudo para, a tontura e a vertigem trazem a impressão
de que o mundo continua girando cálidos dervixes
para além da música dos ventos e tempestades à risca.

Atordoado ainda pela clava do condão


continuo polindo sínteses de suas arestas
pela veracidade do ouro que nunca mente
e que a tudo acende e ascende.

Mesmo no breu da noite


sua lucidez permanece espontaneamente presente,
inerente à sua verdade e natureza:
Um jato de luz e ele brilhará num passe de mágica
como um buda.

E é então que o pequeno modelo para uma nova fênix


se instaura, desta vez criando asas
e abraçando precipícios por inteiro,
conjugando mares e cornucópias.

É ali que os frisos dançam iludindo cronos


e os escudos dos curetes retinem suas lâminas de guerra
para proteger um zeus ainda inocente e menino
da fome voraz do tempo que a tudo devora.

Sem multas ou desvantagens


a caligrafia dos olimpos será reinventada infinitamente
pela contramão rebelde de Urano, filho da luz e do éter
de quem, mesmo que pelo avesso da ordem e desordem
deuses, titãs e heróis procedem.

Prana

Minha lira também afina cordas de fogo


para incendiar seus desconsertos!

Mesmo o travo na garganta


é a possibilidade de um novo canto rouco
despertando velhos antídotos.

A estória saberá encaixar seu enredo de meadas


onde todas as linhas se encontram,
onde todas as contas são prelúdios de oração.
Permanecerão sem resposta, no entanto,
os beijos que atirei ao vento em tempestades,
lábios que tocaram um enxame de vespas enfezadas
nas espáduas de Atlas, antes do roubo dos pomos.

Perdas incontáveis também ficarão sem registro.

O silêncio prevalescerá vivendo seus escritos,


perpetuando memórias que dispensaram palavras
ainda que o peito aberto imortalizasse cada partida,
e cada apito em sopranos dos trens coloridos
que se foram levando estações eternidade afora
soasse como primavera que jamais atingisse um fim
florescendo verdades cruas e essenciais,
um destino de Rio em sede de Oceanos...

Plânctons
Após explosões inevitáveis,
junto os mosaicos em estilhaços pelos corredores.
Há sempre um vitral para ser atravessado pelo sol.

No crisol, tudo entra na mesma combustão.


Luzes ou trevas vão para os guardados
do alquimista silencioso.
É a única certeza no laboratório dos dias.

Ultimamente, os vapores de enxôfre


têm feito a alma cantar vários prelúdios
enquanto jornais desafinam as manchetes do absurdo
em lápides frias calando um futuro que ainda dorme.

E jamais estou fora do tom!

Repito chaves para abrir portas legitimamente inéditas


e o sol invade então a casa inteira com o ímpeto de um samurai
rasgando ao mesmo tempo a expansão de todas as janelas
ainda que seja para um pálido amanhecer acima dos muros.

Ali, escreveram num grafite um dia desses:


Uma só réstia de claridade pode iluminar o mundo

E as sombras prescreveram e fez-se Luz!

Quando cheguei, antes da chuva


retirei-me antes que as sementes germinassem,
não tendo tempo ou chance de ver as flores de plâncton
surgindo da escuridão inflamável no breu do asfalto.

Inundei a insensatez das alamedas


conspirando com o musgo na pavimentação
porque minha fé cria ondas por onde passa.

Quis construir caminhos por entre florestas


sem a opressão intrépida dos semáforos
e envenenei o mundo em alcalóides
destilando o conteúdo deste canto nas paisagens
porque horizontes também são largos abismos
que ultrapassaram o padrão obsoleto da linha vertical.

Ele e a lâmina prometida

O escudo de Athena era polido


como um espelho cristalino.
Filho de Dânae, concebido de uma chuva de ouro
e alado agora pelas sandálias de Hermes,
Perseu cantava assim nos interlúdios:
E sob o elmo de Hades
que me fez invisível
nada me escapa e ninguém me vê.
Do reflexo, ele pôde vislumbrar a posição da medusa
e estudar melhor a precisão dos golpes
vivendo o script que lhe cabia no momento
ainda que não tivesse aprendido com deus nenhum
a ser mito ou herói de saga alguma.
Contando de antemão
com as ferramentas no viés do exercício
teceu sua lenda como quem riscasse um círculo
de sua espada curva e fatal,
a única arma que realmente lhe pertencia,
e gume do aço que selou de vez sua lenda
e apagou para sempre o jugo da górgona no penhasco.
A inteligência de sua destreza
justificou sim, a intercessão alerta dos três deuses
como luzes de sua cega e bárbara coragem.
Aos frisos congelados e extáticos dos olimpos
falta a voltagem escatológica da carne e do sangue
capaz de cumprir a eletricidade de todos os enredos
tentando adivinhar o vulto de algum Prometeu caído
mas livre da tortura das águias.
De pó e lama constroem-se os mitos.

À Terra

O arado jamais pensou no prazer tenro das uvas


e o vinhedo desconhece por completo
o delírio consubstancial dos sentidos
que num cálice contém toda uma fábula.

O tempo germinou o que um dia foi plantio,


tornou-se colheita e destilou seu vinho depois.
Quando o futuro mostrar-se um projétil no escuro
o solo será outra vez preparado e dele surgirão novos frutos.
A natureza criará mais uma vez
o combustível para alcançar estratosferas
onde os termos de medidas
não mudam apenas perspectivas,
mudam mapas.

Os céus trarão a chuva necessária para irrigar os campos


e a metáfora do suor compreenderá então
a alquimia que custou o amanhecer
de todos os dias da eternidade!

Taranto
A Amyr Klink

Por um gole de água fresca no meio dos juncos,


longe do raso das matilhas, os poemas vão abrindo
vias respiratórias para a vida
criando caminhos sem deixar pistas
compondo voos e mergulhos e descrevendo visões
que nem mesmo drones alcançam

A paisagem marinha se estabelece


Há sempre novos peixes e corais brilhando um sol
que reverbera seu ouro movente pela areia:
serpentes de luz que jamais se cansam
de refletir subterfúgios para fugir de um céu distante

A atmosfera da criação é rarefeita


Ali não há fôlego ou gravidade
É necessário aprender tudo de novo

Perde-se o tapete sob os pés


para herdar o mérito das asas
de todas as conquistas espaciais
através da própria carne
movida assim pelo pulso sem métricas
rimas, notas ou epitáfios

Que eu possa finalmente taconear sobre o tablado


e imprimir meu selo na poeira do destino
que me fez saltar das entrelinhas
e criar meu próprio ritmo dentro do seu avesso
seguindo o ineditismo de outros versos
que trilharão depois mistérios de outra ordem
cuja lógica as veias não sangram
cujo grito resignado solta a garganta ébria dos ciganos

O Rugido Silencioso do Sol

As bênçãos vêm todos os dias, em todas as vidas,


corpos de pura luz que não projetam sombras,
com o mistério e a fina ironia dos deuses
perseguindo nossas trilhas indefinidamente,
criando atalhos, abrindo becos e escancarando portas:
interminável arco-íris onde a unidade é plural.

A terra vermelha da Morada do Sol


continua tingindo meus caminhos e apagando pistas
para que quando a encontre de novo
a surpresa seja tão original e tenra
quanto da primeira vez sem fronteiras
e algo permaneça intocável e sólido:
alicerces que nenhuma maresia corrói.

O cheiro de doce de laranja nos finais de tarde...


Araraquara passando trens em minha eternidade…

É esse farol que justifica meu percurso.


É sua inspiração que guia meus mitos,
constelações legítimas bordando crivos
nos riscos nevrálgicos de tanto destino exposto
à poeira, estrada, vento e tempestades
sem qualquer defesa ou referência,
entrega de céu íntimo onde estrelas têm vida inteligente
e se comunicam, indetectáveis para o mundo dos sentidos,
prevalecendo sobre qualquer definição ou códigos de linguagem
atingindo a nota certa da canção
ao cantar com um sorriso nos lábios do regato:
moendas processando o trigo cerzido do campo
pela música do arroio para o pão de luz diário.

A chuva virá, transbordando de mim mesmo


de forma tão clara que a própria escuridão não me achará!
Fruto cuja semente provou do magma ardente
do solo vulcânico, excelente para o cultivo dos vinhedos,
vida criada através das cinzas que se confundem
entre o húmus e as estrelas
enquanto outras vozes se insurgem no incêndio do silêncio
e o teatro de sombras cria sóis ao redor,
sem prólogos ou epílogos,
puros reflexos do próprio cerne da canção
cujo presente não tem rimas ou melodia sequer,
apenas substância.

A Reinvenção do Olhar

Não há saída para o pôr do sol exceto o poente.


O púlpito no leste é um cadafalso a oeste
e o resto, céu para contar a estória incondicionalmente,
não importando quantos astros cometam comigo
a ousadia de riscar a esmo o zênite do bordado
atravessando a nado um zodíaco pálido em previsões.

Ainda acredito e defendo o impacto dos amanheceres,


todos eles, dos mais nebulosos
àqueles completamente olímpicos
porque cada um, sem exceção,
passou antes pelo estreito de alguma noite
a fim de poder ressuscitar seu próprio dia.

Mandrake

O existir, esse rio que passa seu destino amargo


de pão ázimo entre estrelas e estigmas
sem revelar foz ou nascente, apenas travessia...

Hologramas de pedra, os faraós de Abu Simbel


não sobrepujaram o nascer do sol
na areia branca do deserto da Núbia.
O mesmo sol que a seu próprio modo
abriu veios de luz pelos corredores dos templos
e que eu não dei fé...

Quando acordei do sonho,


as paredes reverberaram reflexos
que jamais pude prever em qualquer vigília.

Sua ignição queimou minhas pegadas


e não encontrei de imediato a saída desse labirinto.
Tateei então sobre as cinzas do tempo
até surgir minha própria clarividência,
cega e livre de todos os vestígios para voar.

Mas isso foi muito tempo depois


quando aprendi finalmente que em todos os capítulos
havia sempre uma fada escondida
para cada lição invisível.

Não fosse o condão,


heróis, príncipes e princesas
nada mais seriam que anônimos
de páginas potencialmente ilustres.

Cabe ao preço das cicatrizes


o voo da fênix que nem vento desfaz.
Sinai

Pela perspectiva do deserto imerso no mar,


tudo é uma questão do azul ultramarino no horizonte
ao verde quase translúcido contando ondas serenas
em longas pautas ao longo da praia cerzida de pedras.

Eu trouxe um abismo para contar nos dedos


da superfície alta das montanhas distantes
onde um perfil de céu se esconde recortado
entre neblinas e luzes
enquanto um navio de presságios cruza a paisagem.

Meu coração se partiu como o mar de Moisés


buscando oceanos de compreender
essa redução de felicidade a conta-gotas
que os faraós oferecem como o óbolo
de uma matéria proibida pela censura.

Eu sou o lugar onde o deserto beija o mar


e ambos se esquecem deles mesmos
para incondicionalmente se perderem na substância um do outro
sem avisos, sem tempestades ou turbilhões
que não o mais puro amálgama
de algo que se move nas entrelinhas criando paisagens marinhas
por onde mergulho em busca dos versos trôpegos junto aos peixes.

Ergui catedrais sem paredes


para que a memória de Deus atravessasse a nave sem reservas…

Reza

E continuaremos destilando o universo a partir de uma gota de luz,


separando o joio do trigo enquanto assamos os pães para os famintos,
celebrando o voo dos pássaros que partiram
ao trazer um olhar cúmplice pelos que ficaram passarinhos.

De nosso mesmo, só a viagem e o fardo. Eu carrego tudo em versos


e deles estou pronto para me despir quando vier minha epígrafe.

Das tempestades, trouxe os raios que revelam


tudo num vislumbre antes de mais nada
e permaneço depois da chuva espessa a olhar a vida ressurgindo fresca,
tenra e úmida como se acabasse de nascer da terra.

Minha súplica é por um céu intraduzível que me alcance


para que eu me confunda uma vez mais em sua esfera
num silêncio eloquente de mil vozes sem legendas
e um gesto luminoso completamente sem ruídos
ou marcas no caminho.

A vida pode ser tudo,


menos intransponível.

Canção para um novo inverno

Enquanto o jugo puído pelo roto punho do mundo


impõe camisas de força
pagas em moedas de sangue e balões de oxigênio,
para assombro dos fantasmas
eu vivo e respiro da minha nudez interior,
completamente em paz com o inverno que se anuncia.

E tudo se congrega na mais absoluta resignação,


sem qualquer hierarquia. O inexplicável continua ambidestro
dialogando comigo tanto a direito quanto na contramão
na sucessão de incontáveis eventos
que somente a imparcialidade do retrovisor
pode entender e alcançar de braços abertos
alternando no mesmo cálice sua cruz e redenção.
Há muitas estações abandonei a segurança das vias pavimentadas
pela aventura sublime da mata fechada
abrindo atalhos para o interior da selva densa
contando apenas com a sabedoria inexorável das lâminas
e a exaustão completa de todos os relógios,

Assim, mesmo sem a permissão dos semáforos


ou sinalização demográfica
abracei definitivamente a maratona dos desertores
sem bússolas nem astrolábios,
somente o beijo úmido e cúmplice da floresta
atirado de viés pelo silêncio do indicador.

Raramente dedos em riste apontam para a liberdade.

Entre aborígenes e bumerangues


a verdade está na curva.
Não há linha reta ou diâmetro
entre deuses e homens.

Farruca

Preciso viver rente à minha seiva,


moendo o grão e o sal dos meus sonhos
para construir os alicerces de um paraíso,
recriando o dna de um Deus que me redima
de tudo que não pude polir:
diamante-réu de minha própria sina.

Até mesmo o que é raso, incondicionalmente


passa antes pelo véu dos meus profundos
porque é desse porto que eu venho
e dele estou sempre chegando,
leito de rio que permanece contínuo,
indômito, sem âncoras de partir.

Se persisto
é porque no íntimo meu lema é tempestades à risca,
cumpridas em meio ao calor da paisagem
e da gravidade que nenhum astronauta ousa ignorar.

Apenas cumpro rios em meus sonhos de acordar


como se tudo não passasse de hoje, de agora e de já!

Soa o alarme!

É o bote! Revejo tudo em oito segundos


e o infinito se desintegra imparcialmente.

Foi-se a vida num raro degradée,


gosto de quimera, sorrindo do que chegou a ser.

Legato

Os verdadeiros alpinistas almejam os céus.

A falta de asas fez com que os homens se apaixonassem


pelo perfil íngreme das encostas
e inventassem a dança para conquistar o espaço alado
entre Deus e o chão.

E assim herdamos linóleos e neblinas.

Para quem os precipícios são degraus,


o coração segue aos tropeços
enquanto as mãos calejam a impiedade fria das escarpas
e os músculos tremem pela escalada até o topo
em suor e êxtase.

Eles sabem que o pináculo


é o ponto mais próximo do nada
cismando reflexos em cristais e gelo.

Píncaros ímpares, sustentem todas as nuvens ao redor


porque na base da montanha ficaram todos os adeuses:
pedras fundamentais de começos,
meios e fins cobertos pela avalanche implacável do tempo.

Moldando leões na neve das rochas, permanecem os sonhos


expiando os rugidos de cada passo rumo ao Dia da Ressurreição,
quando a Pedra Negra falará em favor
daqueles que a tiverem beijado.

E as bandeiras de oração tremerão ao vento


desfiando rosários pelos vales de Indra
como um murmúrio uníssono que se revelará em mil ecos depois
no sopro de um único silêncio,
sem qualquer ruído, sem nenhum sinal.

A Voz da Floresta

O zíper indômito da alma


desconstruindo o vinco da máscara,
dos rótulos e dos vínculos,
desvenda um selvagem inocente
que vive aqui dentro,
desconhecendo o limite claustrofóbico dos muros
e que respira num só trago
toda a emanação úmida da floresta.

Assim, internamente nu,


vestido apenas de amanhecer,
ele sai para conquistar o leito de rio
que o conduz até um mar
sem regras e frações de tempo,
onde tudo acontece simultaneamente
e tudo se congrega, compreende e se acalma
e o profundo se enxerga intacto feito dia.

Com o vasto oceano destilado no peito


seu coração é um sino dobrando a liberdade
em que a luz incide o princípio
de poder andar descalço para sempre
porque o solo foi agora consagrado imortal
e os deuses voltaram definitivamente do naufrágio
trazidos por aquele que domou a volúpia das águas
e transformou os peixes em pássaros que respondem.

Birutas

Como todos os dias, os homens passam blindados


checando aplicativos que ensinam a viver de graça
como birutas ao sabor das direções que o vento impõe.

Enquanto isso eu me perco na amplitude da paisagem


procurando meteoros para entender milímetros
do espírito fugaz que constitui as atmosferas.

Todos os poetas se parecem árvores


e nesta floresta cada uma delas é uma lição sem rimas,
o enigma da santidade no farfalhar de muitas folhas.

Belos ciprestes apontando estrelas:


arpões contra um céu inteiro capturando divindades!

Abençoados aqueles que são tragados pelo Alto


como as imagens alongadas de El Greco permitindo nuvens:
Sagrados hieróglifos talhados na pedra
de acordo com a dor invisível do polimento!
Um cinzel cortando tudo no viés da vida experimentada
das lascas de seu mistério mais cru...

A implacável ironia das lâminas levantando obeliscos!

Manhã

No piso sem chão da minha catedral sem teto


bate um sol que não conhece dúvidas
e está isento de certezas,
inegável e simples como um amanhecer,
valente e morno como o coração dos heróis
que conquistaram suas próprias sombras
e desconstruíram seus próprios muros.

Entre a luz e o acaso


há uma fresta para todas as possibilidades.

A curva das canções sem palavras

À seiva da coragem que escala o cerne das árvores


transportando o hades do solo até a claridade
do sol incandescente que derrete todos os metais,
não interessam medalhas de honra ao mérito
nem valhalas como recompensa.
Assim como os navios gigantescos
não pertencem à consciência morna e plácida das baleias
nem enxergam os horizontes submersos que elas veem,
manhãs encantadas não cabem nas redomas
do mais puro cristal.

O avesso das ragas

E então quero falar do corpo sutil dos escritos,


de luzes rosadas que o crepúsculo reflete nos arrecifes
e na superfície do lago calmo do mar junto a mim,
melodia conjunta trilhando todas as estradas até aqui,
pontos de fuga que continuam estabelecendo o infinito
até a palma da minha mão que perdeu todas as linhas
procurando um amor que amanhecesse essa baía distante
e respondesse ao meu lado os lençóis ainda úmidos de amor.

Então eu quero cantar ragas que ouço


por verdade e ousadia de cometer mais um pecado
sob o sorriso cúmplice de Deus que me acende por dentro
nesse instrumento que toca meus dias e onde estou agora,
dançando estrelas que já se apagaram e permanecem no meu céu,
límpidas como o universo que vejo em milímetros
e que afirma tudo ao redor,
faísca que engoliu sua própria luz!

Das arlequinadas do pierrô Aletrist: A Viagem com Zirrê


Dois clowns desempregados,
Zirrê e Aletrist,
cismaram de ir pra guerra
levando um teatro de marionetes
para distrair as crianças dos refugiados.

Com elas aprenderam que a fome não é um títere,


nem todas as prisões necessariamente têm grades
e que as fronteiras podem conter mais paredes que um túmulo.

Mas aprenderam também muitas outras coisas...

Quando voltaram - as fantasias já puídas em andrajos -


eram dois reis silenciosos
cumprindo pena por viver em liberdade.

Das arlequinadas do pierrô Aletrist: A Neblina Púrpura de Varanasi

De viola em viola
Aletrist tanto fez
que acabou tirando Jimi Hendrix de ouvido.

E ganhou o mundo, perdido em brumas.

Esgarçou cordas de alaúdes e bandolins


nos infindáveis amanheceres de Varanasi
até que os acordes de suas invenções
arranhassem o céu dos incensos
junto com a fumaça das fogueiras nos gats.
Escadas pós escadas,
um paraíso após o outro surgiu
para que ele entendesse sem remorsos
infernos e purgatórios
e sorrisse de mãos dadas com sua sombra
apenas pra dizer adeus na próxima curva.

Nesse momento raro e rarefeito


passaram duas borboletas…

Assim, mesmo sem astrolábios,


Aletrist beijou altas estrelas.

Cadernos de Viagem: Do Porto mais seguro sem âncoras

Seja nos largos abismos dos vales ou no mar horizontal


a visão panorâmica vem de dentro
para encontrar sua face externa refletida
latejando em cada compasso de um coração sem neblinas.

Calam-se os astrônomos
perante o insubstancial Nada
de sabor único, indelével,
pervasivo e espontaneamente presente.

O velho Nada sem qualquer origem dependente…

A forja implacável dos anjos se vale muitas vezes de espinhos


para produzir ressurreições clarividentes.

A Pérola Negra

De binóculo sob o céu


um homem só, diante do mar.

E o mar que se vê nunca é o bastante.


Quando o olhar alcança o mais remoto de sua extensão,
além da ilusão do horizonte visível
um absoluto continua distâncias que lentes não concebem,
milagre que não vemos, certeza onipresente que não permite
adiar a viagem por um segundo sequer.

Era uma vez um geômetra clarividente


que enxergava a mentira das proporções nos mapas
indicando o tamanho de países e continentes.

Enquanto isso
o sol que brilha sobre o movimento das águas
cria serpentes móveis de luz nas areias

Pinctada margaritifera e a náusea do nácar:


uma resposta iridescente…
O Belo sempre a postos,
alerta através do conflito.
Tal é a viagem e o mar sem leis
onde nem todos os barcos têm nome ou subtítulos…

Uma ostra de lábios negros cantava


que o divino é um mergulho para o alto,
sagrado pelo oceano a que sempre pertenceu:
vida de voos traduzindo o coração em suas asas.

O pássaro é a cor do instante.

À sombra dos ciprestes de Van Gogh

Todo aquele que tiver um obelisco na alma tocará os céus.

No entreato de infinito e fim


talhar a pedra com formas de múltiplos seres alados
tornará os deuses mais propícios e trará o bálsamo das nuvens de chuva
para amaciar o solo de onde se erguerá o cipreste do deserto.
Esta canção é sobre amanheceres inegáveis
de luzes impiedosas, heróglifos translúcidos
e pássaros convictos de claridade
que das cinzas incandescentes,
celebrarão numa atmosfera de espadas e encantos
a conquista das perdas de todas as ilusões, miragens e mentiras.

A rocha de seu talhe não será uma esfinge estática misteriosa.

Ela elevará meu sangue até recônditos distantes


e correrá veloz pelas areias devorando enigmas vermelhos
com seus dentes de sabre e de neblinas.

O leão de dentro ruge meteoros riscando um céu de antigas paisagens


enquanto às margens de um pântano de cicatrizes
com o gancho sábio e mordaz de seu bico
um íbis recolhe calmamente do lodo submerso
o que nutre a viagem silenciosa de seus voos sobre os lagos plácidos,
epigrama de incisões na pedra bruta
perante a qual nem sequer uma folha das margens se move por descuido.

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