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Akko, 20 Setembro 2023

Na madrugada do último domingo terminei a leitura da biografia de Fernando Pessoa.


Devorei aquelas pouco mais de mil páginas como verdadeira traça em busca de
segredos. Tracei caminhos dos quais só ouvira menções breves e vagas. Mas nem
assim o mistério de Pessoa se revela. Ele se desenhou mesmo foi pra ficar incógnito.
E seu véu também é literatura que persiste rasgando o espelho do tempo. Sua poesia
compulsiva a ponto de nem caber nele e precisar de outras vozes a dar-lhe asas e
céus, crava-se às vezes como espinho e outras como flor.
Não levei meu livro para Istambul porque dispunha de poucos dias e quis dar um
intervalo que os dervixes coroaram de rosas e aroma de castanhas assadas.
A experiência dos Dervixes Mevlev, que vi novamente depois de onze anos, revelou-
se um encanto inesperado. Eles mudaram provisoriamente sua localização, feita
anteriormente onde um dia foi a grande sala de espera da primeira classe do famoso
Orient Express.
Agora eles realizam suas apresentações no anfiteatro de uma casa de banho turco não
muito longe de Sirkaçi Station. O clima intimista, com pouca luz e estrutura
arredondada cria uma experiência única. Nunca li nada a respeito de como assistir a
uma apresentação dessa ordem. Intuí desde a primeira vez. E parece que funciona.
Meu foco de atenção é no centro do palco, no chão, onde desta vez havia inclusive
um círculo desenhado. Assim, não olhando especificamente para nada e ninguém, é
possível contemplar toda a evolução dos estágios do Sema (a cerimônia). Li que ele
está dividido em sete partes mas não faço ideia do que possam ser nem onde
começam ou terminam.
O que senti ao longo de toda a performance é que havia dentro de mim uma
participação silenciosa, como se fizesse parte daquilo. A música tocada ao vivo por
uma pequena orquestra e dois cantores excelentes dava a tudo uma atmosfera ainda
mais sagrada. Fiquei num êxtase libertador, tomado por asas que quase me faziam
levitar do assento. Até a música parecia familiar e eu sabia no íntimo onde ela me
conduziria. Era uma revelação silenciosa. Saí dali completamente passado, Mará!
Não tinha vontade de falar nada. Qualquer coisa que pudesse dizer seria menor.
Andamos depois por quase duas horas atrás de um restaurante legal nas quebradas de
Sultanahmet, entrando por umas vielas escuras e desertas que acho nem o próprio
Gurdjieff se aventuraria.
Mas chegamos. Era um lugar magnífico com um grande jardim onde ficavam
dispostas as mesas. Um cordeiro perfeito com legumes e bulgor. Mas eu só tinha a
voz dos cantores ecoando dentro de mim e comi pouquíssimo, ainda que apreciasse a
maestria do cozinheiro que preparou aquele prato, uma iguaria. O verdadeiro
banquete acontecera antes! E foi o sabor do divino o que prevaleceu.
Dois dias depois de chegar a Israel comecei a sentir alguns sintomas estranhos e
percebi que contraíra uma variante da covid. Viajara já meio doente, não de covid
mas com algumas disfunções no trato urinário. De qualquer forma, fui ao urologista
antes da viajem e ele me pediu alguns exames de rotina. Desconfiou que minha
disfunção poderia estar ligada aos rins. Dias após a consulta percebi um pouco de
sangue na urina. E a uretra parecia pegar fogo. Mas não era constante. Já iniciei os
exames pedidos. Fiz ultrassom ontem e amanhã tenho tomografia num hospital em
Haifa. Meus exames de sangue saíram corretos. Estou bem. Para minha compreensão
andei eliminando algumas pedrinhas que já tinham sido detectadas no ano passado e
foram consideradas inofensivas, porém agora resolveram cumprir suas diabolices!

21 Setembro
A vista do mar no alto de Haifa é maravilhosa. Ver todos aqueles navios dispersos,
diferente da perspectiva que tenho em Akko, onde todos parecem alinhados numa
mesma rota, mais a grandeza incomparável da paisagem com o porto de embarcações
gigantes em primeiro plano e Akko brilhando ao fundo numa visão de areias e
neblinas…
E depois ir até a cidade baixa num sushi, um verdadeiro descalabro, onde o bairro
árabe esconde uma vida de tráfico e crimes favorecidos pela proximidade do porto foi
visitar o inferno bem mobiliado depois da redenção do céu em altitudes. Haifa é uma
montanha de contrastes! Incrível estar no litoral e não ter um único restaurante de
sushi que preste! Uma mentirada! Em Akko não há, claro! A população não tem
poder aquisitivo para isso! E pior de tudo é que os israelenses se metem a fazer as
coisas com ares de quem manja todas. Grandes mascarados.
Exames feitos, minha consulta com o urologista ficou marcada para início de
novembro! Mas sinto o organismo recuperado e a covid desconvidada.
Gostaria de falar mais da biografia de Fernandinho mas quero ouvir suas impressões
a respeito, ou esperar que você leia para poder dizer algo sem dar spoiler.
Mas entendi finalmente a visão Pessoana do Quinto Império e a compreensão do
autor a respeito. Isso sempre me intrigou. Mas é indubitável a importância de
Fernando Pessoa no sentido de despertar a atenção do mundo para a literatura
portuguesa. A gente consegue vislumbrar isso hoje pela reação das pessoas.
Porém discordo redondamente com o biógrafo quando atribui o crescimento da
espiritualidade na poesia de Fernando Pessoa como conectado principalmente à visita
do mago inglês. De jeito algum!
Percebi que Richard Zennith contesta um pouco a biografia escrita por João Gaspar
Simões. Há de se entender, antes de mais nada, o contexto em que foi elaborada. Era
outra época, muito do que hoje é usual ou normal não era em 1950, quando a
biografia foi lançada, quinze anos após a morte de FP, o que já considero um avanço
inteligente e sagaz. João Gaspar Simões era um homem do seu tempo, não era
Fernando Pessoa, assim, não poderia compor uma obra genial nem mesmo ao tratar
de um gênio. Fernando Pessoa foi genial até mesmo naquilo que nunca escreveu. É
estrela de primeira grandeza! Só o Universo pode entender a unidade do plural!
Para mim, a leitura desse livro, feita em longas e consecutivas tardes depois do
colégio na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, abriu um emaranhado de
vislumbres da vida do nosso amado poeta mas não saldou muitas portas que
entreabriu. Talvez eu também nem tivesse maturidade para entender tanta gira. O que
podia um rapaz alegrinho de 16 pra 17 anos, começando a se deslumbrar com a vida e
os amores, realmente abocanhar daquilo tudo? Para mim foi essencial e me deu a
visão de um contexto geral do enigma.
Algo que gostaria de ressaltar foi a impressão que resultou do nome da editora que FP
abriu num certo momento. Ela era grafada Ibis, sem acento. Seria então a forma
inglesa do nome. I bis. O eu duplo. Não sei se essa era a intenção de FP. É dedução
minha. Mas é interessante constatar, não?
Senti muita falta de informações sobre Adolfo Casais Monteiro. Queria que mais
sobre ele fosse escrito. O epílogo nem o menciona. Uma pena! Mas talvez fosse
karma do professor Casais Monteiro, o de permanecer sempre esquivo.
Pensei esses dias que um bom período para ir ao Brasil seria no outono, entre maio e
junho. É sua estação preferida do ano e da qual também gosto muito. O que acha,
Mará? Vou enviar esse e-mail assim mesmo, sem muito polimento. Apenas para
atualizar nossa correspondência. Todo meu Amor. Sempre. No Dharma. C.

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