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Disciplina: Argumentação Jurídica

Docente: Cristina Varandas


Turma: Fórum
Aluno(a): Matrícula:

Atividade:
Leia os 10 crimes que chocaram o Rio, publicado no jornal O Globo em
2015. Escolha dois casos e comente no Fórum o que mais te chamou
atenção nos casos selecionados. Evite comentários generalizados como “O
que mais me chamou a atenção foi o requinte de crueldade”. Opte por
apresentar os argumentos dos casos, o contexto de cada um deles, as
decisões jurídicas, entre outros. Além da série de reportagens, há também
indicações de vídeos sobre os casos. Você pode assistir e fazer referência
nos comentários.

Série relembra casos que mobilizaram a sociedade§§


MARIA ELISA ALVES

À primeira vista, a inocente Copacabana dos anos 1950, a paradisíaca Búzios, antes da
chegada de Brigitte Bardot, e a Barra da Tijuca, já no ano 2002, em nada se parecem. Mas os
três locais têm em comum o fato de terem sido palcos de assassinatos (Aída Curi, Ângela Diniz e
Daniella Perez) que abalaram o país. Para relembrar casos que mobilizaram a sociedade, em
tempos sem internet, e outros mais recentes, como a morte do jornalista Tim Lopes, O GLOBO
publica a série de reportagens “Dez crimes que chocaram o Rio”.
Ângela Diniz e Doca Street https://www.youtube.com/watch?
v=vfXpuKHmwSM&list=PLL8mgvzsRV0wunjH0fT6z9qr8nDQBW1Wk&index=6

Mônica Granuzzo - https://www.youtube.com/watch?v=IJ-vL_OHS1M


Carlinhos Ramirez https://www.youtube.com/watch?
v=yOnwpy3atK0&list=PLL8mgvzsRV0wunjH0fT6z9qr8nDQBW1Wk&index=15

Daniella Perez
Cláudia Lessin Rodrigues https://www.youtube.com/watch?v=W3ijb45aStY&t=2864s
Neide Maria Lopes - https://www.youtube.com/watch?v=431t_NB4HTI
Aída Curi – https://www.youtube.com/watch?v=-0EaMgW9-no&t=55s
Um corpo na ladeira - https://www.youtube.com/watch?v=rDYgDLXdt_E
O Dia da Barbárie - https://www.youtube.com/watch?v=lPZkrLKrzjI
O drama da vida real
Caso 1

Ângela Diniz e Doca Street

A socialite Ângela Diniz, morta por Doca Street em 1976: no primeiro julgamento, assassino foi condenado a dois
anos porque jurados entenderam que ele agiu “em legítima defesa da honra” - Terceiro / Reprodução (11/06/1973)

— "Você não presta, pode ir embora. Você não presta, Doca!

— Eu te amo, eu te amo.

— Você não presta!

— Eu te amo!"

Foi esse o diálogo que a caseira Clébia Carvalho contou ter ouvido segundos antes de
Doca Street descarregar, às vésperas do réveillon, no dia 30 de dezembro de 1976, sua pistola
na direção de Ângela Diniz, a milionária mineira por quem ele largara a mulher, de família
quatrocentona, três meses antes. Após se entregar, quase 20 dias depois de ter fugido da cena
do crime, uma casa na Praia dos Ossos, em Búzios, Doca deu uma versão diferente para o
ataque. Antes de acertar quatro tiros em Ângela, desfigurando um dos rostos mais bonitos do
Brasil, alegou ter escutado uma frase que fez seu sangue ferver e que atingiu em cheio sua
honra:

— Se quiser me dividir com homens e mulheres... pode ficar, seu corno!

Verdadeira ou não, a frase caiu como uma luva para os advogados de defesa de Doca e
abriu uma profunda discussão na machista sociedade brasileira dos anos 70: que homem não
perderia a cabeça numa situação semelhante? No Brasil ainda sob a ditadura do presidente
Ernesto Geisel, poucas vozes se levantaram quando a vida da mineira bonita e festeira, que
muito antes do culto às celebridades já era famosa no eixo Rio-São Paulo-Minas e habituée de
colunas sociais, foi revirada pelo avesso. Os advogados de Doca, como era conhecido desde
pequeno Raul Fernando Street, exploraram ao máximo um “defeito” de Ângela: aos 32 anos, ela
prezava muito a própria liberdade. Não gostava de ser mandada e muito menos de viver como os
outros achavam que ela deveria.Numa época em que desquites eram malvistos, Ângela não
hesitou em pedir o dela. Separou-se do primeiro marido e, como castigo, o ex, um engenheiro, fez
com que ela perdesse a guarda dos três filhos, que ficaram em Belo Horizonte. Mesmo abatida,
Ângela, que mantinha um apartamento em Copacabana, deu um jeito: visitava as crianças todos
os fins de semana e chegou a botar as garras de fora. Desafiou a Justiça e sequestrou a filha
para passarem juntas um fim de ano no Rio. Foi condenada a seis meses de prisão e pagou
fiança para ficar livre, um ano antes de ser morta.

Foi essa Ângela guerreira, carinhosa e maternal que seus amigos exibiram na imprensa.
Não faltaram palavras cruéis contra Doca, que foi apontado como um bon vivant, um homem que,
aos 45 anos, viveria às custas de mulheres, inclusive Adelita Scarpa, que ele abandonou em São
Paulo, com um filho de 3 anos, enquanto Ângela esperava do lado de fora da mansão do casal,
no Morumbi. Para piorar o cenário, diziam que Doca, que nunca se separava de sua pistola, era
extremamente ciumento e violento. Francisco Matarazzo, amigo de Ângela, disse que a pantera
passou a viver enjaulada após juntar-se a Doca, “sob pressão permanente”.

Matarazzo contou à época do crime que Doca “não deixava Ângela usar um vestido, uma
blusa, queria mandar em tudo. Até com algumas amigas ele tentava impedir que ela
conversasse”. A empregada de Ângela, Maria José de Oliveira, também botou mais lenha na
fogueira que ardia contra o assassino: disse à polícia que o vira espancar a patroa mais de uma
vez. E exibiu aos jornais uma porta de quarto arrombada — Ângela havia se trancado para
escapar da violência, mas ele fora atrás.

Acossado, Doca, que nunca negou o crime, permitiu que Ângela fosse pintada como
culpada pela própria desgraça. Num Brasil que ainda se espantava com a liberdade sexual,
contou que a mulher, na manhã de sua morte, teria se encantado por uma alemã na praia,
convidando-a para uma festinha a três. Mortificado com o convite para o sexo grupal, feito na
frente de amigos do casal, Doca teria começado uma briga. Irritada, Ângela mandou o
companheiro embora. Doca pegou as malas e andou alguns metros de carro, mas voltou. Pediu
perdão, se ajoelhou. Durante a nova discussão, Ângela jogou a pasta dele no chão. A pistola
caiu. Quando percebeu, Doca já atirava.

A alemã, suposto pivô da briga que terminou em tragédia, depôs na polícia duas vezes. Na
primeira, não mencionou a “cantada”. Na segunda, contou ter sido acariciada. Testemunhas, no
entanto, contaram que o desentendimento entre Doca e Ângela foi por um motivo banal — ele
não sabia manusear uma Polaroid e ela se irritou. Mas estava montado o cenário para o primeiro
julgamento, em 1979. Entre os advogados do réu, estava Evandro Lins e Silva, um dos melhores
do Brasil.
Evandro Lins e Silva durante julgamento de Doca Street - Sebastião Marinho / O GLOBO

‘ESSE ASSUNTO ME ENTRISTECE’

Após a defesa de Doca soltar frases como “houve participação da vítima na eclosão do
crime” e “às vezes, a reação violenta é a única saída”, Doca foi condenado a dois anos de
reclusão, com direito a sursis. Os jurados entenderam, por quatro a três, que ele agiu “em
legítima defesa da honra”. Aplaudido por uma multidão, saiu livre. Tinha defendido a moral e os
bons costumes da classe média. O promotor recorreu e, no ano seguinte, a decisão foi anulada.

Um novo júri foi formado em Cabo Frio em 1981. Já era o Brasil da Abertura, um pouco
diferente daquele do crime na Praia dos Ossos. Grupos feministas criaram o bordão “Quem ama
não mata” e foram para a porta do tribunal pedir a extinção do típico machão, personificado por
Doca. Deu certo. O criminoso foi condenado a 15 anos de prisão. A memória de Ângela, porém,
foi mais uma vez atacada sem dó. A campanha foi tão forte que até o poeta Carlos Drummond de
Andrade se intrometeu: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes
maneiras”, lamentou em uma crônica.

Doca ficou três anos e meio dentro de uma cela. Depois, conquistou o regime semiaberto,
até que, em 1987, ganhou liberdade condicional. Solto, lançou um livro contando sua versão.
“Mea Culpa” tem 470 páginas, mas, hoje, Doca, que vive aposentado em São Paulo, casado com
uma amiga de infância, é econômico nas palavras. Às vésperas dos 80 anos, está ativo nas redes
sociais, mas prefere não falar de Ângela. “Esse assunto me entristece”.
Caso 2 -

Mônica Granuzzo

Mônica Granuzzo: crime ocorreu em junho de 85 – Arquivo

A seleção brasileira entrou em campo, no estádio Defensores del Chaco, em Assunção,


com a missão de vencer os anfitriões para ficar mais perto de uma vaga na Copa do México, que
aconteceria dois anos depois. Os olhos de Mônica Granuzzo, uma estudante carioca de 14 anos,
estavam grudados na tela da TV. Quando o juiz fez soar o apito final — o Brasil venceu o
Paraguai por 2 a 0 —, ela e a mãe, Marieta, respiraram aliviadas. Mal tinham se levantado do
sofá quando o telefone tocou no apartamento onde as duas viviam no Humaitá, bairro de classe
média do Rio. Do outro lado da linha, estava Ricardo Peixoto Sampaio, que a adolescente
conhecera na véspera, na Mamão com Açúcar, uma danceteria na Lagoa que fazia sucesso entre
os jovens não só pelas músicas new wave que tocava, mas também pela liberalidade com que
permitia a presença de menores de idade. O rapaz de 22 anos, que Mônica acreditava ter 17, a
convidou para sair. Na 7ª série do Colégio Princesa Isabel, com fama de organizada e boa aluna,
ela argumentou que precisava estudar. Ricardo, um jovem bonito, que fazia bicos como modelo,
insistiu. Numa idade em que a sexualidade começa a desabrochar, Mônica se rendeu ao convite:
afinal, seria rápido. Apenas um sorvete, combinaram. Nada escondia da mãe e contou que ia
encontrar o rapaz. Marieta pediu a ficha dele: era de que colégio, qual o nome completo, onde
morava? Mônica só sabia dizer que Ricardo vivia na Rua Fonte da Saudade, mas a tranquilizou:

— Eu já sei me cuidar, mãe.

Foram as últimas palavras que a mãe escutou da filha, encontrada morta, jogada numa
ribanceira, no dia seguinte, 17 de junho de 1985.
Da história das últimas horas de vida de Mônica, Marieta soube pouco, e aos poucos. O
porteiro do prédio em que elas moravam presenciou o bote de Ricardo. Assim que ele encontrou
a menina, disse que precisava passar em casa — distante nem cinco minutos de carro — para
buscar um casaco. Estava esfriando, mas ela se recusou. Só mudou de ideia quando Ricardo,
bom de lábia, apelou:

— Meus pais estão em casa, é rápido.

Os dois pegaram um táxi até o apartamento de dois quartos que Ricardo dividia com
Alfredo Patti do Amaral, um modelo de 22 anos de quem era amigo. Dois porteiros do Edifício
Solar Santa Margarida Maria viram quando Mônica entrou, às 19h. Parecia tudo certo, era apenas
mais uma menina que Ricardo, com fama de mulherengo, levava para casa. Mas, por volta das
19h45m, a adolescente despencou do sétimo andar, morrendo instantaneamente, sem que
nenhum vizinho ouvisse o baque. Quinze minutos depois, Ricardo saiu sem ser visto e correu
para a festa junina do Colégio Santo Inácio, um dos mais tradicionais do Rio, onde estavam
Alfredo e outro amigo, Renato Orlando Costa, de 19 anos, que, dos três, era o único na
faculdade. Cursava administração na Candido Mendes, em Ipanema, onde morava. Ricardo ainda
fazia o Impacto, um pré-vestibular, e Alfredo trancara o curso de comunicação na Faculdade da
Cidade.

CADÁVER FOI ENROLADO NUM COBERTOR

O trio rumou para o prédio na Brasília do pai de Alfredo. Embora eles tivessem a missão de
esconder o corpo de Mônica, caído no playground, o funcionário que abriu a porta da garagem
não notou qualquer nervosismo nos amigos. E contou à polícia ter visto quando os três voltaram
ao veículo com um embrulho grande nas mãos. Era Mônica, enrolada num cobertor, prestes a ser
jogada no porta-malas. Ricardo, Alfredo e Renato subiram a Lopes Quintas, no Jardim Botânico,
até a Vista Chinesa, um lugar ermo, principalmente à noite. Lá, jogaram Mônica — uma menina
que, como tantas outras da mesma idade, se divertia fazendo colagens na agenda e escrevendo
poemas — numa ribanceira.

Seguiram depois para a casa do pai de Alfredo. Era preciso apagar pistas. No
estacionamento do prédio, no Flamengo, lavaram a Brasília e as próprias roupas, manchadas do
sangue de Mônica. À meia-noite, Ricardo e Alfredo voltaram para casa. Havia mais trabalho a ser
feito. Um porteiro acordou com um barulho no play: era Ricardo, que jogava água no local onde a
menina caíra, enquanto Alfredo esfregava o chão freneticamente com uma vassoura.

Enquanto a dupla tentava apagar as marcas do crime, Marieta registrava na 10ª DP


(Botafogo) o sumiço da filha. Na manhã seguinte, um pintor avistou o corpo e chamou a polícia. O
delegado da Gávea logo ligou a descrição da menina morta à da desaparecida. Na tarde do
mesmo dia, policiais foram ao prédio de Ricardo. Prenderam o jovem e Alfredo. Horas depois, foi
a vez de Renato. Tinha início, então, uma investigação que chamou a atenção de todo o país,
que se perguntava: afinal, Mônica se jogou ou foi lançada do sétimo andar? Na delegacia, dois
dias após a morte, Ricardo insistia na sua versão. Após alguns beijos no sofá, a menina pulara
para a morte.

— Ela só queria beijos. Ficava me agarrando e me lambuzava todo. Eu achei estranho e


comecei a ficar com nojo, imaginando-a um travesti. Até que chegou um momento em que não
aguentei e fiz a pergunta: “Você é travesti?”. Ela abaixou a cabeça, encabulada, vai ver pensou
que eu perguntara se era virgem. E disse, forte: “Sim”. Eu me levantei do sofá, enojado, e me
afastei. Ela então se levantou e correu para a varanda. “Vou me matar, vou me suicidar”, gritou e,
em seguida, pulou. Não deu tempo de segurá-la. Fiquei sem ação. Nunca tinha visto ninguém
morrer tão brutalmente assim — disse Ricardo à época.

CONDENADO HOJE COMANDA ACADEMIA

A história não convenceu o delegado Clayde Ribeiro Filho, que foi taxativo: a versão não
tinha o menor sentido. A polícia suspeitava que ele tentara estuprar Mônica, que, ao resistir, caíra
ou fora jogada do apartamento. O laudo cadavérico mostrou que a menina morrera virgem e tinha
marcas de espancamento. Não tardou muito para que Renato e Alfredo dissessem à polícia que o
amigo costumava não só bater em moças, mas também usar um bordão para justificar a
violência: “Comigo não tem esse negócio de carinho, é tudo no tapa”.

Três anos depois da morte da adolescente, Alfredo e Renato foram julgados por ocultação
de cadáver, sendo condenados a um ano e cinco meses de reclusão. Mas, por serem primários,
cumpriram a pena em liberdade. Dois anos depois, foi a vez de Ricardo. Após 25 horas, o júri
chegou a um veredito: o réu foi condenado por homicídio, rapto, tentativa de corrupção e
ocultação de cadáver. A pena, de 17 anos de prisão, foi elevada, em 1991, para 20 anos e meio.
Em 1994, ele foi solto. Cursou educação física e hoje comanda uma academia a céu aberto em
Copacabana. Faz de tudo para não ser reconhecido. Procurado pelo GLOBO, revoltou-se por ser
lembrado.

— Não tenho nada a dizer. Dá um tempo, você não tem o que fazer? Me esquece! Tem
vários casos por aí, vai ver a corrupção do governo. Você não vai falar de mim! Eu devo alguma
coisa? Vou entrar na Justiça, tenho o seu telefone — disse à repórter.

Renato tornou-se executivo de uma multinacional. Alfredo teve uma parada cardíaca aos
26 anos, durante a festa de aniversário de um amigo, em Nova Friburgo, e morreu. A história de
Mônica, para ele, terminou em 1992.
Caso 3
Carlinhos Ramirez

Carlinhos numa imagem que se tornou emblemática do caso: o menino foi sequestrado dentro de casa, em
Laranjeiras, por um homem armado, que exigiu levar a menor criança que estivesse no local. Até hoje, não se sabe
se a vítima está viva ou já morreu –

Mais de dez homens já se apresentaram a Maria da Conceição Ramirez dizendo ser seu
filho, Carlos Ramirez, que ela não vê desde a noite em que ele foi sequestrado, aos 10 anos, na
década de 1970. Apesar de exames de DNA já terem sepultado a esperança da família, provando
que nenhum deles era o menino, Conceição continua até hoje a receber a visita de um dos
supostos Carlinhos. E, numa lógica que só pode entender quem já experimentou a dor de não
saber sequer se o filho está vivo ou morto, ela explica porque se submete ao faz de conta.

— Ele acha que é meu filho. Eu sei que não é, mas entendo a dor dele. Ele não conheceu
os pais, e fico imaginando os traumas que sofreu. Se eu puder aliviá-los um pouco, fico feliz.
Quem sabe alguém também não ajudou o meu Carlinhos?

CRIMINOSO TAPOU O ROSTO AO INVADIR A CASA

Aos 77 anos, Conceição conta que não passa um dia sequer sem que se lembre da noite
que mudou a vida da família para sempre. Ela estava em casa, uma construção na Rua Alice, em
Laranjeiras, Zona Sul do Rio, com cinco dos sete filhos — uma escadinha que ia dos 3 aos 15
anos —, quando as luzes se apagaram. Acostumada com os fusíveis que viviam queimando,
Vera Lúcia, a mais velha, foi para o quintal com um irmão, disposta a mexer na caixa de luz e
resolver o problema para que todos voltassem a assistir a mais um capítulo da novela das oito.
Foi rendida por um homem que, numa das mãos, segurava um lenço para cobrir o rosto e, na
outra, uma arma. O desconhecido invadiu o quarto onde estavam os demais moradores e,
enquanto Conceição oferecia tudo o que tinha, pensando se tratar de um assalto, ele revelou que
o crime seria outro:

— Quero a criança menor que estiver em casa.

Era Carlinhos. De short preto, sem camisa, ele foi arrastado pelo braço, aos prantos. Para
tranquilizá-lo, Conceição ainda gritou: “Fica calmo que teu pai mais tarde vai te buscar”. O
sequestrador deixou um bilhete, com vários erros de português, mas um recado claro: queria 100
mil cruzeiros, o equivalente a 16 mil dólares na época, para devolver o menino. Em 17 linhas, o
destino de Carlinhos foi traçado:

“Aviso a você que a criança está em nosso poder e só entregamos após cer pago o
resgate de cem mil cruzeiros esta importancia devera cer em pequeno volume e metido dentro de
uma bolsa e devera cer depositado ensima de uma caixa de cimento que fica situada na Rua
Alice cruzando com a Rua Dr. Giliotonio junto a duas placa. no dia /4/8/73 as 0200 horas digo
duas horas do dia quatro e lembre si de qual quer realção a vítima será liquidada ob: depois de
ser feito este deposito devera seguir em direção ao Rio Comprido e esta carta devera ser
devolvida no ato.”

Tinha início, então, um drama que se arrasta há 42 anos. Até hoje, ninguém saber dizer o
que aconteceu ao menino louro e sorridente, de cabelos nos ombros, imortalizado numa foto que
ganhou as manchetes na época do crime. Seu corpo nunca apareceu, o que dá esperanças de
que tenha sobrevivido. Mas, se não foi morto, por que não foi encontrado? Essas perguntas
atormentam a família desde o dia 2 de agosto de 1973.

Teorias sobre o caso não faltam. Durante a investigação, uma das hipóteses dos policiais,
nunca comprovada, era que o pai de Carlinhos, João Mello da Costa, estava endividado e teria
forjado o sequestro para conseguir dinheiro com o avô do menino. Também circularam à época
outras duas histórias, ora envolvendo um vendedor, ora um ex-policial. Em ambas, o crime teria
sido cometido para forçar João a pagar o que devia. O fato de os 100 mil cruzeiros arrecadados
numa campanha popular nunca terem sido entregues ao bandido reforçava as suspeitas.

Completamente perdida, a polícia atirou para todos os lados em suas investigações — sem
nunca acertar o alvo. Uma funcionária da empresa de João foi presa. Os detetives alardearam
que ela confessara ter sequestrado o menino para, com o valor do resgate, cobrir o desfalque que
havia dado na firma. Em poucos dias, sem mais nem menos, a mulher foi solta. A tal confissão?
Não se falou mais dela. Com todo o Rio hipnotizado pelo sequestro, os investigadores montaram
um circo: um deles, por exemplo, viajou disfarçado de mulher atrás de uma pista de Carlinhos. De
calça turquesa, tamancos e peruca loura, não conseguiu nada.

O caso sofreu uma reviravolta em janeiro de 1974, quando Adilson de Oliveira confessou o
sequestro e apontou João como mandante. O pai de Carlinhos foi preso, mas, no dia seguinte,
recebeu um habeas corpus. Não havia provas contra ele, e logo se descobriu que a confissão era
falsa. O inquérito policial ficou parado e só foi enviado à Justiça quatro anos depois do crime, com
a mudança do delegado à frente da investigação.

PAIS SE SEPARARAM UM ANO APÓS O CRIME

O caso foi retomado com base nas informações de um detetive particular, que também
apontava João como mandante. Exames grafotécnicos, feitos por um perito particular, mostraram
que a letra do bilhete de resgate era de Silvio Pereira, que trabalhava na empresa do pai de
Carlinhos. Veio à tona a informação de que Vera Lúcia reconhecera Silvio no momento do
sequestro, mas que João ignorara a história. Tudo indicava que o caso poderia ser, enfim,
esclarecido. Mas não foi o que aconteceu. Condenado a 13 anos e oito meses de reclusão, Silvio
recorreu e, no segundo julgamento, foi absolvido por falta de provas.

O crime abalou o casamento dos pais de Carlinhos, que se separaram um ano após o
sumiço do menino. A desconfiança de Conceição — ela sempre se perguntou por que os
cachorros não latiram quando o invasor apareceu e como o homem pôde andar no escuro pela
casa sem esbarrar em nada — persiste até hoje:

— Sempre achei que meu marido estava por trás, mas a polícia não quis me ouvir porque
ele dizia que eu era doente mental. Tenho esperança de que Deus vai me revelar o que houve
com Carlinhos.

Hoje, aos 92 anos, João mora com a segunda mulher no Andaraí, Zona Norte do Rio, e
não fala sobre o desaparecimento do filho.
Caso 4
Daniella Perez

A atriz Daniella Perez: seu corpo foi encontrado com 16 perfurações, oito delas no coração - Paulo R. Fonseca
(08/01/1991)

Os caras-pintadas tinham tomado as ruas, e o país esperava o desfecho do processo de


impeachment que o presidente da República enfrentava. O cenário político estava em ebulição, e
a possível renúncia de Fernando Collor de Mello dominava as conversas do Oiapoque ao Chuí.
Mas, em 29 de dezembro de 1992, quando Collor abdicou do cargo, o assunto que corria de boca
em boca era outro: o crime da novela das oito. Naquele dia, o Brasil descobria, atônito, que a atriz
Daniella Perez, encontrada morta na noite anterior, num matagal na Barra da Tijuca, com 16
perfurações, oito delas no coração, tinha sido assassinada por Guilherme de Pádua, seu par
romântico no folhetim “De corpo e alma”, da TV Globo Pouco depois, veio à tona o envolvimento
de Paula Thomaz, a mulher do ator. Grávida de quatro meses, ela também teria participado do
ataque, demonstrando que a realidade, por vezes, pode ser mais rocambolesca do que a ficção.

Nas primeiras horas após o crime, polícia e parentes acreditavam que a atriz tinha sido
vítima de assalto. A pochete que Daniella levava, com US$ 6 mil que ela daria de entrada num
carro novo, sumira. Confiante de que o caso seria tratado como latrocínio, Guilherme, um ator
mediano, desempenhou com maestria o papel de colega em estado de choque. Foi ao local onde
cometeu o assassinato e deu um abraço apertado na mãe da vítima, Glória Perez, autora da
novela. Fez também questão de consolar o viúvo, Raul Gazolla.

— Força, cara, força! — repetia para Raul.

ADVOGADO ANOTOU PLACA DO CARRO DO ATOR


A encenação tinha tudo para dar certo, não fosse o aparecimento de outro personagem: o
advogado Hugo da Silveira. De férias no Rio, ele estranhou quando viu um Santana e um Escort
parados na deserta Rua Cândido Portinari. Ressabiado por causa de um assalto na região duas
semanas antes, ele emparelhou seu carro com os que estavam estacionados e viu um casal
dentro do Escort. Como achou tudo estranho — o lugar era ermo, ninguém pararia ali para
namorar —, anotou a placa do Santana, única visível, e telefonou para a polícia.

Quando soldados da PM chegaram, encontraram a atriz morta, perto do Escort, que era
seu carro. Um detetive logo percebeu a semelhança entre a placa que Hugo anotara (OM 1115) e
a do Santana de Guilherme (LM 1115). Foi montada então uma estratégia para examinar o carro:
o delegado convocou Guilherme para depor, dizendo que chamaria todos os colegas de elenco.
Sem desconfiar, o ator foi para a delegacia no Santana. Enquanto ele falava sobre as últimas
cenas que gravara com Daniella, peritos atestavam que o L fora adulterado com fita adesiva para
parecer um O. Era o que faltava para apertar o cerco. Guilherme confessou.

E, como outros tantos assassinos, tentou culpar a vítima. Insinuou que o romance das telas
de TV tinha migrado para a vida real e que Daniella teria ficado descontrolada quando ele
terminou o caso — na rua deserta, longe do assédio dos fãs —, a ponto de agarrar uma tesoura
no porta-luvas. Sem saber se ela queria se ferir ou atacá-lo, Guilherme contou ter dado uma
gravata para conter a atriz. Como Daniella parou de respirar, ele presumiu que ela estivesse
morta. E decidiu, então, simular um ataque de assaltantes, perfurando seu corpo. Em nenhum
momento, Guilherme citou a mulher, com quem tinha uma relação conturbada e possessiva.

O nome de Paula só apareceu na investigação quando Hugo, que nunca tinha assistido à
novela, sintonizou a TV num capítulo de “De corpo e alma”. Assim que viu a filha de Glória Perez
em cena, foi taxativo. A moça que estava no Escort não era Daniella, mas uma de rosto bem
redondo, uma das características físicas mais marcantes de Paula.

Assim que a informação foi passada à polícia, o detetive Nélio Machado foi até a casa do
casal e “jogou verde”, dizendo a Paula que Guilherme a tinha incriminado. Revoltada, ela teria
confessado informalmente. Sem explicar o motivo, disse que atacara Daniella com uma chave de
fenda e que Guilherme teria desferido os demais golpes. Presa, Paula passou a negar sua
confissão e a alegar que, no dia do crime, ficara o tempo todo num shopping.

O ator só envolveu a mulher no julgamento: contou que ela, ciumenta, exigira se esconder
no carro para que ele provasse não ter um romance com a atriz. Nessa versão, Paula teria
atacado Daniella enquanto ele, atônito, assistia à cena sem reação.

Ninguém sabe qual história é verdadeira, ou se ainda há outra, que só o casal conhece.
Embora Guilherme tenha sempre afirmado que o crime não foi premeditado, o desembargador
José Muiños Piñeiro Filho, promotor do caso, diz ter certeza de que o casal planejou a morte de
Daniella, motivado por diferentes razões. Paula, com um ciúme doentio, o nome de Guilherme
tatuado na virilha, enxergava em Daniella uma ameaça e exigia o fim da rival. O ator, por sua vez,
incomodado com a redução de suas cenas na novela, pensava que a morte de seu par romântico
no folhetim traria dois benefícios: botaria um ponto final nas reclamações da mulher — semanas
antes, ele tinha, como prova de amor, tatuado o nome de Paula no pênis — e faria todos os
holofotes brilharem em sua direção. Seria coroado como último parceiro da atriz.

— Estou convencido dessas motivações. Mas, além disso, não afastaria a existência de
um ritual. O corpo foi achado debaixo de um arbusto, num círculo marcado com terra e com
resíduos de ossos em volta. Não tenho dúvidas de que usaram um punhal no crime, e não uma
tesoura, o que também dá um caráter ritualístico — diz Piñeiro.

Cinco anos depois do crime, a tese da promotoria, de que Guilherme cometeu o homicídio,
com participação de Paula, por motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima, venceu. Ele
foi condenado a 19 anos de prisão e Paula, cinco meses depois, a 16 anos. Ambos foram soltos
após cumprirem um terço da pena.

GLÓRIA PEREZ PRETENDE ESCREVER LIVRO

Depois de ser libertada, Paula cursou Direito. Foi, inclusive, aluna do promotor que a
acusou. Casou com um advogado. Teve mais dois filhos e vive, no Rio, uma vida de classe média
alta. O marido adotou o filho de Guilherme, que ela teve na prisão. Procurado pelo GLOBO, que
pedia uma entrevista com Paula, o marido foi direto:

— Não temos interesse no assunto.

Guilherme nunca mais viu o filho. Mora em Belo Horizonte, onde trabalha como obreiro de
uma igreja. Casou de novo, com uma mulher também chamada Paula, mas, desde 2014, não
pode se aproximar dela. Depois de uma separação conturbada, ela conseguiu uma ordem de
restrição. Procurado pelo GLOBO, Guilherme pediu, por telefone, que as perguntas fossem
mandadas por e-mail.

— Fica com Deus, tchau, tchau — disse, antes de ignorar as perguntas.

Quase 23 anos depois do crime, Glória reúne material do caso num blog e pretende
escrever um livro. Em agosto, quando Daniella completaria 45 anos, postou em sua página no
Facebook um desabafo emocionado: “Por 22 anos este foi o dia mais feliz em nossa casa. Hoje
não temos festa: só saudade. São 23 anos sem ela. O mundo mudou tanto e ela não viu. Não
conheceu a internet, o celular, os avanços da ciência e da tecnologia, não teve seus filhos nem
viu nascer seus sobrinhos — não viveu o que sonhou viver. Para os dois psicopatas (Guilherme
de Pádua Thomaz e Paula Thomaz, hoje assinando Paula Nogueira Peixoto), saiu barato”.
Caso 5
Cláudia Lessin Rodrigues

Cláudia Lessin Rodrigues foi morta aos 21 anos - Álbum de família

Depois de ter passado o dia inteiro com dor de dente, o operário Luís Gonzaga de Oliveira
se revirava na cama, insone. Para se distrair, saiu do barracão que dividia com outros três
funcionários da empresa Tecnosolo, na Avenida Niemeyer, para observar a lua. Nas imediações,
notou dois homens saltarem de uma Brasília — o mais forte puxava algo pesado do banco de trás
do carro. Desconfiado da movimentação no meio da madrugada, pegou uma pedra e rabiscou,
numa mureta, o número da placa do veículo. Horas depois, pouco após o amanhecer do dia 25
de julho de 1977, foi encontrado um cadáver na encosta da Niemeyer. A polícia foi chamada e,
por sua vez, acionou os bombeiros: a pedra íngreme estava coberta de limo e era impossível
resgatar sem cordas o que se descobriu ser uma jovem nua, com sinais de espancamento e
violência sexual. Uma sacola cheia de pedras, atada por arames ao corpo da moça, indicava que
a tentativa de jogá-la na água foi frustrada — ela ficou presa num dos platôs. Assim que soube do
crime, Gonzaga ligou os pontos: a vítima, Cláudia Lessin Rodrigues, 21 anos, estava perto de
onde ele tinha visto os homens, numa área conhecida como Chapéu dos Pescadores.

VÍTIMA ERA IRMÃ DE ATRIZ


Imediatamente, o operário telefonou para a Rádio Globo e forneceu a placa da Brasília. Um
presente para os investigadores que, até então, tinham conseguido apenas traçar um perfil de
Cláudia — uma moça que tivera problemas com drogas e era irmã de Márcia Rodrigues, atriz que
protagonizara, anos antes, o filme “Garota de Ipanema”. Graças a Gonzaga, em três dias a polícia
chegou a Michel Frank. Aos 26 anos, ele era dono do carro visto no local em que o corpo foi
achado e de uma imobiliária em Ipanema. Abastado filho do sócio majoritário da fábrica de
relógios Mondaine, exibidos nos pulsos da classe média nos anos 1970, Michel sumiu assim que
percebeu o cerco se fechar. Era o prenúncio de que a impunidade marcaria o caso.

Escondido da polícia, Michel contou, sempre através de seu advogado, diferentes versões
sobre seu envolvimento com Cláudia. Num primeiro momento, admitiu que a jovem estivera em
seu apartamento, no sábado à noite, mas por pouco tempo. Numa época sem celular, ela teria
tocado a campainha pedindo para usar o telefone. Depois de várias ligações, teria saído por volta
da meia-noite, sem informar para onde iria. A história começou a ruir quando o porteiro do prédio
contou à polícia ter visto Cláudia, no domingo, com Michel e outro homem, branco e forte,
identificado como Georges Kour, badalado cabeleireiro com salão no hotel cinco estrelas
Méridien.

Diante da evidência de que a vítima tinha passado a noite no imóvel, a família Frank,
ressabiada por conta do envolvimento de Michel com drogas, começou a se preocupar. Chamou
um criminalista e um perito para eles tentarem descobrir o que diria o laudo do exame cadavérico
de Cláudia, que não havia sido divulgado. A ideia era verificar se a história que Michel contara ao
pai, Egon, e, depois, aos dois especialistas, era verdadeira. O suspeito defendia que a jovem
misturara drogas e álcool e morrera de overdose num dos quartos da casa, antes de ele e Kour
realizarem o ménage à trois que pretendiam. Mostrando os próprios dedos feridos, Michel dizia
que tentou desenrolar a língua da moça, com convulsões.

Soava verossímil, já que não era segredo o entra e sai de usuários de drogas do
apartamento de Michel, no Leblon, uma espécie de boca de fumo para a classe média da Zona
Sul, nem o envolvimento de Cláudia com cocaína e maconha. Mas o resultado do exame
cadavérico foi um balde de água fria nas esperanças do patriarca: a garota, dizia o laudo, foi
esganada, violentada e espancada, sem ter consumido drogas. O advogado e o perito, vendo as
contradições entre o documento e o que dizia o cliente, desistiram do caso. Michel e Kour
continuaram insistindo na tese. Um amigo de ambos, Daniel Labelle, disse à polícia que estava
no apartamento e viu Michel e Kour, ambos pelados, fazendo massagem cardíaca em Cláudia até
que o cabeleireiro teria exclamado: “Elle est mort’’.

Tudo balela, segundo o detetive Jamil Warwar, na época responsável pelo 2º Setor da
Delegacia de Homicídios:
— Uma mentira, contada muitas vezes, ganha status de verdade. Advogados e criminosos
falavam que Cláudia tinha morrido após uma overdose numa festinha de embalo, mas isso não
aconteceu. Ela foi até a casa de Michel Frank, achando que iria encontrar um namoradinho.
Acabou dormindo, esperando o rapaz até tarde. Não houve festa nenhuma, as luzes se apagaram
pouco depois da meia-noite. Pela manhã, ela foi com Michel e Kour até a Avenida Niemeyer. Kour
quis mostrar onde pescava e lá, na encosta, os dois tentaram violentá-la. Ela resistiu e Michel
esganou a moça. Quando os dois voltaram com uma sacola com pedras para afundar o corpo,
foram vistos pelo operário. Além disso, um oficial da Aeronáutica viu o trio andando pela mureta.

O detetive, que já elucidou três mil crimes, conta que muitos policiais foram subornados
pelo pai de Michel Frank, e que isso possibilitou a fuga do jovem, que tinha dupla nacionalidade
(brasileira e suíça). Dois meses depois do crime, ele já estava na Suíça, para onde seguiu via
Buenos Aires, e onde deu uma de suas poucas entrevistas, defendendo-se: “Não sou o monstro
assassino que estão querendo fazer de mim’’.

SUCESSÃO DE ERROS

Diante da repercussão do caso e da pressão da imprensa, o governo da Suíça prendeu


Michel, mesmo sem um pedido oficial do Brasil. Mas ele não ficou muito tempo atrás das grades.
O governo brasileiro não enviou os documentos pedidos pelos europeus nem fez uma acusação
formal. O juiz de instrução de Zurique libertou o empresário em dezembro de 1977. Em 1980,
enquanto Michel trabalhava na Suíça, Kour era julgado no Brasil. Embora fotos do pescoço de
Cláudia, com marcas de polegares, tenham sido anexadas ao processo, o cabeleireiro foi
absolvido, por seis a um, da acusação de homicídio e violência sexual. Foi punido com dois anos
de prisão por ocultação de cadáver, mas, como já estava detido há três, foi solto imediatamente.

A Justiça suíça recebeu cópias do processo, mas entendeu que não havia provas para
acusar Michel do homicídio e o condenou, em 1981, a dois meses de prisão por uso de
entorpecentes. Cinco anos depois, Michel foi preso na França com drogas. Em 1986, de volta à
Suíça, teve o mesmo fim de Cláudia. Foi assassinado com quatro tiros no rosto após discutir com
um casal que fora ao seu apartamento cheirar cocaína. A família não foi ao enterro,
acompanhado apenas por um advogado, um policial e o analista de Michel. Egon, o pai, morreu
há dez anos. Kour, depois do crime, perdeu o prestígio como cabeleireiro. Chegou a abrir um
salão em Niterói, mas há mais de dez anos vive em São Paulo. Segundo um parente, estaria com
“problemas de saúde”, sem condições de falar do “conturbado” passado.
Caso 6
Neide Maria Lopes

Neide Maia Lopes, de 22 anos, passou a ser conhecida como a 'Fera da Penha' após matar criança de 4 anos -
Agência O Globo (20/07/1960)

Numa época em que a psicologia infantil não era levada tão a sério e as mães
costumavam recorrer a ameaças do tipo “cuidado, a cuca vai te pegar” para pôr fim a travessuras,
uma figura de carne e osso foi transformada em bicho-papão e amedrontou milhares de crianças
brasileiras nos anos de 1960. “Vou chamar a Fera da Penha” passou a ser a senha dos pais, e as
crianças, não à toa, obedeciam sem pestanejar: o “monstro" protagonizou o crime mais cruel que
o país tivera notícia até então. Após sequestrar na escola uma menina de 4 anos, matou a
criança com um tiro certeiro na cabeça. Em seguida, ateou fogo ao corpo. Toda a barbárie se
passou nos fundos de um matadouro de animais no subúrbio da Penha — daí o apelido que a
assassina passou a carregar.

A transformação em besta de Neide Maria Lopes, uma moça de 22 anos, comerciária, de


aparência pacata, que morava com os pais em Jacarepaguá, se deu aos poucos. No final de
1959, ela conheceu o motorista Antônio Couto Araújo dentro de um trem. Os dois engataram um
romance e se viam quase todos os dias. O idílio durou cerca de cinco meses e foi abalado
quando Neide descobriu que seu par era casado e pai de duas meninas pequenas. Passou,
então, a insistir para que Antônio se separasse da mulher, Nilza. Por mais de três meses,
manteve o relacionamento clandestino, sempre cobrando o rompimento, que Antônio adiava. A
história, até então idêntica a de tantos outros adultérios, mudou quando Neide se deu conta de
que o amante não iria abandonar a família e resolveu castigá-lo.

VISITAS PARA PLANEJAR VINGANÇA

O primeiro passo foi reconhecer o terreno inimigo. Para descobrir como era a rival e seu
relacionamento com Antônio, Neide bateu à porta do casal, no subúrbio carioca. Disse a Nilza
que era sua xará e que havia morado na mesma rua, anos antes. Simulou ter ficado ofendida
quando a mulher de Antônio não se lembrou dela nem de Jane, uma outra vizinha que citava.
Constrangida e achando tudo muito estranho, a verdadeira Nilza optou por ser simpática e
convidou a falsa Nilza para um café. Neide conversou sobre amenidades, perguntou sobre as
crianças e descobriu que Tânia Maria, de 4 anos, era o xodó do pai. A vingança tomava forma
mais concreta. O alvo fora escolhido.

Neide voltou à casa outras três vezes, sempre com balas para a futura vítima. Com as
visitas e os agrados, conquistou a confiança de Taninha, fundamental para que seu plano,
executado em 30 de junho de 1960, desse certo. Nesse dia, Neide discou 29-7379, de uma casa
próxima à escola de Taninha, que não tinha telefone. Pediu à vizinha que chamasse a diretora do
colégio, alegando ter um recado urgente. Passando-se pela mãe da menina, disse que não
poderia buscá-la porque tinha médico no Centro. E avisou que uma amiga, chamada Odete, iria
em seu lugar, num horário um pouco mais cedo do que o habitual.

Pouco depois, Neide foi à escola e apresentou-se como Odete. A diretora não desconfiou
de nada, já que Taninha parecia conhecê-la. Antes de ir embora, carregando a menina pela mão,
a “fera" fez uma pequena crítica: “Uma criança tão grande e ainda de chupeta”, resmungou à
diretora.

Cerca de meia hora depois, Nilza chegou. Desnorteada, telefonou para o marido. Com a
descrição da tal Odete, desconfiou que a sequestradora poderia ser a mulher esquisita que a
visitava. Antônio logo intuiu que a amante pegara Taninha. O casal foi à polícia e Antônio acabou
confessando ao delegado ter uma amante. Com o endereço de Neide, uma equipe seguiu para
Jacarepaguá.

Quando Neide chegou à noite, foi detida. Choramingou que precisava subir para lavar os
pés antes de ir para a delegacia. Os policiais autorizaram o que imaginaram ser um capricho, mas
só entenderiam o real motivo horas depois. Em casa, a “fera" limpou os pés, sujos da lama do
matadouro, e deixou a bolsa na sala. Um policial resolveu abri-la e descobriu guardados um
revólver calibre 32 e uma arma com cabo de madrepérola. Confrontada, ela alegou tê-las
comprado porque desejava praticar tiro ao alvo. Na delegacia, reconhecida pela diretora da
escola, negou o sequestro da menina. Apresentada aos fotógrafos, perguntou: “querem que eu
faça pose?”. E desafiou o delegado: “Se não fui eu que apanhei a menina, como vou saber de
seu paradeiro?”.

Era quase meia-noite quando chegou a notícia de que uma criança fora encontrada em
chamas num terreno ao lado do Matadouro da Penha. Era possível ver restos de uma roupa
branca e um casaco vermelho, como os que Taninha usava. Levada para o local, onde uma
multidão já se aglomerava, Neide ficou impassível. Abaixou-se para ver melhor as feições da
menina. Nada falou. De volta à delegacia, ficou muda por horas. Quando resolveu falar, inventou
uma história rocambolesca para tentar implicar Nilza na morte da filha. Contou que fora obrigada
a sequestrar a garota a mando de uma mulher chamada Vilma, que seria noiva de Mário, um
amante de Nilza. Com raiva, Vilma teria matado Taninha. A fantasia logo foi por água abaixo: a
polícia descobriu que Vilma e Mário não existiam. Depois de 20 horas de interrogatório, Neide
confessou e explicou de forma crua a mecânica do crime.

TIRO PARA CALAR CRIANÇA QUE CHORAMINGAVA

“Sim, matei a menina. À noite, depois de sequestrá-la, quando eu andava pelo I.A.P.I. da
Penha (um conjunto habitacional), senti o coração cheio de ódio. Pretendia fugir com Tânia Maria,
mas resolvi matá-la. Entrei num armazém, comprei um litro de álcool e segui pela estrada deserta
e quase escura. A menina ia quase arrastada e chorava muito. Tive medo que alguém ouvisse.
Esbofeteei-a. Parei junto de um poste. Vi a cerca de arame e o campo. Para lá fui, com a menina.
Larguei-lhe a mão e empurrei-a à minha frente. ‘Quero mamãe, quero mamãe’, ela pedia,
choramingando. Abri a bolsa e tirei dela a arma. Era preciso acabar logo com aquilo, pensei.
Tânia Maria tropeçou, caiu, mas levantou-se logo. O revólver estava firme na minha mão. Fiz um
único disparo, na cabeça da menina. Ela rodopiou e caiu de costas, com os olhos abertos e
assustados. Derramei-lhe álcool sobre o corpo e risquei o fósforo. Então, saí correndo, como
louca. Aí está toda a história. Agora, deixem-me em paz”.

Três anos após o crime, Neide foi a julgamento. Alegando doença mental, os advogados
pediram sua internação em hospital psiquiátrico. Mas os jurados acreditaram que ela tinha noção
dos próprios atos e a condenaram, por sete votos a três, a 33 anos de reclusão, 30 por homicídio
e três por sequestro. Houve novo júri em 1964, mas a pena foi mantida. Neide deixou a prisão
após cumprir 15 anos, três meses e 8 dias. Hoje, ela vive reclusa num imóvel no subúrbio. Os
vizinhos não conhecem sua história. Procurada, ela não falou com O GLOBO.
A família de Taninha cresceu: seus pais continuaram juntos após o crime e tiveram mais
dois filhos. A lembrança da menina morta ainda é forte: o túmulo, no Cemitério de Inhaúma, ainda
hoje recebe visitas de pessoas que creditam à pequena milagres, como Cida Prazeres.

— Minha neta estava desenganada e se salvou. Tenho certeza que Taninha ajudou na
cura.

Caso 7
Aída Curi

Aída: queda do 12º andar de prédio na Atlântica - Agência O Globo (17/07/1958)

Eram os Anos Dourados e o país, governado por Juscelino Kubitschek, acreditava ser
possível crescer 50 anos em cinco. Nas grandes cidades, os brasileiros de classe média viviam
um simulacro do american way of life, orgulhosos de suas enceradeiras, vitrolas de alta fidelidade
e dos recém-chegados televisores. No Rio, ainda capital da República, Copacabana efervescia.
Rapazes de lambreta percorriam o bairro com seus topetes à James Dean. Na maioria das vezes,
era só pose. Mas pelo menos alguns jovens levaram ao pé da letra a ideia de fazer parte de uma
juventude transviada, como Ronaldo Guilherme de Souza Castro. Aos 19 anos, ele já havia sido
expulso de colégios, acusado de agressões e do roubo de um carro. Da mesma turma, Cássio
Murilo Ferreira da Silva ostentava, antes de completar 18 anos, um currículo de dar inveja a
qualquer bad boy: tinha sido “convidado a se retirar” de duas escolas — uma vez por
“comportamento indigno”, outra por tentar levantar as saias das garotas — e acusado de
arrombar uma portaria para roubar uma motoneta.

Os deslizes da dupla eram inimagináveis para Aída Curi, de 18 anos. Órfã de pai desde os
4 anos, ela foi, durante 12, interna de um colégio de freiras em São Cristóvão, de onde raramente
saía. Destacava-se não só pelas notas, sempre excelentes, mas por ser recatada, como convinha
à época. Nenhuma amiga a ouvira falar de rapazes, e ela não sonhava com casamento. Queria
passar num concurso público e trabalhar para a ajudar a mãe, viúva e com cinco filhos para criar.

Estava tudo encaminhado para que a moça de cabelos curtos e sorriso tímido tivesse
sucesso: praticava inglês na Cultura e evoluía com rapidez nas teclas das máquinas de escrever
durante suas aulas na Escola Remington. Mas uma simples mudança de planos, no dia 14 de
julho de 1958, pôs tudo a perder. Ao sair da aula de datilografia, no Posto 6, Aída pegou um
caminho mais longo para o ponto de ônibus. Conversava com Ione Gomes, uma colega do curso,
quando foi abordada, na esquina da Avenida Atlântica com a Rua Miguel Lemos, pela turma de
Ronaldo. O resultado do encontro não só acabou com a ingenuidade que ainda restava a
Copacabana como chocou o Brasil: menos de três horas depois, Aída caía do terraço do Edifício
Rio Nobre, na Avenida Atlântica 3.388, e morria estendida no calçadão. Suas roupas íntimas
estavam rasgadas e havia marcas de dentes perto dos seios.

Nunca se soube como Aída foi parar no prédio. A versão mais aceita é que Ronaldo e seus
amigos teriam arrancado sua bolsa e seus óculos, exigindo um beijo em troca dos objetos. Diante
da recusa de Aída, Ronaldo teria seguido para o edifício, obrigando a jovem a ir atrás para
recuperar os pertences. Na portaria, a moça teria sido empurrada, com a ajuda de Cássio, que
morava no prédio, para o elevador, sendo levada à força para o terraço.

Com histórico de boa moça, a vítima rapidamente virou mártir. A opinião pública foi taxativa
— a jovem ingênua preferiu se lançar à morte a comprometer sua virtude. Um exame de corpo de
delito mostrou que Aída, apesar do ataque, permaneceu virgem. Seu corpo tinha sinais de socos,
e logo uma nova teoria vingou: a jovem resistira até onde fora possível, mas desmaiara e acabara
sendo jogada pela janela pelos agressores, que a julgaram morta.

VERSÕES DESENCONTRADAS

A perícia concluiu que Aída foi jogada, mas o mistério era: por quem? Dos rapazes que a
abordaram, apenas Ronaldo e Cássio a acompanharam até o edifício. Os dois e o porteiro
Antônio João de Souza nunca se entenderam em relação ao que houve. Cássio tentou incorporar
o papel de simples voyeur. Admitiu ter subido com Ronaldo e Aída ao terraço, no 12º andar, mas
disse que, após deixá-los sozinhos, se escondeu para assistir ao namoro. Contou ter presenciado
a resistência de Aída às carícias ousadas e o momento em que Ronaldo, frustrado, esbofeteou a
jovem. Cássio alegou que saiu das sombras para defender a moça e que obrigou o amigo a
deixar o local. Pouco depois de acalmar Aída, teria descido para verificar se Ronaldo fora
embora. Ao voltar, afirmou, o terraço estava vazio: a jovem se jogara. Na hora, teria ouvido
passos de alguém fugindo pela escada — ou Ronaldo ou o porteiro.

Antônio, por sua vez, admitiu ter estado no terraço espiando, mas não era Ronaldo quem
estaria com Aída, e sim Cássio. O funcionário do prédio disse que a moça resistia e que o rapaz
era violento com ela. Assim que sua presença foi notada, Antônio disse que deixou o casal a sós.
Última peça do quebra-cabeça, Ronaldo alegou ter tentado conquistar Aída, mas, diante da
recusa e sem nenhuma violência, a teria deixado com Cássio.

Com tantas versões desencontradas, não foi à toa que a reconstituição do crime atraiu
uma multidão a Copacabana, disposta a linchar os acusados. O quarteirão teve que ser isolado, e
o que se viu foi uma troca de acusações entre os envolvidos. Em determinado momento, Ronaldo
disse ao suposto cúmplice: “Você, Cássio, não sente o crime que cometeu aqui mesmo neste
local, porque você não é humano e não pode ter remorso”.

Ronaldo, Cássio e o porteiro foram detidos. Em fevereiro de 1959, uma reviravolta no caso
chocou a sociedade: o juiz Joaquim de Souza Neto impronunciou Ronaldo, ou seja, o considerou
inocente de todas as acusações, alegando que havia provas de que ele deixara o prédio antes da
queda de Aída. Pressionado pela opinião pública, em poucos dias o Conselho de Justiça anulou a
decisão, e Ronaldo teve que voltar à prisão. No mesmo mês, começou o julgamento pelo qual o
Brasil ansiava. Após 32 horas, saiu a sentença: 37 anos de prisão para Ronaldo e 30 para o
porteiro João. Cássio, considerado até pelo juiz do caso como o verdadeiro assassino, não pôde
ser julgado por ser menor.

DEPOIMENTO-BOMBA INOCENTOU ACUSADO

Ronaldo saiu do tribunal sob os gritos de “Assassino! Assassino!”. Como a defesa do réu
recorreu, um outro julgamento foi marcado, e surgiu uma nova testemunha. Uma senhoria dizia
ter visto Ronaldo na praia no momento da queda de Aída. O “depoimento-bomba” deu resultado.
O jovem foi absolvido por seis votos a um, assim como Antônio, o porteiro. Como cabiam
apelações, o desfecho só se deu com um terceiro julgamento, em 1963, uma espécie de meio-
termo entre os dois anteriores. Ronaldo foi julgado por homicídio simples e tentativa de estupro.
Acabou condenado a seis anos de prisão, mas teve a pena aumentada para oito anos e nove
meses após recurso do promotor. Antônio não participou do terceiro julgamento: após ter sido
absolvido no segundo, desapareceu. Cássio foi encaminhado para o Sistema de Assistência ao
Menor (SAM).

A morte de Aída não foi suficiente para acalmar os bad boys. Dois anos depois, Cássio foi
preso em Copacabana por agredir dois policiais. Em 1967, teve a prisão decretada por matar a
tiros um vigia em Teresópolis. Fugiu para o exterior, e nunca mais se soube dele. Ronaldo
também envolveu-se em novas confusões. Em 1968, em liberdade condicional, com uma arma na
mão, fez baderna num restaurante. No ano seguinte, foi preso mais uma vez: portava uma pistola
e documentos falsos, além de material para forjar carteiras de identidade. Depois de ser solto,
montou um posto de gasolina no interior do Espírito Santo. Os irmãos de Aída, ainda vivos, não
falam sobre o crime. No Rio Nobre, o terraço do qual Aída despencou tem novo uso. O
apartamento de baixo foi comprado pelo casal Paulo Saboya e Kivia Maia, irmã do ex-prefeito
Cesar Maia, que transformou o espaço. No lugar do terraço aberto, construiu uma biblioteca,
banheiro e novos quartos. Com a morte do marido, Kivia vendeu o imóvel, hoje transformado num
triplex.

Caso 8
Um corpo na ladeira

O Citroën abandonado com o corpo de Afrânio Lemos na Ladeira do Sacopã: tiros e rosto desfigurado -
Arquivo/Abril de 1952

Funcionário do Banco do Brasil, Afrânio Arsênio Lemos tinha tempo de sobra para ser
umbon vivant. Costumava chegar por volta das 10h à agência, em Botafogo, e apressava-se para
cumprir suas tarefas. Por volta das 12h, já estava livre para dedicar o resto do dia às suas duas
paixões: os rabos de saia e as corridas de automóveis. E foi justamente sua queda pelas
mulheres que pode ter abreviado sua trajetória. No dia 7 de abril de 1952, ele foi encontrado
morto na então deserta Ladeira do Sacopã, na Lagoa. O rosto estava desfigurado por 14
coronhadas, e era possível ver as marcas de três tiros no abdômen. Afrânio estava dentro do
próprio carro, um Citroën negro, e não tardou para que policiais encontrassem o que
consideraram uma pista importante. Em um dos bolsos, o bancário guardava a fotografia de uma
jovem, com uma dedicatória de amor no verso: “Este sorriso te pertence”.

MORENA CAPAZ DE 'PROVOCAR UMA GUERRA'

Logo se descobriu que a moça era Marina de Andrade Costa, estudante do Colégio
Andrews, com quem Afrânio mantivera um romance, interrompido por pressão da família da
jovem, que não queria vê-la com um homem mais velho (ela estava com 18 anos; ele tinha 31) e,
ainda por cima, desquitado. Quando Marina, um dia após o crime, viu sua foto estampada em
todos os jornais e procurou a delegacia para prestar esclarecimentos, surgiu um novo
personagem na tragédia. O tenente-aviador Alberto Jorge Franco Bandeira foi até o distrito
policial em busca de notícias, apresentando-se como namorado da jovem. Para muitos, foi um
gesto que custou caro ao oficial. Bandeira acabou — no que muitos acreditam ter sido uma trama
urdida para inocentar os verdadeiros assassinos — acusado de ter matado Afrânio. O motivo?
Ciúmes da estudante, uma morena que investigadores diziam ser capaz de “provocar uma
guerra".

Uma das suspeitas é que o tenente tenha caído de paraquedas no meio da história por
causa do advogado Leopoldo Heitor, que nada tinha a ver com o caso, mas, buscando os
holofotes, disse à imprensa que ia esclarecer o caso. O advogado — que na década seguinte se
tornou o principal suspeito do desaparecimento da milionária Dana de Teffé — apresentou aos
repórteres um homem chamado Walton Avancini. Dizendo-se amigo de Afrânio, ele contou que o
bancário estava apaixonado por Marina e com medo no namorado da moça. Mais tarde, ele disse
ter testemunhado o crime. De acordo com Avancini, na noite do dia 6, Afrânio teria resolvido
encontrar Bandeira para resolver o impasse. O tenente teria aguardado o bancário na porta do
Iate Clube, na Urca, e embarcado no Citroën. No banco de trás do carro, Avancini dizia ter visto a
discussão, que esquentou quando o veículo passou pelo Clube Caiçaras, na Lagoa. Afrânio teria
desafiado Bandeira:

— Se você é macho, por que não se garante?

— Corno, salafrário — teria revidado o tenente.

Em seguida, dizia Avancini, as agressões passaram a ser físicas: o bancário teria dado um
soco no rosto do tenente, que, por sua vez, teria sacado a arma e atirado. Apavorado, Avancini
contou ter fugido do local e viajado para São Paulo.
O testemunho acabou desacreditado, não só pelo histórico do rapaz, envolvido em
diversos trambiques, como pela versão de uma empregada doméstica que estava na Lagoa na
hora dos tiros. Ela só viu dois homens no Citroën — o que atirou assumiu o volante,
abandonando o carro depois na Sacopã. Mas, de qualquer modo, o estrago estava feito. Mesmo
sem provas substanciais, o tenente Bandeira foi julgado em março de 1954 e condenado a 15
anos de prisão. Ficou preso até 1960, quando ganhou liberdade condicional com a ajuda de outra
figura lendária, o advogado Tenório Cavalcanti, conhecido como “homem da capa preta”. No
mesmo ano, recebeu indulto do então presidente Juscelino Kubitschek.

EX-MINISTRO DO STF ACHOU ERRO EM JULGAMENTO


Apesar de não dever mais nada à Justiça, o tenente fazia ainda questão de tentar provar
sua inocência. Por isso, quando foi procurado, em 1972, pelo ministro do Supremo Tribunal
Federal aposentado Joaquim Souza Neto, não hesitou em aceitar sua ajuda. O jurista encontrou
um erro no julgamento e conseguiu anulá-lo a um mês da prescrição do crime. Marcado novo júri,
Souza Neto apresentou à Justiça, em 168 páginas, uma nova versão, que dividiu a opinião
pública. Ele sustentava que a morte de Afrânio teria sido encomendada pelo filho de um poderoso
senador, que tentava salvar a honra da irmã. A moça teria tido um romance com Afrânio e estaria
sendo chantageada. Dava força à história o fato de o senador ter sido visto na delegacia que
apuraria o crime, logo após a morte do bancário, vestido apenas com um robe, grudado ao
telefone, aparentando nervosismo. Estaria, segundo os advogados, mexendo pauzinhos para não
deixar respingar o sangue do bancário em sua família. Os homens contratados pela família, dizia
o desembargador, eram um vigilante e Walton Avancini.

A história não foi adiante. Escondido pelos seus advogados, o tenente não foi a novo júri e
esperou o crime prescrever. A história havia acabado para a Justiça, para a Aeronáutica, que
reintegrou Bandeira, e para Marina, que se casou e sumiu da mídia. Mas não para o tenente, que,
nos anos 2000, entrou com pedido no STF para ser considerado inocente. Morreu em 2006 sem
conseguir. Uma ferida que sua família lutou para esquecer:

— É uma ferida que vai reabrir e sangrar. Não quero falar. Já cicatrizou — diz hoje uma
das irmãs do tenente.
Caso 9-
O Dia da Barbárie

30.08.1993 - MÁRCIA FOLETTO / GDI / AGÊNCIA O GLOBO - CORPOS DAS 21 PESSOAS CHACINADAS NA
FAVELA DE VIGÁRIO GERAL. - Márcia Foletto / Márcia Foletto / 30-08-1993
Era um sábado e, como em tantos outros, Aílton Benedito Ferreira Santos ia macular sua
farda de terceiro-tenente da PM. Reuniu três homens de sua confiança e partiu, sem avisar ao
Centro de Operações, como seria de praxe, para uma incursão na Praça Catolé do Rocha. O
objetivo era surpreender o traficante Flávio Negão, chefe da Favela de Vigário Geral, que
receberia um carregamento de drogas. Como nesta história não há mocinhos, a ideia de Ailton
jamais foi a de prender o bandido com a boca na botija. Ele queria, como já era hábito, achacá-lo.
Mas, na noite do dia 28 de agosto de 1993, o plano não funcionou. Os seguranças do traficante
— que responsabilizava Aílton pelo sequestro do seu irmão, assassinado mesmo depois do
pagamento de resgate — foram mais rápidos. Antes que a extorsão fosse praticada, fuzilaram o
tenente e seus três ajudantes (um cabo e dois soldados). Cerca de 50 pessoas estavam na praça
quando os quatro policiais foram abatidos a tiros de fuzis, escopetas e pistolas, mas nesta história
não há ingênuos: valeu no asfalto a lei do silêncio que impera nas favelas, e não apareceu uma
só testemunha para contar o que viu. Ainda não se sabia que fora aceso ali, numa pracinha
desconhecida da maioria dos cariocas, o estopim de uma tragédia que, no dia seguinte, chocaria
o Brasil e o mundo.

CRIME COMBINADO DURANTE ENTERRO DE OFICIAL

Revoltado com o que aconteceu na Catolé do Rocha, um grupo de policiais corruptos —


versados na arte de extorquir dinheiro de bandidos sem ser punidos e integrantes de um grupo de
extermínio apelidado de Cavalos Corredores — resolveu se vingar. Durante o enterro do tenente,
um dos chefes dessa “banda podre” da corporação, cerca de 50 policiais, a maioria militares,
juntaram-se a alcaguetes e combinaram invadir o Parque Proletário de Vigário Geral. O alvo
inicial era a quadrilha de Flávio Negão, mas o desenrolar da ação levou a uma tragédia
completamente diferente. Vinte e uma pessoas foram fuziladas. Nesta parte da história, eram
todas inocentes. Sem ligação com o tráfico, tiveram o azar de estar no lugar errado, na hora
errada. A impressionante imagem de 18 corpos ensaguentados, todos crivados de tiros, em
caixões dispostos lado a lado, na manhã seguinte à da carnificina, correu o mundo, ainda
traumatizado com outro crime carioca que teve repercussão planetária — a chacina da
Candelária, ocorrida 37 dias antes e que vitimou oito jovens, também com o envolvimento de
policiais.

Nos primeiros dias após a chacina de Vigário Geral, as investigações engatinhavam.


Achava-se que o massacre podia ter sido resultado de uma briga entre traficantes rivais. Mas
uma testemunha-chave apareceu. Era um ex-policial, transformado em X-9, como são apelidados
os informantes da polícia. Ligado a Aílton, e com medo de morrer porque sabia demais, Ivan
Custódio revelou a dinâmica da chacina e deu o nome de 33 homens que teriam participado da
matança. Promotor numa parte do processo, o hoje desembargador José Muiños Piñeiro Filho diz
não ter dúvidas de que entraram na conta alguns desafetos do X-9, que podem não ter
participado da chacina. Mas foi com base nesse depoimento que 33 suspeitos foram indiciados e
se começou a entender a mecânica do crime.

A ação do bando aconteceu em menos de duas horas. A primeira vítima foi baleada fora da
favela. Era um jovem que bebia cerveja num trailer na Praça Córsega. Em seguida, os criminosos
atearam fogo a cinco trailers da Praça Catolé do Rocha e dividiram-se em três grupos. O próximo
ataque aconteceu numa birosca na Rua Antônio Mendes, onde sete pessoas foram mortas. Dois
homens que sobreviveram contaram que os chacinadores entraram encapuzados no bar e
pediram documentos dos oito clientes, que jogavam cartas. Todos apresentaram o “salvo-
conduto”. Quando iam embora, o dono do negócio reclamou:

— Aqui só tem trabalhador, vocês deveriam ir pegar vagabundos.

A frase foi a senha que faltava para despertar a ira do bando, que jogou uma granada
dentro da birosca. Depois da explosão, teve início o fuzilamento. Os dois clientes que se salvaram
recorreram a diferentes estratégias: um conseguiu, mesmo ferido, escapar pela janela; o outro
fingiu-se de morto. Ao sair do bar, o grupo invadiu uma casa de evangélicos, bem em frente.
Interrogaram todos, perguntaram por um traficante que já tinha morado no imóvel. Estavam indo
embora quando o capuz de um dos integrantes caiu. Foi a sentença de morte para oito pessoas.
Para que ninguém o identificasse, o policial voltou com seu grupo e atirou nos moradores. Só
poupou cinco crianças. Outro “pelotão” matou dois jovens numa rua próxima — um deles passara
as últimas horas de vida dançando. Voltava de um baile quando foi surpreendido. O terceiro
grupo executou dois rapazes, que andavam pela rua após uma festa de aniversário, e um
ajudante de mecânico, morto na frente da irmã e do pai, que em vão suplicaram clemência.

APENAS UM CULPADO AINDA ESTÁ NA CADEIA

Com 33 homens presos, à espera de julgamento, o caso sofreu uma reviravolta dois anos
depois. Dezessete acusados, que tentavam provar sua inocência, passaram a gravar,
escondidos, conversas com outros detidos. Nelas, outros acusados contavam quem havia
participado da chacina, como ela fora planejada e como acontecera. Essa nova versão levou à
prisão mais 19 policiais. Mas a falta de provas fez com que a maioria não fosse punida. Do total
de 52 acusados (47 PMs, três policiais civis e dois informantes), apenas sete foram condenados.
Desses, três conseguiram ser absolvidos em um segundo julgamento; um quarto, que estava
foragido, foi morto em 2007. Dos três detidos, um teve a pena extinta em 2012, outro passou para
a condicional quase 20 anos após a chacina. Apenas um participante do massacre, Sirlei Alves
Teixeira, está preso. Mas só está atrás das grades por causa de outros crimes que cometeu
quando estava foragido.

Se a justiça dos não foi feita, Vera Lúcia dos Santos, que perdeu oito parentes evangélicos
na tragédia homens, entre eles os pais e as irmãs, acredita que a divina não tardará.

— Quem faz justiça é Deus. Você já viu o que aconteceu com eles? Um perdeu o filho,
outro está aleijado, perderam a farda. Eu estou em paz comigo mesma. Deus me sustentou — diz
Vera, que saiu de Vigário Geral no dia seguinte ao da tragédia para morar em outro bairro.

O imóvel onde sua família foi morta, e onde já funcionou a ONG Casa da Paz, ela pretende
vender. Mas antes deixará um grupo da igreja ocupá-lo com um projeto para recuperar usuários
de drogas:

— A casa ficou fechada muito tempo e, sabe como é, com essa dificuldade de moradia,
podiam ter invadido. Mas o povo de Vigário Geral respeitou. Lá todo mundo é muito bom.

Caso 10
O DRAMA DA VIDA REAL

A atriz Dorinha Duval ao lado de seu advogado, Clóvis Sahione em 09/03/1989 - Carlos Ivan / Agência O Globo
Os pequenos e grandes dramas que se passam entre quatro paredes raramente vêm à
tona — as frases cruéis, ditas por casais em crise, costumam ser jogadas no baú de mágoas da
relação ou, no máximo, libertadas em divãs de analistas e conversas com amigos chegados. São
poucos os fracassos da intimidade que ganham as páginas dos jornais, esmiuçados em seus
piores detalhes. Mas foi o que aconteceu a Dorinha Duval, nome artístico de Dora Teixeira, uma
artista que começou a carreira como cantora, experimentou dias de vedete e se encontrou como
atriz. Foram três tiros, disparados numa noite de outubro de 1980, que elevaram à
superexposição máxima a vida privada de uma figura pública, numa época em que nem se
sonhava com o atual culto às celebridades. Naquele dia 5, tudo o que se sabia é que Dorinha,
uma das irmãs Cajazeiras da antológica novela “O bem-amado”, e a intérprete da Cuca, do “Sítio
do Picapau Amarelo”, havia baleado o marido, o produtor publicitário Paulo Sérgio Garcia
Alcântara. Em seguida, teria telefonado a um casal amigo, pedindo ajuda para socorrer a vítima.

ATRIZ DISSE QUE FOI HUMILHADA


Enquanto Paulo Sérgio era operado no Hospital municipal Miguel Couto, na Gávea,
Dorinha, muito abalada, saía de cena. Sem saber que o marido morrera na mesa de cirurgia, foi
para a casa de um amigo e só se entregou à polícia dois dias depois. Entre goles de água com
açúcar e crises de choro, apresentou uma versão que a acabou transformando, aos olhos de
muitos, também em vítima. Aos moldes de Doca Street, que assassinara quase quatro anos antes
a pantera Ângela Diniz, alegando defesa da honra, em outro caso que mobilizou a opinião
pública, Dorinha dizia ter sido ferida física e moralmente. Atirara, dizia, em legítima defesa.
A briga teria começado dentro do quarto do casal, numa casa no Jardim Botânico. Dorinha
e Paulo Sérgio tinham acabado de voltar de uma festa no Leblon. Saíram cedo, por volta de meia-
noite, porque a atriz tinha um compromisso no dia seguinte em Belo Horizonte. Quando arrumava
a mala para a viagem, num quarto ao lado, Dorinha ouviu o marido chamá-la diversas vezes. Ao
encontrá-lo só de cueca, deitado, imaginou que a insistência era porque ele queria fazer sexo. Em
depoimento à polícia, ela contou que foi para a cama, mas que, ao tentar abraçar Paulo, foi
repelida. Detalhou também como foi o diálogo que precipitou a tragédia:
— Você é uma velha, não quero mais nada com você — teria dito Paulo, de 35 anos, a
Dorinha, de 51.
Mesmo humilhada, a atriz teria tentado contornar a situação e agradar ao marido. Disse
que poderia se submeter a uma plástica.
— Não adianta plástica, eu gosto de menininha nova, não quero uma bruxa remendada —
teria continuado Paulo, passando a agredir Dorinha com chutes e tapas.
A atriz contou que pediu ao marido que parasse de agredi-la, ameaçando se matar.
— Ótima ideia, o revólver está ali — ele teria retrucado, apontando para a arma que
comprara meses antes, por causa de um assalto do qual fora vítima na porta de casa.
A partir deste ponto, Dorinha dizia que era tudo uma névoa:
— Peguei o revólver e, a partir daí, não me lembro de nada, até quando o vi
ensanguentado, caído no chão.

CIÚME DOENTIO
Naquele momento, numa época em que o machismo imperava, e crimes cometidos por
homens contra esposas eram vistos com certa naturalidade, Dorinha subvertia a ordem. Tornava-
se a mulher que matou o marido. Os amigos de Paulo Sérgio não perdoaram: diziam que a atriz
sentia um ciúme doentio dele e que, dois meses antes, atirara na direção do companheiro. Os
defensores de Dorinha argumentavam que Paulo Sérgio a explorava e que a atriz, volta e meia,
era obrigada a pagar as dívidas de pôquer do marido.
Levada a julgamento três anos depois, ela teve sua história sofrida explorada no tribunal.
Seu advogado, Clóvis Sahione, evocou um passado repleto de traumas afetivos e listou um a um:
estuprada aos 15 anos, aos 18 se encantou por um trapezista de circo, um sedutor de olhos
verdes que a abandonou. Com uma gravidez tubária e sem dinheiro para interromper a gestação,
Dorinha foi obrigada a fazer um acordo com o diabo: uma cafetina deu a quantia necessária para
o aborto, com a condição de que a jovem, depois, se prostituísse por seis meses para pagar a
dívida.
O júri ficou encantado com as testemunhas de defesa de Dorinha — o humorista Chico
Anysio e o ator Paulo Goulart, por exemplo, atestaram o caráter pacífico da atriz.
No fim, foi estipulada uma pena de um ano e meio de detenção, a ser cumprida em liberdade, já
que a artista, que havia sido casada com Daniel Filho e tinha uma filha, a hoje atriz Carla Daniel,
era ré primária e de bons antecedentes.

“O PASSADO JÁ PASSOU”
Como o promotor recorreu, Dorinha foi levada a novo julgamento em 1989. De novo, os
jurados foram condescendentes. A atriz, que depois do crime virara esotérica, foi condenada a
seis anos de reclusão em regime semiaberto, a pena mínima para homicídio simples. Tinha o dia
livre e precisava apenas dormir na prisão, em Niterói. Afastada da TV, virou artista plástica.
Em 2002, a ex-atriz publicou a biografia “Em busca da luz: memórias de Dorinha Duval”, escrita
pelo jornalista Luiz Carlos Maciel e pela publicitária Maria Luiza Ocampo.
Hoje, aos 86 anos e aposentada, Dorinha mora na Zona Sul do Rio. Localizada pelo GLOBO, ela
disse que o crime é uma página que já virou:
— O passado já passou. Está tudo sossegado na minha vida.

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