Você está na página 1de 55
‘Modernidade ou globais, de flagrant at jirem de a so europeia que entio Ze pyocessa. Pense-se 0 que se pensar dessa controvérsia sem- pre em aberto, alguns factos séo incontestiveis: ao desenrolar do fio dos anos a carta do globo é desenhada, o homem aprende a situar-se no espaco, 2 sua maneira de sentir ¢ de entender as proprias celagdes humanas é impregn: que pela consciéncia. da mudanga; a pouco © pouco cria-se um critério para distinguir 0 fantastico do real e 0 impossivel do possivel; transformam-se, em complexidade contra- ditéria, motivacées e ideais; a producao e a circulagdo dos bens multiplicam-se, o mer- cado @ escala do mundo torna-se o vector dominante da evolugao econémica, forma-se © Estado buroératico ¢ centralizado de matiz mercantilista. Na realidade, entre o século XLeo Xvil, na sio varias as revolucées intelectuais.¢ de est Quere-se a medida das transformagées? Aproximemos quatro ou cinco mapas- -do-mundo a um século de intervalo de uns para os outros. Até fins do século zh, quer se trate dos mapas em forma de ferradura, como o de Albi do século vin, predominantes na Alta Idade-Média, quer dos mapas ovais, de que podemos apre- sentar como exemplo o do monge Beato de cerca de 776 (conhecido por reprodu- so de cerca de 1050), quer, mais tardios, dos mapas do T dentro do O, nao ha uma sepresentacao da terra mas uma enumeracao geografica combinada com um sistema de convencées simbélicas. Falta qualquer disposicao relativa das terras segundo as direc~ Ses do espaco, isto é, nio ha qualquer preocupasdo de as arrumar segundo ficam a Norte ou a Sul, a Leste ou a Oeste; ndo ha a minima atengéo as distdncias, nem sequer as dimensdes relativas, a0 menos presumidas; aproximam-se terras afastadas, separam-se (erras contiguas. Numa deformaco do mapa-do-mundo de Beato que apa- rece num cédice patisiense do século XI ou XII a India esté a Norte da Libia (por seu turno a Norte da Etipia) ¢ a Oeste da Africa (que tem a Judeia e a Palestina a sul) © € separada por um mare rubrum de Toledo ¢ da Galizal Atente-se na pin- tura de entio: também o tema nao é tratado segundo o espaco da percepgio senso- tial ou da geometria da experiéncia corrente (a euclidiana), mas sim numa disposigéo que obedece @ uma hierarquia de valores ~ 0 transcendente mais importante, logo ‘maior, que © terreno, as personagens do topo da escala social maiores que as inferiores; nao *O BSPAGO Fig. 4—Evolugio da concepeio do espaso terrestre: Mara~ interessa, para a construgao do quadro, a rela- -P°-4UNDO po NoxcE pEATO DE Santr-SevEX Versio de ls - ees cerea de 1050 (existente na Bibliothéque Nationale de Paris) so «estar mais longe» ou «estar mais perto», percepcionar visualmente mais pequeno ou maior, mas 0 conjunto das relagées simbélicas ~a divindade e os homens, 0 rei ¢ os vassalos. Mas do século xt no ocaso ao século xm, Jentamente, insidiosamente criam-se novas ¢on- digdes culturais, a par ¢ passo com o renasci- it GODIN Ho, Vilbuino Moaglhaen ~ On Dendiwmunliss ao. Crndenion Marindicks Liles, Prermmee A I8A- (98. Av. INTRODUGAO mento urbano, a teia de lagos mercantis inter-regionais e mesmo internacionais, 0 grande dilatar das arroteias. Quando se abre a era de Duzentos, na Cristandade, os Ineios que sabem Iatim digfiem de um cabedlal cientifico caldeado das culturas indiana, persa € muculmana que contrasta, e de que maneira, com 0 legado latino-medieval de fantasias e incertezas, de esqueléticos ¢ frus es rudimentos com que até ai tinham vivido, Os seus elementos essenciais afiguram-se-nos ser 0s seguintes: a aritmética ¢ a algebra indiano-mugulmanas, a geometria de Euclides, reencontrada a exigéncia da demonstra- do € 0 sentido da problematica, a astronomia de Ptolomeu com os seus prolongamentos Arabo-judaicos quer astronémicos quer astrolégicos, as tabuas astronémicas muculmano- “judaicas, os vtratados ou livros do astrolabio © outros instrumentos astronémico-geo- métricos, a éptica de Apolénio ¢ de Ptolomeu, a biologia de Aristételes ¢ a medicina de Hipécrates, Galeno e Avicena. Num Saltério iluminado em Paris no segundo quartel do século xm a abertura representa um astrénomo (astrélogé) medindo uma altura com © astrolabio, sentado entre um copista e um calculador: civilizacao da escrita que busca ‘a medida e utiliza a matematica e instrumentos de observacao quantitativa. A revolu- so intelectual esta ai figurada, Entretanto, da China viera a agulha magnética, «indicador do sul», que no Mediterraneo se transforma em verdadeira bissala, e desde 1245 missionarios ¢ mer- cadores exploravam intensamente a Asia. Na confluéncia de todas estas conquistas, entre 1270 e e das distancias est 1300 cria-se o primeiro sistema de projeccao_cartografica,.o dos xumos las, ‘a’ Fépreséntar O espaco da posigdo ¢ da medida (Carta pisana, desse ultimo tergo de Duzentos), aplicando os principios da geometria euclidiana. Veja-se agora o mapa-do-mundo de Petrus Vesconte, de 1320: as tertas esto arrumadas segundo as direccGes dadas pela agulha de marear, ha pro- porcionalidade entre as distancias reais ¢ as representadas, bem como nas dimensdes globais; 0 Mediterraneo aparece assis correctamente tragado, ¢ com ele as zonas adja~ centes, como a Arabia; passou-se do mundo simbélico para o mundo geométrico ¢ das cousas tais como sao. Decerto, A medida que nos afastamos do Mediterraneo a impres~ sio e a incerteza aumentam, sente-se a falta de observacbes efectivas e resvala-se para © tradicional-convencional, se néio fantastico ("). ‘As tentativas de irradiaggo mediterranea para o Oceano, entre 1270 € o meio de ‘Trezentos, fracassam irremediavelmente: quer a de abrir uma rota maritima para as Indias das especiarias;'quer a de uma rota atlantica para 0 ouro sudanés. Mas ao cabe- dal do conhecimento positive do: globo incorpora-se todo o contributo das rotas cara~ vaneicas. Para um balango francamente positivo de todas as viagens e formas de expan- sao de Genoveses, Venezianos ¢ Catalaes bastar-nos-a contémplar 0 Atlas Cataldo de 1375-1380 (2). © conhecimento das Canarias e do arquipélago da Madeira constitui (0), Veja-se 0 nosso estudo final na obra do’ Duarte Leite, Hist. das Descobrimentos, vol. 1. () pode ver-se uma reprodugao total, embora simplifieada, em J. Cortesio, Desoobrimentos Portu- gucses, TT, pp. 292-3 - INTRODUGAO aquisicao sélida, ¢ a costa africana é representada até para além do Bojfidor. Vemos os principais odsis saarianos, escalas das taravanas, e esta figurados 05 némadas cameleiros ¢ 0 rei negro do oisro, O mundo mediterraneo, conquanto ainda’ alongado no sentido da longitude, apresenta-se com muita preciso e minii- cia, Ao encantamento da Africa do ouro corresponde, mais longe, a visio nao menos aliciante da imensa Asia tdrtara até o Cataio e a Zaitun (em face de For mosa), com as trés grandes vias transcontinentais ~ e a marcha compassada da cAfila de camelos; para'o Sul, se a ponta da india nao figura, 14 estéo a Arabia e 0 golfo Pérsico, ‘com’ Ormuz: 0 Extremo-Orieiite, a0 invés," emaranha-se"numa confusio de ithas, entre as quais a Taprobaiia e Java, as maiores, néo correspon- dem a situacdo que seria de prever. Para a Asia, tra- ta-se,'no essencial, da traducdo cartografica do Marco Fig. s—votugto da concepetio do espaco terrestre: Polo, completada por algumas outras déscrigées ou MAP-vo-Munno ps Pemavs Vescons, 1320 (para 0 narrativas ¢ talvez fontes Arabes. Compare-se este planisfério de Abraio Cresques com aqueles de que “navegavel faldmos: temos © caminho percorrido. E no entanto, quanto nao falta ainda percorres! A cartografia genovesa e a maiorquino-catala registam todo um caudal de informacSes positivas sobre a Africa saariano-guineense ¢ a infindavel Asia das fabulosas riquezas; se constelam tal repo- sitério precioso € estimulante em torno de uma representacio quio exacta do mundo mediterraneo, ao sairmos deste os contornos perdem o ajustamento ao real, as distan- cias so mais fantasiadas do que estimadas, as orientacSes confundem-se por vezes — tantas vezes —e o lendario insere-se insensivelmente. O Mediterraneo é 0 eixo do conhecer efective gracas a utensilagem da medida, 0 Paraiso Terreal € 0 polo para onde resvala uma mentalidade que 36 pode conceber cientificamente um espaco deli- mitado de experiéncia econémica ao fio dos anos. Da revolugio do século xine pi mérdios do xiv-inventatiemos. o legado: 0 Jeme axial permite maior firmeza na; condu- io do navio e seracondicao do aumento da tonelagem e da navegacao a bolin: bissola cria a possibilidade de determinar o rumo de dia.e de noite, e de rumar as cartas; a carta de marear representa a primeira construgio do espaco na ordem ope- ratéria; nas escolas de mercadores e na preparacio dos «fisicos» dispée-se do alga- rismo para o célculo, das regras aritméticas, da geometria euclidiana, do astrolabio edo quadrante’e das tabuas astronémicas. Simplesmente, se a representacio do Mar Interior € de nautas, a dos continentes é de~caravaneiros. Sera. bem devagar, no decurso que de cerca de 1440 se prolongara’ até meados de Quinhentos, que das amuradas de bordo'e pelas observacées recolhidas pelos desembarcados iro sendo 18 Liver Secretorum Fidolisim Crucis de Marino Sanuda). O Indico mar aberto, a Africa elreum- INTRODUGAO tragados os contornos dos continentes. A. concepgio tradicional persistira até bas- tante tarde. is < Consideremos a époda em que os descobrimentos’ portugueses. arrancam ¢ as caravelas se aproximam da Serra Leoa. Em certos mefos, nem sequer ainda se notam ‘os efeitos da revolugio que o planisfério de Vesconte, de 1320, traduzia. Assim, no mapa-do-mundo anénimo de cerca de 1410 ‘dito Vaticano-Borgiano, a exuberancia ilustrativa e descritiva (esta por palavras) faz ressaltar ainda mais a auséncia de arrumacio e configuracéo segundo maneiras de operar que tentem transpor a medida, a posigio e a forma: falta mesmo o «eixo cientificor que ¢ 0 Mediterraneo das cartas de marear (3). Noutros casos, a estrutura fundamental é a mesma do planisfério de Vesconte de mais de.um século anterior ~ € que progresso em relagdo a tradicional como € a do Vaticeno-Borgiano! Seja o mapa-do-mundo de Andrea Bianco: de 1436 (*) ou o de Leardus de 1448 (*), seja até o de Fra Mauro de 1457-9 (*), ow aquele, tio belo nas suas cores, genovés anénimo de cerca de 1457. O alicerce cienti- fico continua a ser a carta de marear do Mar Interior, ha uma representacdo que pode- remos considerar adequada da Europa, do Norte de Africa, do Levante'e das regides do mar Negro e do mar Caspio, e também do mar Roxo e Arabia (pelo menos. nal- guns desses mapas) e até & Mesopotamia. O litoral do Noroeste africano comega a ser referenciado pelos métodos ja comprovados no Mediterraneo, Mas em todos eles a-configuracdo do continente afsicano para Sul do cabo Verde e do Bab el-Mandeb € puramente convencional, ¢ vé-se clarissimamente que os contornos do indico nao beneficiaram da mesma pritica de navegacao pelos rumos da agulha e pelo cartear gue era jé cotrente no Mediterraneo. Em nenhum aparece a peninsula da india, nem a da Indochina e Malaca; em todos 0 golfo Pérsico ¢ excessivamente aberto ¢ mal ramado; em alguns a Escandinavia estende-se tanto para Ocidente que encima as ilhas Britanicas — por exemplo, no de Leardus. Tal estrutura fundamental, ainda a vamos encontrar em 1493 no mapa-do-mundo que Hartmann Schedel insere na sta Crénica de Nuremberg. Discronias de meios culturais, por uma parte: sem ditvida; mas algo de mais enraizado ¢ generalizado, igualmente. O mapa de Henricus Martellus de 1489 (*), mostra-nos bem a contribuigéo de meio século de navegagées oceanicas portuguesas: € todo 0 contorno ocidental do con- tinente africano tracado pelos métodos a qué chamamos mediterraneos. Assim, além do «eixo de representasio'cientifica» do Mediterraneo, que & segundo 0 paralelo, ha (©) Pods verse no Atias do Visconds de Santarém (1849), {2 22; na Hist, da exp. port, 1, p. 216: em Damo Peres, Hist. dos Dose., est. XVI (6) Atlas do V. de Santarém, £. 38; Damio Peres, est. XV. () Atlas do V. de Santarém, £50; Hist, de Portugal, de Barcelos, 1, p. 376. () “Atay elt, ff 45 a 80; na Sociedade de Geografia de Lisboa, a éores, em tamanho natural; redu~ ‘40 simplificada em Duarté Leite, 1, pp. 336-7 C) Atlas city { 51; Luciano Cordeiro, Obras, , pp. 101-5; Hist. de Port, 11, p, S61; DamtSo Paves, est. LVK; J. Cortesio, 7, pp. 5125 4 Fig. 6 — Evolugio da concepslo do espace terrestre: MAPA-Do-MUNDO DE Hisinicus MARTETUS, DE Conca DE 1489 (reproducio simpliicada) agora outro «eixo de representacio cientifica> que € segundo o meridiano, conquanto enfermando de distorcao em longitude. Mas o Oriente continua basilarmente dentro do mesmo esquema de visio continental-terrestre, embora se recorte a peninsula indo-chi- nesa (a Aurea Chersoneso); para além, da massa da China alonga-se até sul daquela peninsula uma outra ainda maior ¢ que engloba a antiga Taprobana (Samatra); con- tinua a nao se destacar a massa peninsular indiana, e junto a India a ver-se a ilha de Ceilao (aqui denominada Taprobana); a Africa oriental esta francamente incorrecta. Em todas as representagées do globo até fins de Quatrocentos, 0 Oceano cir- cunda ©s continentes € 0. centro situa-se sempre em Jerusalém ou pelo menos.no-Pxs- ximo Orienté: 20s mapas do. T dentro do.O. sucedem os planisférios em.que predo- mina um eixo longitudinal, maccado pelo Mediterréneo a Poente e pela de Plinio, Estrabio, Pomponio Mela, Solino, S.° Isidoro, ete. (cap. XXII). Em 1514, Giovanni da Empoli acreditava que as Antilhas do rei de Cas- tela ea Terra de Corte Real estéo unidas a Malaca, e por mais de trés lustros os Espanh6is continuaréo a buscar uma passagem para Cipango eo Cataio ou mesmo para Malaca ~ a Aurea Quersoneso ~ entre a América do Sul, integrada no ptolo- maico continente austral que o golféo separa da Asia, e a Florida, ou entre esta ea Terra dos Bacalhaus. Discronia ¢ disparidade de meios culturais: os centros do interior da Europa, s6 com atraso conhecem_as stcessivas transformagdes na representacao do globo, porque ‘icias e mais impregnados de erudigdo livrésca do que s_dos_navios, Mas se hi que contrapor o sabio de gabi- note hha também diferencas de formagéo que levam a diferencas de visio entre os méios lisboeta e sevilhano, por exemplo. Em_Portugal. desde a alvo- Américas € “da pilot € mareante, ‘sua séparacéo da India asiatica, como nota, desta concepsao, atestada desde 1501 e que €a d ficagdo do mapa de Juan de la Cosa (como mostrou Duarte Leite), posteriormente & sua feitura em 1500. Mas nao exageremos 0 alcance deste contraste de concepgdes, nem apressemos a definigdo cientifica do orbe pelos. Portugueses. O planisfério de Lopo Homem, de 1519, redine as'Américas numa Gnica terra firme e traca acertadamente Atlantico e Indico; ‘mas o Extremo-Oriente desce'a prolongar-se no continente austral, ‘que por outro lado entronca no Brasil ('). Dez anos depois, a carta universal de Diogo Ribeiro integra a perspectiva do” Oceano Pacifico, embora sem contornar adequada- © Atlas cit, £. 53, no Le 2 (2) dem, £54, m2 1 a (:)_ Pode verse em PAC, vol: I, ou em Tabularum Geopraphicirum Lusitatorum; ow em J. Cortesio, vol. 1 pp. 310-1; ou na Hist. exp. port., , v. 233. 18 t ‘ i i hi \ i }| “(use 8 gue *€d onue) ztpr “ese “PE ST 9 Tyueney wimndeg op spunI wmsjoOUL @ “ecg ® cee “ee oma) cer ‘onan oda ep roRen sun vpsng ‘(rte © OTe “Ad anus) erat ‘womoxt oder ep cupfownra "(oo © Foe *8d ex mans aio "ese ® 6g “ee “fo 20 ap g Toa our o108uy oyunfeoD 0 w09 sissou s2 oS-uiojuosyuco "O179} Up O¥ soofesh 8p OpsLA wite rejelduoo wxeg “sun op gr “Sd sv asubfen Tamooa 9p UK wuoy 3p Oya WU ‘OST 'HOSANY NVHOE 3a OGNAN- ~oa-vevEN 181j80818} OSeds0 op oRSdeoU0D EP optnjoas INTRODUGAO mente a América do Norte por esse lado € sem explicitar 0 extremo nordeste da Asi mas todo espaco atlantico e'6espaco indico » esto configurados de forma cientilica, Sama- tsa, correctamente localizada (*). _O conjunto das terras,¢.dos mares s6 sera representado com a maxima.adequagio. r Wier completar 0 da latitude, Mas a primeira revolucio de raiz foi a que levou a passar do espaco simbélico ao espago da percepsio. visual (perspectiva na pintura) e da opera- toriedade euclidiana, com base na medida, na posigéo ¢ na forma; cartograficamente ¢ nauticamente, € a carta por'rumos e distin- cias estimadas, supondo, e condicionando © emprego da biissola e do leme de charneira. Ao mais antigo autor portugués de um tra- tado de construgao naval, Fernando Oliveira, : : Woy. g pean an momyuie tn eect ima invengdo do leme axial: no seu Livro da A rota de Magalhies—mas as Amfsions ainda ligadgs 8 Asia Fabrica das Naus, pouco depois de 1557, descreve © sistema greco-romano de remo lateral A ré e dat deduz a fraca tonelagem dos navios antigos; sublinha. as possibilidades de manobra que abre a instalacao do governalho e da barra e com ela relaciona a navegagdo ocednica (pp. 183-4, 192 & sobretudo 214-221 da ed. H. Lopes de Mendonca). As duas iltimas décadas de Qua- trocentos contribuem.com-a invengao da néutica astronémica: a navegacso por alturas, isto é, medindo a bordo e em terra as alturas das estrelas ¢ do sol para calcular a lati- tude; passarse deste modo a uma forma mais rigorosa de representacao do espaco do globo terrestre, a escala-de_latitudes corrigindo © precisando a estima das distancias € © rumar pela agulha.(*). ~""O -homem vem assim a situar-se no espaco, porque inventa os instrumentos paray; nele operar, grasas aos quiais o reconstréi pela referenciagao de posicSes, medida des: distancia, determinagdo de formas, isto é, configuracSes, proporcio de dimensbest"> 6 0 espago mitico, construido pela Funcao simbolizadora, qué sé’ désagrega, para ceder ‘0 lugar a0 espaco da‘fungio do real, como diria 0 psicélogo Pierre Janet. Do mesmo 4) Pode verse oni J. Cortesto, HL, pp. 3223. 2) Sabre as fases qua-conduziram de uma a outra rovolugio, permltase-nos remeter para 0 nosso ‘estudo final em Duarte Leite, ob. elt, TI, pp. 455-912. 19 INTRODUGAO asso a perspectiva terrenha cede ante a perspectiva oceanica, ¢ 0 ambito, de local regional, alarga-se em planetario. ie Com muito penetracio;"Anfonio José Saraiva chamou a atengdo para uma pas- sagem de Jodo de Barros, decerto efabulacio literéria mas que da perfeitamente essa vertigem nova do mundo espantosamente dilatado. Quando 0 Conselho se retine para decidir se ha que prosseguir ot néo a expanso, apés 0 regresso de Cabral, «E ainda a muitos, vendo sdmente na catta de marear uma tio grande costa de terra pintada € tantas voltas de rumos que parecia rodearem as nossas naus duas vezes 0 Mundo sabido, por entrar no caminho de outro novo que queriamos descobrir, fazia neles esta pintura uma tio espantosa imaginacao que Ihes assombrava 0 juizo». Como Hércules, na pintura, sustenta 0 mundo sobre os ombros, poderia 0 pequeno pats sustentar sobre os seus ij de modo que «fi j& tudo’ descoberto, - © mui longe nos € perto.> Na crénica rimada dos acontecimentos mundiais que Garcia de Résende com- poe cerca dé 1534, inspirando-se na «Recollection des merveilles advenues en nostre temps» de Georges Chastelain e Jean Molinet (como mostrou A, J. Saraiva), 6 a todos os recantos’ do globo que 0 poeta (nao esquecamos que é © autor ‘das trovas & morte de D. Inés) vai-respigar os temas: os Reis Catélicos, a: revolta “das comti-: nidades. e%0-levantamento dos: mouros de Valencia, 0 saque de‘Roma, 0 imperialismo otomano, com;. por exemplo; a: tomada de Rodes, mas também o Preste: Jofo, a ruina do Egipto-e Veneza provocada pela expansio portuguesa no Indico, a conversio de Manicongo, os amoks malaios, os costumes sexuais no Malabar, no Pegu, em Cam- baia € noutras regides, 0 ferro como moeda entre os Cafres do cabo de Boa Esperanca, © que se passa em Ceilo, no Sido, em Coromandel, em Amboino, em Samatra, na Celebes, 0 sacrificio ritual das vitivas na-India bem como as priticas comerciais, 0 Sofi da Pérsia, 0 Estado de Narsinga, a tomada de Bintao; discute 0 bramanismo ¢ 0 luteranismo, refere a antropofagia no Brasil. & muito possivel que Resende fosse beber ao Livro de Duarte Barbosa; € indubitavel que se situa numa visio ecuménica, e que por detrés da'sua rima esta todo o cabedal dessas geografias humanas e econémicas desde a Africa negra e 0 mar Roxo até os Chins e os Léquios, como a Suma de Tomé Pires (1513-1515) e o Duarte Barbosa, as descrigées africanas como as que Valen- tim Fernandes compilou. Porque, se a cartografia, registando as navegacées ocednicas, constréi 0 espaco terrestre segundo um esquema cientifico, a multimoda experiéncia do mercador vai construindo o espaco'social e cultural dos homens, to variegado, segundo uma observaco que no € menos realista: produgées, vias de trafego, pesos e medi- das, pregos ¢ moedas, formas de escambo ou compra’e venda, ritos e costumes, cren- as e hierarquias’sociais.-Assim Jodo de Barros, feitor da Casa da india, habituado a-debrugar-se demoradamente: sobre os novos» planisférios. € essas novas sumas_geo- graficas, concebe, pela primeira vez provavelmente, uma, ‘viséo planetéria da’ histé- ria ("°): pois 6 seu grandioso plano desdobra-se em Buropa, Africa, Asia eTéxra de “Santa Cruz — os. quatro. continentes. entio.conhecidos, Anteriormente, tio s6 crénicas locais ou -regionais, quando muito nacionais, Percorra-se a Crénica gecal de 1344-(): inicia-se ‘no. dilivio e Noé, passa-se a Hercules mas porque: veio para a Peninsula, 0 A.J. Saraiva, Pare a ist, da cultura em Port, vol. 1h, pp. 329-355. (1) Ba critica por Lindley Cintra, Lisbos, 1954. 2 > TEMPO INTRODUGAO a_narrativa, mitico-hist6rica,-prossegue dentro do quadro peninsular. As Crénicas de Hartman Schedel, «com figurase imagens desde o inicio-do mundo até 0 anode 1492», orporam as mitologias lyblica ¢ classica ea historia antiga, mas a sua visio-é-essen- Gialmenté eucopeia, limitada, Na realidade, © proprio Barros no chegou a realizar 0 seu plano, © se varios éronistas portugueses € espanhdis sao levados a enfeixar acon- tecimentos que se desenrolam do Brasil as Molucas ou de Sevilha as Filipinas, a ambi¢o de abarcar. todo 0 orbe num panorama ‘nico levaria bem mais tempo a afir- mar-se do que a de o representar num planisfério. Em todo o caso, o ambit toria _deixa de ser restritamente__mediterrdneo_¢_ europe. ~“Parspectiva A escala do globo, agora, a do mercador. Um veneziano do século xv pensa na situagdo. dos mercados de Alexandria e Beirute, de Flandres e Londres; 0 genovés Malfante, ,embora consiga. estancear’no oasis saariano do Tuate, sé vagas informagées colhe.sobre 0 Sudo do ouro. Mas em Quinhentos a Casa da Indiaytem de atender & compra da seda e da porcelana chinesas em Malaca,.depois na. propria China, bem como. da pimenta emSamatra, @ da prata no, Japao, ao. caregamento de pau brasil nos portos de Santa Cruz, aos metais que do México.e Peru chegam a Sevilha, a procura dos produtos orientais ou do acacar insular e brasileiro nas. esca- pulas de Antuérpia, Nuremberg e Veneza; tem que supesar a equivaléncia do ouro na ‘Mina em roupa velha e manufacturas de cobre alemis, a relacao do custo,de. obten- do do escravo na Guing com o preco de escoamento nas Antilhas. A administrago do Estado enfrenta problema andlogo. Em 1512 Afonso de Albuquerque escreve a D. Manuel: colhe bem Vossa Alteza 0 que assina pera a india, que é mui longe> (Cartas, I, p. 69), e D. Joao de Castro, em 1546, parece fazer-Ihe eco: «primeiro que hajamos resposta de nossas cartas e Vosca Alteza queira secorrer a nossas necessi dades, da o sol muitas voltas, e quer acabar de fazer duas inteiras revolugées>. (Car- fas, n° XLII). A distancia-tempo condicionava uma forma de organizacéo comercial com armazenagem e empate a loiigo ptazo, porquanto, dizia ainda Albuquerque, (citado, pp. 97-8). Distncia-tempo no transporte das mercadorias ou no Gavio"de armas ¢ homens, na iransmissdo de noticias ¢ de ordens, tanta vez ritmada pelos imperativos fisicos das mongées de navegacio ou das épocas favoraveis- d vessia ‘dos desertos,, sempre determinada pela velocidade dos meios de transporte & comunicagio, Parava.{ndia as, naus do reino tém’de desaferrar de Lisboa em -Maico ou primeiras semanas de Abril, pata la chegarem,em Setembro; -de- Cochim-¢.Goa, levantam ancora.em Dezembro, para ancorarem no Tejo-da segunda-quinzena. de Junho até a primeira de Setembro. A viagem dura geralmente de cinco a.seis meses. e.meio. Asvilhas de Cabo Verde estio a umas duas semanas de Lisboa,. Sao Jorge da Mina a uns quarenta a cinquenta dias de navegacao. Entre a capital portuguesa e La Rochelle gastam-se sete a oito dias, até o porto de Antuérpia ou a Amsterdao uns doze a guinze; mas os navios que vém carregai sal a Setibal contam com um'més de’ viagem; entre o Tejo ¢, Livorno ha que contar com umas trés semanas. .Mas o. temporal pode 2 INTRODUGAO duplicar facilmente a duragao’ de uma navegacio, ¢ nao é raro escassearem as pro- prias noticias: Os jesuijas de Malaca queixam-se, em 1559, de estarem ha dois anos sem noticias"de*Maluco, por ndo ter vindo a nau que todos os anos costumava vir: € ja em 1551 da mesma falta se tinham queixado, Informacées particularmente impor~ tantes podem ser transmitidas prontamente: quando Albuquerque assaltou Adem, em quinze dias chegou anova ao Cairo, por dromedarios a marchas forcadas (Barros, Déc. I, Liv. VIII, cap. 3). Nao sao s6 as necessidades militares que impéem a rapi- dez; a vida econémica ést4 sensibilizada ao prazo curto e & antecipagéo, Considere-se a exportacao de opio para o Pegu: pela via terrestre de Bengala funciona um correio que traz a Sio Tomé de Meliapor, na costa de Coromandel, as cotacées do anfido naquela escapula (ou mercado de escodmento), a fim de se regularem os carregamen- tos das naus que ‘para 14 vao partir (Cesare de Fedriei, apud Ramusio, III, 396v). Para avisar da subida ou’ descida dos precos das especiarias, 08 mercadores servem-se; entre Ormuz e Bassorah.e entre este porto ¢ Bagdade, de pombos correios que nu dia ligam 0 primeiro empério aquela escala, ¢ noutro dia esta a éltima cidade (Bali, f, 37), O estabelecimento’ de um correio antial pela via do Levante, entre a fadia ¢ Portugal, sera de importancia consideravel na vida do impétio quinhentista. Necessi- dade constante de estar de atalaia para aproveitar as oportunidades, nio ser suxpreen- dido pelo’ adversario, mais rapido. Preocupacdo pelos prazos: Gregério Afonso, criado do bispo de Bvora, amaldicoando as transformagSes do seu tempo, 1a exclama: «Renego de quem em trés pagas paga o que deve.» Eram as trés prestagées das letras de cambio —e com que ansiedade os védores da fazenda ¢ feitores régios nao acompanham as noticias das feiras de Medina e da bolsa de Emves (Antuéspia)! No «Auto da Feica», Merctrio, , vindos, 20 que parece, de Inglaterra: por eles

Você também pode gostar