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O contexto pós revolução foi um momento de intensa redefinição de todas as

funções sociais no mundo soviético. Estavam sendo estabelecidas novas estruturas para
o trabalho e para a vida, de maneira que também foi necessário refletir sobre aspectos
mais abstratos como as atividades artísticas e intelectuais. Nesse momento, o trabalho
intelectual é pensado de maneira intrinsicamente ligada à noção de fábrica.
A fábrica se torna tão importante não apenas pelo contexto de industrialização ou
pelo pressuposto de que essa revolução foi construída pelos operários - ou seja, surge da
fábrica - mas porque, mais do que isso, pensava-se a lógica da industrialização como
modelo de reorganização generalizado para o trabalho e a sociedade.
A fábrica se tornou um modelo de funcionamento para as atividades intelectuais,
que tinham a intenção reproduzi-la/mimetiza-la em outros âmbitos. Por exemplo, os
formalistas buscavam compreender a lógica abstrata que atua no interior da construção
poética, se perguntavam sobre a organização estrutural das obras, de maneira que
costumavam trabalhar investigando as estruturas e formas com as quais construíam a
poética de maneira técnica. Os formalistas e outros pensadores de linhas distintas,
inicialmente se centraram em pensar aspectos da literatura, mas posteriormente passam
a trazer essas reflexões para o universo do cinema.
O cinema, naquele momento se configurava como uma forma recente que
precisaria ser pensada, descoberta e praticada em um contexto de construção de um
projeto socialista. Uma série de questionamentos estavam em jogo na medida que
buscava-se investigar os fundamentos dessa nova construção cinematográfica.
A lógica da fábrica se aplicava muito bem ao cinema, tendo em vista o filme como
uma produção material e ideológica, na qual trabalhadores estão envolvidos na sua
fabricação. A ação cinematográfica seria constituída por uma série de processos de
trabalho, uma grande cadeia de montagem. O cinema soviético tem o trabalho como
princípio, tendo em vista que o próprio trabalho intelectual não pode se desvincular da
prática. Tendo em vista a força de trabalho em jogo no próprio ato de fazer um filme, mas
também enquanto forma reguladora da vida social e como parte do projeto socialista.
Ao mesmo tempo o cinema, enquanto estrutura recente, aos poucos se
apresentava também como uma possibilidade de romper com o passado e construir uma
nova arte da idade das máquinas. Isso se dá tanto pela a sua invenção em um contexto
pós revolução industrial, seja pelo próprio pensamento de que ele seria constituído a partir
de um dispositivo maquínico: a câmera.
Dziga Vertov, influenciado pela vanguarda futurista italiana, foi um grande
entusiasta da máquina exaltando-a diretamente, mas também a sua forma simbólica.
Pensando na integração da força de trabalho com a produção mecânica, um homem que
torna-se máquina, diz

Através de la poesía de la máquina, vamos del ciudadano atrasado al hombre


eléctrico perfecto.
Descubriendo el alma de la máquina, haciendo del obrero un enamorado de sua
propia maquina, al campesino su proprio tractor y al maquinista su propia locomotora,
introducimos la alegría creadora en los trabajos, igualamos los hombres a las
maquinas, educamos hombres nuevos.
El hombre nuevo, liberado de la impericia e de la torpeza, que tendrá los
movimientos precisos y ligeros de la maquina será lo noble tema de los films.
(VERTOV, Dziga. Del cine ojo al Radio Ojo https://www.cinemateca.gob.ni/wp-
content/uploads/2021/04/CINE-OJO-II-Vertov.pdf )

Vertov recusa radicalmente as formas burguesas de arte e espetáculo, era


necessário construir uma nova arte revolucionária de vanguarda. Uma arte cuja prática se
implicasse no cotidiano, cuja discussão teórica se aproximasse diretamente da construção
prática.
Ele se nutre a dialética entre o trabalho intelectual e a prática. Ele sai com uma
câmara para a rua e implica-se com seu próprio corpo. Um corpo máquina moderno e
industrial que faz parte da cidade, é atravessado pela modernidade. É um trabalhador
filmando trabalhadores, buscando mostrar a vida desse grupo de novos autores sociais do
qual ele faz parte. Não haveria diferença entre o cinema e a vida, que o cinema se torne
parte do cotidiano, de maneira que se tornam críticos a ideia de representação.
Vertov se associa a ideia de medium, proposta por Bajtin. Médium seria aquilo que
une forma, dispositivo e conteúdo, ou seja a câmera aos significados construídos por ela.
O médium transforma o conjunto em um discurso, o cinema se torna, assim, algo que
constrói materialmente um enunciado social em uma relação de continuidade. Como
afirma Silvestra Marinello “La cámara de Vertov no es ni un instrumento mecánico, ni
figuradamente una persona (un sujeto más potente por ejemplo), ésta es el medium a
través del qual la acción se hace posible” e depois continua “La cine-escritura, la
disposición de las posibilidades de la mirada mecánica, no ilustra ideas, temas: no copia
la realidad, sino que la compone y la organiza”. Para Vertov, os filme que realizava não
eram uma representação ou mímese da realidade, mas faziam parte da realidade em si.

A construção cinematográfica vertoviana se afasta em muitos aspectos daquilo que


é proposto por Griersosn no seu ensaio “First principles of documentary”.
A primeira vista, dois princípios postulados por Grierson podem, aparentemente,
ser localizados em “Um homem com uma cámara”. De certa forma Vertov trabalha com
materiais naturais - parte da vida em si - e atores originais que vivem nessa cena original.
Mas investigando mais profundamente, o distanciamento se dá pelo fato de que Grierson
acredita que deveria ser construída uma interpretação dessa vida e desses atores
naturais pelo ponto de vista de um autor que interpreta a realidade, constrói uma
narrativa, uma leitura que se justapõe a realidade encontrada. A partir dessa construção
feita pelo autor, seria produzido um conhecimento a respeito desse objeto. Ambos esses
aspectos se distanciam profundamente daquilo que foi pensado e realizado por Vertov. Ao
se perguntar a respeito do filme “Berlim - Sinfonia da cidade”, um filme que em muitos
aspectos se aproxima de “Um homem com uma câmera”, Grierson afirma que o filme
efetivamente não constrói um saber ou um discurso - chega a afirmar que o filme não
constrói nada.
Um outro aspecto relevante é que Grierson coloca o documentário enquanto uma
forma de arte, algo que está em total oposição ao pensamento Vertov, que queria se
distanciar da ideia do realizador que possui um conhecimento elevado e superior.
Ao contrapor “Drifters” com “Um homem com uma câmera”, Drifters tem uma
construção narrativa linear, que acompanha um dia de trabalho na vida de pescadores,
sobreposta por cartelas de texto que conduzem a interpretação do espectador diante do
que é visto. Já um “homem com uma câmera” não acompanha um grupo específico de
trabalhadores, mas vários homens e mulheres atuando em diferentes funções e
temporalidades sem que uma narrativa linear seja construída. Vertov chega a aparecer
fisicamente como mais um operário trabalhando no filme, mas não há um discurso verbal
seu que guie o filme.

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