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anze014 ‘A esquerda encapucads | piaui_99 [revista piaul] pra quem tem um clique a mais, . r Edicdo 99 > _tribuna livre da luta de classes > Dezembro de 2014 hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada aaa 1inzno14 A esquerda encapucada | piaut_99 [revista piaull pra quem tem um clique a mais, A esquerda encapucada As cegueiras do niilismo neomarxista de Paulo Arantes por Ruy Fausto Paulo Eduardo Arantes é um intelectual brasileiro fora de série. Até mais ou menos o final da década de 80, quando j4 contava bem mais de 4o anos, seu perfil nao se distinguia muito do de seus colegas. Especialista em Hegel, sua tese, defendida na Universidade de Paris X — Nanterre, tornou- se um elassico da bibliografia filosofica brasileira. Excelente professor, homem de esquerda como muitos dos seus pares, a partir daquela quadra enveredou por um caminho original. Primeiro, o que entio pareceu inisélito, langou umn livro sobre o proprio Departamento de Filosofia da Universidade de Sto Paulo (USP), onde lecionava — um livro sem diivida excessivo, pelo tratamento um pouco desmedido que ele deu ao objeto, mas muito bem escrito e que teve grande repereussio. Depois, embora professor de filosofia, ou justo por isso, ao mesmo tempo que publicava excelentes livros que fugiam do ramerrao universitério, foi manifestando uma postura explicitamente antifilos6fica. Para dar sé um exemplo: ele andou criticando Theodor Adorno, o grande pensador de Frankfurt, porque este ainda era fildsofo. Ele, Arantes, caia fora da teia, indo parar aproximadamente li onde estava o Marx da Ideologia Alemd (um Marx que opunha a filosofia uma certa ciéncia e a praxis), Politicamente, também, ia mudando. Na juventude, Arantes era un homem de esquerda, radical como todo mundo nos meios universitérios da época, mas era também, se posso dizer assim, moderado em seu radicalismo. O Arantes nowvelle maniére, por outro lado, passa a professar wn esquerdismo extremo, porém paradoxalmente mais ou menos desabusado, porque mareado ~ mais do que “temperado"— por um elemento quase niilista, Algo assim como a atitude de alguém que se alinha sob a bandeira revolucionaria, mas, ao mesmo tempo, supée que o capital ganhou e continuara ganhando Fui tomando distancia em relagio aos trabalhos de Arantes, meu velho amigo, a partir de seu livro O Fio da Meada: Uma Conversa e Quatro Entrevistas sobre Filosofia e Vida Nacional (1996), cujo tom me pareceu afetado, ¢ 0 contetido, de um antifilosofismo um poueo sumério. Levei esas observagdes a piiblico, o que, como se poderia esperar, foi muito mal recebido por sua toreida uniformizada, que nunea mais me perdoou. © Novo Tempo do Mundo e Outros Estudos sobre a Era da Emergéncia, o livro mais recente de Arantes, publicado neste ano pela editora Boitempo, ¢ uma colecao de ensaios (mais algumas entrevistas) que culmina com wma longa andlise das mobilizagdes de rua em junho de 2013. Os textos ali reunidos tratam do fim das grandes esperancas revolucionatrias, da revolta nos subtirbios parisienses, do neoliberalismo e do nazismo, do golpe de 64 ¢ do pés-golpe, do tempo (um tempo de longas esperas) no cotidiano das sociedades contemporaneas, das “insurgéncias” e de sua repressio nas periferias, para nao falar de outros aspectos da vida nas sociedades contempordneas, com 0 Brasil e o mundo exterior ai reunidos. O que é novo em relagio aos livros politicos anteriores de Arantes talvez seja a atitude, senao de otimismo, pelo menos de jibilo diante das mobilizagdes de 2013, visivel no tiltimo ensaio. Uma atitude que se destaca do tom em geral cinzento das obras hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada ara anze014 ‘A esquerda encapucads | piaui_99 [revista piaul] pra quem tem um clique a mais, anteriores, e mesmo dos outros estudos nesse livro. Do ponto de vista teérico, em particular, a novidade me parece estar na relagio do autor com a filosofia. Se é complicado dizer precisamente onde ele se situa hoje, acho que em alguma medida sua atitude mudou, Se nao chega a repor a carapuga, por ele execrada, do “filésofo”, agora seu discurso toma, muito mais do que antes — antifilésofo ou ndo, nunca foi facil eseapar de todo das garras da velha seuhora —, a forma de uma espécie de filosofia da hist6ria Arantes parece ter-se livrado, além disso, de certas formulas faceis (do tipo Auschwitz + Gulag + Hiroshima, “formula trinitéria do Apocalipse da civilizagao capitalista”), cujo simplismo alguns criticos apontaram. Mas O Novo Tempo do Mundo, que certas rodas universitarias e meios politicos transformaram em algo como um texto de referéncia, é ainda, de algum modo, uma melodia de uma nota s6: as eriticas remetem sempre ao capital e ao capitalismo. O procedimento implica uma espécie de simplificaciio estratégica, que acaba ameagando a forea critica da mensagem. No plano politico, uma das prineipais insuficiéneias do livro é a de que o comunismo esta muito pouco presente na discussao, o que se justifica mal, dadas as pretensoes da obra. Na realidade, O Novo Tempo do Mundo aponta para um deciframento da significacdo geral da histéria dos iltimos 100 anos, 0 que torna aquela quase omissio um déficit sério. As dificuldades do texto, no plano politico, nao ficam por af, Hé nele uma espécie de carta branea para a violéncia, que, “revoluciondria” ou nao, é uma arma perigosa, cujo emprego tem de ser rediscutido. As qualidades formais do texto, indiscutiveis, nao atenuam essas dificuldades. Em alguns casos, podem até agravé-las. GRANDES ESPERANCAS A ideia central do primeiro ensaio, que dé o nome ao livro, se constr6i com as nogdes de “espaco de experiéncia” e de “horizonte de expectativa”. O espaco de experiéneia indica a percepgio do passado (ou dos estratos do passado) que se tem no presente; 0 horizonte de expectativa, também dado no presente, trata do conjunto dos contetidos (esperancas, temores, utopias) do que se espera para 0 futuro histérieo, Com 0 advento da modernidade — escreve Arantes, na esteira de um classico —, estabeleceu-se um grande distanciamento entre a experincia do presente (com seu passado), que passa a ser lido muito criticamente, e a expectativa do futuro, em verdadeira ruptura com o presente. Essa distancia, com suas “grandes esperancas”, se manteve até mais ou menos 0 inicio dos anos 70. A partir dai, ela encolheu, e passou-se a viver em uma era de “expectativas decrescentes”. O futuro JA presente, e o presente se prolonga em futuro. Como esereve o historiador e socidlogo Immanuel Wallerstein, a partir de ideias do tedrico da histéria Reinhart Koselleck — 0s dois servem como referéncias fundamentais para o ensaio de Paulo Arantes -, “hoje a tensao entre a experiencia presente, desvalorizadora do passado, e a espera de wm futuro cada vez, melhor foi largamente abolida” hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada 4p. anze014 ‘A esquerda encapucads | piaui_99 [revista piaul] pra quem tem um clique a mais, A certa altura do curso contemporineo do mundo”, diz Arantes, “a distancia entre expectativa e experiéneia passow a eneurtar cada vez, mais numa diregao surpreendente, como sea brecha do tempo novo fosse reabsorvida, ¢ se fechasse em nova chave, inaugurando uma nova era, que se poderia denominar das expeetativas deerescentes.” De fato, qualquer coisa de novo na relagio com o futuro se estabelecen no pés-68, e sobretudo depois de 1989. Mas, admitido o fato, seria preciso refletir se as nogdes de “espaco de experiéncia” e de “horizonte de expectativa”, bem como a ideia de “expectativas decrescentes”, descrevem, de forma suficientemente elucidativa, o que ocorreu. Nao se trata de questionar a tese de que houve mudanga, nem parte da descrigao que dela se faz. O problema é saber se podemos ficar por ai. Porque, por tras das alteragdes do regime do tempo, ha evidentemente mutagao no contetido das crengas (até ai dirao que é evidente, porém é preciso explorar bem esse contetido). Mais do que isso, é preciso indagar as causas da transformagio, cauisas que tém muito a ver com aquele contetido. Por outras palavras, “espago de experiéncia” e “horizonte de expectativa” so categorias formais (formais transeendentais, se se quiser, do que, aliés, Koselleck esta plenamente consciente), mas com as quais nio deixa de surpreender que um tedrico que se diz “materialista” se contente. Porque se ficarmos por ai, no registro das formas, e por brilhante que seja a teorizacaio que as introduz, elas nao nos dizem muito sobre o contetido que as preenche, sas bases efetivas e sua historia. Cafram as “grandes esperangas”, é verdade. Mas qual era o teor dessas esperangas? Arantes o indica por meio de uma palavra hipostasiada: “Revolugao”. (Pelo lado da direita, esperava-se antes 0 Progresso, mas, aqui, nos interessa mais a esquerda.) A hipéstase conotava uma grande tansformagdo socioecondmica, mediada por wm movimento violento, e que instauraria uma espécie de reino da igualdade. Esse movimento nao veio? De certo modo, sim. Aconteceu alguma coisa que a teorizaciio formal sabe, mas explora muito pouco: ocorreu um movimento violento. Pelo menos, supds-se que o que se teve no mundo, na forma das chamadas revolugdes russa, chinesa, cubana ete., era bem aquele movimento pelo qual se esperara. Assim, a partir do final de 1917, o futuro jé existiria sur terre, isto 6, no presente, mesmo se longe, ¢ em processo de realizaciio. O futuro estava “lé”, ainda que a alguns milhares de quilémetros de distancia, ¢ como futuro em devir: Esse fato é em si mesmo importante, e nfio pode ser esquecido quando se descreve 0 que aconteceu. Porém, para além disso - eis aqui o ponto mais importante -, durante anos a realidade desses paises mostrou objetivamente o contrario do que representava o conteitdo das grandes esperancas. Acoletivizagao stalinista custou uns 6 ou 7 milhdes de mortos; o Grande Salto para a Frente maoista, uns 30 milhdes. Ora, apesar dos horrores, durante anos a erenga — por parte da maioria — persistiu. De fato, no momento em que, numa das duas grandes pitrias da Revolugio, se perpetravam algumas das maiores mataneas da histéria, continuava-se a ver o futuro em pleno processo de realizagao. A esperanca nao diminuira, até aumentara. $6 mais tarde, com a crise desses regimes, revelou-se 0 enorme engano. A terra prometida foi pulando de pais para pais, da URSS para a China, da China para Cuba e assim por diante, até sumir do mapa. Por tras do “eneurtamento das expectativas” e da instauragao de um tempo de “expectativas decrescentes”, houve um grande fendmeno histérico, até certo ponto inédito, e que a teorizaciio hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada spa 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: formal, abandonada a si mesma, oculta: um grande movimento de libertagao e emaneipacio se tornou o set contrario, a saber, desembocou em poderes autoeraticos e “totalitarios” — palavra de qne Arantes nfo gosta, mas que vale, sim, usar. Poderes que superam de longe 0 que os séeulos imediatamente anteriores haviam conhecido em matéria de violencia e autoritarismo. Essa grande inversio (nos seus trés momentos: as revoluedes, a propria inversio e a crenga iluséria de que o futuro chegara) é um fato decisivo, senao 0 fato decisivo, para entender a histéria do século XX. Ora, 0 livro de Arantes ~ que, malgré lui ou nao, oferece uma espécie de filosofia da historia do século XX (mais 0 comego do XT) - trata pouco disso. A historia do comunismo esta presente, mas apenas como um contraponto palido, mesmo se recorrente. Sem dtivida, a esse respeito 0 leitor dos livros anteriores de Arantes pode registrar um progresso. La onde ele se referia a “estados policiais” (felizmente, o autor nunca foi stalinista, mas esses “estados policiais” eram pouco mais do que deuses ex machina, sobre cuja origem nio se dizia nada), agora fala (quando fala) em “ditadura buroeratiea” ou “burocracia stalinista”. Mas mesmo isso é insuficiente. Dizer, por exemplo, que houve “derrapagens fatais” do lado de 14 da Cortina de Ferro pode ser bem simpatico, mas fica muito aquém do que se exigiria de um livro que esboga uma teoria da histéria dos tiltimos séculos, Dada a importancia do tema, eu diria que um livro como esse, com mais de 460 paginas, deveria dedicar pelo menos wnas 200 ao estudo daquele fendmeno. Fiea evidente que o autor nao vé com muita clareza o tamanho ¢ o aleance do que ocorreu. HA uma passagem que é suficientemente expressiva a esse propésito, apesar de se situar numa nota, e de ser muito breve e alusiva. Falando sobre hierarquias e, em primeiro lugar, sobre as do eapitalismo, Arantes se dispée a introduzir uma referéncia ao “socialismo real”. “E que o capitalismo’, ele diz, “tem necessidade de uma hierarquia, ‘ou melhor, assim como o capitalismo nao inventou 0 mereado e 0 consumo, ele nao inventa as hierarquias, pelo contrario, estas o precedem ¢ o comandam de antemao.” E continua: “Dat 0 fracasso do socialismo real: néio basta suprimir a hierarquia econdmica, supondo-se que isso tenha acontecido.” No estilo do que se 1é em suas obras anteriores, nas quais se explica o fiasco do “socialismo real” pelo fato de que se quis construir o socialismo em duas etapas (como se o problema fosse o das “ctapas”), o presente texto nos diz. que o “socialismo real” fracassa porque nfo suprimiu a hierarquia politica preexistente (aquela que estava presente sob o capitalismo). Ora, nao foi isso 0 que aconteceu, ou nao foi precisamente isso. O que ocorreu nao foi que as sociedades buroeratico- totalitérias emergentes deixaram de suprimir a hierarquia preexistente. Elas, na realidade, eriaram, uma nova hierarquia, uma hierarquia que, sob muitos aspectos, era de base muito mais autoritria do que a anterior. E mais: a nova hierarquia nasceu liquidando os elementos democraticos que despontavam no interior das formas antigas ou que haviam surgido no interior do processo revolucionario. Esse movimento tem de ser pensado e estucdado para entender o que significam exatamente 0 encurtamento das expectativas” ou as “expectativas decrescentes”, sem o que nao saimos de uma espécie de formalismo, mesmo se inteligente. Com a crise final cai certa mitologia. E verdade que com a queda dos mitos pseudorrevolucionérios (a suposigaio de que a sociedade burocratico- totalitéria era uma sociedade pré-socialista), surgem outros. Brota uma atitude mais conciliadora em relagio a realidade presente no Ocidente, que é a do capitalismo. Mas essa realidade é também a hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada ean 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: da democracia. Ha assim um movimento de perdas e ganhos que deve ser estudado de perto ¢ critieamente, sem dissolvé-lo numa teoria abstrata do tempo. DEMOCRACIA E CAPITALISMO. A historia do capitalismo, tal como ela é apresentada em O Novo Tempo do Mundo, nao atribui nenhum lugar mais ou menos auténomo ao “politico” (refiro-me ao Estado e ao governo). O politico, no estilo da tradigaio marxista, aparece sempre como que “arrastado” pela histéria do capital. E a “politica”, entendida como luta politica, é sempre, ou quase sempre, a luta contra 0 capital, Mais particularmente, nem no plano do politico nem no registro da politica ha alguma autonomia para a democracia. Hé um lugar, mas s6 como um pendant politico do capital. Fica fora da perspectiva de Arantes que as lutas do século XIX tenhiam sido em consideravel proporciio Tutas pela democracia (ver o exemplo dos cartistas ingleses) e, mais que isto, que tenha havido uma oposicao fundamental entre capital e democracia, mesmo se o primeiro conseguin inserir a tltima no seu “contexto” ~ mas essa insergao é sempre instavel. Pode-se dizer, cum grano salis, que a “democracia” ¢ para ele o que é para Bush, s6 que com sinais trocados. Um significante puramente ideolégico, verniz politico do capitalismo. Como acontece com o conceito de “totalitarismo”, Arantes parece supor que 0 uso ideolégico de um termo exclui a possibilidade de que esse termo tenha paralelamente um significado eritico e rigoroso. De novo aparece aqui, na obliteragao do signifieante “demoeracia”, uma das expressdes do procedimento geral operado por Paulo Arantes de hiperbolizagao do papel do capital e do capitalismo, Nao se trata de negar o peso que teve e tem o movimento do capital e o capitalismo, enquanto forga social, que ocupa grandes territérios da histéria moderna e contemporanea. Mas, no livro que examinamos, 0 capital ¢ 0 capitalismo esto em toda parte, sto wna espécie de “Sésamo” que abre todas as portas, que explica ou deve explicar tudo. E, se acontecer de o capital nao explicar o objeto, 6 que este nao deve existir. f fantasma ideolégico, pereepeao errada ou coisa semelhante. Apesar de tudo o que representam capital e capitalismo, insisto, ha ai erro de fato e erro de légica O capital e o capitalismo esto presentes quase por toda parte no mundo, no século XIX e mais ainda no XX. Resta saber como. Arantes trata 0 capital como se ele fosse a esséncia ou 0 fundamento de tudo. Ora, apesar da sua hegemonia, a rigor, o capital nao é esséncia. Pelo menos nao o é por toda parte, Eu diria ~ omitindo aqui referéneias mais extensas a Ciéneia da Légica de Hegel, para nao sobreearregar o leitor — que ele 6 antes base do que esséncia, Ele est “por baixo” de quase tudo, como uma espécie de solo, mas esse solo nao diz sempre o que eircula por sobre ele. ‘Um exemplo interessante desse procedimento permanente de hiperbolizagao do capital aparece na discussio sobre a natureza do nazismo e dos campos de exterminio nazistas. Arantes opde duas teses: a dos que aproximam o nazismo do capitalismo, e a dos que, como o historiador marxista Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago, acentuam o lado anticapitalista, mesmo se hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada 724 anze014 ‘A esquerda encapucads | piaui_99 [revista piaul] pra quem tem um clique a mais, simbélico, no nazismo. “O campo de exterminio nazista”, escreve Postone, “néo representa uma versio terrivel da fabrica capitalista [...], mas, muito pelo contrario, precisa ser visto como a sua grotesca negagao'anticapitalista’.” (A tese de Postone é a de qne os nazistas procedem a uma espécie de morte ritual do eapitalismo. Eles liquidam em massa os judeus, de quem eles haviam feito previamente a propria encarnagao do dinheiro e do capital.) Nao vou discutir em detalhe essas teses. O que quero ressaltar é como, com esse deslocamento explicativo, finalmente nos deslocamos muito pouco. Ou os campos nazistas seriam homélogos das fabrieas capitalistas, ou entao eles seriam o seu oposto. Vé-se o que ha de comum nas duas teses (que alias poderiam coexistir, ¢ que sio, ambas, de extragio marxista). A referéncia é sempre o capitalismo. Mas, se nazismo ¢ capitalismo se “tocam’” de algum modo (tudo se toca de algum modo na hist6ria contemporsinea e, no caso, 0 lago vai mesmo, sem dtivida, além dessa afinidade geral), isso nao qner dizer, seja o sinal positivo, seja negativo, que o nazismo possa ser definido rigorosamente através do capitalismo. O nazismo se define muito melhor pela democracia. De fato, ele nao 6 anticapitalista, mas ele também nao é essencialmente (no sentido de que o capitalismo daria a sua definigaio) pré- capitalista. Ele 6, sim, antidemoeritico. Os chefes nazistas afirmaram e reafirmaram que sua tarefa era liquidar de vez a revolugao igualitaria dos liberais e dos socialistas, revolugio que teve inicio no ano maldito de 1789. Ora, quem nao é capaz de pensar a democracia seniio como ideologia nado pode entender nem definir 0 nazismo Partindo de um livro extraordinariamente interessante, Souffrance en France (1998), do psiquiatra Christophe Dejours, e de alguns outros textos, Arantes se dispde a pensar o nacional-socialismo a partir da nogao de “trabalho”. E possivel. Mas o resultado é precisamente o de operar uma aproximacio excessiva entre o nazismo e outras formas sociais (0 capitalismo, em particular), 0 que convém a certa leitura marxista, Num dos raros textos em que 0 autor compara os campos nazistas aos campos stalinistas, ele contrapde o “genocidio como trabalho” praticado pelos nazistas ao exterminio pelo trabalho”, que caracterizaria a versio stalinista dos campos. Ora, o denominador comum a obter dessas formulas, apesar das aparéncias literais, nao é o significante “trabalho”, mas 0s outros dois, quase sindnimos: “genocidio” e “exterminio”. Para chegar até ai, entretanto, seria preciso se libertar um pouco mais da “grade” (no duplo sentido do termo) marxista, que 0 aprisiona. A GUERRA CIVIL MUNDIAL s ea histéria moderna e contempordinea 6, num registro estrutural, mais ou menos reduzida & hist6ria do capital e do capitalismo, no plano das lutas (1nas, finalmente, ha pouea “luta” no livro de Arantes) ela 6, sentio “luta de classes”, pelo menos “guerra civil” (sem que fique muito claro até onde vai uma, até onde vai outra, on se o autor assimila esta aquela). Bem entendido, houve muita guerra civil e também luta de classes no século XX, mas o século teve muito mais do que isso. 0 minimo que se poderia dizer é 0 que esereve Orlando Figes no preficio do seu muito importante A Tragédia de wn Povo: a Revolucdo Russa 1891-1924: “A revolucao [foi] todo um complexo de hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada aan 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: diferentes revolugdes, desencadeadas em meio A Primeira Guerra Mundial, e que provocaram uma reagio em cadeia de mais revolucdes, guerras civis, [guerras] étnicas e guerras entre nagdes.” Ora, no esquema arantiano (que, bem entendido, deve ao filésofo e jurista Carl Schmitt, mas com inflesdo materialista) a realidade é mais simples. Ele diz: *...] as ‘poténcias’ vitoriosas na Primeira Guerra Mundial formaram uma outra Santa Alianga sob lideranga norte-americana para esmagar a revolugio europeia iniciada em 1917 € que nos anos 20 jé assumira as proporgdes de uma Guerra Civil Mundial em que se confrontavam revolucao e contrarrevolucao.” A ideia aparece novamente numa referéncia As “marehas ¢ contramarchas da luta de classes ao longo da Guerra Civil Europeia da primeira metade do século XX”, Em outro exemplo, a “guerra social havia se convertido em uma Guerra Civil Enropeia, como ficaria claro depois de 1917". Assim, a histéria da primeira metade do século XX seria a historia da “guerra civil”, na qual se recouhece a presenca da luta de classes, Vé-se 0 aleance negativo da redugio. O choque entre poderes de Estado, que foi um dos elementos maiores da histéria do séeulo XX, se transforma em epifenémeno, simples ilusio fenomenal, nada mais do que uma aparéneia. Ele 6 substitufdo por uma suposta esséncia: a Guerra Civil dos poderes contrarrevolucionarios lutando contra a Revolucao. Repito: claro que houve guerra civil ou mesmo luta de classes no século XX, mas nada justifica reduzir toda a historia do século ao contronto entre uma frente de poderes contrarrevoluciondrios, o dos vencedores da guerra de 1914-18, e uma frente revolucionaria popular, Na Espanha, por exemplo, houve uma verdadeira guerra civil, mas os contrarrevolucionarios nio eram aliados dos grandes vitoriosos da Primeira Guerra, mas da Alemanha e da Itilia. As lutas no Terceiro Mundo, no mesmo século, tiveram uma dimensio classista, mas muito mediada por outros elementos, entre os quais o peso da Terceira Internacional, pretenso comando mundial do proletariado. Quando os dados empfricos confirmam pouco uma tese, tanto pior para esses dados para a boa empiria. Entre 0 esquema ditado pela visio “revolucionsria” dos fatos e a realidade, quem tem sempre a tiltima palavra é o esquema, e nfo a realidade O mesmo poderia ser dito da forma pela qual é tratado o jogo de forcas mundial no nosso presente. 0 quadro 6 0 de um dominio esmagador do capital, na forma transfigurada do capital financeiro e também da dominagio politica. E, apesar de umas poucas referéncias & China, a dominagio aparece, tanto do ponto de vista financeiro quanto do ponto de vista politico, como essencialmente americana e, apesar de tudo, numa figura que lembra muito a do antigo imperialism. Mas averdade é que nem o dominio americano é assim tao incontestavel, nem representa ele hoje, seu mais e sempre, 0 lado “pior” (mesmo se ele esta longe de ser “bomn”). Simm, porque ha atualmente muitos focos de opressiio e de exploragio do lado dos “pequenos poderes”. O sinistro Califado Islimico, onde vendem mulheres e degolam e crucificam prisioneiros, é o Ultimo e melhor exemplo. 0 esquema de leitura do autor é simplista no balanco das foreas e no julgamento politico. Lembra o disenrso de esquerda da época em que se travavam guerras coloniais. Claro que Arantes nao elogia nenhum califado, mas a impressio que se tem, lendo as passagens do seu livro relativas a esses temas, é a de um cendrio de assimetria radical. O que simplifica muito 0 processo, ¢ o deforma. Na mesma linha de ideias, hé uma enriosa tendéneia a reduzir diferentes agéncias e organizacées internacionais humanitérias a simples instrumentos do capital. Isso as hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada on 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: vezes 6 0 caso, mas nem sempre. A primeira coisa a observar aqui é que os erros ¢ crimes dos ocidentais nao estéio sempre no fato de intervir — as vezes eles residem justamente na nao intervengao, como no massacre de Srebrenica, na Bésnia, ou no genocidio em Ruanda, ambos nos anos 90. Pode parecer um detalhe, mas nao é, porque mostra a complexidade da situagao. E, nesse contexto, seria importante lembrar que, no caso do massacre dos titsis em Ruanda, 0 Médicos Sem Fronteiras fez apelos dramaticos em favor de uma intervengao, apelos, alias, que foram finalmente ouvidos, mesmo se tardia ¢ limitadamente. Um exemplo importante que mostra o quanto 0 mote * ( internacional e filantropia” é simplificador e, por isso mesmo, falso. “ESTADO DE EXCECAO” s ea narrativa oferecida por Arantes padece de uma compreensio melhor das relagdes entre democracia e capitalismo, insuficiéncia que vem do impacto, apesar de tudo poderoso, do modelo marxista, a andlise da historia dos séculos XX e XXI, sobre a qual ja falei alguma coisa, vem, dominada por uma tese cada vez mais em voga, tese que tem stia origem nas ideias de Carl Schmitt — replicada depois por Walter Benjamin e, mais recentemente, pelo filésofo italiano Giorgio Agamben. Trata-se da ideia de que a politica do século XX pode e deve ser decifrada a partir da nogiio de “estado de excegiio”: “[Hé um] argumento geral desenvolvido por Giorgio Agamben na forma de um diagnéstico de época formulado nos anos 1990”, esereve Arantes, “segundo © qual o ‘estado de excegiio’ — [...] état de siége [...], emergency powersou martial lav [...] - tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na época contemporanea.” Em O Novo Tempo do Mundo, o “estado de excecao” ou de “urgéncia” — figura juridica que suspende direitos e garantias constitucionais dos cidadios, a ser adotada em prineipio provisoriamente em situagdes de emergéncia, como guerras ou calamidades piiblieas, para aumentar a eficdcia do Estado ~ aparece como uma formula que encerra uma verdadeira teoria geral da histéria do século passado e do que ja se viveu do século atual, formula que vale para o capitalismo liberal-democratico, para os regimes mais ou menos autoritarios, mas também para 0 nazismo. Quaisquer que sejam as aparéneias de um desses regimes politicos, o “estado de emergéncia” é sempre o seu segredo. Para mostrar a universalidade do sen papel e o earater, seniio derrisério, pelo menos adietivo de certas distingdes entre regimes tidos como mais democraticos e outros claramente autoritarios, invoca-se frequentemente a passagem da Reptiblica de Weimar ao nazismo. Hitler pode proclamar alei mareial em 1933, apés o inedndio do Reichstag, porque a Constituigdio da Repiblica de Weimar recouhecia essa possibilidade no seu capitulo sobre o estado de excegito. Reconstituir-se-ia assim a linha de continuidade entre a Repiblica de Weimar e o regime nazista. ‘Mas de que vale a tiio falada tese de que o “estado de excegiio” define a soberania na época contemporanea? Mais importante do que isso, até onde vai o poder explieativo da tese? Em primeiro lugar, seria preciso definir melhor o que a “excecao” representa. A primeira questao é ade saber se devemos considera-la enquanto efetiva ou como virtual. O livro cita um texto de Agamben, que comenta Schmitt: *O funcionamento da ordem jurfdica baseia-se, em tiltima instancia, em um hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada aoa 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: dispositivo ~ 0 estado de excectio — que visa tornar a norma aplicavel suspendendo, provisoriamente, sua eficécia.” E Arantes observa que seria falso afirmar, como esereve um comentador, que, segundo a tese schuittiana sobre o estado de exeegao, “toda a ordem legal ‘seria como que uma latente e intermitente ditadura”. Muito bem. 0 estado de excectio tem de permanecer latente para se efetuar. Com isso, diz-se de fato alguna coisa. Porém, se ele se efetuar, o que acontece? A maquina nao funciona, escreve Agamben, ou, como sugere Arantes, passar-se-ia A ditadura De novo, eu diria, muito bem. Porém, entre essas duas situagdes, de que ordem é a diferenca? Apesar de suas explicagdes, Arantes (a partir de Schmitt e de Agamben, pelo menos tal como ele os 18) nao vé certamente ai uma grande ruptura. Na realidade, a despeito das adverténcias, quer se trate do Brasil, quer se trate da Europa, o livro nao cessa de aproximar os periodos demoeraticos dos periodos de ditadura, A ditadura militar no Brasil e os governos que a sucederam seriam diferentes, mas nao essencialmente diferentes. Sugere-se uma “substituigio” de violéncias, fala-se de um “primeiro” e de um “segundo regime de violencia”, um pouco como se, no primeiro caso, tivesse havido “matanca seletiva” na cidade, e, no segundo, assassinatos “indistintos” na periferia Mas a verdade é que nao houve substituigao de massacres: sob a ditadura, os dois morticinios coexistiam e se acumulavam. Se o tema das afinidades entre a ditadura e a pés-ditadura no Brasil é do autor, o da quase continuidade entre Weimar e o nazismo ¢ introduzido a partir de Schmitt e de Agamben. Enfim, a famosa teoria sobre “estado de excecao”, para tomé-la ua sua expressio geral — teoria que é pobre na forma e errada no contetido ~, tem antes de tudo a funcéio de obscurecer a distancia entre as democracias e as ditaduras, o que evidentemente limpa a barra das tiltimas e suja a das primeiras. Tal é, no fundo, o segredo da tito falada tese. 0 primeiro resultado, desastroso, de tal teoria é que ela nao vé o que hé de radicalmente novo no nazismo, Este nio é um avatar, mesmo extremo, do estado geral de excecio. O nazismo é uma forma social original, monstruosa, bem entendido, mas que se revela essencialmente diferente dos regimes de capitalismo liberal-democratico, e mesmo de capitalismo autocratico. A referéncia 4 lei mareial de Hitler, proclamada com base no artigo sobre 0 estado de excectio contido na Constituicao de Weimar, ou, antes, as consequéncias que se pretende tirar disso sao um engodo. Que Hitler se tenha valido daquele artigo para declarar a lei marcial nao explica nem a génese do nazismo nem a sua esséncia, Quanto as limitagdes sueessivas da liberdade sob Weimar, se derivam em parte dos projetos antidemocraticos das forgas conservadoras, elas se explicam também, e muito, na origem, precisamente pela ameaca que representavam os nazistas para a Reptiblica. Mas mio 6 os nazistas, também os comunistas. Comunistas e nazistas sabotaram a Repibliea de Weimar. O que se costuma dizer é que a democracia de Weimar, como a democracia em geral, é “fraca”. E do “fraco” desliza-se para 0 “eulpado”. Se a demoeracia é fraca, ha que fortalecé-la, e nao liquidé-la, como se pretende nos meios neoschmittianos... de esquerda. Voltando ao tema geral. Talvez.o mais interessante na critica daquela, a meu ver, muito miseravel teoria sobre a hist6ria contempordnea, teoria que enquanto esquema juridico e tinieo acaba apagando as descontinuidades presentes nessa historia, seja insistir no fato de que ela tem como hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada ar 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: base, ¢ niio muito oculta, a critica da democracia. A saber, a ideia de que a demoeracia é apenas uma variante de um mesmo poder autocratico. ‘Mas aqui essa indicagao ganha um interesse particular, levando-se em conta o que escrevi sobre 0 peso do marxismo na leitura da hist6ria do capitalismo que o livro oferece, em particular sobre 0 eclipse do lugar das lutas demoeraticas ¢ da democracia em geral. I que a tese schmittiana- agambeniana vem reforgar o déficit marxista em matéria de andlise da democracia. Se a demoeracia aparecera antes, na esteira tedrica do marxismo, como pouco mais ou menos do que como um epifenémeno do capitalismo, agora ela desponta como um simples avatar da trajetéria do “estado de excecao”. Para nao prolongar muito mais esse ponto, essencial entretanto, faco apenas mais duas observagdes. Umma, a de que 0 nazismo e a Shoah acabam passando literalmente para um segundo plano, reduzidos a uma espécie de episédios do “caminho alemao”. Paulo Arantes escreve: “Entendido o antissemitismo nazi como uma tentativa paranoica de ultrapassar violentamente a histéria percebida como uma perene ameaca de descontrole e degenerescéncia, ¢ ultrapassé-la por meio do Terror, o Holocausto passa para um discreto segundo plano, e o Nazismo, por sua vez, entra na conta das aberragées regressivas da via prussiana [....” Em segundo lugar, voltando ao belo livro de Christophe Dejours, que se ocupa do sofrimento no trabalho, observemos que Arantes extrapola muito as teses do autor. Dejours analisa a banalizagio do “sofrimento social” sob o neoliberalismo, banalizacdo que se tornou célebre em outro contexto, a saber, a propésito do “mal” que praticaram os atores do projeto nazista. Entretanto, a comparagao (nos dois casos, trata-se de “banalizacio”, melhor do que “banalidade”), que é perfeitamente valida dentro dos limites do que escreve Dejours, ndo permite afirmar que s6 com o neoliberalismo “podemos enfim atinar com a mola secreta do poder nazi”. A mola do nazismo era outra. E importante ressaltar ainda, a propésito do livro de Dejours, o fato de que ele introduz uma espécie de fundamento para a critica de esquerda, a ideia de “sofrimento social”. Fundamento que, bem entendido, é heterodoxo em relagio a Marx (a0 Marx maduro de O Capital, em todo caso) e se relaciona, como assinala Arantes, com a ideia de “alienagio”, O “softimento social” é tratado por Dejours como uma “injustica’, o que também nos leva para longe de Marx, que, como se sabe, era muito avesso aos termos “moralizantes”. Mas, se ter dado destaque ao que escreveu Dejours é certamente um mérito de O Novo Tempo do Mundo, pode-se perguntar em que medida Arantes ineorporou esses elementos heterodoxos como fandamentos gerais para uma critica do capitalismo, em particular, ¢ da exploracao e opressao, em geral, Claro que aquelas nogdes estao de alguma forma presentes, pelo proprio fato de que o autor se utiliza abundantemente do que escreveu Dejours. Mas elas nao “informam” ou, em todo caso, certamente nao informam de um modo suficientemente claro e niio contraditorio, o coujunto do texto. “NAO QUEREMOS MAIS SER GOVERNADOS" hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada apr anze014 ‘A esquerda encapucads | piaui_99 [revista piaul] pra quem tem um clique a mais, oO Novo Tempo do Mundo confere um lugar importante a certa literatura sociolégica ¢ eritiea que trata da miséria e da violéncia nas periferias, nas favelas e em outros espagos do mesmo tipo. A questo central 6 a da violencia policial. A realidade desta é indiseutivel, e 6 com razio que o autor um relevo especial ao tema. Entretanto, também aqui ha hipérbole. E esta corre o risco de enfraquecer o argumento, quando nao de liquida-lo. Para dar um exemplo, muito caracteristico, nao posso deixar de comentar o que Arantes escreve sobre as UPPs (Unidades de Policia Pacificadora), forcas de intervencao policial que atuam nas favelas do Rio, combinando ocupagao do territorio e trabalho social. Nao estou em condigoes de fazer uma avaliagao precisa do que significaram e significam as UPPs. Elas obtiveram certamente alguns resultados na luta contra o tréfico. Mas sua atividade ficou mareada ou manchada por violéncias contra a populagao, além do fato de que, frequentemente, os traficantes abandonavam a zona sob interven¢éio para se instalar em outros pontos do territério. Porém, o que de qualquer modo parece chocante no texto de Arantes é que ele vé as UPPs como um simples elemento de repressio policial, “trabalho social armado” que visa pacificar as populacoes. E da dualidade repressio/trabalho social (ecoando o areuseano welfare/warfare) passamos a Batalhia de Argel, & Guerra da Indochina ou as ages imperialistas na América, Ora, quaisquer que tenham sido as violéncias praticadas pela policia em diferentes situagdes, e independentemente do que esereve tal ou qual idedlogo, do lado de c4 ou do lado de l, que Arantes gosta de citar, as intervengées do tipo UPP nao sio de forma alguma comparaveis, mesmo mutatis mutandis, a eventos como as intervengoes norte-americanas ou europeias na América, Africa e Asia. Por uma simples razaio: 6 que, de uma forma ou de outra, mesmo se concluirmos por uma condenagiio geral das UPPs, existe um fator, ai presente, que estava ausente nos outros casos, do qual o autor esquece (ou quase esquece, porque ha mencées, mas tio poueas e tio escondidas nas notas que a gente perde de vista). Este elemento é a criminalidade. Ele cita um texto em que se afirma que “a presenga de grupos armados ¢ [...] um pesadelo para 0 conjunto da populacao carioca”. Hé outras breves referéncias. Mas nada disso o impede de ineluir as intervengdes do tipo UPP uum esquema mundial de intervengdes imperialistas. E, talvez ainda mais importante, a intervengao do Estado acaba sendo reduzida a pouco mais do que um tipo especial de banditismo. A partir de operacdes como a das UPPs, Arantes chega a “evidéncia de que 0 Estado esta voltando a ser a reliquia que sempre foi, um bando armado que vende protecio”. Ora, se é verdade que agGes brutais de uma policia arquicorrupta tendem a fazer do Estado algo como um poder de gangue entre outros poderes de gangues, nem de direito nem mesmo de fato 0 Estado, emesmo o Estado brasileiro, representa hoje rigorosamente tal coisa. Exagero na critiea? Arantes nao quis dizer exatamente isto? A verdade 6 que, afinal, a gente pergunta: o autor acredita ou nao que, de uma forma ou de outra, s6 através do Estado sera possivel combater a grande criminalidade? Porque finalmente nao se sabe bem se Arantes a favor ou contra o Estado. Existe, alias, uma antinomia na palavra de ordem (que ele aprecia): “Nao queremos mais ser governados, ou nao mais assim.” Nao queremos mais ser governados? Ou nao queremos mais ser governados assim? Vai ai uma diferenca que nao é peqnena hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada ast anze014 ‘A esquerda encapucads | piaui_99 [revista piaul] pra quem tem um clique a mais, Hé um modo mais universal de desconstruir a hipérbole da explicagao pelo capital, pelo capitalista, on pela “forma atual de acumulagao do capital”. Eu o insiro aqui, no final dessa sucessio de topos criticos, como um argumento que, de certa maneira, os resume, Arantes nao cessa de demunciar as aberragoes e violéncias do capitalismo contemporfineo. No que ele, em geral, tem certamente raz. Tudo é objeto de eritiea. Mas aqui seriam necessérias algumas observagoes. HA na realidade social a distingao ¢ utilizada por Marx, que, no seu sentido geral, a tomou de empréstimo de seu mestre Aristételes ~ uma forma e uma matéria, H4 uma base tecnolégica, ligada a certo nivel de desenvolvimento da ciéncia, além de certos pressupostos demogrificos ete., o que, tudo junto, representa a matéria do social. Mas ha também uma forma social, que, no caso das nossas sociedades ocidentais (¢ hoje, bem mais do que isso), a forma capitalista, Bem entendido, a forma impregna a matéria, modifica-a, dé-Ihe um eardter particular. De qualquer modo, nao desapareceu a distingaio entre forma e matéria, Perdé-la de vista é operar um movimento simetricamente inverso, mas ndo menos redutor, ao da eritica reacionéria que transforma a forma em matéria (transforma o capitalismo em “sociedade industrial”). Aqui, pelo contrario, a matéria que vira forma (a forma capitalista faz perder de vista a matéria) Escamoteia-se, assim, 0 desafio que representa tentar pensar uma sociedade altamente desenvolvida do ponto de vista teenolégico como uma sociedade ~ 0 que ela poderia ser — emancipada. Que nao se diga que a critica nao esta obrigada a tanto. Ela nao estava, de certo modo, no tempo de Marx, ou para Marx. O communism havia de resolver (quase) todos os problemas, ¢ era melhor nao abarrotar as “panelas do futuro”. Argumento valido, dentro de um certo quadro de pensamento, mas que nao serve mais. Se é que alguma vez serviu Para dar um exemplo, a partir de certos autores, ¢ no contexto de uma anilise dos territérios em que domina uma ordem disciplinar, o autor escreve: “As eompanhias aéreas [...] sio antes de tudo instituicdes disciplinares.” Em geral, nao duvido, embora haja exagero nisso. Mas nao se trata apenas de exagero. Ha ai um problema maior. Arantes nao discute o que poderia ser uma sociedade emancipada em que, por exemplo existiriam avides. Sim, porque podemos ~ ¢ até devemos ~ imaginar uma sociedade emaneipada em que haveria avides. De fato, um projeto de emaneipagio nao deve propor a liquidagao de grandes conquistas tecnol6gicas, pelo menos na sua forma geral. E se é assim — independentemente da disciplinarizagio que existe, certamente, no nosso tempo —, & evidente que a presenga daquela tecnologia implicaria um certo mimero de exigéneias, do tipo hierarquia de comando, organizacio da espera, e mesmo, conforme a situagao, inspegio do que se embarea a bordo dos avides ete Alguém pode dizer que me ocupo de banalidades, mas é a partir das banalidades que se pode ver o que nao funciona na obra que examinamos. Minha tese é a de que Arantes confunde critica da forma e critica da matéria. Ou, antes, atribui a forma todos os problemas, inclusive aqueles que se devem & matéria. Isso certamente facilita as coisas para ele, mas nao serve A critiea. Um ponto curioso é a demineia que ele faz da fila, em particular da “fila para comer”. Esta remeteria, em ‘iltima instncia, As prisdes e aos campos, como afirmaram socidlogos criticos. Ab, que horror fazer fila para comer! Horror banalizado, j4 que, no que se refere a essa forma de disciplina, ter-se-ia perdido on recaleado a reagao original, que era de repulsa. Ora, a fila (ineluindo afila para comer) decorre muitas vezes de condicGes e exigéncias, por assim dizer, téenicas, que pouco ou nada tém a ver com a opressio, Faz-se fila na cantina de uma escola. A cantina é uma instituicdo repressiva? E opressivo, que, na cantina, cada um se sirva obedecendo a uma fila? Claro. hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada aaa 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: que poderia ser de outro jeito, mas 0 arranjo seria mais livre? Pode haver fila até em piquenique de amigos, quando somos suficientemente numerosos, ¢ alguém prepara uma sopa para todo o grupo. Na realidade, apesar dos horrores das filas imensas a espera de alimentos escassos ou outros produtos de primeira necessidade, e das filas para fazer pedidos as autoridades, pedidos que nao serio satisfeitos e nem sequer respondidos, a fila, em si mesma, nao tem nada de opressivo on irracional, Pelo contrario, eu diria que ela é um procedimento igualitério, que serve a uma sociedade demoeratiea. Nunca me esqueco da minha primeira volta ao Brasil, quando em vez. de esperar a minha vez, maneira europeia, fazendo democratica ¢ pacificamente uma (pequena) fila, fui obrigado a lutar contra um bando de gente agressiva, amontoada em torno de um baleao. Tudo isso pode parecer insignificante, repito, mas importa mostrar o cardter hiperbélico e por isso inoperante do estilo eritico do livro que examinamos. Alids, a propésito de filas, diria ainda que também quando se fala em ptiblico, em discusses, mesas-redondas on coléquios, é preciso fazer fila, isto é, aguardar a vez e respeitar democraticamente o tempo de palavra. Quem quiser falar mais, que espere primeiro, na fila, os minutos de intervencao de cada um dos outros. E pelo menos © que fazem os que téin o mau hébito de respeitar a disciplina democratica, DEPOIS DE JUNHO E hora de examinar o que representa propriamente a politica em O Novo Tempo do Mundo. Como ja observei, o que desde o inicio incomoda na politica de Arantes, tal como aparece no presente livro, 6 que ela se constréi tendo como fundo uma entidade hipostasiada, a “Revolugio” (com maitiscula).. ‘Uma tese importante nesse contexto é a de que hoje nio se é fiel & Revolugio. O lugar dessa entidade teria sido tomado por ontras, em primeiro lugar a “Urgéneia” (também com maitiseula). Se antes se falava em Revolugio, 0 grande evento que a esquerda desejava e a direita execrava, hoje nao se fala mais dela, e seu lugar foi tomado por algo assim como a “grande catastrofe” ~ nuclear, climética, bioldgica —, que alguns temem e outros denunciam como mito ‘$6 que as coisas nao se passaram exatamente desse modo. Essa descrigao da mudanea é acritica. A mudanga real (porque houve uma), do ponto de vista critico pelo menos, que é o daqueles que privilegiam o destino das lutas emaneipatérias, se escreveria mais ou menos deste jeito: as Intas contemporaneas pela emaneipagao passaram a ter miiltiplos objetivos; elas deixaram de visar apenas A igualdade e & liberdade (alids, esta tiltima, a luz do que ocorreu no século XX, ganhou uma forga inédita), ¢ a elas se somon a luta pela “melhor sobrevivéncia” da espécie no planeta. Para nto falar em outras lutas. Todo o problema da esquerda atual é saber como articular essas diferentes frentes. Ora, Paulo Arantes nfio desce até af. Em vez de tentar combinar elementos, ele prefere colocé-los em oposigao, Em vez da “Revolugao”, que visaria a igualdade, teria surgido uma nova entidade, a “Urgéncia”. E ai, ai da Revolucdo. E que nao se diga que houve uma nova distribuigao de forgas, de um lado os que acreditam na Urgéneia e que temem eatdstrofes mais ou menos iminentes, de outro os que nao acreditam nela. Em O Novo Tempo do Mundo, a diferenca entre uns ¢ outros, hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada asa rynenoe Aeesquerda encapucads | piaui.99 [revista piau pra quem tem um clique a mais “catastrofistas” e “integrados” (é essa a sua terminologia), nio é fundamental. Uns se somariam aos outros no mesmo gesto de reptidio a Revolugao, ou ao seu equivalente a direita, o Progresso. Por esse caminho é muito dificil entender os problemas contemporaneos, em particular os que tocam as lutas de emancipacio. Em primeiro lugar, seria necessario preeisar bem o que o autor considera real, ¢ 0 qne, para ele, é ficticio em matéria de catstrofes eventuais. As fronteiras entre realidade e fiegdo seriam imprecisas? Nao ereio. Ou nem tanto assim. De qualquer modo, se nao distinguirmos bem o que é real do que é aparente, é impossivel lutar, senao sobreviver Ora, 0 livro de Arantes evolui numa zona cinzenta, as vezes nao sabemos bem se 0 objeto (ou 0 evento possivel) a que ele se refere seria real ou imaginario, se para ele o risco da catéstrofe seria ‘mesmo real (acho que sim, mas hé passagens ambiguas). No que me concerne pelo menos ~ ¢ muita gente pensa do mesmo modo ~, o riseo ¢ real, muito real, quer se trate da acunmulagio de coz na atmosfera, do “acidente” nuclear ou da proliferacao de certos virus. Mas, se tal 6 0 caso, parece também, salvo melhor juizo, que devemos tomar posicdo diante dele, assumir nossas responsabilidades, como se costumava dizer, pelo menos no plano do discurso, e nao se refugiar nas delicias e no brilho do nosso discurso. Descrevi o lado dos que afirmam que o perigo é real. E eles nao se limitam a afirmar. Muitos se dispéem a lutar (em organizagdes diversas, ONGs, partidos politicos) para que o pior nao aconteca Esto af, em nivel mundial, manifestagdes importantes contra a utilizagdio da energia nuclear e contra todos os atentados graves ao meio ambiente. Essa gente, seja lembrado, invoca muitas vezes 0 chamado “principio de precaugao”. Pois, coerente com o curso geral dos seus argumentos, Arantes joga fora o “principio de precaugao”, junto com o seu contrario, que se poderia chamar talvez de “principio de audacia’, ou melhor, “de temeridade”, o que professam aqneles que nao acreditam em perigo nuclear ¢ quejandas fiecdes. Como vimos, tudo vai para a mesma lata, Um poueo como uma nova versio da famosa “lata de lixo da historia’, de tao triste memoria. $6 que nessa nova versio entra todo mundo. Este me parece ser, infelizmente, o contexto geral da politica arantiana. ‘Mas vamos ao particular. E ai ha que falar prineipalmente das mobilizagdes de junho de 2013. Ah, as mobilizagdes de junho! Como jé sugeri, Paulo Arantes professa em geral um pessimismo tedrico- pratico. Ele desereve o mundo capitalista como uma realidade mais ou menos fechada, uma “méquina do mundo” no interior da qual nao ha lugar nem para a reforma, nem a rigor para a “Revolugio”, nem, ainda, para o “reformismo radical”. Até ai, alguma verdade. Mas respiremos. Se émeia-noite no século, é também meio-dia. Os jovens se mobilizaram. Nao se trata do velho proletariado, nem do proletariado em geral, mas de uma camada nova, sui generis. Certo. Enfim, eles se mobilizaram, e com isso entramos num novo registro, o do “depois de Junho” Deixo claro que simpatizo com as manifestacdes de junho e que, além disso, estou convencido de sta importéncia. O problema é saber o que elas significaram, que perspectivas tém, ¢ o que se poderia dizer da maneira pela qual foram conduzidas. Arantes as teoriza a partir de Agamben, o que significa em geral fazer uso de formulas pedantes e, tudo somado, superficiais Devo sublinhar que nem tudo o que ele escreve sobre essas mobilizagées me parece falso. Por exemplo, é feliz ao insistir sobre a coexisténcia de reivindicagdes bem precisas ¢ aparentemente hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada aera 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: mimtisculas — abaixo o aumento de 20 centavos —, de um lado, e de outro uma perspectiva implicita ou explicitamente mais ampla, além de aberta para um leque virtual de exigencias. Mas o tema central 6 0 da “profanac&o”: profanar, segundo Agamben, significa “restituir ao livre uso o que antes estava indisponivel, confiscado e preservado fora do alcance em sua aura’, nos diz. Arantes. A tese geral que esti por tris do mantra da profanagao é a de que o eapitalismo, hoje, nao se afirma mais “unicamente através da repressio”. O autor comeca por citar um texto do coletivo Passa Palavra, segundo o qual o capitalismo quer que “os de baixo” sejam “engajados e participativos”, mas desde que engajamento e participagao acontecam “dentro de espagos preestabelecidos”. Agora 6 Arantes quem fala: “Um dos choques insurgentes de junho consistin justamente na profanacio desse confinamento.” Vé-se mal o quanto se avanga ~ ou nao avanga ~ com esse mote da “profanagaio” ‘Mas 0 pior é que, entre as “profanacées” atribuidas ao movimento, e que constituiriam a sua originalidade e grandeza, esta a profanacao... “da estratégia da nao violencia”. Sim, pois Arantes incorpora o movimento, por assim dizer, em bloco. Ele 0 satida, niio s6 sem fazer restrigdes aos atos de violencia que, em alguns momentos, o acompanharam, mas considerando esses atos, ao que parece, como um dos pontos fortes e originais do movimento. Em mais de um momento O Novo Tempo do Mundo abre alas para os black blocs: “Mais uma vez: jamais esquecer, como se esqueceu na hora em que a tatica black bloc tornou-se a bola da vez, a dimensio inédita assumida pela tatica da agio direta adotada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) — ocupar, resistir, produzir —, o que The rendeu de volta a faria assassina dos proprietarios e seu braco estatal.” Ou ainda: “O fendmeno black bloc nos acontecimentos de junho nao era trivial. Tocamos aqui no problema da violéncia. As manifestagdes de jumho foram violentas? E, se o foram, por iniciativa de quem? Qual a atitude primeira do Movimento Passe Livre diante da violéneia? Ora, se estudarmos as primeiras declaragdes de seus membros (ja que, por definigao, eles nao tém chefes), veremos que havia uma tendéncia evidente, por parte deles, em directio A no violencia Havia até um exagero nesse direcionamento: os MPL se dispunham a dancar nas manifestagdes, ¢ nao queriam nem carro de som — para nao “oprimir” os manifestantes —, nem, ao que parece, servico de ordem. Nao posso exibir documentos, mas creio que foi essa a atitude deles. Depois as coisas mudaram um poco. Claro, houve violéneia, e grande violéncia por parte da policia militar, Alguns manifestantes reagiram. Mas, principalmente, apareceu um grupo, os famosos black blocs, ativistas eneapucados, que se propuseram a enfrentar a policia e também a destruir pecas do patrim6nio piblico ou privado. Com os resultados que conhecemos: alguns feridos, também do lado de 14, e mais prisdes. Deixo de lado outros problemas, como o da presenga de elementos que se podem considerar como “de direita” no interior das manifestagdes, o que, sem drivida, complicon 0 quadro, ‘Mas 0 que me impressiona, em sentido negativo, é que os militantes dos grupos que estao na hetpu/revistapiau.estadao.com br/edicac-99/tbunavlvre-ds-uta-de-classes/a-esquerda-encapucada aa 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: origem das mobilizagdes de junho (e, em parte, das manifestacées anteriores) foram progressivamente definindo uma atitude de quase respeito, respeito politico, ou talvez até mais do que isso, pelo grupo violento dos encapucados. Insisti, em textos anteriores, sobre o quanto isso representou um engano lamentavel, fruto sem dtivida do fetichismo da violéncia que domina parte da esquerda desde pelo menos wm século. Ora, Arantes nao distingue as atitudes presentes nas priticas dos manifestantes, tampouco assume uma posigao critiea diante do que é uma coneessio, de gente que na origem tinha uma postura nao violenta, As agdes de um grupo notoriamente violento. O que me parece extremamente grave. Eu distinguiria sim, na contramjo do discurso arantiano (oh, ilusdes reformistas e angelistas, diraio eles!), os manifestantes pacificos dos quebradores de énibus e incendidrios de automéveis. Explico- me: nao se trata de afirmar que, no frigir dos ovos, seja sempre possivel impedir a um manifestante que ele reaja a violéncia com um gesto de defesa mais ou menos brusco. Isso pode ocorrer, e de fato ocorreu, Mas nao se trata disso. A questao é que se constituiu um “bloco” de violentos e, através deles, um éthos de violencia, cujas consequéncias, estou convencido, sio funestas para o movimento. Bem entendido, a violéncia maior vem do lado de lA. Mas nao é esse o ponto. Haja ou nado violéncia do outro lado da barreira, devemos coibi-la do lado de cf, ¢ nvio adot-la como bandeira. Isso, por duas ordens de razdes. Na linguagem antiga, razées taticas e razées estratégicas. Tatieas, porque as reag6es violentas levam a violéncias ainda maiores do outro lado, ¢ evidentemente nao somos os mais fortes, nao venceremos nessa luta hiperdesigual. E 0 preco que se aga por ela, em termos de prisdes, ferimentos e mortes, ¢ muito alto. No outro plano, ha dois argumentos decisivos. E absurdo pensar que chegaremos ao poder ou a algum tipo de vitéria maior, em médio ou longo prazo, apelando para aqueles gestos violentos. Sem dtivida houve, é claro, na historia movimentos violentos que foram vitoriosos. Mas isso se deu em circunstancias muito particulares e muito diferentes das nossas Para além disso, parece evidente que a formacio de um grupo violento é a pior coisa que pode acontecer para manifestantes que pregam a autonomia, isto é, que tém uma agenda libertaria. O grupo “armado”, como todos os grupos armados, vai se cristalizando em “grupo de vanguarda’”, isto 6, em grupo dirigente — e, com isso, a auttonomia do movimento vai por Agua abaixo LOGICA E POLITICA N 0 fago concessio a uma formula convencional ao ressaltar tudo o que se pode encontrar em O Novo Tempo do Mundo, Jé falei da prosa de ensaio, sob muitos aspectos invejavel, da riqueza da bibliografia, das anélises sobre o tempo e a tortura da espera sob o capitalismo contemporaneo — andlises que culminam com o recurso As obras literdrias de Kafka e de Beckett ~, da presenea de um. livro tao importante como Souffrance en France, de Christophe Dejours. Nao é pouca coisa. E entretant¢ ONovo Tempo do Mundo sofre de um déficit logico e de um déficit politico. Esses dois déficits se cruzam e se refletem. 0 livro tem alguma coisa de errado também num registro que se poderia hetpu/revistapiaul.estadao.com br/edicac-99/trbunavivre-ds-uta-de-classes/a-esquerda-encapucada seat 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: chamar de retérieo. Comego por esse iiltimo ponto. Apesar da beleza do estilo, ou talvez por eausa dele, o tom de O Novo Tempo do Mundo nao convence. O brilho da prosa incomoda as vezes, ¢ por varias razées. Um contetido que se revela deficiente, envolto mama prosa brilhante, é muitas vezes uma solugo pior do que um contetido imperfeito, expresso em prosa sem brilho. A primeira situagao, que é, em geral, a do livro, € muito mais mistificante. Depois, 0 virtuosismo da prosa as vezes passa do limite. E, em alguns casos ~ veja-se 0 capitulo com a entrevista “Tempo de exeecio” —, ovirtuosismo degenera em prosa de “piloto automitico”, numa avalanche de palavras. De forma geral, o tom de O Novo Tempo do Mundo 6 eminentemente elitista, senio aristocratico. 0 narrador encarna, de certo modo, o “espirito absoluto” hegeliano. (O hegelianismo de Arantes, infelizmente e de forma surpreendente na pena de um tao bom conhecedor de Hegel, ¢ menos o da dialética, como discurso critico, do que o do idealismo dogmatico.) Ele oficia demasiadamente “la de dentro”, ou do alto demais, o que vem a ser a mesma coisa. As vezes nos perguntamos se esse tom é de alguém que esta realmente preocupado com a sorte da humanidade. Lendo a prosa arantiana, tent-se a iampressao nao s6 de que ele prega para convertidos, mas de que ele fala tendo diante de si algo assim como uma mesa... posta. Passemos aos problemas propriamente substantivos. O Novo Tempo do Mundo é na realidade uma formidavel maquina identitaria, Tudo corresponde a tudo, e tudo leva finalmente ao “novo regime de acumulacio” do capital. O que nao conduz a isso nao é real. Dir-se-ia, parafraseando uma frase célebre — e frequentemente mal entendida —, que no livro “tudo o que é real é capital (remete a0 capital), e tudo o que é capital (remete ao capital) é real”, Poder-se-ia dizer também: “Tudo o que € racional é capital”, porque nio haveria racionalidade fora do ambito de efetividade do capital. Asso se soma o grande déficit politico do livro: a historia do comunismo esta ausente como tema. Isto é, a anilise dessa histéria est4 ausente. E como 0 comunismo, praticamente morto no final do século XX, ¢ entretanto um fantasma arquipresente no XXI sob a forma dos populismos autocraticos e, em geral, pela presenca macica, embora muitas vezes insuspeitada, do leninismo, prineipalmente nas esquerdas do Terceiro Mundo, essa auséneia condena in limine toda tentativa de esbogar uma teoria da historia dos tiltimos 100 anos. E tanto mais porque a auséneia do comunismo vai junto — em parte coincide — com 0 esquecimento da maior parte da histéria das Iutas sociais nesse periodo. O Novo Tempo do Mundo é wn livro com pouca meméria, um texto que, no que se refere aos movimentos sociais, joga a carta da ruptura, uma ruptura que é em grande parte iluséria. Mas, precisamente, o que 0 livro nao enxerga? Ele nao enxerga em todo o seu aleance — volto ao ponto porque resume o argumento ~ a formidavel inversio que se opera no séeulo XX. Um grande movimento de emaneipagio que desemboea em ditadura totalitéria. Porém o pior é que a incapacidade de pensar a grande inversao se manifesta nao s6 na leitura do pasado, mas também com relagao ao futuro. Se Arantes nao vé ~ ou vé pouco ~ a grande catastrofe que foi a historia de uum movimento de emancipagao conduzindo a um neodespotismo genocida, ele também nao enxerga (ou, antes, Ihe é indiferente) a possibilidade de que esse fendmeno (ou um fendmeno aparentado com aquele, por exemplo um populismo antoritario) possa ocorrer também no futuro Para Arantes, “populismo” é “entidade fantasmagorica” — assim, autoritarismo “de esquerda”, como cenatrio politico presente ou futuro para a América Latina, também deve ser. Em reso, 0 que 0 autor de O Novo Tempo do Mundo nao percebe com olho critico é que os hetpu/revistapiaul.estadao.com briedicac-99/trbunavivre-ds-uta-de-classes/a-esquerda-encapucada aoa 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: atuais movimentos que, em principio, vao no sentido da emancipagio podem, sob certas condigo se tornar 0 seu contrario, isto 6, levar a regimes, se nao totalitarios, pelo menos populistas ¢ autoritérios, As condigdes a que me refiro podem ser varias, mas uma delas pode ser identifieada examinando os meios de qne se valem esses movimentos. E ai somos reconduzidos ao problema da violéncia. A escola e a pratica de meios intencionalmente violentos so, pelas razées que indiquei, um indice do risco de que movimentos emaneipatérios se transformem em projetos autocraticos. Existe assim, para os dois casos — passado e futuro —, um déficit légico-politico, que 6 0 de uma leitura pouco dialética da realidade histériea — observe-se que o termo “dialética”, nao raro vulgarizado, tem aqui um uso rigoroso -, uma leitura insuficientemente aberta as inversdes de sentido que podem se produzir na histé Ha, em O Novo Tempo do Mundo, um problema geral de fundamentagao. Mais precisamente ~ mas as duas coisas vio na mesina diregio — uma dificuldade no nivel dos fins que ele propée, na medida em que é um texto politico. Pode-se perguntar: quais so os objetivos politicos do diseurso? Porque, por um lado, o livro revela uma tendéncia a recusar os problemas que, em prinefpio, poderiam ser resolvidos dentro do capitalismo, Um exemplo extremo da liquidagio, facil, de um problema desse tipo esta no tratamento dado a questo dos automéveis na cidade, isto é, da necessidade de promover o transporte coletivo. Pensando, talvez, em fazer um trabalho de desmistificagao, 0 autor remete a descrigao de um projeto de cidade sem automéveis que estaria sendo feito em um emirado hiperautocritico. Nao bastasse o carter caricatural do argumento, acabamos sendo informados, depois de trés paginas de leitura, que o tal projeto nao se realizou, nem se realizara... E fica tudo por a 0 objetivo seria entao a revolugaio? Nada menos claro, Tem-se a impressio de que Arantes poe e tira a “Revoluefio” do bolso do colete. Ele utiliza o termo quando The convém (para opé-lo a “Urgéneia”, por exemplo), ¢ 0 retira quando nao lhe serve (quando fala das ilusdes do passado, por exemplo). Alguém pode argumentar que a ambiguidade e a indefinicao sao objetivas. O autor s6 as refletiria, Nao é assim. Ainda que dificeis, as respostas existem, e podemos chegar a elas; mas s6 se formos eapazes de recusar as ambiguidades retoricas. Como vimos, o livro de Dejours fornece alguns conceitos que poderiam representar verdadeiros fundamentos e fins, conceitos de resto muito pouco ortodoxos. Em primeiro lugar, a ideia de “sofrimento social” (também a ideia de “injustica”, que tem a originalidade de nao ser nada original). Se tivesse realmente servido como fundamento do projeto tedrico-pratico que o livro encerra, esse tipo de conceituagao permitiria construir uma eritiea muito mais aberta ao real e muito menos dogmatica. Afinal o “sofrimento social” nao vem sé do capitalismo; ha, mesmo hoje — basta ver o Oriente Médio, ¢ até, em parte, a China e a Riissia —, muito sofrimento social que nao tem propriamente origem no capitalismo. ‘Mas, fora o capitulo mais diretamente afinado com o livro de Dejours, 0 Novo Tempo do Mundonio vai exatamente por ai. Ele antes mistura “sofrimento social” com “revolugio”, ¢ revolugiio” com o seu contrario, “o fim das grandes expectativas”. O resultado 6 uma espécie de niilismo, mas niilismo apesar de tudo marxista, ou neomarxista. Alitis, As vezes o livro descamba para o pior marxismo ou, antes, vai do marxismo para algo pior do qne ele. Arantes nao hesita em utilizar — sem advertir o leitor sobre a perspectiva geral dos autores ttou/rovistapiai estadao.com brledieso-90/tnbunavive-ca-lute-de-classes/a-cequordancepucsda zona 1/12/2014 A esquerda encapucada | piaui_99 [revista piaui] pra quem tem um clique a mais: que cita — tedricos notoriamente stalinistas, do tipo dos italianos Domenico Losurdo — que escreve livros contra “a lenda negra (sic) de Stalin” — ou Luciano Canfora ~ que toma a defesa da falecida Repiilica Demoeratica Alema (para Canfora, esta era democritica mesmo). Também se dispe a fazer um elogio disereto do populista Chavez, ¢ a chamar o homem politico de esquerda (anti- Chéivez) venezuelano Teodoro Petkoff de “renegado”. Se nos fixarmos sobre a auséneia do topos eritico, fundamental, da inversto do movimento histérico a que me referi; se notarmos o dualismo simplista na leitura da politica internacional, por exemplo; ¢ ainda a auséneia desse grande instrumento critico que 6a contra-histéria, uma vez que o autor raramente pensa na possibilidade de que outra coisa pudesse ter acontecido — entao, para além da complexidade dos argumentos, da sofisticagao do raciocinio e da multiplicidade e riqueza das referencias, O Novo Tempo do Mundo se revelara, finalmente, como um livro euja filosofia é, no fundo, um progressismo mais ou menos vulgar. Eu nao hesitaria em dizer que, no plano te6rico-critico, o livro naufraga. Fico tentado a afirmar que ele é teoricamente “torto”, no sentido de que abandona aquele que por razées subjetivas e objetivas poderia e deveria ser seu curso, o da critica dialética, a rigor ausente. Quanto a seus efeitos no plano pratico-politico, se pensarmos no entusiasmo pela violencia que parte da juventude manifesta, na confianga ingénna que nao raro deposita nela, parece evidente que O Novo Tempo do Mundo, obra de um grande intelectual que abraga sem eritiea a chamada violéncia revolucionaria — prineipalmente se o livro for adotado por certa juventude politizada, como parece que ja ven acontecendo —, certamente fara, naquele registro, muito mais mal do que bem. Nao direi mais. hnttpy/revistapiaul.estadao.com.br/edicao-09/tribunaclivre-da-luta-de-classes/a-osquerda-encapucada 2a

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