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NOVA

HISTÓRIA
MILITAR
BRASILEIRA
ISBN 978-85-225-1334-5

Copyright © Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay

Direitos desta edição reservados à


EDITORA FGV
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publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no
5.988).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos


autores.

1a edição — 2004

Revisão de originais: Luiz Alberto Monjardim

Revisão: Fatima Caroni e Mauro Pinto de Faria

Capa: aspecto:design

Ilustração de capa: gravura de Johann Moritz Rugendas retratando desfile


militar defronte ao Palácio de São Cristóvão (atual Quinta da Boa Vista), Rio
de Janeiro, RJ, entre 1821 e 1825 (publicada em Viagem pitoresca através
do Brasil).
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca
Mario Henrique Simonsen/FGV

Nova história militar brasileira / Organizadores: Celso


Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay. — Rio de
Janeiro : Editora FGV, 2004.
460p.

Co-edição: Bom Texto

Inclui bibliografia.
1. Brasil — História militar. 2. Brasil — Forças
Armadas — História. I. Castro, Celso II. Izecksohn,
Vitor. III. Kraay, Hendrik. IV. Fundação Getulio Vargas.
V. Título.

CDD — 355.00981
Sumário

Prefácio

Introdução
Da história militar à “nova” história militar
Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hendrik Kraay

Capítulo 1
A arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratégia militares na expansão
da fronteira da América portuguesa (1550-1700)
Pedro Puntoni

Capítulo 2
A guerra e o pacto: a política de intensa mobilização militar nas Minas
Gerais
Christiane Figueiredo Pagano de Mello

Capítulo 3
“Esses miseráveis delinqüentes”: desertores no Grão-Pará setecentista
Shirley Maria Silva Nogueira

Capítulo 4
Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento militar no Brasil nos
séculos XVIII e XIX
Fábio Faria Mendes

Capítulo 5
A presiganga e as punições da Marinha (1808-31)
Paloma Siqueira Fonseca

Capítulo 6
A serviço de Sua Majestade: a tradição militar portuguesa na composição
do generalato brasileiro (1837-50)
Adriana Barreto de Souza

Capítulo 7
Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai
Vitor Izecksohn

Capítulo 8
A ocupação político-militar brasileira do Paraguai (1869-76)
Francisco Fernando Monteoliva Doratioto

Capítulo 9
O cotidiano dos soldados na guarnição da Bahia (1850-89)
Hendrik Kraay

Capítulo 10
Ser homem pobre, livre e honrado: a sodomia e os praças nas Forças
Armadas brasileiras (1860-1930)
Peter M. Beattie

Capítulo 11
Revoltas de soldados contra a República
Celso Castro

Capítulo 12
Entre o convés e as ruas: vida de marinheiro e trabalho na Marinha de
Guerra (1870-1910)
Álvaro Pereira do Nascimento

Capítulo 13
Neve, fogo e montanhas: a experiência brasileira de combate na Itália
(1944/45)
Cesar Campiani Maximiano

Capítulo 14
Os veteranos da FEB e a sociedade brasileira
Francisco César Alves Ferraz
Capítulo 15
A profissionalização da violência extralegal das Forças Armadas no Brasil
(1945-64)
Shawn C. Smallman

Capítulo 16
Poder Judiciário e poder militar (1964-69)
Renato Lemos

Capítulo 17
Mulheres, homossexuais e Forças Armadas no Brasil
Maria Celina D’Araujo
Prefácio

Neste ano de 2004, quando se completaram 40 anos do golpe


de 1964, este livro nos lembra que as instituições militares tiveram
um papel bem amplo na sociedade brasileira. Está aqui reunido o
resultado de pesquisas recentes sobre a história da instituição
militar no Brasil. Seu objetivo é divulgar novas perspectivas da
pesquisa histórica sobre o tema. Fruto de amplos debates entre uma
nova geração de historiadores, ele apresenta uma amostra do que é
chamado de “nova história militar” nos meios acadêmicos norte-
americanos.
O período cronológico coberto no livro abrange praticamente
toda a história do Brasil. Embora a cronologia tenha sido respeitada
para a ordenação dos capítulos, não pretendemos fazer uma leitura
linear de nosso problema central, nem um inventário completo da
questão. Há zonas de concentração, tanto do ponto de vista
cronológico quanto, principalmente, temático. Os autores aqui
reunidos apresentam trajetórias acadêmicas e perspectivas
analíticas distintas. Estão em fases diferentes de suas carreiras e
possuem inserção em diferentes áreas das ciências humanas. Há
brasileiros e brasilianistas. Seus textos, entretanto, têm em comum
a característica de serem resultado de pesquisa histórica original,
muitas vezes com o recurso a fontes documentais inéditas ou pouco
exploradas.
Coordenar os trabalhos de 17 autores espalhados do norte ao
sul do Brasil e no exterior (Canadá e Estados Unidos) foi uma tarefa
complicada, e agradecemos a paciência de nossos colegas e de
nossas mulheres — Karina Kuschnir, Arminda Campos e Judith
Clark — com nossas demoras e ausências. Agradecemos também a
Marisa Schincariol de Mello e a Verônica Tomsic pela assistência na
revisão dos capítulos, e a Maria Ângela Leal, bibliotecária da
Oliveira Lima Library (Catholic University of America) pela
assistência bibliográfica.
INTRODUÇÃO

Da história militar à “nova” história militar

Celso Castro*
Vitor Izecksohn**
Hendrik Kraay***

Em artigo intitulado “Como se deve escrever a história do


Brasil”, publicado em 1845 pela então recém-criada Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Karl Friedrich Philip von
Martius concluiu sua longa lista de tópicos que mereceriam a
atenção do instituto afirmando:

Enfim, pertence também a vida militar em Portugal aos assuntos


de um perfeito quadro histórico. Qual a maneira e modo
empregados no recrutamento, instrução, comando e serviço do
Exército, os princípios estratégicos, segundo os quais se devia
proceder no Brasil, um país tão diferente da Europa?1

Para o historiador bávaro, mais conhecido pela narrativa de suas


viagens através do Brasil com Johann Baptist von Spix no final dos
anos 1810,2 a história militar brasileira ainda constituía um
subcampo da “vida militar” portuguesa. Mesmo assim, ele
reconhecia que a cultura militar portuguesa não poderia ser
simplesmente transferida para o Brasil sem modificações: as
instituições militares européias e suas práticas sofreram mudanças
profundas no Novo Mundo. De fato, Martius ensaiava um
alargamento da história militar que cobrisse um espectro mais amplo
das relações envolvendo as Forças Armadas e a sociedade.
Este é o tema central deste livro, que apresenta os resultados de
pesquisas recentes sobre as Forças Armadas no Brasil. Seu foco
não é aquilo que geralmente se entende por “história militar” — o
estudo das batalhas, táticas e principais figuras militares. Pelo
contrário, concentra-se naquilo que na América inglesa foi
denominado, já há algum tempo, “a nova história militar” — mas que
hoje dificilmente poderia ser considerada nova. De fato, já em 1912,
o coronel e ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt,
à época exercendo a presidência da American Historical
Association, declarara: “não creio ser possível tratar a história militar
como alguma coisa separada da história nacional mais geral”.3
Os colaboradores deste livro entendem que os militares
brasileiros não se encontram isolados da sociedade abrangente,
embora possam guardar uma relativa autonomia em alguns
aspectos e épocas específicas. Seria difícil, portanto, tratar a história
militar como algo inerentemente distinto da história mais ampla da
sociedade de onde soldados e oficiais são recrutados. Os capítulos
aqui apresentados relacionam a preparação para a guerra às
características da economia, da política e da cultura onde esses
oficiais e soldados estavam imersos. Não se pretende reduzir a
compreensão da instituição militar a fenômenos sociais de outra
ordem, que a determinariam, e sim prestar grande atenção à
interação entre Forças Armadas e sociedade.
Essas pesquisas estudam a origem social, os vínculos de
sociabilidade, as operações formais e informais das hierarquias, os
sistemas de progressão e punição operantes nos quartéis e
destacamentos espalhados pelo país. Estudam também as ocasiões
em que as Forças Armadas entraram em combate: as poucas
guerras externas, a participação no processo de unificação
territorial, a formação dos oficiais e os episódios de violência
coletiva, especialmente as revoltas. Finalmente, se debruçam sobre
questões de gênero, incluindo a identidade masculina, o
homossexualismo e a participação de mulheres nos contingentes.
Esta introdução faz uma retrospectiva do desenvolvimento da
história militar brasileira, das suas origens no século XIX aos dias
atuais. Não pretendemos fazer um levantamento exaustivo, mas
apenas enfatizar as principais tendências do campo, relacionando-
as ao desenvolvimento da escrita da história brasileira.
Durante a maior parte do século XIX, a história militar foi
freqüentemente associada a outros campos da história e mesmo da
literatura. Seria difícil dissociá-la desses gêneros para considerá-la
um campo próprio. O que é atualmente visto como a história militar
tradicional — os estudos minuciosamente documentados das
instituições, guerras, campanhas, batalhas e táticas — apareceu
pela primeira vez no Brasil nos anos 1890, alcançando seu apogeu
na primeira metade do século XX. Esse era, na maioria das vezes, o
território de historiadores militares e, ocasionalmente, de
admiradores civis.
A história militar acadêmica tem tido uma trajetória difícil no
Brasil. A expansão das universidades e o fortalecimento da história
como profissão (a partir da segunda metade do século XX)
coincidiram com a intensificação do envolvimento militar na política
e, acima de tudo, com o regime militar de 1964-85, que
desencorajou a pesquisa acadêmica sobre as Forças Armadas. A
academia dedicou pouca atenção à história militar para além do
estudo do envolvimento militar na política — ponto problemático
num regime autoritário.

Um breve levantamento da história militar no Brasil


No momento em que Martius clamava pela incorporação dos
assuntos militares à história do Brasil, os primeiros estudos no
campo já estavam aparecendo. Memórias pessoais e trabalhos de
viés literário dominaram a história militar brasileira durante o século
XIX.4 Ladislau dos Santos Titara, um oficial baiano com aspirações
a poeta, publicou entre 1835 e 1837 um poema épico em dois
volumes sobre a guerra de independência na Bahia.
Cuidadosamente anotado para realçar os feitos de seus camaradas
patriotas, esse trabalho constitui uma história detalhada da
campanha travada em 1822/23 para expelir as tropas portuguesas
de Salvador. Alguns anos mais tarde, Titara foi transferido para o
Rio Grande do Sul, onde prestou serviços contra a revolta
farroupilha e participou da campanha internacional contra Juan
Manuel de Rosas (1851/52). Após abandonar a poesia, ele publicou
uma história dessa campanha, enaltecendo os feitos de seus
compatriotas.5
Vários participantes da Guerra do Paraguai — o mais longo e
sangrento conflito enfrentado pelo Brasil — publicaram memórias
que são ainda fontes inestimáveis. O visconde de Taunay
imortalizou a malsucedida expedição a Mato Grosso em A retirada
da Laguna (um clássico literário primeiramente publicado em Paris
em 1873), mas exigiu que as suas memórias (escritas nos anos
1890) só fossem publicadas depois que tivessem passado 50 anos.6
As Reminiscências da Guerra do Paraguai, de Dionísio Cerqueira,
escritas 30 anos após o final da campanha, permanecem como um
testemunho pungente sobre as experiências de guerra de um jovem
oficial.7 De forma semelhante, o testemunho de Euclides da Cunha
sobre a destruição de Canudos, Os sertões, é uma combinação de
história de campanha, memória, estudo geográfico e texto literário.8
Numerosos estrangeiros que atuaram como observadores da
Guerra do Paraguai fizeram contribuições significativas à história
militar do Brasil, as quais, no caso de George Thompson e Max von
Versen, ensejaram um vivo debate.9 Somente alguns estudos,
realizados antes de 1890, anteciparam a história militar posterior,
notavelmente a história das guerras holandesas, de Francisco
Adolfo Varnhagen, e os comentários ao trabalho de Louis Schneider
sobre a Guerra do Paraguai, produzidos pelo futuro barão do Rio
Branco, bem como sua biografia do general José de Abreu.10
Foi somente a partir da década de 1890 que emergiu um gênero
identificável de história militar brasileira, coincidindo com o
crescimento e o fortalecimento institucionais do Exército. Entre
esses escritores predominavam militares que, por gerações,
receberam apoio institucional do Exército. Em 1892, o coronel
Emílio C. Jourdan foi comissionado para escrever uma nova história
da Guerra do Paraguai.11 Naquela mesma década, José Bernardino
Bormann iniciou sua carreira como historiador militar. Na primeira
metade do século XX, vários outros oficiais construíram suas
reputações como historiadores: Emílio Fernandes de Souza Docca,
Augusto Tasso Fragoso e Francisco de Paula Cidade. Eles
produziram um fluxo constante de histórias de campanhas,
freqüentemente bem-documentadas, ainda que muitas vezes
abordadas de forma estreita.12
Uma fascinação com os aspectos românticos e patrióticos da
história militar permeou alguns setores da sociedade brasileira
durante as décadas de 1910 e 1920. Gustavo Barroso, a quem o
Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro deve a sua enorme
coleção de militaria, publicou uma série de histórias anedóticas das
campanhas militares, além de uma História militar do Brasil,13 assim
colaborando também para a ressurreição de antigas tradições
militares. A biografia foi um dos gêneros literários favoritos, mas ela
tendeu a concentrar-se num pequeno número de “patronos”, Caxias
e Osório aí aparecendo como as personalidades favoritas. Uma
pesquisadora contou não menos de 55 biografias de Caxias, a
maioria delas compilações, em vez de trabalhos originais.14 Umas
poucas biografias de militares produzidas no início do século XX
permanecem como fontes úteis, menos por suas interpretações do
que pela inclusão de fontes primárias pelos autores.15
Através de sua editora, a Biblioteca Militar (atualmente Biblioteca
do Exército Editora ou Bibliex), fundada em 1937, o Exército
assumiu diretamente a missão de publicar os autores de seu
interesse. De acordo com os cálculos de um historiador, já por volta
de 1959 a Biblioteca Militar havia distribuído mais de 2 milhões de
exemplares dos seus livros.16 No entanto, como observou outro
historiador, “o auxílio e incentivo não têm sido infelizmente
correspondidos, salvo raras exceções”.17 A Bibliex continua a
publicar uma mistura de história militar tradicional (tanto novos
trabalhos quanto reedições de estudos mais antigos) e traduções de
trabalhos estrangeiros sobre a história militar.18 Até o final do século
XX, historiadores como Paulo de Queiroz Duarte e Cláudio Moreira
Bento continuaram o trabalho de gerações de historiadores militares
do passado.19 Diferentemente dos Estados Unidos e de outros
países, aqui o Exército nunca publicou histórias oficiais, como
aquelas produzidas pelo Center for Military History em Washington,
cuja “missão essencial […] é escrever a história oficial do Exército
dos Estados Unidos […] um relato amplo das atividades do Exército
na guerra e na paz e […] uma importante ferramenta para o
treinamento de oficiais e suboficiais na profissão das armas”.20
O envolvimento do Exército na política, desde o tenentismo dos
anos 1920 até os anos 1950, possibilitou outra onda de memórias,21
assim como a participação do Brasil na II Guerra Mundial.
Criado em 1973, o Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getulio
Vargas, vem coletando arquivos e depoimentos de oficiais
envolvidos nos principais eventos políticos e militares do século XX,
impedindo assim que essas valiosas fontes venham a correr algum
risco. Da geração dos “tenentes” das décadas de 1920 e 1930
devem-se destacar as entrevistas realizadas com Cordeiro de
Farias, Juracy Magalhães, Ernani do Amaral Peixoto e Edmundo de
Macedo Soares.22
Apesar desse esforço, poucos diários de militares foram
publicados no Brasil, exceção feita ao trabalho de Paulo Staudt
Moreira, no Rio Grande do Sul, com o diário do coronel Manoel
Lucas de Oliveira.23 De fato, mesmo os diários da Guerra do
Paraguai foram esquecidos pelos historiadores. Trata-se de uma
omissão que contrasta com o enorme sucesso desse gênero nos
Estados Unidos.
Em 1959, Francisco de Paula Cidade, então um dos mais
destacados historiadores militares, sintetizou três séculos de
“literatura militar brasileira” num livro endereçado aos estudantes da
história militar.24 Diferentemente da maioria de seus
contemporâneos, Cidade prestou alguma atenção à história social,
ainda que minimizasse a importância de seu interessante estudo
sobre os soldados rasos durante os anos 1820 — por ele definido
como uma coleção de “ninharias”.25
A Síntese de Paula Cidade de certo modo resume e encerra o
trabalho de todo um estilo e uma geração de historiadores militares.
Nos cinco anos seguintes, mudanças dramáticas na política
brasileira e na prática histórica modificariam substancialmente a
história militar brasileira.
Em 1960 surgiu o primeiro volume da História geral da
civilização brasileira, organizada por Sérgio Buarque de Holanda,
um marco no desenvolvimento da profissão histórica no Brasil. O
triunfo da revolução cubana, em 1959, gerou um grande influxo de
brasilianistas nos anos 1960.26
Em 1965 apareceu a primeira edição da História militar do Brasil,
de Nelson Werneck Sodré. Representante da esquerda militar cujos
remanescentes estavam sendo violentamente expurgados das
Forças Armadas, Sodré reinterpretou a história militar do Brasil de
um ponto de vista marxista. Na conclusão, deixou registrada uma
intenção programática, manifestando a esperança de que os
militares reassumissem seu papel historicamente progressista como
defensores das “instituições democráticas” e da “livre expansão
econômica nacional”.27
O golpe de 1964 e o regime militar subseqüente desmentiram as
esperanças de Sodré. Uma ironia da paisagem política brasileira até
o início dos anos 1980 residia na demanda de uma história sobre as
origens do regime, ao mesmo tempo em que a maior parte da
profissão histórica era desviada para longe dele, em parte por
dificuldades de acesso a fontes, em parte por ter sofrido
constrangimentos profissionais ou pessoais de diversas ordens.
Um olhar sobre a História geral da civilização brasileira,
publicada em 10 volumes entre 1960 e 1981, revela tanto a
presença limitada de assuntos militares na historiografia brasileira
quanto a ênfase na história política dos poucos trabalhos aí
incluídos. A história militar foi muito pouco significativa nos volumes
iniciais. O terceiro volume apresentou um levantamento superficial
das instituições militares durante o final do período colonial e o início
do período monárquico. Esse levantamento foi feito por Eurípedes
Simões de Paula.28 O sexto volume, sobre o declínio e a queda da
monarquia, incluiu a primeira seção exclusivamente dedicada à
história militar. Simões de Paula e o general Antônio de Sousa
Júnior escreveram histórias militares tradicionais sobre as
campanhas navais do século XIX e sobre a Guerra do Paraguai.29
John Schulz, na época finalizando sua influente tese sobre o papel
do Exército na queda de Pedro II, apresentou um resumo do seu
trabalho, e Jeanne Berrance de Castro, um resumo de seu livro
sobre a Guarda Nacional.30 No volume subseqüente, Sérgio
Buarque de Holanda prestou bem mais atenção ao papel das
Forças Armadas na queda da monarquia, enfatizando que “nessas
circunstâncias os oficiais militares podem inscrever-se realmente na
vanguarda das aspirações populares e figurar como porta-bandeiras
dessas aspirações”.31
Com poucas exceções, os colaboradores dos volumes
subseqüentes praticamente não prestaram atenção aos assuntos
militares. O capítulo de Fernando Henrique Cardoso, “Dos governos
militares a Prudente-Campos Salles”, pouco falou sobre os militares,
baseando-se fortemente no trabalho de Schulz. José Murilo de
Carvalho, uma importante exceção dentro desse quadro, contribuiu
com uma análise inovadora do papel desestabilizador das Forças
Armadas na política da República Velha, enquanto Heloísa
Rodrigues Fernandes publicou um resumo do seu livro sobre a
polícia em São Paulo.32 Quanto mais a coleção se aproximava do
período contemporâneo, no entanto, mais escassas eram as
menções às instituições militares. Somente um ensaio tratou dos
militares nos pós-1930: o estudo de Ítalo Tronco sobre a política
industrial do Exército.33
A presença limitada das instituições militares na História geral da
civilização brasileira é um termômetro do interesse da profissão
histórica no Brasil pelos assuntos militares e uma medida clara da
dificuldade para estudar as Forças Armadas durante a ditadura
militar. A despeito dessas limitações, naqueles anos publicou-se um
volume substancial de trabalhos sobre os militares na política. A
agenda implícita para alguns, explícita para outros, era a busca das
origens históricas de 1964. No prefácio de sua tese, Schulz
escreveu: “a convivência com um governo militar em décadas
passadas e o perigo de futuras intervenções militares me eximem,
creio eu, de justificar a relevância deste estudo”.34
Historiadores brasileiros e brasilianistas tiveram abordagens
significativamente diferentes para essas questões. Valendo-se de
abordagens marxistas fortemente radicadas em análises que
tomavam por base a luta de classes, historiadores brasileiros, como
Nelson Werneck Sodré, procuraram situar os militares na estrutura
de classes da sociedade brasileira. Uma volumosa historiografia
sobre o tenentismo tentou elucidar o peso da origem de classe por
trás do assalto dos oficiais contra a república aristocrática. O debate
sobre a natureza daquele movimento atraiu a atenção de muitos
historiadores desde a publicação, em 1932, de O sentido do
tenentismo, de Virgínio Santa Rosa. Grande parte daquele debate
girou em torno da questão de os tenentes representarem ou não as
aspirações da classe média, insatisfeita com as condições da
república oligárquica. Edgard Carone viu os tenentes como
progressistas e antioligárquicos. Maria do Carmo Campelo de Souza
enfatizou as ambigüidades daquele movimento, ao mesmo tempo
reformista e aberto a métodos políticos autoritários. José Augusto
Drummond argumentou que a rebelião dos tenentes não era dirigida
contra as “classes dominantes”, mas contra sua posição subalterna
no aparato estatal.35
Os brasilianistas apresentaram uma versão mais institucional
sobre a tensão civil-militar ao final da República Velha. Henry Keith
destacou os problemas da profissionalização militar como fio
condutor da insatisfação dos tenentes, interpretação que, segundo
Frank D. McCann, foi corroborada pelo depoimento de um dos mais
destacados protagonistas daquele movimento, Juarez Távora.
McCann destacou a falta de uma diferença mais marcante de
mentalidade entre os tenentes rebeldes e o resto do corpo de
oficiais, argumentando que os primeiros se diferenciavam apenas
por sua falta de paciência e pela escolha dos meios. O mesmo autor
tentou uma explicação funcional para um tema recorrente na
bibliografia: “a falta de um projeto político consistente”. McCann
argumenta que, “como militares, eles [tenentes] concordavam sobre
o que estava errado no Brasil, concentrando-se, de acordo com o
seu treinamento, em destruir o inimigo ao invés de planejarem como
reconstruir [a nação]”.36
As explicações de origem institucional para compreender o
comportamento político dos militares tomavam como base a
educação militar e o processo de socialização dos oficiais durante o
segundo reinado. Schulz foi apenas mais um de um grupo de
brasilianistas que, no final da década de 1960 e princípio da de
1970, procuraram explicar o passado recente através de uma
análise cuidadosa do papel do Exército durante o Império e na
queda da monarquia, momento-chave no surgimento dos militares
como protagonistas no cenário político brasileiro.37
A longa duração do regime militar, que contradisse as
suposições de muitos liberais quanto ao fato de o profissionalismo
promover a subordinação militar ao poder civil, levou Alfred Stepan
a formular sua idéia do “novo profissionalismo”. De acordo com
Stepan, as circunstâncias da Guerra Fria, ameaças internas à
segurança e a necessidade de desenvolvimento econômico levaram
os militares (não apenas no Brasil, mas em muitos países da
América Latina) a assumir um papel mais ativo na política.38
Segundo ele, até 1964 os militares haviam exercido um “poder
moderador”, no qual as intervenções eram rapidamente substituídas
pela restituição do poder aos políticos. O golpe de 1964 e o regime
militar então instaurado teriam causado uma inflexão nessa
trajetória. O modelo de Stepan ofereceu uma explicação atraente
para a novidade do regime militar pós-1964, promovendo uma
maneira de sistematizar a pesquisa no Exército pós-1889.
Historiadores como McCann questionaram a visão de Stepan,
argumentando que os precursores da ideologia militar pós-1964 se
encontram na República Velha.39
As discussões sobre as intervenções militares concentraram-se
na participação política do corpo de oficiais. Ficaram evidentes as
interconexões entre as esferas civil e militar, tal como comprovadas
pela abundante literatura sobre o sistema democrático oriundo da
Constituição promulgada em 1946. O avanço do processo de
profissionalização dos militares não os tornou sujeitos a um
“controle objetivo” por parte dos civis, tal como ocorrido nos Estados
Unidos. Pelo contrário, as Forças Armadas cristalizaram-se como
um ator político relevante à medida que o processo de
profissionalização se aprofundava, intervindo na arena política
através de golpes e contragolpes. Essas ações refletiam os contatos
com o mundo civil e o aprofundamento da politização entre os
oficiais. Dessa forma, profissionalismo e politização não formaram
um jogo de soma zero, interagindo ao longo da história da
instituição.
Numa outra vertente, a ocorrência de golpes durante o século
XX também assinala a fraqueza institucional de partidos e
instituições. Se bem que algumas lideranças civis procurassem
cooptar os militares — as famosas “vivandeiras” —, a fraqueza
institucional do sistema político, aliada à recorrência de crises
institucionais, reforçaria o papel político dos militares. Alain Rouquié
assinalou que as Forças Armadas desempenhariam, por outros
meios, as mesmas funções que os partidos políticos, constituindo-se
em verdadeiros partidos militares, organizados segundo facções
com poderes de deliberação, tomada de decisões e mesmo de
articulação com outras forças sociais. A visão das facções militares
como partidos foi corroborada por outros pesquisadores presentes
no livro de Rouquié, publicado durante o último governo militar.40
Importante papel renovador nos estudos sobre a instituição
militar coube a uma série de trabalhos produzidos na área de
ciência política. Além do já mencionado artigo pioneiro de José
Murilo de Carvalho na História geral da civilização brasileira, o qual
teve uma continuação para o período 1930-45,41 cabe também
registrar os trabalhos desenvolvidos por pesquisadores que
estudaram ou trabalharam no Instituto Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro (Iuperj).42 Ainda no terreno institucional da ciência
política, foram importantes os trabalhos produzidos na Unicamp, em
especial por Eliézer Rizzo de Oliveira, fundador do Núcleo de
Estudos Estratégicos, em 1985.43 Tomados em conjunto, esses
trabalhos enfatizaram a necessidade de se retomar o estudo da
instituição militar dando atenção especial a seus aspectos “internos”,
“estruturais” ou “organizacionais” — embora o foco de análise ainda
continuasse sendo o papel dos militares na política brasileira,
principalmente nos momentos de intervenções armadas. Esses
pesquisadores problematizaram em particular a perspectiva que
diluía a especificidade da instituição militar ao vinculá-la a uma
teoria do conflito de classes sociais, especialmente quando o
comportamento político dos militares era explicado a partir de sua
suposta origem social de “classe média”.
Uma marca institucional está também claramente presente na
extensa pesquisa realizada a partir de 1991, no Cpdoc, por Maria
Celina D’Araujo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro a respeito
da memória militar do período posterior a 1964. Seguindo a tradição
do Cpdoc, essa pesquisa utilizou-se amplamente do recurso
metodológico das entrevistas de história oral.44 Foram entrevistados
dezenas de oficiais que participaram ativamente da repressão
política ou que ocuparam importantes cargos executivos durante o
regime militar. Em 1964 eles eram, em sua maioria, oficiais de
patentes médias que chegariam ao generalato e ao ápice da
carreira nos anos seguintes. Foram assim, em grande medida,
artífices do próprio regime militar. Quando a pesquisa foi iniciada,
havia pouquíssimas fontes disponíveis a respeito do que seria a
“versão militar” sobre o regime. Desse modo, além de gerar uma
fonte documental inédita, disponível a outros pesquisadores, os
trabalhos desenvolvidos no Cpdoc deixaram evidente que era
problemático pressupor a existência de uma “memória militar”
consensual sobre esse período. As entrevistas revelaram memórias
concorrentes e divergências profundas entre os próprios militares.
Explorar os conflitos existentes entre esses personagens e suas
versões permitiu aos pesquisadores, tomando como unidade de
análise o conjunto das entrevistas, perceberem com maior clareza,
por exemplo, que a conspiração que levou ao golpe de 1964 era
multipolar, e não centralizada, como muitas vezes se pensava; que
a repressão também prejudicou internamente a instituição militar,
por gerar uma tensão entre a estrutura tradicional de comando e o
novo poder atribuído aos órgãos das Forças Armadas criados para
as tarefas de repressão política; e quão profundas eram as
divergências internas a respeito do projeto de redemocratização do
país.
Sobre os militares no período 1964-85 e seu papel na nova
democracia, cabe também mencionar trabalhos importantes de
Kenneth Serbin, João Roberto Martins Filho, Jorge Zaverucha e
Carlos Fico, entre outros. Vale também mencionar o grande impacto
na mídia e o sucesso editorial dos livros que o jornalista Elio Gaspari
tem publicado sobre o tema.45 Uma brasilianista, Wendy Hunter,
analisou o pouco sucesso das Forças Armadas em manter seu
predomínio político no regime democrático, cujo jogo político tem
sido muito pouco favorável aos interesses militares.46
Enquanto o novo regime democrático possibilitava análises mais
profundas do regime militar — evitando o reducionismo de alguns
estudos anteriores —, a maioria dos estudiosos ainda se
preocupava com a história política das Forças Armadas. Há uns 15
anos, esse quadro começou a mudar.

A nova história militar do Brasil


Por volta de 1990, uma confluência frutífera de democratização e
maior influência da história social, da antropologia e mesmo das
perspectivas pós-modernas sobre os estudos militares propiciou a
revisão da história militar que terminou por tornar possível este livro.
O fim do regime militar removeu alguns dos estigmas associados à
história militar que limitavam a pesquisa acadêmica e permitiu o
acesso a fontes militares até então inacessíveis. Muitos
pesquisadores — tanto brasileiros quanto estrangeiros — abriram
caminho através dos documentos existentes no Arquivo Histórico do
Exército (AHEx), situado no sexto andar do Palácio Duque de
Caxias, no centro do Rio de Janeiro. Geralmente desapontados com
as condições precárias e com a organização limitada das valiosas
coleções ali guardadas, esses pesquisadores mesmo assim
encontraram muito material digno de atenção. Apenas em 1992/93,
pelo menos quatro brasilianistas trabalhavam no AHEx. Três deles,
presentes neste livro, produziram teses de doutorado parcialmente
baseadas em material do AHEx e publicadas em livro, enquanto o
quarto (um pesquisador mais antigo) tomou uma direção diferente,
ainda que tenha publicado um artigo baseado na sua pesquisa no
AHEx.47
Três livros exemplificam as novas tendências na historiografia
brasilianista sobre o Exército. O estudo de Hendrik Kraay sobre as
Forças Armadas durante o período da independência na Bahia é
uma mistura de história política e social, um estudo regional sobre o
Exército, as milícias e a Guarda Nacional nos anos turbulentos do
processo de formação do Estado no Brasil. Peter Beattie formulou
uma interpretação pós-moderna no seu estudo sobre a reforma do
recrutamento e o significado do recrutamento na sociedade
brasileira entre o início da Guerra do Paraguai e o final da II Guerra
Mundial. Shawn Smallman reviu meio século da história anterior ao
golpe de 1964, a fim de examinar a política interna do Exército e a
construção de uma história oficial da instituição que marginalizou
muitos dos projetos alternativos que foram formulados dentro dela.48
Na década de 1990 e no início do novo milênio, a produção
acadêmica brasileira sobre a história militar foi capaz de
simultaneamente forjar novas direções de pesquisa e promover
novas interpretações para antigas questões. Em 1990 o antropólogo
Celso Castro publicou o resultado de sua pesquisa de campo sobre
a formação dos cadetes do Exército na Academia Militar das
Agulhas Negras e, subseqüentemente, publicou uma análise do
papel da “mocidade militar” que esteve na vanguarda da rejeição
militar do Império. Castro estudou, em seguida, o desenvolvimento
dos principais símbolos e rituais do Exército, ao longo do século
XX.49
Em 1990, o historiador Ricardo Salles publicou um livro que
pode ser considerado um marco na retomada dos estudos sobre a
Guerra do Paraguai, estudando as suas conseqüências para a
escravidão e a cidadania no Brasil. Wilma Peres Costa e Vitor
Izecksohn pesquisaram uma questão clássica da história política
brasileira — o papel da Guerra do Paraguai no fortalecimento do
núcleo profissional da oficialidade e na quebra dos vínculos entre o
Exército e a monarquia —, fornecendo análises mais sofisticadas
das origens do golpe de 1889.50 Izecksohn preocupou-se com as
implicações que a organização do Exército fora do território nacional
teria tido na criação de uma incipiente “mentalidade militar”, dando
ênfase aos efeitos não antecipados do trabalho de reorganização
exercido por Caxias no Paraguai. Em 1994, uma conferência
comemorativa ao 130o aniversário do início da Guerra do Paraguai
resultou na publicação de um livro que deu continuidade à
reinterpretação do conflito e seu impacto sobre a sociedade
brasileira, contestando muitas das interpretações tendenciosas
sobre a guerra que ainda persistem.51 O impacto da Guerra do
Paraguai sobre a escravidão e o recrutamento durante o conflito
gerou uma historiografia especializada.52 O amplo trabalho de
Francisco Doratioto, Maldita guerra: nova história da Guerra do
Paraguai, um modelo de história política e militar sobre o conflito,
sintetiza grande parte da literatura, além de oferecer novas
interpretações para várias questões até então obscuras do debate
sobre a grande guerra platina.53
Além da Guerra do Paraguai e da queda do Império,
relativamente pouco se tem publicado sobre o século XIX. Há muito
tempo, José Murilo de Carvalho chamou a atenção para a forte
presença de militares na elite política do início do Império.54
Recentemente, Adriana Barreto de Souza aprofundou-se nessa
questão ao analisar o papel do Exército na consolidação do Estado
imperial antes de 1850.55 A biografia escrita por Renato Lemos
sobre Benjamin Constant Botelho de Magalhães possibilita novas
interpretações sobre a vida e os desafios de um oficial que estava
no centro da política durante o final do Império e o início do período
republicano.56 Poucos pesquisadores abriram caminho nos arquivos
da Marinha, mas o trabalho de Álvaro Pereira do Nascimento sobre
essa corporação a trouxe para a linha de frente da história militar no
Brasil.57
A renovação da história militar brasileira na década de 1990
envolveu também pesquisas nos arquivos estaduais. Governadores
coloniais e presidentes de província desempenharam um papel
proativo na supervisão dos assuntos militares até 1889.
Conseqüentemente, esses arquivos encontramse repletos de fontes
sobre numerosos aspectos da vida militar. Pesquisas de mestrado e
doutorado realizadas na década passada indicam uma grande
variedade de fontes disponíveis e de possibilidades para se fazer
uma história social das Forças Armadas através do país.58
Sinais de que a história militar ganhou aceitação na profissão
histórica como um todo vieram em 1997 e 1999, quando trabalhos
baseados em dissertações de mestrado de Adriana Barreto de
Souza e Álvaro Pereira do Nascimento ganharam o prestigioso
prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa.59 O estudo das instituições
militares moveu-se rapidamente para o centro da pesquisa histórica
no Brasil, e este livro oferece um apanhado das tendências recentes
nesse campo.

Forças Armadas e sociedade: temas e perspectivas deste


livro
O que mais impressionou os historiadores que pesquisam o final
do período colonial e o século XIX foi a grande quantidade de
documentação sobre o recrutamento guardada nos arquivos
estaduais. O “tributo de sangue” incidiu pesadamente sobre a
sociedade, especialmente durante os períodos de guerra,
acarretando disputas amargas entre as autoridades provinciais, os
potentados locais e a população pobre e livre. A capacidade (muitas
vezes, a incapacidade) de recrutar marcou os limites do poder do
Estado e da força dos poderes privados até o século XX. Tal como
exemplificado pelas Forças Armadas, a ação do Estado se dava de
forma arbitrária (geralmente brutal), mas raramente eficaz no
sentido de gerar acatamento e respeito por parte dos súditos
(depois cidadãos) espalhados pelo país. Escrevendo sobre a
mesma conjuntura do final do século XVIII, de acirramento do
conflito imperial e dos esforços do marquês de Pombal para
fortalecer o aparato colonial do Estado, tanto Christiane Figueiredo
Pagano de Mello quanto Shirley Maria Silva Nogueira demonstram a
fraqueza do Estado colonial. Propostas para a arregimentação de
todos os súditos coloniais e para o recrutamento de escravos na
década de 1760, que pareciam tão lógicas para Lisboa, encalharam
em Minas Gerais. Isso principalmente por causa da forte oposição
da população e de setores das elites locais. Nem o uso
indiscriminado da intimidação nem o abuso da coerção pelas
autoridades poderiam abrandar a maré da deserção no Grão-Pará.
A luta entre os representantes do estado fraco e os interesses locais
continuou durante o século XIX, como demonstra Fábio Faria
Mendes no seu capítulo sobre Minas Gerais. O recrutamento no Rio
de Janeiro, durante a Guerra do Paraguai, deixou claro os limites da
capacidade estatal, mas essa guerra fracassou no que tange à
possibilidade de transformação do Estado brasileiro. Tal como
salientado por Vitor Izecksohn, enquanto as guerras européias
estimularam os processos de construção do Estado, o recrutamento
para a Guerra do Paraguai não gerou mais do que
descontentamento e resistência.
Muito do que tem sido denominado “a nova história militar” na
América inglesa enfatiza a vida cotidiana e as experiências pessoais
de soldados e marinheiros, tanto nos períodos de guerra quanto de
paz. Retirando sua inspiração daqueles historiadores sociais que
procuram resgatar homens e mulheres comuns da “enorme
condescendência da história”, para citar um trabalho clássico,60
muitos colaboradores deste livro retratam a vida cotidiana dos
soldados. Embora os regulamentos militares possam ter imposto a
subordinação aos soldados na busca da construção de algo
semelhante a uma “instituição total”, na expressão forjada pelo
sociólogo canadense Erving Goffman, historiadores sociais
tenderam a concluir que tanto no período colonial quanto no século
XIX os soldados se encontravam fortemente conectados com a
sociedade civil. Os desertores do Pará colonial, estudados por
Nogueira, buscavam reassumir suas vidas anteriores. No Rio de
Janeiro, a presiganga, tema do capítulo de Paloma Siqueira
Fonseca, funcionou como uma prisão que tentou implantar um
regime disciplinar rigoroso entre os seus apenados (fossem eles
pessoal da Marinha, civis livres sentenciados a trabalhos forçados
ou escravos realocados para castigo), mas a instituição ficou muito
distante desses objetivos regulatórios, e mesmo o seu pessoal
mostrou-se confuso no cumprimento das normas disciplinares. O
capítulo de Hendrik Kraay volta-se para a vida cotidiana dos
soldados em períodos de paz numa das maiores guarnições do
Brasil durante as quatro últimas décadas da monarquia. Altas taxas
de deserção, regimes disciplinares flexíveis e intensas (mas
geralmente tensas) conexões com a sociedade civil caracterizaram
as experiências dos soldados na cidade de Salvador. Os capítulos
de Peter M. Beattie e de Álvaro Pereira do Nascimento baseiam-se
numa fonte infelizmente rara — registros de cortes marciais
(conselhos de guerra) do Exército e da Marinha, poucos dos quais
sobreviveram até nossos dias. Os julgamentos dos acusados por
ofensas sexuais servem como janelas para a sociabilidade dos
soldados. Assim como Fonseca e Kraay, Beattie e Nascimento
mostram como a conduta dos soldados e dos marinheiros divergia
daquela requerida por seus superiores na hierarquia militar.
Talvez os historiadores sociais das organizações militares, às
vezes fascinados com a vida cotidiana, tenham negligenciado a
proposta principal da vida militar: travar batalha com o inimigo. O
capítulo de César Campiani Maximiano oferece uma correção útil a
essa tendência, na medida em que examina as experiências dos
soldados brasileiros no front italiano durante a II Guerra Mundial.
Apesar da abundância dos registros funcionais sobre oficiais e
soldados que as instituições militares vêm mantendo pelo menos
desde o século XIX, estamos ainda longe de entender a origem
social do pessoal militar no Brasil. Adriana Barreto de Souza
examina o grupo de oficiais-generais no período pós-independência,
enfatizando a persistência daquilo que ela define como a tradição
portuguesa até meados do século. Muito pouco, entretanto, se sabe
sobre a maior parte do corpo de oficiais — aqueles cuja graduação
variou de tenente a tenente-coronel —, e somente a pesquisa
sistemática nas fés de ofício permitirá aos historiadores obterem um
quadro mais completo do corpo de oficiais. A falta de livros-mestres
sobre as tropas prejudicou enormemente a pesquisa sobre os
soldados do Exército. Existem boas evidências, no entanto, para dar
suporte a generalizações sobre a baixa origem social dos soldados
e sobre a predominância de não-brancos nos batalhões, até que o
sorteio, estabelecido na década de 1910, esclarecesse melhor, de
alguma forma, o status social dos indivíduos alistados. Kraay
examina as notícias de desertores emitidas pelas autoridades
militares para traçar um perfil estatístico dos praças, o estrato
inferior da hierarquia militar (soldados, cabos e sargentos), na
guarnição de Salvador.
Uma especial atenção à história social dos militares oferece
também novas abordagens sobre a política militar. O capítulo de
Celso Castro sobre os protestos dos soldados contra a proclamação
da República sugere a popularidade do regime monárquico e
especificamente da “redentora” princesa Isabel entre os praças,
majoritariamente negros e mestiços. Em guarnições tão diversas
como as de Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso, praças
pegaram em armas para defender o deposto imperador Pedro II.
Característica curiosa e triste da história brasileira: a monarquia caiu
quando talvez desfrutasse do seu maior grau de apoio popular. D.
Obá II, o veterano da Guerra do Paraguai, príncipe da população
negra do Rio de Janeiro e monarquista ardente, não era um
excêntrico isolado.61 Quanto aos praças da Marinha, o estudo de
Álvaro Nascimento sobre a disciplina e o dia-a-dia na Marinha
permite entender melhor o contexto da Revolta da Chibata em 1910,
quando marinheiros do Rio de Janeiro tomaram o controle dos
novos couraçados em protesto contra os castigos corporais,
especialmente as chibatadas.
Outros capítulos deste livro oferecem novas interpretações sobre
a política militar. O estudo político, diplomático e militar feito por
Francisco Fernando Monteoliva Doratioto sobre a ocupação do
Paraguai após o final da guerra revela as complexas circunstâncias
políticas que opuseram os interesses argentinos e brasileiros, com
ambos os contendores usando aliados paraguaios, bem como
paraguaios procurando satisfazer os seus interesses mediante o uso
das forças aliadas. Os capítulos de Shawn Smallman e Renato
Lemos examinam duas características contraditórias, ainda que
geralmente coexistentes, do Exército brasileiro durante o século XX.
Smallman concentra-se na violência extralegal dentro da corporação
durante as duas décadas que se seguiram ao final da II Guerra
Mundial. Os grupos conservadores que haviam vencido as amargas
disputas internas entre a esquerda e a direita não hesitaram em
usar a violência e a tortura para intimidar os seus oponentes.
Smallman observa que essa situação preparou o caminho para o
amplo uso da violência extralegal contra os civis, a partir do golpe
de 1964. Essa violência, tal como Renato Lemos deixa claro,
coexistiu durante o regime militar com uma cultura legal e judicial,
especialmente antes da edição, em 1968, do Ato Institucional no 5,
que restringiu drasticamente (embora não tenha eliminado
completamente) o escopo das instituições democráticas e
judiciais.62 De fato, a tensão entre a prática formal legal e a coerção
informal é um tema recorrente da história militar do Brasil. Durante o
século XIX, procedimentos legais elaborados por cortes marciais
coexistiram com a coerção violenta contra soldados recalcitrantes e
marinheiros, singularidade que se encontra amplamente
documentada em vários capítulos deste livro.
Muito se pode aprender sobre o lugar das instituições militares
na sociedade através do estudo de seus veteranos. Poucos
veteranos da Guerra do Paraguai usufruíram os benefícios
prometidos aos voluntários no início das operações, e o capítulo de
Francisco César Alves Ferraz demonstra que os veteranos da II
Guerra encontraram uma situação não muito diferente. Poucos
preparativos haviam sido feitos para a desmobilização dos 25 mil
febianos em 1945, e as organizações dos veteranos tiveram pouco
sucesso em obter os benefícios a que faziam jus os seus membros.
Como todas as instituições masculinas (pelo menos até o século
XX), as corporações militares tiveram que lidar com a atividade
homossexual entre alguns de seus membros. Peter M. Beattie
justapõe os registros detalhados de cortes marciais sobre casos de
sodomia a um romance contemporâneo (O bom crioulo, de Adolfo
Caminha) para examinar as atitudes brasileiras em relação à
homossexualidade por volta de 1900. Ele conecta esses
documentos às mudanças de atitude a respeito da masculinidade
que moldaram o debate sobre a reforma do recrutamento a partir do
final da Guerra do Paraguai. Maria Celina D’Araujo examina as
atitudes mais recentes dos militares em relação tanto à
homossexualidade quanto à presença de mulheres nas Forças
Armadas, situando o debate brasileiro sobre essas questões num
contexto internacional. Se as mulheres têm sido incorporadas com
sucesso a algumas funções militares, a resistência contra uma
integração completa continua forte; em contraste, a
homossexualidade permanece um tabu para os militares.
O capítulo de Pedro Puntoni, o primeiro desta coletânea,
examina a prática da guerra no Brasil colonial e oferece respostas
para algumas das questões de Martius sobre como a prática da
guerra na América portuguesa diferiu da européia. A “guerra
brasílica” contra grupos de índios hostis e escravos fugitivos
requereu que os luso-brasileiros abandonassem o seu treinamento
formal; como tem sido o caso geralmente, a guerra contra inimigos
alheios à cultura européia assumiu uma forma particularmente
sórdida e brutal.
Tomados em seu conjunto, os colaboradores deste livro
apresentam um instantâneo sobre o estado atual da história militar
no Brasil. Muito há ainda para ser feito. Estudos acadêmicos das
maiores guerras enfrentadas pelo Brasil são ainda necessários; o
livro de Doratioto sobre a Guerra do Paraguai pode servir de
modelo. Biografias críticas das figuras militares mais famosas, como
a biografia de Benjamin Constant escrita por Lemos, são igualmente
necessárias. Para o período colonial e para o século XIX, existe a
tendência de abordar a história militar do ponto de vista regional
(evidente em vários capítulos deste livro), que nos tem abastecido
com muitas informações inéditas sobre a diversidade da experiência
militar. No entanto, isso tem ocorrido ao custo freqüente da perda do
quadro “nacional”. Muito mais trabalhos precisam ser feitos sobre a
construção do Exército nacional durante o Império e sobre o seu
impacto nas províncias. Os numerosos estudiosos do recrutamento
nos contaram muito a respeito de como o “tributo de sangue” era
coletado; em contraste, nada sabemos sobre como os governos
coloniais ou o regime monárquico financiavam e mantinham o
Exército e a Marinha. A história institucional pode ter saído da moda,
mas somente a análise cuidadosa do funcionamento do Exército e
da Marinha pode responder a questões importantes como essas.
Nem as milícias ou as ordenanças, nem a sua sucessora, a Guarda
Nacional, receberam a atenção histórica que merecem. Todos os
principais estudos sobre a guarda têm atualmente duas ou três
décadas.63 O enorme interesse de pesquisadores, mídia e público
presentes aos eventos que marcaram a passagem dos 40 anos do
golpe de 1964 demonstra que ainda há muito para ser conhecido
sobre a instituição militar em tempos recentes. Esperamos que este
livro estimule novas pesquisas no rico e complexo campo da história
militar do Brasil.

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* Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ. Pesquisador do


Cpdoc/FGV.
** Doutor em história pela University of New Hampshire (EUA). Professor da
UFRJ.
*** Doutor em história pela Universidade do Texas (Austin, EUA). Professor da
University of Calgary (Canadá).
1 Martius, 1845:395. Grifo no original.
2 Ver Martius e Spix (1821-31).
3 Apud Coffman (1997:762). Ver também Paret (1991); e Whiteclay (1991).
4 Este levantamento baseia-se em Cidade (1959); para uma perspectiva mais
crítica, ver Rodrigues (1978:174-184).
5 Ver Titara (1950).
6 Ver Taunay (1960).
7 Cerqueira, 1980. Ver também Pimentel (1938) e Hoonholtz (1910).
8 Ver Cunha (1902).
9 Ver Thompson (1869); Versen (1976); e especialmente Madureira (1870).
10 Ver Varnhagen (1943); Schneider (1875/76); e Paranhos (1868).
11 Ver Jourdan (1893-95).
12 Ver Bormann (1897, 1907, 1912/13); Docca (1919); Fragoso (1922, 1934,
1939); Cidade (1948).
13 Ver Barroso (1928, 1935); Rodrigues e Barroso (1922).
14 Ver Souza (1999).
15 Ver Aguiar (1896); Osório (1894-1915); Jaceguai (1984/85).
16 Ver Rodrigues (1978:178).
17 Cidade, 1959:400-401.
18 Ver Leal (2001).
19 Ver Duarte (1971, 1985, 1981-92); Bento (1971, 1992/93, 1996).
20 US Army Center of Military History, 2004.
21 Ver Távora (1927/28, 1973); Moraes (1947, 1969).
22 Ver, respectivamente, Camargo e Góes (1981); Magalhães (1982);
Camargo (1986); Silva (1998).
23 Ver Moreira (1997).
24 Ver Cidade (1959).
25 Cidade, 1961.
26 Sobre os brasilianistas, ver Barbosa, Eakin e Almeida (2002).
27 Sodré, 1979:406.
28 Ver Paula (1962:265-277).
29 Ver Paula (1971:299-314); Souza Jr. (1971).
30 Ver Schulz (1971:274-298); Castro (1971).
31 Holanda, 1972:346.
32 Ver Cardoso (1975); Carvalho (1977); Fernandes (1977).
33 Ver Tronco (1981). O capítulo remonta a um debate travado entre
brasilianistas sobre os interesses econômicos do Exército brasileiro. Ver Wirth
(1969); Hilton (1973, 1982).
34 Schulz, 1971:13.
35 Ver Rosa (1932); Carone (1975); Keith (1976); Souza (1976:101-102);
Drummond (1986). Ver também Forjaz (1977, 1978, 1989); e Borges (1992).
36 McCann, 2003:209-11. Ver também Keith e Hayes (1976); Keith (1989).
37 Ver Simmons (1966); Dudley (1972); McBeth (1972); Hahner (1969, 1975).
Ver também Hayes (1989, 1991).
38 Ver Stepan (1973:47-68, 1971).
39 Ver McCann (1979, 1982, 1984, 2003).
40 Ver Rouquié (1980). O livro inclui também artigos de Antonio Carlos
Peixoto, Eliézer Rizzo de Oliveira e Manoel Domingos Neto.
41 Ver Carvalho (1983).
42 Ver Coelho (1976); Costa (1984); Barros (1978). Coelho (1985) produziu
uma resenha bibliográfica sobre a produção acadêmica a respeito até o início
da década de 1980. Recentemente, Zaverucha e Teixeira (2003) atualizaram
essa resenha para a produção acadêmica posterior.
43 Ver Oliveira (1976, 1987a, 1987b, 1994). Ver também Mathias (1995).
44 Para conhecer a visão dos militares a respeito de sua experiência no
poder, a principal fonte é a trilogia organizada por D’Araujo, Soares e Castro
(1994a, 1994b e 1995, que inclui entrevistas com militares que ocuparam
importantes posições no período, principalmente nos órgãos de repressão.
Além disso, é indispensável a consulta a Ernesto Geisel, longa entrevista
concedida a D’Araujo e Castro (1997) por um dos mais importantes
personagens desse período. Para a atuação dos militares durante a transição
de 1985 e no início da Nova República, ver D’Araujo e Castro (2001). D’Araujo
e Soares (1994) reuniram artigos de acadêmicos que oferecem análises sobre
aspectos políticos, econômicos e sociais do regime militar. Uma visão do
governo Geisel através dos documentos de seu arquivo pessoal está em
D’Araujo e Castro (2002). Para um balanço analítico do trabalho desenvolvido
no Cpdoc sobre a temática militar, ver Serbin (2003).
45 Ver Gaspari (2002a, 2002b, 2003).
46 Ver Hunter (1997).
47 Ver Diacon (1998).
48 Ver Kraay (2001b); Beattie (2001); Smallman (2001).
49 Ver Castro (1990, 1995, 2002). Para outro trabalho produzido na área da
antropologia sobre os militares brasileiros, ver Leirner (1997).
50 Ver Costa (1996); Izecksohn (2002).
51 Ver Marques (1995).
52 Ver Salles (1990); Sousa (1996); Kraay (1997); Izecksohn (2001a, 2001b).
53 O livro de Doratioto (2002) coincidiu com o ressurgimento do interesse
internacional pela Guerra do Paraguai. Ver Whigham (2002); Leuchars (2002);
Izecksohn (2001a, 2001b, 2004); Kraay e Whigham (2004). Esta última
coletânea tem três capítulos sobre o Brasil: de Roger Kittleson sobre Rio
Grande do Sul, de Hendrik Kraay sobre os zuavos baianos e de Renato
Lemos sobre Benjamin Constant.
54 Ver Carvalho (1980).
55 Ver Souza (1999).
56 Ver Lemos (1999).
57 Ver Nascimento (2001, 2002). Para a visão de um brasilianista, ver Morgan
(2001).
58 Além dos capítulos de Mello, Nogueira, Mendes, Izecksohn, e Kraay neste
livro, ver Silva (2001); Lucena Filho (2000); Peregalli (1986); Rodrigues
(2001); Meznar (1992).
59 Ver Souza (1999); Nascimento (2001).
60 Thompson, 1963:13.
61 Ver Silva (1997).
62 Ver também Lemos (2004).
63 Ver Castro (1977); Rodrigues (1981); Uricoechea (1978); Faria (1979). Ver
também Kraay (2001a).
CAPÍTULO 1

A arte da guerra no Brasil: tecnologia e estratégia


militares na expansão da fronteira da América portuguesa
(1550-1700)*

Pedro Puntoni**

Na América portuguesa, a organização das forças militares


envolvidas na conquista e controle dos domínios da Coroa foi
estabelecida desde o regimento do governador-geral Tomé de
Souza, em 1548, que dispunha sobre as diretrizes da empresa
colonial.1 O governador deveria, no exercício de suas atribuições,
zelar pela segurança da Colônia e do povoamento das novas terras,
para o que contava com a armada, gente, artilharia, armas e
munições, e tudo o mais que fosse necessário. Cumpria, antes de
mais nada, fortificar as barras e os portos de acesso às praças de
comércio. Contudo, para além do enquadramento das tropas
regulares, que garantiam basicamente a resposta às outras forças
organizadas no contexto de disputa interimperial que se esboçava
no Atlântico Sul, o governador deveria castigar as tribos “rebeladas”
ou arredias, assim como impedir os distúrbios imanentes à violenta
sociedade escravista em gestação. Porém, no início da colonização,
os poderes públicos não tinham condições de realizar de maneira
eficiente o controle e defesa do território diante dos inimigos
“internos”. Para tanto, dever-se-iam utilizar os guerreiros obtidos
junto às tribos amigas, assim como os soldados das linhas
auxiliares. O regimento de 1548 fixava formas de recrutamento e
organização dessa linha auxiliar, cujos encargos eram dos
moradores. Neste sentido, para além das linhas regulares, a força
privada garantia a homeóstase do sistema. A Coroa tinha para si
que poderia armar toda a população das colônias por imposições
legais. Deste modo, o “alvará das armas” de 1569 tornava
obrigatória aos homens livres a posse de armas de fogo e armas
brancas.2
É claro que a presença desses armamentos e dessas posições
de força disseminados pela sociedade contaminava o seu cotidiano
com violência. Todavia, devemos ter em conta que esse arsenal
estruturava-se no nível superior das linhas auxiliares, postas, na
maioria dos casos, a serviço dos arranjos dos poderes locais e da
construção das hierarquias sociais. Isto porque o serviço das
ordenanças organizava a população segundo o corte social
existente. As forças auxiliares da Colônia foram regulamentadas,
por assim dizer, com o disposto no “regimento geral das
ordenanças” de 1570.3 Esse regimento instituía os corpos de
ordenança formados pelo engajamento obrigatório de todos os
moradores de um termo (jurisdição administrativa) com idade entre
18 e 60 anos, com exceção dos eclesiásticos e dos fidalgos.
Idealmente, tanto as tropas regulares quanto as ordenanças eram
constituídas em terços — mas, à diferença das tropas regulares, as
milícias das ordenanças não recebiam soldo. Tratava-se de uma
organização derivada da Espanha, onde o tercio era originalmente
um regimento de infantaria paga e profissional.4
Em teoria, o terço deveria ser formado por 2.500 soldados,
repartidos em 10 companhias, compostas, cada uma, de 250
homens, todos subordinados ao capitão-mor (ou mestre-de-campo).
Essas companhias, sob o comando de um capitão, por sua vez,
deviam se dividir em 10 esquadras de 25 homens. O capitão de
companhia tinha a seu serviço um alferes, um sargento, um
meirinho, um escrivão, 10 cabos de esquadra e um tambor. O
capitão-mor possuía ele mesmo uma das companhias, que era
servida também por um sargento-mor, seu substituto natural, e por
quatro ajudantes. No caso das ordenanças, os senhores ou os
donos das terras de um termo deveriam, a princípio, ser
automaticamente providos no comando das tropas como capitães.
No caso da Colônia, na ausência desses “donos”, cabia ao capitão-
mor e às câmaras nomear os capitães de companhia e os seus
ajudantes imediatos. Como as câmaras eram a expressão dos
estratos superiores da sociedade local — ao contrário do grosso da
tropa, constituída de gente simples —, a hierarquia superior das
milícias era formada pelos senhores locais, proprietários ou
“homens bons”, donde a reprodução da ordem social deveria
garantir a funcionalidade esperada da organização militar. A
provisão de 15 de maio de 1574 complementou esse regimento,
esclarecendo que, onde houvesse uma só companhia, o comando
seria exercido pelo capitão, e não mais pelo capitão-mor.
Em Portugal, ao contrário da América, o caráter nivelador que se
introduziu com as ordenanças gerou não poucos
descontentamentos. Assim, como mostrou Fernando Dores Costa,
persistia uma “aversão da nobreza à associação desonrosa às
ordenanças”, que se traduzia numa resistência ao recrutamento e,
mesmo, à participação mesmo que nos escalões mais elevados.5
No Brasil, com uma hierarquia social que se forjava na presença
determinante do escravismo, o corte social proposto pelas
ordenanças era uma oportunidade justamente de afirmação social e
de construção dessas diferenças entre os homens livres. Caio Prado
Jr. foi o primeiro a ver nas ordenanças a instituição capaz de “tornar
possível a ordem legal e administrativa neste território imenso, de
população dispersa e escassez de funcionários regulares”. Mais
ainda, para ele foram as ordenanças que permitiram a extensão,
sobre esse território, das “malhas da administração cujos elos teria
sido incapaz de atar, por si só, o parco funcionalismo oficial que
possuíamos; concentrado ainda mais como estava nas capitais e
maiores centros”. Pois é justamente por meio delas que o poder
senhorial se ajustava à administração colonial.6
Importante também é notar que, de algum modo, as ordenanças,
como forma militar dominante nas décadas iniciais da colonização,
acabaram por moldar as estruturas políticas que se organizavam no
nível intermediário entre os poderes locais (municípios) e o governo
geral ou, no mesmo, o capitão-general. Em verdade, à medida que
as capitanias hereditárias passavam ao controle da Coroa, isto é,
tornavam-se capitanias reais e portanto território sob a
administração direta da monarquia, o posto administrativo superior
nos limites de sua jurisdição confundia-se nominalmente com o de
capitão-mor e era provido pelo rei. Ora, esse capitão-mor exercia
também as funções relativas ao corpo das ordenanças, controlando
sobremaneira a nomeação dos capitães de companhia. O regimento
de 1570 era claro: cabia ao capitão-mor “repartir os habitantes da
cidade, vila ou conselhos em esquadras de 25 homens e para cada
esquadra escolher um capitão de companhia que será seu cabo”.7
Por sua vez, todos estavam — nesse aspecto do seu exercício —
subordinados ao governador-geral, que exercia o supremo comando
das forças militares como capitão-general.
Essa centralização das estruturas militares resultou num controle
cada vez maior na nomeação dos capitães-mores. No caso da
Colônia, tal centralização se acentuou ainda mais quando a
prerrogativa de conferir as patentes militares passou ao Conselho
Ultramarino. Mais ainda, em 1709, um alvará definira que a eleição
dos capitães-mores e de outros postos da milícia, nos locais onde
eram feitas pelas câmaras, deveriam agora ser extintas e
substituídas por um sistema de consulta. Encaminhada uma
sugestão, com o aval do governador das armas da localidade, ao
Conselho de Guerra, cabia em última instância ao próprio rei a
nomeação dos ditos postos.8
No século XVII, apesar de os governadores-gerais acumularem
a liderança das forças militares, em respeito ao seu título conjunto
de capitães-generais, alguns dos capitães-mores não
necessariamente respondiam ao seu comando. Apenas para
ficarmos com um exemplo, são conhecidos os casos de conflitos
jurisdicionais entre os governadores-gerais e os de Pernambuco.
Com efeito, desde cedo os governadores da Bahia tiveram que
conviver com os poderes ampliados dos seus colegas do Rio de
Janeiro e de Pernambuco, que detinham também o título de
“governadores”, o que os distinguia dos meros capitães-mores das
capitanias próximas ou mesmo tidas como “anexas”. Em 1697, aos
governadores do Rio de Janeiro foi concedido o título de
“governador e capitão-general”, ampliando os poderes militares do
ofício. Em 1714, foi a vez do governo de Pernambuco também
incorporar ao ofício tal responsabilidade.9 Desde então, os territórios
administrados por ambos os governadores eram tidos como
“capitanias gerais”, para se distinguirem das demais. O controle
militar do território se via assim fragmentado em diversas jurisdições
controladas por poderes, por sua vez, diretamente nomeados por
Lisboa. Nesse novo contexto, a reorganização das chamadas linhas
auxiliares redefiniria o papel das ordenanças na América. Do que foi
dito pode-se perceber como o século XVIII seria diverso, em termos
das estruturas dos poderes militares, dos 150 anos iniciais da
colonização.

A “guerra do Brasil”
Somente com a Restauração em 1640 e a subseqüente guerra
com a Espanha, Portugal constituiria um exército permanente em
termos modernos.10 O primeiro terço de tropas regulares, o da
Armada Real, foi criado no reino apenas em 1618. No Brasil, logo
depois da expulsão dos holandeses da Bahia, em 1626, foi formado
o primeiro terço de infantaria paga. Em 1631, criou-se o Terço Novo,
em oposição ao Terço Velho, ambos compostos de 800 homens
cada. Como resultado das guerras holandesas (1630-w54), foram
também criados outros terços “especiais”, como o dos negros de
Henrique Dias e o dos índios de Felipe Camarão.11 A ocupação de
Pernambuco e demais capitanias do Norte pelos holandeses e a
conseqüente guerra de reconquista não só introduziram enorme
contingente de soldados europeus nas vilas e cidades do Estado do
Brasil, como resultaram no rearranjo da equação entre milícias
regulares e linhas auxiliares. Esse rearranjo deu-se notadamente
pela afirmação da superioridade obtida na evolução do modus
faciendi das linhas auxiliares, processo gestado no contexto da
primeira fase da guerra holandesa.
Com o fracasso da expedição das tropas regulares européias
enviadas na armada espanhola de Oquendo, em 1631, a resistência
local à invasão batava limitou-se a uma estratégia de “guerra lenta”,
que buscava a manutenção do impasse inicial, quer dizer, procurava
deixar aos holandeses o controle das praças-fortes, mantendo o da
zona produtora de açúcar, à espera de uma intervenção da armada,
quando isso fosse exeqüível. Nesse contexto, ganhou espaço a
estratégia traçada por Matias de Albuquerque, irmão do capitão-
donatário, Duarte de Albuquerque Coelho, e comandante da
resistência. Chamada à época de “guerra brasílica” ou “guerra do
Brasil”, essa estratégia militar resultava da impossibilidade de
oferecer resistência aos holandeses na cidade ou no campo
aberto.12 Segundo Evaldo Cabral de Mello, o sistema de defesa que
Matias de Albuquerque aplicou contra os holandeses, de 1630 a
1636, era “um sistema misto”, no qual as forças convencionais
concentravam-se:

numa praça-forte, o Arraial, guarnecida pela artilharia e pelas


tropas regulares e situada à retaguarda de uma linha de postos
avançados, as estâncias, ocupadas por tropas irregulares de
índios, negros e soldados da terra. Entre uma e outra estância,
vagam as esquadras volantes que continuadamente emboscam
e assaltam os invasores. Enquanto o Arraial preenche uma
função estratégica, as estâncias e as esquadras volantes têm
um objetivo puramente tático.13

As estâncias eram controladas pelos “capitães de emboscada”,


cargos de liderança criados por Matias de Albuquerque logo no
início da resistência. Esses “capitães” estavam no comando de um
punhado de homens que eram destacados para controlar uma
determinada região. Com uns 30 ou 40 homens (vários deles índios
“frecheiros”, isto é, hábeis com as flechas), essas guerrilhas deviam,
também, atormentar o inimigo e desbaratar-lhe os postos e
comunicações. Por outro lado, não se tratava apenas de fazer a
guerra, mas também de sustentar quem a fazia. As guerrilhas, ao
zelarem pela várzea, impedindo a entrada dos holandeses,
cuidavam da produção dos alimentos e do açúcar, o combustível da
guerra. Os portugueses, segundo o memorial de João Cardoso,
tornavam-se invisíveis nos matos, onde eram imbatíveis. E os
holandeses não se poderiam sustentar, pois, “fechado o mato, tudo
teria de vir da Holanda, o que era para eles caro, incerto e
insustentável”.14 Contudo, a “guerra lenta”, uma vez impossibilitado
o apoio esperado pelo mar, não poderia manter o domínio do interior
por muito tempo diante do enorme contingente do inimigo. Segundo
Cabral de Mello, esse esquema estratégico luso-brasileiro havia sido
desmontado com a queda do forte dos Afogados em 1633, pois
agora as tropas holandesas tinham acesso à várzea, o que tornara
“insustentável a linha de estâncias em torno do Recife, a qual já
pode ser flanqueada facilmente pelo sul”.15
A guerra brasílica diferia das técnicas científicas de guerra tão
em voga na Europa moderna. O uso dos índios, e de sua arte
militar, era essencial. De maneira geral, as companhias organizadas
com base em milícias voltadas para expedições específicas (ao
sertão, por exemplo) deveriam contar com o reforço dos “índios
domésticos ou mansos”, prontamente requisitados a seus senhores
ou missionários.16 A presença do indígena era constante e acabava,
pela sua adequação ao meio e às técnicas necessárias, conferindo
o caráter das atividades militares. Na verdade, os indígenas
aldeados, num arremedo do serviço das ordenanças, organizavam-
se também em “companhias” chefiadas pelo capitão de aldeia ou
capitão da nação. Criado pela lei de 1611, esse posto deveria ser
provido pelo governador-geral entre pessoas de “boa geração e
abastados de bens, e que de nenhum modo sejam de nação” (isto é,
cristãos novos).17 No entanto, o posto de capitão de aldeia seria
freqüentemente concedido aos “principais” (ou chefes) das tribos
aliadas. As patentes desses capitães de aldeia fixavam o dever que
tinham de, “com toda a gente da dita sua nação (tribo), ir para a
parte que se lhe tem determinado”, e de manter com os portugueses
“fiel amizade e comunicação”.18 Caio Prado Jr. lembrava que,
particularmente no contexto do Diretório pombalino (1757), essas
“ordenanças indígenas” foram importantes auxiliares da
administração colonial na tarefa de governar essas populações “mal
assimiladas”.19
Já no início do século XVII, o capitão-mor Jerônimo de
Albuquerque “Maranhão”, do cimo de seus 60 anos de vida, muitos
em batalhas e em tratos com os índios, explicava a seu camarada
Diogo do Campos Moreno, em alusão à sua experiência européia,
que essa guerra que faziam aqui no Brasil não era “guerra de
Flandres”, isto é, à moda européia. Na Jornada do Maranhão
(1614), Moreno se assustara com a confiança que Albuquerque
havia depositado na aliança com os naturais, ao que este lhe dizia:
“vosmecê me deixe com os índios por me fazer mercê, que eu sei
como me haver com eles, que sei que me vêm buscar de paz”. A
guerra brasílica de Albuquerque não respeitava as regras da arte
militar, exagerando na crueldade e não dando quartel aos
prisioneiros e feridos. Seu “mortal inimigo”, o general La Ravardière,
em uma carta de novembro de 1614, acusava o capitão-mor de
nada praticar daquilo “que toca à nossa arte”: “porque tu quebras
todas as leis praticadas em todas as guerras assim cristãs, como
turquescas, ou seja em crueldades, ou seja na liberdade das
seguridades”.20 Segundo Cabral de Mello, esta seria a primeira
indicação da consciência de uma “guerra brasílica”, que se definia
como a percepção de uma arte ou estilo militar peculiar do Brasil e
melhor adaptado às condições ecológicas e sociais.21 De fato, na
Europa do século XVII, a guerra fazia-se com grandes movimentos
de tropas, meditados e disciplinados, batalhas campais, exércitos
mercenários e muitas regras. A arte da guerra era, então,
essencialmente a arte de se fazer sítios ou de rompê-los. Mas nem
sempre fora assim. Segundo Geoffrey Parker, a “pequena guerra”
(der Kleine Kriege) ou a “guerrilha” havia sido uma etapa importante
na condução da guerra na Europa do século XVI. Ao lado dos
confrontos espetaculares e das grandes batalhas, toda a história
militar européia está cheia de pequenas guerras que causaram
grandes estragos ao inimigo. Porém, esse tipo de guerra
desapareceria com a demolição da rede de fortalezas que a
sustentava, no final do século XVI e início do século XVII.22 Apesar
de Portugal não estar atualizado com as novidades da arte da
guerra européia — muito em razão de ter sido poupado, pelo menos
até a guerra de Restauração (1640-68) com a Espanha, de conflitos
em escala no continente —, vários dos comandantes e oficiais, bem
como soldados das tropas regulares que combateram nesta “guerra
do Brasil” eram gente mobilizada dos campos da Europa, onde
haviam lutado em condições totalmente diferentes. D. Luís de Rojas
y Borja, veterano das guerras de Flandres, quando veio ao Brasil
teria exclamado, indignado com o tipo de luta que travavam na terra,
que “não era macaco para andar pelo mato”.23 Deste modo,
podemos compreender a novidade que significavam as “companhias
de emboscada” criadas por Matias de Albuquerque. Em relação à
subversão total da arte da guerra praticada pela gente de Jerônimo
de Albuquerque, tratava-se então de um aggiornamento, adequando
as técnicas militares locais a uma equação entre o uso das linhas
regulares e as linhas auxiliares, isto é, as ordenanças, reforçadas,
por sua vez, pelo elemento indígena.
Este processo peculiar fazia-se no quadro mais amplo das
transformações da arte da guerra na Europa. Com efeito, no bojo da
formação dos Estados nacionais, enormes mudanças tecnológicas,
organizacionais e estratégicas no campo militar acabaram
produzindo uma verdadeira revolução, capaz de explicar, em parte,
a primazia da civilização ocidental e a constituição dos impérios
coloniais. Os traços mais importantes dessa revolução foram: a
utilização crescente das armas de fogo; as transformações
subseqüentes no sistema de defesa, com as fortalezas de traço
italiano (com bastiões) substituindo a rede secular de fortificações
medievais; o declínio da cavalaria em favor da infantaria; o aumento
expressivo do contingente dos exércitos e sua profissionalização.24
No mundo colonial, onde muitas dessas novidades não se
faziam sentir de imediato, a superioridade obtida pelas forças
européias fora garantida pela capacidade de assimilação e de
acomodação de técnicas e estratégias nativas, adaptadas aos
contextos ecológicos e sociais mais diversos. Thornton notou que,
de fato, a incapacidade dos europeus para reproduzir na África o
tipo de conquista em larga escala, tal como sucedido na América
Central, os teria convencido a levar a sério as armas, as técnicas e
a organização locais: “como resultado deste reconhecimento, uma
nova arte da guerra se desenvolveu combinando armas e
estratégias européias e africanas”.25 Neste sentido, a “guerra
brasílica” era resultado não só da acomodação da arte militar
européia às condições ecológicas do Nordeste, como também da
assimilação de técnicas locais de guerra. Mais ainda, na forma mista
que assumira a guerra volante no Brasil, nas palavras de Cabral de
Mello, o uso das guerrilhas não se originava “em considerações de
ordem tecnicamente militar”, uma vez que estaria associado “nestes
inícios de guerra [1630-36] ao fato de que a guerrilha oferecia a
única maneira de utilização militar da camada mais ínfima e
economicamente marginalizada da população local, mestiços e
ociosos, malfeitores, foragidos da justiça d’elrei, inábeis para a
disciplina das guarnições como antes já se tinham revelado
refratários à rotina dos engenhos”.26 Mas, como foi dito, à utilização
dessas camadas marginais, de criminosos freqüentemente aliciados
por bandos e editais que lhes ofereciam o perdão em troca do
alistamento, somava-se o uso do indígena. Como se percebe, fazia-
se mister o comando da guerra estar nas mãos de indivíduos
conhecedores das “manhas e engenhos” da terra. Resumindo a
questão, o padre Antônio Vieira dizia que, para a guerra no Brasil,
bastava um sargento-mor, “e esse dos da terra e não de Elvas ou de
Flandres”. Mais ainda, o Brasil, que tinha “tantas léguas de costa e
de ilhas e de rios abertos”, não haveria de se defender, “nem pode,
com fortalezas nem com exércitos, senão com assaltos, com
canoas, e principalmente, com índios e muitos índios; e esta guerra
só a sabem fazer os moradores que conquistaram isto, e não os que
vêm de Portugal”.27
A longa guerra de restauração de Pernambuco (1645-54) teve
seu sucesso garantido, entre outras coisas, exatamente pela
utilização dessa forma adaptada de fazer a guerra no contexto
colonial. Como mostrou Cabral de Mello, existia uma
homogeneidade brasileira da experiência militar dos chefes da
restauração. De fato, ambos os lados, holandeses ou luso-
brasileiros, utilizaram-se de linhas auxiliares transformadas: grupos
de combate aclimatados aos matos e compostos, em sua grande
maioria, por indígenas ou sertanejos e matutos. Segundo o
historiador, após a expulsão dos holandeses em 1654, a guerra
volante conhece um rápido processo de “arcaização”. Em outras
palavras, a “guerra brasílica” decaíra para uma arte militar adequada
apenas às “áreas arcaicas, afastadas da marinha e das
praçasfortes, técnicas quase que só para sertanistas de São Paulo e
bugres e negros aquilombados dos sertões do Nordeste”. No início
do século XVIII, uma especialização de funções se imporia: para as
guerras dos sertões, contra os bárbaros levantados ou os negros
aquilombados, a “guerra do mato”; para fazer face aos estrangeiros
na marinha, as “regras militares científicas”.28

Guerra dos Bárbaros e as jornadas do sertão


Na segunda metade do século XVII, o “sertão brasileiro” da
América portuguesa foi palco de uma série de conflitos entre os
povos indígenas e os recém-chegados colonos luso-brasileiros —
conflitos que em seu conjunto foram conhecidos na época como a
“guerra dos Bárbaros”, porque por “bárbaros” se tomavam os
indígenas que imaginavam estar “invadindo” as fronteiras do Império
português e cristão. Resultado de diversas situações criadas com o
avanço da fronteira da pecuária e a necessidade de conquistar e
“limpar” as terras para a criação do gado, essa guerra envolveu
grupos indígenas diversos que lutavam contra moradores, soldados,
missionários e agentes da Coroa portuguesa. A guerra dos Bárbaros
foi também uma das mais longas, concorrendo com as “guerras dos
Palmares” (1644-95), ocorridas na mesma época.29
As soluções inicialmente propostas e encetadas pelos
governadores para os conflitos passavam pela utilização das tropas
regulares estacionadas nas fortalezas, ou ainda pela mobilização
das milícias das ordenanças em esquadras volantes. Essas
improvisações, que levavam em conta a experiência dos cabos e
soldados na guerra “ao modo” do Brasil, sempre pareceram o meio
de reprimir os levantes dos índios bárbaros. Não obstante, tal
situação evoluiu para a consolidação de um novo tipo de força
militar nativa: as expedições organizadas expressamente para um
evento no sertão. As “jornadas do sertão”, também chamadas de
“entradas” ou “bandeiras”, eram na verdade empresas patrocinadas
pela autoridade competente, fosse o governador ou o capitão-mor,
que provia com um título de caráter exclusivamente honorífico um
capitão ou um cabo de uma esquadra e lhe passava um regimento
definindo sua tarefa e, sobretudo, sua jurisdição especial. No caso
das entradas destinadas à punição de grupos indígenas ou à
captura de escravos, esse título na verdade significava a garantia da
legalidade da expedição, nos termos da lei de 24 de fevereiro de
1587.30
A remuneração dos serviços prestados poderia vir a posteriori,
com mercês e favores da monarquia, ou mesmo com a garantia do
butim obtido, fosse em escravos ou em mantimentos. Geralmente, o
governador, ao prover um capitão para uma jornada ao sertão,
poderia fornecer armamentos e matalotagem suficientes para
abastecer a expedição. O pagamento dos soldos não era de praxe.
Com o desenrolar da guerra dos bárbaros, desde os episódios no
Recôncavo baiano, algumas exceções foram praticadas pelos
governadores-gerais, mas sua validação no âmbito da
administração metropolitana sempre resultava em confusões
administrativas. Em 1671, o visconde de Barbacena concordou em
pagar soldos aos oficiais e soldados da tropa de Estevão Ribeiro
Baião Parente.31 Frei Manuel da Ressurreição, que ocupava
interinamente o posto de governadorgeral, ofereceu a Domingos
Jorge Velho a patente de governador de um regimento a ser criado
com a reunião de sua gente, com proeminências de mestre-de-
campo, além de uma de sargento-mor, quatro de capitães e duas de
ajudantes, todas em branco para que ele as preenchesse. E todas
essas patentes valendo soldos, à diferença daquelas atribuídas para
fazer guerra aos negros dos Palmares.32 Matias da Cunha, por sua
vez, ofereceu a Matias Cardoso nomeá-lo governador de um
regimento com as mesmas “proeminências de mestre-de-campo, e
como tal vencer o soldo desde o dia em que partiu”.33 O que se
oferecia eram postos de oficiais das tropas regulares, isto é, da
infantaria, cujo provimento, segundo o “regimento das fronteiras” de
1645, só podia ser concedido se comprovado o serviço como
soldado por seis anos, no caso do mestre-de-campo, e quatro anos,
no caso de sargento e alferes.34 No entanto, o pagamento desse
soldo não foi reconhecido imediatamente pela Coroa e causou
postergações embaraçosas.
O interesse e a premência de utilizar essas tropas
especializadas no tipo de esforço militar exigido esbarravam nas
dificuldades decorrentes do processo em curso de formalização da
atividade militar. Como vimos, somente com a Restauração Portugal
constituiria um exército permanente em termos modernos. De fato, o
chamado “regimento das fronteiras”, de 25 de agosto de 1645, que
criou o posto de vedor-geral do Exército, objetivava estabelecer as
bases da regulamentação das tropas portuguesas deslocadas para
as guerras com a Espanha. Ao vedor cabia, como diz o próprio
nome, “ver” as tropas de infantaria e montadas e fazer-lhes
auditoria, assim como justificar e acompanhar os gastos e o
pagamento dos soldos.35 Esse regimento, apesar de circunscrito ao
episódio da guerra de Restauração, tinha sua validade expandida,
como era normal, para todos os contextos posteriores no Império
português, servindo de regulamento para várias questões relativas
aos postos de infantaria situados no Brasil. A hierarquia das tropas
regulares normalmente previa que o encarregado-geral de uma
jurisdição fosse também o governador das armas. Segundo o
gênero da companhia, e estamos falando apenas das ocupadas dos
eventos terrestres, variavam as denominações. Na infantaria havia o
mestre-de-campo, o alferes, o sargento (oficiais), os cabos e
soldados (praças); na cavalaria, o general de cavalaria, o tenente-
general de cavalaria, o capitão de cavalos (oficiais) e os soldados
(praças). Além disso, havia a artilharia, onde existiam o capitão de
clavinas e os clavineiros (os alferes eram proibidos) e as outras
companhias específicas. No Brasil, estacionadas no território havia
notadamente tropas de infantaria. Os postos de oficiais, cuja renda
dos provimentos (os soldos) era de grande interesse para os seus
proprietários, podiam representar, em parte, apenas uma tença
honorária. Donde o regimento, neste particular, preocupava os
proprietários dos postos, uma vez que o vedor-geral e seus
auditores estavam interessados principalmente em deslindar fraudes
e suspender os rendimentos dos ausentes e desocupados.
Passados 20 anos, os abusos eram ainda motivo de
preocupação. Em 1664, o rei havia pedido ao governador-geral, o
conde de Óbidos, que averiguasse o excessivo número de mestres-
de-campo, tenentes e oficiais maiores do exército de Pernambuco.
Com efeito, o conde achava que a “disciplina militar” escusava tais
excessos. As ordenanças podiam muito bem substituir as tropas
regulares na defesa da terra e, deste modo, desonerar a Fazenda e,
em última instância, os próprios moradores:

em cada freguesia basta um capitão de ordenança para a gente


de pé e, [para a gente] de cavalo, dois coronéis; que, se oferecer
ocasião, o valor dos moradores, e não o número desses cabos
[oficiais das tropas regulares], os há de levar a obrigação de sua
fidelidade, e não será justo que, quando devem descansar em
paz para reedificar suas casas e aumentar suas lavouras,
padeçam o inconveniente de obedecer a tantos oficiais maiores
como se ainda estivessem em guerra viva.36

No pós-guerra, as ordenanças haviam sido reestruturadas


segundo o regimento de 25 de setembro de 1654, passado ao então
governador-geral, conde de Atouguia. Procurava-se, através de um
controle mais estrito, garantir a disponibilidade das tropas, sempre
bem armadas e treinadas. O regimento determinava que cada
soldado das ordenanças deveria possuir uma arma, arcabuz ou
espingarda, um arrátel de pólvora, 24 balas e o morrão necessário.
Quem não tivesse este equipamento deveria pagar multa de cinco
tostões e, em caso de reincidência, 6 mil-réis. As companhias eram
divididas em “companhias de cavalo” e “companhias de pé”,
dependendo da forma como o soldado se apresentava. No interior
dos domínios senhoriais, cada engenho deveria ter seus “oficiais de
engenho”, que tinham a obrigação de “passar mostra” (verificar a
presença) nos dias santos ou domingos (para não atrapalhar os
trabalhos), e a falta nisso implicava multa de 1 mil-réis para os
pobres e 4 mil-réis para os ricos; no caso dos soldados das
companhias de cavalo, a multa era ainda maior: 20 mil-réis. Além
disso, em cada freguesia o capitão era o responsável por manter as
roças plantadas em conformidade com as necessidades de sustento
das tropas. Ao sargento-mor cabia “passar mostra” em todas as
companhias de ordenanças da capitania.37
Neste contexto, poderíamos imaginar que as tentativas de frei
Manuel da Ressurreição e de Matias da Cunha esbulhavam a
regulamentação tão preciosa dos reformadores portugueses. Daí a
resistência que encontraram na Metrópole. Na verdade, tal como em
Portugal, buscava-se um enquadramento da informalidade das
linhas auxiliares (ordenanças) em regras mais estritas de um
exército regular, apto ao escopo centralista do governogeral da
Bahia. Em outras palavras, adequar uma realidade preexistente à
normalização militar imaginada pela administração colonial. E, no
caso das tropas paulistas, a novidade era ainda maior, uma vez que
essas “linhas auxiliares” vinham de um contexto em que as
ordenanças tinham evoluído de uma maneira totalmente peculiar,
especializadas que eram na “guerra brasílica”. A força
especificamente paulista de organização dessas expedições
sertanejas sobrepor-se-ia no Nordeste aos arranjos militares
tradicionais, implicando um desdobramento, ou evolução, de suas
disposições originais em face das novas funções em jogo. O recurso
aos paulistas significaria a adoção decisiva da arte da guerra
colonial, apta a enfrentar o modo de guerra dos bárbaros. A sua
institucionalização na ordem militar do Império seria, pouco a pouco,
condição para o recrutamento.

Paulistas e os “ares do sertão”


Os sertanistas da vila de São Paulo de Piratininga
particularizavamse, desde o final do século XVI, por possuir um
estilo militar perfeitamente adaptado às condições ecológicas do
sertão. Na opinião do padre Antônio Vieira, eram os paulistas “os
mais valentes soldados de todo o Brasil”.38 Essas “bandeiras”
paulistas tinham uma dinâmica e um modo de operação ajustados
para seus intentos de penetração nos sertões em busca do provável
mineral precioso ou do infalível cativo indígena. Sabiam manejar a
situação de carência alimentar e eram destros para a navegação
nos matos fechados, nos cerrados ou caatingas. Como mostrou
Sérgio Buarque de Holanda, “a arte de guerrear torna-se, em suas
mãos, um prolongamento, quase um derivativo, da atividade
venatória, e é praticada, muitas vezes, com os mesmos meios”.39 A
mobilidade característica dos paulistas estava condicionada à
insuficiência do meio: “distanciados dos centros de consumo,
incapacitados, por isso, de importar em apreciável escala os negros
africanos, eles deverão contentar-se com o braço indígena — os
‘negros’ da terra; para obtê-lo é que são forçados a correr sertões
inóspitos e ignorados”. Segundo o historiador, com mais “liberdade e
abandono do que em outras capitanias”, a colonização em São
Paulo realizou-se “por um processo de contínua adaptação a
condições físicas do ambiente americano”.40 Neste processo, o
indígena, seus costumes e técnicas tornaram-se seus aliados
preciosos.
A historiografia, de maneira geral, tem apontado a bandeira
como uma forma característica da organização militar que estruturou
a sociedade paulista. Designando como coisas distintas as entradas
e as bandeiras, pretendia robustecer a idéia de uma especificidade
regional. As primeiras seriam aquelas expedições organizadas pelos
colonos, por conta própria, objetivando a caça do gentio. Já as
bandeiras seriam expedições de caráter misto, meio civil, meio
militar, que, além do cativeiro dos índios, se interessavam pelas
descobertas de metais preciosos.41 Em São Paulo, as bandeiras
teriam moldado um modo de vida: o “banderismo” ou o
“bandeirantismo”. Alfredo Ellis Jr. foi, sem dúvida, o paladino desta
interpretação que alimentou numerosos outros estudos e polêmicas
intermináveis.42 Outra vertente, derivada de Capistrano, interpretava
a bandeira como qualquer expedição destinada ao sertão. Segundo
seu “esquema”, existiam bandeiras paulistas, pernambucanas,
baianas, maranhenses e amazônicas.43 Hélio Vianna, seguindo
essa orientação, organizou uma tipologia do “bandeirantismo” na
qual diferenciava “ciclos”: o de apresamento de indígenas, o de ouro
de lavagem, o de sertanismo de contrato, o do ouro e o de
povoamento.44 Tais soluções ecoam, ainda hoje, nos manuais
escolares, mas servem mais à simplificação do que à compreensão
da história. Nada disso deve nos interessar aqui.
Quanto à distinção entre bandeiras e entradas, Jaime Cortesão
já nos mostrou que os documentos não estão de acordo. De fato,
bandeiras, entradas, jornadas, expedições e conquistas tinham
significados intercambiáveis e variavam conforme o contexto. De
maneira geral, estes são termos igualmente comuns em todas as
capitanias e regiões do Brasil. “Bandeira”, especificamente, era a
forma como se designavam também as companhias das
ordenanças, isto por um motivo bem simples: segundo o capítulo 17
do regimento de 1570, “cada um dos capitães das companhias”
deveria ter a sua bandeira de ordenança, que era carregada pelo
tambor ou pelo alferes.45 Donde toda a documentação, tal como
demonstrou Cortesão, falar indiferentemente de bandeiras e
companhias. “Entrada” e “jornada”, como parece evidente, são
denominações de expedições ao interior do país, que podiam ser
levadas a termo por um terço completo ou por algumas companhias,
ou bandeiras, destacadas para tal. Daí as denominações serem
feitas por analogias. Não obstante, seria errado não perceber que a
bandeira sertanista, na sua feição paulista, resultou de uma
evolução específica da instituição miliciana portuguesa, que,
generalizada na sociedade do Planalto, conformou “um gênero de
vida típico, próprio, específico da gente de São Paulo”.46
Segundo um papel anônimo, de 1690, a experiência havia
demonstrado, até então, que nem a infantaria “nem ainda as
ordenanças” haviam sido “capazes para debelar estes inimigos nas
incultas brenhas e inacessíveis rochedos e montes do sertão”; “só a
gente de São Paulo é capaz de debelar este gentio, por ser o
comum exercício penetrarem os sertões”.47 A razão disto era a
forma como os tapuias faziam guerra nos matos, o que exigia uma
tática e uma tecnologia especiais. Gregório Varela de Berredo
Pereira, autor de um “breve compêndio” sobre o governo
pernambucano de Câmara Coutinho (1689-90), tinha para si “que se
este inimigo [os bárbaros] fizera forma de batalha, depressa [seria]
desbaratado”. Mas, como explicava, tal não era o caso, porque se
tratava de nações “fora de todo o uso militar”, isto é, da forma
européia moderna de guerra, “porque as suas avançadas são de
súbito, dando urros que fazem tremer a terra para meterem terror e
espanto e logo se espalham e [se] metem detrás das árvores,
fazendo momos como bugios, que sucede às vezes meterem-lhe
duas e três armas e rara vez se acerta o tiro pelo jeito que fazem
com o corpo”.48
Outro papel anônimo, de 1691, também argüia que as “grandes
expedições de infantaria paga, e da ordenança, com grandes
despesas da Fazenda real e contribuições dos moradores” vinham
resultando sem efeito “não por falta de disposição dos cabos, nem
de valor nos soldados, mas, repare-se nesta circunstância, pela
eleição do meio só”. Isto porque, segundo o autor deste papel, seria
“necessário para a conquista destes gentios” adaptarse ao seu
“modo de peleja”, que era “fora do da arte militar”, pois,

eles [vão] nus, e descalços, ligeiros como o vento, só com arco e


flechas, entre matos, e arvoredos fechados, os nossos soldados
embaraçados com espadas, carregados com mosquetes, e
espingardas e mochilas com seu sustento, ainda que assistem o
inimigo não o podem seguir, nem prosseguir a guerra: eles
acometem de noite por assaltos nossas povoações, casas,
igrejas, lançando fogo aos ingovernos, matando gente e
roubando os bens móveis que podem carregar, e conduzindo os
gados, e criações e quando acudimos o dano está feito. E eles
[andam] escondidos entre os matos onde os nossos soldados
não podem seguir com a mesma segurança, instância e
diuturnidade por [estarem] carregados de ferro e mochilas, em
que carregam o seu sustento que não pode ser mais que para
quatro ou seis dias [enquanto que] os bárbaros [têm seu
sustento] nas mesmas frutas agrestes das árvores, como
pássaros, nas raízes que conhecem e nas mesmas imundices
de cactos, cobras, e caças de quaisquer animais e aves.49

Ora, segundo ainda este autor, teria sido exatamente por isso
que a “Divina Providência” criou na província de São Paulo “os
homens com um ânimo intrépido, que se inclinou a dominar este
miserável gentio”. Semelhantes aos inimigos silvícolas, pois viviam
“sempre em seu seguimento”, acabaram por “ter por regalo a
comida de caças, mel silvestre, frutas, e raízes de ervas, e de
algumas árvores salutíferas e gostosas de que toda a América
abunda”. É nos “ares do sertão” que suas vidas se fazem
“gostosas”, sendo que “muitos deles nascem, e envelhecem”, nos
matos: “estes são os que pois servem para a conquista e castigo
destes bárbaros, com quem se sustenta, e vivem quase das
mesmas coisas, e a quem o gentio só teme e respeita”.50 Era
exatamente o que explicava, 10 anos antes, o autor de um outro
papel que sugeria o uso dos paulistas para a defesa da colônia do
Sacramento: “porque são homens capazes para penetrar todos os
sertões por onde andam continuamente, sem mais sustento que
coisas do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e raízes de
vários paus, e não lhes é molesto andarem pelos sertões anos [a fio]
pelo hábito que têm feito àquela vida”.51
Ao modo de guerra dos tapuias — “de ciladas e assaltos [que] é
como um raio que passa”, na expressão de Pedro Carrilho de
Andrade52 — deveria corresponder uma tática peculiar. A forma
específica das “regras paulistas” para o ataque aos índios, chamada
de “albarrada”, era assim estabelecida em um regimento de 1727: a
aproximação se fazia com cautelas indígenas, seguindo os rastros,
“sem tosse nem espirros”, até chegar bem próximo do inimigo e
então, com um grito medonho para apavorá-los, fazer o assalto.53
Os paulistas imitavam, assim, o modo de guerrear dos índios. Frei
Vicente do Salvador explicava que os índios costumavam se
aproximar sorrateiramente da aldeia de seus contrários, “de maneira
que possam entrar de madrugada e tomá-los descuidados e
despercebidos, e depois entram com grande urro de vozes e
estrondo de buzinas e tambores que é espanto”.54 Mas a tática dos
paulistas previa também algumas negaças. Em 1676, o capitão
“sampaulista” Manuel de Lemos quis enganar os topins que
estavam levantados na região do Recôncavo baiano, falando-lhes
que os paulistas “não eram brasileiros, mas um povo diferente, seus
parentes e que [feitas as pazes] poderiam comer juntos, casar seus
filhos com filhas deles, e as filhas deles com seus filhos”.55 Outro
costume era amedrontar com fortes ameaças aos inimigos, como o
fez Domingos Jorge Velho com os cracuis rebeldes do rio São
Francisco.56 Segundo João Lopes Serra, que descrevia o modo
genérico das táticas paulistas,

tão logo as bandeiras encontram os bárbaros, eles [os paulistas]


fingem que o capitão-mor está próximo com mais tropas e que
sua rendição é necessária, caso contrário seriam todos mortos
pelas armas de fogo — e o fazem entender o que isso significa
atirando em alguns animais, que eles matam, coisa que assusta
grandemente aos bárbaros. Se eles se rebelarem, os paulistas
fazem-nos entender que os perseguirão mesmo que se
espalhem pelo sertão.57

No contexto da guerra dos bárbaros, com a intensificação dos


“ataques” dos “índios bravos” às fazendas e vilas no Nordeste e o
completo fracasso das investidas das tropas regulares ou das
jornadas organizadas com as ordenanças locais, a utilização dos
sertanejos paulistas parecia solução necessária. Avaliando o mau
desempenho das jornadas dos capitães Diogo de Oliveira Serpa
(1651), Gaspar Rodrigues Adorno (1651-54), Tomé Dias Lassos
(1656) e Bartolomeu Dias Aires (1657), o novo governador-geral do
Brasil, Francisco Barreto, resolveu pela “contratação” de uma
companhia de paulistas experientes. Como já foi dito, o mestre-de-
campo general nomeado para a guerra contra os holandeses
conhecia bem as vantagens do uso da arte da guerra brasílica. Feito
governador de Pernambuco logo após a expulsão dos holandeses,
havia mandado castigar os tapuias do Rio Grande e “tirar a ocasião
de [destruir os] mocambos” dos negros dos Palmares.58 Quando
escreveu ao capitão-mor de São Vicente para acertar um contrato
com os paulistas, julgava que apenas estes “sertanistas” poderiam
enfrentar com sucesso os índios bárbaros. Desta maneira, foi a
expedição capitaneada por Domingos Barbosa Calheiros contra os
topins no Recôncavo baiano (1658) que inaugurou a presença dos
paulistas nas guerras do sertão nordestino.
Inicialmente “contratados” sob promessas de cativos, terras e, de
maneira incerta, soldos, a participação dessas tropas treinadas para
o combate nos matos evoluía para uma formalização maior nos
quadros da estrutura militar do Estado do Brasil. Com efeito, é
justamente o que se passa no governo de João de Lencastro (1694-
1702), quando as estratégias para o enfrentamento dos tapuias
rebeldes na guerra do Açu se esgotavam, e a própria presença do
Império na região estava em perigo. Perigo imposto muito mais pela
longa duração da guerra, que degenerara o povoamento do sertão
pernambucano, do que pela ferocidade dos combates. Para
Lencastro, “só esses homens” eram “capazes de fazer guerra ao
gentio”, como já o haviam demonstrado na Bahia, “deixando em
poucos anos essa capitania livre de quantas nações bárbaras a
oprimiam, extinguindo-as de maneira que de então até hoje, se não
sabe haja nos sertões que conquistaram gentio algum que o
habite”.59 Neste sentido, seguindo os conselhos do secretário do
Estado do Brasil, Bernardo Viera Ravasco, o rei ordenou em carta
de 10 de março de 1695 que o governador-geral levantasse um
terço de paulistas para a guerra aos bárbaros do Rio Grande, na vila
de São Paulo e nas mais circunvizinhas.60 Domingos Jorge Velho,
em 1694, havia opinado sobre o caráter um pouco lasso das tropas
de São Paulo até então. Segundo seu parecer, as tropas com que
iam “à conquista do gentio bravo desse vastíssimo sertão não
[eram] de gente matriculada nos livros de Vossa Majestade, nem
obrigada por soldo, nem por pão de munição”; antes, eram “umas
agregações que fazemos alguns de nós, entrando cada um com os
servos de armas que tem e juntos íamos”.61 Diferentemente do que
se praticara, a novidade era que se tratava agora de erigir um terço
de infantaria, isto é, de tropas regulares, cujos postos deveriam ser
devidamente assentados e pagos. Na capitania de Pernambuco
existiam então apenas os terços da guarnição da vila do Recife, da
guarnição da cidade de Olinda, de Itamaracá e o terço dos
Palmares, recém-criado.62 O terço dos Palmares e o da guerra dos
bárbaros eram representativos do processo de formalização da
“guerra brasílica”, que se enquadrava em sua especificidade no
sistema militar do Império português e ganhava uma identidade
particular, com uma legislação própria. Essas guerras previam
contratos para a remuneração dos serviços que ultrapassavam o
simples pagamento dos soldos, com promessas de cativos e terras,
e uma legislação especial que garantia a utilização de crueldade
máxima para com os inimigos. Isto porque, para além da natureza
das técnicas militares em uso nos matos e sertões, típicas do modo
“brasílico” da arte da guerra, essas tropas tinham autorização
expressa de assim tratar os inimigos contra os quais elas haviam
sido mobilizadas: sejam eles bárbaros ou quilombolas, ambos tidos
por infiéis e inimigos do Império português e, portanto, do orbe
cristão.

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* Uma primeira versão deste texto foi publicada, em março de 1999, na revista
Novos Estudos Cebrap (São Paulo, v. 52;189-204) e, depois, parcialmente, no
capítulo 5 de meu livro (2002).
** Doutor em história social pela USP. Professor da USP e pesquisador do
Cebrap.
1 Ver Mendonça (1972: 46-47).
2 Mendonça, 1972: 145-151.
3 Ibid., p. 157-78.
4 Ver Schwartz (1979:173-177). A introdução dos tercios na Espanha deve-se
à iniciativa do capitão Gonçalo de Córdova, que, desenvolvendo os princípios
da arte da guerra suíça — cuja infantaria era formada por falanges de 6 mil a
8 mil homens, eriçadas em piques, e oferecia uma resistência importante à
cavalaria — e os associando à utilização ampliada das armas de fogo,
“concebeu uma organização cuja unidade principal era a coronelia, esquadrão
ou terço de 6 mil homens, comandada por um coronel e dividida em 12
companhias ou batalhões de 500 homens cada, comandadas por um capitão
ou alferes abandeirado; a cada 100 homens destas companhias competia um
cabo de batalhão; e a cada 10 homens um cabo de esquadra. Em cada terço
ou coronelia, 10 companhias constavam de 200 piqueiros, 200 rodeleiros e
100 arcabuzeiros cada; e as duas restantes eram exclusivamente de
piqueiros” (Selvagem, 1991:332-334).
5 Ver Costa (2003); Hespanha (2003). Para uma análise das relações entre as
elites locais e os poderes militares, ver Rodrigues (2003).
6 Para Prado Jr. (1953:322, 325-326), estes senhores, “revestidos de patentes
e de uma parcela de autoridade pública”, se tornariam “guardas da ordem e
da lei que lhes vinham ao encontro; e a administração, amputando-se talvez
com esta delegação mais ou menos forçada de poderes, ganhava no entanto
uma arma de grande alcance: punha a seu serviço uma força que não podia
contrabalançar, e que de outra forma teria sido incontrolável. E com ela
penetraria a fundo na massa da população, e teria efetivamente a direção da
colônia”.
7 Apud Salgado (1985:100-102, 164).
8 Alvará sobre a eleição dos capitães-mores, de 18-10-1709 (Biblioteca
Nacional de Lisboa, Reservados 2.359, p. 32-35).
9 Ver Alden (1968:36-39).
10 Ver Salgado (1985:97).
11 Ver Schwartz (1979:173-177); Costa (1958).
12 Como escreveu Duarte de Albuquerque Coelho (1944:57): “sua utilidade
[das emboscadas] cada dia se fazia mais notória pelo grande temor que o
inimigo foi delas conhecendo. Não ousava sair nem mesmo às hortas da vila
que ocupava. Com a presença destes capitães de emboscada, não só se
lograva o presente efeito, como de futuro servia ela de muito, vedando-lhes,
com este receio, o comerciar com os moradores, e obstando-lhes, por seis
anos, de apoderaram-se da campanha”.
13 Mello, 1975:24.
14 Apud Leite (1944).
15 Mello, 1975:233-234.
16 Ver Sodré (1965:29-32).
17 Ver Thomas (1982:231).
18 Patentes em branco de 1672 (Documentos históricos. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, v. 12, p. 211-214; doravante DH).
19 Prado Jr., 1953:326.
20 Ver Moreno (1984:38, 56).
21 Ver Mello (1975:230).
22 Ver Parker (1993:65).
23 Ver Mello (1975:236).
24 Sobre a “revolução militar”, o livro fundamental é o de Parker (1993). A
edição original, em inglês, é de 1988, mas a edição francesa, além de estar
mais atualizada, responde às objeções dos críticos, particularmente as de
Black (1991). David Eltis (1995) contribuiu para o debate com seu livro sobre
o século XVI. Os textos mais importantes para o debate foram reunidos e
publicados por Clifford J. Rogers (1995), entre os quais o pioneiro artigo de
Michael Roberts, “The military revolution, 1560-1660”, aparecido em 1957.
Para as guerras e as técnicas militares no ultramar e no mundo colonial, ver
também Cipolla (1965).
25 Thornton, 1988.
26 Mello, 1975:217-248.
27 Vieira, 1949:166.
28 Ver Mello (1975:242, 245-247).
29 Conjunto complexo e heterogêneo de batalhas esparsas no sertão, a
guerra dos Bárbaros pode ser dividida entre os acontecimentos no Recôncavo
baiano (1651-79), e as “guerras do Açu” (1687-1705), na ribeira do rio deste
nome, no sertão do Rio Grande do Norte e Ceará. Ver Puntoni (2002).
30 Lei sobre os índios que não podem ser cativos e os que podem ser, 24-2-
1587 (Thomas, 1982:222-224).
31 Ver Schwartz (1979:47-48).
32 Carta, 14-10-1688 (DH, v. 10, p. 313-315).
33 Carta, 9-12-1688 (DH, v. 11, p. 147-149).
34 Ver os capítulos 14 a 16 do Regimento das fronteiras de 1645 (Mendonça,
1972:631-656).
35 Ibid.
36 Carta do conde de Óbidos ao rei, 18-3-1665 (Arquivo Público do Estado da
Bahia, Salvador, cod. 135-1, fl.179v-180).
37 Regimento de 25-9-1654, conde de Atouguia (DH, v. 4, p. 174-177). O
regimento de Roque da Costa Barreto, de 1677, que vinha substituir o de
Tomé de Souza, esclarecia que as companhias de ordenanças da Bahia
deveriam exercitar-se em suas freguesias todo o mês e fazer “alardos gerais
três cada ano”. Os postos na Bahia passariam a ser providos pelo
governador-geral. A partir de 1704, os postos das ordenanças em todo o
Estado do Brasil passaram a ser providos pelo governador-geral, e não mais
pelos capitães-mores. Ver os capítulos 15 e 16 do Regimento de Roque da
Costa Barreto, 23-1-1677 (Guedes, 1962:173-196; e Garcia, 1956:112).
38 Vieira, 1949:63.
39 Holanda, 1957:146.
40 Holanda, 1990:16.
41 Ver Loreto (1946:131-140).
42 Ver Ellis Jr. (1936, 1942:153-222, 1948:28-34). Em arroubos patrioteiros,
Ricardo Román Blanco (1966) tinha as bandeiras na conta da “más genial y
extraordinaria organización bélico-militar, que la historia de la humanidad
conoce”. Sua redundante tese de doutorado, entre outras coisas, procura
mostrar as relações entre as expedições dos sertanistas paulistas e a legião
romana ou as falanges macedônicas.
43 Ver Abreu (1963:338).
44 Ver Vianna (1965:192-202). Para um balanço crítico da historiografia
paulista, ver o excelente capítulo primeiro do livro de Blaj (2000).
45 Ver Mendonça (1972).
46 Cortesão, 1975:50-69, 1958:51-81.
47 Sobre o gentio que se rebelou nas capitanias do Ceará, Rio Grande e
Paraíba, c. 1690 (Biblioteca da Ajuda, Lisboa, 54 XII 4 52).
48 Breve compêndio do que vai obrando neste governo de Pernambuco o sr.
governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho… Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 51, n. 267, 1979.
49 Sobre os tapuias que os paulistas aprisionaram na guerra e mandaram
vender aos moradores do Porto do Mar, e sobre as razões que há para se
fazer a guerra aos ditos tapuias, 1691 (Biblioteca da Ajuda, Lisboa, 54 XIII 16,
fl.162).
50 Biblioteca da Ajuda, Lisboa, 54 XIII 16, fl.162.
51 Informação anônima do Brasil, década de 1680 (BNP, códice 30, fl. 209).
Para um retrato desses “bandeirantes” em ação, ver também Hemming
(1978:238-253).
52 Memorial de Pedro Carrilho de Andrade, 1703 (Arquivo Histórico
Ultramarino, Lisboa, papéis avulsos, Pernambuco, caixa 16).
53 Regimento que se deu a Pedro Leolino Mariz, 1727 (apud Calmon, 1959, v.
3, p, 721).
54 Salvador (1982:85).
55 Ver Schwartz (1979:69-71).
56 F. Bernard de Nantes. Relation de la mission des indiens Kariris du Brezil
situés sur le grand fleuve de S. François du coté du sud a 7 degrés de la ligne
equinotiale, 12-9-1702 (manuscrito de coleção particular, p. 22 e segs).
57 Ver Schwartz (1979:71-72).
58 Carta do conde de Atouguia para o mestre-de-campo general Francisco
Barretto, 203-1655 (DH, v. 3, p. 265).
59 Carta de João de Lencastro ao governador de Pernambuco, Fernando
Martins Mascarenhas, 11-11-1699 (DH, v. 39, p. 86-92).
60 Carta régia ao governador-geral, 10-3-1695 (DH, v. 11, p. 252-254).
61 Carta de Domingos Jorge Velho ao rei, 15-7-1694 (apud Ennes, 1938:205);
o grifo é meu.
62 Relação dos oficiais de milícia pagos que servem na capitania de
Pernambuco, por Sebastião de Castro e Caldas, 20-6-1710 (Arquivo Histórico
Ultramarino, Lisboa, papéis avulsos, Pernambuco, caixa 17).
CAPÍTULO 2

A guerra e o pacto: a política de intensa mobilização


militar nas Minas Gerais

Christiane Figueiredo Pagano de Mello*

Este capítulo se propõe analisar o funcionamento dos corpos de


auxiliares e de ordenanças, organizações militares encarregadas da
prestação de serviços gratuitos a que eram obrigatoriamente
engajados todos os súditos em condições de tomar armas.
Localizamos nosso trabalho mais especificamente na capitania de
Minas Gerais, centralizando nossa investigação em um corte
cronológico que abarca a segunda metade do século XVIII.
Inicialmente, cabe observar que o interesse pela história militar
do Brasil colonial ainda tem-se mostrado bastante reduzido. Poucos
são os trabalhos dedicados a esse tema na produção historiográfica
brasileira e, mais especificamente, aqueles consagrados ao estudo
das chamadas organizações militares de ordenanças e de
auxiliares, muito embora elas sejam reconhecidas como instituições
de grande relevância na sociedade colonial por historiadores como
Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e Nelson Werneck Sodré.
Disseminadas por todo o território da Colônia e nelas estando
obrigatoriamente engajados todos os homens válidos para o serviço
militar, as ordenanças e os auxiliares nos remetem, pois, ao tipo de
comunicação existente entre as esferas local e central. Uma
comunicação estabelecida e viabilizada através de um “sistema de
administração intermédia”, como diz Antônio Manuel Hespanha, “em
que a Coroa deixava permanecerem em funcionamento todas as
estruturas políticas periféricas, assegurando através delas a
realização dos seus objetivos políticos globais”.1 As ordenanças e
os auxiliares, bem como os outros centros de poder local que
atuavam como agentes intermediários, asseguravam a
comunicação, o elo e o vínculo entre o centro e a periferia. Nesse
sentido, cabe ressaltar o papel de destaque que tais organizações
militares desempenharam na administração colonial, e a dimensão
dessa importância bem pode ser expressa nas palavras de Caio
Prado Jr., quando ele diz: “estenderam-se com elas, sobre todo
aquele território imenso, de população dispersa, as malhas da
administração cujos elos teria sido incapaz de atar, por si, o parco
funcionalismo oficial”.2 Podemos ainda afirmar, como Raymundo
Faoro, que as ordenanças e os auxiliares constituíram “a espinha
dorsal da Colônia, elemento de ordem e disciplina”.3
No intuito de contribuir para o estudo do assunto, pretendemos
desenvolver aqui uma reflexão sobre a dinâmica do pacto que se
estabelecia entre a Metrópole e a Colônia, analisando o
funcionamento das organizações militares nesta última e buscando
identificá-las como espaços de construção das negociações que
fundamentavam os vínculos políticos entre ambas. É nessa
perspectiva que buscaremos compreender a inserção dos corpos de
ordenanças e de auxiliares no contexto da sociedade colonial.
Portanto, trabalharemos com a idéia de pacto como o resultado
político das negociações geradas pelos interesses do poder central
metropolitano, representados na Colônia pelo vice-rei e os
governadores, e os das elites locais coloniais, no caso, os homens a
quem se destinavam os postos de comando dos corpos de
auxiliares e de ordenanças. Partiremos do princípio de que esses
corpos militares tiveram papel fundamental na dinâmica da
sociedade colonial e na sua relação com a Metrópole, constituindo-
se num canal por meio do qual se efetivava a interlocução
Metrópole-Colônia, com suas conseqüentes negociações. Em outros
termos, tais corpos militares constituir-se-ão, em nossa análise, em
centros de poder local ou periférico, isto é, em canal de encontro e
colaboração entre o centro metropolitano e as comunidades locais,
bem como de negociação de conflitos e divergências, também estes
inerentes à densa rede de relações existentes entre aqueles níveis
de poder.4

A arregimentação militar e seus vários alvos


Destacaremos, nesse ponto, circunstâncias possivelmente
caracterizáveis como extremas, em que se fazia necessário o
recrutamento de maiores contingentes para as fileiras militares em
defesa do Estado. Consideramos tais momentos, no que concerne à
ação dos governadores das capitanias, como críticos e delicados,
uma vez que estes têm de transitar entre as necessidades impostas
para a conservação do Estado e a conseqüente possibilidade de
atingir os patrimônios e estatutos daqueles que, até então, pelos
privilégios de que dispunham, tinham sido preservados do ônus
direto da guerra.
Vale dizer que a segunda metade do século XVIII é um período
especialmente interessante para o estudo das forças militares. Eram
imperativas as necessidades de uma intensa reorganização militar,
tanto no reino de Portugal quanto no Estado do Brasil, sua principal
terra colonial, onde se fazia indispensável aumentar a capacidade
defensiva. Tais necessidades decorriam das crescentes tensões
vividas na Europa, resultantes da celebração, em agosto de 1761,
do Pacto de Família, em que os vários Bourbons então reinantes se
comprometiam a defender mutuamente seus estados.
Na ocasião, embora d. José fosse casado com uma princesa
Bourbon, não podiam os pactuantes esperar que Portugal aderisse
ao pacto, aliado como era da Inglaterra, então adversária da França
e da Espanha na chamada Guerra dos Sete Anos, luta armada que
foi travada de 1756 até 1763.
Assim, a Coroa portuguesa foi forçada a abandonar sua posição
de neutralidade e a participar da fase final da Guerra dos Sete Anos.
Após o estabelecimento dos estados ibéricos em campos opostos
nesse conflito europeu, a contenda entre Portugal e Espanha logo
se prolongaria, avançando para as indefinidas regiões fronteiriças
sulinas. Vale notar que, como observa o historiador Fernando
Novais, “ao lado das zonas de tensão entre as potências
dominantes em luta pela hegemonia, França e Inglaterra, entre os
países coloniais ibéricos se vão formando ao mesmo tempo outras
zonas de tensão (sobretudo a região platina). Os dois tipos de
conflitos correm paralelos, e se inter-relacionam continuamente”.5
No caso português, especificamente, o conflito com a Espanha
pelos territórios às margens do rio Uruguai havia demonstrado
claramente a precária capacidade de resistência de seu exército,
sobretudo quando da invasão e conquista, pelo governador de
Buenos Aires, d. Pedro de Cevallos, da colônia do Sacramento, em
dezembro de 1762, bem como da vila do Rio Grande e da margem
norte do canal que conectava a lagoa dos Patos ao mar. Pelo
tratado de paz de 1763, dando por encerrada a Guerra dos Sete
Anos, restituía-se a Portugal a Colônia do Sacramento; todavia, os
espanhóis continuaram a sustentar que os territórios em volta da
Colônia lhes pertenciam. Assim, Portugal perdera o Rio Grande de
São Pedro com seu território, bem como as ilhas de Martim Garcia e
Duas Irmãs.
Tensionavam-se as questões da delimitação das fronteiras nas
possessões portuguesas ao sul da América; a perspectiva de guerra
era flagrante e tornou notória a necessidade de reavaliar o sistema
defensivo até então utilizado. Dessa forma, medidas imediatas
foram tomadas pela Coroa portuguesa a fim de tornar mais eficiente
a defesa de seus territórios americanos. Em 1763, devido a já
reconhecida posição estratégica ocupada pela capitania do Rio de
Janeiro na manutenção do Império português na América,6
determinou-se a transferência do governo-geral do Estado do Brasil
de sua antiga sede, na cidade de Salvador, para aquela capitania,
que em outubro daquele mesmo ano recebia seu primeiro vice-rei, o
conde da Cunha. Em 1765, recriou-se a capitania de São Paulo,
visando “constituir um tampão defensivo entre a área hispano-
americana e a região da mineração. Paralelamente, cobriria a
defesa da Capital recém-transferida”.7 Tropas de linha do reino,
mais especificamente os três regimentos de infantaria de Moura,
Estremoz e Bragança, foram enviadas para o Rio de Janeiro.
Verifica-se, nesse período, que o principal fundamento
justificador das freqüentes intervenções legislativas da Coroa
efetivadas na sociedade civil colonial remetia, essencialmente, às
questões que diziam respeito à esfera militar. Tornou-se claramente
perceptível, então, o contínuo esforço no sentido do alargamento e
ampliação do espaço militar no interior da sociedade colonial.8 Tais
intenções tornam-se ainda mais explícitas e incisivas através da
carta régia datada de 22 de março de 1766 e enviada ao vice-rei
conde da Cunha e aos governadores e capitães-generais do Brasil.
Reforçava seu precípuo objetivo de comprometer e englobar todo o
conjunto da sociedade, determinando que se alistassem, “sem
exceção” de “nobres, brancos, mestiços, pretos, ingênuos e
libertos”, todos os homens válidos para o serviço militar, para com
eles formar o maior número possível de corpos de auxiliares e de
ordenanças.9
Nesse sentido, detenhamo-nos em um documento da capitania
de Minas Gerais: datada de 4 de setembro de 1766, uma carta de
Luís Diogo Lobo da Silva a Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
secretário de Estado da Marinha e Ultramar, incluindo vários outros
documentos em anexo, é capaz de traçar tanto o percurso quanto
os motivos das tensões produzidas em decorrência das novas
circunstâncias da mobilização bélica.
A fim de dar cumprimento às determinações régias, o
governador de Minas Gerais, Luís Diogo Lobo da Silva, envia em 25
de fevereiro de 1766 uma carta circular aos capitães-mores da
capitania, dispondo sobre várias exigências julgadas necessárias
para que as tropas de ordenanças e de auxiliares estivessem
prontas, na “contingência de se fazer preciso a expedição de tropas
para marchar quando e para onde necessário fosse por bem do
Real Serviço de Sua Majestade”.10
Entre os vários segmentos sociais da comunidade local atingidos
pelas determinações do governador, comecemos, entretanto, pela
“plebe”, caracterizada por Luís Diogo da Silva como “destituídas do
pundonor, brio e natural interesse que a todos obriga a concorrerem
para a defesa da pátria”.11 Destes, o comportamento obviamente
presumível não poderia ser outro que não o de se retirarem de seus
respectivos distritos “buscando partes distantes, matos e
esconderijos em que se ocultem”.12 Entretanto, pelas medidas
preventivas tomadas pelo governador, logo se evidenciará que a
“plebe”, além de dispor dos “matos” e “partes distantes” para se
ocultar do recrutamento, o que fazia com relativa “facilidade por
trazerem consigo todo o seu cabedal”,13 dispunha ainda de outros
recursos não menos eficientes de ocultamento, que, ao contrário
daqueles, se encontravam bem próximos dos setores mais altos da
hierarquia social e/ou econômica, a qual os homiziava diretamente.
Assim, no intuito de cercear, de todas as formas, quaisquer
caminhos conducentes ao ocultamento, determinou o governador
aos capitães-mores14 que instruíssem os capitães das companhias
e seus subalternos para impedir a saída de quem quer que fosse
para fora dos distritos de suas residências sem a devida
apresentação de licença15 “por escrito minha, de vossa mercê,
sargento-mor ou capitão”.16 A punição prevista para os fugitivos
seria a prisão e castigo como desertores. Prevendo, já, os casos de
conivência de um oficial com a fuga, sua punição seria a perda do
posto, restando-lhe, ainda, a humilhação de ficar “sujeito a servir
como último soldado da companhia em que tinha praça”.17
Para além das possíveis conivências de oficiais das ordenanças,
as suspeitas de cumplicidade estendiam-se àqueles que, não
excluindo o fato de pertencerem às altas patentes nos corpos de
ordenanças, fossem também “lavradores de fábricas tanto de roças
como de mineração”, tendo estes suas respectivas punições no
caso de dar “abrigo ou o consentir em sua casa” os fugitivos. Assim,
para estes a pena seria o pagamento de 200 e 400 mil-réis,
respectivamente, pela primeira e segunda vez que dessem asilo a
fugitivos ou mesmo os recebessem em seu serviço. Tampouco
foram esquecidos das devidas desconfianças ou respectivas
penalidades os eclesiásticos, os quais, pela primeira vez que
dessem asilo, seriam “exterminados para 40 léguas fora do lugar da
sua assistência, pela segunda, 60, e pela terceira vez,
desnaturalizados dos domínios de Sua Majestade Fidelíssima”.18
No alvo da arregimentação militar, com a perspectiva anunciada
pelo próprio governador da muito provável necessidade de
“expedição” dos corpos de ordenanças e de auxiliares para o lugar
onde fosse preciso, estavam os roceiros e mineiros; quanto a estes,
Luís Diogo da Silva não admitia “que alguns com o pretexto de
grandes fábricas se queiram eximir” da “marcha para o Real
Serviço”, a não ser estritamente no caso de que se “sujeitem a dar
outros em seu lugar montados, armados, fardados, e pagos a sua
custa”. Concluía, contundente, “não ser justo que logrando as
vantagens dos bens de que se valem por pretexto, para se eximirem
da recíproca obrigação que todos temos de defesa do Estado,
fiquem por elas de melhor condição, que o miserável”.19
Ordenava, ainda, aos capitães-mores uma outra missão que,
não obstante sua extrema delicadeza, fora estabelecida sem a
necessária e conveniente prudência exigida pelo assunto, sobretudo
se relacionada com a determinação anteriormente referida. Assim,
determinou o governador a retirada de todo o quinto dos escravos
que houvesse nas jurisdições de cada capitão-mor, “sem exceção
dos ocupados em lavouras, roças, ou particulares serviços”. No
entanto, advertia que, entre estes, só se escolhessem aqueles “de
melhor saúde e robustos”. Além disso, ordenou a seus respectivos
senhores que os armassem com armas de fogo e, em não dispondo
das mesmas, que os armassem de um dardo “com ferro e ponta de
dois cortes”, recomendando, entretanto, que só as entregassem na
devida ocasião. Por fim, para evitar a possível fuga dos escravos,
acenava-lhes com a promessa de que aquele que se distinguisse na
defesa do Estado “não só se adiantará nos empregos da milícia,
mas conseguirá em prêmio a liberdade”.20
Não obstante, estava Luís Diogo Lobo da Silva de acordo com o
plano militar traçado nas instruções régias, que considerava a
utilização de negros e pardos, como forças irregulares, recurso
estrategicamente importante, nunca a ser desprezado na guerra
contra os espanhóis. A Coroa sublinhava a tradição presente na
utilização dos negros e das ordenanças, tradição vinculada às duas
tentativas de ocupação holandesa do Nordeste: a primeira em 1624,
na Bahia, de onde foram expulsos em 1625; a segunda em 1630,
em Pernambuco. Consideraram-se, ainda, ambas as batalhas dos
Guararapes, em 1648 e 1649, com a final capitulação holandesa no
ano de 1654.21
Embora não sendo nosso objetivo o aprofundamento deste
tema, destacaremos o fato de que tais batalhas foram conduzidas
por forças constituídas por brancos, negros, índios e mestiços,
estando estas organizadas de acordo com o modelo português da
década de 1640, então vigente, em tropas de linha (regulares) e
companhias de ordenanças. Conjugando os diversos processos de
combate de seus componentes, o método marcial dessas forças
adquirira características bastante diversas e peculiares, inexistentes
nos conflitos europeus, sendo então denominado “guerra brasílica”
pelos contemporâneos das invasões holandesas.22 Nesse sentido,
Boxer observa que “as decisivas batalhas dos Guararapes, em 1648
e 1649, foram ganhas por homens habituados ao sol tropical e
experimentados na guerra de emboscadas contra homens que
tinham aprendido seu ofício nos mais frios e mais formais campos
de batalha de Flandres e da Alemanha”.23
A Coroa portuguesa, ao utilizar-se de tal argumento histórico,
não só testemunha o grande fundamento de sua observância em
seus domínios americanos, uma vez “que com negros e ordenanças
foram lançados fora de Pernambuco e Bahia e outras terras deste
continente os holandeses”,24 como também sustenta a atualidade
desse sistema. A legitimidade da tradição se via reforçada pela
necessidade presente, visto que a utilização desse contingente
adicional representaria não só a disposição, na guerra, de suas
próprias táticas de combate, desconhecidas dos espanhóis, como
também um aumento significativo da dimensão da força militar
mobilizável: “que o número destes [negros] é tão
desproporcionadamente superior ao que pode ser transportado
pelas ditas nações [Espanha e França], que sem fatalidade não será
possível que possam resistir”.25 Em obediência às instruções régias
referentes ao alistamento de negros e pardos, pode-se verificar a
formação destes em companhias nas capitanias de São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais.
O governador de Minas Gerais, Luís Diogo Lobo da Silva, em
resposta à carta que recebera do conde da Cunha, na qual o vice-rei
dispunha sobre as diretrizes militares ordenadas pela Coroa,
parafraseava a ordem régia ao contemplar o alistamento de negros
e pardos, considerando o governador especialmente louvável e
surpreendente a participação dos negros cativos na guerra
holandesa: “sobre os referidos pardos e pretos libertos, quanto a
mim não descubro inconveniente de se alistarem, mas a utilidade
que a experiência nos faz evidente em Pernambuco e Bahia na
guerra dos holandeses (…)”.26.
Quanto à arregimentação nas Minas dos pretos cativos,
fortemente inspirada no exemplo histórico de sua célebre
participação na restauração da Bahia e de Pernambuco, promete o
governador das Minas, como já vimos, a todo cativo que fizer “ação
gloriosa em defesa da pátria” um posto adiantado na milícia e a
liberdade como prêmio.27 Com relação ao alistamento militar dos
pretos e pardos libertos na comarca do Rio das Mortes, Luís Diogo
Lobo da Silva declarava: “além das referidas esquadras estabeleci
96 de pardos libertos com 1.453 praças, e 35 de pretos igualmente
libertos com 525 praças”.28
Dessa forma, a carta circular enviada aos capitães-mores pelo
governador de Minas definia, para todos, sem qualquer exceção, as
obrigações consideradas primordiais naquele momento. Sabia,
porém, não ser a elite local, tampouco aqueles, deste grupo,
ocupantes dos postos de oficiais militares, mero instrumento passivo
da vontade dos governadores, e previa, portanto, as tão possíveis
quanto inevitáveis resistências que se fariam sentir.
Preventivamente, integra sua antecipação à carta dirigida aos
capitãesmores determinando as respectivas punições a todos
aqueles que eventualmente se atrevessem a dificultar o
cumprimento de suas ordens militares. Certamente julgava o
governador que as punições prescritas seriam suficientes para
eliminar quaisquer obstáculos à efetivação das diretrizes régias.
Quer-nos parecer, entretanto, que ele não considerou devidamente
nem a dimensão das exigências feitas, no que potencialmente
afetava o patrimônio dos solicitados, nem a força e o poder dos
mesmos na defesa de seus respectivos patrimônios — e, adicione-
se, por caminhos tão imprevistos como de dimensões consideradas
perigosas.

A cooperação militar condicionada


Interessa-nos, neste momento, analisar a reação que tiveram os
poderes locais, o corpo das ordenanças e a Câmara Municipal,
diante das demandas militares feitas pelo governador de Minas
Gerais em obediência às ordens do poder central, a fim de suprir às
exigências de defesa que se impunham em termos de recrutamento
militar, expressas na carta régia de 23 de março de 1766.
Assim, as resistências às ordens determinadas pelo governador
de Minas Gerais — no que concerne às exigências que fizera para a
expedição dos corpos de ordenanças e a arregimentação de negros
cativos, contidas na carta circular enviada aos capitães-mores da
capitania — logo se evidenciaram nas representações feitas por
alguns capitães-mores a Luís Diogo da Silva. Nelas, muito embora
tomando por fundamento principal o atender ao bem comum, tendo
em vista evitar-se “a total ruína a esta capitania”,29 não deixavam de
atender ao bem, também comum, dos senhores oficiais das
ordenanças.
Devemos considerar, a princípio, que as exigências de
recrutamento militar para a expedição em defesa dos reais domínios
atingiam diretamente dois pilares fundamentais para o
funcionamento dos patrimônios pertencentes àqueles definidos no
documento como “lavradores de fábricas tanto de roças como de
mineração”. E quais seriam tais pilares senão exatamente os
senhores e seus escravos? Não obstante, devemos ainda observar
que a principal justificativa utilizada pelo governador para o
convencimento dos roceiros e mineiros de sua necessária
participação e colaboração na expedição militar, nos termos então
exigidos, não fora outra senão a defesa de seus próprios bens: “que
não haverá roceiro que refletindo ser indispensável o sobredito meio
para continuarem na posse e logro das suas fazendas, escravatura,
e mais haveres, que possuem”. E, mais adiante, ao advertir sobre os
eventuais perigos no caso de os espanhóis virem a conquistar e
dominar a América portuguesa, a menos que se tomassem
imediatamente as devidas providências, utiliza metáforas tão
expressivas quanto sugestivas, se consideradas no âmbito dos
interesses dos lesados: “e passarão da liberdade que gozam à
ignominiosa escravidão, em que lhes será menos custosa a perda
da própria vida, família e referidos fundos”.30
Embora aparentemente contraditório, o discurso do governador
com vistas a garantir, em contrapartida, a sua total e irrestrita
colaboração militar acenava com um inequívoco argumento de
negociação com os setores mais privilegiados da comunidade local,
ao associar a defesa dos domínios reais com a “defesa de seus
próprios bens”.31 No entanto, ao colaborarem no jogo da negociação
proposto pelo governador, viam seus “próprios bens” ameaçados
pelas exigências por ele determinadas. Tal contradição,
evidentemente, não escapou aos que viram seus interesses
diretamente atingidos.
Em outros termos, os “lavradores de fábricas tanto de roças
como de mineração”, ao considerarem os resultados finais de sua
escolhida conduta, fosse de colaboração às exigências militares,
fosse de resistência às mesmas, concluíam que inevitavelmente
viriam a perder. Caso, com a precípua finalidade da defesa de seus
patrimônios, impossibilitassem ou mesmo dificultassem os meios
dispostos pelo governador para a defesa do Estado, tal fato
resultaria, segundo o governador, “na irremediável perdição de
tudo”. Caso satisfizessem as providências por ele determinadas
para a organização militar da expedição, a fim “de rebater, utilizar, e
destruir qualquer nação inimiga que nos intente invadir”,32 também
assim, inegavelmente, gerarse-iam graves inconvenientes para seus
respectivos patrimônios, os quais, vale notar, constituíam-se em
matéria primordial das representações feitas pelos capitães-mores
ao governador Luís Diogo da Silva. Sua única e infeliz certeza era a
de que, inevitavelmente, ao se resolver tal situação, nada além de
perdas os acolheria.
A despeito de os corpos de ordenanças gozarem do privilégio da
exclusão da obrigação de socorro das fronteiras, a não ser no
explícito caso, conforme as ordens régias, de “notório perigo”,33
determinou o governador providências precisas para a expedição
dos respectivos corpos, quando houvesse necessidade. Diante
dessa exigência, o capitão-mor apresenta ao governador os graves
prejuízos implicados na marcha desses corpos, a começar pelo
grande perigo que significaria ficarem os escravos privados da
supervisão de seus senhores quando “sair ordenanças dela em
defesa de outro país, largando o em que habitam e suas mulheres,
e filhas em poder de escravos, gente tão bárbara e infiel”.34
Sendo os senhores capazes, por sua autoridade, de impor e
conservar a devida sujeição de seus escravos, encontrava-se em
risco, na ausência dos primeiros, a própria hierarquia social, isto é, a
possibilidade de sua subversão diante da ameaça de os escravos se
arvorarem em senhores. Tal possibilidade levava o capitão-mor a
afirmar que “só com a notícia destes preparos e de que hão de sair
de Minas brancos e pardos de que tem este gentio algum temor, já
se atrevem a dizer que lhes ficam muitas mulheres brancas para se
casarem e este atrevimento é horroroso”.35
Não menos importante para a preservação de seus patrimônios
era a questão do quinto dos escravos exigidos para a dita
expedição, por ser evidente a dificuldade ou mesmo a
impossibilidade de conservá-los na comandada marcha, sem que
fugissem pelos matos ou, então, que passassem aos arraiais
inimigos, já “que a ambição da liberdade e pouca consideração os
resolverá a executarem o que por muitas vezes têm intentado”,36
resultando, inquestionavelmente, em prejuízos consideráveis aos
senhores que os perdessem. Ameaça ainda maior e inevitável,
dadas as circunstâncias, era a primordial necessidade de se
armarem os escravos. De que poder viriam estes a dispor, pois, em
nome de se destruírem inimigos estranhos, armamse-iam os
próprios, domésticos. Indignados diante de tal ordem, os senhores
de escravos — dos quais o capitão-mor é, por força da diligência de
que fora incumbido, porta-voz e, por sua própria circunstância, voz
— notificam ao governador a posição final que assumem: “não
nomeiam nem armam inimigos dentro de suas casas”.37
Considerados os inconvenientes e estragos que resultariam do
cumprimento das ordens militares dispostas pelo governador, a
frontal resistência a elas evidencia-se ainda mais quando o capitão-
mor lhe informa que as listas dos homens que deveriam formar os
terços estavam “tão diminutas”, ou quando os capitães, ao
requisitarem a lista do número de escravos, constatam que os
“senhores deles não querem dar o rol”. Embora o governador
tivesse expedido ordens aos capitães-mores e seus capitães para
que, a fim de impedir as fugas ao recrutamento, coibissem e mesmo
proibissem toda e qualquer saída dos limites de seus distritos sem a
devida apresentação do bilhete de licença, pode-se constatar, pela
apreciação do capitão-mor, que as tais fugas continuavam a ocorrer
com todo o vigor, seja pela ineficiência da medida propriamente dita,
seja pela passiva resistência dos respectivos oficiais às ordem
recebidas: “e vão-se refugiando alguns brancos moços e pardos e
só deixam de o fazer os que têm impedimento de famílias ou
fazenda e ainda muitos destes estão até ver para onde se
encaminham estes preparos”. Por último, conclui o capitão-mor pela
absoluta impossibilidade de execução das medidas exigidas pelo
governador: “enfim, Excelentíssimo Senhor, como coisa nova neste
país todos andam admirados e confusos e não me sei resolver para
dar inteiro cumprimento às ordens”.38
Tendo por base os mesmos argumentos já apresentados pelos
capitães-mores, manifestar-se-iam também contrárias ao método
utilizado pelo governador no recrutamento das tropas algumas das
câmaras municipais das Minas, através das representações que
fizeram a Luís Diogo da Silva. Afinal, os interesses sociais e
econômicos daqueles senhores oficiais das ordenanças, bem como
os das câmaras, pareciam ser coincidentes, como semelhante era,
também, seu principal temor: “que Deus não permita que seja
preciso a Vossa Excelência retroceder a marcha; para vir restaurar
os povos do cativeiro dos mesmos negros, que trarão
conseqüências mais lamentáveis”.39
Contudo, a resistência às medidas determinadas pelo
governador viria a assumir ainda maiores e mais perigosas
dimensões, uma vez considerados os efeitos que poderiam produzir
ao alterar “os ânimos dos povos” e estimular a repugnância das
“tropas à devida obediência”,40 sendo os oficiais de ordenanças e os
das câmaras suas vozes mais expressivas. Tais vozes se
concretizam nas representações dirigidas ao governador de Minas
Gerais e, multiplicadas e alastradas pela capitania, estendem-se até
a de São Paulo. O governador Morgado de Mateus, em ofício ao
conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, informa que lhe
chegara às mãos cópia de uma carta vinda de Minas e que andava
a circular na capitania de São Paulo. Tendo tomado conhecimento
de seu conteúdo, verificara que ela poderia provocar graves danos
ao serviço real, posto que fora escrita “em termos extraordinários e
insidiosos, cheia de espírito de revolta, contrário à execução das
ordens de Sua Majestade”. Somando-se aos inconvenientes
internos que poderia produzir, considerava ainda o governador
outros, de não menos críticas proporções: “de que passando as
mesmas cópias às mãos dos inimigos, por elas conjeturassem o
nosso interior embaraço, e as dificuldades que teríamos em fazer
marchar o nosso exército, perdendo desta sorte o temor, e
animando-se facilmente a tomarem a resolução de nos quererem
atacar”.41
Portanto, a fim de atalhar as graves conseqüências que dali
poderiam advir, o governador ordenou que se recolhessem as
cópias das cartas vindas de Minas através do bando datado de 21
de junho de 1766: “mando que toda pessoa que tiver as ditas cópias
dentro em três horas de tempo logo em continente, depois da
publicação desta, as mande entregar na secretaria deste governo”.
Determinava ainda, categórico, que “toda pessoa que ousar mandar
a dita cópia para domínios estrangeiros será presa em ferros,
confiscados seus bens, e metido em segredo como rebelde à Coroa
portuguesa, e como tal remetido para as cadeias do Limoeiro da
Corte de Lisboa”.42 Segundo Morgado de Mateus, tal abordagem
alcançou seu objetivo, qual seja, evitar que a dita carta pudesse
chegar às mãos dos inimigos, pois teria logrado alcançar todas as
cópias postas a circular na capitania de São Paulo.
Acusados de não interpretarem devidamente o ponto de vista da
“conservação dos reais domínios”, para o qual, em particular,
deveriam os oficiais de ordenanças e os das câmaras “animar os
povos para tão justo e necessário fim”, bem como de não
“executarem os sobreditos com o zelo que se devia esperar da
honra com que sempre se distinguiram os povos de Minas como
fiéis vassalos do mesmo senhor”, ficavam aqueles a conjeturar
“dúvidas impeditivas das prevenções que podem não admitir
demora pelo irreparável prejuízo que daí pode seguir-se”.43
Contudo, deve-se observar que essa mesma “conservação dos
reais domínios” vem a se tornar também uma ameaça quando afeta
o funcionamento dos patrimônios. Dessa forma, não é de se
estranhar que o mesmo indivíduo que vê reforçado seu estatuto,
através da obtenção de um posto militar a lhe conferir honras e
privilégios, tente simultaneamente, ao “impedir os meios dispostos
para a expedição”, preservar seu patrimônio da ameaça de total
desorganização.44
A despeito das severas censuras ao posicionamento dos oficiais
de ordenanças e das câmaras, pode-se perceber, no bando lançado
em Minas Gerais por Luís Diogo da Silva em 26 de abril de 1766,
uma significativa mudança no discurso do governador. Ao dispor
suas ordens militares e definir os exatos limites que, nesse âmbito,
tais ordens teriam, aponta ele para um efetivo reconhecimento dos
patrimônios em questão. Tal não fora a sua atitude ao dispor suas
várias exigências na já mencionada carta circular aos capitães-
mores. Seus conseqüentes resultados inevitavelmente impeliram-no
a reconsiderar, no referido bando, não só o tom de seu discurso,
que ganha em prudência e cautela, como seu teor, ao delimitar suas
exigências. Tais alterações, claramente sine qua non, conforme
analisaremos a seguir, transformam-se em seu salvo-conduto para
angariar a fundamental e necessária colaboração militar de
definidos, e definitivos, setores da comunidade local.
Levantemos, assim, os pontos aventados no bando de 26 de
abril de 1766 e anteriormente inexistentes na carta circular aos
capitães-mores de 25 de fevereiro daquele mesmo ano.
Com relação à escolha do quinto dos escravos, afirmava o
governador, no bando: “ficando na inteligência os senhores dos ditos
escravos que o quinto destes há de ser da sua eleição para que
possam reservar os que mais convenientes lhes foram para o
trabalho das suas lavouras e lavras”. Ao reconhecer, portanto, que o
poder de escolha pertencia aos senhores, passa a admitir a
necessária preservação e o bom funcionamento dos seus
respectivos patrimônios. Já quanto à liberdade que prometera aos
escravos que se distinguissem em suas ações, esta realmente se
verificaria, porém “sem prejuízo de seus senhores, que serão
satisfeitos do seu justo valor pela Real Fazenda da mesma sorte
que para com os que morrerem na expedição”. E, no caso de alguns
senhores quererem “livrar o quinto dos seus escravos”, certamente
que poderiam fazê-lo, com a contrapartida de “concorrer com
quantia proporcionada”.
Reconhece ainda, no bando, os privilégios de isenção do
recrutamento, privilégios já dispostos, como visto anteriormente,
pelo alvará de 24 de fevereiro de 1764: “e outrossim todo o feitor
que necessário for a cada um dos lavradores de fábricas tanto de
roças como de mineração ou caixeiro ou cobrador de homens de
negócio grosso e condutores de mantimentos serão isentos dos
terços (…)”.
No que concerne ao alistamento de mineiros e roceiros para a
expedição militar, ao contrário do que fizera anteriormente, mostra-
se o governador bastante prudente. Pesando a importância de suas
presenças a administrar seus patrimônios, pondera: “para que assim
experimentem menor incômodo, e não sintam as suas famílias e
casas a falta da sua pessoal assistência, aqueles mineiros e
roceiros (…) que sem legítima causa não podem se escusar
poderão dar per si pessoa capaz que supra a sua falta”, sem
quaisquer outras exigências ou mesmo as ameaças proferidas no
anterior documento.
Em representação de 27 de outubro de 1766 ao rei d. José I, os
oficiais da Câmara de Vila Rica reconheciam a “moderação” das
exigências anteriormente apresentadas, em que o “governador e
capitão-general, em tudo prudente, soube dar-lhes”.45 Não obstante
tal reconhecimento, encerravam a referida representação
precavendo-se contra a tão possível quanto temida expedição para
as fronteiras do Sul e expressando claramente a posição que
assumiriam em se fazendo aquela necessária, bem como suas
condições: “no justo receio de que se faça precisa a sobredita
expedição; representamos a Vossa Majestade quanto importa aos
reais interesses conservar intactas as fábricas, lavouras, e
moradores destas Minas, por serem o coração da América
portuguesa, donde não podem sair corpos militares em socorro de
fronteira alguma, que não seja a praça do Rio de Janeiro, para que
estão dispostos, sendo Vossa Majestade servido dar-lhe as
providências necessárias”.46
Assim sendo, longe de se configurarem em forças passivas e
sempre acordes com as ordens superiores, as resistências
oferecidas pelas elites locais, alocadas nos corpos de ordenanças e
nas câmaras municipais, às exigências impostas pelo governador de
Minas só vêm demonstrar o poder de que aqueles dispunham, bem
como a extensão de sua influência, ambos passíveis de serem
acionados sempre que por elas julgados necessários, quer a favor
ou contra as demandas exigidas.
Dessa forma, importou-nos destacar que as resistências
oferecidas pelas elites locais às determinações exigidas pelo
governador e as correspondentes reivindicações por elas
defendidas estavam inscritas no âmbito do pacto,47 isto é, na
relação bilateral de troca entre o compromisso de obediência e
fidelidade dos súditos à Coroa e a proteção e manutenção de suas
propriedades e privilégios. Ora, como vimos, as exigências iniciais
feitas pelo governador de Minas negligenciavam por completo a
necessária deferência, que lhes deveria estar intrínseca, ao
patrimônio dessas elites. Ao atingirem incisivamente seus
patrimônios, tais exigências vinham tocar em um ponto crucial da
dinâmica constituinte do pacto, uma vez que “esse pacto implica que
o poder exercido em nome do rei não pode pôr em causa o estatuto
de seus vassalos e que, pelo contrário, se define como garantia da
sua permanência”.48
Deve-se considerar, ainda, que as ações de recrutamento militar
constituíam-se, sem dúvida, em um momento crítico para a
demonstração da possibilidade de se fazerem exigências sem que
se subvertessem os referidos patrimônios e estatutos. Dessa forma,
e não obstante o fato de o governador estar em obediência às
ordens régias impostas com a finalidade da “conservação dos seus
reais domínios”, é preciso destacar que estas tinham um caráter
geral. A fim de dar seu adequado e devido cumprimento, isto é,
efetivar o recrutamento militar e simultaneamente ser capaz de
preservar os patrimônios e os estatutos da ação destrutiva que
porventura este poderia acarretar, deveriam na prática sofrer as
necessárias adaptações pelos governadores das respectivas
capitanias.
A tempo, considerando o caráter das determinações contidas
nas instruções régias enviadas às autoridades coloniais, não
obstante a sua precisão e rigor, que devem ser considerados
inerentes à própria formulação da documentação régia, estas
constituíam-se basicamente em um modelo e um repertório de
condutas pelos quais deveriam pautar-se os governadores coloniais
a fim de efetuarem as medidas necessárias à defesa do Estado do
Brasil.
A orientação da prática político-militar dos governadores
coloniais, responsáveis diretos pela viabilização das régias diretrizes
militares e, portanto, pela primordial tarefa de defesa do Estado do
Brasil, não poderia ser outra senão aquela dada e regulada pela
necessária combinação entre as diretrizes emanadas da Coroa e as
especificidades presentes na Colônia. Com relação à última
vertente, a viabilização das diretrizes militares no meio colonial, que
comporta inevitavelmente um processo de adaptação às condições
a ele inerentes, deve-se ter em conta que os governadores eram
apenas um dos agentes desse processo. Forças não menos
decisivas eram, entretanto, os agentes locais — no caso, os oficiais
de auxiliares e de ordenanças —, que por sua conduta de
colaboração ou de resistência tornavam-se capazes, pelo poder e
influência de que dispunham no âmbito local, de determinar o
resultado final das prescrições régias.
Em um contexto em que, como sabemos, fazia-se mister a
intensificação da militarização, prementes se tornavam, para os
governadores coloniais, as necessidades de recorrentes
compromissos com as forças locais em seus vários níveis, para
adaptar as ordens emanadas pela Coroa à realidade social da
Colônia. Deve-se ressaltar que as possíveis soluções encontradas
para a consecução das ordens régias não poderiam vir por decreto
da Coroa, visto que elas eram construídas e reconstruídas na
vivência da dinâmica colonial, nas alianças estabelecidas na escala
local, bem como em sua relação com o governo central, a Coroa.
Desconsiderar tais princípios e, portanto, prescindir do apoio das
elites locais e, mais do que isso, tê-las como forças adversas para a
efetivação das ordens régias converter-se-ia numa situação
insustentável, uma incumbência quase impossível para o
governador de Minas. Não foi por outro motivo que, tendo em vista o
respeito pelo patrimônio dessas elites e, enfim, para poder contar
com sua indispensável colaboração para o cumprimento das ordens
régias, rendeu-se o governador à força de que dispunham os
centros de poder local e se obrigou a alterar suas exigências iniciais,
submetendo-se à necessidade de negociar no sentido de atenuá-las
sensivelmente em sua forma e conteúdo.

Bibliografia
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de História Militar, 1998.

* Doutora em história pela UFF. Bolsista recém-doutora do CNPq junto ao


Departamento de História da Ufop.
1 Hespanha, 1944:381-382.
2 Prado Jr., 1977:324.
3 Faoro, 1984:196.
4 Ver Pujol (1991:136).
5 Novais, 1983:51.
6 A capitania do Rio de Janeiro estava mais próxima das regiões auríferas e
mais apta a coordenar as ações militares no território do Rio Grande de São
Pedro.
7 Bellotto, 1979:47.
8 Convém lembrar que a força terrestre, no Estado do Brasil, estava
organizada em três escalões, a saber: exército de linha, ou tropa paga,
recrutado entre os solteiros; as forças auxiliares, constituídas por homens
válidos, geralmente casados; e, finalmente, as ordenanças, compostas pelos
restantes homens militarmente úteis. Fora desse esquema, e para
determinadas missões específicas, eram contratadas, mediante a promessa
de soldo, companhias de aventureiros, caçadores ou voluntários.
9 Quanto aos corpos auxiliares da capitania das Minas; não assinada, post. 2-
3-1766 (Arquivo Histórico Ultramarino, doravante AHU, MG, Cx. 87, doc. 48).
Uma das razões pelas quais a Coroa de Portugal delega uma grande
importância estratégica aos corpos de auxiliares e, subseqüentemente, às
ordenanças na defesa do território colonial decorre do excesso de despesas
que a manutenção de um exército permanente significaria. Assim sendo, não
dispondo de “meios nem forças” para a conservação da integridade de seu
território colonial, a Coroa necessitava inegavelmente da colaboração,
espontânea ou coerciva, dos habitantes da Colônia.
10 Carta circular aos capitães-mores de Luiz Diogo da Silva (AHU, MG,
Avulsos, Cx. 88, doc. 36 — anexo).
11 (AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 — anexo).
12 Ibid.
13 Ibid.
14 Capitão-mor era o oficial maior na hierarquia de comando dos oficiais das
ordenanças, seguido por sargento-mor, capitão e alferes. Na vacância de tais
cargos, deveriam os oficiais da Câmara, juntamente com o corregedor ou
provedor da comarca, indicar para cada posto três pessoas escolhidas entre
as “pessoas principais” residentes nas respectivas localidades. Os camaristas
deveriam dispor das informações necessárias acerca de cada pessoa
selecionada e transmiti-las, em seguida, ao governador para que este enfim
sugerisse ao rei o candidato mais adequado para os respectivos postos. Ver
Verissimo (1816).
15 Vale notar que nas capitanias de São Paulo e Rio de Janeiro havia a
exigência de bilhetes de licença, também denominados passaporte, para os
moradores que intentassem retirar-se de seu distrito. Isso servia como medida
de prevenção contra as constantes fugas verificadas em decorrência dos
recrutamentos militares.
16 Carta circular aos capitães-mores… Op. cit.
17 Carta circular aos capitães-mores… Op. cit.
18 Ibid.
19 Ibid.
20 Carta circular aos capitães-mores… Op. cit.
21 Para maiores detalhes sobre as invasões holandesas e as batalhas dos
Guararapes, ver Wehling (1998); Melo (1975, 1986); Miralles (1900); Calado
(1945); Moreau e Baro (1979); Varnhagen (1955); Selvagem (1994); Holanda
(1963); Puntoni (2002).
22 Ver Wehling (1998:355-356). Ver também o capítulo de Pedro Puntoni
neste livro.
23 Boxer, 1973:130.
24 Ofício do vice-rei, conde da Cunha, ao conde de Oeiras, Rio de Janeiro,
30-6-1765 (AHU, RJ, Avulsos, Cx. 81, doc. 60).
25 Ibid.
26 Carta de Luís Diogo Lobo da Silva ao conde da Cunha, Vila Rica, 29-6-
1765 (AHU, RJ, Avulsos, Cx. 81, doc. 59).
27 Carta circular aos capitães-mores… Op. cit.
28 Carta de Luís Diogo Lobo da Silva para d. José, Vila Rica, 4-8-1765 (AHU,
MG, Avulsos, Cx. 85, doc. 64).
29 Carta do capitão-mor da comarca Paulo Carneiro Vilar para o governador
de Minas Gerais, Vila Nova da Rainha, 13-4-1766 (AHU, MG, Avulsos, Cx. 88,
doc. 36 — anexo).
30 (AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 — anexo).
31 Carta circular aos capitães-mores… Op. cit.
32 Carta circular aos capitães-mores… Op. cit.
33 Alvará de 13-3-1646 (apud Silva, 1856:313).
34 Carta do capitão-mor da comarca… Op. cit.
35 Ibid.
36 Ibid.
37 Carta do capitão-mor da comarca… Op. cit.
38 Ibid.
39 Representação dos oficiais da Câmara de Vila Rica para o rei, 27-10-1766
(AHU, MG, Avulsos, Cx. 88, doc. 36 — anexo).
40 Ofício de Morgado de Mateus para o conde de Oeiras, São Paulo, 21-6-
1766 (AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, doc. 2.409).
41 Ofício de Morgado de Mateus para o conde de Oeiras, São Paulo, 11-12-
1766 (AHU, SP, Avulsos, Cx. 25, doc. 2.409).
42 Ibid.
43 Bando lançado pelo governador de Minas Gerais, 26-4-1766 (AHU, MG,
Avulsos, Cx. 88, doc. 36 — anexo).
44 Ver Costa (2003).
45 Representação dos oficiais… Op. cit.
46 Representação dos oficiais… Op. cit.
47 Vale ressaltar que é precisamente o pacto estabelecido entre o rei e seus
súditos que vem a distinguir as monarquias dos regimes despóticos. Veja-se,
portanto, que “uma tal distinção é crucial para a construção da legitimidade
das monarquias: sob os despotismos, não há estatutos certos, perduráveis e
transmissíveis e todos estão nivelados pela condição de escravos, mesmo
aqueles que momentaneamente ganham riquezas e prestígio. Nas
monarquias, o Rei, ao contrário do déspota, está limitado pelo
reconhecimento da propriedade, tomada em sentido amplo (…)”. Costa (no
prelo). Sobre esse assunto, ver, entre outros: Maravall (1982:233-47),
Hespanha (1994:59-62).
48 Costa, 2003.
CAPÍTULO 3

“Esses miseráveis delinqüentes”: desertores no Grão-Pará


setecentista

Shirley Maria Silva Nogueira*


E sses miseráveis delinqüentes”: assim o comandante Hilário
Moraes Bittencourt referiu-se aos desertores da tropa auxiliar de
Cametá, no Grão-Pará, no final do século XVIII.1 Eles haviam
desistido da deserção depois de saberem dos castigos a que
estariam sujeitos. Tratar os homens que fugiam das tropas como
criminosos e aplicar-lhes duras penas foram as maneiras
encontradas pelas autoridades para inibir as constantes deserções
que assolavam a região.
Na vasta documentação colonial do Grão-Pará, a deserção militar
é assunto recorrente. Autoridades coloniais e metropolitanas
preocupavamse sobremaneira com isso. No entanto, esse não era
apenas um problema da Colônia; era também uma das maiores
preocupações dos exércitos permanentes europeus da época. A
deserção de qualquer militar implicava grande perda para o Estado,
que tinha a responsabilidade de treiná-los, alimentálos, pagá-los e,
em determinados casos, fardá-los. O ônus da deserção é bem
exemplificado por Frederico II:

Alguns dos generais supõem nada haver mais num homem que
um homem e que a perda de um não influi sobre o valor da
totalidade, mas o que se pode dizer de outros soldados não é
aplicável ao nosso. A deserção de um soldado sem instrução e a
sua substituição por um bronco é a mesma coisa. Mas a falta de
um soldado que recebeu dois anos de instrução consecutivos,
para lhe dar destreza necessária, é coisa que repercute longe.
Não é visível que a negligência dos oficiais incumbidos dos
pequenos pormenores tem arruinado muitos regimentos? Tenho-
os visto fundirem-se pela deserção a um ponto espantoso.
Semelhantes perdas reduzem os efetivos dos exércitos, em que o
número sempre significa. Se não podereis refazê-las.2

O fato de o Exército ser formado por meio do recrutamento


forçado fazia com que ingressassem em suas fileiras soldados que
não desejavam a vida militar. O resultado eram as constantes
deserções, expediente comumente utilizado por soldados europeus,
brasileiros e das colônias espanholas. Na segunda metade do século
XVIII, as punições e concessões de perdão, por meio de decretos
reais, foram um meio de tentar controlar a deserção luso-brasileira.
Os portugueses sabiam da dificuldade de encontrar alguém capaz de
manejar uma arma ou fazer manobras militares, mesmo que
sofrivelmente.
A tendência para a profissionalização das tropas aumentou ao
longo da segunda metade do século XVIII, tanto em Portugal quanto
no Brasil. Desse modo, tornava-se necessário contar com oficiais
que tivessem conhecimento da arte militar, a fim de instruir os
soldados a estarem aptos para qualquer combate, em igualdade de
condições ou em melhores condições que as tropas inimigas. Por
isso, não apenas concedeu-se perdão aos desertores, como tentou-
se coibir os desmandos de oficiais e criaram-se leis contra a
deserção, prevendo punição também para quem desse asilo aos
desertores. O castigo corporal era igualmente usado para que não
ocorressem mais fugas.3
Quais seriam as razões para as deserções? Não há uma
resposta simples. Peregalli fornece dois grandes motivos: o nível de
vida precário das tropas nas fronteiras e o rompimento de laços
familiares provocado pelo serviço nas tropas. Curado, por sua vez,
afirma que, além da saudade da família e da fuga dos incômodos do
serviço, várias foram as prováveis razões que levaram muitos
soldados a desertar no Brasil colonial: a miséria dos soldados,
devido aos atrasos de soldos e fardamento; a falta de qualidade de
muitos quadros e a conseqüente fraca instrução militar e disciplinar;
o receio da guerra; a existência de privilégios que levavam somente
os mais humildes a servirem nas tropas; a utilização do serviço
militar como castigo; e a vinda de pessoal recrutado em Portugal e
nas ilhas do Atlântico com o sonho de encontrar o paraíso terrestre
nas minas.4
No Grão-Pará, encontramos todos esses motivos para as
deserções. No entanto, a razão mais comum para a fuga de
soldados parece ter sido o desejo de retornarem aos seus afazeres
regulares e ao convívio com seus familiares. As deserções no Grão-
Pará colonial foram praticadas tanto por soldados das tropas pagas
quanto das tropas auxiliares. Essas duas tropas formavam o exército
luso-brasileiro conjuntamente com as ordenanças. As tropas de
ordenanças formavam a terceira linha; nela estavam alistados todos
os moradores das vilas, que depois eram distribuídos entre as tropas
auxiliares e pagas. As auxiliares formavam a segunda linha e eram
recrutadas para auxiliar as tropas pagas; nela serviam homens
casados, proprietários de terras, comerciantes etc. Não tinham
caráter permanente. As tropas pagas ou permanentes ou de primeira
linha eram a base do exército colonial; nela serviam homens que
deviam se dedicar à vida militar e para isso recebiam soldos.5 Casos
de deserção foram freqüentes na segunda metade do século XVIII,
principalmente depois da reformulação militar de 1773.

A política pombalina: reformas administrativas e militares


Em 1750 subiu ao trono português d. José I. Igualmente chegaria
ao poder o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo,
conde de Oeiras, em 1750, e marquês de Pombal, em 1770.
Desenvolvera-se uma política que pretendia dar fim à estagnação
econômica e tecnológica de Portugal com relação aos outros países
da Europa. Para isso era necessário que as riquezas advindas de
sua principal colônia, o Brasil, fossem enviadas diretamente a
Portugal e, portanto, não mais intermediadas por negociantes
ingleses.6
Para equacionar tais problemas, Pombal desencadeou uma
política colonial de efetivo controle socioeconômico. Essa política foi
marcada pela ocupação de novos territórios, além da constituição de
um forte aparelho administrativo colonial, subordinado diretamente a
Lisboa.7 A capitania do Rio Negro foi criada em 1755 com o objetivo
de povoar a fronteira ocidental. Essa capitania passava a incorporar
o estado de Grão-Pará e Maranhão, criado em 1751 em substituição
ao antigo estado do Maranhão.8 O projeto pombalino para o novo
estado teve como um de seus principais pontos a criação da
Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, em 1750,
“para a comercialização da produção amazônica e introdução
sistemática de escravos na colônia”.9
Outro ponto foi a abolição formal da escravização dos índios e o
fim do controle dos missionários sobre os aldeamentos indígenas,
passando os índios a viver em vilas e/ou aldeias dirigidas por
administradores civis, denominados diretores. Essa política, de 1757,
ficaria conhecida como diretório pombalino. No mesmo contexto, os
bens dos jesuítas foram vendidos ou arrematados em leilões, para
muitas vezes favorecerem o povoamento e desenvolvimento agrícola
da região.10
O controle social sobre os povos indígenas por parte do Estado
português era de grande importância, pois garantia o controle da
mão-de-obra mais utilizada na região, para benefício do próprio
Estado e não só dos religiosos.11 Também impediria os possíveis
contatos comerciais dos indígenas com os estrangeiros. Os “reinóis”,
desde 1695, acreditavam que os gentios constituíam as “muralhas
dos sertões”,12 ou seja, a submissão dos povos indígenas
representava a garantia econômica e territorial do hinterland colonial
brasileiro.
Foram também tomadas medidas de cunho militar, como
estratégia para manter as fronteiras coloniais a salvo de possíveis
invasões por parte de espanhóis, franceses e holandeses, países
que possuíam colônias ao longo da fronteira com o Grão-Pará. As
medidas para o controle da fronteira, no Grão-Pará, começaram com
a primeira comissão de demarcação,13 enviada para a região em
1750. Pombal confiou essa demarcação ao seu irmão Antônio Xavier
de Mendonça Furtado, que governaria o estado do Grão-Pará de
1751 a 1757. Mendonça Furtado tinha como objetivo garantir que as
fronteiras entre Espanha e Portugal fossem demarcadas de acordo
com o estabelecido pelo Tratado de Madri, que estabeleceu as
fronteiras do Grão-Pará, ao norte, até o “Cabo Norte” (atual estado
do Amapá) e, a oeste, até o rio Solimões, junto ao rio Napo.14
As medidas para demarcação das fronteiras não teriam êxito sem
a reestruturação do exército; por isso Mendonça Furtado procurou
organizá-lo e dar-lhe disciplina. Havia muito por fazer. Em 1752,
Mendonça Furtado relatou a dificuldade de encontrar soldados
treinados. Em sua opinião, as tropas estavam compostas de pouca
gente, “miserável, sem disciplina, ordem ou forma de militar, ou de
milícia, e em tal desprezo, que tinha por injuriado aquele a quem se
mandava sentar praça de soldado”.15 Além disso, Mendonça Furtado
observou que os oficiais eram tão ignorantes na arte militar quanto
os soldados. Eles desconheciam a importância e a função do posto
que ocupavam, bem como o princípio de obediência que lhes deviam
seus subordinados. Também não tinham respeito por seus oficiais. O
governador solicitou que a Metrópole enviasse oficiais para dar
instrução de guerra aos soldados e para equacionar a falta de
disciplina das tropas, visto que na capitania não existia gente apta a
preencher os postos. Em 1753, Mendonça Furtado já se orgulhava
das mudanças que em pouco tempo havia introduzido na disciplina
das tropas. Em carta de 12 de novembro, escreveu entusiasmado ao
marquês de Tancos, pois as tropas de Belém já conseguiam dividir-
se em regimentos, marchavam sofrivelmente, manejavam as armas
bem e conheciam o que era fila, fileira, retaguarda, centro e lado.
Além disso, agradecia pelos oficiais militares que haviam sido
enviados, pois eles poriam os regimentos do Estado em melhores
condições, o que proporcionaria a Sua Majestade melhores soldados
para servi-lo.
Depois da invasão, pelos espanhóis, da província Trás-os-Montes
em 1762 e das invasões da colônia de Sacramento, dos fortes Santa
Tereza e São Miguel e da vila de São Pedro em 1763, no atual Rio
Grande do Sul, Pombal tomou uma medida que seria mais eficaz
para a modernização do exército luso-brasileiro: a contratação do
conde de Schaumbourg-Lippe para ser o marechal do exército
português. O conde de Lippe organizou as tropas de acordo com o
método prussiano de guerra. Esse método começou a ser usado
depois das vitórias alcançadas pelo exército de Frederico II, que
governou a Prússia de 1740 a 1786.16 O método consistia em tornar
o soldado capaz de executar manobras precisas com o menor
número de gestos. Para isso era necessário que o soldado fizesse
exercícios exaustivos.
A guerra de 1762/63 entre Portugal e Espanha, decorrente do
Pacto de Famílias,17 afetou o Grão-Pará, pois os espanhóis tentaram
invadir a capitania do Rio Negro. Para evitar a invasão, Portugal
enviou em 1763 à capitania do Rio Negro o militar Joaquim Tinoco
Valente, para que ele formasse uma grande força militar para impedir
a tomada da fronteira oeste pelos espanhóis.18 Além disso, mandou
construir os fortes de Marabitanas e Tabatinga naquela mesma
capitania.19 Em 1764, foi construída em Macapá uma grande
fortaleza, que passaria a contar com um regimento de infantaria pago
e um terço auxiliar composto de oito companhias e quatro de
cavalaria, para guarnecer a fronteira junto aos territórios coloniais
franceses, protegendo a fronteira norte.20
A implementação da reforma militar de 1763 no Grão-Pará foi
mais uma tentativa de garantir a fronteira do estado. Assim, em
1773, o governador João Pereira Caldas recebeu ordens para aplicar
o regulamento de 18 de fevereiro de 1763,

que fora dado em Portugal para o exercício e disciplina dos


regimentos do exército então submetido ao mando do marechal
general conde de Lippe, o qual acabava de mudar inteiramente a
Constituição militar portuguesa pela [adoção] dos princípios da
Constituição prussiana, cujo regulamento [resumido] era [aquele]
que o indicado general do Pará receberá para fazer praticar.21

Três anos depois, este mesmo general ainda enviava instrução a


várias vilas do Grão-Pará, ordenando que fossem exercitadas tropas
auxiliares, para que as mesmas alcançassem “exatidão e
uniformidade de manejo e de movimento”.
A partir de 1773, o recrutamento militar no Grão-Pará passou a
ser regido pelos alvarás de 24 de fevereiro, 9 de julho, 15 de outubro
e a resolução de 1o de outubro, todos do ano de 1764. O primeiro
alvará determinava que todos os homens acima de 18 anos
deveriam ser alistados nas ordenanças, cabendo ao capitão-mor,
comandante máximo das ordenanças, garantir que estas estivessem
sempre completas e atualizadas. Entre os alistados nas ordenanças
seriam retirados, mediante sorteio, os homens que comporiam as
tropas pagas. A freqüência dos sorteios deveria ser determinada pela
falta de soldados nas tropas regulares. Nestas seriam incluídos os
homens que não fossem recrutados para tropas pagas: filhos únicos
de viúvas; estudantes matriculados em colégios e universidades;
marinheiros e pescadores; comerciantes e seus caixeiros e feitores,
com os artífices que trabalhassem cotidianamente; homens casados,
que não o fossem depois de notificados; e pessoas contratadas pela
real Fazenda. Por meio desse alvará o conde de Lippe pretendia
garantir que as tropas estivessem sempre completas para eventuais
combates com os inimigos.22
O alvará de 15 de outubro de 1764 ampliou o de 24 de fevereiro.
O objetivo do documento era evitar que os moradores recrutados da
capitania utilizassem o “subterfúgio” do casamento para serem
exonerados do serviço nas tropas pagas, visto que os casados eram
alistados nas tropas auxiliares. O alvará de 9 de julho de 1764
estabelecia que todos os nomes de soldados pagos constariam em
um livro de registro em cada regimento de cavalaria, artilharia e
marinha. Esse livro deveria conter o ano em que o soldado entrou na
tropa, o valor do soldo de cada membro da tropa, as suspensões dos
soldos e os motivos para isto, a companhia em que serviam etc. A
intenção do alvará era claramente ter o controle total dos indivíduos
que serviam nos regimentos, e ele foi de grande auxílio na
perseguição aos soldados desertores.

Fugir para a casa


As reformas empreendidas pelo conde de Lippe e implementadas
no Grão-Pará em 1773 implicaram maior intensidade de
recrutamento e treinamento das tropas. Tais medidas acabaram
interferindo diretamente na vida dos moradores. Por isso, vários
foram os soldados que utilizaram o recurso da deserção para
poderem levar adiante a vida que escolheram. Em fevereiro de 1774,
o diretor da vila de Portel comunicava ao governador João Pereira
Caldas que o soldado Bento José da Costa havia novamente
desertado para aquela vila, indo trabalhar na roça do sargento-mor
Cipriano Inácio, onde estava sua mulher.23 Atitude idêntica tomaram
Manuel Miguel e Manuel Teixeira quando fugiram da vila de
Tabatinga em direção a Barcelos para se unirem às suas mulheres,
das quais se haviam afastado desde a transferência para o serviço
na fortaleza de Tabatinga.24
Foram constantes as fugas de soldados em busca de reatar laços
familiares, visto que as grandes distâncias acabavam destruindo as
famílias. Em estudo sobre os casamentos da população não-
hegemônica do Mato Grosso, Peraro comenta que o caráter
itinerante da vida militar contribuiu para uma forte presença de
relações fortuitas e consensuais terminadas com a transferência do
militar do local.25 Essa deve também ser uma das causas da luta dos
soldados no Grão-Pará para manterem seus laços familiares,
desobedecendo às ordens de transferência dadas pelos
comandantes.
A importância das relações amorosas desses soldados pode ser
facilmente constatada na documentação existente. Em 1790, por
exemplo, Hilário Moraes Bittencourt Filho, comandante da vila de
Cametá, denunciava a fuga de vários soldados auxiliares que se
recusavam a ser transferidos para a fortaleza de Macapá e defender
a fronteira contra qualquer possível investida dos franceses. Hilário
Bittencourt mandou prender todas as “concubinas” dos soldados
desertores como uma forma de pressão para que esses soldados se
entregassem. Para evitar a prisão de suas mulheres, alguns
soldados levaram-nas na fuga. O soldado Manoel João de Azevedo
fugiu com sua “concubina”, posteriormente detida pelas autoridades
juntamente com a canoa do soldado. Outro soldado, Antônio Luís,
fugiu e escondeu-se no mato próximo à vila de Cametá, mas teve de
voltar para evitar a prisão de sua mulher, denominada “concubina”
pelas autoridades.26
Muitos soldados necessitavam manter economicamente seus
familiares, e para isso faziam pedidos de baixa ou de licença para
poder “amparar seus familiares”, visto que o soldo pago era baixo (os
soldados auxiliares somente recebiam soldo quando eram
destacados para a fronteira). O soldado Manoel Vicente Lima, por
exemplo, escreveu ao governador pedindo baixa ou aumento de
soldo para poder sustentar sua família, que se encontrava em
dificuldades. Em 1775, Maria Francisca Xavier, senhora de posses
em Ourém, pedia ao governador que fosse dada a baixa do soldado
Paulo de Medeiros para que ele pudesse “amparar” uma filha cega.27
Como muitos soldados não conseguiam a baixa, desertavam com
o objetivo de dar continuidade aos afazeres cotidianos que lhes
possibilitavam seu sustento e de seus familiares. Em 1778, o capitão
de Abaité, João Xavier de Morais, escreveu ao governador do estado
a respeito de 48 soldados que não haviam comparecido aos
exercícios militares da vila de Barcarena. Eles haviam embarcado
para a ilha de Marajó com suas famílias, para pescar tainhas. Alguns
outros foram presos trabalhando no corte de madeira no sítio de um
morador chamado Arcênio José Machado.28

Agricultura, trabalho e serviço militar


Que profissões exerciam os soldados e oficiais das tropas
auxiliares? O censo de 1778 revela que 601 “cabeças” (chefes) de
famílias militares da capitania do Grão-Pará estavam engajados em
profissões variadas, que lhes garantiam o sustento. Entre essas
profissões destaca-se a de lavrador, a mais freqüente nas 15
localidades analisadas, com um total de 432 cabeças de famílias
militares.29 As vilas estudadas foram: Bujaru, Capim, Vila de Beja,
Vila de Cintra, Vila do Conde, Belém, Igarapé-Miri e Abaetetuba, na
região de Belém (tabela 1); Bragança e Ourém, na região do Guamá
ao Gurupi; Odivelas, Penha Longa, Porto Salvo, Vila Nova d’El Rei e
Vigia, na costa oriental (tabela 2).

Tabela 1
Profissão dos cabeças de famílias de soldados e oficiais das tropas
auxiliares, região de Belém, 1778
Fonte: Recenseamento de 1778. Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
1927.

Na região de Belém, as três localidades com maior número de


cabeças de famílias de soldados e oficiais das tropas auxiliares eram
Belém (273), Abaetetuba (60) e Igarapé-Miri (42). Quanto à profissão
dos mesmos, destacamos a de lavrador, que está presente nas três
localidades, sendo a mais freqüente em Igarapé-Miri (35) e
Abaetetuba (50), representando 83,7% e 76,6%, respectivamente.
Contudo, na localidade de Belém, mais urbana e com maior
concentração militar, podemos encontrar uma variedade de ofícios,
como senhores de engenho (7), sapateiros (15), carpinteiros (26),
taberneiros (8), mercadores (17), alfaiates (10) e lavradores (32),
sendo esta última profissão a mais abundante. Nas vilas de menor
abundância militar, como Bujaru, Capim, Vila de Beja, Vila de Cintra
e Vila do Conde, a profissão mais freqüente entre os militares era a
de lavrador, como é o caso de Bujaru e Vila de Cintra, onde todos os
militares eram lavradores. Profissões como carpinteiro, ferreiro e
senhor de engenho também eram ofícios de alguns militares, embora
em menor percentual. Na Vila de Beja, por exemplo, havia, além de
sete militares lavradores (78,2%), um carpinteiro e um ferreiro (11,1%
cada ofício).
Na região do rio Guamá ao Gurupi (tabela 2), as localidades de
Bragança e Ourém eram pouco militarizadas (cada uma com quatro
militares), a primeira menos que a segunda (3% e 8,5% dos cabeças
de famílias, respectivamente). Em Bragança, metade dos militares
exercia a profissão de lavrador, e a outra metade era de senhores de
engenho. Essas duas profissões também foram as únicas em
Ourém, mas com maior percentual de lavradores (75%) em relação
ao de senhores de engenho (25%).

Tabela 2
Profissão dos cabeças de famílias de soldados e oficiais das tropas
auxiliares, região do rio Guamá ao Gurupi e costa oriental, 1778
Fonte: Recenseamento de 1778. Instituto Histórico e Geográfico do Pará,
1927.

Na costa oriental, os dados sobre ofício exercido pelos soldados


e oficiais das tropas auxiliares mostram a profissão de lavrador como
a mais freqüente (tabela 2), salvo nas localidades de Penha Longa,
onde o único militar exercia a função de senhor de engenho, e de
Porto Salvo, cujo único cabeça de família militar foi arrolado sem
informação sobre a profissão. Na Vila Nova d’El Rei, todos os
militares eram lavradores. Em Odivelas e em Vigia, metade da
população militar exercia essa profissão; nesta vila, os outros sete
militares se dividiam entre diversas profissões como ourives (3),
senhor de engenho (2), alfaiate (1), além de um sem informação.
Os lavradores foram membros freqüentes do exército colonial do
Grão-Pará dentro das tropas auxiliares. Apesar de o estado ser
conhecido pela historiografia como uma área principalmente
extrativista, não se pode deixar de assinalar que quase a metade dos
auxiliares com ocupação declarada aparecem como lavradores
(46,0% de 339 militares). Os próprios senhores de engenho podem
ser considerados homens que trabalham com lavouras, apesar de o
censo estabelecer a diferença entre estes e os lavradores.
Entre as medidas econômicas adotadas por Pombal estava o
fomento da agricultura. Pretendia-se transformar o delta amazônico e
a planície fluvial (várzeas) em celeiro agrícola. Para tal, contou-se
com a ajuda da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e
Maranhão.30 Essa companhia tinha a intenção de promover a
participação econômica do estado no mercado metropolitano. Para
atingir esse objetivo fazia-se necessária a entrada de escravos
negros para que os grandes proprietários pudessem produzir em
maior escala produtos que, a exemplo do tabaco, apresentavam na
época alta rentabilidade no mercado mundial.31
Colonos foram trazidos para o trabalho nas lavouras desde o
início da colonização, e, muitas vezes, eram soldados portugueses
que recebiam a terra. Durante o período pombalino foram trazidos
pela Companhia do Comércio, a fim de promover uma agricultura
exportadora rentável. As antigas aldeias missionárias foram
transformadas em vilas e suas terras distribuídas em caráter
hereditário entre os índios. Estes, juntamente com os colonos,
passaram a dedicar-se à agricultura. Os índios tornaram-se livres
pela lei de 1755. Assim, em vilas como Odivelas, Vila Nova d’El Rei,
Bragança, Vila de Cintra, Penha Longa, Porto Salvo, Vila de Beja,
Vila do Conde e Ourém, antigos aldeamentos, conviviam índios
lavradores e colonos que receberam terras doadas pela
companhia.32
O governo pombalino promoveu a estabilização econômica por
meio de uma economia agrícola que garantisse núcleos de
povoamento estáveis. Os colonos receberam ajuda financeira do
Estado e, em contrapartida, tiveram suas vidas fortemente
controladas por diversas leis, para atender à necessidade de uma
agricultura exportadora, concentrada nas vilas de Mazagão, Vistosa
e Macapá. As autoridades procuravam tomar cuidado para não
prejudicar as lavouras dos colonos dessas vilas, quando havia
necessidade de convocar os soldados auxiliares alistados, que
possuíam roças. Em 1774, o então comandante da vila de Macapá,
Manoel da Gama Lobo Almada, escrevia ao governador João Pereira
Caldas:

Fiz [passar] de Mazagão e Vila Vistosa o destacamento que


[consta] das cópias inclusas; da cavalaria auxiliar puxei a metade,
que todos são rendidos de quinze em quinze dias, tendo tempo
para não desampararem de todo as suas roças, e [achei] essa
guarnição suficientemente reforçada com o destacamento de
Mazagão que certamente [é] capaz de todo o desempenho.33

Para ter certeza de que sua determinação seria cumprida, o


comandante enviou 11 dias depois um comunicado ao sargento-mor
da vila de Mazagão, dizendo-lhe que enviasse um número igual de
soldados para substituir os que estavam em Macapá. O comandante
tentava conciliar os dois pontos do projeto pombalino: fortalecer
militarmente aquela área e, ao mesmo tempo, torná-la rica por meio
da agricultura voltada para o mercado externo. A Coroa então
encaminhou grupos de colonos dos Açores para Macapá, Mazagão e
Vila Vistosa, sendo eles os responsáveis pela produção agrícola e o
serviço militar na fortaleza de Macapá.34
As medidas tomadas por Lobo Almada não se constituíam em
uma atitude desinformada. Eram fruto da experiência de um militar
formado nas fileiras do exército e que procurava tomar atitudes para
“favorecer” os colonos de Mazagão. Contudo, não havia o mesmo
cuidado com os soldados pagos, pois segundo Lobo Almada cabia a
eles fazer o “forte do serviço”.35 Em 1775, colonos-soldados
sediciosos de Macapá fizeram várias queixas ao governador.36 Entre
elas, declaravam-se contra o intenso serviço na fortaleza de Macapá,
que impedia o trabalho em suas roças, tornando a atividade militar
incompatível com a produção agrícola numa área planejada para ser
exportadora de alimentos.
Os soldados sediciosos de 1775 eram 34 membros da
companhia de infantaria do regimento de Macapá. Eles haviam sido
recrutados nas ilhas de Cabo Verde e São Miguel, no Porto e em
diversas vilas de Portugal. Certamente esses homens foram
recrutados com a promessa de obter terra como uma forma de
estímulo, visto que teriam de deixar seus lugares de origem para
residir em terras longínquas. Poderiam mesmo ser trabalhadores
sem terra em busca de terras abundantes na América. Contudo,
haviam-se passado dois anos, e o ritmo intenso de trabalho imposto
por Lobo Almada não lhes permitia cultivar roças para o sustento de
seus familiares. Diante da impossibilidade de conciliar o serviço nas
tropas regulares e o cultivo das terras, eles decidiram que estava na
hora de serem mudados; se não, desertariam.
As reivindicações dos soldados foram feitas ao tenente-coronel
João Felipe, superior de Lobo Almada, por meio de cartas. A saída
de Macapá era um dos pedidos dos amotinados. Além disso, pediam
que o coronel proibisse Lobo Almada de lhes dar chicotada, pois
acreditavam que o regulamento determinava que os soldados que
recebessem chibatadas deveriam ser expulsos das tropas;
desejavam receber rações em melhores condições, e não a farinha
“podre” que lhes era dada; queriam a diminuição das horas de
exercício determinadas pelo regulamento; que os soldos fossem
pagos imediatamente após a chegada do dinheiro, e não retidos por
15 dias por Lobo Almada etc. Como resultado, foram presos por
Lobo Almada e acusados de promover motim.
Por esse motim observa-se que a proteção aos lavradores não foi
tomada em todas as vilas. A grande utilização de mão-de-obra,
principalmente indígena, de diversas vilas para o trabalho nas
fortalezas, nas expedições de demarcações e na coleta de drogas do
sertão prejudicou o trabalho na agricultura, voltada para o mercado
interno, gerando uma crise de abastecimento.37 Essas medidas
deixavam os lavradores ou colonos insatisfeitos, levando muitos a
desertar ou alegar “moléstias”, maneira usual de conseguir dispensa
dos exercícios militares, além dos pedidos de baixa.38
Certamente a ausência de colonos-lavradores em suas roças,
mesmo que fosse por 15 dias, deveria ser extremamente prejudicial
à manutenção de suas famílias, principalmente porque esses
homens dificilmente ficavam apenas 15 dias nos serviços da tropa
quando tinham de trabalhar em lugares distantes como Macapá ou
sair em diligência para combater quilombos. Um soldado que fosse
enviado de Portel para Macapá levaria 10 dias entre ida e volta,
ficando mais de 25 dias fora de sua roça, se somarmos os 15 dias
que teria de ficar de serviço. Se a viagem fosse de Belém a Macapá,
a ausência seria de pelo menos 41 dias. Outrossim, como o tempo
de permanência, tanto das tropas pagas quanto das auxiliares,
estava a critério do comandante, os soldados poderiam ficar em
Macapá o tempo que essa autoridade achasse necessário para
atenderem ao serviço na fortaleza ou até estarem “sofrivelmente
disciplinados”, como aconteceu com as tropas auxiliares de Gurupá e
Cametá destacadas para Macapá em 1777.39
A demora deveria ser extremamente prejudicial para os
moradores de qualquer uma dessas vilas, visto que entre os
recrutados estavam principalmente homens pobres. No censo, os
pobres são definidos como os que não possuíam profissão; os que
tinham apenas um escravo ou nenhum escravo; ou os que possuíam
profissão e nenhum ou apenas um escravo.40 Além disso,
examinando-se as informações do censo, podemos ver que foram
considerados pobres os lavradores de mandioca e arroz com
nenhum ou até três escravos. Assim, os colonos ou lavradores
recrutados deixavam suas roças desamparadas, visto que a
produção era feita com o braço familiar.
Os homens sem profissão declarada constituíam o setor da
sociedade luso-brasileira especialmente recomendado pelas
autoridades para compor as tropas, principalmente as pagas. O
alvará de 15 de setembro de 1764, que ampliava o de 24 de
fevereiro do mesmo ano, deixa clara essa questão:

Eu El-Rei faço saber [que] a forma de se recrutarem as minhas


tropas com tanta maior regularidade e tanto maior benefício dos
povos, que [deles venham] somente mancebos desocupados,
que aos sobreditos [povos] servem de [opressão].41

A utilização de “desocupados” nas tropas foi constante,


principalmente nas pagas. O alistamento desses homens acabava
atendendo à necessidade do Estado de obter mão-de-obra para o
serviço nas tropas, em razão do grande número de isentos. Essas
isenções visavam garantir o desenvolvimento econômico da colônia.
Outrossim, nada impedia que nas tropas auxiliares os “desocupados”
fossem incluídos, principalmente onde não existissem tropas pagas,
como no caso da tropa auxiliar de Cametá, onde tiveram uma
presença expressiva. O mais importante era dar utilidade aos
“vadios”.
A partir do século XVIII, o trabalho passou a ser visto como forma
de obtenção de lucro com a extração de sobretrabalho de milhares
de trabalhadores na Europa e nas colônias. O trabalho compulsório
foi a forma encontrada pelo mercantilismo para a maximização
desses lucros. Desse modo, os pobres na Europa e os brancos
pobres, africanos e indígenas nas colônias foram o alvo predileto das
autoridades para garantir a acumulação de capital. No Brasil, os
indígenas foram primeiramente escravos e, apesar de libertos por
Pombal, continuaram a ser utilizados em trabalho semi-escravo.42
Farage comenta que essas medidas tomadas em relação aos
indígenas não seriam diferentes do processo de compulsão ao
trabalho e ao disciplinamento da mão-de-obra dos artesãos ingleses
e seu ajustamento ao ritmo de produção manufatureira analisados
por E. P. Thompson.43 Assim, o trabalho tinha uma importância
fundamental para a acumulação de capital pela Metrópole, e por isso
a lei de recrutamento definia os úteis ao Estado como aqueles que
exerciam suas funções cotidianamente; quem não o fazia, como os
indígenas, deveria ser induzido a isso.
O trabalho deveria ser um hábito na sociedade colonial brasileira,
mais freqüentemente exigido às camadas mais baixas, pois as
camadas mais altas podiam comprar braços ou ter agregados para
trabalhar por elas. Até mesmo nas tropas essa situação se repetia
quando era aplicado o princípio legal da substituição. Por exemplo,
um filho de lavrador rico podia ficar isento do serviço se em seu lugar
fosse algum agregado ao qual se oferecia um benefício.44 O exército
luso-brasileiro não estava fora desse processo de compulsão e
disciplinamento do trabalho por meio do recrutamento de diversos
indivíduos levados à força para formar as tropas, incorporando-se os
mancebos que não tivessem um trabalho diário. Os indígenas, vistos
como vadios, deveriam ser alvo constante de recrutamento. Assim,
diversos homens foram recrutados e forçados a engajar-se em
tropas, modificando as suas vidas.

Organizações clandestinas
Ao contrário do que as autoridades afirmavam, os desertores não
eram “miseráveis delinqüentes”, mas homens que tinham famílias e
profissões, e que muitas vezes desertavam para poder continuar
levando suas vidas cotidianas, mesmo que a deserção significasse
uma vida na clandestinidade. Na situação de clandestinidade, os
soldados desenvolviam estratégias de sobrevivência criando laços
de solidariedade com a população local.
Muitos soldados fugiam do Grão-Pará em direção às minas de
Goiás, ao Maranhão e às colônias de outras metrópoles fronteiriças
com o Grão-Pará.45 Já os soldados fugitivos que permaneciam no
Grão-Pará desenvolviam estratégias de sobrevivência na
clandestinidade. Geralmente os desertores procuravam ficar em
lugares próximos às suas casas, visto que os primeiros a dar “asilo”
aos desertores eram seus parentes. Em 1774, o diretor da Vila de
Cintra escreveu ao governador do estado comunicando que tinha
feito diligência sobre os soldados desertores e não havia achado
nenhum deles, mas que viajando pelo rio Marapanim perseguiu uma
canoa com três homens, sendo um deles o desertor Antônio
Marinho. Os tripulantes da canoa fugiram para o sítio de Bernadino
Felliz, sogro de Antônio Marinho. Chegando ao sítio, o diretor
perguntou pelo desertor, mas foi destratado por Bento José, cunhado
de Antônio.46
Em 1786, o governador Martinho de Souza Albuquerque enviou
ao capitão Hilário Moraes Bittencourt Filho uma carta autorizando-o a
instaurar inquérito contra os moradores que dessem asilo a
desertores. Ele pedia que a punição não demorasse, pois estava
certo de que “se acautelarão mais esses moradores que tanto
auxiliam os desertores e me consta andarem por esse [distrito]
avultado número [deles]”. As punições aos que auxiliassem
desertores eram de 200 mil-réis para quem fosse pego pela primeira
vez e de 400 mil-réis para os reincidentes.47
Muitos desertores passavam a viver em quilombos. Os
desertores de Cametá dirigiram-se para uma região no rio Cupijó,
onde formaram “um grande mocambo de desertores, pretos fugidos
e criminosos”.48 Em 1790, o governador da capitania do Grão-Pará
enviou um ofício ao juiz ordinário de Cametá determinando que se
prendessem os escravos fugidos e desertores que se encontravam
amocambados próximo àquela povoação. Eles estariam roubando os
moradores que viviam ao longo dos rios e igarapés.
Há indícios de que os desertores viviam em mocambos
juntamente com índios, negros e outros fugitivos coloniais em
diversos pontos do estado. Em Ourém, por exemplo, um morador
denunciava que havia um mocambo localizado num dos braços do
rio Siri Torô, onde estariam vivendo um desertor branco, índios e
“pretos”. Esse desertor estaria morando no mocambo há um ano,
cultivando roças de mandioca.49 Uma explicação para a atuação
conjunta de negros fugidos e desertores estaria na existência de uma
identidade comum a esses indivíduos, criada por meio de suas
experiências históricas adquiridas pela situação de fugitivos na
ordem colonial escravista.
Incursões de roubo aos lugarejos vizinhos poderiam ser uma
forma comum de atuação, possibilitando a desertores, negros e
índios fugidos organizarem os mocambos como uma economia
autônoma. Estudos recentes nos informam que comunidades negras
de fugitivos em vários locais do país utilizavam o roubo como forma
de complementar o que produziam em suas roças.50 Era a partir de
um mocambo que o sargento desertor Geraldo e um homem
chamado Mamed faziam roubos em alguns sítios próximo de
Melgaço.51 Esses homens viviam no mocambo dos Breves sob a
proteção de Felipe dos Santos. Tal mocambo era comandado pelo
capataz Domingos Araújo, um dos filhos de Manoel Breves,
proprietário de terras em Melgaço. Ele acoitava em seu mocambo
quatro desertores e seus filhos. Além de constituir mais uma
estratégia para aqueles que queriam escapar do recrutamento, a
formação de mocambos também podia ser feita por capatazes a
mando de proprietários locais. Nesse caso, os desertores serviam
como braço armado dos proprietários, fortalecendo a manutenção de
um poder local diminuído com a forte presença do Estado.52
A proteção de desertores por proprietários locais era comum no
Grão-Pará. Na ilha de Joanes, desertores agiam como braço armado
de fazendeiros praticando roubos. O morador Cláudio Antônio de
Oliveira denunciava, em 1772, estar sendo vítima dos “excessos” e
“desmandos” de um fazendeiro de nome Xavier Roiz e de seu filho
Marcelo. Esses homens escondiam em suas casas diversos
fugitivos, entre os quais estavam Faustino de Barros e alguns
soldados desertores, acusados por Cláudio Oliveira de roubar seu
gado e tocar fogo em uma de suas casas. Cláudio Oliveira, de posse
de uma ordem das autoridades da ilha, conseguiu fazer uma
diligência nas casas de Xavier Roiz, exigindo deste a assinatura de
um termo em que se comprometia a não “consentir nem admitir em
sua casa (…) ajuntamentos” de fugitivos, pois tais ajuntamentos
eram prejudiciais “ao [sossego] da mesma vizinhança”. O termo
ainda determinava que Marcelo Roiz comparecesse à presença do
inspetor adjunto Pedro Gavinho, em Belém, com Faustino de Barros
e os soldados desertores a quem “acolhia” em sua companhia e
costumava dar auxílio.53
Desertores e outros fugidos contaram com o apoio de diversos
moradores nas vilas, que os ajudavam por motivos afetivos ou como
uma alternativa ao mundo colonial. Para além dos padrões
instituídos pela Coroa portuguesa, havia casos de proprietários
insatisfeitos com a distribuição de mão-de-obra indígena
estabelecida pelo diretório, com o preço elevado dos escravos ou
simplesmente com desertores que contaram com a proteção de
moradores desejosos de manter uma organização socioeconômica à
margem daquela determinada pelo Estado.
O roubo parecia ser uma forma usual de sobrevivência
encontrada pelos desertores durante a sua clandestinidade para se
manterem longe das tropas. Em Cametá, desertores uniram-se ao
mulato Alexandre para praticar furtos. Alexandre, que contava com a
proteção do coronel João de Moraes Bittencourt, pai, dizia a todos
que seus filhos jamais seriam soldados e andava com desertores
pela praia de Cametá, furtando tartarugas.54
A prática do roubo conjugava-se com trabalhos em sítios, como
foi o caso de alguns desertores acoitados por donos de sítios que os
utilizavam no corte da madeira, além do trabalho em roças de
particulares, como ocorreu com o soldado Bento José da Casta,
escondido na roça do sargento-mor Cipriano Inácio em Portel.
Na capitania do Grão-Pará, na região que vai de Cametá a
Melgaço (principalmente nas vilas de Cametá, Melgaço e Portel),
passando pela ilha de Marajó, constatou-se regularidade de fuga de
soldados. Os desertores de Melgaço e Portel — constantemente
recrutados para fortalezas da capitania, principalmente as de Gurupá
e Macapá — procuravam circular no espaço entre suas vilas e,
protegidos por alguns moradores, em caso de dificuldades desciam o
rio e refugiavam-se nos mocambos de Joanes, onde, além de contar
com a conivência de moradores, tinham a cumplicidade dos escravos
fugidos. Esses soldados em fuga entravam em contato com escravos
e soldados desertores da ilha de Marajó, compartilhando
experiências comuns, o que os levava a se unirem contra as
diferentes formas de escravidão, declaradas ou não, pois o serviço
nas tropas representava uma forma compulsória de extração de
sobretrabalho. Cametá, Melgaço e todas as povoações de Marajó
eram vilas que tiveram sua origem em missões. Nelas havia uma
grande quantidade de índios que viam seus roubos não como um
crime, como alegavam as autoridades, mas como uma forma de
complementação de suas rendas.55
Apesar de obedecerem a um certo padrão de fuga e cometerem
diversos roubos, os soldados desertores não formavam uma
corporação criminosa. Na realidade, esses homens tentavam
controlar o curso de suas vidas, aparentemente interrompido pelas
autoridades metropolitanas no ato de incorporá-los nas diversas
tropas do Grão-Pará. Por isso, suas atitudes consideradas
desordeiras não eram fruto de sua condição social, mas da
necessidade de agenciar formas de sobrevivência, a fim de
garantirem uma vida autônoma.
Conclusão
Para equacionar as disputas coloniais com a França, Espanha e
Holanda, a Coroa portuguesa tomou medidas drásticas no Grão-Pará
na segunda metade do século XVIII. A vinda do irmão do marquês de
Pombal, Mendonça Furtado, reflete a intensa preocupação da Coroa
na região. Esse governador garantiu que os soldados fossem
adequadamente treinados para guarnecer as fronteiras e impedir que
os índios pudessem manter relações com as colônias estrangeiras,
pois era grande o medo de uma possível união entre as autoridades
das colônias estrangeiras e os indígenas. Esse medo fez com que
Mendonça Furtado criasse em 1757 o Diretório Pombalino.
A partir de 1773 houve maior recrutamento e treinamento das
tropas militares, na tentativa de reafirmar o projeto de controle do
Grão-Pará. Essas mudanças representavam a aplicação das
reformas militares elaboradas pelo conde de Lippe em 1763. Houve
a retirada de diversos homens de suas lavouras e de outros afazeres
cotidianos. Muitos foram imobilizados em tropas e não podiam
afastar-se sem permissão (tanto soldados pagos quanto auxiliares),
pois seriam considerados desertores, o que resultava em sua
perseguição e de seus familiares e em uma vida na clandestinidade.
Dessa forma, as autoridades moldaram homens, determinando o
tempo e o espaço pelos quais deveriam pautar suas vidas. Essa
instituição tentou pôr um fim definitivo na “vadiagem” dos índios, a
fim de que se tornassem úteis para si e para o Estado. No entanto,
os homens recrutados não foram tão pacíficos e resolveram
governar-se por leis próprias, mesmo que isso significasse uma vida
na clandestinidade.
Os desertores que viviam na clandestinidade procuraram
continuar suas vidas em meio à sociedade colonial, criando
estratégias que lhes permitissem manter seus laços de afetividade.
Para viver na clandestinidade, muitas vezes associaram-se a índios
e escravos fugidos, formando organizações clandestinas e contando
com o apoio de seus familiares e de outros moradores do Grão-Pará,
que também tentavam criar seu próprio espaço de autonomia ante a
imposição metropolitana.
A vida nos mocambos possibilitava a esses homens viverem por
suas próprias leis; neles, os desertores podiam plantar, caçar e viver
com seus familiares. Além disso, os desertores conjuntamente com
escravos fugidos promoveram roubos para complementar a
produção das suas roças. Os desertores escondidos em terras de
donos de sítios podiam executar seus antigos trabalhos e sustentar a
si e a seus familiares mesmo não estando perto deles. Dessa forma,
os desertores criaram uma vida autônoma dentro da ordem
estabelecida.

Bibliografia
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ACEVEDO MARIN, Rosa Elizabeth. A escrita da história paraense.
Belém: Naea/UFPA, 1998.

* Mestre em história pela UFPA; professora da Escola Superior Madre Celeste


(PA).
1 Arquivo Público do Estado do Pará (doravante Apep), 1796, códice 285.
2 Frederico, 1945:127.
3 Pela lei de deserção de 1765, qualquer soldado que se ausentasse de seu
regimento sem licença ou com licença acima de 10 dias seria considerado
desertor. A mesma lei determinava as penas para quem desse asilo a
desertores. Essa lei era aplicada para todas as tropas. Ver Portugal (1829).
4 Ver Peregalli (1986); Curado (1998).
5 Ver Peregalli (1986); Leonzo (1977).
6 Ver Peregalli (1986:41).
7 Ver Silva (1992:17-18).
8 Ver Farage (1991:82-83); Silva (1992:17-18).
9 Farage, 1991:34.
10 Sobre o diretório, ver Farage (1991:34, 48-53); Cardoso (1984:114).
11 Ver Silva (1992:38).
12 Farage, 1991:75.
13 As expedições para demarcar as fronteiras entre Portugal e Espanha foram
feitas em dois momentos: depois de assinado o Tratado de Madri, em 1750, e
depois da assinatura do Tratado de Santo Idelfonso, em 1777. Ver Peregalli
(1986:37-40).
14 Ver Reis (1959:35-37).
15 Apud Mendonça (1963:123).
16 Ver Falcon (1986).
17 O Pacto de Famílias foi um acordo firmado em 1761 entre França, Áustria e
Espanha contra Inglaterra e Prússia durante a Guerra dos Sete Anos (1756-
63). Ver Peregalli (1986:42).
18 Ver Brasil (1972:342).
19 Ver Braum (1789:278-279).
20 Ver Farage (1991:82-83).
21 Apep, 1770, códice 600.
22 Portugal, 1829:84-90.
23 Apep, 1774, códice 146.
24 Apep, 1791, códice 482.
25 Ver Peraro (1999).
26 Apep, 1796, códice 285; Apep, 1794, códice 285.
27 Apep, [s.d.], códice 150; Apep, 1775, códice 150.
28 Apep, 1778, códice 178; Apep, 1775, códice 151.
29 O censo de 1778 foi construído a partir da contagem de todos os cabeças
de famílias (homens e mulheres) que existiam em 64 vilas do Grão-Pará e da
cidade de Belém. Nele consta o nome do cabeça de família, seu estado civil,
ofício, emprego, categoria socioeconômica, número de parentes, agregados e
escravos. Normalmente, a informação sobre serem ou não militares estava no
item “emprego”, como que definindo a superioridade dessa posição sobre o
ofício. Para a análise foram utilizadas 15 vilas que somavam 2.169 cabeças de
família, dos quais 432 eram militares.
30 Ver Acevedo Marin (1998:54).
31 Ver Souza Jr. (1999:72); Cardoso (1984:120-121).
32 Ver Cardoso (1984).
33 Apep, 1777, códice 172.
34 Ver Acevedo Marin (1998).
35 Apep, 1777, códice 172.
36 Apep, 1775, códice 260.
37 Ver Ravena (1994).
38 Apep, 1774, códice 150.
39 Apep, 1777, códice 174.
40 Ver Veloso (1998:26). A autora se refere a Belém, mas no censo aparece a
mesma definição de pobreza para todas as localidades.
41 Portugal, 1829.
42 Ver Farage (1991); Brito (1998).
43 Farage, 1991:47.
44 Ver Araújo (1993:300).
45 Os códices 146, 176 e 178 no Apep trazem documentos que relatam a fuga
de soldados para fora do Grão-Pará.
46 Apep, 1774, códice 144.
47 Apep, 1786, códice 403.
48 Apep, 1794, códice 512.
49 Ver Gomes e Noqueira (2000:219).
50 Ver Gomes (1995).
51 Apep, 1781, códice 209.
52 Ver Gomes e Nogueira (2000:221-222).
53 Apep, 1777, códice 124.
54 Apep, 1780, códice 354.
55 Enquanto os índios aldeados estiveram sob a administração religiosa, a
prática de roubar como forma de complementar renda foi aceita pelos
missionários. Estes temiam que os índios, caso viessem a ser duramente
castigados, abandonassem as missões ou se vingassem nos regulares. Essa
prática começa a ser duramente punida com a implantação do diretório. Ver
Ravena (1994:91-92).
CAPÍTULO 4

Encargos, privilégios e direitos: o recrutamento militar no


Brasil nos séculos XVIII e XIX

Fábio Faria Mendes*


T ributo de sangue” era a expressão usada pelos cidadãos do
Império para nomear as levas do recrutamento militar durante o
século XIX. No imaginário medieval, a expressão denotava a
contribuição dos guerreiros à ordem do mundo, ao lado daqueles
que labutavam e rezavam. No Brasil, por obra de um deslizamento
semântico, “tributo de sangue” adquiriu novos e estranhos
significados. A expressão evocava as práticas sangrentas do
recrutamento forçado, marcado pela violência e pela arbitrariedade.
A expressão fazia lembrar também a distribuição problemática e
desigual dos encargos militares, imersos em redes de isenção e
privilégio.
O recrutamento militar no Brasil dos séculos XVIII e XIX fez-se
acompanhar de uma complexa trama de negociações, resistências e
compromissos. Ao contrário do que faria supor a trivialidade da
experiência atual com as modernas formas de serviço militar, a
distribuição dos encargos do serviço das armas foi, na Colônia e no
Império, questão potencialmente explosiva, constituindo-se assim
em objeto privilegiado de história social.1
Notáveis recorrências ligam as práticas de recrutamento no
Brasil dos séculos XVIII e XIX. No que se segue, exploraremos o
conjunto de persistências e continuidades que configuram o jogo de
resistências e negociações que se tecem ao redor das levas. A
presença de uma dupla configuração institucional, a combinação de
uma administração honorária com ordens de privilégio, define os
contornos do recrutamento.
De um lado, as práticas de recrutamento refletem o baixo grau
de burocratização do Estado e sua dependência de formas indiretas
de governança, na forma de liturgias.2 A Coroa portuguesa — e,
mais tarde, o Estado imperial — não foi capaz de exercer sua
autoridade de modo direto, sem ampla delegação de poderes a
notáveis locais, em razão da precariedade das bases materiais e
morais da administração patrimonial. O exercício da arte da
obrigação seria assim essencial para o exercício do poder real. A
governança na esfera do recrutamento realiza-se por meio de um
amálgama de modos de governo simultaneamente internos e
externos às estruturas administrativas formais.
De outro lado, uma extensa rede de privilégios, imunidades e
isenções à volta do recrutamento impunha difíceis problemas de
justiça distributiva. Para além das regulamentações legais, uma
economia moral de regras não-escritas governa os procedimentos
do recrutamento, numa série de compromissos com as elites locais
e com concepções enraizadas de uma distribuição adequada dos
encargos. Uma luta constante para impor, evitar ou transferir a
outros os encargos do serviço militar marcava as rotinas do
recrutamento.
Não constitui tarefa fácil reconstruir em umas poucas páginas a
dinâmica que envolve o recrutamento nos séculos XVIII e XIX, em
todas as suas nuances e transformações. Nossa intenção foi tão-
somente esboçar um quadro de referência para o entendimento das
precondições que governavam os padrões de cooperação e conflito
entre o poder central, seus agentes locais e a população livre em
torno do jogo do recrutamento em circunstâncias “normais”, ou seja,
mesmo em tempo de paz.

As práticas do recrutamento no século XVIII: a rede dos


privilégios
Os regimes de recrutamento vigentes no Reino e na Colônia
durante o século XVIII eram a outra face das práticas militares e
rotinas administrativas de uma sociedade e de um exército de antigo
regime. Reino pobre e de recursos demográficos escassos, império
ultramarino de extensas e variadas terras, Portugal estabelece uma
organização militar dual, um amálgama de forças permanentes e
milicianas. De um lado, a tropa de linha, formada por soldados
profissionais pagos de termo longo, que ganha forma nas guerras
da restauração. De outro, as ordenanças e as milícias auxiliares,
reservas territoriais eventuais e não-pagas, formadas em teoria pela
quase totalidade dos súditos válidos.3
Potência menor no concerto europeu, Portugal confia mais nas
manobras diplomáticas e dinásticas do que nas militares. A ameaça
espanhola, assim como os esforços para manter a integridade do
ultramar, impõe a procura de delicada política de neutralidade nos
conflitos do concerto europeu. Durante o século XVIII, entretanto, o
alinhamento progressivo com a Inglaterra tornaria inescapável o
envolvimento nas guerras da sucessão espanhola e dos sete anos
e, mais tarde, com conseqüências de maior alcance, nas guerras da
Revolução Francesa.
Dependente de prestações litúrgicas de várias ordens dos
poderes locais para tarefas administrativas e militares, o Estado
português tece um mosaico de privilégios e isenções em torno do
serviço das armas. A combinação de administração honorária e
ordens de privilégio definirá os limites do que o Estado será capaz
de fazer ou exigir, seja em função dos compromissos que o
diletantismo da administração faz supor, seja pela relutância dos
súditos que a dureza e a desigualdade do encargo fazem esperar.
No Portugal dos séculos XVII e XVIII, a tarefa do recrutamento
para a tropa de linha cabia à ação de estruturas administrativas
intermediárias, as ordenanças, suplementadas também por ordens
especiais dadas a comissários.4 As ordenanças haviam sido criadas
em fins do século XVI, como uma tentativa de regularização de
formas de prestação militar de tipo eminentemente litúrgico,
buscando comprometer os poderes locais com a administração e a
defesa local. Elas eram a resposta possível ao problema da defesa
territorial, em um contexto de escassez de recursos e
indisponibilidade de meios de administração independentes dos
poderes intermediários.
Cabe ao capitão-mor das ordenanças a responsabilidade de
preencher as fileiras da tropa regular. O poder de fazer soldados, e
o não menor poder de não fazê-los, torna-se instrumento decisivo
para os notáveis locais. A latitude dos poderes discricionários, assim
como as possibilidades de manipulação dos critérios de isenção
fazem do recrutamento um poderoso instrumento de poder
econômico e social. As ordenanças promovem uma contínua
tradução local das ordens do governo régio, interpretando a seu
modo o sentido das exigências das levas e transformando o
recrutamento em elemento crucial na produção de clientelas e
“favores”.5
A inadequação do sistema de ordenanças para servir a fins
propriamente militares torna-se patente quando a agitação européia
de fins do setecentos obriga Portugal a mobilizações
extraordinárias. Os limites tradicionais demarcados pela rede de
isenções e privilégios ficam então sujeitos a novas pressões,
tornando a distribuição dos encargos militares uma tarefa cada vez
mais problemática. A partir de 1796, a administração do
recrutamento militar passa ao domínio da Intendência Geral de
Polícia, marcando a falência de facto das ordenanças.
As íntimas conexões entre recrutamento, deserção e banditismo
já há muito haviam transformado o recrutamento em “questão de
polícia”;6 a simples suspeita de proximidade dos recrutadores
produzia a fuga e a ocultação em massa, e o apresamento dos
incautos o ligava, indissoluvelmente, à atividade de polícia. A prática
de prisão dos pais (e de outros fiadores) dos recrutas em fuga era
corrente, embora a Coroa hesitasse quanto a sua consagração.7 O
inventário das estratégias de evasão e resistência ao recrutamento
era tão surpreendente quanto aquele dos privilégios e das isenções.
A ameaça do recrutamento representava um poderoso incentivo
à mobilidade geográfica e à instabilidade social. A aversão e a
resistência ao serviço das armas eram generalizadas. Em função
dos seus efeitos desorganizadores, o recrutamento era visto como
inimigo da “agricultura” e das “artes”, pois à sua aproximação os
jornaleiros desapareciam e as colheitas perdiam-se. Curiosamente,
entretanto, eram os indivíduos difíceis de classificar e de encontrar
— vagabundos, viajantes, trabalhadores itinerantes, malfeitores — o
alvo preferencial dos recrutadores, pois não estavam sob o abrigo
de redes sociais de proteção. A ação do recrutamento procura o
impossível equilíbrio entre o cuidado de não provocar a fuga dos
elementos produtivos e a captura dos “vadios” por meio da surpresa
e da astúcia. Tal ambigüidade se revela na contraditória enunciação
que, invariavelmente, acompanha os decretos ordenando o
recrutamento à força, de que se faça com “suavidade”, “brandura” e
“sem vexações aos povos”.
A resistência e o ocultamento dos recrutas são sustentados por
uma ampla gama de atores, posto que o recrutamento afeta
relações de autoridade e trabalho.8 O principal obstáculo ao
preenchimento dos claros das fileiras é representado, no entanto,
pela densa rede de isenções e privilégios legais. Uma intrincada
rede de privilégios e isenções legais, consolidada pelo alvará de 24
de fevereiro de 1764, circunscreve os contornos da população
recrutável. As isenções formam intrincadas redes de proteção, cuja
legitimidade é dada pelo reconhecimento social e jurídico da
preeminência social de fidalguia, ou da utilidade econômica de
certos setores. Além da exótica variedade de possibilidades de
isenção, é revelador da natureza da prestação militar no antigo
regime português que os privilégios com relação ao recrutamento
não sejam estritamente pessoais: a imunidade ao recrutamento é
extensiva, além das pessoas de mor condição, aos seus criados e
dependentes.
A organização militar da América portuguesa reproduzirá a
divisão fundamental que se delineara em Portugal em fins do século
XVII, entre a tropa de linha e os terços de milícias e ordenanças. As
instituições militares européias importadas, todavia, cedo tomam
novos contornos na sociedade colonial. Os modelos de organização
militar terão de se adequar às limitações materiais e humanas que
prevalecem no Novo Mundo, assim como às características próprias
da guerra colonial.9 Os critérios de distribuição dos encargos
militares estabelecidos na Metrópole serão interpretados à luz de
distinções e clivagens próprias ao mundo colonial.
A imensidão do império colonial português e a desproporção
entre reino e ultramar fazem da defesa militar das colônias tarefa ao
mesmo tempo difícil e vital. A Coroa se vê diante da ameaça de
potências coloniais emergentes e da arrogância eventual dos
próprios colonos, e dispõe de recursos econômicos, militares e
demográficos limitados. A desmedida do território com relação aos
meios de administração disponíveis fará da Coroa dependente do
auxílio dos notáveis locais, monopolizadores virtuais de cabedal,
escravaria e clientela. A aventura colonial será acompanhada, pois,
desde seus inícios, de ampla delegação de tarefas administrativas e
militares à “nobreza da terra”.
Nos confins do Império, a autoridade da Coroa dependerá de um
complexo jogo de negociação com os poderes locais. Mesmo os
esforços de racionalização administrativa do reformismo ilustrado de
finais do século XVIII se renderão à contínua negociação e flutuação
das fronteiras entre público e privado que resultam da combinação
de uma monarquia patrimonial com um contexto imperial. Dada a
precariedade dos meios materiais e morais à disposição da Coroa,
grande parte das rotinas administrativas será delegada a uma
administração indireta e diletante. A governança a distância dos
colonos terá como um de seus principais instrumentos a
manipulação da honra e da inveja, premiando com títulos, senhorios
e mercês os serviços daqueles que, com os próprios haveres e
fadigas, se empenham nas tarefas de defesa e expansão dos
domínios de além-mar.
As distinções tradicionais de estados e corporações, que mesmo
no reino estavam sujeitas à contínua recomposição das fronteiras
entre fidalgos, nobreza e gente plebéia, defrontam-se aqui com a
presença de indígenas, negros e mulatos, escravos ou livres,
marcando novas distinções e hierarquizações. A interpretação das
ordens de privilégio ligadas à prestação militar tornava-se
problemática no universo multifacetado da Colônia.
As milícias, por exemplo, organizar-se-ão na Colônia de acordo
com critérios cruzados de cor e posição social. Salvador possuía,
em inícios do século XIX, quatro regimentos de milícia: o dos
“Úteis”, reunindo os mercadores e seus caixeiros; o de Infantaria de
Tropa Urbana da Praça, composto de artífices, taberneiros,
vendeiros e outras qualidades de brancos; o de mulatos e pardos
livres; e, finalmente, o batalhão de Henriques, de pretos livres e
libertos.10
Durante o período colonial, ao menos teoricamente, o
recrutamento da tropa de linha estava restrito aos brancos e
eventualmente também aos pardos. Em meados do século XVIII,
entretanto, as dificuldades em repor as fileiras dos regimentos e a
guerra no sul farão com que se recorra cada vez mais aos próprios
colonos como material recrutável, “colorindo” assim gradativamente
as linhas. Por volta de 1800, a totalidade da tropa e a maioria dos
oficiais estacionados na Bahia eram recrutados localmente. A guerra
da independência traria mudanças substanciais na composição
racial das tropas, ao incorporar negros libertos e mesmo escravos
às tropas.11
A mobilidade das populações na vastidão dos sertões, a
precariedade dos meios da administração colonial diante das redes
de proteção e a presença da escravidão constituíam os principais
elementos a redefinir a forma e os limites da prestação militar. Se,
como no reino, o recrutamento é objeto de tradução local pelos
notáveis para seus próprios fins, a rarefação da ocupação do
espaço colonial, assim como a não-correspondência entre as
categorias de hierarquização social de reino e colônia, faz com que
a rede legal de isenções e privilégios seja interpretada em sentido
diverso.
Na Colônia, a latitude da arbitrariedade dos recrutamentos seria
ainda maior, recorrendo a Coroa freqüentemente a meios
extraordinários, ignorando-se deliberadamente isenções e
privilégios. Consta que em 1808, por exemplo, o capitão-geral de
São Paulo, aproveitando-se dos festejos do Corpus Christi,
bloqueou as saídas da cidade e conduziu ao quartel praticamente
toda gente válida, sem distinção de idade, condição ou profissão.12
Luís dos Santos Vilhena lembrava também, estupefato, a audácia
dos oficiais e soldados incumbidos do recrutamento, arrancando
seus estudantes das aulas de grego pelas janelas. Em uma dessas
levas, conta Vilhena, recolheram-se à cadeia 445 pessoas de várias
qualidades, inclusive dois presbíteros. De todo aquele número,
entretanto, apuraram-se apenas trinta e tantos com capacidade para
soldados. Destes mesmos, em quase todos se descobriram
moléstias que os isentavam do real serviço.13
Segredo e simultaneidade eram recomendados como decisivos
para o sucesso do apresamento. Como sugeria João José Lopes
Mendes Ribeiro, o recrutamento deveria ser inesperado para que,
surpreendidos, os prováveis recrutas não tivessem tempo de fugir:

[O recrutamento] deve ser feito sem a menor sombra de coação,


a ser possível, e até ninguém o deve prever; porque a
repugnância que os indivíduos da província têm à praça de
soldados, principalmente fora do país; a facilidade de passarem-
se de uns a outros distritos, e a entranharem-se nas matas e
sertões como por vezes tem acontecido, podem malograr, se
não houver segredo, muita parte desta diligência.14

Na Colônia, é também a rede de isenções e privilégios uma das


principais dificuldades que enfrentam os recrutadores. Sempre que
possível, ante a ameaça de se verem recrutados, os indivíduos
procuram proteção sob a capa de um determinado grupo detentor
de privilégios. Como se queixava o governador da Bahia em 1765:

Daqui nasce a dificuldade e trabalho das recrutas para se


conservarem completos os regimentos, pois querendo fazê-las,
há pouca gente que não ocupe ofícios da justiça e fazenda,
outros são comerciantes da praça e de lojas, munidos todos com
privilégios da Bula, Mampostaria-mor dos Cativos, Santo Antônio
de Lisboa, Familiares de Santo Ofício e Moedeiros, [e] com eles
defendem não só a seus filhos, mas também aos seus caixeiros,
que afirmam ser-lhes precisos, e outros domésticos, e aqueles
que não se defendem por este respeito são casados e mestres
de ofícios mecânicos com seus oficiais e aprendizes, ainda que
brancos, poucos, e o mesmo sucede com os pardos livres, de
forma que é quase impossível fazer-se uma recruta.15

De dificuldades semelhantes trazidas pela rede de isenções e


privilégios queixavam-se os governadores do Rio de Janeiro16 e das
Minas Gerais. Dom Antônio de Noronha, após enumerar os
privilégios que obstavam as levas, denunciava também que as
isenções eram objeto de intenso comércio:

Estas diferentes repartições fazem um doloso, reprovado e


intolerável comércio dos ditos privilégios e isenções, vendendo-
as a quem mais lhes dá por elas, e passando-lhes cartazes e
uns de oficiais cruzados e aderentes; a outros de mendicantes e
pedintes, das mesmas repartições. E ficando por esta forma
assim eles como seus filhos, criados e família seguros e livres de
entrarem na tropa.17

A segunda metade do século XVIII traria um modo de


convivência cada vez mais tenso entre os colonos e as exigências
de prestações militares. A guerra com os castelhanos no sul
obrigaria à intensa arregimentação militar entre 1762 e 1777.18 A
Coroa reconhecia abertamente que o reino não dispunha de
recursos suficientes para a defesa da Colônia, e que “as principais
forças que devem defender o Brasil são as do mesmo Brasil”.19 Em
1766 são reorganizadas as milícias e criados novos terços de
auxiliares, “sem exceção de nobres, plebeus, brancos, mestiços,
pretos, ingênuos, e libertos”,20 e iniciam-se destacamentos forçados
dos auxiliares para o Sul.21 Em 1767 chega ao Brasil o general João
Henrique Böhm, numa tentativa de atualizar a organização
administrativa, tática e disciplinar das tropas segundo o modelo das
reformas militares do conde de Lippe. Simultaneamente são
transferidos para o Brasil três regimentos portugueses, reforçados
em 1774 por recrutas dos Açores. São também arregimentadas
tropas coloniais, principalmente em São Paulo e Minas. Em maio de
1777, d. Antônio Noronha informava ter enviado das Minas mais de
4 mil homens para o Sul, “a maioria mulatos, mestiços, cabras e
negros, apenas 757 armados, muitos nus”.22 À medida que as
necessidades de guerra se tornavam mais prementes, ampliavam-
se as exigências do Estado metropolitano.
Um complexo jogo de resistências e negociações envolve as
levas e o destacamento dos auxiliares. Em 1766, por exemplo, um
bando do governador das Minas manda aprontar os terços de
ordenanças e auxiliares, destacando para o serviço real um terço da
infantaria e metade da cavalaria, e impondo também uma quinta
sobre os mantimentos e escravos da capitania.23 O conhecimento
de tais intenções provoca um pandemônio. Um capitão-mor
informava que “vão se refugiando alguns brancos moços e pardos, e
só os deixam de o fazer os que têm impedimentos de família ou
fazenda, e ainda muitos desses estão até ver para onde se
encaminham os preparos. O desembargador, entretanto, o
contestava, afirmando “que não tinha notícia de que pessoa alguma
estabelecida se tivesse retirado do termo daquela cidade (…),
exceto alguns negros e mulatos forros vadios; porque estes em
qualquer ocasião, em que presumam ser chamados para o real
serviço, se retiram com facilidade por trazerem consigo todo o seu
cabedal”.
As câmaras de Mariana, Caeté e Vila do Príncipe negam-se a
cumprir as diretivas e, simultaneamente, divulgam amplamente o
conteúdo de suas cartas. Suas estratégias retóricas são reveladoras
do jogo que se tece em torno das justificações e escusas para as
levas. Se no preâmbulo das cartas invariavelmente acentuam sua
subserviência e condição de vassalos fiéis, dispostos a dar vida e
fazenda pela defesa da pátria, em seguida acentuam as terríveis
inconveniências que tais medidas poderiam trazer. Na tentativa de
sensibilizar a Coroa, a primeira conseqüência possível a apontar é
sempre o prejuízo que se fará ao real erário, pela diminuição dos
quintos e dos dízimos. A Câmara de Ouro Preto, por exemplo,
lembrava “o quanto importa aos reais interesses conservar intactas
as fábricas, lavouras e moradores destas Minas, por serem o
coração da América portuguesa, donde não podem sair corpos
militares em socorro de fronteira alguma”.24
Os súditos procuram manipular a seu favor o dilema entre
prestações fiscais e militares que marca a política colonial,
acentuando a importância estratégica daqueles empregados no
governo econômico das lavras e nas roças. Mas o principal
argumento a sustentar a inconveniência das levas é o perigo de
uma rebelião escrava, pois,

a todos tem causado este movimento tal horror, que estão


lamentando, o tendo por sem dúvida ruína total desta capitania,
quando a necessidade obrigue a sair ordenanças dela em
defesa de outro país, largando o em que habitam suas mulheres,
e filhos em poder de escravos, gente tão bárbara e infiel.25

Com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro expande-se


o aparato administrativo, fiscal e militar na Colônia, fortalecendo-se
novas redes de interesses burocráticos e mercantis e redefinindo-se
a geografia da soberania imperial. Não podendo dispor dos recursos
militares do reino, a Coroa havia de contar com as tropas já
estacionadas na Colônia, suplementadas com recrutas locais. Já em
1o de setembro de 1808, o príncipe regente ordenava o
recrutamento de 2 mil recrutas “sãos e robustos” na capitania de
Minas, para completar os regimentos da Corte, visto a “grande
povoação que já tem essa capitania”.26 A carta régia recomendava
que os recrutamentos se fizessem “pelo modo menos oneroso para
lavoura e mineração”. Outra carta régia, ainda mais incisiva,
recomendava brandura e suavidade no tratamento dos desertores,
entre os quais muitos se achavam casados e com filhos,
argumentando que “S.A.R. não quer de modo algum fazer soldados
(exceto em casos de absoluta necessidade) à custa da lavoura,
mineração e população dos seus estados”.27
Ao sabor dos conflitos, pressões e reclamações que o
recrutamento vai provocando, delineia-se a intrincada rede de
isenções e privilégios. O impulso inicial para moderar a fúria do
recrutamento provém das dificuldades de abastecimento da Corte. A
desorganização da produção e do abastecimento provocada pelo
recrutamento representava um dos principais argumentos daqueles
que solicitavam isenções. A incongruência potencial entre as
exigências da defesa e as políticas de recuperação econômica das
colônias, centrais para o projeto político do despotismo ilustrado,
abriria espaço para um alargamento progressivo das isenções
reconhecidas (mas nem sempre respeitadas).
As instruções de 10 de julho de 182228 iriam consolidar as
isenções que gradativamente foram-se reconhecendo e
continuariam regendo a forma do recrutamento até o final do
Império. O efeito cumulativo do processo de desuniversalização
promovido pelo alargamento das isenções não deve ser
desprezado: em 1888, um delegado de polícia enumerará mais de
100 categorias gozando de imunidades, o que mostra a ampliação
desmesurada do número das isenções durante o século XIX.29
As instruções de 1822 estabeleciam um sistema de
recrutamento que dava amplo reconhecimento à preeminência
social e à utilidade de certos tipos de atividade econômica. O
recrutamento se devia realizar, segundo o seu preâmbulo, “sem
detrimento das artes, e navegação, comércio, e agricultura, fontes
da prosperidade pública”, compreendendo, principalmente, aqueles
que, “por nenhuma pública ocupação, ou legal indústria, viveiros da
criminosa ociosidade, só lhes servem de impedimento”.
As isenções do recrutamento especificadas pelas instruções e
legislação adicional tinham, entretanto, o sabor de um labirinto
borgiano: caixeiros de lojas de bebida e tavernas; homens casados;
o irmão mais velho de órfãos; o filho único de viúva; o filho único de
lavrador; o feitor ou administrador de fazenda de mais de seis
escravos; tropeiros, boiadeiros, mestres de ofício, pedreiros,
carpinteiros, canteiros, pescadores e marinheiros; milicianos
devidamente alistados; contratadores de rendas e seus sócios;
aprendizes da Imprensa Régia; tesoureiros menores da Bula da
Cruzada; estudantes e eclesiásticos; fabricantes de cartas de jogar
do Rio de Janeiro; criados empregados nas postas para Santa Cruz
e para a Quinta da Boa Vista; ilhéus de Açores, mas apenas
aqueles vindos por diligência do intendentegeral de polícia; maridos
e filhos de amas dos expostos; capatazias das alfândegas; cegos do
olho direito etc.
O ideal do recrutamento combina garantias aos prováveis
desamparados pelas levas — as viúvas, os órfãos, os casados, os
filhos únicos — com os interesses da lavoura, mineração e artes. O
mosaico de distinções garantindo “imunidades” e “liberdades”
particulares e o objetivo de evitar que o recrutamento levasse à
perturbação da vida econômica em uma ordem concebida
corporativamente acabam por bloquear, em princípio, qualquer
possibilidade de interpretação universalizante da obrigação militar. A
orientação fiscal tipicamente patrimonial dominava o modo de
governança da prestação militar, buscando as linhas de menor força
no “abastecimento” de homens.
Minuciosa na enumeração das isenções, as instruções deixavam
em aberto os requisitos a que deviam satisfazer os recrutáveis, com
critérios vagos e manipuláveis, deixando ampla margem de arbítrio
à interpretação dos executores. As isenções representavam o
correlato legal e algo mais seguro da estratégia de evasão mais
simples: a fuga. O ônus da prova da imunidade ao recrutamento
recaía, evidentemente, sobre o recruta incauto, pois as isenções
impunham complexos problemas de coleta e verificação de
informações. Particularmente decisivo será o fato de muitos dos
critérios estabelecidos poderem estar sujeitos a múltiplas
interpretações, dependentes de propriedades manipuláveis pelos
próprios agentes.
Para além das isenções legais, nem sempre facilmente
verificáveis e objeto de verdadeira guerra de ofícios de justificações,
contestações, testemunhos e contratestemunhos, mantêm vigência
certas isenções consensuais tacitamente observadas. Regulando a
contingência de julgamento e a incerteza que as isenções
provocavam, sedimenta-se uma economia moral do recrutamento.30
Às vésperas da independência, em suma, estão definidos os
principais elementos da herança colonial que darão sentido ao
movimentado jogo do recrutamento militar no Brasil imperial: de um
lado, a rede de isenções consensuais e legais cristalizadas em torno
das instruções; de outro, a administração honorária por meio dos
notáveis locais.

O recrutamento militar no Império: a reinvenção da


administração honorária
Durante praticamente todo o século XIX, o problema do
preenchimento das fileiras do Exército atormentou as autoridades
encarregadas da administração militar no Brasil imperial. Apesar do
contingente relativamente reduzido do Exército e dos esforços dos
incansáveis agentes recrutadores, os quartéis estarão sempre
desfalcados de gente.31
Calculava-se que doença e morte, deserção, fim dos termos de
serviço e sentenças fizessem com que fosse necessário repor,
anualmente, cerca de um quarto do efetivo total do Exército.
Recrutas, voluntários e reengajados, entretanto, não se
apresentavam em número suficiente para repor as perdas. Durante
todo o século XIX, os relatórios do Ministério da Guerra seguirão
repetindo o mesmo lamento.
Os problemas do recrutamento estavam no centro das
preocupações dos militares. A principal conseqüência da
incapacidade para completar os efetivos era a permanência de um
exército de métier. Difíceis de achar e de fazer, e facilmente
volatilizáveis, os soldados sempre foram patrimônio demasiado
precioso para ser desperdiçado pelos exércitos do Antigo Regime.32
As resistências que o recrutamento encontra tornavam impraticável
a incorporação anual de grandes números, o que tornava imperativo
o alongamento dos termos de serviço, prendendo os soldados à
caserna por uma vida inteira. Ao mesmo tempo, os termos de
serviço longos tornavam a tarefa do recrutamento menos
controversa do que seria de outro modo, ao reduzir o espectro das
prováveis vítimas.
De tal gravidade era o problema de recomposição do Exército,
entretanto, que o Estado imperial ver-se-á obrigado, durante todo o
século XIX, a alongar ilegalmente os termos de serviço. Não é raro
encontrar soldados servindo 10 anos ou mais após o fim de seu
engajamento. Em 1858, por exemplo, cerca de 13% do contingente
eram constituídos de praças com direito a baixa, mas que não
haviam sido liberados. O Exército era dependente da retenção das
baixas para manter o efetivo em patamares mínimos. A demora das
baixas representava uma das principais causas das deserções.
A evasão do recrutamento e a deserção partilhavam,
fundamentalmente, das mesmas causas, reforçando-se
mutuamente. Em um contexto de precariedades administrativas
múltiplas, elas estavam inevitavelmente ligadas por um círculo
vicioso. As repetidas anistias aos desertores que retornam às
bandeiras evidenciam, entretanto, que as próprias autoridades
militares as consideravam um mal inevitável. A deserção constitui
um componente estrutural do Exército, e tem para a população um
aspecto corriqueiro e banal, sem o conteúdo moral da “traição da
pátria”. Freqüente é também a deserção “em rota”: novos recrutas, e
mesmo voluntários, evadem-se a caminho de suas unidades em
profusão.
As razões que tornam difícil e ineficaz o recrutamento são as
mesmas que favorecem as altas taxas de deserção. A diminuta
ocupação do imenso território facilitava a tarefa dos desertores que
se refugiavam nos matos, enquanto a intensa mobilidade geográfica
da população proporcionava-lhes certa proteção, confundidos na
massa dos errantes. A “fronteira aberta” constituía,
simultaneamente, um poderoso incentivo à deserção e a principal
fonte das dificuldades do recrutamento.
Já em fins do século XVII, as autoridades coloniais diziam-se
perplexas em face da “inexplicável repugnância” dos habitantes do
Brasil ao serviço das armas, em todas as suas formas. O mote será
monotonamente recorrente no século XIX, assinalando a
persistência de um modo de convivência entre sociedade e Exército
organizados sob os moldes do “antigo regime”. O serviço das armas
era visto pela população livre do Império como uma forma extrema
de degradação social.
O recrutamento forçado era ainda o principal artifício para
preencher as linhas do Exército. A “caçada humana” do
recrutamento tinha o efeito de uma praga: vilas e cidades são
abandonadas, os moços fogem, agricultura e indústria são
prejudicadas. Põe-se em movimento no recrutamento forçado um
jogo de gato-e-rato: os recrutadores usam de todos os expedientes
e ardis para completar suas cotas, e os recrutáveis potenciais, de
sua parte, realizam esforços desesperados de evasão ou
adequação às circunstâncias de isenção. Fuga, automutilação,
resistência armada, falsificação de documentos, casamentos de
última hora, tudo servirá na profusão de estratégias de evasão dos
recrutáveis. Quanto maiores as dificuldades de completar os
efetivos, menor consideração se espera dos recrutadores para com
as isenções legalmente estabelecidas.
Havia uma enorme hostilidade ao serviço militar, uma “barreira
oculta, e de sentimento sinistro”, nas palavras do juiz de direito de
Minas Novas.33 No amplo recrutamento promovido na província de
Minas em 1839, por exemplo, o agente do recrutamento de Lavras
encontrou uma “negra oposição às deliberações da lei”. Um guarda
municipal foi morto em uma emboscada a uma patrulha de
recrutamento, e uma proclamação anônima contra o recrutamento
foi afixada no pelourinho. Os juízes de paz recusaram-se a auxiliar
no recrutamento, argumentando que, se o fizessem, “iriam de certo
morrer”. O juiz de paz de Sapucaí informou que, por ter prendido
certo recruta, fora ameaçado de “lho virem tirar a força, e ainda de o
assassinarem”.34 Por toda parte, variando em forma e intensidade,
acontecimentos semelhantes raramente deixariam de acompanhar o
recrutamento. Ameaças, tiros e bofetadas, suborno e dissimilação
faziam parte do arsenal de recursos de ambos os lados da luta que
se travava em torno das levas.
Paradoxalmente, o sucesso da tarefa do recrutamento dependia
de sua imprevisibilidade. À menor suspeita da aproximação do
recrutamento, os possíveis recrutas se antecipam e desaparecem
nos sertões. Em 1874, o ministro da Guerra calculava que para
fazer 2 mil recrutas era necessário prender 20 mil cidadãos. A
ameaça do recrutamento colocava em movimento manobras de
identificação e ocultamento por parte de recrutadores e potenciais
recrutas.
A forma mais comum de evasão é a simples fuga. O temor do
recrutamento encontra-se entre as principais razões da errância da
população livre pobre. Os fugitivos, ademais, contam com ampla
cobertura da população local. O agente do recrutamento para a
região de Rio Pardo relatava em 1839:

Os embaraços mais salientes para se efetuar o recrutamento


neste termo são imensos, pois se vê desleixos de alguns juízes
de paz, omissões de outros e o embaraço ainda mais poderoso
é que aqueles indivíduos que se acham nas circunstâncias de
serem recrutados estão retirados, ou emigrados das povoações
e roças, e entranhados pelos vastos matos, sustentando-se em
frutas e raízes silvestres, preferindo uma vida tão triste e
lambujenta, à honra e prazer de servirem à pátria necessitada.35

Se a fuga não é possível, ou mostra-se arriscada, resta ainda ao


provável recruta tentar adequar-se às circunstâncias que permitem
isenção do recrutamento. O recurso aos casamentos
extemporâneos será um dos ardis mais utilizados. Como relatava o
agente do recrutamento da vila do Tamanduá:

Tendo dado ao sargento Ezequiel, além de outros, ordem para


capturar Francisco da Silva, para recruta, este tratou de
proclamar-se para se casar, estratagema a que não pequeno
número de outros que tais têm recorrido unicamente para
escaparem do recrutamento.36
Na manipulação dos critérios de isenção, os ardis dos
recrutáveis mostravam-se variados e inventivos. Declarações que
alegavam idade insuficiente, doenças incuráveis, atividade
profissional isenta, arrimo de família também abundavam, e nelas se
afirmavam e negavam evidências, testemunhos e contra-evidências.
Como último recurso, alguns desesperados recorriam à
automutilação, evidência terrível e indiscutível.
A contestação das justificações dá lugar a uma guerra de ofícios
em que se recorre a testemunhos de amigos, parentes e vizinhos
sobre a correção e boa conduta dos recrutas, mas cuja
confiabilidade é invariavelmente posta em questão. Sobre um
pedido de isenção levantado pela mãe de certo recruta, por
exemplo, alegava o agente:

A mãe do recorrente alimenta-se do próprio trabalho,


empregando-se em fiar algodão, lavar roupa e outros misteres;
aquele não vive em companhia da dita sua mãe, mas em casa
de uma crioula de nome Claudina, onde foi preso, com quem há
anos imoralmente vive, e a cuja mantença provê; não é mestre
de alfaiate de loja aberta, não tendo oficiais nem aprendizes a
quem mestreie; não possui casa própria ou alugada, sendo seu
uso cozer à porta da referida Claudina; é dado a jogos em dias
úteis; porque muitas vezes tem sido visto nesse exercício, na
venda de um crioulo de nome João Rodrigues da Paixão.37

Se a fuga ou a adequação às isenções é impraticável, a opção


seguinte pode ser a resistência. Em grande parte dos casos de
resistência armada efetiva, o incauto provável recruta contará com o
auxílio de seus parentes ou de patronos poderosos.
A legislação permitia também saídas de mercado. A portaria de
28 de junho de 1823 admitia que os milicianos recrutados para a
primeira linha pudessem dar por si um substituto, provavelmente
regulando práticas informais já existentes. A reforma de 1837
ampliaria ainda mais a franquia, passando a permitir a substituição
de qualquer recruta, assim como a comutação por meio de
pagamento. A institucionalização de um mercado de substitutos no
Brasil imperial, entretanto, nunca chegaria à sofisticação da França
ou da Espanha do século XIX,38 dada a ampla disponibilidade de
alternativas informais de evasão.
A precariedade dos mecanismos de identificação e alistamento,
assim como o mosaico de isenções, fazia do recrutamento uma
tarefa arbitrária, imprevisível e errática. Estão ausentes todos os
traços da rede burocrática de organização da conscrição moderna.39
O recrutamento se exerce em um mundo de formas de
reconhecimento e identificação eminentemente pessoalizadas.
Indivíduos “nas circunstâncias” do recrutamento são seres cuja
identidade não se revela por si só, mas em relação a lugares ou
parentes. As relações nominais de recrutas presos estabelecem um
detalhado perfil de identificação (são relacionados nome, ocupação,
idade, domicílio, cor, estatura, olhos e cabelos, condição dos
dentes). Curiosamente, para uma parcela significativa dos arrolados,
as listas incluem também justificações de natureza “moral” sobre os
motivos do recrutamento. Ali se reúnem observações como “vive em
público adultério”, “diz que socorre a mãe, mas vive em público
concubinato”, “aventureiro”, “vadio de profissão”, “carpinteiro, mas
de mau comportamento”. Tais indicações iluminam os mecanismos
de tradução local que regem o recrutamento e que constituem o
conjunto de “regras não-escritas” da economia moral do
recrutamento que se sobrepõe às instruções de 1822.
A lógica de operação do recrutamento militar deve ser entendida
no contexto do processo de construção do Estado imperial e das
mudanças que se operavam nas relações entre o poder central e os
seus agentes. As reduzidas capacidades administrativas do poder
central o fazem dependente de serviços litúrgicos dos poderes
locais para a execução das tarefas administrativas rotineiras. As
interações entre essa administração honorária e as ordens de
privilégio circunscreviam os limites do que o Estado imperial era
capaz de demandar como dever dos seus cidadãos.
A administração honorária é estruturada por liturgias, formas de
provisão de serviços administrativos por notáveis locais com seus
próprios recursos. Sua prática administrativa se caracterizará pelo
diletantismo, pela mobilização de recursos e prestígio próprios, pela
cristalização de tradições locais de fixação de gravames, pelo
domínio dos processos orais sobre as regras escritas e pela busca
constante de resultados consensuais negociados. A obediência aos
mandatos do poder central será altamente problemática, sujeita a
flutuação circunstancial, barganha e traição. As diretivas do poder
central serão objeto de contínua tradução local. Os problemas de
confiança mútua nas relações entre poder central e seus delegados,
e de ação coletiva na sua mobilização para as rotinas da
administração, são centrais para a compreensão da dinâmica da
prestação militar. Os dilemas na realização do recrutamento serão
resultado de um conjunto de dificuldades práticas inerentes à
estrutura de governança honorária, tanto quanto da oposição de
outros atores.
Os experimentos administrativos da “década liberal” (1827-37)
iniciam um processo de reforma institucional que reestrutura em
profundidade as liturgias locais herdadas da Colônia. Os juízes de
paz e a Guarda Nacional serão duas das mais importantes
inovações institucionais desse período, e ambos tornar-se-ão
personagens centrais na administração do recrutamento. Durante o
regresso, a centralização administrativa e a cristalização de partidos
nacionais modificarão o sentido da tradução local do recrutamento,
tornando-o instrumento decisivo da patronagem política.
Os juízes de paz, combinando amplas funções judiciais,
administrativas e policiais, foram criados em 1827 para servir de
contrapeso à influência da magistratura profissional. O Código de
Processo Criminal (1832) ampliaria ainda mais as suas atribuições,
assinalando-lhe poderes de polícia administrativa.40
A Guarda Nacional foi uma inovação institucional da regência e
fazia parte da estratégia dos moderados para garantir a defesa da
ordem política recém-estabelecida. Vinculados ao Ministério da
Justiça, os corpos da Guarda Nacional eliminaram as distinções
ocupacionais e de cor das antigas milícias.41 Prestação litúrgica dos
cidadãos, o serviço da guarda não era remunerado. Entre os
principais serviços que realizava incluía-se a captura de criminosos,
a transferência de réus, o transporte de valores públicos, o
patrulhamento e policiamento das cidades e das prisões, o combate
aos quilombolas e o apresamento e a vigilância dos recrutas. A
criação da guarda preenchia o vazio deixado pela redução dos
efetivos do Exército que se seguiu à abdicação.
A “centralização” protagonizada pelo regresso conservador a
partir de 1837 teria como efeito a superposição de um novo sistema
judicial e policial às antigas instituições de inspiração liberal. A
estratégia de reforma institucional dos conservadores fora antes
remodelar e esvaziar as velhas fórmulas liberais do que destruí-las.
O resultado seria uma duplicidade de ordens administrativas, com
predomínio da magistratura profissional e das novas autoridades
policiais, mas ainda com um sem-número de funções diletantes. A
extensão dos controles centrais não significava, necessariamente,
erosão da discrição local. Na imagem tocquevilliana do visconde de
Uruguai, a administração imperial tinha uma cabeça enorme, mas
quase não possuía braços e pernas. Algo muito distinto de uma
burocracia moderna tomaria o lugar da administração litúrgica
descentralizada, estruturada na década liberal.
O controle das autoridades policiais, da Guarda Nacional e do
recrutamento transforma-se em importante arma eleitoral nas mãos
do partido no governo. Praticamente todo cargo público da estrutura
judicial e policial do governo central tinha em suas mãos o poder de
exercer sanções arbitrárias sobre os cidadãos que, numa economia
bem estudada, colaboravam para os resultados eleitorais desejados.
A ameaça do recrutamento representava poderoso instrumento de
persuasão eleitoral, dizimando, moderando ou cooptando os
adeptos da facção adversária.
Não se podem compreender a dinâmica e os limites do
recrutamento no Império sem tomar em conta que os agentes
responsáveis pelas levas representam um dos principais obstáculos
à sua efetividade. Em torno dos juízes de paz, da Guarda Nacional e
de comissários especiais, os agentes do recrutamento, irá se
desenrolar o complexo jogo do fazer soldados. São eles os
personagens decisivos da tradução local das levas, perseguindo uns
e ocultando outros.
Os juízes de paz conhecem em profundidade os assuntos da
freguesia, e muito especialmente as qualidades morais dos
habitantes e das redes de obrigação a que se encontram
vinculados. O conhecimento das inclinações, afazeres e dizeres de
seus vizinhos, de natureza eminentemente circunstancial e,
portanto, em princípio indisponível ao universo abstrato da
administração formal, é decisivo para o recrutamento. Ele está em
posição de prever e calcular a extensão e o sentido da ação das
redes de solidariedade parental ou clientelar. Em conseqüência,
caberá ao juiz de paz tomar decisões fundamentais na distribuição
dos encargos, determinando aqueles que “estão nas circunstâncias”
do recrutamento.
Tal modalidade de conhecimentos é crucial para o recrutamento,
visto que também faz parte das atribuições do juiz de paz a
vigilância das populações suspeitas e flutuantes: negros livres,
viajantes, ciganos, estrangeiros.42 Os juízes de paz devem emitir
passaportes para os que viajam e exigilos dos que chegam de
outros lugares. A combinação de funções policiais e de
recrutamento traz em si a tentação de resolver as dificuldades de
uma tarefa por meio da outra.
Os indivíduos turbulentos podem ter os ânimos temperados por
ameaças regulares de recrutamento, ou mesmo evadir-se à vista da
possibilidade de sua realização, indo aborrecer as autoridades de
outras paragens. Em São João Nepomuceno, por exemplo, o juiz de
paz informava que ali dois indivíduos “nas melhores circunstâncias”
haviam sido presos; os outros todos haviam se evadido, “ficando
assim [o distrito] um dos mais pacíficos do termo”.43 As cotas de
recrutas exigidas podiam ser completadas com maior facilidade
precisamente por aqueles que não estavam cobertos por redes de
proteção local:

há um grande número de indivíduos no caso de serem


recrutados, e que só por esse meio poderá esse país gozar de
perfeita tranqüilidade, a qual apesar dos meus esforços tem sido
por vezes perturbada por esta multidão de indivíduos
desordeiros de quase todos os pontos do Império que aqui se
acham, e na maior parte sem passaporte nem o menor
conhecimento.44

Sempre que a oportunidade se apresenta, as autoridades locais


procuram “limpar” seus distritos de vadios e patifes por meio do
recrutamento. Em uma relação de presos das cadeias de Sabará,
Curvelo, Caeté e Ouro Preto, entre 1823 e 1825, por exemplo, além
de sentenciados às galés, a “prisão perpétua e servir de algoz”, ou
ao “degredo para o Cuiethé”, muitos têm a tropa por destino. Manoel
Marcelino, por exemplo, foi “pronunciado em sumário, por furtos,
livre por sentenças deste juízo, com condição de marchar, como
marchou, no batalhão expedicionário que saiu para a Corte do
império em 1824”.45
A Guarda Nacional representava outro elo decisivo na
administração honorária da prestação militar, e suas relações com o
recrutamento são complexas. Na ausência de forças regulares de
polícia ou do Exército na maior parte do território, a captura, a
guarda e a condução dos recrutas dependiam das liturgias da
guarda. A posição da Guarda Nacional diante do recrutamento é
ambígua. Tanto quanto os juízes de paz, os guardas nacionais estão
imersos em redes locais de obrigação moral, solidariedade parental
ou lealdade política, pois “os guardas nacionais, por serem
parentes, vizinhos e amigos dos que se acham nas circunstâncias
de serem recrutados, nada fazem”.46
A Guarda Nacional enfrentava também graves problemas de
mobilização e coordenação dos próprios quadros. Os
destacamentos eram a maior fonte de descontentamento entre os
guardas, que procuravam os mais variados pretextos para se
evadirem de tal serviço. Comentava um dos agentes do
recrutamento:
A Guarda Nacional esquiva-se, e foge tanto de servir, que é
quase tão dificultoso obter-se um guarda quanto prender um
recruta; por não ser inesperado o aviso, eles se ocultam, e
quando chegam a vir, é sempre tarde, poucos, e de má
vontade.47

A mobilização das liturgias da Guarda vinculava-se de modo


ainda mais contraditório ao recrutamento e às estratégias de evasão
dos encargos do que se supõe em geral. As instruções de 1822
isentavam as milícias do recrutamento para a primeira linha,
provisão que seria mantida na lei da criação da Guarda Nacional,
isentando os guardas do serviço de paz e guerra no Exército e na
Armada. O pertencimento à Guarda Nacional confundia-se, pois,
com as isenções do recrutamento, representando o alistamento na
guarda uma das estratégias mais comuns de evasão das levas. A
Guarda Nacional representava, na verdade, uma gigantesca rede de
proteção institucionalizada:

Um grande número de indivíduos estão matriculados na G. N.,


de maneira que, isento o grande número de G.; os maiores de
35 anos; os menores de 18; os negros; e todos que pela lei são
isentos, poucos ficam para o recrutamento, e estes se têm
evadido; uns para Parnaíba, província de São Paulo; outros
pelos vastíssimos matos, e outros (não temo crer) apoiados por
alguns fazendeiros.48

As ameaças de recrutamento na Guarda Nacional, que por fim


se concretizariam durante a Guerra do Paraguai, representavam
uma quebra do pacto de confiança que garantia a continuidade das
liturgias, com o efeito de provocar o desmantelamento de facto da
corporação. A partir de então, incapaz de proteger seus membros
do recrutamento, a guarda se transformaria em uma corporação
com funções puramente ritualísticas.
A outra figura decisiva nas levas é o temido agente do
recrutamento. Não se trata de funcionário especializado, mas antes
de indivíduo comissionado, nomeado pelos juízes de direito, tendo à
sua disposição amplos poderes e prerrogativas. Os agentes do
recrutamento eram remunerados por “peça” e reembolsados por
despesas realizadas na caça, na vigília e no sustento dos recrutas.
Eram indivíduos resolutos, de recursos e séqüito próprios, estranhos
às redes de proteção local. Estavam envolvidos em um complexo
jogo de cooperação, conflito e competição com as autoridades
locais, e mesmo com agentes de distritos vizinhos. Em 1836, o
agente da vila de Itabira, por exemplo, queixava-se ao presidente da
província que, tendo se passado um recruta “seu” para o termo do
Sabará, havia sido capturado pelo agente daquela vila, impedindo-o
de completar sua cota.49 A necessidade de completar cotas os
tornava pouco propensos a considerações de justiça e eqüidade. As
queixas mais freqüentes quanto à ação dos agentes recrutadores se
referiam à desconsideração sistemática das isenções legais.
Inversamente, entretanto, os recrutadores podiam fazer uso de seus
poderes como meio de pressão para “vender” isenções.
Aos constrangimentos que as redes de obrigações morais locais
impõem à administração honorária do recrutamento correspondem
limitações nos meios materiais de administração que circunscrevem
seu espectro de possibilidades. Em um contexto de técnicas de
comunicação, registro e transporte precários, a centralização
administrativa era, necessariamente, superficial. O Estado imperial
detém capacidades independentes de monitoramento, coleta de
informações e implementação de políticas muito limitadas. A
carência primeira que bloqueia a racionalização das rotinas
administrativas, e em particular os processos de recrutamento,
deriva do desconhecimento dos contornos de território e população,
os horizontes de invisibilidade da população.50 A ampliação das
capacidades extrativas e regulatórias do Estado esbarra na
incapacidade de realizar censos, registros civis, cadastros rurais,
padronizar pesos e medidas, controlar fluxos de moeda falsa e, em
conseqüência, tributar e recrutar de forma eficiente e eqüitativa.
Em muitos aspectos cruciais, as sociedades pré-modernas foram
invisíveis para os seus governantes. A presença de uma
multiplicidade de regimes de propriedade, de uso da terra, de
tradições e costumes locais, de pesos e medidas diversos fazia das
práticas sociais uma colcha de retalhos. Faltava ao Estado uma
métrica comum para ordenar o tecido social. Os Estados pré-
modernos conheciam relativamente pouco acerca da identidade, da
riqueza e da locação dos seus súditos. Daí que as suas
capacidades de realizar intervenções com sintonia fina em áreas
cruciais como taxação, recrutamento e controle social eram
limitadas. A dependência de formas de governança indiretas e a
indisponibilidade de instrumentos de informação não permitiam uma
visão sinóptica da população e do território.51 Como aos Estados
pré-modernos do antigo regime, falta ao Estado imperial sintonia
fina na capacidade de leitura dos processos sociais em curso.
Dois episódios ilustram a natureza dos problemas de informação
que o Estado imperial confronta nas rotinas do recrutamento: o
destino da Lei do Registro Civil e do Censo Geral do Império, de
1851, e a tentativa sem sucesso de implementar o sorteio militar, em
1875.
A tentativa de secularização dos registros de nascimentos,
casamentos e óbitos seria o estopim da Guerra dos Marimbondos,52
como ficariam conhecidos os levantes populares contra o registro
civil e o censo no interior de Pernambuco, Paraíba, Alagoas,
Sergipe, Ceará e Minas Gerais, entre dezembro de 1851 e fevereiro
de 1852. Homens e mulheres invadem as igrejas para protestar
contra o novo regulamento, rasgam os editais e intimidam os juízes
de paz e as autoridades policiais, para que não ousem executá-lo. O
rebatismo do regulamento como “lei do cativeiro” pelos insurgentes
revelava apreensões de que os registros pudessem servir a
propósitos de escravização dos libertos e livres de cor.
A lei do sorteio militar de 1874 substituía o odiado recrutamento
forçado por uma loteria baseada em um amplo alistamento e reduzia
drasticamente as isenções. A reação popular à lei, entretanto,
surpreenderia ao governo. A nova lei introduzia no jogo do
recrutamento elementos de compulsão e aleatoriedade que
modificavam de modo radical a economia moral que governava a
alocação dos encargos do recrutamento. Homens e mulheres
capturam e destroem os alistamentos em preparação. O movimento
se espalha por diversas províncias, impedindo a implementação do
sorteio. Os padrões de ação coletiva da revolta mostravam aguda
consciência da importância da invisibilidade da população contra
avanços do poder do Estado.53
Nossa análise da dinâmica do recrutamento militar nos séculos
XVIII e XIX procurou destacar o complexo jogo de conflito,
negociação e compromisso entre o poder central, seus agentes e a
população em torno das levas. Acentuamos também como a luta em
torno da distribuição de isenções e privilégios é crucial na definição
da natureza dos encargos. O serviço militar representa uma arena
crucial para o entendimento de como questões de justiça distributiva
e formação de identidades sociais vinculam-se aos processos de
formação do Estado.

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* Doutor em ciência política pelo Iuperj; professor da Universidade Federal de


Viçosa (MG).
1 Os trabalhos de Beattie (1994) e Kraay (1998a) são importantes
contribuições ao tema. Nossa interpretação da dinâmica do recrutamento é
convergente, em muitos pontos, com a de Kraay.
2 O conceito de liturgia é de inspiração weberiana. Entendemos por liturgias
formas de prestação de serviços administrativos por notáveis locais com seus
próprios recursos, nãoremuneradas e voluntárias. Sua prática administrativa
caracteriza-se pelo diletantismo, pela mobilização do prestígio pessoal, pelo
domínio dos processos orais e pela busca constante de resultados
consensuais negociados. As diretivas do poder central serão objeto de
contínua tradução local pelos notáveis.
3 Ver Costa (2001).
4 Ver Costa (1998).
5 Ver Xavier e Hespanha (1993).
6 Forrest, 1989.
7 Ver Costa (1998:997).
8 Ver Costa (1995).
9 Ver Melo (1998).
10 Ver Kraay (1998b).
11 Ver Kraay (2002).
12 Ver Holanda (1978:435).
13 Ver Vilhena (1921:141).
14 Arquivo Público Mineiro, doravante APM, SP, Códice 13, fl. 190. RJ, 5-10-
1822.
15 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 32, p. 85, 1910.
16 Ver Bicalho (2003:303-336).
17 APM, SC, Códice 211. Registro de cartas, ordens e provisões régias,
avisos e cartas do governador, 1775-79. Carta de Martinho de M. Castro para
d. Antônio de Noronha, 241-1775, fls. 12-13.
18 Ver Alden (1968).
19 APM, SC, Códice 211. Registro de cartas, ordens e provisões régias,
avisos e cartas do governador, 1775-79, fl. 10.
20 Carta régia ordenando ao conde da Cunha, vice-rei do Brasil, para que
mande alistar, sem exceção, todos os moradores em estado de poderem
servir nas tropas auxiliares, formando-se os terços dos auxiliares de cavalaria
e infantaria, 1765 (Arquivo Histórico Ultramarino, doravante AHU, MG, cx. 85,
doc. 42 — Projeto Resgate).
21 Ver Peregalli (1986).
22 Apud Alden, (1968:250).
23 AHU, MG, cx. 88, doc. 36. fls. 2-38 — Projeto Resgate.
24 Representação da Câmara de Vila Rica, 27-10-1766 (AHU, MG, cx. 89,
doc. 32 — Projeto Resgate).
25 AHU, MG, cx. 88, doc. 36, fl. 21 — Projeto Resgate.
26 APM, SC, Códice 327. Originais de cartas régias e avisos, 1808, fl. 4.
27 APM, SC, Códice 327. Originais de cartas régias e avisos, 1808, fl. 132.
28 APM, SC, Códice 399, 1822. fl. 159.
29 Ver Ribeiro (1888).
30 Ver Mendes (1998).
31 Relatório do ano de 1829 à Assembléia Geral Legislativa do Império do
Brasil, pelo ministro Tomás Joaquim Pereira Valente, na sessão de 1830. Rio
de Janeiro: [s.n.], 1830. p. 10.
32 Ver Duffy (1998).
33 APM, SP, PP 1 , Cx. 02, doc. 01. Minas Novas, 1833.
18
34 APM, SP, Códice 237, fls. 13 (Lavras), 31 (Serro) e 52 (Sapucaí), 1839.
35 APM, SP, Códice 238, Rio Pardo, 1839.
36 APM, SP, Códice 237, fl. 34. Tamanduá, 18-9-1839.
37 APM, SP, PP 1 , Cx. 15, doc. 10, Lavras, 14-6-1836.
15
38 Ver Sales (1974:137-277).
39 Ver Woloch (1994).
40 Ver Flory (1986).
41 Ver Uricoechea (1978).
42 Ver Torpey (1998).
43 APM, SP, PP1 , Cx. 121, doc. 26. São João Nepomuceno, 1837.
18
44 APM, SP, Códice 213. Juiz de paz de Serra do Grão-Mogol, 8-2-1839.
45 Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 17, p. 272-293.
46 APM, SP, Códice 239, fl. 213. Agente do recrutamento para presidente da
província. Itabira, Jacuí, 1836.
47 APM, SP, PP1 , Cx. 07, doc. 03. Agente do recrutamento para presidente
15
da província. Alfenas, 5-8-1836.
48 APM, SP, PP1 , Cx. 07, doc. 03. Alfenas, 5-8-1836.
15
49 APM, SP, PP1 , Cx. 11, doc. 04. Itabira, 28-3-1836.
15
50 Ver Hespanha (1994).
51 Ver Scott (1998).
52 Ver Palácios (1989).
53 Ver Mendes (1999).
CAPÍTULO 5

A presiganga e as punições da Marinha (1808-31)

Paloma Siqueira Fonseca*

A presiganga, prisão da Marinha


A história militar do Brasil registra a existência, nas primeiras
décadas do século XIX, de um interessante artefato associado à
punição e à cultura marítima: um navio-presídio, denominado
presiganga.1 O termo é uma corruptela do inglês press-gang,
destacamento naval comandado por um oficial e encarregado de
recrutar à força homens para servirem na Marinha de Guerra
inglesa.2 O estudo da presiganga serve como via de acesso a
práticas como o recrutamento forçado. O navio articulava, num
mesmo espaço, um modelo de punição e uma cultura marítima
próprios da sociedade e do entorno geográfico em que se situava.
Entre as classes de navios, a presiganga era uma nau de guerra
da Armada portuguesa, a Príncipe Real, que em decorrência de
avarias foi transformada em prisão no Brasil, depois da mudança da
sede da Coroa portuguesa para o Rio de Janeiro. Fundeada na baía
de Guanabara, ao norte da ilha das Cobras, a presiganga foi
depósito de galés (condenados a trabalhos forçados), degredados
(condenados a viver fora de seu local de residência), recrutas,
prisioneiros de guerra, infratores militares e escravos em correção,
durante o processo de independência do Brasil, entre 1808 e 1831.
O estudo da presiganga nos leva à história dos modelos de
punição no Brasil. O depósito não era uma prisão nos moldes que
conhecemos hoje, ou seja, um local de reclusão de indivíduos
condenados à pena privativa de liberdade. Pelo contrário, os presos
custodiados pelo navio não eram “condenados à presiganga”, e sim
ali depositados por condenação ou imposição ao trabalho forçado,
por recrutamento forçado ou para receber castigo corporal.
A presiganga constituía um dos níveis de um arcabouço
institucional que se estendia até o Arsenal de Marinha do Rio de
Janeiro, e deste à Marinha como um todo. Em termos de punição, a
nau que servia de prisão era o ponto central para onde convergia
um raio de ação que abarcava dois círculos concêntricos: a Marinha,
o mais amplo, e o Arsenal, o mais próximo. Portanto, o estudo da
presiganga exige a remissão à instituição que a manteve, uma
entidade que é localizada ou identificada como organismo na
administração pública, ganha especificidade com a Armada e
constitui uma corporação. Esses três elementos podem definir a
Marinha, conferindo-lhe os atributos, respectivamente, de instituição
estatal, instituição militar e instituição corporativa.
Hoje nos é familiar o fato de uma instituição estatal
responsabilizarse pela punição em uma determinada sociedade. É o
Estado que detém essa exclusividade, por meio de tribunais, prisões
e polícia, não delegando essa tarefa a agências privadas. O que
atualmente nos causa estranhamento é a incumbência das Forças
Armadas para punir membros da sociedade civil, como ocorria com
a Marinha nas primeiras décadas do século XIX. Aos nossos olhos,
isto configuraria uma espécie de ingerência indevida da instituição
militar no trato civil, já que entre os presos na presiganga não havia
somente militares, como os infratores de corpos da Marinha e do
Exército e prisioneiros de guerra, mas também escravos mandados
por seus senhores para correção, pessoas condenadas pela Justiça
comum a trabalhos forçados e a degredo, além de indivíduos
recrutados à força, acusados de vadiagem.
Ao mesmo tempo, aos nossos olhos contemporâneos parece
evidente que a penitenciária é, por excelência, a instituição
encarregada da punição dos indivíduos de uma dada sociedade, e
que uma corporação, em princípio, deve punir somente os seus
próprios membros. Daí o estranhamento ao se descobrir que, no
período mencionado, a Marinha tinha o seu raio punitivo bastante
ampliado. É como corporação militar associada ao Estado que a
Marinha é hoje em dia compreendida, mas o passado da presiganga
exige ajustes de foco nessa definição.
Esse passado também redefine a própria história de instituições
penais como a penitenciária, na medida em que, pela presiganga,
temos acesso a outras formas de punir, como a pena de degredo —
condenando a pessoa a sair de seu local de residência e
remetendo-a para outro, contíguo ou distante, em alguma colônia
—, a qual vigorou como pena principal da legislação durante todo o
Antigo Regime. Da mesma forma, a pena privativa de liberdade, que
condena a pessoa à reclusão, ao confinamento em um sistema
penitenciário, e que substituiu a pena de degredo como principal em
vários países europeus, estava, se não distante, pelo menos
afastada das formas de punição empregadas na virada do século
XVIII para o século XIX no Brasil.3

Vigilância na Marinha
A presiganga, como objeto de estudo, constitui-se em ponto de
acesso não somente à história da prisão no Brasil, como também à
cultura naval ou cultura marítima do país. Sob os cuidados do
Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, estabelecimento que zelava
pelos navios desarmados, a presiganga, além de ser ela mesma um
navio desarmado, cumpria uma das principais funções daquele
estabelecimento militar: um depósito de presos que eram
direcionados para os diversos empreendimentos da Marinha.
Quanto às atividades sob a responsabilidade do inspetor do
Arsenal de Marinha, podemos agrupá-las em três grandes funções.
Um conjunto de atividades se relacionava ao zelo com os navios de
guerra que não estivessem em campanha, mas sim desarmados,
aguardando reparos ou armamento para a linha de batalha. Ao
mesmo tempo, um outro conjunto de atividades referia-se à própria
disposição do estabelecimento, por sua inserção urbanomercante: o
Arsenal realizava vistoria e afretamento de navios mercantes,
recrutamento de marinheiros e soldados, demarcação de terrenos
de marinha e prestação de serviços cobrados, como transporte de
água e cavalos e fornecimento de pedra. O estabelecimento
utilizava a presiganga para depositar os presos que recebia.
Entender a presiganga deslocada ou afastada da repartição do
Arsenal seria, portanto, infrutífero; o papel dessa prisão sui generis
é revelado por sua inserção nesse estabelecimento que fazia parte
da administração central, e não local.4
Na estrutura burocrática da Marinha, o Arsenal do Rio de Janeiro
era o estabelecimento que exercia o dispositivo de vigilância no
cenário urbanomercante da capital durante a primeira metade do
século XIX.5 Não por acaso, na classificação das unidades
administrativas, o Arsenal era uma inspeção. Esse estabelecimento
manufatureiro estava situado no maior porto comercial do Atlântico
Sul à época,6 num espaço de intensa circulação e cruzamento de
militares e civis, de embarcações de guerra e mercantes.7 Como
complexo militar de vigilância, o Arsenal absorvia indivíduos que, em
decorrência de servidão penal, recrutamento forçado ou imposições
variadas, ganhavam papéis condizentes com o aparato militar da
Marinha. Bêbados, desertores, virtuais inimigos da nação,
capoeiras, “vadios”, criminosos, índios eram transformados em
galés, grumetes, marinheiros, soldados ou artífices. As entradas e
saídas de pessoas pelo Arsenal pressupunham conexões desse
estabelecimento com o Exército, a marinha mercante e a polícia.
Essas pessoas eram reunidas na presiganga, local de custódia
temporária, local de passagem para homens que eram
encaminhados para dois destinos principais: os trabalhos forçados
nas oficinas do Arsenal e na construção de um dique — a maior
obra naval da primeira metade do século XIX8 —, e o serviço militar
em navios de guerra.9
É legítimo perguntarmos se a presiganga, como parte de um
aparato de vigilância, era visível ou não para as pessoas que
circulavam pela baía de Guanabara. Situada ao norte da ilha das
Cobras, ou seja, “atrás” da ilha, a presiganga, pelo mar, só era
visível para quem adentrasse bastante a baía. Cronistas das
primeiras décadas do século XIX, como Luís Gonçalves dos Santos,
John Luccock, Louis de Freycinet e Maria Graham, mencionaram
em suas narrativas os trabalhos desenvolvidos pelo pessoal
empregado no Arsenal, mas não a presiganga. Houve um silêncio
não só de cronistas, como também da imprensa. A localização
espacial ajuda a entender essa passagem em branco pela crônica
periódica e de viajantes, mas um outro fator parece ter sido mais
decisivo: a tendência ao fechamento de uma instituição total como a
Marinha.10 É o que nos dá a entender um trecho do relato de um
autor anônimo sobre a presiganga:

Ela está apartada dos olhos do público, cercada de terrores, seu


acesso é dificultoso; além disso, os que a governam são
militares, que põem os presos incomunicáveis; quando querem,
abrem cartas e revistam papéis; dificultam e às vezes não
consentem que se fale aos presos.11

Eis o testemunho de alguém que, por meio de uma narrativa


muito convincente, realizou uma condenação vigorosa à existência
do depósito “governado” por militares. A imagem que o autor
anônimo tinha dos membros das Forças Armadas é que os militares
constituem uma corporação fechada, inacessível, cerrada —
imagem que persiste para muitos civis, ainda hoje. Seria a
presiganga o ponto zero, no Brasil, de uma diferenciação entre o
mundo militar e o mundo civil?

O corpo da presiganga
O navio de guerra que serviu de presiganga tivera antes uma
vida comum a muitos do seu feitio. Navios de grande porte, as naus
de guerra, assim como fragatas, brigues e corvetas, faziam parte de
verdadeiras aventuras marítimas: compunham comboios para
navios mercantes, realizavam cruzeiros e transportes de cargas e
pessoas, deparavam com navios-piratas e corsos e entravam em
combates, a ponto de ganharem vida própria, como dão a entender
os anais que contam suas histórias, nelas incluindo batizados e
características distintivas como a figura de proa. Essas ações e
desempenhos foram dignos de memória, evidenciando acordos e
inimizades entre países, os grandes fluxos de comércio entre
continentes distantes e a necessidade de manter as guarnições em
forma, treinadas e disciplinadas para as mais diversas ocasiões.
A nau Príncipe Real desempenhou papel como nau capitânia ou
navio-chefe nos eventos de que participou. Construída no arsenal
da Bahia, sob a supervisão de Manuel Vicente Nunes, foi lançada à
água em 1771 e, com 67 metros, era o navio de maior quilha até
então construído pela Marinha portuguesa. Primeiramente batizada
Nossa Senhora da Conceição, tinha 16,5 metros de boca e 12 de
pontal, e podia ser artilhada com 90 canhões. Em 1794 entrou na
doca do arsenal de Lisboa para sofrer reparos e modernização, e
saiu do dique crismada como Príncipe Real.
A nau participou de três esquadras guarda-costas e também
integrou uma esquadra para comboiar uma frota do Brasil, formada
por 23 navios. Em 1807, a nau transportou de passagem a rainha d.
Maria I, o príncipe regente d. João, o príncipe da Beira d. Pedro de
Alcântara (futuro d. Pedro I) e os infantes d. Miguel e d. Pedro
Carlos, acomodados no navio que tomou o rumo da Bahia. Naquela
capitania, d. João assinou o decreto de abertura dos portos às
nações amigas, e foi de lá que a família rumou para o Rio de
Janeiro, onde chegou a 7 de março de 1808.12
A Príncipe Real participou de um dos eventos mais significativos
da história comum a Portugal e Brasil: a transmigração da família
real portuguesa para a colônia da América, integrando uma
esquadra de guerra portuguesa. Depois disso, a nau desapareceu
dos anais e caiu em uma espécie de penumbra. É como se aquele
tempo de ações, de atividades no mar desaparecesse e cedesse
lugar a uma situação letárgica, mais de estado do que de ação. Com
efeito, como presiganga, ela ficava fixa, ancorada, e eram os presos
que se movimentavam, entrando e saindo da nau. A presiganga só
se dá a entender assim, como depósito de degredados, galés,
prisioneiros de guerra, recrutas, escravos e infratores militares. É
como se as ações convencionais de um navio de guerra tivessem
sido substituídas por uma condição decaída, menor, indigna de ser
registrada pela memória, em todos os sentidos: pelo estado físico
em que se achava e pelos presos que custodiava.
Entre os grupos de presos na presiganga, o de galés era o
mais “fixo”, a exemplo de outras experiências históricas com que a
presiganga tinha parentesco. Na costa sul da França, durante o
reinado de Luís XIV (1643-1715), no porto de Marselha, 40 galeras
de guerra (galères), navios próprios para a navegação no
Mediterrâneo, abrigavam cerca de 10 mil trabalhadores forçados
(les forçats). Tratava-se da mais imponente frota de galeras da
época moderna.13 Na Inglaterra, no rio Tâmisa, entre 1778 e 1857,
44 navios velhos e abandonados (hulks) mantinham, cada um, 200
a 500 condenados a trabalhos forçados (hard labour). Navios
mercantes foram utilizados no serviço de custódia, por meio de
contratos firmados entre os proprietários e o governo, já que o
comércio e o traslado de degredados para a América ficou abalado
com a independência dos Estados Unidos.14 As galeras francesas e
os navios ingleses revelavam muitas semelhanças com a
presiganga: estavam vinculados a uma administração central e
tinham ligações com os arsenais de marinha daqueles países, onde
se realizava todo tipo de serviços navais de doca. Outra semelhança
refere-se ao número de trabalhadores forçados, chegando à casa
dos 500.

A guarnição da presiganga
A presiganga dispunha de uma guarnição formada por capelão,
cirurgião, boticário, escrivão, despenseiro, oficiais marinheiros,
marinhagem e tropas, a qual era incumbida de diversas tarefas:
guarda dos presos, escolta dos trabalhadores forçados para os
locais dos trabalhos e sentinela nesses mesmos locais, exames de
saúde, administração de medicamentos, conforto espiritual e zelo
pelo corpo da embarcação.
Na falta de um regimento ou regulamento que fizesse observar
as normas de funcionamento da presiganga, os membros da
guarnição da nau se dão a conhecer menos pelo exercício cotidiano
das atividades e muito mais por infrações cometidas. Pessoas que,
em princípio, deveriam zelar pelas normas cometiam delitos,
assemelhando-se aos presos na presiganga. Temos acesso às
atividades corriqueiras da equipe dirigente do depósito antes pela
não-adequação de seus membros ao ideal corporativo do que pela
adaptação a esse ideal.15
O comandante da presiganga, Marcelino de Souza Mafra, talvez
tenha sido o membro da guarnição que mais se adequou e adaptou
ao ideal corporativo, já que ele foi um exemplo de distinção, tendo
merecido destaque honroso por agregar um conjunto de qualidades
valorizadas pela corporação, entre elas a subordinação, a disciplina
e a lealdade ao monarca. A distinção, fazendo parte da cultura
militar naval, operava em um sentido ascendente, no sentido de
promover, valorizar, qualificar positivamente um membro da
corporação, a exemplo de oficiais de patente como Mafra, que
recebiam um documento firmado pelo monarca — a carta-patente
—, no qual se reconheciam os seus direitos e privilégios.
Mafra teve uma carreira militar impecável, sem cometer, aos
olhos de seus superiores, qualquer falta que o desabonasse, sendo
condecorado, em 1816, com o grau de cavaleiro da ordem militar de
São Bento de Avis.16 Enquanto esteve lotado naquela nau, desde
dezembro de 1808 até junho de 1830, obteve as patentes de major
e tenente-coronel. Não há indícios de que Mafra tirasse licenças
regularmente. Pelo contrário, só em 1825 ele pediu alguns passeios
em terra, para benefício de sua saúde. Portanto, Mafra viveu
praticamente em reclusão na presiganga, por pelo menos 21 anos.
A estada prolongada foi interrompida por males de saúde, e não por
falhas profissionais.17 Não há notícias de que tenha contraído
matrimônio e deixado descendência, o que evidencia uma vida
exclusivamente dedicada à corporação.
Um contraponto à dedicação ao serviço naval é o
comportamento infrator do boticário da presiganga, José Joaquim de
Brum. Em dezembro de 1826, Brum tirou licença para ir à terra, só
que não retornou à presiganga no tempo previsto — no mais tardar,
no dia seguinte —, comunicando ao comandante do depósito:

Participo a V. S.a. que ontem indo a recolher-me aos pés de V.


S.a., a fim de executar as suas ordens, fui preso e estou na
cadeia pelo motivo do tributo que a mocidade paga por causa de
uma senhora com que me entretinha, e o pai tirou ordem aonde
me encontrasse de me prender, é motivo que não fui cumprir
com os meus deveres. Espero em V. S.a. de me proteger com o
seu auxílio que estiver no alcance de V. S.a. Deste seu menor
súdito José Joaquim de Brum.18

Para além da demonstração de extrema deferência, chegando a


uma espécie de submissão para com Marcelino de Souza Mafra,
Brum, um homem jovem, disse que aproveitou a licença para
entreter-se com uma mulher de família, para dar vazão aos seus
ímpetos sexuais ou afetivos — o “tributo que a mocidade paga” —, e
acabou sendo preso, levado para a cadeia, por ordem do pai da
moça, motivo pelo qual não retornou à presiganga. Só iria se
recolher após 10 dias, quando se apresentou no depósito por volta
das 8h da manhã, dizendo que fora solto por ordem do ministro do
bairro de Santa Rita, Veloso. Mafra afirmou que o boticário deveria
ter retornado acompanhado da guia em que constasse a culpa,
para, à vista dela, ser julgado em Conselho de Guerra.19 Qualquer
reprimenda ou punição ao boticário não surtiu efeito, pois, em maio
de 1829, José Joaquim de Brum novamente foi com licença à terra
para retornar no mesmo dia, mas de novo excedeu ao tempo de
licença, nem sequer se apresentando ou dando alguma
participação.20 Continuaria ele pagando o tributo da mocidade?
Embriagar-se, exceder ao tempo de licença e deixar fugir ou
induzir à fuga de trabalhadores forçados eram algumas das
infrações disciplinares cometidas por membros da equipe dirigente.
As condutas e comportamentos infratores de soldados e oficiais
inferiores se contrapunham ao tipo de vida que lhes reservava a
Marinha: cumprimento de horários rígidos, direito a doses
parcimoniosas de bebida e exação na sentinela. Havia também
abuso de poder, como no caso de oficiais inferiores que cometiam
arbitrariedade contra soldados. O inferior Manuel Cipriano Guedes
chegou a acumular algumas indisciplinas — embriaguez, tempo de
licença excedido e arbitrariedade — e chegou a irritar por completo
o comandante da presiganga em janeiro de 1826, interferindo na
própria escrita de Mafra, naquele momento mais nervosa e
produzida em um fôlego só:

Não podendo suportar mais os despropósitos do segundo


sargento agrupado à 4a companhia do batalhão de Artilharia da
Marinha Manuel Cipriano Guedes, pertencente a este
destacamento, já como comandante da guarda a bordo desta
nau ser necessário vigiá-lo, para não haver alguma novidade,
por ter o vício de se embriagar, como quando ia com licença à
terra, se não excedia a ela — como sucedeu de uma vez ficar
dois dias —, recolheu-se às ave-marias na lancha dos presos,
de tal forma que havia novidade com os indivíduos da escolta; e
mesmo fora do serviço implicando com os soldados do
destacamento, chegando a sua audácia a dar bofetadas nos
ditos soldados, digo no soldado José Pereira da Silva do mesmo
batalhão, sem que este desse motivo, que para evitar funestas
conseqüências, me obrigou a dispensá-lo de todo o serviço e tê-
lo retido a bordo, portanto rogo a V. Ex.a. o seu desembarque, e
que se não houver inferior que o venha substituir, satisfaço-me
com qualquer soldado do Maranhão, que estão adidos ao dito
batalhão, porém que saiba ler.21

Quando punidos, os membros da equipe dirigente recebiam


castigo diferenciado. No caso específico da fuga de parelhas de
trabalhadores forçados, acorrentados uns aos outros, o comandante
da escolta — um oficial inferior (sargento, furriel ou cabo) —, era
castigado com prisão; os soldados responsabilizados eram postos
em ferros, ou seja, recebiam punição corporal:

Fica preso a ferros, à ordem de V. Ex.a., o soldado do 2o


Batalhão de Caçadores de São Paulo, Miguel Joaquim, que
sendo ontem um dos soldados da escolta que conduziu os
acorrentados para o Arsenal, e estando de sentinela ao portão
do telheiro, junto à casa do breu, foi visto, depois que o
comandante da escolta o colocou ali de sentinela, fazer da
barretina cabeceira e deitar-se a dormir seriam três horas da
tarde. Às horas do costume, o comandante da escolta, que era o
cabo do dito batalhão José Francisco de Assis, formando os
presos para embarcarem, achou de menos à parelha de
sentenciados (…).22

Os presos na presiganga
A Marinha foi uma das instituições responsáveis pelo uso de
mão-deobra forçada na época de independência do Brasil. Para
tanto, alguns dos seus estabelecimentos e empreendimentos se
transformaram em locais e destinos de criminosos e indesejáveis: os
trabalhos navais efetuados pelo Arsenal de Marinha requeriam
braços tanto em terra (oficinas) quanto no mar (navios desarmados),
na pedreira em desmonte e no dique em construção, ambos na ilha
das Cobras. Os navios de guerra também incorporaram indivíduos
infratores da ordem social para a prestação de serviço militar. Não é
difícil perceber que esses locais eram de domínio masculino, já que
trabalhos forçados e serviço militar eram exercidos exclusivamente
por homens.
Existiam variados grupos de homens depositados na presiganga,
cada um deles relacionado a um modus operandi peculiar à
Marinha, todos carregando uma tarja, ainda que simbólica, do
serviço forçado, seja por condenação, recrutamento ou imposições
variadas, e assim eram encaixados nas atividades do Arsenal e da
Armada. Os homens que passaram pela presiganga na condição de
condenados judicialmente — pela Justiça comum ou militar — foram
objeto de maior controle contábil, pois constituíam a mão-de-obra
mais “fixa”, condenada a um determinado número de anos aos
trabalhos pesados, assim como os escravos em correção e os
prisioneiros de guerra também empregados naqueles trabalhos. Já
os advindos do recrutamento forçado tinham anotada sua entrada e
saída da presiganga, mas não faziam parte de um controle numérico
continuado, como os “mapas da presiganga” o faziam com relação
aos trabalhadores forçados.23
Assim, temos que, no ápice, a quantidade de trabalhadores
forçados empregados nos trabalhos do dique e do arsenal chegou a
542 homens, em 1o de dezembro de 1827. A maioria (328, ou
60,5%) foi empregada no dique, enquanto o restante (214, ou
39,5%) foi utilizado no Arsenal.24 Em pleno conflito da Cisplatina
(1825-28), quando a guerra de corso tomou vulto maior e o olhar
vigilante tornou-se mais rigoroso com relação às faltas disciplinares
de militares e à ação criminosa, os trabalhos forçados na Marinha
foram vistos como o destino lógico para homens que haviam burlado
a lei ou simplesmente eram considerados inimigos da nação
(prisioneiros de guerra).
O trabalho forçado como método de punição esteve associado
ao regime da escravidão e calcado em interesses sobretudo
econômicos. Como outras penas aplicadas à época, não visava
primordialmente à reabilitação do criminoso: seu principal objetivo
era obter a força de trabalho mais barata possível para o Estado.25
Para corroborar essa concepção, o ministro da Marinha Miguel de
Souza Mello e Alvim, em relatório de 1829, afirmou que o dique em
construção não representava dispêndio algum para a nação.26 Do
ponto de vista econômico, o dique não era visto pela autoridade
naval como uma obra dispendiosa, pelo menos não em termos
financeiros, que onerasse o erário, mas do ponto de vista humano o
trabalho forçado sempre colocou os condenados em condições de
precariedade.
Apesar de a instituição total caracterizar-se por um padrão
humanitário de tratamento dos internados — de fato, havia exames
daqueles presos e, quando doentes, eram remetidos para o Hospital
Militar —, o que mais marcou a condição dos trabalhadores forçados
na presiganga foi aquilo que Goffman denominou processo de
mortificação do “eu”,27 na medida em que recebiam o mesmo tipo
de comida, deviam cumprir horários rígidos e recebiam o mesmo
fardamento. Em maio de 1828, o comandante da presiganga
anunciava o recebimento de 155 fardamentos para alguns
sentenciados, apontando a penúria de outros condenados (estavam
há um ano com camisola e calça de lona) e dos prisioneiros de
guerra (“estão no último apuro da nudez”):

E agora rogo a V. S.a. que tenha em vista a nudez em que se


acham os desgraçados sentenciados e prisioneiros de guerra
aqui existentes, pois que a estação atual [o outono] os poderá
levar a padecerem enfermidades e até a perderem a vida.28

Ao mesmo tempo em que os trabalhadores forçados


representavam utilidade para a Marinha, essa mesma utilidade
poderia se tornar um ônus, na medida em que, na própria
presiganga, ou durante a realização dos serviços, os presos
também infringiam a ordem institucional. Os presos haviam recebido
uma punição ao entrar na presiganga, mas, além disso, podiam
receber uma punição disciplinar, ou seja, um destaque depreciativo
imposto a membros da corporação que infringissem as normas
disciplinares. A punição corporal era a mais aplicada aos
trabalhadores forçados que burlassem a ordem institucional ou que
cometessem infrações variadas, atingindo os dois pilares daquela
ordem: a subordinação e a disciplina. Os castigos corporais (ferros,
golilha ou pancadas de chibata) serviam de exemplo para os outros
presos e para restabelecer o respeito no depósito, além de constituir
punição para os transgressores por meio da dor e humilhação.29

Transição e agonia
A existência da presiganga (1808-31) coincidiu com o período de
passagem da Marinha portuguesa à Marinha brasileira. Esta
absorveu daquela o aparato institucional e os estabelecimentos
edificados na colônia, a exemplo do Arsenal e da presiganga, mas
os adaptou à realidade do novo Estado. O navio que servia de
prisão tinha sido outrora uma nau de guerra portuguesa e, no Brasil,
deixou de ter os atributos de navio armado, pronto para o combate,
passando a ficar desarmado, depois de ter sofrido avarias. Perdeu a
função bélica e ganhou uma função prisional, ainda que sob o signo
do provisório. No Brasil, as naus movidas a vela tiveram pouca
serventia, pois as únicas remanescentes da Armada portuguesa
utilizadas em campanhas navais foram a Vasco da Gama e a Pedro
I, aposentadas do serviço ativo durante a guerra da Cisplatina. Esta
requeria antes de tudo embarcações de pequeno porte que
navegassem no rio da Prata e seus baixios, e não grandes naves
próprias para atravessar oceanos.
A presiganga situou-se ainda na confluência entre o burburinho
do circuito urbano-mercante do Rio de Janeiro, então o principal
porto de comunicação entre o Brasil e os outros países, e o mundo
corporativo, com suas regras próprias, representado pela Marinha;
entre o universo comercial do porto, das exportações, dos lucros e
da perda, e o severo, hierárquico mundo militar; entre a vida social
que os presos divisavam em suas idas e vindas para a presiganga,
e a ordem institucional, que se concebia como específica, à margem
desse mundo. Além disso, situada entre a terra firme e o alto-mar, a
presiganga ficava fundeada num espaço de intensa circulação não
só de navios de guerra, mas também mercantes. Os presos que ela
custodiou em boa parte tiveram passagem por sumacas e
bergantins e foram aproveitados em naus, fragatas, brigues e
corvetas; tiveram passagem pela polícia, formando as levas colhidas
na cidade portuária, e desempenharam papel como forçados e
recrutas no serviço militar-naval. Os trabalhos no Arsenal e no
dique, assim como os trabalhos nos navios de guerra, tinham a
intenção de pôr operários, marinheiros e soldados em regime
disciplinar, sujeitos aos recursos para o bom adestramento: a
vigilância de superiores, as mostras e o cumprimento de horários e
a sanção normalizadora, de modo a torná-los úteis. Índios, “vadios”,
capoeiras, criminosos, escravos fugitivos e prisioneiros de guerra
foram absorvidos pela Marinha e receberam outros papéis: artífices,
grumetes, soldados, marinheiros, galés.
Em agosto de 1831, a mestrança do Arsenal de Marinha
apontava a completa ruína da Príncipe Real, de tal forma que os
presos e a guarnição da presiganga foram transferidos para as
charruas Ânimo Grande e Jurujuba, e fez-se leilão da Príncipe Real,
já que esta corria risco de ir a pique. Porém, a revolta do Corpo de
Artilharia da Marinha, em 6 de outubro daquele ano, impediu a
entrega da nau ao seu arrematante, já que ela voltou a ser depósito
de presos — no caso, dos soldados revoltosos vencidos. Em
dezembro, a Príncipe Real pôde finalmente ser entregue ao seu
novo dono, já que os presos foram transferidos para a Ânimo
Grande, a Jurujuba e para a nau Pedro I, as novas presigangas.
A agonia da presiganga deveu-se à precariedade física da
embarcação, mas esse tipo de prisão passou a ser anacrônico a
partir de uma série de revoltas que tomaram corpo no explosivo ano
decorrido entre abril de 1831 e abril de 1832, depois da abdicação
de d. Pedro I, quando os clamores de diversos setores sociais,
inclusive militares, tomaram vulto.

Memória e esquecimento
Houve um esquecimento do significado anterior da prisão como
um local de passagem, como simplesmente uma estada, uma
parada rumo a outras punições, ou rumo à comutação ou ao perdão
da pena. Essa suspensão do passado da presiganga pode ser
explicada por três fatores, complementares entre si. Primeiro, pela
própria inexistência desse navio no presente. A presiganga não
atraiu cuidados preservacionistas, seja devido ao próprio
desenvolvimento da indústria naval — que pressupunha o descarte
de modelos antigos —, seja devido à deterioração, mais intensa em
artefatos sujeitos às intempéries do ambiente marítimo. Existe um
segundo fator, mais forte, para o esquecimento: o “presentismo”
com relação às penitenciárias. A suposição errônea de que as
prisões sempre foram as mesmas em todos os tempos não deixa
enxergar a historicidade desse fenômeno. A terceira causa para
essa exclusão da memória é a aversão que determinados grupos
sociais começaram a ter por esse modelo de punição enquanto ele
ainda existia, associado que estava a penas e castigos corporais,
numa época em que parte da sociedade já defendia a regeneração
do indivíduo nas prisões e a aplicação de penas mais “humanas”.
Um exemplo dessa consciência crítica foi a “Dissertação abreviada
sobre a horrível masmorra chamada presiganga existente no Rio de
Janeiro”, cujo autor, até hoje anônimo, foi o mais contundente crítico
da presiganga. Ao longo das décadas de 1830 e 1840, surgiram no
Brasil tentativas de expurgar da legislação e da prática penal tudo
aquilo que, aos olhos da sociedade, assumia feição “bárbara”,
“desumana”, como que querendo deixar para trás e esquecer um
tempo condenável, em que as penalidades eram impostas por um
código de herança ibérica — as Ordenações Filipinas (1602) — em
via de superação.30
Uma vez que a memória histórica é elitista, há um artefato da
Marinha da mesma época que, ao contrário da presiganga, mereceu
ser preservado e recordado: a galeota Dom João VI. Fabricada em
1808, quando da estada de d. João na Bahia, a galeota ganhou
estatuto de relíquia nas letras do historiador memorialista carioca
Carlos Sarthou, do historiador naval Levy Scavarda e do
conservador técnico do Museu Histórico Nacional Marfa Barboza
Vianna,31 e encontra-se atualmente exposta à visitação pública no
Espaço Cultural da Marinha, no Rio de Janeiro. A galeota foi
contemporânea da nau presiganga. Esta, no entanto, perdura no
esquecimento, como o demonstrou a exposição “Dom João VI: um
rei aclamado na América”, aberta ao público de 10 de setembro a 8
de novembro de 1999 no Museu Histórico Nacional e que não fez
uma única menção ao fato de a Príncipe Real ter-se tornado uma
presiganga.
Um condicionamento da memória talvez ajude a explicar o
esquecimento. Imaginamos alguma embarcação do presente ou do
passado sempre em ação, em movimento, empreendendo alguma
viagem, seja singrando os sete mares, seja atuando na pirataria ou
naufragando. Com efeito, se formos nos fiar nos relatos literários, de
cunho religioso ou não, nas histórias que nos contaram ou que
lemos na infância e nos bancos escolares, as embarcações realizam
algum percurso, alguma travessia, seja ela de que ordem for — de
iniciação, de redenção, de aprendizagem, de sofrimento: a Arca de
Noé, embarcações naufragadas, a Nau dos insensatos, o navio
baleeiro Pequod em Moby Dick, O navio negreiro de Castro Alves. O
contraponto a essa imagem em movimento é o cemitério de navios,
seja daqueles à vista, encalhados, que se tornaram ferro-velho, seja
daqueles submersos, fonte de pesquisa para a arqueologia
subaquática ou fonte de aventura e cobiça para mergulhadores e
caçadores de tesouros. A presiganga, à época de sua existência,
não era nem uma coisa nem outra: nem uma embarcação em
movimento, completando alguma travessia, nem um navio
apodrecendo em algum depósito. Pelo contrário, era um depósito de
pessoas, e muito útil. Depósito fixo, ancorado, surto, fundeado.
A presiganga fazia parte de uma série de outras embarcações
também desarmadas, sob a supervisão do Arsenal de Marinha, um
estabelecimento de logística que amparava e dava suporte à
Armada. O navio que servia de prisão despertou o interesse apenas
do historiador naval Juvenal Greenhalgh, embora de forma
ambígua. Ao mesmo tempo que Greenhalgh nutria um vivo
interesse pelo passado da Marinha, também sentia repulsão pela
presiganga, na medida em que, para ele, se tratava de uma
embarcação decaída, muito pouco dada a uma narrativa de feitos
gloriosos e memoráveis. Presigangas e calabouços, com efeito,
trata do lado obscuro da Marinha, de ébrios e escroques, de
infratores, de punições corporais, assuntos incômodos não só para
os próprios historiadores navais como para a sociedade em geral.
O “assunto maldito” presiganga, no entanto, representa um
grande arquivo a partir do qual podem ser estudados temas culturais
como a embriaguez, as marcas corporais (voluntárias, como as
tatuagens, e involuntárias, como as advindas de castigo), as
relações entre o corpo do embarcado e o corpo do navio, as redes
de solidariedade e de disputa entre gangues. Uma série de outras
temáticas pode ser abordada com base nos entrelaçamentos
profícuos entre a história e a antropologia.

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* Mestre em história social e das idéias pela UnB.


1 Essa embarcação só foi sistematicamente estudada pela primeira vez em
meados do século XX, pelo historiador naval Juvenal Greenhalgh (1890-
1966). Greenhalgh (1998) menciona a existência de presigangas ou navios
que serviam de prisão também no Pará, na Bahia, em Pernambuco e no Rio
Grande do Sul.
2 Quem localizou a origem em uma palavra inglesa foi um militar, Mattos
(1837:316). Quem confirma é o lingüista Cunha (1982:633). Vários dicionários
de língua inglesa especializados em termos navais registram o termo press-
gang.
3 Para uma abordagem dos modelos teóricos a respeito da história da
punição, ver Garland (1993). Para uma história da prisão no mundo ocidental,
ver Morris e Rothman (1995). Para uma história da prisão na América Latina,
ver Salvatore e Aguirre (1996). Para a herança ibérica no pensamento
jurídico-penal brasileiro, ver Neder (2000). Coates (1998) apresenta um
estudo abrangente sobre o degredo como punição.
4 Para uma história desse estabelecimento, ver Greenhalgh (1965).
5 Segundo Foucault (1998:115-192), a vigilância é um dispositivo da
disciplina, um regime de poder que visa tornar os corpos dóceis e úteis. Para
ele a disciplina começou a preponderar a partir da segunda metade do século
XVIII, na Europa, em estabelecimentos específicos como escolas, quartéis,
oficinas, hospitais, mas sua tendência foi propagar-se, generalizar-se,
ampliar-se pelo restante da sociedade. Por meio de um saber que ordena,
classifica, enquadra, analisa, separa e diferencia, o regime disciplinar absorve
as aglomerações, as multidões confusas, desordenadas, desviadas,
incômodas, e tende a produzir corpos obedientes e aptos — em suma,
despojados de poder. Na disciplina, a pessoa é individualizada por
fiscalizações, por observações, por medidas comparativas, por “desvios”.
6 Ver Fragoso e Florentino (2001).
7 E também de idiomas. Presiganga, corruptela de press-gang, chegou a
gerar outra corruptela, Brésiganga. Em 1823, três franceses empregados
como artífices foram tomados de leva pela polícia e encaminhados para a
presiganga; no início do requerimento ao cônsul, escreveram: à bord du
vaisseau Brésiganga… (Arquivo Nacional, maço XM 726, Requerimento
coletivo, 3-4-1823).
8 As obras de construção do dique, ao norte da ilha das Cobras, foram
iniciadas em 1824, para substituir o antigo mecanismo de querena ou crena
dos navios para reparos. Essas obras foram paralisadas por 22 anos, de 1832
a 1854, e somente terminadas em 1861, quando o dique, até hoje existente,
foi inaugurado.
9 Soares (2001:95-99, 247-322) identifica a presiganga como o local, por
excelência, aonde escravos e forros perturbadores da ordem pública eram
remetidos durante a década de 1820, para dali cumprirem trabalhos forçados.
O historiador destaca o aspecto punitivo do Arsenal de Marinha, a seu ver o
maior complexo prisional da cidade do Rio de Janeiro até 1835. Um dos
principais méritos do livro de Soares é localizar no tempo o papel que o
Arsenal desempenhou na história das punições dos homens de cor na cidade
do Rio de Janeiro. Soares encontrou também no Arsenal um ambiente de
socialização, onde escravos e marinheiros eram agentes de uma intensa
circularidade cultural, advinda do convívio nos trabalhos forçados e das fugas
pelo mar — as “fugas atlânticas” —, em que os contatos chegavam à África e
ao norte da Europa.
10 Segundo Goffman (2001:13-108), instituição total é aquela em que há uma
ruptura na barreira entre as três esferas da vida do indivíduo — morar, divertir-
se e trabalhar —, pois esses aspectos passam a ser vividos em um mesmo
local, “fechado” para o mundo externo. Exemplos de instituições totais são a
prisão, o hospital psiquiátrico, o convento, o navio etc.
11 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lata 48, pasta 12, “Dissertação
abreviada sobre a horrível masmorra chamada presiganga existente no Rio de
Janeiro”, nota 2. Juvenal Greenhalgh (1998:26-28) transcreveu alguns trechos
da “Dissertação”, e foi a partir dela que o historiador naval descreveu o
cotidiano no navio. Morel (2001:218-20) também reservou um espaço para
ela. Segundo este autor, Cipriano Barata seria o provável autor da
“Dissertação”.
12 Ver Esparteiro (s.d.:82-112); Boiteux (1971:135-136).
13 Ver Zysberg (1980:51-111).
14 Ver McConville (1981:105-111); Campbell (2001).
15 A guarnição do navio-presídio não possuía um regulamento, o que
confirma o caráter provisório da presiganga — servia como prisão. Mas os
oficiais e a equipagem dos navios da Marinha seguiam um regulamento
disciplinar de origem portuguesa: o Regimento provisional para o serviço e
disciplina das esquadras e navios da Armada Real, que por ordem de Sua
Majestade deve servir de regulamento aos comandantes das esquadras e
navios da mesma Senhora. Expedido pelo Conselho do Almirantado em 17 de
junho de 1796 e aprovado por decreto de d. João em 20 de junho do mesmo
ano, tal regimento foi reimpresso, no Brasil, em 1825, 1835 e 1868, tendo
vigorado até 1891.
16 Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, ms. C-731, 58, fé de ofício, 7-
10-1816.
17 Ver a breve biografia de Mafra feita por Greenhalgh (1998:32-34).
18 Arquivo Nacional, maço XM 793, Participação do boticário, 12-12-1826.
19 Arquivo Nacional, XM 793, Ofício do comandante da presiganga, 21-12-
1826.
20 Arquivo Nacional, XM 802, Ofício do comandante da presiganga, 4-5-1829.
21 Arquivo Nacional, XM 793, Ofício do comandante da presiganga, 18-1-
1826.
22 Arquivo Nacional, XM 726, Ofício do comandante da presiganga, 14-5-
1823.
23 Desde pelo menos agosto de 1823, o comandante da presiganga ficou
incumbido de emitir, semanalmente, um “mapa do estado atual da guarnição
da nau ‘Príncipe Real’ que serve de presiganga”, onde registrava a graduação
e o número dos homens lá lotados, a transcrição das ordens recebidas do
inspetor durante a semana e observações a respeito da movimentação dos
presos (entrada, saída, falecimento etc.), bem como o número exato dos
galés, dos escravos em correção e dos prisioneiros de guerra, todos os três
grupos empregados nas obras do Arsenal e do dique. Desses mapas
semanais, com datas-limite 1823-30, somente constam 22 na documentação
avulsa do Arquivo Nacional.
24 Arquivo Nacional, XM 798.
25 Ver Rushe e Kirchheimer (1999:76-82).
26 Brasil, 1876:8.
27 Ver Goffman (2001:13-108).
28 Arquivo Nacional, XM 801, Ofício do comandante da presiganga, 16-5-
1828.
29 Sobre os objetivos da punição corporal na Marinha, ver Nascimento (2001).
30 A respeito da implantação e da superação desse modelo penal ibérico, ver
as valiosas contribuições de Nepomuceno (2002) e Noronha (2003).
31 Ver Sarthou (1965:39-55); Scavarda (1968); Vianna (1945).
CAPÍTULO 6

A serviço de Sua Majestade: a tradição militar portuguesa


na composição do generalato brasileiro (1837-50)

Adriana Barreto de Souza*

Modificando a ordem hierárquica e agindo sobre ela,


estabelecia-se uma ordem infinitamente mais
nuançada, ainda não institucionalizada, que mudava
depressa e era determinada pelo favor do rei, e pela
posição e importância de cada indivíduo no seio da
estrutura de tensões da corte.

(Norbert Elias, A sociedade de corte)

No dia 29 de novembro de 1807, uma esquadra composta de


oito naus, três fragatas, dois brigues, uma escuna de guerra, uma
charrua de mantimentos e mais de 20 navios mercantes da Marinha
portuguesa deixava Lisboa para atravessar o Atlântico em direção
ao Brasil. A mais importante dessas embarcações — a nau Príncipe
Real — transportava o regente e parte da corte. Nela também
seguia um destacamento de artilharia do Exército português. O
jovem oficial que comandava a unidade, Cândido Noberto Gorge de
Bellegarde, viajava acompanhado da esposa, nos últimos meses de
gravidez, e de um filho pequeno. O tumulto da viagem antecipou o
parto de d. Maria Niemeyer Bellegarde, e 15 dias depois, ainda no
navio, ela deu à luz Pedro de Alcântara Bellegarde. O nome do
menino é um sinal do vínculo dos Bellegarde com a família real —
homenageava seu padrinho, o príncipe Pedro de Alcântara. Apenas
dois anos após a chegada ao Rio de Janeiro, o major Bellegarde
morreu. D. João, munificente, em remuneração aos serviços
prestados pelo finado major, mandou assentar praça no Exército a
seus dois filhos com o título de cadete. Pedro contava dois anos de
idade, e seu irmão era um pouco mais velho.
Os meninos Bellegarde não foram os únicos oficiais portugueses
a ingressar no Exército como cadetes. A mesma esquadra
transportava outros jovens oficiais agraciados com o mesmo título.
Mas nenhum deles recebeu a mercê tão cedo. Antônio Elzeário de
Miranda e Brito foi agraciado com 18 anos; João Egídio Calmon,
com 13; e Enrique Isidoro Xavier de Brito, com 14 anos de idade. A
formação destes rapazes passou por diferentes instituições. Os
Bellegarde, criados no Rio de Janeiro, estudaram na Real Academia
Militar. Os demais, apesar de serem oficiais do Exército, tinham se
formado em escolas da Marinha. Elzeário freqüentou a Academia de
Marinha de Lisboa; Enrique Isidoro, a Real Academia de Guardas
Marinhas; e João Egídio desistiu desta última para se matricular no
Real Colégio dos Nobres. Outros oficiais, tanto em Portugal quanto
no Brasil, só cursavam as chamadas “aulas matemáticas”,
oferecidas nos próprios regimentos. Nada disso porém era
obrigatório para seguir a carreira das armas. Antero José Ferreira de
Brito, brasileiro, nascido em Porto Alegre, não foi agraciado com o
título de cadete e também não cursou academias ou “aulas
matemáticas”. Assentou praça com 21 anos em uma companhia de
milícias do Rio Grande do Sul e só passou para o Exército depois de
muitas campanhas em defesa da Coroa portuguesa, com 36 anos.
Trajetória semelhante foi trilhada por Bento Manuel Ribeiro, paulista
que se destacou em várias batalhas contra os espanhóis na
fronteira sul do Brasil, e por Francisco Sérgio de Oliveira, paraibano
com importante participação em combates nas regiões Norte e
Nordeste. Ambos, assim como Antero de Brito, só contavam com a
experiência dos campos de batalha e, mesmo assim, alcançaram
patentes de oficial-general.
Esses dados biográficos foram recuperados com a intenção
inicial de definir um perfil dos oficiais que integravam o corpo de
generais do Exército brasileiro entre 1837 e 1850, período de
consolidação do Estado imperial. A partir de uma fonte preciosa,
bastante conhecida entre os especialistas no tema — Os generais
do Exército brasileiro de 1822 a 1889, de Alfredo Pretextato Maciel
—, preparei um catálogo com os principais dados sobre a origem
social e a trajetória desses generais.1 Só foram incluídos na lista os
oficiais da ativa. No total, 46 generais. Mas a surpresa veio ainda
durante a leitura de suas biografias, constantes do livro. Os textos
estão repletos de referências a símbolos, a hierarquias e a um estilo
de vida característicos de sociedades do Antigo Regime.2 Esses
oficiais-generais eram herdeiros de uma tradição militar portuguesa
muito particular, estranha ao modelo moderno que associa a carreira
à aquisição de conhecimentos técnicos específicos, à incorporação
de um conjunto de valores e atitudes orientados por uma disciplina
rigorosa e a uma forte unidade corporativa. Eles integravam uma
sociedade de corte, e isso dificulta bastante a definição de um perfil
do grupo. Pelo menos, de um perfil homogêneo. Para obter uma
patente de general, havia vários caminhos possíveis. O único ponto
comum a todo o grupo é a dependência da Coroa, que detinha o
monopólio de distribuição dos bens simbólicos: graças honoríficas,
títulos nobiliárquicos e também patentes militares. Para visualizar os
traços básicos dessa tradição portuguesa e o peso que teve na
formação dos generais de 1840, vale organizar as informações em
algumas tabelas.3

Tabela 1
País ou província de origem
(N = 46)

Tabela 2
Ocupação dos pais

(N = 46)

Tabela 3
Títulos
(N = 46)

Tabela 4
Formação acadêmica

(N = 46)

Tabela 5
Cargos políticos
(N = 46. Desta amostra 17 oficiais-generais ocuparam ao longo da vida mais
de um cargo político.)

O número de portugueses que integrava o corpo de oficiais-


generais é o primeiro dado a ser explorado. Ele explicita uma linha
de continuidade impressionante. Em fins dos anos 1830 e durante a
década de 1840, os oficiais portugueses ainda ocupavam quase
metade dos postos de comando do Exército brasileiro. Entre esses
22 portugueses, apenas sete tinham embarcado para o Brasil com
menos de 18 anos de idade, e destes, só quatro com menos de 10
anos. Em sua maioria, a geração nascida na primeira década do
século XIX, incluídos aí os irmãos Bellegarde, só ascendeu ao
generalato depois de 1850. Esses generais, portanto, eram oficiais
que viveram suas primeiras experiências militares defendendo a
Coroa portuguesa, fosse nas diversas investidas realizadas por d.
João aqui na América, fosse nas campanhas peninsulares contra os
franceses. Este é um outro dado importante. Nove desses
portugueses não vieram para o Brasil com a comitiva real. Só
desembarcaram no Rio de Janeiro anos mais tarde, entre 1816 e
1818, para reforçar o Exército imperial em combate no Sul, contra
os espanhóis. Eram súditos da Coroa portuguesa e aprendiam o
ofício da guerra através de serviços em qualquer região de seu
vasto império. Se priorizarmos a idéia de “experiência militar”,4 a
mesma lógica pode ser aplicada aos nascidos no Brasil. Dezenove
deles nasceram antes de 1800. Ou seja, também estrearam na
carreira durante o período joanino e se viam como oficiais desse
mesmo império.
Esse lugar — de oficial do império português — produzia um
militar diferente daqueles criados pelos Estados nacionais
oitocentistas. Isso porque os objetivos da Coroa eram outros, e as
possibilidades dos jovens aspirantes à carreira também eram
distintas. A trajetória de Francisco de Paula e Vasconcelos é um
bom exemplo das possibilidades de um oficial inscrito na ampla rede
de um império colonial. Nascido no Rio de Janeiro em março de
1787, ele assentou praça como tenente aos 19 anos de idade, no
regimento de infantaria de Angola. O motivo desse deslocamento
era simples: seu pai, tenente-coronel do Exército português, havia
sido designado pela Coroa para serviços na colônia africana. Essa
circulação sempre era recompensada com uma promoção. De volta
ao Brasil em 1809, aqui ele construiu uma carreira de sucesso. Em
1846 recebeu a segunda patente mais alta do generalato — tornou-
se tenente-general do Exército brasileiro. Todavia, o oficial,
indiscutivelmente brasileiro, tinha vivido 35 anos de sua vida como
súdito da Coroa portuguesa. Brasileiro foi uma identidade adotada
por injunções políticas, na década de 1820, quando já era adulto.
Parte desses generais, integrantes de uma cultura luso-
brasileira, tinha seu ingresso no Exército marcado por um título
honorífico: 65,4% assentavam praça como cadetes. Praticamente a
mesma percentagem não tinha educação de nível superior. A Real
Academia Militar só foi cursada por alguns dos oficiais mais jovens,
interessados na novidade implantada pela corte joanina no Rio de
Janeiro. Em Portugal, os oficiais do Exército desejosos de obter uma
formação passavam por instituições de ensino da Marinha ou pelo
Real Colégio dos Nobres.
A intenção deste capítulo daqui em diante é explorar esses
dados como indícios que podem facilitar a compreensão disso que
considero uma outra tradição militar — uma tradição portuguesa de
Antigo Regime — e de como ela produziu um grupo de oficiais-
generais tão heterogêneo.

O título de cadete
Cadete foi um título honorífico criado por d. José I em 1757. O
alvará assinado em 16 de março exprime com clareza a intenção do
monarca:

convém ao meu real serviço e ao bem comum dos meus reinos,


que a nobreza deles tenha escolas próprias para se instruir nas
artes e disciplina militares, em que a especulação se faz inútil
sem uma cotidiana e dilatada prática do que é pertencente às
obrigações de cada um dos que se empregam em tão nobre
exercício desde a primeira praça de soldado gradualmente até
os maiores e últimos postos do Exército, a que todos que nele
entram devem desde a primeira hora aspirar pelos seus serviços
e merecimentos.

A medida pretendia atrair a nobreza para o serviço militar. No


caso, é preciso ficar atento ao termo escola. Ele não se refere a um
estabelecimento onde certos conteúdos são ensinados. A idéia é
mais ampla, refere-se a um conjunto de princípios. O objetivo dessa
“escola” é ensinar aos filhos da nobreza a rotina de um regimento e
o princípio de subordinação. Por isso, cadete, vocábulo de origem
latina que originalmente designava o filho mais moço de cada
família, mas que ficou consagrado nos séculos XVI e XVII ao ser
amplamente empregado na literatura para designar o
comportamento tipicamente descomedido dos estudantes de
ascendência nobre — jovens que em algum momento de suas vidas
entravam para o Exército. Era esse significado que o alvará tentava
alterar, instituindo um novo padrão de comportamento. A partir de
1757, cadete passou a ser o título com que esses mesmos jovens
ingressavam oficialmente na carreira militar. Para isso, deveriam
reconhecer as mencionadas “obrigações” e aprender que o acesso
aos “últimos postos” se daria de forma gradual, dependendo da
prestação de serviços à monarquia. Sem merecimento, não havia
remuneração. Ou seja, não havia promoção.
Esse exercício de sujeição à Coroa é reforçado pela burocracia
que deveria ser cumprida pelo requerente para obter o título. O
jovem de origem nobre deveria redigir uma petição ao coronel do
regimento em que pretendesse servir, e este, ao despachar a
petição, ordenava que o mesmo suplicante fizesse prova de sua
nobreza perante o auditor-geral da respectiva província. Na ocasião,
o jovem deveria apresentar documentos que comprovassem sua
nobreza por parte dos pais e dos quatro avós. Só após o exame das
referidas provas e da elaboração, pelo auditor, de um parecer sobre
a qualidade das testemunhas e dos documentos apresentados a
petição retornava ao regimento. Quando tudo parecia terminado, o
suplicante deparava ainda com uma última etapa: o deferimento do
requerimento dependia de um conselho formado pelo coronel,
tenente-coronel, sargento-mor (atualmajor) e capitão mais antigos
do regimento em que ele, o suplicante, aspirava a servir. Tendo sido
reconhecido cadete, ele deveria usar uniforme com as divisas de
oficial — dragonas e carriéis de ouro e prata — e mostrar boa
conduta nos lugares públicos, transformando-se em um exemplo de
subordinação e fidelidade à Coroa.
É difícil que toda essa regulamentação tenha sido posta
integralmente em prática. A monarquia — d. José e seu principal
ministro, o marquês de Pombal — lutava contra o antiabsolutismo
da nobreza portuguesa. As famosas “reformas pombalinas” se
caracterizavam por uma clara ação intervencionista da Coroa para
eliminar todas as formas de contestação à autoridade central.5 Nos
altos postos do Exército predominavam as principais casas tituladas
de Portugal. O controle da Coroa sobre as promoções era pequeno.
Muitos dos integrantes dessa nobreza não passavam pelos postos
de oficiais superiores. Ascendiam diretamente ao generalato, cuja
patente era vista como título honorífico.6 O título de cadete
procurava assim submetêlos à “cotidiana e dilatada prática do que é
pertencente às obrigações de cada um dos que se empregam em
tão nobre exercício”. Daí também a expressão “gradualmente”. Essa
tradição de ascensão direta às patentes de oficial-general, por
jovens cantados na literatura pelas arruaças noturnas que
promoviam “pelas ruas estreitas e desprovidas de iluminação”, não
encaminhava para o Exército homens muito independentes da
Coroa, reforçando o prestígio de suas famílias, como também fazia
deles oficiais com competência limitada nos assuntos de guerra.
A instituição do título é expressão da luta da Coroa pelo
monopólio das forças militares. Outra forma de subordinar essa
nobreza foi dar acesso ao generalato a outros grupos sociais. Esse
é um ponto geralmente pouco discutido. Apesar do alvará de 16 de
março se dirigir à nobreza, ele também concede o direito ao título
aos “filhos de oficiais militares que tenham ou tivessem pelo menos
a patente de sargento-mor pago, ou sendo filhos de mestres-de-
campo dos terços auxiliares ou ordenanças”. Em linguagem
moderna, aos filhos de oficiais com a patente mínima de major do
Exército ou de coronel das milícias. Ora, para esses jovens, em sua
maioria provenientes de setores não-titulados da sociedade, a
distinção, por ser provavelmentes a única que detinham, era
bastante valorizada. A Coroa atraía assim para o Exército os filhos
de oficiais superiores. A longo prazo, isso poderia mudar o perfil da
instituição, criando um corpo de generais mais familiarizado com a
guerra; mas também tinha efeitos imediatos. Distinguir os filhos
alimentava a ambição dos pais e ampliava as bases de apoio da
monarquia. Se as reformas pombalinas reduziam, através de duras
intervenções, o poder das casas tituladas, a Coroa precisava
recrutar, para combater a reação dessas casas, também bastante
virulenta, outros setores sociais. O apoio dos militares de carreira
era indispensável.
Os generais de 1840, no Brasil, eram em sua grande maioria
herdeiros dessa tradição. Ainda que as informações sobre filiação
sejam muito incompletas, vale destacar que 16 dos 30 generais que
assentaram praça como cadetes eram filhos de oficiais militares, do
Exército ou das milícias. A primeira alteração realizada no texto do
alvará ocorreu em 18 de maio de 1797: a Coroa eliminou a
exigência de idade mínima de 15 anos para obter o título. Por isso,
no grupo de generais, é possível encontrar cadetes com até três
anos de idade. Todos os Lima e Silva nascidos no Brasil, por
exemplo, usufruíram desse benefício, assentando praça ainda bem
crianças.
De ascendência nobre ou não, essa geração de 1840 — é
importante destacar — era integrada por oficiais completamente
subordinados à Coroa e dependentes de sua generosidade. Além
de seu valor honorífico, o título, se associado à prestação de
serviços à Coroa, garantia a esses oficiais uma rápida ascensão na
carreira. Logo de início, por serem cadetes, eles ficavam
dispensados de servir nos postos inferiores da hierarquia militar,
ingressando no Exército diretamente no grupo de oficiais
subalternos. Cada promoção vinha acompanhada de outras mercês
régias, podendo o oficial ser agraciado até mesmo com um baronato
ou outro título de nobreza. Esse estreitamento de vínculos com a
Coroa, através da transformação do grupo em homens de corte, foi
oficialmente instituído pelo decreto de 13 de maio de 1789. Por ele,
todos os oficiais que ascendessem aos postos de marechal-
decampo ou de tenente-general, mesmo os que não assentaram
praça de cadete, se tornavam automaticamente fidalgos da casa
real.

A formação
A sistematização dos dados biográficos da geração de generais
de 1840 revela outro traço importante dessa tradição militar
portuguesa — a formação acadêmica era dispensável na construção
de uma carreira bemsucedida. Dos generais dessa geração, 65,2%
atingiram as mais altas patentes do Exército sem passar pelos
bancos escolares. Dos que viveram a juventude em Portugal,
apenas sete tiveram formação acadêmica. Ainda assim, isso era
uma novidade. Tanto que quatro deles tiveram que cursar
academias da Marinha. A procura por uma formação acadêmica se
devia ao avanço do uso das armas de fogo e à evolução das
técnicas de fortificação ocorridos na segunda metade do século
XVIII. Com esse avanço, as aulas ministradas nos regimentos
mostravam-se insuficientes. Esses jovens estavam interessados em
seguir carreira nas armas de artilharia e engenharia. Por isso, um
deles matriculou-se no curso de matemática da Universidade de
Coimbra. Matemática era a base da formação desses oficiais. O
estatuto das duas academias — a Real Academia de Marinha de
Lisboa e a Academia de Guardas Marinhas — previa um curso de
três anos. A estrutura era a mesma. Nesses três anos, estudava-se
matemática superior, e, no último, técnica naval. Assim, quem
pretendia servir no Exército cursava apenas os dois primeiros anos.
Mas a Academia de Marinha de Lisboa oferecia ainda um ano
complementar, com lições de fortificação e engenharia para os
oficiais que pretendessem servir como engenheiros. Depois disso,
eles seguiam para os regimentos.7
A primeira academia militar com um funcionamento mais regular
e prolongado, voltada para a formação de oficiais do Exército, foi
criada por carta régia de 4 de dezembro de 1810, no Rio de Janeiro.
Ela impressionava ao ser apresentada como um curso que visava
“formar hábeis oficiais de artilharia e engenharia, e ainda mesmo
oficiais da classe de engenheiros geógrafos e topógrafos, que
possam também ter o útil emprego de dirigir objetos administrativos
de minas, caminhos, portos, canais, pontes, fontes e calçadas”.
Essa finalidade, definida nas primeiras páginas de seu estatuto,
acabou produzindo um currículo escolar com um grande número de
cursos distribuídos ao longo de sete anos de formação. Não é difícil
imaginar o impacto provocado pela proposta. O curso não era
concluído integralmente por todos os alunos. Aqueles que se
destinavam às armas de infantaria e cavalaria apenas estudavam as
matérias do primeiro ano (matemática elementar) e os assuntos
militares do quinto ano. Só dos artilheiros e engenheiros era exigido
o curso completo. Por isso, essas eram consideradas armas
“científicas”. Requeriam estudos de matemática superior, balística e
fortificações. “Vale destacar ainda que as armas não eram vistas
como linhas específicas de estudos militares. Ou seja, os sete anos
de estudos para artilheiros e engenheiros incluíam os estudos de
infantaria e cavalaria.”8
Foi nessa academia que nove dos generais com estudos
superiores se formaram. Apesar do significativo avanço que seu
currículo representa, não podemos esquecer que seus cursos não
eram obrigatórios e que, na sua organização, ela era
completamente desmilitarizada. Esse é um ponto importante. O
regime escolar era de externato e não havia praticamente nenhuma
regra disciplinar. O que se via nessa matéria encontrava-se também
em estabelecimentos civis. A respeito do horário das aulas, o
estatuto informava que “os estudantes devem achar-se nas suas
respectivas aulas às horas em que se der princípio às lições” e
exigia que “para com os seus mestres se haverão com o maior
respeito”. Nenhuma outra norma era fixada. Não se mencionavam
uniformes ou formaturas. A academia também não tinha um
comando unificado. A direção era colegiada, composta por uma
junta de cinco militares, devendo ser seu presidente um tenente-
general do corpo de artilharia ou engenharia. Isso obviamente gerou
vários problemas para o estabelecimento. Examinando o arquivo da
academia, depositado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, é
possível encontrar vários casos sérios de indisciplina, de falta de
professores e de aprovação de alunos com um número excessivo
de faltas. Esse tipo de problema também tinha sido experimentado
pelo Real Colégio dos Nobres, em Portugal. D. José I, através do
alvará de 13 de março de 1772, reconhecia publicamente a
necessidade de “combater a relaxação” do estabelecimento.
Mencionava a “indocilidade dos alunos”, a “pusilanimidade dos
superiores” e terminava o documento reconhecendo o “decaimento
do colégio”. A direção da Real Academia Militar, em ofício de 21 de
março de 1820, assumia a “evidente decadência do
estabelecimento”.
Reconhecer o caráter desmilitarizado da Real Academia Militar e
os cotidianos problemas de disciplina experimentados por seus
alunos e por aqueles que freqüentaram o Real Colégio dos Nobres,
mais do que descrever seus currículos, é fundamental para desfazer
uma certa imagem, bastante naturalizada, do que é ser militar no
século XIX.9 Os oficiais que integravam o corpo de generais do
Exército brasileiro nos anos de 1840 não detinham um
conhecimento técnico específico sobre a arte da guerra, não
partilhavam de valores orientados por uma disciplina rigorosa, nem
constituíam um grupo unificado por uma forte identidade corporativa.
Isso porque nenhuma experiência vivida por eles durante os anos
de formação visava desenvolver esses conhecimentos e predicados.
Esse perfil é de um militar do século XX. Para sua construção, a
instituição-alvo dos governos nacionais foi a Academia Militar.
Transformada em etapa obrigatória na formação de oficiais, é entre
seus muros, ainda hoje, pela separação dos jovens aspirantes à
carreira do restante da sociedade, que tem início um treinamento
intensivo capaz de desenvolver essas competências, valores e
solidariedade atribuídos ao grupo. Ou seja, esse é por excelência o
lugar de construção da identidade social do militar tal como
conhecemos, militares que se vêem como um “nós” em oposição a
um “eles”, os civis — lugar de formação de um espírito militar.10 Dos
46 generais de 1840, 30 não passaram por uma academia, nove se
formaram em uma academia recém-criada, desmilitarizada e com
sérios problemas de disciplina, quatro cursaram uma academia da
Marinha, dois estudaram entre nobres em uma instituição também
marcada pela indisciplina, e um fez o curso de uma universidade
civil. Se retomarmos a pergunta sobre o perfil desses generais, o
único traço comum que encontraremos, e que desse modo poderia
dar alguma forma ao grupo, é sua estreita vinculação com a Coroa e
a vida de corte. Mesmo os oficiais que não tinham ingressado na
carreira como cadete, para construir uma trajetória bem-sucedida no
Exército dependiam da munificência real. A Coroa detinha o
monopólio de distribuição das patentes e, ao agraciar os oficiais
com uma promoção, também distribuía entre eles diversas graças
honoríficas. Dezesseis deles foram agraciados com títulos de
nobreza: eram barões, viscondes, condes, marqueses, e um chegou
a duque. Para selar essa dependência, não deixando dúvidas sobre
a origem da posição que ocupavam, é que foi baixado o decreto de
1789: ao alcançar as duas mais altas patentes do Exército, todos
esses oficiais recebiam a mercê de fidalgos da casa real.

Um esboço de tipologia
Destacar a importância da prestação de serviços à monarquia
pode dar a idéia de que esses serviços eram realizados
necessariamente na guerra, o que seria um equívoco. Uma leitura
dessas sínteses biográficas atenta aos recursos mobilizados pelos
generais para obter promoções ao longo de suas vidas permite
identificar três trajetórias possíveis na construção de uma carreira
militar: a do “combatente”, a do “técnico” e a do “administrador”.
Todavia, antes de prosseguir, vale registrar que, dada a falta de
formações burocráticas mais complexas, impessoais e
independentes de quem ocupava o trono, o nível de formalização
dessas trajetórias era muito baixo e o cumprimento delas não
bastava para garantir ao oficial sucesso na carreira.
Na categoria de “combatente” estou agregando as trajetórias
mais tradicionais, aquelas que se organizaram a partir dos campos
de batalha. Elas foram trilhadas por oficiais que aprenderam a ser
militares e ascenderam na hierarquia do Exército combatendo
rebeliões internas e defendendo a Coroa em conflitos internacionais.
Entre os generais de 1840, há dois grupos bem definidos. Um deles,
mencionado anteriormente, era composto de militares nascidos em
Portugal que conquistaram suas primeiras patentes nas campanhas
peninsulares. Ao embarcar para o Brasil, anos depois, seguiram
para o Sul, onde deram continuidade a suas carreiras. João
Crisóstomo Calado foi um desses oficiais. Nascido em Elvas, filho
de coronel do Exército, Calado assentou praça de cadete no 20o
Regimento de Infantaria português em 1795, com 15 anos de idade.
Na guerra de 1801 combateu os espanhóis e, terminada a
campanha, cursou as aulas de matemática de seu regimento. Em
1808, depois que a família real partiu para o Brasil, passou à
Espanha, onde algumas forças estavam sendo reunidas para
expulsar os franceses, e foi nomeado ajudante-de-ordens do
general espanhol d. Antônio de Arcé, servindo nesse posto com a
patente de tenente. Ainda sob o comando de d. Arcé, integrando a
divisão inglesa, fez toda a campanha até 1814, quando retornou a
Portugal como major. Recomendado ao governo por seu
comandante, foi remunerado com a cruz de São Bento de Avis e a
tença (pensão) correspondente. Após dois anos em Lisboa, o então
tenentecoronel Calado foi encarregado de organizar o 4o Batalhão
de Caçadores com o qual se apresentou para integrar a expedição
do tenente-general Lecór, com destino ao Brasil. Aí chegando,
marchou para a banda oriental do Uruguai. Por sua participação
nessa divisão, denominada “voluntários reais de el-rei”, obteve como
prêmio a condecoração da Torre e Espada. Aderindo à
independência e comissionado à Corte para dar notícias ao
imperador sobre as condições político-militares da região Sul,
recebeu sua primeira patente de oficial-general, tornando-se
brigadeiro. Com uma longa vida no serviço de Sua Majestade, ao
falecer, em 1857, João Crisóstomo Calado era fidalgo cavaleiro da
casa imperial, comendador da Ordem de São Bento de Avis e da
Imperial Ordem da Rosa, oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro e
cavaleiro da Torre e Espada. Fora também condecorado com a Cruz
da Campanha Peninsular da Europa e a Estrela de Ouro do Rio da
Prata, e nomeado conselheiro de guerra e marechal do Exército.
Os combates na região Sul também criaram oportunidade para
vários oficiais, nascidos no Brasil, darem provas de sua fidelidade à
Coroa. Alguns deles, integrantes das forças milicianas, por conta do
bom desempenho nessas lutas passaram ao Exército, tendo acesso
a altas patentes e a títulos nobiliárquicos. A trajetória de Antero José
Ferreira de Brito é nesse caso bastante expressiva. Nascido em
Porto Alegre, o jovem Antero alistou-se, aos 21 anos de idade, sem
distinção, nas antigas milícias da capitania do Rio Grande do Sul. A
invasão da Banda Oriental do Uruguai pelas forças imperiais em
1811 foi a primeira oportunidade que teve de prestar serviços à
Coroa. Por seu desempenho no comando de uma bateria, o
marechal Manoel Marques de Souza, a quem estava subordinado, o
nomeou tenente-secretário da legião de cavalaria. Iniciada a
campanha de 1816, por indicação do mesmo marechal, foi
promovido a capitão, passando a adido ao Estadomaior do Exército,
por ter sido na mesma ocasião também nomeado seu ajudante-de-
ordens. Nesse cargo, realizou toda a campanha de 1816 a 1820,
sendo, ao final deste último ano, elevado ao posto de coronel de
segunda linha e agraciado com sua primeira comenda, da Ordem de
São Bento de Avis. Em outubro de 1821, Antero de Brito, apoiado
pela Câmara e pelo vigário-geral de Porto Alegre, proclamou um
novo governo na cidade. Denunciado o golpe, ele foi preso,
submetido a uma comissão militar e enviado à Corte. A atitude
poderia comprometer seriamente sua carreira. Mas, diante dos
acontecimentos de 1822, da necessidade de apoio político do
primeiro imperador, sua prisão foi relaxada, e Antero de Brito teve
uma nova oportunidade para provar sua fidelidade à monarquia.
Para isso, compareceu à reunião do Campo de Santana — palco
dos principais acontecimentos políticos da época — e fez frente às
tropas da divisão lusitana. Por seu empenho, o imperador lhe
ofereceu uma outra ocasião de afirmar sua fidelidade à nova Coroa:
o nomeou para seguir em diligência a Montevidéu e o contemplou
com o hábito da Ordem Imperial do Cruzeiro. Regressando dessa
comissão, foi efetivado coronel e seguiu, em 1823, para a Bahia.
Aochegar à província, apresentou-se ao general Labatut e foi
designado para assumir o cargo de quartel-mestre general. Os
sucessos alcançados na expulsão dos portugueses lhe renderam a
mercê de moço da imperial câmara, permitindo que no ano seguinte,
em 1824, fosse lembrado para integrar a expedição do general
Francisco de Lima, destinada a combater os confederados de
Pernambuco. Seguia a expedição no mesmo cargo de quartelmestre
general. A adesão de outras províncias ao movimento criou nova
oportunidade: passou a comandante de armas da Bahia, um cargo
bemconsiderado entre os militares. Só então ingressou no Exército.
Executados os líderes confederados, voltou para Pernambuco,
assumindo o comando de armas da província em 1825 e nele
permanecendo, sem interrupção, até 1830. Em 1828, pelo êxito na
condução dos melindrosos negócios de Pernambuco, foi promovido
a brigadeiro. Ao longo desses anos acumulou várias outras mercês,
como o oficialato da imperial ordem do Cruzeiro e o dignitário da
mesma ordem, e tornou-se guarda-roupa honorário da imperial
casa. Até 1856, quando morreu no Rio de Janeiro, o general ainda
ocupou os cargos de ministro da Guerra, presidente das províncias
do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e vogal do Conselho
Supremo Militar, foi feito veador de Sua Majestade imperial, ganhou
a grã-cruz da Ordem de São Bento de Avis e, para coroar sua
carreira, recebeu o título de barão de Tramandaí.
A segunda trajetória era construída através da prestação de
serviços especializados, sobretudo de engenharia — daí o nome
“técnico”. Obviamente, ela exigia do oficial formação superior. Os
que chegaram ao Brasil na comitiva real foram privilegiados. Coube-
lhes a coordenação das inúmeras obras de infra-estrutura realizadas
na cidade, principalmente o levantamento de plantas, o
“ensecamento” e o nivelamento de terrenos. Esses oficiais quase
nunca seguiam em expedições militares e, mesmo quando
viajavam, só raramente participavam de combates ou faziam
trabalho de engenharia militar. Eles geralmente integravam essas
expedições para assumir a chefia do setor de obras públicas da
capital da região em conflito, trabalhando na elaboração de mapas
topográficos e administrativos das diversas províncias ou
escrevendo tratados fronteiriços. Enrique Isidoro Xavier de Brito, por
exemplo, apesar de todos os combates que ocorriam no Reino e
nas terras americanas, nunca participou de nenhuma deles,
alcançando mesmo assim a patente de marechal do Exército.
Nascido em Lisboa, em maio de 1782, Enrique Isidoro assentou
praça no Exército como cadete aos 14 anos. Aos 16, matriculou-se
na Real Academia de Guardas Marinhas. O curso lhe garantiu o
posto de segundo-tenente da Armada Real mas, como seu interesse
era obter o grau de engenheiro, em 1805, aos 23 anos de idade,
matriculou-se nas aulas de fortificação e desenho do Exército. Em
Portugal, só teve tempo de concluir seu curso. Com o avanço
napoleônico, embarcou com a comitiva real para o Brasil. Sua
carreira seria construída nos trópicos. Logo em 1808, recebeu uma
promoção: a patente de capitão do Real Corpo de Engenheiros.
Tendo sido criado o Arquivo Militar, lá exerceu sua primeira função
na nova corte. No ano seguinte, pelos serviços prestados no
arquivo, foi promovido a sargento-mor (major) e, dois anos depois,
em 1811, assumiu um cargo compatível com sua qualificação,
ficando encarregado das obras da Real Academia Militar, dos
quartéis de artilharia e do 3o Regimento de Infantaria, e do Hospital
Militar. Ao pôr fim às obras, em 1814, recebeu Imediatamente uma
promoção e ascendeu a tenente-coronel. A partir de então, dirigiria
várias obras militares da cidade, como as do forte de Caraguatá e
da fortaleza de São João, mas serviria também no levantamento de
plantas da região central da cidade: dos Sacos da Gamboa, do
Alferes e de São Diogo. Trabalharia ainda no nivelamento do Rio de
Janeiro, nas plantas do novo aqueduto do Maracanã e de todo o
terreno entre o Andaraí Grande e o Campo de Santana. Como
remuneração por esses serviços, foi efetivado, em 1818, no posto
de tenente-coronel. O trabalho seguinte foi prontificar o
aquartelamento do regimento de cavalaria miliciana na Quinta do
Macaco (Vila Isabel). Em 1823, sem ter tomado parte como militar
nas manifestações ocorridas em praças e ruas da corte, era
nomeado coronel. Em 1826, ingressava no generalato — tornava-se
brigadeiro. Até seu falecimento, em 1853, assumiria ainda o cargo
de presidente da Diretoria de Obras Públicas do Rio de Janeiro e,
por todos os serviços prestados a Sua Majestade, foi elevado a
marechal-de-campo e fidalgo cavaleiro da casa real.
A terceira trajetória — a do “administrador” — é a que mais se
afasta da imagem que fazemos de um militar. Há no grupo dos
generais de 1840 oficiais sem formação acadêmica e com atuação
militar inexpressiva. Eles construíram toda a sua carreira na
administração real, ocupando cargos na administração militar (na
Academia Militar, no Arquivo Militar ou na administração de quartéis
e fortalezas) e servindo por vezes — isso é o mais curioso — em
funções completamente alheias ao Exército. José de Oliveira
Barbosa, como vários outros jovens dessa geração, assentou praça
de cadete no Regimento de Infantaria do Rio de Janeiro. Nessa
época, em 1775, contava 22 anos. Seu avô havia erguido o nome
da família, bastante prestigiada no interior da província, através do
serviço militar, como governador da fortaleza de São João da Barra,
e José Barbosa seguia seus passos. Mas sua trajetória, ao contrário
das descritas anteriormente, se limita a alguns poucos cargos.
Segundo a síntese biográfica escrita por Pretextato Maciel, até a
patente de capitão, o único posto que José Barbosa ocupou foi na
guarnição da ilha da Trindade. Em 1792, tendo voltado para o Rio
de Janeiro, passou a servir como primeiro-substituto da aula de
artilharia, lugar que ocuparia por vários anos, acumulando-o, a partir
de 1795, com o serviço na Companhia de Bombeiros. Foi pela
prestação desses serviços que Sua Majestade o nomeou, em 1798,
lente da aula do regimento de artilharia da capital. Ainda por esses
mesmos serviços, cinco anos depois, em 1803, recebeu nova
promoção, sendo nomeado coronel e cavaleiro da ordem de São
Bento de Avis. A chegada da família real abriu novas possibilidades
a José Barbosa. Por decreto do príncipe regente recebeu a patente
de brigadeiro e, no ano seguinte, em 1809, foi nomeado governador
do reino de Angola. Nesse cargo permaneceu por seis anos, de
1810 a 1816. Retornando ao Brasil, assumiu a chefia da divisão da
Guarda Real de Polícia. A partir de então, só ocuparia cargos
políticos, tendo sido vogal do Conselho Supremo Militar, conselheiro
de Guerra e, já no reinado de d. Pedro I, ministro da Guerra. Ao
morrer, em 1846, possuía uma posição respeitável na corte. Era
marechal do Exército, fidalgo da casa real, comendador da ordem
de São Bento de Avis, barão do Passeio Público e visconde do Rio
Comprido.
Todas essas trajetórias podiam levar ao generalato. Daí a
dificuldade de se traçar um perfil do grupo. O Exército brasileiro da
primeira metade do século XIX ainda era uma força de Antigo
Regime, um bem da Coroa. É certo que alguns elementos
favoreciam a ascensão na carreira. O prestígio da família, o título de
cadete, o diploma de um curso matemático sempre ajudavam. Mas
nada disso era decisivo. Até porque cada súdito devia reafirmar o
“merecimento” e a “honra” da família através de novas
demonstrações de fidelidade, prestando novos serviços. Isso exigia
uma constante circulação regional,11 a articulação de novas alianças
e a atualização de sua herança familiar. Essa lógica da prestação de
serviços impedia assim que algumas famílias se tornassem
independentes do monarca, monopolizando os altos postos do
Exército. Só o fariam caso se submetessem à autoridade real. Por
isso a dedicação à política era intensa, inclusive à política formal.
Mais da metade dos generais de 1840 ocupou cargos políticos de
projeção nacional, o que sem dúvida estreitava mais ainda o vínculo
com a Coroa — integravam a elite política imperial. Na verdade,
através do monopólio da distribuição de mercês e patentes, a Coroa
tinha um bom controle sobre a composição do generalato. A
unidade interna do grupo era frágil. Eles não integravam um corpo
profissional de oficiais militares — eram homens de corte.
Essa tradição militar portuguesa só começa a ser alterada no
ano de 1850, quando o ministro da Guerra Manoel Felizardo de
Souza e Melo regulamentou a promoção na carreira. O critério
definido pelo decreto datado de 6 de setembro era baseado na
antigüidade e no mérito. A idéia era impedir que oficiais muito jovens
atingissem altos postos de comando e incentivar a formação
acadêmica. O diploma da Real Academia Militar tornava-se pré-
requisito para todos os oficiais que pretendessem seguir carreira
nas armas de engenharia, artilharia e estado-maior. Dos infantes e
cavalarianos não se exigia diploma, mas este funcionaria como
critério de desempate no caso de haver oficiais com o mesmo tempo
de serviço concorrendo a uma promoção. Tudo isso, no entanto, vai
ser instituído de forma muito lenta. Não só porque não havia um
número de oficiais com formação capaz de permitir a implantação
imediata da lei, mas sobretudo porque esta ia de encontro a uma
tradição que havia formado gerações de militares e que, dessa
forma, fundamentava o prestígio e a posição de importantes famílias
da corte do segundo imperador.

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* Doutora em história pela UFRJ; professora do Centro Universitário Bennet.


1 McBeth (1972, 1987) desenvolveu um trabalho pioneiro utilizando essa
mesma fonte.
2 Os primeiros autores a apontar esses traços no Exército brasileiro foram
Carvalho (1978) e Schulz (1994). Ver também Souza (1999).
3 A fonte central é o livro de Maciel (1906/07). Mas, para obter maiores
detalhes sobre a trajetória desses oficiais, também foram consultados Sousa
(1963) e Sisson (1999).
4 O conceito foi formulado por Loriga (1996).
5 Ver Falcon (1982).
6 Essa imagem se encontra dispersa na bibliografia sobre o tema. Ver, por
exemplo, Costa (1998).
7 Ver Ribeiro (1871). Para a Real Academia do Rio de Janeiro, ver Mota
(1998). Sobre o Real Colégio dos Nobres, ver Aguilar (1935).
8 Castro, 1990:106.
9 Para uma visão histórica da profissionalização da oficialidade do Exército,
ver Huntington (1996) e Vagts (1959). Sobre o Exército nas primeiras décadas
do século XIX, ver Kraay (2001).
10 A expressão é título do livro do antropólogo Celso Castro (1990), referência
obrigatória para quem pretende estudar o atual processo de socialização
profissional dos oficiais do Exército brasileiro. A criação desse militar técnico,
rigorosamente disciplinado, integrante de uma corporação, ainda era objeto
de discussão no Brasil da década de 1930. Ver também Castro (2002),
sobretudo a parte referente a José Pessoa e a reforma da Escola Militar.
11 Sobre a importância da circulação regional para a análise da formação da
elite política imperial, ver Carvalho (1981). Para a análise da formação do
Estado imperial, ver Mattos (1990). Ambos destacam em seus livros os traços
de continuidade de uma certa cultura política portuguesa na formação do
Estado imperial brasileiro, mas o primeiro particulariza o peso da burocracia
militar.
CAPÍTULO 7

Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra


do Paraguai*

Vitor Izecksohn**

No dia 14 de novembro de 1867, José Jobim, um respeitado


morador do Engenho Novo, escreveu a seu amigo Tomás Gomes
relatando as desventuras de um de seus escravos domésticos.1 Pela
carta ficamos sabendo que, alguns meses antes, Jobim fora ao
mercado de escravos do Valongo para substituir uma cozinheira
recém-libertada que o havia servido por mais de 20 anos.2 Lá mostrou
interesse por uma mulher negra, procedente do distrito de São
Marcos, fronteira entre as províncias do Rio de Janeiro e Minas
Gerais, e que trazia boas referências. Parece que durante o leilão
estabeleceu-se uma negociação entre Jobim e a mulher que ele
pretendia comprar, porque ela pôde incluir na transação seus dois
filhos, uma moça e um cabra, de cerca de 18 anos, chamado Carlos.
Ao todo, os três escravos custaram ao redor de dois contos e 800 mil-
réis, sendo um conto e 800 mil-réis pela nova cozinheira e Carlos, e
um conto pela filha dela.
Logo após chegar à residência do sr. Jobim, Carlos tornou-se fonte
de mal-estar. De acordo com a carta, além de mentir e roubar, ele
provocou várias das mulheres escravas, o que causou grande
ressentimento entre os outros criados. Carlos também foi acusado por
ausentar-se do trabalho constantemente. Nessas ocasiões, ele teria
encorajado outros escravos a saírem às ruas para, armados com
ferros, se unirem a “turbas desordeiras”. Quando Carlos finalmente
jogou o carro de bois de seu senhor contra o muro, este decidiu
“vendê-lo” ao Exército, como soldado para a Guerra do Paraguai.3
A carta não revela o destino dado à cozinheira nem o que ocorreu
com sua filha; sabemos apenas que a mãe protestou tanto quanto
possível contra o alistamento de seu filho, chegando a envenenar a
comida de Jobim. Mas outra escrava leal (ou possivelmente mais
rancorosa em relação a Carlos) a denunciou antes que a comida
fosse consumida pelo senhor. Posteriormente ela fugiu de casa e
denunciou seu dono à polícia, alegando maus-tratos. Essa queixa
parece não ter surtido nenhum efeito, pois um “pedestre” a trouxe de
volta à residência senhorial, onde permanecia aguardando sua venda.
Carlos foi entregue às autoridades militares. Nesses casos, o
procedimento normal era que os escravos fossem primeiro
inspecionados e depois simultaneamente libertados e entregues ao
Exército ou à Marinha. Assim, na prática, as forças militares não
estariam recrutando escravos, mas indivíduos recém-libertados, que
eram doados por seus senhores, um caso extremo de alforria
condicionada. A complexidade do processo poderia sugerir um grau
excessivo de dificuldade, mas o elemento determinante, tal como
ficará claro a seguir, era o interesse senhorial no alistamento, que em
geral definia todo o andamento posterior.4

Percalços
Quando inspecionado para o recrutamento, Carlos declarou ao
comitê de seleção militar ser um escravo “quebrado”, sem condições
de saúde para servir ao Exército. Parece que a declaração era
verdadeira porque, após uma breve inspeção, o comitê aceitou a
palavra de Carlos e recusou-se a aceitá-lo como recruta por
incapacidade física.5 O infeliz sr. Jobim percebeu que tinha sido
enganado duas vezes: primeiro pagando um preço excessivo por um
indivíduo fisicamente debilitado; depois, ao comprar um escravo
problemático, que seria difícil passar adiante. Em desespero, decidiu
enviar seu escravo para a casa Guerra e Ribeiro, em Piraí,
provavelmente com o intuito de vendê-lo como trabalhador para um
dos cafezais da região, de preferência para um outro senhor tão
desavisado quanto ele mesmo fora. Mas Carlos não tinha nenhuma
intenção de trabalhar em fazendas e escapou enquanto era
transportado para o vale. Após uma série de curtas detenções,
seguidas de novas fugas, enquanto ele tentava voltar à cidade do Rio
de Janeiro, Carlos foi finalmente capturado pela polícia da Corte.
A narrativa sugere alguma conexão entre a polícia e os caçadores
de escravos, porque Jobim foi notificado da captura final de Carlos
não pelas autoridades policiais, mas pelo dono do mesmo mercado de
escravos da rua da Saúde, onde o fugitivo fora originalmente vendido.
Este negociante contava com boas conexões, envolvendo a polícia e
as autoridades militares, e dizia saber como fazê-lo passar na
inspeção, “pois até tinha passado pretos de cabelos brancos, fazendo-
lhes raspar a cabeça e pondo-lhes cabeleira”. Assim pôde ele
finalmente alistar Carlos no Exército, evitando as restrições médicas
que haviam impedido anteriormente o recrutamento. Carlos foi
vendido à nação por um conto e 400 mil-réis, o que significava um
preço alto para um escravo de condição física precária. Jobim
recuperou seu investimento original, enquanto os intermediários
receberam 400 mil-réis como comissão pela venda. O senhor de
escravos e os agentes comerciais puderam então proclamar seu
patriotismo, porquanto se associavam aos esforços do governo para
ajudar a defender a nação adquirindo libertos, ao mesmo tempo em
que se livravam de um escravo indesejável. Ao que parece a
transação dessa vez contou com a colaboração ou pelo menos o
silêncio de Carlos, pois não houve novos obstáculos médicos a seu
alistamento. O traficante afirmou que o cabra havia sido
“engambelado com a liberdade”, pois recebeu algum dinheiro para
ocultar a sua condição física. A nação pagou a conta.6

Conexões
Esta história picaresca vai além da mera descrição das
dificuldades de Jobim com seus escravos ou do esforço por ele
empreendido para salvar sua reputação na “boa sociedade” da Corte
e da província do Rio de Janeiro.7 Ela conecta os problemas
relacionados ao tráfico negreiro na década de 1860 às circunstâncias
do recrutamento de brasileiros escravos, libertos e livres para a guerra
contra o Paraguai. Oferece, pois, uma oportunidade para analisar as
relações entre o Estado imperial e os representantes dos poderes
privados, considerando as grandes mudanças em relação à condução
da guerra, ao recrutamento e à ampliação do Exército. Fornece ainda
um quadro realista do papel fundamental das relações pessoais em
todos os setores de sociedade imperial. Finalmente, oferece evidência
impressionante do modo ambíguo pelo qual os esforços de guerra e
as políticas de emancipação estiveram unidos durante os anos 1860
no Brasil.
Não devemos, entretanto, nos deixar levar apenas pelas razões do
sr. Jobim, cuja história parece confirmar um dos estereótipos mais
comuns sobre a guerra: o de que o Estado imperial pagou preços
altos por encrenqueiros que reembolsaram seus proprietários e
enriqueceram os intermediários. A campanha contra o Paraguai foi
ampla demais para ser circunscrita a uma única experiência, ainda
que típica, do comportamento de um grupo. Do ponto de vista que nos
interessa, a trama envolvendo o fazendeiro e seus escravos ilustra,
sobretudo, um problema facilmente perceptível durante o terceiro ano
da guerra: a baixa capacidade dos agentes do Estado para obter os
recrutas, fossem homens livres ou libertos, necessários ao
reabastecimento de forças militares estacionadas no sul do Paraguai.
De fato, o Estado falhou na tentativa de criar uma “cooperação
compulsória”, essencial à formação de uma identidade coletiva que
fosse estabelecida através do reconhecimento de laços comuns entre
todos os cidadãos. Foi esta debilidade que levou o Estado a comprar
libertos e aceitá-los, mesmo quando se encontravam fora das
condições ideais.8
Essa narrativa não pode ser considerada padrão para todo o longo
período em que foi feita a mobilização militar do país. O caso do
escravo Carlos é uma peça no intrincado quebra-cabeça das
motivações que levaram milhares de habitantes da província ao
recrutamento, alguns voluntária, outros involuntariamente.
Este capítulo analisará o impacto do recrutamento militar sobre a
província do Rio de Janeiro durante o período compreendido entre
janeiro de 1865 e junho de 1868. O Rio de Janeiro foi escolhido por
suas peculiaridades e também pela ausência de estudos mais
detalhados sobre o impacto do recrutamento sobre a vida provincial.9

Dados gerais sobre o recrutamento e a província


Durante boa parte do século XIX o recrutamento militar foi
dificultado por forças locais e por um complexo sistema de isenções
legais que impedia o alistamento de vários setores. Essa lógica devia-
se à fraqueza estrutural da burocracia e ao caráter localista do
recrutamento. O pequeno Exército imperial centrava o recrutamento
naqueles que não contavam com a proteção de alguma pessoa
influente que as pudesse isentar daquele serviço. Desocupados,
potenciais criminosos e desempregados eram os principais alvos dos
recrutadores. Durante a maior parte do século XIX o serviço militar era
considerado uma atividade brutal e perigosa, adequada apenas aos
indivíduos considerados socialmente indesejáveis. Assim, os
governos provincial e central não tinham autonomia para recrutar nas
localidades, dependendo da boa vontade dos chefes locais, que
procediam à seleção dos recrutas segundo as conveniências políticas
regionais.10
Na década de 1860, a província fluminense abarcava algumas das
áreas mais ricas da agricultura, tais como a região cafeeira do vale do
Paraíba e a região de Campos dos Goitacases, principal centro do
cultivo da cana-deaçúcar. Como a mais rica das províncias imperiais,
centro da produção cafeeira e base de extensa população escrava, a
província era central para o esforço de guerra. Da sua densidade
populacional, livre e escrava, o governo central esperava uma
contribuição efetiva ao esforço nacional no Prata.11
A província do Rio de Janeiro apresentava-se como campo
potencialmente fértil para o recrutamento, não apenas devido à sua
numerosa população (tomados os padrões do Império como um todo),
mas também em razão da proximidade da Corte, o município neutro
do Rio de Janeiro. A proximidade com a capital do Império
possibilitava, em tese, tanto uma eficácia maior nas demandas do
recrutamento quanto uma supervisão melhor dos recrutas alistados,
um problema por vezes mais sério que a própria reunião de novas
tropas.12
Em 1864, Perdigão Malheiro calculou que a província tinha cerca
de 300 mil escravos, representando aproximadamente 17,5% do total
da população cativa do país.13 Uma década mais tarde, o censo de
1872 revelaria dados mais confiáveis sobre a distribuição populacional
e as relações entre populações livre e escrava na província:

Tabela 1
Populações livre e escrava do Rio de Janeiro, 1872

Fonte: Censo de 1872, coligido em Alencastro (1997:479).

A província do Rio de Janeiro era, segundo os dados, a terceira


mais populosa do Império, ficando atrás somente de Minas Gerais e
Bahia. No entanto, a proporção entre os escravos e a população livre
era a mais alta: 32,3% do total, contra 27,6% no Espírito Santo, 20,9
% no Maranhão, 18,2% em Minas Gerais e 12,2% na Bahia. O mesmo
censo mostrava que a população preta e parda da província
(abarcando escravos, libertos e livres de cor) alcançava 56,1%.
Temos, portanto, uma situação na qual a presença de escravos, de
indivíduos forros e de pessoas livres de cor era muito forte, ainda que
o percentual de pessoas nascidas na África viesse decrescendo
consideravelmente desde a interrupção do tráfico internacional, em
1850.14

Os presidentes e a estabilidade provincial


Durante os cinco anos e quatro meses de duração da guerra, a
província foi governada por seis presidentes. O período médio das
administrações foi de nove meses e 24 dias. Mas deve-se levar em
conta que alguns presidentes constantemente se ausentaram, por
motivos de saúde ou necessidade de assumir cadeiras no Parlamento
e no Senado, deixando a administração da província a cargo do vice-
presidente, circunstância que reduziria ainda mais o tempo de
exercício da presidência. Trata-se de período curto, quando
comparado ao dos atuais governadores de estado. Mas devese levar
em conta a ausência de estrutura federal, tornando a atividade
administrativa provincial totalmente dependente das prioridades dos
gabinetes ministeriais. Leve-se em conta, também, que mesmo os
ministros de Estado tiveram uma permanência média de 13 meses e
meio durante o período monárquico. A forte rotatividade não
constituiu, necessariamente, sinal de instabilidade.15
A consolidação da ordem monárquica, a partir da década de 1840,
constitui um marco para a retomada das intervenções diplomático-
militares no Prata. Essa “política de missões” delegava um peso maior
ao Rio Grande do Sul, como núcleo guerreiro por excelência da
política externa imperial. Mas a Guerra do Paraguai diferiu de outros
conflitos platinos não apenas em relação a sua duração. Ela constitui
uma situação sem precedentes na história das disputas entre Estados
nacionais na América Latina por ser a mais catastrófica da história do
continente.16 Durante mais de quatro anos, cerca de 139 mil soldados
foram alistados, por vontade própria ou pela força, no Exército
imperial.17 A sociedade riograndense não poderia arcar sozinha com
um esforço dessas proporções, o que foi reconhecido por um
recrutador local ao afirmar que “o medo [do recrutamento] afogou o
patriotismo”.18 O esforço de guerra levou a uma redistribuição da
escala de sacrifícios, implicando a nacionalização do recrutamento e
levando os presidentes a requerer cotas de recrutas maiores do que o
normal.

Tabela 2
Presidentes da província do Rio de Janeiro, 1864-70
Fonte: Javari (1962:445).

Na sua qualidade de agentes do governo central os presidentes


exerciam a delicada função de mediar entre as necessidades do
Império e as prioridades dos fazendeiros e outros grupos importantes
no nível local. O Rio de Janeiro não fugiu à regra, e os relatórios
produzidos pelos vários presidentes demonstram os limites dessa
negociação. Como será visto a seguir, os presidentes foram por
demais sensíveis aos interesses senhoriais e à resistência das
localidades, contribuindo para os resultados pouco alvissareiros do
recrutamento militar no período da guerra.

Mobilizando a província
A partir de janeiro de 1865, o presidente do Rio de Janeiro,
Bernardo de Souza Franco, procurou mobilizar a província, dando
ampla publicidade tanto à criação dos batalhões de voluntários da
pátria quanto aos decretos concedendo perdão aos soldados que
tivessem desertado em período recente. Enquanto a anistia aos
desertores não constituía novidade, a criação dos voluntários
procurou tornar o Exército uma instituição aceitável para brasileiros de
todas as extrações sociais, abrindo a instituição para indivíduos
socialmente mais valorizados. A província do Rio de Janeiro
respondeu muito bem a essa iniciativa pois, nos três primeiros meses,
cerca de 2.500 voluntários se apresentaram nos diferentes
municípios, muitos diretamente na Corte.19
Os primeiros esforços para a guerra, apesar da grande
desorganização, haviam contado com a adesão de vários setores da
população e recebido forte publicidade na imprensa. Nos “a pedidos”
dos jornais foram documentados vários desses “donativos patrióticos”.
O senador José de Araújo Ribeiro ofereceu ao governo imperial sua
pensão anual como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário
aposentado, enquanto durasse o conflito. O diretor de uma gráfica
ofereceu-se para redigir memorandos e requerimentos aos parentes
daqueles que tivessem partido para o Sul. Um médico de Niterói
ofereceu-se gratuitamente para cuidar das famílias de oficiais e
praças residentes na freguesia do Sacramento. A comissão que havia
sido encarregada da subscrição para o armamento nacional, por
ocasião da crise diplomática com a Inglaterra (conhecida como
Questão Christie), transferiu a quantia arrecadada para as despesas
com a guerra.20
No que se refere à mobilização popular, as evidências também
impressionam. O recrutamento correspondeu às expectativas iniciais,
envolvendo indivíduos normalmente alheios a esse tipo de atividade.
A província organizou em poucas semanas dois batalhões de
voluntários (5o e 8o), além de ter enviado ao Prata mais de 500 praças
e oficiais do corpo policial. Numa expectativa realista, esse esforço
seria suficiente e mesmo inédito, uma vez que envolveria grupos
sociais normalmente alheios ao recrutamento militar. O 8o Batalhão de
Voluntários contava inclusive com dois filhos do juiz de direito da
comarca de Campos. De Campos vieram também 412 voluntários,
custeados por verbas municipais. Num arroubo de entusiasmo, o
Diário do Rio de Janeiro chegou a afirmar que “não faltam brasileiros
ao reclamo de sua pátria”.21
A mobilização das primeiras semanas seria importante sobretudo
para garantir a continuação da guerra nos meses que se seguiram. O
entusiasmo dos primeiros voluntários constituiu um fato certamente
notável no processo de ampliação do Exército e precisa ser melhor
considerado. Mas o entusiasmo inicial não conseguiu resistir à
procrastinação das operações e ao despreparo da estrutura
administrativa, que prolongaram a campanha muito além das
expectativas iniciais, sem contar, é claro, a resistência paraguaia. A
compreensão da longa duração da guerra tornou menor ainda a
disposição para servir, pois poucos aceitariam afastar-se de suas
localidades por período prolongado. Uma charge do jornal O Alecrim
(21-7-1867) capturou bem esse estado de ânimo. Um professor diz
aos seus alunos: “agora, meninos, estudai bem. Daqui a 20 anos
sereis homens e podereis ir ao Paraguai terminar esta guerra, que já
vai tão longa!”.
Nenhuma província apresentou maior contraste entre as duas
ondas iniciais do recrutamento que o Rio de Janeiro. A primeira onda
de voluntários mostrou que a base do recrutamento era inicialmente
espontânea, ao contrário portanto das mobilizações tradicionais,
baseadas em recursos coercitivos, como a utilização da polícia:
Durante a primeira onda de recrutamento (dezembro 1864 a maio
de 1865), 82% dos alistados vieram de grupos voluntários. Confiante
no suprimento contínuo de recrutas, o governo provincial chegou
mesmo a dispensar os serviços de 925 guardas nacionais, do total
dos 1.384 requeridos previamente. Essa decisão levava em conta o
grande número de voluntários alistados nos primeiros meses, bem
como a expectativa de uma guerra curta. Logo, essa decisão se
mostraria precipitada, porque a segunda onda do recrutamento (maio
a setembro de 1865) mostrou uma queda de 43,1% no número total e
de 80,1% na parcela da contribuição voluntária. Naquele momento os
grupos não-voluntários, incluindo aqueles que haviam desertado
durante o primeiro chamado, estavam provendo 72,3% das tropas.

Tabela 3
Recrutamento na província do Rio de Janeiro, 1865
Fonte: Relatórios da Província do Rio de Janeiro, maio e set. 1865

Ajustando as instituições
Nos meses e anos seguintes o voluntariado continuaria afluindo,
mas o ritmo de alistamento proveniente desta categoria diminuiria
muito. Essa constatação parece ter impressionado as autoridades
provinciais, que se tornaram cada vez mais céticas quanto à
contribuição voluntária. A deficiência no suprimento de novos
voluntários fez da cooperação dos chefes locais (fazendeiros,
comerciantes e funcionários públicos) um elemento fundamental para
o sucesso do recrutamento, pois a designação da Guarda Nacional
passou a ser vista como a principal alternativa para suprir as cotas da
província. Essa cooperação também era importante no que se refere a
condições particulares de infra-estrutura, especialmente hospedagem,
alimentação e transporte dos recrutas, que o Exército não podia
executar sozinho, devido a uma série de circunstâncias. Nos relatórios
provinciais as autoridades constantemente apelam para o patriotismo
dos comandantes da guarda, contando com a sua ajuda para
coordenar a designação de novos contingentes. O marquês de Olinda,
presidente do Conselho de Ministros, demonstrou o tipo de
compromisso que o governo esperava dos chefes da guarda numa
carta endereçada a um grande fazendeiro fluminense:
A manifesta deficiência do nosso Exército e a necessidade urgente
de aumentá-lo e abastecê-lo de forma conveniente (…) obrigam o
governo a chamar os fazendeiros e agricultores para demandar o
seu auxílio para o recrutamento de voluntários para o Exército (…).
Sua excelência é um desses fazendeiros cujo patriotismo é
necessário ao governo imperial. Por si mesmo, ou em associação
com outros fazendeiros, o senhor pode fazer sentidos os reclamos
da pátria ultrajada, executando a gloriosa comissão que o governo
imperial lhe designa.22

Inicialmente a Guarda Nacional deveria contribuir, na totalidade do


Império, com 14.796 praças, designadas para servir no país e no
exterior. Destas, a província do Rio de Janeiro ficaria incumbida de
destacar 1.384, ou seja, 9,3% do total da contribuição nacional. Ainda
em 1865, o governo imperial exigiu da província mais 926
designações. Por fim, mais 600 guardas seriam ainda demandados
em 1867, totalizando a requisição de 2.910 indivíduos.23 Os dados
sobre a força permanente em tempo de paz são precários. O relatório
do Ministério da Justiça de 1866, segundo ano da guerra, apontou o
seguinte contingente da força ativa, descontando-se a reserva, da
província do Rio de Janeiro:

Tabela 4
Distribuição dos contingentes da Guarda Nacional da província do Rio
de Janeiro segundo as armas
Cavalaria 4.237
Artilharia 464
Infantaria 25.432
Total 39.829
Fonte: Relatório do Ministério da Justiça, 1866.

A força exigida no período mais severo do recrutamento, o


primeiro semestre de 1867, corresponderia a 7,3% do contingente
ativo da corporação. A ampliação dos contingentes fez-se necessária
em face das baixas ocorridas em função das doenças, das deserções
e das perdas em combates, destacandose a batalha de Curupaiti e
toda a campanha do Quadrilátero a sua volta. Ficou claro então que o
governo paraguaio não iria se render, mesmo em face da absoluta
superioridade dos Tríplice Aliados. Como uma boa parcela da
população guarani manteve-se ao lado daquele governo, a opção de
levar a guerra até o final demandou um aumento significativo das
forças em operações para a conquista e ocupação do território do
Paraguai.24
Desde o começo da guerra, a transferência dos guardas nacionais
foi um sério obstáculo ao esforço recrutador. Durante a primeira leva o
governo provincial prescindiu da designação, acreditando que esta
seria comutada em função da grande afluência de voluntários. Mas,
através da circular de 24 de maio de 1865, os comandantes
superiores receberam ordens para ativar o recrutamento dos guardas.
A partir daquele momento os relatórios provinciais estão repletos de
descrições sobre a má vontade dos comandantes e dos guardas
nacionais designados. À medida que diminuíam os suprimentos de
soldados voluntários, o esforço recrutador do governo provincial
concentrou-se na transferência desses guardas, criando conflitos com
os comandantes superiores, políticos e juízes de paz, que
interpunham vários obstáculos para evitar que a designação se
cumprisse. Esse esforço chocou-se com as condições tradicionais da
barganha política que haviam prevalecido até aquela época, tornando
os contatos entre oficiais do Império e chefes locais mais tensos, em
vista da aparentemente permanente escassez de soldados. Chocou-
se também com a epidemia de cólera, que grassou na província entre
o segundo semestre de 1866 e o inverno de 1867, criando uma fonte
adicional de mal-estar.
Os presidentes da província eram estimulados pelo ministro da
Guerra a pressionar os comandantes da Guarda Nacional para que
enviassem o maior número possível de recrutas, mas algumas vezes
eles acabavam tendo que justificar o comportamento pouco
cooperativo dos comandantes. Souza Franco tentou inicialmente
justificar a leniência da guarda a partir de quatro fatores: a) a
desorganização da maioria dos corpos; b) a coincidência entre
guardas nacionais e voluntários da pátria já alistados; c) o grande
número de isenções legais; e d) o absenteísmo de alguns
comandantes.
O mesmo presidente aconselhava a paralisação do recrutamento
em grande escala naqueles municípios e freguesias que já
houvessem contribuído com número avultado de recrutas, pois
acreditava que a continuidade aumentaria o ressentimento,
prejudicando as atividades econômicas. Opunhase também à
utilização de “escoltas” para trazer os guardas nacionais, ressaltando
que nos municípios de Parati, Vassouras, Barra de São João e
Resende o recrutamento forçado, além de não cumprir os objetivos,
ainda levara ao inconveniente da retirada de vários indivíduos para as
matas. Aconselhava, por fim, que se poderiam esperar ainda
melhores resultados se o “recrutamento ordinário” se concentrasse
naqueles “indivíduos que, sem isenções legais, não fazem falta aos
serviços da agricultura e das indústrias”.25

Uma deplorável escassez


Era difícil definir quem não possuía isenções legais. Empregados
públicos, comerciários, arrimos de família, funcionários do telégrafo,
membros da reserva da Guarda Nacional, empregados dos arsenais,
comerciários, todos podiam apresentar as mais variadas razões para
serem dispensados. Este parece ter sido o caso de Antônio José
Diniz, 26 anos, pardo, solteiro, morador da freguesia do Sacramento e
membro da 5a Companhia do 17o Batalhão da Guarda Nacional,
sediada em Cantagalo. Antônio José foi recrutado à força junto com
Marciano José Antunes no distrito de Sumidouro, no dia 19 de
dezembro de 1866. A “prisão” foi efetuada pelo subdelegado daquela
localidade, que remeteu imediatamente os dois recrutas para Niterói.
Para tentar livrar o subordinado do recrutamento, seu comandante
imediato intercedeu junto ao presidente da província em favor de
Antônio, alegando, com documentos expedidos pelo juiz de paz e por
um médico local, tratar-se de “arrimo de pai enfermo”.
Seguiu-se um longo debate sobre a classificação social de Antônio
José. O subdelegado afirmou não ter o recrutado alegado
“circunstância alguma que o eximisse do recrutamento” e ser o
mesmo “sem domicílio e autor foragido, fugindo do serviço público
quer como guarda nacional, quer para o serviço do Exército ou
Armada”. Dessa forma, o subdelegado julgava estar executando as
ordens do chefe de polícia quanto aos indivíduos que deveriam ser
selecionados para compor o Exército e a Armada, por “incorrigíveis e
rebeldes”. Em resposta, o comandante do destacamento apelou para
argumentos de caráter mais funcional, que deviam fazer bastante
sentido em face das preocupações da presidência da província:

Vossa Excelência bem pode avaliar o desgosto e desânimo que


acarretaria ao batalhão, nesta ocasião, em que os guardas têm-se
prestado com porfia ao serviço e que há três meses dá os
destacamentos completos para o município além das forças
extraordinárias que têm sido requisitadas pelas autoridades
policiais, se com efeito, o governo ou a autoridade a quem
competir for surda ao reclamo que, na qualidade de comandante
do dito batalhão, eu dirijo a Vossa Excelência, de quem tudo
espero, atendendo a que Vossa Excelência na categoria de meu
digno comandante superior tem todo o direito de exigir a soltura do
mencionado guarda.26

Mas alguns indivíduos tinham mais dificuldades do que outros para


evitar o serviço. O guarda que desse por si uma pessoa idônea para
servir no Exército estava isento tanto do recrutamento quanto do
serviço da Guarda Nacional. Algumas vezes o processo de
substituição era feito pelos próprios comandantes, sem o
consentimento dos seus subordinados. Aqueles que não contavam
com alguma forma de proteção, mesmo pertencendo ao contingente
da Guarda, podiam se tornar então alvos da designação. No 7o
Batalhão de Infantaria de Rio Bonito, uma das localidades mais
refratárias ao recrutamento, o comandante deixou um depoimento
sobre os critérios utilizados na designação de substitutos. Este oficial
superior apresentou o soldado João Pereira Jr. como substituto de
outro guarda que conseguira isenção legal. As razões da dispensa do
primeiro não são conhecidas, mas ficam claras as características que
valeram ao segundo a designação para a guerra, pois sua descrição
inclui muitas das características atribuídas aos indivíduos
considerados socialmente indesejáveis:

O seu comportamento como guarda e como particular é péssimo.


Casando-se há dois anos mais ou menos, para furtar-se ao
recrutamento, abandonou no fim de oito dias a sua mulher, que por
seu turno procurou outro protetor, e no tempo decorrido de então
para cá vivia da rapina e refugiado pelas matas. Tendo a
convicção de ser mais cedo ou mais tarde capturado como recruta,
ou designado para o serviço da Guarda, ainda cometeu uma
infâmia, decepando calculadamente, e com o fim de mutilar-se
para aquele mister, o dedo índice da mão direita. A mutilação está
porém completamente sã, e sendo ele em todos os mais sentidos
perfeitamente apto para o serviço a que é destinado, esse
comando pede a Vossa Excelência, a bem da disciplina, e para
mostrarse como um exemplo frisante que nada aproveitam as
decepções ou mutilações de membros, que haja dar-lhe o destino
que merece a sua covardia para que não tenha imitadores.27

Não há dúvidas de que os designados procuravam evadir-se do


serviço escondendo-se nas matas ou recorrendo a meios mais
dramáticos como o casamento e a automutilação. Mas a forma mais
comum para um guarda nacional escapar à designação era mesmo a
proteção de um oficial superior ou de alguma notabilidade local. A
rede de relações pessoais foi sempre um meio muito mais efetivo que
a rebelião ou a fuga. Foi nesses casos que geralmente ocorreram os
conflitos entre os delegados encarregados do recrutamento e os
comandantes que administravam as tropas da guarda. Uma
peculiaridade da província do Rio de Janeiro foi o pouco sucesso dos
representantes do Estado imperial nesses confrontos, circunstância
que explica a inexistência de movimentos de sublevação e o número
muito pequeno de ataques às cadeias.
O presidente da província procurou justificar o arrefecimento do
entusiasmo por meio da composição demográfica da província, do alto
número de estrangeiros (majoritariamente portugueses) e escravos,
argumentando que a disponibilidade de homens livres seria
insuficiente para atender à demanda do governo:

Quem atender quão avultada é nesta parte do Império a população


estrangeira e a escrava, reconhecerá que a província do Rio de
Janeiro tem pago generosamente a dívida, merecendo com justiça
ser colocada entre as irmãs que mais sacrifícios têm feito para a
atual guerra.28

Mas a dificuldade para obter recrutas não parece ter estado, em


qualquer momento, relacionada à composição heterogênea da
população. No vale do Paraíba deu-se um conflito que exemplifica a
peculiaridade da situação e a difícil tarefa imposta aos agentes do
governo. No dia 5 de dezembro de 1866, o subdelegado de Piraí
prendeu o guarda nacional João Antônio Dias Ferreira, alegando a
falta de isenção legal deste. Imediatamente o comandante do
destacamento e o comandante superior do município intercederam
junto ao presidente da província, alegando que o guarda, além de
casado, encontrava-se “fardado e pronto”, na ocasião em que o
mesmo ia comparecer à reunião da sua companhia. O chefe de
polícia, que respondia diretamente ao presidente da província, afirmou
que o comandante estava apenas impedindo a marcha do
recrutamento. Afirmou, ainda, que o recruta merecia ser designado
por ter abandonado mulher e filhos para viver com uma amante:

Deploro que, no empenho em que se acham as autoridades


policiais de enviar o maior número de recrutas para reforçar o
nosso Exército e corresponder às incessantes recomendações do
governo, a semelhante respeito, possam os seus atos ser mal
interpretados (…).
A vontade do comandante da Guarda parece ter prevalecido,
porque no início de 1867 João Antônio permanecia em Niterói,
aguardando o julgamento do recurso. Nesse caso, possíveis
lealdades partidárias levaram ao relaxamento das normas, numa clara
contravenção do esforço imperial.29
Tudo leva a crer que muitos indivíduos tenham-se alistado na
Guarda à última hora, para isentarem-se do recrutamento. Em vista
dessa situação, em março de 1867 o presidente em exercício deu
ordens para que os comandos superiores designassem duas praças
por companhia de cada um dos corpos sob seu comando. Ainda
assim, os comandantes superiores alegavam que a guarda
encontrava-se sobrecarregada em função da substituição do corpo
policial da província, tendo que executar tarefas de vigilância e de
sentinela das fortalezas.30 Este último serviço, feito em sistema de
rodízio, obrigava muitos guardas a se deslocarem por semanas de
seus locais de domicílio. O comandante da Guarda Nacional de
Vassouras queixava-se que, devido ao reduzido número de guardas
disponíveis, “não podemos oferecer o número adequado sequer para
a guarda da cadeia municipal”.31
Um meio de minorar esse problema foi proposto pelo presidente
da província, que sugeriu o uso de veteranos inválidos ou mutilados
na guarda daqueles edifícios. Mas mesmo que o concurso dos
veteranos pudesse aliviar os serviços da guarda, o problema se
concentrava efetivamente no envio desses elementos para o exterior.
O jornal O Guarda Nacional (12-8-1866) procurou deixar bem claro
que o serviço no exterior era o cerne da discórdia:

Sendo, pois, inexato o aviso do governo exigindo um contingente


para fora do Império, é uma punhalada dada na lei, punhalada que
passando inofensiva por todos os protegidos da mesma Guarda
Nacional, vai ferir o povo que é o coração da nação.

O gráfico a seguir apresenta um histórico da designação de


guardas. O período da administração Esperidião Eloy de Barros
Pimentel aparece como o pico do processo de extração. Exercendo a
presidência na segunda província durante o período da guerra, esse
experimentado funcionário tinha uma clara idéia das dificuldades da
empreitada. Os sete meses de novembro de 1866 a maio de 1867
aparecem como o período mais crucial desse esforço. Não por acaso,
a maioria dos processos de reclamação referese a essa época,
quando foi provavelmente maior a capacidade de interferência dos
funcionários sobre as designações. Dos 1.272 guardas enviados para
Niterói, 372 receberam dispensa, resultando 904 apurados. No
entanto, mesmo com o esforço e o desgaste referentes à designação,
a província ainda apresentava um déficit de cerca de 900 recrutas.
Mesmo nos anos subseqüentes, esse montante nunca foi atingido. As
cotas da província foram provavelmente atingidas através da extensão
do recrutamento a outras áreas do território nacional, especialmente a
região Nordeste.32

Designações de guardas nacionais, 1865-67

Recrutando libertos
O alistamento de escravos e libertos durante as fases iniciais da
guerra não foi numericamente significativo, mas ofereceu uma
oportunidade para que alguns indivíduos pudessem escapar da
escravidão, apesar dos sacrifícios da campanha e da chance de
morrer em combate. Esses indivíduos foram em geral alistados como
substitutos,33 recrutados à força como qualquer recruta, ou fugiram
para encontrar no Exército o que Hendrik Kraay definiu como “o abrigo
da farda”.34 Com uma composição fortemente multirracial era possível
ao escravo interessado se misturar aos setores livres e pobres da
população que normalmente eram o alvo preferencial do
recrutamento.
Os resultados pouco alentadores do recrutamento levaram alguns
membros da elite imperial a inclinar-se pela libertação de um número
expressivo de escravos, para serem em seguida recrutados. Em face
do fracasso do recrutamento junto aos setores livres, o governo
imperial decidiu iniciar o que deveria ter sido um programa agressivo
de libertação de escravos para posterior integração ao Exército e à
Marinha. Esta opção era encorajada pelo imperador e por um certo
número de conselheiros de Estado, crescentemente preocupados com
os problemas gerados por revoltas populares, ataques a cadeias e
protestos na imprensa. A expectativa de alguns conselheiros era que
um número expressivo de indivíduos pudesse ser alistado,
proporcionando o contingente necessário à finalização da guerra num
período curto. Por isso mesmo eles condicionaram essas alforrias à
vontade dos senhores. O uso desse recurso extremo não era
novidade na política nacional. Na Bahia, durante a guerra de
independência, escravos já haviam sido incorporados às forças em
luta contra os portugueses. Sua libertação só ocorreu depois do final
daquele conflito. Aquilo que poderia ter feito alguma diferença era o
fato de existir uma crise de abastecimento de novos escravos, em
curso desde a interrupção do tráfico internacional e que aumentara
substancialmente os preços dos escravos, diminuindo
consideravelmente o volume das alforrias nos anos posteriores a
1850. Fazia diferença, também, a obrigatoriedade da alforria, mesmo
que condicionada ao serviço militar.35
São conhecidas as circunstâncias que orientaram o processo
decisório nessa direção. Fundamental foi a reunião do Conselho de
Estado realizada em 6 de novembro de 1866, quando, por pequena
margem, os conselheiros se posicionaram favoravelmente à medida,
uma vez que ficasse claro o seu caráter emergencial. São também
conhecidos os temores dos conselheiros quanto à repercussão da
medida nas senzalas e nos círculos de proprietários. Muitos
conselheiros insistiram que, para o bem da estabilidade monárquica, o
recrutamento nunca deveria ser confundido com a abolição
imediata.36
Menos discutido tem sido o emprego da perspectiva comparada,
no contexto daqueles mesmos debates. Durante aquela reunião, os
conselheiros apelaram constantemente para análises comparativas,
onde a recentemente encerrada guerra civil americana constituiu um
ponto de referência importante. As políticas de recrutamento da
União, especialmente o Militia Act e a Emancipation Proclamation,
foram objeto de comparações e debates acalorados. O Militia Act, de
junho de 1862, autorizou o recrutamento de negros em regimentos
segregados a serem organizados no Norte. A Emancipation
Proclamation, de janeiro de 1863, autorizou o recrutamento dos
indivíduos ainda mantidos como escravos nas plantations do Sul,
possibilitando a passagem automática da condição de escravo para a
de soldado-cidadão.37
Os conselheiros, a favor ou contra, se mostraram bem informados
sobre a situação norte-americana, destacando suas similaridades com
o dilema brasileiro. Curiosamente, partiu de um opositor da medida, o
conselheiro Torres Homem, a comparação mais sutil sobre as
diferenças entre as duas situações.
Refutando possíveis semelhanças entre as experiências brasileira
e norte-americana, Torres Homem observou que o alistamento maciço
de soldados negros, especialmente de escravos recém-libertados,
estava relacionado à abolição no Sul, que havia se tornado um ponto
cardeal dos esforços de guerra no Norte. O conselheiro referia-se às
sucessivas vitórias defensivas das forças confederadas no estado da
Virgínia, em julho de 1862, que forçaram mudanças na condução da
campanha de invasão promovida pelas forças federais.38
Na percepção das lideranças políticas e militares da União, as
hostilidades haviam atingido uma escala tão violenta que um retorno
ao status quo anterior seria inaceitável. A fase das ilusões havia
passado junto com a perspectiva de que a superioridade militar e
industrial favoreceria, por si só, a volta dos estados rebelados. A
associação entre a escravidão e a secessão, a utilização de
trabalhadores escravos em apoio ao esforço de guerra sulista e o
elevado número de baixas em ambos os lados levaram a mudanças
na condução da guerra. A destruição das oligarquias escravistas do
Sul passou a ser vista como o principal meio para a reunificação do
país. Como conseqüência, a coalizão republicana apoiou a libertação
dos escravos e o seu alistamento como um importante recurso militar
e político para derrotar a Confederação. Essa mudança tornou a
guerra civil americana muito mais violenta, mas favoreceu a
superioridade de recursos exibida pelo Norte, resultando na vitória
militar e na destruição da escravidão sulista.39
Segundo Torres Homem, o recrutamento de libertos havia sido
bemsucedido nos Estados Unidos porque não constituía uma ameaça
à economia do Norte, que não contava com escravos desde a década
de 1820 e tinha um número relativamente pequeno de habitantes
livres descendentes de africanos. A liberdade fora dada a todos os
escravos do Sul sem afetar a economia ou as condições sociais do
Norte, onde uma economia de base free labor já florescia muito antes
da guerra.
O ponto é claro e deixa poucas margens a dúvidas: ao contrário no
Brasil, a maioria dos libertos recrutados para o Exército da União veio
de áreas que estavam na periferia da economia industrial do Norte. O
recrutamento de libertos no Brasil estava limitado pela falta de
vontade dos proprietários para cooperar e pela necessidade de
defender a estabilidade do Estado imperial. Os republicanos dos EUA,
ao emancipar os escravos e alistá-los no Exército, estavam atacando
seus inimigos confederados, enquanto no Brasil a simples
possibilidade de requisição criava constrangimentos entre os
produtores rurais, que constituíam o pilar principal da economia do
país e cujo núcleo mais dinâmico ainda se encontrava na província do
Rio de Janeiro.
O governo provincial não tinha a intenção de expropriar escravos e
nunca os recrutou oficialmente sem que houvesse concordância de
seus donos. A partir de dezembro de 1866, o governo fez uma série
de “apelos” com a intenção expressa de convencer os senhores a
libertar alguns escravos para o alistamento. Poucos desses apelos
foram positivamente respondidos e praticamente nenhum o foi sem
uma contrapartida: a compra do escravo pelo governo, tal como
registrado na correspondência do fazendeiro Jobim, apresentada no
início deste capítulo.
José de Souza Breves, um dos mais ricos fazendeiros e
provavelmente o maior proprietário de escravos da província, oferece
um bom exemplo da falta de cooperação desse grupo. Respondendo
a uma carta do presidente da província, que o exortava a auxiliar nos
esforços de emancipação, este condestável explicou que:

No ano próximo passado (…) destinei seis escravos para esse fim.
Porém, esses manifestaram “má vontade” e, em seguida, se
empenharam com amigos meus e recusaram o benefício da
liberdade (…) ao mesmo tempo em que 11 outros meus escravos
pardos e crioulos, tendo cometido pequenas faltas se evadiram de
minhas fazendas, constando-me logo que seis destes foram
assentar praça de voluntários, oferecendo-se como livres e como
tais marcharam para o teatro da guerra. Julgo pois que neste
sentido justifico a minha intenção de acolher sempre tão justas
quanto patrióticas solicitações.40

Suas palavras ecoavam a de outros fazendeiros do vale do


Paraíba. Segundo o relatório do Ministério da Guerra de 1872, dos
799 escravos doados gratuitamente por particulares em todo o
Império a província do Rio de Janeiro só contribuiu com um! O
relatório provincial de 1867 mostra um quadro um pouco mais
generoso, constando o oferecimento de 23 escravos por 11
proprietários, sendo 10 desses escravos oferecidos por José de
Figueiredo Pessoa de Barros, residente em Niterói. A disparidade
entre esses números pode estar ligada ao fato de muitos proprietários
alistarem os seus libertos diretamente na Corte, tal como ocorreu com
o escravo Carlos, capturado na província mas alistado na capital do
Império. Mesmo assim, trata-se de volume irrisório, quando se leva
em conta a enorme população escrava da província naquele período.
Em atenção aos poucos indivíduos que doaram seus escravos, o
presidente sugeriu que fosse conferida uma recompensa, na forma de
um título honorífico. O jornal O Arlequim (19 maio 1867) sugeriu um
título apropriado para esse reconhecimento, já que se referia ao
principal mercado de escravos da Corte: “dei à pátria dez
libertos/(nove cabindas e um congo)/mas fui bem condecorado/sou
visconde… do Valongo!”.

Perguntas sem resposta


A tabulação mais precisa produzida nos relatórios dos anos finais
da guerra foi a oferecida pelo vice-presidente Eduardo Pindaíba de
Matos em 18 de março de 1868. Pindaíba havia sido o chefe de
polícia no período mais complicado do recrutamento, estando a par
dos principais contingentes enviados. Os dados cobrem o período de
26 de abril de 1865 até 10 de março de 1868. A partir de então, a
contribuição da província foi irrelevante.

Tabela 5
Contingentes totais de soldados recrutados no Rio de Janeiro, abr.
1865 maio 1868
Fonte: Relatório do vice-presidente da província, maio de 1868.

O relatório do Ministério da Guerra do ano de 1872 é normalmente


aceito como documento final do processo de mobilização. Ele oferece
números diferentes dos apresentados pelo vice-presidente do Rio de
Janeiro, minimizando os contingentes enviados ao Paraguai.

Tabela 6
Recrutamento na província do Rio de Janeiro, segundo o relatório do
Ministério da Guerra

Fonte: Relatório do Ministério da Guerra, maio de 1872.

As discrepâncias entre os dois relatórios encontram-se no


desaparecimento do contingente policial, no menor número de
voluntários e na contagem de 200 libertos ausentes do relatório
provincial. Mesmo que os números provinciais tenham sido
exagerados, ainda assim registram-se algumas coincidências entre os
dois documentos. O voluntariado aparece nos dois registros como
tendo fornecido os maiores contingentes, entre 43,3% e 45,8% do
total. A Guarda Nacional falhou na tarefa de coadjuvar o governo
adequadamente, fornecendo entre 27,8% e 29,3% dos contingentes e
mostrando-se incapaz de chegar ao número requerido pelo Ministério
da Justiça. Apesar da queda do voluntariado no decorrer de 1865,
este continuou crescendo, ainda que a uma taxa bem menor que a
dos 2.500 indivíduos que se alistaram entre janeiro e maio do mesmo
ano.
Assiste-se ao predomínio da contribuição voluntária ou do esforço
do governo com os recrutas, demonstrando que o maior peso do
recrutamento recaiu sobre o governo e particulares. Apesar da
constante exortação dos voluntários da pátria, os relatórios são muito
pouco objetivos no que concerne à composição social destes
indivíduos, bem como às características mais marcantes da
organização das diversas levas. Sabemos relativamente muito pouco
sobre o papel do governo e das lideranças locais na organização dos
batalhões de voluntários da pátria, bem como sobre o
entrecruzamento de voluntários e guardas nacionais. Um ou outro
relatório menciona a possibilidade de guardas nacionais terem se
voluntariado, mas a precariedade dos registros não permitiu uma
análise mais profunda desse aspecto. Novas pesquisas podem
discriminar a origem social dos voluntários e seu papel na mobilização
da província.41

Recapitulando…
Este capítulo mostrou as enormes dificuldades para organizar o
recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai na mais rica das
províncias brasileiras. A situação do Rio de Janeiro expressa um
problema nacional que se materializava sempre que o Estado requeria
maior nível de extração de recrutas para as forças do Exército e da
Marinha — o fracasso da autoridade central na tarefa de estabelecer o
controle sobre os meios da violência. O problema se tornava mais
sério em tempo de guerra, quando as tensões entre o centro e as
localidades podiam ficar mais intensas, especialmente quando o
recrutamento atingiu indivíduos normalmente isentos do serviço, tais
como os membros da Guarda Nacional.
Uma das poucas conseqüências construtivas do esforço de guerra
teria sido a sua contribuição para o desenvolvimento de diferentes
estruturas de autoridade, isto é, a criação de uma burocracia
especializada, capaz de extrair de forma universalista os recursos
necessários ao cumprimento das tarefas coercitivas, implementando
uma tributação mais racional e operando o recrutamento de forma
universalista.
Tal como observado por Charles Tilly, os Estados nacionais
europeus percorreram essa trajetória, desenvolvendo-se diretamente
a partir da equação formada por guerra mais preparação para a
guerra. Foram as guerras que levaram os Estados a organizar uma
administração baseada na cobrança de tributos que sustentavam a
formação dos exércitos regulares.42 As guerras ajudaram a construir
as bases institucionais dos Estados modernos devido às demandas
de eficiência que somente as estruturas políticas mais sofisticadas
podiam prover. Tilly resumiu esse processo na frase “os Estados
fizeram as guerras, e as guerras fizeram os Estados”.43
Nada poderia ser mais diferente da perspectiva de Tilly que a
situação fluminense. Após o entusiasmo inicial, o esforço recrutador
enfrentou obstáculos permanentes, e as populações do interior
reagiram como se o governo provincial fosse o verdadeiro invasor.
Nesse sentido, a guerra não foi capaz de gerar maior
desenvolvimento das capacidades burocráticas do Estado central ou
da província, na direção de uma especialização burocrática ou da
criação de alianças entre o Estado e alguns setores dos grupos
dominantes. Somente a muito custo os agentes do Império
conseguiram os recursos necessários à mobilização. Ainda assim,
esses recursos, tais como os libertos, não foram doados ou extraídos,
mas comprados com o dinheiro público, obtido através de
empréstimos, ou libertados pela própria Casa imperial.
No Rio de Janeiro, as demandas para a guerra contra o Paraguai
criaram a oportunidade para a inovação e a adaptação, mas o esforço
de guerra não levou ao enfraquecimento das lealdades locais. Nem
criou, a longo prazo, ligações emocionais mais fortes entre a
sociedade provincial e um conjunto de estruturas estatais. Como
assinalou Miguel Centeno, a capacidade estatal não é um fenômeno
absoluto, mas relacional. Não se trata de mera questão de força,
baseada somente na relação direta entre coerção e acumulação de
capital, mas do potencial da sociedade para receber bem a intrusão
do Estado em expansão e colaborar com ele, criando as bases de
uma cidadania ampliada; da concepção de que parte considerável da
população poderia se beneficiar da adesão a uma lealdade mais
ampla. Nessa perspectiva, a trajetória dos Estados europeus teria sido
a exceção, não a regra. Em boa parte da América Latina a fraqueza
estrutural dos Estados nacionais impediu que seus governantes
tirassem vantagens dos poucos períodos de guerras internacionais
para fortalecer seus vínculos com a sociedade e construir padrões
mais autônomos de funcionamento em relação aos grupos
dominantes.44
Certamente o governo provincial fluminense falhou na tarefa de
ampliar a sua base de apoio ao prosseguimento da campanha no
Paraguai. Isso ocorreu possivelmente porque a guerra não foi
desejada pela elite política imperial. Ocorreu, também, devido à
imagem negativa que a população tinha do serviço militar, a qual foi
fortalecida pelos percalços de uma campanha excessivamente longa,
travada muito longe do território provincial. O caso da província do Rio
de Janeiro demonstra as dificuldades do governo central (e de seus
agentes nas províncias) para infiltrar-se na sociedade. Mesmo
próximo ao centro do poder político, o governo precisou agir com
extrema cautela quanto ao recrutamento, para não afetar as bases de
apoio do regime monárquico. O máximo que a província conseguiu foi
lutar “uma guerra limitada”, conforme a definição de Miguel Centeno,
ou seja, uma guerra em que a capacidade de extração permaneceu
muito baixa e o Estado arcou com boa parte dos custos, através da
inflação e dos empréstimos, reforçando um déficit que agravaria a já
delicada situação financeira do país.45 A guerra não foi capaz de
quebrar o desastroso equilíbrio entre os vários poderes e interesses
sociais que habitavam a província, nem de transformar a sociedade a
ponto de convencer parcelas significativas da população a
proporcionar um apoio mais efetivo à mobilização. O esforço de
guerra gerou dívidas, ressentimentos e pouca coisa mais.

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* A pesquisa para este capítulo contou com o apoio da estagiária Carolina


Salgueiro de Oliveira.
** Doutor em história pela University of New Hampshire (EUA); professor da
UFRJ.
1 Durante o século XIX é possível falar de pelo menos três diferentes
localidades com a denominação Engenho Novo. Suspeito tratar-se de antigo
distrito, atual bairro com o mesmo nome, da cidade do Rio de Janeiro.
2 Para uma discussão sobre as alforrias no Rio de Janeiro no século XIX, ver
Florentino (2002:9-40), a quem sou grato por alguns esclarecimentos no que
concerne ao tráfico interno e às alforrias na década de 1860.
3 Kraay (1998:130-131) assinalou a predominância, no Rio de Janeiro, de
vendedores de um único escravo, o que teria contribuído para o declínio gradual
da escravidão nas cidades brasileiras.
4 Para as relações entre o recrutamento militar de forros e as diversas
modalidades de alforria, ver Moreira (1996).
5 Para uma descrição da precariedade do processo de inspeção médica, ver
Cerqueira (1980:48-50).
6 A história completa encontra-se em José Martins da Cruz Jobim para Tomás
Gomes dos Santos, 14-11-1867 (Arquivo Histórico do Museu Imperial, 101,
maço 141, doc. 6.925 — POB).
7 Por Corte estou entendendo o município neutro do Rio de Janeiro, sede
administrativa da monarquia brasileira. O município neutro não fazia parte da
província do Rio de Janeiro, mas exercia forte influência sobre ela, tal como
pode ser observado nos dramas de Jobim e Carlos.
8 Ver Centeno (2002:4).
9 Uma das poucas exceções é Martins et al. (1981). Mas este trabalho não
analisa o recrutamento durante o período da Guerra do Paraguai.
10 Ver Meznar (1992); Beattie (2001); Kraay (1999, 2001); Mendes (1998, 1999);
Izecksohn (2002).
11 Minhas fontes principais são os relatórios dos presidentes da província e suas
correspondências com delegados, subdelegados e os ministros da Guerra e da
Justiça. Este ponto é importante porque existem discrepâncias em relação aos
dados, quando comparados com os relatórios ministeriais. Parto do princípio de
que os relatórios provinciais fornecem um quadro mais preciso dos
contingentes, bem como dos problemas envolvidos no recrutamento. Futuros
trabalhos focalizando outras províncias ajudarão a elucidar este ponto.
12 Fenômeno comum durante o conflito contra o Paraguai, existiu sempre uma
diferença de pelo menos 30% entre os contingentes enviados e aqueles
apurados, ou seja, o número que efetivamente seguiu para a guerra. Ver
Izecksohn (2001b:84-109).
13 Apud Conrad (1978:344-347).
14 Ainda é cedo para tomar os dados como totalmente corretos. Estou
considerando estes números como estimativas e pontos de partida para uma
discussão ainda por ser feita.
15 Ver Sarmento (1986:48).
16 Ver Reber (1999); Scheina (2002); Doratioto (2002); Whigham (2002).
17 Ver Fragoso (1934-45:220).
18 Arquivo de Francisco Ignacio Homem de Mello, presidente do Rio Grande do
Sul, carta de 7-2-1867 (Biblioteca Nacional, obras raras).
19 Para as anistias a desertores, ver o capítulo de Hendrik Kraay neste livro.
Para os voluntários, ver Beattie (2001:38-63).
20 Ver as edições de janeiro a março de 1865 do Diário do Rio de Janeiro e do
Jornal do Commercio. Para o impacto da guerra no imaginário social, ver
Carvalho (1995:7-36).
21 Ver Duarte (1981:127-54); Diário do Rio de Janeiro, 22 jan. 1865; Relatório
da Província do Rio de Janeiro, maio de 1865, p. 5-6.
22 Marquês de Olinda para João Maria Pires Camargo, 14-8-1865 (Museu
Histórico Nacional — GP4.10.11).
23 Esses decretos correspondem à formação dos três corpos do Exército que
atuaram na Guerra do Paraguai, demonstrando as transformações nas
concepções logísticas das lideranças militares. Registre-se que muitos desses
recrutas foram também encaminhados para a Marinha.
24 Para maiores informações sobre a campanha ao redor da fortaleza de
Humaitá, ver Costa (1996). Os capítulos 5 e 6 são centrais para a descrição das
operações militares do Império.
25 Relatório da província do Rio de Janeiro, set. 1865, anexo 5, p. 3-10.
26 O processo completo encontra-se em Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, doravante Aperj, documentos da presidência da província, 1860-69,
coleção 97, caixa 79, maços 6-7, dossiê 224, pasta 2.
27 Comandante superior da GN de Rio Bonito e Capivari para o vice-presidente
da província (Aperj, documentos da presidência da província, 1862-67, coleção
215-216, GN — caixa 176).
28 Relatório apresentado pelo Ex.mo sr. presidente conselheiro Domiciano Leite
Ribeiro. Rio de Janeiro, mar. 1866.
29 As cerca de 15 laudas desse processo encontram-se em Aperj, coleção 97,
maços 6-7, caixa 79, dossiê 224, pasta 2.
30 O relatório do vice-presidente da província, Eduardo Pindaíba de Matos, de
maio de 1867, apresentava 386 guardas destacados para serviços de polícia e
guarda de fortalezas.
31 Relatório da província do Rio de Janeiro, 1868, p. 3-4.
32 Os contingentes para os anos de 1868 a 1870 não foram incluídos devido a
sua insignificância para o esforço de guerra.
33 O relatório do Ministério da Guerra de 1872 mostra que a província ofereceu
199 substitutos, ou 21% do total de 948 indivíduos libertados como substitutos
em todo o Império. Apenas a província do Rio Grande do Sul superou o Rio de
Janeiro, com 305 indivíduos, ou 32% do total.
34 Kraay, 1996.
35 Para o recrutamento de libertos durante as lutas pela independência na
Bahia, ver Kraay (2002). Para a situação das alforrias após a interrupção do
tráfico internacional, ver Castro (1993).
36 Ver Souza (1996:50-54); Kraay (1998:124-125); Izecksohn (2001a:304-322).
37 Ver McPherson (1965:192-220).
38 McPherson (1988:511-545) mostra a ironia das vitórias confederadas na
Virgínia e seu papel na transformação da natureza da guerra civil norte-
americana.
39 Ver Paludan (1988: 287-315). O chamado “Partido da União” era, na verdade,
uma coalizão constituída de republicanos e alguns democratas favoráveis ao
novo curso da guerra. Para uma bela análise das opções estratégicas do
comando da União, ver Proença Jr. (1994).
40 Joaquim de Souza Breves para Esperidião Eloy de Barros Pimentel, 2-2-1867
(ANRJ, IG1 159, cx. 587, maço 1.867, fl. 820).
41 Esses dados apontam para um outro fator que vem sendo sublinhado por
autores como Salles (2003:38) e Doratioto (2002:458): a subestimação dos
contingentes reais pelos relatórios do Ministério da Guerra. Doratioto aponta
uma origem conhecida de 123.148, mas acredita ter sido bem maior o número
de indivíduos quando somados os efetivos do Exército profissional e da
Marinha. Salles, tomando como base um documento manuscrito preparado pelo
Ministério da Guerra em 1920, aponta cerca de 139.996 indivíduos como uma
estimativa modesta.
42 Ver Tilly (1994:131-146).
43 Tilly, 1987.
44 Centeno (2002:106) identifica exceções nos casos paraguaio e chileno.
Ressalte-se que em ambos os casos já haviam Estados fortes operando
previamente aos períodos de conflitos internacionais. Nesses exemplos, as
guerras atuaram como aceleradores de processo já em andamento.
45 Ver Centeno (2002:20-26).
CAPÍTULO 8

A ocupação político-militar brasileira do Paraguai (1869-


76)

Francisco Fernando Monteoliva Doratioto*

Desde a década de 1840, o Império do Brasil implementou uma


política de defesa das independências do Paraguai e do Uruguai.
Preocupava à diplomacia imperial eventual expansionismo
argentino, liderado por Buenos Aires, que levasse à anexação
desses países e ao surgimento de uma forte república, ao sul, que
se tornaria ameaça potencial, política e militar, ao Império. A aliança
do Brasil com a Argentina, para enfrentar a guerra que lhes foi
declarada pelo chefe de Estado paraguaio Francisco Solano López,
não foi suficiente para que os círculos governantes brasileiros
abandonassem essa preocupação. Por outro lado, o presidente
argentino Domingo Faustino Sarmiento, no poder desde 1868,
estava convencido de que o Brasil desejava impor-se ao Paraguai
no pós-guerra.
A derrota na guerra de 1865-70, contra a Tríplice Aliança,
composta por Argentina, Brasil e Uruguai, resultou, para o Paraguai,
na destruição do Estado autoritário — que era quase uma
propriedade privada da família López; em pesadas perdas
demográficas e econômicas, bem como na escassez de homens
com liderança e experiência suficientes para reconstruir e governar
o país. Esse contexto, acreditavam os governantes brasileiros,
ameaçava a independência do Paraguai, cuja debilidade poderia
levar à sua incorporação, de forma voluntária ou não, à Argentina.
Desde a ocupação de Assunção, em 1o de janeiro de 1869, por
tropas brasileiras, até 1876, quando da assinatura dos tratados de
paz entre o Paraguai e a Argentina e da retirada delas, a ação do
Brasil no país guarani foi no sentido de estabilizá-lo politicamente e,
simultaneamente, evitar que os cargos públicos fossem ocupados
por paraguaios tidos como “argentinistas”.
Sustentou essa ação diplomática do Império a presença militar
brasileira no Paraguai. Diplomatas e militares brasileiros atuaram
com desenvoltura, para inviabilizar revoltas, enfraquecer políticos
supostamente “argentinistas” e colocar homens de sua confiança no
poder. De 1869 a 1876, o Paraguai foi praticamente um protetorado
do Império.

A ocupação militar do Paraguai e o fim da Tríplice Aliança


Desde os primeiros dias da guerra contra o Paraguai, o governo
do Império do Brasil preocupou-se em instalar, terminado o conflito,
um governo em Assunção que fosse imune à influência da
Argentina. No final da década de 1840, o Partido Conservador
estabelecera como objetivos brasileiros no rio da Prata garantir a
livre navegação dos rios internacionais da região, fundamental para
o acesso à isolada província do Mato Grosso, e manter as
independências do Paraguai e do Uruguai, de modo a evitar uma
eventual reconstrução, na forma de uma república sob a liderança
de Buenos Aires, do antigo Vice-Reino do rio da Prata. Em 1865,
políticos conservadores, oposicionistas, criticaram, no Conselho de
Estado, as concessões de territórios paraguaios à Argentina,
determinadas pelo Tratado da Tríplice Aliança, de 1o de maio
daquele ano.
Em 1868 assumiram o poder o Partido Conservador, no Brasil, e
Domingo Faustino Sarmiento, na Argentina. A diplomacia imperial
retornou, assim, à política de contenção de Buenos Aires.
Sarmiento, por sua vez, resistia à aliança com o Brasil,
desconfiando de eventuais planos do Império para tornar-se
potência continental no pós-guerra à custa de seus vizinhos.1
Em janeiro de 1869, Assunção foi ocupada por tropas imperiais.
A cidade transformou-se em verdadeiro acampamento militar; os
soldados brasileiros nela se instalaram e os argentinos acamparam
nos arredores. Ela tornou-se um centro de comércio, com cerca de 2
mil casas de negócios e, ainda, 4 mil mulheres, que acompanhavam
as tropas.2 Assunção também era pólo de atração para refugiados
do interior do país, famintos e doentes, mas não havia infra-
estrutura para recebê-los, tornando o quadro caótico. As funções
administrativas eram exercidas por integrantes do Exército imperial;
havia uma capitania brasileira no porto assuncionense e, para julgar
pendências entre civis, foi criado o Tribunal Militar Misto, composto
por três brasileiros, três argentinos e um uruguaio. Essas funções
foram entregues ao governo provisório paraguaio, instalado, como
resultado da ação da diplomacia brasileira, em agosto de 1869, na
forma de um triunvirato.3 Solano López continua vivo — morreu em
1o de março de 1870 — e a instalação desse governo era uma
forma de o Império ratificar a continuidade do Paraguai como Estado
independente.
O governo provisório logo teve que enfrentar um problema
externo, quando o governo argentino instalou uma guarnição militar
em Villa Occidental, localizada na margem oposta a Assunção, no
rio Paraguai. Os novos governantes paraguaios e o governo
Imperial explicitaram, então, sua oposição à posse do Chaco pela
Argentina. O chanceler desta, Mariano Varela, esclareceu que seu
país não se recusava a discutir o direito de posse desse território,
afirmando que a vitória militar não dava direito às nações aliadas de
impor limites ao Paraguai, os quais deveriam ser discutidos com o
governo permanente que viesse a constituir-se.4 Desse modo, a
Argentina abandonava vantagens territoriais obtidas no Tratado da
Tríplice Aliança, o qual não estabelecia a apresentação de
documentos pelos aliados na posse de territórios litigiosos com o
Paraguai.
O ex-presidente Bartolomé Mitre, cujo governo assinara o
Tratado da Tríplice Aliança e que era defensor de uma aliança
estratégica com o Brasil, se opôs duramente à política argentina
nessa questão de limites, levando Sarmiento a alterá-la. Mariano
Varela foi substituído por Carlos Tejedor, o qual passou a exigir a
aplicação do Tratado da Tríplice Aliança para definir os limites
argentino-paraguaios. Nas primeiras negociações com o governo
paraguaio, que se realizaram em Assunção, Brasil e Uruguai não
apoiaram as reivindicações territoriais argentinas.
No início de 1870 se deu, pela primeira vez, o uso de forças
militares brasileiras para influenciar no quadro político interno
paraguaio. Foi quando ocorreram agitações, em torno da eleição de
deputados constituintes, entre as duas correntes políticas: os
“lopistas”, seguidores de Cándido Bareiro, e os “liberais”. Os
“bareiristas” buscavam derrubar o governo provisório, mas tal não
se deu, pois o comandante das forças imperiais, general Correa da
Câmara, apoiou as autoridades provisórias.5
Antes mesmo das eleições dos deputados constituintes, em julho
de 1870, começaram a movimentar-se os que ambicionavam a
Presidência da República. Assim, Cirilo Rivarola, membro do
governo provisório, buscou articular-se com os dois grupos políticos
e, desse modo, perdeu a confiança de ambos. Constituintes liberais
planejaram que a Constituinte declarasse findo o triunvirato e
nomeasse, como presidente provisório, Facundo Machaín, que tinha
postura antibrasileira. Os conspiradores convidaram a minoria
“bareirista” a fazer parte do movimento, oferecendo-lhe participação
na nova administração que se criaria, proposta que foi aceita. Carlos
Loizaga foi convencido a renunciar ao triunvirato, levando à sua
extinção, pois o outro triúnviro, José Bedoya, já o abandonara. Em
31 de agosto, a maioria da Constituinte declarou cessante o governo
provisório, nomeando Machaín como presidente provisório, e
Rivarola acatou a decisão. Nas ruas de Assunção a notícia foi
recebida com regozijo público.6
Os comandantes das forças brasileiras, o general José da Silva
Auto Guimarães (barão de Jaguarão), e argentinas, general Julio de
Vedia, garantiram apoio a Rivarola. Cándido Bareiro, por sua vez,
discordou do ocorrido por acreditar que seu grupo político seria
enfraquecido pela ascensão de Machaín à Presidência. Esses dois
generais influenciaram “de uma maneira mais ou menos direta na
conciliação do sr. Rivarola com o partido do sr. Bareiro, e na decisão
daquele de assumir o poder ignorando os atos da Convenção
[Constituinte]”.7
Foi dado, então, um contragolpe na mesma noite de 31 de
agosto, com Rivarola retornando ao poder. O general Guimarães
manteve a tropa brasileira em estado de prontidão para, se
necessário, apoiar Rivarola, em comum acordo com o general
Vedia. Este não via legitimidade na destituição decretada pela
Constituinte e, ainda, tinha instruções anteriores de Buenos Aires no
sentido de apoiar o governo provisório.8
Fortalecidos por essa vitória, tanto Rivarola quanto Bareiro
almejavam ocupar o cargo de presidente constitucional. As forças
militares brasileiras apoiaram a candidatura de Rivarola.9 A
oposição, numa forma indireta de atingir Rivarola, acusou o ministro
da Fazenda, Juan Bautista Gill, de malversação de dinheiro público.
O Senado declarou-o impedido, temporariamente, de exercer
qualquer cargo público. Em meio à profunda crise política, o
presidente decretou a dissolução do Legislativo, convocando
eleições para o mês de dezembro, que elegeriam outros deputados
e senadores que assumiriam seus cargos em 1o de janeiro de 1872.
Em manifesto ao povo, Rivarola buscou justificar sua atitude,
prometendo submetê-la ao novo Congresso que fosse eleito e, em
seguida, abandonar a presidência.10
Não havia, então, representação diplomática imperial em
Assunção, estabelecida apenas em 1872. O general Auto
Guimarães era a autoridade máxima brasileira no Paraguai,
comandando a divisão aquartelada na periferia da capital, composta
por duas brigadas com um total de 3.453 praças e 269 oficiais. O
efetivo do Exército imperial era, nesse momento, de 17.786 homens
— e seria pouco menos de 15 mil nos anos seguintes, incluindo
essa divisão. Em abril de 1872, a força brasileira no Paraguai era de
2.865 homens, sendo a redução resultante da retirada do 7o
Batalhão de Infantaria e da diminuição dos efetivos dos demais
batalhões. Um ano depois, em 1873, essa força era de 1.959
homens, devido à partida de dois outros batalhões de infantaria (15o
e 16o) e à redução do efetivo da 1a Brigada. Em abril de 1874, em
virtude de sublevação da oposição contra o governo paraguaio,
aquela divisão foi reforçada pelo 2o Batalhão de Artilharia (398
homens), vindo de Corumbá. Quando essa força de ocupação foi
retirada do Paraguai, em 1876, seu efetivo era de 1.894 militares.11
O general Auto Guimarães comandou a divisão do Exército
imperial no Paraguai até início de 1875, participando ativamente da
política interna do país. As facções políticas paraguaias buscavam o
apoio dos Aliados, e destes somente o Império tinha poder para
dominar a situação, devido a sua superioridade militar. Conforme
relato de Manuel Quintana, enviado do governo argentino ao
Paraguai, em novembro de 1871 o Brasil possuía, além da força
terrestre em solo guarani, no mínimo seis navios de guerra no porto
de Assunção, enquanto as forças argentinas em Villa Occidental
não passavam de 300 homens, sem artilharia ou cavalaria. Já o
governo paraguaio dispunha unicamente de 300 policiais, armados
com alguns fuzis doados pelos Aliados e com 250 revólveres.12
A disputa pelo poder, entre as facções políticas paraguaias,
interessava tanto ao Brasil quanto à Argentina, na medida em que
pudessem instrumentalizá-la para alcançar seus objetivos próprios
— e conflitantes — de política externa. Não havendo uma reação
organizada do Congresso dissolvido contra Rivarola, o enviado
especial argentino Manuel Quintana passou a apoiar o grupo político
de Cándido Bareiro, pois este prometera que, em caso de triunfo de
sua facção, o Paraguai aceitaria as reivindicações da Argentina
sobre o Chaco.13
Em 25 de novembro de 1871, Rivarola foi alvo de rebelião
armada. Esta foi logo sufocada e seus líderes refugiaram-se na
guarnição militar argentina em Villa Occidental.14 Quintana não se
aproveitou do movimento, pois uma intervenção militar de seu país
nas lutas políticas paraguaias levaria o Império, superior
militarmente em Assunção, a reagir. Ademais, as autoridades
imperiais conheciam a fundo os acontecimentos que se davam no
Paraguai, graças ao grande número de agentes secretos que tinham
no país. Estes eram tão eficientes que, na legação argentina em
Assunção ou no quartel em Villa Occidental, “não se fala uma só
palavra que não chegue ao conhecimento dos agentes
brasileiros”.15
Em 8 de dezembro de 1871, iniciou suas atividades o Congresso
paraguaio, eleito no mês anterior, e Juan Bautista Gill tornou-se
presidente do Senado. O presidente Rivarola, contando que Gill, seu
protegido, lealmente coordenasse a rejeição, apresentou sua
renúncia à chefia do Executivo, conforme prometera dois meses
antes.16 A essa altura Rivarola não contava com o apoio do governo
argentino, que desejava sua renúncia para enfraquecer a posição do
Império. Este, por sua vez, também o aceitara por não ter opção
melhor, mas agora tinha em Juan Bautista Gill pessoa de maior
confiança.17
A articulação contra Rivarola veio de Juan Bautista Gill, que agia
com pleno conhecimento do barão de Cotegipe,18 que substituiu
José Maria da Silva Paranhos — futuro visconde do Rio Branco —
como negociador, em Assunção, dos tratados de paz dos Aliados
com o governo paraguaio. Em 16 de dezembro Rivarola apresentou
sua renúncia. O Congresso paraguaio a aceitou, ficando definido
que a chefia do Executivo passava a ser exercida pelo vice-
presidente, Salvador Jovellanos. Este propôs então a Cotegipe o
início das negociações de paz em separado com o Brasil, visto que
Quintana, ao não obter o reconhecimento da posse do Chaco para a
Argentina, as abandonara, voltando para Buenos Aires. Em
fevereiro de 1872 foram assinados os tratados de paz entre Brasil e
Paraguai (conhecido como Tratado Loizaga-Cotegipe, em referência
aos negociadores), pelos quais o Império realizou objetivos
históricos: a fronteira entre os dois países foi definida no rio Apa e
obteve-se a garantia da livre navegação dos rios internacionais.
Esses tratados permitiram ainda a continuidade, por tempo
indeterminado, da presença de tropas brasileiras em território
paraguaio, isentas de controle alfandegário e de obediência às leis
paraguaias.
A paz entre o Brasil e o Paraguai contrariava a determinação do
Tratado da Tríplice Aliança, de que os Aliados a assinassem em
conjunto, e não em separado, com o país vencido. Em Buenos Aires
houve forte reação contra o Tratado Loizaga-Cotegipe e, para
precaver-se contra uma eventual reação militar argentina, a flotilha
da Marinha imperial saiu do porto de Assunção e rumou para a ilha
de Atajo, estrategicamente localizada na confluência dos rios
Paraná e Paraguai. De Mato Grosso desceram para a capital
paraguaia dois monitores, embarcações de baixo perfil, construídas
especialmente para o combate fluvial, e simultaneamente foi
reforçada a divisão naval brasileira no rio Uruguai, com duas
canhoneiras.19 A divisão da Marinha imperial no Paraguai
compunha-se, nessa época, de dois navios encouraçados, quatro
monitores e oito navios de madeira; essas belonaves eram
guarnecidas por 449 praças e possuíam 25 canhões.20
A reação do governo argentino foi política, designando o general
Julio de Vedia como governador militar para o Chaco, com sede em
Villa Occidental. A Argentina não tinha condições militares para
enfrentar o Império, pois não dispunha de uma Marinha de Guerra,
enquanto seu Exército encontrava-se ocupado, enfrentando um
levante na província de Entre Ríos.21 Ademais, no plano
internacional, essa república encontrava-se isolada em relação a
seus vizinhos. Os bolivianos reivindicavam a posse do Chaco até o
rio Bermejo e concentravam tropas na fronteira; o Chile, por sua
vez, reclamava a posse da Patagônia e ameaçava ocupá-la.22
Para superar a inferioridade naval, o presidente Sarmiento
encomendou, na Inglaterra, a construção de oito belonaves de maior
porte e uma flotilha de pequenas torpedeiras. No plano diplomático,
tratou de pôr fim ao isolamento argentino, reaproximando-se de
seus vizinhos. O Império, por sua vez, também fortaleceu sua
Marinha, lançando ao mar, em 1873, uma canhoneira e uma corveta
e, no ano seguinte, um encouraçado. Na segunda metade da
década de 1870, foram incorporados à Marinha imperial mais dois
cruzadores, embora de casco de madeira.23
Revoluções e diplomacia militar
O barão de Cotegipe partiu do Paraguai em fevereiro de 1872.
Deixou instruções ao general Auto Guimarães para, nas questões
paraguaias, combinar prudência e energia, porém sem interferir nos
assuntos internos do país. A interferência somente seria permissível
caso o governo paraguaio estivesse ameaçado e, com ele, a
segurança e a tranqüilidade públicas de Assunção.24 Com a partida
de Cotegipe, o Império ficou representado no Paraguai pelo cônsul
João Antônio Mendes Totta Filho e, em seguida, pelo ministro
plenipotenciário Joaquim Maria Nascentes de Azambuja, pelo
próprio general Auto Guimarães e pelo comandante da esquadra
brasileira fundeada no rio Paraguai, almirante Francisco Ferreira
Pinto.
Aquela interferência, contudo, acabou por ocorrer, devido à
acirrada luta entre as facções políticas paraguaias, que se voltavam
quer para a Argentina, quer para o Brasil, em busca de apoio na
disputa pela sucessão do presidente Jovellanos. Uma facção era
liderada pelo presidente do Senado, Juan Bautista Gill, e a outra por
Benigno Ferreira, ministro do Interior. Os representantes argentinos
no Paraguai punham grande fé em Ferreira e contribuíram para que
Gill, o preferido do Império, caísse em desgraça.25
Em 8 de março de 1873, Gill foi preso, acusado de conspiração
por Jovellanos. No dia seguinte, Gill foi visitado na prisão pelo
general Auto Guimarães, acompanhado do almirante Pereira Pinto,
aos quais protestou inocência. Esses chefes militares conseguiram
do governo paraguaio a anistia para o prisioneiro, que partiu em 11
de março para Montevidéu, a bordo do vapor brasileiro Princesa.26
Azambuja estava convencido de que o ministro do Interior,
Benigno Ferreira, era ligado à facção política pró-argentina. Como
conseqüência, sugeriu a Jovellanos que reorganizasse seu
ministério. O ministro dos Negócios Estrangeiros do Império,
Francisco Correia, alertou esse diplomata para não intervir nos
assuntos internos paraguaios, exceto com conselhos e em casos
especiais, criteriosamente, para “que não pareça que temos o
intento de governar o Paraguai”.27 Jovellanos era o homem que, de
um modo ou de outro, garantia um mínimo de estabilidade política e
o funcionamento da administração pública, fundamentais para o
Império ter êxito na política de manter a independência paraguaia e
evitar a posse do Chaco boreal pela Argentina.
Na segunda metade de 1872, o governo imperial foi informado
dos planos de uma nova sublevação no Paraguai, a ser
desencadeada em dezembro daquele ano. Os conspiradores
planejavam tomar o poder e estabelecer uma aliança militar com a
Argentina, denunciando os tratados de paz assinados pelo Paraguai
com o Império.28 Azambuja tomou providências para reforçar a força
brasileira de ocupação, solicitando ao presidente de Mato Grosso o
envio de 500 soldados. O movimento conspiratório não ocorreu,
devido, acreditava Azambuja, às cautelas que ele tomara, o que o
levou a cancelar, em novembro, a requisição desse reforço.29
A essa altura as relações entre Jovellanos e Azambuja estavam
estremecidas, a ponto de o presidente escrever ao chanceler
brasileiro, barão de Cotegipe, acusando o diplomata de criar
obstáculos, administrativos e políticos, a seu governo. Como
resultado, o governo imperial retirou, em fevereiro de 1873,
Azambuja de Assunção.30
Soube Jovellanos ser visto como confiável pelo Império, ao
mesmo tempo em que criava condições para o fortalecimento da
facção contrária ao Brasil e para o enfraquecimento daquela
favorável, representadas, respectivamente, por Benigno Ferreira e
Juan Bautista Gill. Azambuja não se deixou enganar e agiu contra o
grupo antibrasileiro, combatendo a permanência de Ferreira no
Ministério do Interior.31 Mas o diplomata teve sua atuação minada
pelo próprio general Auto Guimarães, com o qual estava em atrito.
Este era causado, segundo análise do militar, pelo fato de que
Jovellanos e seus ministros procuravam a ele, em lugar do
diplomata, quando queriam tratar com uma autoridade do Império.
Fazendo, ingenuamente, o jogo de Jovellanos, o general sugeriu
que o governo brasileiro substituísse Azambuja.32
A Argentina, por essa época, não podia influenciar
decisivamente na situação paraguaia. Sua prioridade era obter do
governo imperial o reconhecimento de continuar a vigorar o Tratado
da Tríplice Aliança e, conseqüentemente, o respaldo brasileiro para
suas demandas territoriais contra o Paraguai. Esse foi o sentido da
missão de Bartolomé Mitre à capital brasileira, em 1872, de onde
saiu com promessa desse apoio. Mitre partiu para Assunção no
início de 1873, com instruções de assinar um tratado de limites em
que o governo paraguaio reconhecesse o Chaco como argentino até
o rio Pilcomaio, incluindo Villa Occidental. A região ao norte desse
rio deveria ser submetida à arbitragem internacional e as Missões
seriam argentinas. Para o governo argentino, a posse de Villa
Occidental era a base para seu país colonizar o Chaco, enquanto
Mitre não via utilidade em mantê-la.33
Ao chegarem a Assunção, Mitre e o negociador brasileiro, barão
de Araguaia, encontraram o governo paraguaio enfrentando uma
rebelião e suspeitava-se que nela havia influência argentina. A
sublevação tinha se iniciado em 22 de março, encabeçada pelo
general Bernardino Caballero e por Cándido Bareiro. Dias antes,
ocorrera uma tentativa fracassada de rebelião contra Jovellanos por
parte de Cirilo Rivarola. Este refugiou-se no quartelgeneral das
forças brasileiras e no dia 11 de março embarcou para Buenos Aires
a bordo de vapor brasileiro.34
O general Guimarães aconselhou Jovellanos a mobilizar a
população, pois as forças legais (350 homens) eram insuficientes
para vencer os revoltosos. O presidente foi informado de que não
haveria uma intervenção direta das forças imperiais em seu favor,
evitando-se, assim, um ato que a Argentina poderia utilizar como
pretexto para acusar o Brasil de proteger um governo sem apoio
popular. Foi-lhe dito, porém, que tal intervenção se daria “em casos
extremos”, ao mesmo tempo em que era aceito seu pedido de
fornecimento de armas.35
A revolta foi sufocada rapidamente, seus chefes fugiram, mas
em maio iniciaram outra rebelião. Dessa vez, divulgaram a versão
de que eram apoiados pelas tropas brasileiras, o que permitiu ao
movimento rebelde se estender rapidamente, chegando a mobilizar
4 mil homens.36 A posição do governo imperial, porém, era outra:
caso houvesse fornecimento de apoio material ou militar aos
rebeldes por parte de autoridades argentinas, “nós devemos fazer o
mesmo ao governo do sr. Jovellanos”.37 A chancelaria brasileira
acreditava que os revoltosos tinham auxílio material da Argentina,
“que não se descuida de promover a ruína do Paraguai para melhor
dominá-lo”.38
Em 17 de junho, os rebeldes, liderados pelo general Caballero,
cercaram Assunção com 2 mil homens e ameaçaram atacá-la.
Araguaia, Mitre e o general Guimarães foram ao acampamento dos
sediciosos, alertaram que não permitiriam a entrada dos rebeldes na
capital e propuseram um armistício, que foi aceito pelos líderes
revoltosos até a manhã seguinte. Jovellanos, que estava
entrincheirado com 400 homens e quatro canhões na praça da
catedral, informado de que a vanguarda da coluna legalista que
vinha do interior já travava escaramuças com os revoltosos, rejeitou
as proposições de pacificação. Mitre e Araguaia intimaram os
rebeldes a restringir seus ataques apenas a essa praça e, após
duas horas de luta, os atacantes foram rechaçados pelas forças
legais.39
Mitre teve um comportamento “cavalheiresco” nos
acontecimentos, mas o adido da legação argentina deu aos
rebeldes informes sobre os meios de defesa do governo paraguaio e
sobre as fortificações da cidade.40 Nesse contexto, Mitre não
conseguiu nem avançar nas negociações de paz e definição de
limites, nem obter o prometido apoio brasileiro às reivindicações
territoriais argentinas, pois o governo imperial não alterou sua
política. Tejedor instruiu Mitre a retirar-se para Buenos Aires. A
Argentina era, então, o único país da Tríplice Aliança que não havia
assinado os tratados de paz com o Paraguai, pois o Uruguai o fizera
em agosto de 1873.41
Logo surgiu nova conspiração contra Jovellanos, preparada em
Corrientes por exilados paraguaios. Ela foi desencadeada em
janeiro de 1874, “preparada em território argentino com ciência e
tolerância do governo do sr. Sarmiento”, o que levou a legação
brasileira a apoiar o presidente paraguaio. Este foi aconselhado a
tomar enérgicas providências para impedir que a rebelião adquirisse
maior envergadura e, ao mesmo tempo, buscasse uma conciliação
com os diferentes grupos políticos, a qual não ocorreu.42
A revolta avançava e, em virtude “dos preparativos bélicos da
Argentina e da sua política cada vez mais marcadamente hostil ao
Império”, foram fortalecidas as forças brasileiras em Assunção. O
general Auto Guimarães solicitou a vinda do 2o Batalhão de
Artilharia de Corumbá, que contava com efetivo de 398 homens.43
Quando o governo paraguaio comunicou que os rebeldes haviam
instalado uma bateria de canhões na foz do rio Tebicuari,
ameaçando a navegação em direção àquela capital, uma
canhoneira brasileira foi enviada para esse ponto e conseguiu que
os rebeldes retirassem o armamento. Na ocasião, o ex-presidente
Cirilo Rivarola subiu à embarcação e afirmou não ser a revolução
protegida pela Argentina, e sim sustentada apenas por ele e por
Juan Bautista Gill.44
Para tentar pacificar a situação, a legação brasileira convenceu
Jovellanos a declarar uma anistia geral, em 3 de fevereiro de 1874.
Os rebeldes, porém, vitoriosos no interior do país, marcharam sobre
Assunção, levando o presidente ao desespero, pronto para
entregar-lhes o poder. Só não o fez porque o ministro
plenipotenciário brasileiro, Araújo Gondim, o convenceu do
contrário, com a promessa de apoio material. Na manhã do dia 12
de fevereiro, as forças legais, comandadas por Benigno Ferreira,
foram derrotadas a poucos quilômetros de Assunção. Após uma
demonstração de força por parte das tropas brasileiras, que
ocupavam pontos estratégicos da capital, um dos líderes rebelados,
general Caballero, aceitou negociar. Como resultado, acabou
havendo, na legação imperial, uma conciliação entre Jovellanos e os
sublevados.45
Gondim viu na conciliação um triunfo da diplomacia imperial,
pois foram mantidos os poderes políticos do Paraguai e constituído
um ministério “com elementos decididamente favoráveis à aliança
com o Brasil”. Concluiu que o apoio argentino à rebelião existira,
mas não “nas proporções exageradas que geralmente se lhe
dava”.46 Juan Bautista Gill, em conversa com Gondim, declarou sua
“completa adesão ao Brasil” e afirmou que Caballero, Bareiro e
Serrano haviam modificado profundamente a sua opinião em
relação ao Império. Tais líderes teriam passado a ver no Império, e
não na Argentina, o apoio que o Paraguai necessitava.47
Na nova situação que se instalou, Gondim comportou-se com
desenvoltura, participando das decisões quanto à política externa
paraguaia.48 Em 1874 terminava o mandato presidencial de
Jovellanos, e o governo imperial instruiu Gondim a deixar claro a
Jovellanos e a outras pessoas influentes “que o futuro presidente
não deve ser um inimigo do Brasil”. A pessoa de maior confiança da
chancelaria imperial era Juan Bautista Gill.49
O cônsul argentino, Miguel Gallegos, discretamente respaldado
pelo general Vedia, apoiava a candidatura do general Caballero, que
também contava com o suporte de Cándido Bareiro.50 Na noite de
29 de março, Jovellanos assinou em sua residência, protegida por
soldados brasileiros, a exoneração dos ministros Cándido Bareiro,
Bernardino Caballero e Francisco Soteras. Os demitidos
sublevaram-se no dia seguinte, com o respaldo dos soldados
paraguaios, e foram bem-sucedidos na convocação que fizeram
para que a população os apoiasse. O presidente e seus dois
aliados, Gill e o coronel Serrano, refugiaram-se na legação imperial.
Mais uma vez Gondim arbitrou a situação política paraguaia,
intimando os revoltosos a pôr fim ao movimento, e impôs
conciliação, fazendo Jovellanos reconduzir ao ministério os líderes
da rebelião. Em seguida o governo paraguaio cassou o exequatur
do cônsul argentino Miguel Gallegos.51
Por iniciativa de Jovellanos, os coronéis Serrano e Escobar
foram promovidos a generais, de modo a contrabalançar a influência
de Caballero, até então único militar com essa patente no país.
Como Caballero tinha grande ascendência sobre as tropas
paraguaias, o governo as licenciou sob o argumento da necessidade
de conter gastos, deixando no serviço ativo apenas 200 homens e
100 policiais. Alguns oficiais se anteciparam a essa medida e se
retiraram de Assunção, com suas armas, junto com os soldados a
serem licenciados, e estes, sob a liderança do comandante Molas,
se sublevaram e exigiram a renúncia do chefe de Estado, bem como
a expulsão de Gill e Serrano do Paraguai. Na noite de 24 de abril,
em seu avanço sobre a capital, os rebeldes bateram uma força
legalista de 800 homens, comandada pelo general Serrano.
Jovellanos solicitou, então, apoio à legação imperial, e uma coluna
de mais de 2 mil soldados brasileiros, comandada pelo general Auto
Guimarães, e mais um corpo de soldados paraguaios marcharam
contra os sublevados. Estes tentaram negociar com a coluna
brasileira e receberam como resposta a intimação para render-se, o
que os levou a dispersar. Os líderes revoltosos Molas e Goiburú
refugiaram-se em Corrientes, enquanto Cirilo Rivarola foi
capturado.52
Se o controle da situação política no Paraguai não era difícil para
o governo imperial, o mesmo não se pode dizer do relacionamento
entre seus dois mais importantes funcionários em Assunção. Araújo
Gondim, tal qual seu antecessor, entrou em atrito com o general
Guimarães. Este, já em março de 1874, discordava da “excessiva”
cortesia do tratamento dado pelo diplomata aos políticos
paraguaios, que, por isso, se tornavam arrogantes. O general
afirmava obedecer a Gondim devido a ordem superior nesse
sentido, mas ponderava que o diplomata era inexperiente. Cinco
meses depois, em agosto, as relações entre essas duas autoridades
brasileiras tinham-se agravado e chegaram ao rompimento, devido a
um incidente entre o secretário da legação imperial, José Gurgel do
Amaral Valente, e o comandante do 8o Batalhão de Infantaria,
coronel José Thomaz Gonçalvez. Este militar foi acusado pelo
secretário de agredi-lo em público, mas um conselho de
investigação inocentou o coronel no incidente. Guimarães informou
ao governo imperial que existia “desarmonia” entre ele, comandante
militar brasileiro, e Gondim. Após lembrar que estava há nove anos
longe da família e que continuaria a servir o Brasil, o general afirmou
que não podia sujeitar-se àquele diplomata e pediu providências,
caso contrário daria parte de doente para retirar-se do seu posto.53
Essa situação decorria do fato de Gondim querer disciplinar o
comportamento dos militares brasileiros no país. A divisão do
Exército imperial estava há cinco anos em Assunção e isso relaxara
a disciplina, com oficiais e soldados constituindo família com
mulheres paraguaias. Esses militares, além de não obedecerem às
leis locais, às quais, pelo tratado de paz, não estavam submetidos,
as afrontavam, o que causava constantes atritos entre eles e os
habitantes da cidade. O próprio governo paraguaio não conseguia
fazer valer sua autoridade, mesmo em temas onde era soberano.
Assim, por exemplo, estando isentas de impostos as mercadorias
importadas destinadas à tropa imperial, o fornecedor delas utilizava-
se desse disfarce para introduzir contrabando no país. Segundo
Miguel Gallegos, nessa ilegalidade o general Auto Guimarães tinha
participação.54
Gondim insistiu, junto ao governo imperial, para que o general
Auto Guimarães fosse retirado do Paraguai, argumentando que sua
permanência acarretaria “dissabores e dificuldades ao Brasil”. Antes
disso, Higino Uriarte, futuro vice-presidente paraguaio, ao passar
pela capital brasileira rumo à Europa, alertou pessoalmente a
chancelaria brasileira para a necessidade da retirada do barão de
Jaguarão, por se constituir um obstáculo à boa marcha da
administração guarani.55 Esse militar colocara um brasileiro como
secretário particular do presidente da República e dois outros nas
sub-secretarias dos ministérios do Interior e das Relações
Exteriores, o que lhe permitia saber à noite o que ocorrera no país
durante o dia. Pondo fim a essa situação, Juan Bautista Gill, ao
chegar à Presidência em setembro de 1874, proibiu a permanência
de estrangeiros no serviço público. Essa medida não foi vista por
Araújo Gondim como hostil ao Império, conforme afirmavam os
brasileiros que perderam seus empregos, os quais para fazer
propaganda contra o governo local se apoiavam “em nossas
próprias forças de terra”. A perda de poder sobre a administração
paraguaia explica a hostilidade que Auto Guimarães tinha em
relação ao presidente Gill.56
Havia em Assunção, à época, dois jornais editados em
português: Gazeta Brazileira e El Cabrión, sendo este último
satírico. Na elaboração de ambos participavam oficiais da divisão
imperial, inclusive o secretário de Jaguarão, sendo constantes,
neles, os ataques a Gondim, bem como ao governo paraguaio. Era
público que esses artigos tinham beneplácito ou origem no próprio
quartel-general brasileiro, o que criava dificuldades à legação
imperial. Gondim havia solicitado remoção do Paraguai, por motivos
de saúde, e teve aprovado seu pedido em agosto de 1874. Contudo,
permaneceu no país até o ano seguinte, para estar seguro de que
Juan Bautista Gill se consolidara na Presidência. Antes de retirar-se,
o diplomata assistiu, em 12 de maio de 1875, à partida do barão de
Jaguarão e seu estado-maior, chamados de volta ao Brasil. O jornal
governista La Pátria, de Assunção, noticiou que a partida do general
Auto Guimarães, a bordo da canhoneira Inhaúma, fez com que
houvesse grande concentração popular nas ruas e no porto da
capital para, segundo afirmou o periódico, com irônica ambigüidade,
“ter o prazer” de dar adeus ao militar.57
O Império desejava, na verdade, retirar o mais breve possível
toda a divisão brasileira do Paraguai, pois os gastos com sua
manutenção contribuíam para agravar o déficit público. Contudo, o
governo imperial não estava disposto a retirá-las, se com isso viesse
a comprometer sua política na região. A retirada estava
condicionada à assinatura de tratados de paz, entre os governos
paraguaio e argentino, que mantivessem a independência paraguaia
e a posse do Chaco pelo Paraguai.

A “criatura” se volta contra o “criador” e o fim da ocupação


militar do Paraguai
Em conseqüência dos conselhos recebidos, o presidente Gill
propôs ao governo argentino novas negociações a serem realizadas
na capital brasileira. Por sugestão de Araújo Gondim, o governo
paraguaio escolheu, como seu negociador, Jaime Sosa Escalada,
vice-presidente da Câmara de Deputados, o qual viajou para o Rio
de Janeiro no navio-transporte Madeira, da Marinha imperial.58 Em
janeiro de 1875, Juan Bautista Gill nomeou o ex-presidente
Jovellanos para uma missão confidencial ao Rio de Janeiro. Nesta
capital deveria contratar empréstimos e, ainda, auxiliar Sosa nas
negociações de paz. Contudo, o objetivo verdadeiro de tal
nomeação era afastar de contatos com autoridades argentinas
Jovellanos, que fingiu aceitar a nomeação para poder sair com
segurança do Paraguai. Chegando a Buenos Aires, Jovellanos
desistiu da missão; acusou o Império de intervir nos assuntos
internos do seu país e passou a exercer papel de intermediário entre
Jaime Sosa e o governo argentino.59
Na Argentina, Nicolás Avellaneda assumiu a Presidência da
República em outubro de 1874 e retomou as negociações com o
Paraguai. Para tanto, enviou ao Rio de Janeiro o ex-chanceler
Carlos Tejedor, que chegou, então, a um acordo com Jaime Sosa
Escalada, pelo qual as Missões e a ilha de Atajo seriam territórios
argentinos, enquanto o Chaco, ao norte do Pilcomaio, caberia ao
Paraguai, exceto Villa Occidental. Esta localidade e mais um
pequeno território adjacente pertenceriam à Argentina, que, em
troca, cancelaria a dívida de guerra pública paraguaia para
consigo.60
O governo imperial reagiu enviando, imediatamente, a
canhoneira Braconot a Assunção, com cópia do Tratado Sosa-
Tejedor. A belonave chegou a essa capital na noite de 14 de junho,
com instruções para o representante brasileiro na cidade, enquanto
o navio argentino Goya, trazendo uma cópia do mesmo tratado,
aportou dois dias depois. Ademais, apenas no dia 19 chegou um
enviado especial do governo argentino, o senador Dardo Rocha,
com a tarefa de conseguir que o acordo assinado por Sosa fosse
ratificado pelo Congresso paraguaio.61
O atraso do governo argentino em remeter o tratado para a
capital paraguaia foi fatal aos seus interesses. Na mesma noite de
14 de junho, Felipe José Pereira Leal, substituto de Gondim,
procurou o chanceler Machaín e, juntos, encontraram-se com Gill, o
qual anulou, por decreto, o acordo assinado no Rio de Janeiro.62
Nessa época, porém, o presidente Gill discretamente iniciou seu
afastamento da órbita de influência do Império, devido à hostilidade
que sofrera dos comandantes das forças terrestre e naval brasileiras
no Paraguai. Em fins de junho de 1875, Dardo Rocha teve dois
encontros secretos com Gill e, no primeiro, concluiu que este “no
fundo não é amigo do Brasil, mas o teme e não crê que a República
[Argentina] possa compensar a perda da proteção sem limites, que
esse governo [imperial] lhe presta”. No segundo encontro, Gill
afirmou que começava a ser alvo da desconfiança da legação
brasileira e desculpou-se por sua conduta contraditória, que,
afirmou, se dera pela necessidade de apoiar-se no Brasil, devido ao
abandono de seu país pela Argentina.63
Em 7 de julho, Dardo Rocha partiu de Assunção. Sua presença
era supérflua, pois o Tratado Sosa-Tejedor já fora repudiado pelo
Congresso paraguaio. Partiu com a vitória de ter estabelecido
canais secretos para uma negociação direta entre os governos das
duas repúblicas.64
Enquanto isso, nos meses de junho e julho, aumentava a tensão
entre o Império e a Argentina. Resultava das informações que
diplomatas brasileiros, em Assunção e Buenos Aires, recebiam
sobre preparativos, por exilados paraguaios em território argentino,
de uma sublevação contra o presidente Gill. Essas informações
coincidiam com a partida de Dardo Rocha e do coronel Uiburú
(governador do Chaco, cuja administração tinha como sede Villa
Occidental), acompanhados de vários oficiais e de tropa de linha
rumo ao Paraguai. Por precaução, a legação brasileira no Paraguai
requisitou ao presidente de Mato Grosso o envio para Assunção do
2o Batalhão de Artilharia, aquartelado em Corumbá, ao mesmo
tempo em que ordenou ao 2o Batalhão de Infantaria, sediado nessa
província, manter-se de prontidão. Reforçava-se, assim, a tropa
imperial de ocupação que, excluídos os doentes, dispunha até então
de 1.200 soldados em condições de combate para se contrapor a
uma tentativa de tomada pela força, conforme rumores que corriam,
da ilha de Atajo pela Argentina. Comentava-se que o reforço de Villa
Occidental, com mais de mil homens, tinha como objetivo viabilizar
essa tomada.65
O 2o Batalhão de Artilharia constituiu-se, porém, em um motivo a
mais de preocupação do que de garantia para a legação imperial.
Demonstrando a situação precária da disciplina das forças imperiais
em Assunção, esse batalhão sublevou-se contra o seu comandante.
Isso ocorreu devido ao excesso de bebida, e o fim da sublevação
não foi tranqüilo, pois 20 soldados ficaram feridos no esforço de
restaurar a ordem.66
Mesmo após a revolução contra Gill ter sido frustrada, Assunção
fervilhava de boatos e a situação apresentava-se como incerta para
a legação imperial. O ministro plenipotenciário Pereira Leal
descrevia um quadro preocupante.67 Naquele momento, porém, o
risco maior para a diplomacia imperial era a possibilidade de
distanciamento de Gill do Brasil, na medida em que ele tivesse
condições para tanto ou se as circunstâncias assim o impusessem.
Tal momento se apresentou em meados de 1875, devido a um
conjunto de fatores: as ameaças da Argentina de retaliar contra a
entrada de produtos paraguaios em seu mercado; a não-obtenção
de apoio financeiro do Rio de Janeiro, por parte do governo
paraguaio; a hostilidade de oficiais brasileiros em relação a Gill, bem
como à atuação do próprio Pereira Leal. Este, em contraste com
Araújo Gondim, seu antecessor, era distante, de início, do
presidente paraguaio e, mais tarde, passou a hostilizá-lo. Ademais,
Gill aplicou medidas fiscais que atingiram os comerciantes
estrangeiros, incluindo os brasileiros, os quais tinham a
solidariedade da legação imperial. Os três maiores entre eles,
Segóvia, Mendes Gonçalves e Travassos, queixavam-se de que o
governo paraguaio lhes devia grandes quantias; Travassos até
havia ajudado financeiramente a eleição do presidente.68
Ao se ver ameaçado pela hostilidade das autoridades brasileiras
no Paraguai e não tendo sido atendido pelo governo imperial nos
pedidos de empréstimos, Gill deixava de ter motivos para continuar
aliado ao Império. A “criatura” voltou-se contra o seu “criador”, e o
presidente mudou seu ministério, nomeando homens que
propunham a desocupação estrangeira do Paraguai e que estavam
“ansiosos” para chegar a um acordo com a Argentina.69
A mudança de ministério fez com que Pereira Leal se colocasse
definitivamente contra Gill. Afastado do ministério, o general Serrano
queria iniciar uma rebelião e solicitou à legação imperial a
intervenção das tropas brasileiras para darem o “impulso” ao
movimento. Tendo em vista as instruções anteriores do Rio de
Janeiro, Pereira Leal negou-se a atender Serrano, mas estimulou-o
a se rebelar, garantindo-lhe que, se necessário, receberia asilo na
legação brasileira. O diplomata Leal reuniu os comandantes das
forças brasileiras, naval e terrestre, e afirmou-lhes que havia
possibilidade de Gill assinar o tratado de paz com a Argentina e que
isso poderia levar a uma guerra entre o Rio de Janeiro e Buenos
Aires. O diplomata sugeriu que ele e os comandantes se dirigissem
ao presidente, para pressionálo contra a alteração do ministério. Os
chefes militares não concordaram com a proposta, afirmando que
Gill exercera legitimamente sua autoridade ao alterar a composição
do ministério, e aconselharam Pereira Leal a não tomar qualquer
atitude.70
Enquanto isso, o presidente paraguaio reclamou a Cotegipe que
“comerciantes falsos e corrompidos (…) se apoderaram do caráter
do sr. ministro Pereira Leal”, para colocar no poder gente como o
general Serrano. Escrevia o chefe de Estado que seus opositores
tinham como apoio central o cônsul-geral brasileiro, Totta, e que o
próprio Pereira Leal estava comprometido nos acontecimentos,
responsabilizando este último pelo que viesse a ocorrer. Ao mesmo
tempo, o presidente elogiava o comandante da divisão naval
brasileira fundeada em Assunção, que lhe prometera apoio. Gill
reclamava providências contra Pereira Leal, para que as relações
entre os dois países voltassem a ser harmoniosas, e em 6 de
novembro queixava-se que, quando Serrano recusou submeter-se à
autoridade policial paraguaia, tinha sua casa guardada por soldados
imperiais. Respondeu Cotegipe que se o representante brasileiro
agira contra o governo paraguaio, isso se dera em desobediência às
instruções que recebera, embora negasse que o diplomata tivesse
conspirado.71
A essa altura, nos primeiros dias de novembro, o barão de
Cotegipe já se decidira por substituir Pereira Leal, após censurá-lo
por suas atitudes em relação ao presidente paraguaio. Estas,
afirmava, poderiam atirar Gill nos braços da Argentina, como forma
de manter-se no poder. Aprovava Cotegipe a atitude dos chefes
militares de não pressionarem o presidente guarani e indicava como
singular a posição do Império no Paraguai, pois, querendo retirar-se
do país com honra, era acusado de ter outras intenções.72
Acumulavam-se, em fins de novembro, as evidências de que
havia uma articulação secreta entre Buenos Aires e Assunção, com
a boataria acrescentando que Villa Occidental seria reconhecida
como argentina. Em meio a essa situação, Pereira Leal, envolvido
por comerciantes brasileiros, apoiou uma tentativa de golpe de
Estado encabeçada pelo general Serrano, apesar das instruções em
contrário da chancelaria imperial.73
A essa altura, Gill já decidira enviar Facundo Machaín a Buenos
Aires para negociar os tratados de paz e limites com a Argentina. O
encarregado de negócios argentino em Assunção, Manuel Derqui,
no posto desde fins de novembro, informava a Rocha da ida de
Machaín, que partia “bem disposto, e não esqueças o assunto
auxiliar, e fale com o dr. Alsina sobre isso”. Essa frase tratava do
empréstimo de 50 mil pesos para o Paraguai, que fora negociado
pelo cônsul paraguaio, Carlos Saguier, junto ao Banco Nacional com
aval do governo argentino. Esse dinheiro, segundo Sinforiano
Alcorta, foi parar, em sua totalidade, nos bolsos do presidente Gill.
De tal empréstimo o Império somente tomou conhecimento meses
depois.74
O movimento contra o presidente Gill teve início em 9 de
dezembro de 1875. Em Buenos Aires, o cônsul paraguaio, Carlos
Saguier, informou o presidente Avellaneda do fato e solicitou o
reforço das tropas argentinas no Paraguai, pois a sedição tinha o
apoio de brasileiros. O governo argentino fortaleceu suas forças na
República vizinha, enviando a canhoneira Paraná para Assunção,
onde já se encontravam o Pavón e uma lancha a vapor. O chefe de
Estado argentino prometeu a Saguier, no início de janeiro de 1876,
que seriam remetidas armas a Villa Occidental — 500 modernas
carabinas Remington e 200 sabres de cavalaria — que ficariam à
disposição de Gill, caso este as solicitasse.75
Os rebeldes, chefiados por Serrano e Molas, percorreram o
interior do país tentando conseguir adesões, mas tiveram pouco
sucesso. O número de oposicionistas em Assunção era “incapaz de
ação diante da atitude ameaçadora do governo apoiado nas
baionetas do sr. Derqui”. A legação argentina, para evitar algum
movimento sedicioso na capital, trouxe de Villa Occidental duas
companhias de soldados, para apoiarem o presidente Gill. Desse
modo, os insurgentes foram facilmente derrotados, sendo o general
Serrano aprisionado, torturado e morto.76
Facundo Machaín, enviado por Gill como ministro extraordinário
e plenipotenciário para negociar os tratados de paz com a
Argentina, chegou a Buenos Aires em 15 de dezembro. Dias depois,
em 21, o governo imperial respondeu positivamente ao convite do
governo de Avellaneda para tomar parte nessas negociações.77
Para acompanhá-las foi nomeado o barão Aguiar de Andrada, com
instruções de não manter qualquer contato confidencial com
Facundo Machaín nem tentar influenciá-lo. Segundo o chanceler
Cotegipe, a posição brasileira deveria ser clara e definida,
caracterizada pela moderação, mas de tal modo que esta não fosse
tomada como sinal de fraqueza. Se o negociador argentino,
Irigoyen, propusesse a desocupação do Paraguai pelas tropas
brasileiras, sem que os tratados de paz tivessem sido negociados, o
assunto não deveria ser discutido por Aguiar de Andrada, pois tal
retirada teria como critério unicamente a conveniência do Brasil.
Quanto a Villa Occidental, considerava o governo imperial que o
melhor seria que ficasse de posse paraguaia; porém, se tal não se
desse, o enviado brasileiro poderia apoiar como alternativa o
arbitramento internacional sobre ela.78
As negociações em Buenos Aires transcorreram sem maiores
dificuldades, e em 3 de fevereiro de 1876 foram assinados os
tratados de Paz, Limites, Amizade e de Comércio e Navegação.
Quanto às fronteiras, ficou determinado o rio Paraguai como limite
entre as duas Repúblicas, sendo declarados argentinos os territórios
das Missões e do Chaco Central. O resto do território chaquenho foi
dividido em duas porções, com a Argentina renunciando a qualquer
pretensão entre a baía Negra e o rio Verde; já a área entre este e o
braço principal do rio Pilcomaio, incluindo Villa Occidental, seria
submetida à arbitragem do presidente dos Estados Unidos. Ficou
decidido que as forças de ocupação se retirariam de solo guarani
até 3 de junho do mesmo ano, data proposta por Aguiar de Andrada,
em contraposição à sugestão inicial de Irigoyen de que a retirada
ocorresse em três meses. O representante imperial argumentou que
o nível da água dos rios, antes de junho, estariam baixos, impedindo
que os navios de transporte brasileiros, com tropas e equipamentos,
navegassem livremente. No referente à dívida de guerra, foram
reconhecidas como tal os gastos do governo de Buenos Aires no
conflito, além dos prejuízos causados a propriedades públicas e
privadas, quando da invasão do território argentino.79
Os tratados assinados entre as duas Repúblicas consagravam
todos os objetivos da diplomacia imperial. De fato, eles
estabeleceram a desocupação simultânea, pelas tropas brasileiras e
argentinas, de Assunção e Villa Occidental, respectivamente;
reconheceram a dívida de guerra; e ainda deram a solução
desejada pelo Rio de Janeiro para a questão de limites. O próprio
Aguiar de Andrada analisou os resultados como a realização dos
objetivos do governo imperial, embora a posse de Villa Occidental e
território adjacente pelo Paraguai não se desse imediatamente,
sendo submetida a arbitragem.80 Neste litígio, o laudo arbitral do
presidente norte-americano Rutherford Hayes, de 1878, foi
totalmente favorável ao Paraguai. Em 13 de maio de 1876 começou
a retirada das tropas brasileiras de ocupação. O Rio de Janeiro
desejava que o presidente Gill fizesse uma nota oficial agradecendo
pelo serviço prestado pelas forças imperiais ao Paraguai. O
chanceler Cotegipe não ficou satisfeito com a “estranha linguagem e
conteúdo” do manifesto que o presidente lançou naquela data,
considerando-o injusto. A nota não explicitava, em nenhum
momento, agradecimentos aos países aliados, entendendo a
ocupação como um mal que fora necessário.81
As tropas brasileiras retiradas do Paraguai, num total de 1.894
homens, foram aquarteladas em posições estratégicas, próximas da
região do rio da Prata, sendo a maioria no Mato Grosso. Para esta
província foram enviados os 2o e 3o regimentos de Artilharia e o 8o
Batalhão de Infantaria; para o Rio Grande do Sul seguiu o 2o
Batalhão de Cavalaria Ligeira, enquanto o 17o Batalhão de
Infantaria foi aquartelado em Santa Catarina. Terminavam, assim, as
últimas conseqüências militares da Guerra do Paraguai.
Derrotado na guerra contra a Tríplice Aliança (1865-70), o
Paraguai continuou sob ocupação militar brasileira até 1876. As
forças brasileiras no seu território eram constituídas por uma divisão
do Exército, aquartelada na periferia de Assunção, e por uma flotilha
da Marinha, fundeada na baía dessa capital. Essa força contava
ainda, em caso de emergência, com o reforço, em curto prazo, de
tropas e canhoneiras vindas de Mato Grosso.
Soldados e marinheiros deram sustentação à ação diplomática
do Império no Paraguai. Esta teve como objetivos ratificar a
independência do país guarani diante da Argentina, evitando que
Buenos Aires tivesse influência sobre o governo paraguaio; impedir
que todo o território do Chaco, até a fronteira com o Mato Grosso,
se tornasse argentino, como determinava o Tratado da Tríplice
Aliança; e substituir o regime político autocrático, o único que o
Paraguai conhecera, por outro, constitucional. Era interesse do
Império obter a definição da fronteira brasileiro-paraguaia, nos
termos pleiteados desde a década de 1840, e também garantir a
livre navegação, por navios brasileiros, dos rios internacionais que
atravessavam o território paraguaio. Todos esses objetivos foram
alcançados pelo governo imperial. E para tanto foi vital o respaldo
das forças brasileiras no Paraguai à ação da diplomacia imperial
para instalar e manter governos. Rebeliões contra as autoridades
legais foram superadas pela ação da legação brasileira e, quando
esta foi insuficiente, a mobilização das forças imperiais pôs fim à
sublevação.
Se a permanência dos militares brasileiros no Paraguai deu
suporte à ação da diplomacia imperial, paradoxalmente também lhe
criou dificuldades. De fato, esses militares, nos anos que
permaneceram no país, criaram vínculos familiares, econômicos e
políticos, gerando, com alguma freqüência, desrespeito às
autoridades paraguaias e atritos com a população local. Essa
situação foi superada em 1875, quando o governo imperial retirou
do Paraguai o general Auto Guimarães, barão de Jaguarão, que
comandava a divisão de ocupação desde o final da guerra e resistia
a subordinar-se à autoridade diplomática brasileira no país.
Essa situação se inverteu em fins de 1875, quando o
representante diplomático brasileiro, Felipe José Pereira Leal, se
envolveu com comerciantes estrangeiros em Assunção, embora por
motivos políticos e não para ganhos pessoais. O diplomata
conspirou contra o governo paraguaio, contrariando as instruções
que recebera da chancelaria imperial, às quais se restringiram os
comandantes militares brasileiros. Pereira Leal instigou uma
rebelião armada contra o presidente Gill, o qual, após sufocá-la,
aproximou-se da Argentina, assinando em 1876 os tratados de paz
entre os dois países. Esses documentos, porém, realizaram os
objetivos do Império do Brasil, levandoo a desocupar o Paraguai,
ato pelo qual ansiavam os governantes brasileiros, pois era precária
a situação do Tesouro imperial, o que demandava o corte de gastos
públicos.
O governo imperial aliou-se, no pós-guerra, ao vencido, o
Paraguai, contra um vencedor, a Argentina, para manter a
independência paraguaia e a soberania de Assunção sobre o
território do Chaco, entre o rio Pilcomaio e a fronteira com o Brasil.
Esses objetivos foram alcançados pela hábil ação diplomática do
Império — em contraste com os erros diplomáticos argentinos —,
respaldada na superioridade militar do Império sobre a Argentina,
permitindo sustentar a ocupação do Paraguai por forças brasileiras.
Bibliografia
ALCORTA, Sinforiano. Antecedentes históricos sobre los tratados
con el Paraguay. Buenos Aires: Moreno y Nuñez, 1885.
CAILLET-BOIS, Teodoro. Historia naval argentina. Buenos Aires:
Emece, 1944.
CÁRCANO, Ramón J. Guerra del Paraguay: acción y reacción de la
Triple Alianza. Buenos Aires: Domingo Vian, 1941. v. 2.
DORATIOTO, Francisco F. M. Maldita guerra: nova história da
Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
FREIRE ESTEVES, Gómes. Historia contemporánea del Paraguay.
Buenos Aires: [s.n.], 1921.
MELLO, Francisco Ignácio Homem de. Viagem ao Paraguai. Revista
Trimestral do Instituto Histórico, Geográfico e Ethnográphico do
Brasil, v. 36, 1873.
QUESADA, Ernesto. La política argentino-paraguaya. Buenos Aires:
Bradahl, 1902.
SALUM-FLECHA, Antonio. Historia diplomática del Paraguay de
1869 a 1938. Asunción: Emasa, 1978.
SCENNA, Miguel Ángel. Argentina — Brasil: cuatro siglos de
rivalidad. Buenos Aires: La Bastilla, 1975.
VIDIGAL, Armando Amorim Ferreira. A evolução do pensamento
estratégico naval brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
1985.
WARREN, Harris Gaylord. Paraguay and the Triple Alliance: the
post-war decade, 1869-1878. Austin: University of Texas Press,
1978.

* Doutor em história pela UnB; professor da Universidade Católica de Brasília


e do Instituto Rio Branco.
1 Ver Doratioto (2002:419-420).
2 Ver Mello (1873:31).
3 Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, doravante RRNE, 1869,
anexo 1, p. 78; Nota de Paranhos para o Governo Provisório, Assunção, 19-8-
1869 (RRNE, 1872, p. 97).
4 Nota do governo argentino à Missão Especial do Brasil no Paraguai, Buenos
Aires, 2712-1869 (RRNE, anexo 1, p. 120-121).
5 Paranhos para Cotegipe, carta particular 56, Buenos Aires, 4-5-1870
(Arquivo do Barão de Cotegipe — Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
doravante ABC-IHGB).
6 Ver Warren (1978:73, 79-80, 83-85); Freire Esteves (1921:16-18).
7 Eduardo Vidal, representante uruguaio, para ministro das Relações
Exteriores do Uruguai, Assunção, 7-9-1870 (Archivo General de la Nación —
Uruguay, doravante AGNU, caixa 428, pasta 8).
8 Ver Warren (1978:83-84); Guimarães para o ministro da Guerra, barão de
Muritiba, Assunção, 1-9-1870 (Arquivo Nacional, doravante AN, códice 547, v.
21); Mariano Varela para general Vedia, Buenos Aires, 8-7-1870 (Archivo del
Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional y Culto,
“Paraguay”, caixa 52, expediente 26).
9 Ver Warren (1978:88-89); Freire Esteves (1921:20).
10 Ver Freire Esteves (1921:23-24).
11 Em 1871, a 1a Brigada contava com 1.701 homens, distribuídos entre o 4o

Batalhão de Artilharia, o 2o Regimento de Cavalaria Ligeira e o 7o e o 17o


batalhões de Infantaria. A 2a Brigada, por sua vez, possuía 1.996 homens,
distribuídos em quatro batalhões de infantaria (8o, 10o, 15o e 16o). Havia,
ainda, 25 oficiais distribuídos no Estado-Maior, no Corpo de Saúde e na
Repartição Eclesiástica. (Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios da
Guerra, doravante Reseneg, anos de: 1870, anexo 1-9 e A3-6; 1872, anexo A,
apresentado à 4a sessão da 14a legislatura; 1872, apresentado à 2a sessão
da 15a legislatura; 1873, p. 7; 1874, p. 3; 1875, anexos; 1876, p. 3; e 1877, p.
9.)
12 Ver Warren (1978:98); Quintana para Carlos Tejedor, Assunção, 5-11-1871
(apud Cárcano, 1941:458); Guimarães para Rio Branco, Assunção, 1-8-1871
(ABC-IHGB, lata 922, pasta 29).
13 Ver Cárcano (1941:461).
14 Ver Freire Esteves (1921:24-25).
15 General Julio de Vedia para coronel Gainza, Assunção, 19-12-1871
(Archivo General de la Nación — Argentina, doravante: AGN, ex-Museo
Histórico Nacional, legajo 41, documento 5.922); Quintana para Tejedor,
Assunção, 5-11-1871 (apud: Cárcano, 1941:457); Guimarães para o chanceler
Manoel Francisco Correia, Assunção, 18-6-1872 (Arquivo Histórico do
Itamaray, doravante AHI, 246-2-5).
16 Ver Freire Esteves (1921:25).
17 Ver Cárcano (1941:465); Rio Branco para Cotegipe, RJ, 16-1-1872 (ABC-
IHGB, lata 922, pasta 36); Manoel Francisco Correia para Cotegipe, ofício
reservado, RJ, 23-11-1871 (AHI, 272-3-4).
18 Juan Bautista Gill para Cotegipe, Assunção, 16-12-1871 (ABC-IHGB, lata
94, pasta 136).
19 Azambuja para Correia, Buenos Aires, 26-7-1872 (AHI, 201-1-10).
20 Relatório da Secretaria de Estado da Marinha, 1872, p. 19.
21 Barão de Araghuaia, para Correia, ofício reservado, Buenos Aires, 9-3-
1872 (AHI, 205-3-15).
22 Ver Scenna (1975:235).
23 Ver Caillet-Bois (1944:489-490); Vidigal (1985:46).
24 Cotegipe para Guimarães, ofício reservado, Assunção, fevereiro de 1872
(AHI, 272-3-22).
25 Ver Freire Esteves (1921:26-27); Warren (1978:113, 121).
26 Ver Warren (1978:121-122).
27 Azambuja para Correia, Assunção, 25-9-1872; ofícios confidenciais, 9 e 18-
10-1872 (AHI, 201-1-10); Correia para Azambuja, ofício reservado, RJ, 23-10-
1872 (AHI, 2014-7); Azambuja para Correia, ofício reservado, Assunção, 23-
11-1872 (AHI, 201-1-10); Jaguarão para Cotegipe, ofício reservado,
Assunção, 27-9-1872 (ABC-IHGB, lata 898, pasta 32).
28 Gill para Cotegipe, Montevidéu, 1-10-1872 (ABC-IHGB, lata 894, pasta
140).
29 Ver Warren (1978:191); Azambuja para Correia, ofícios reservados ,
Assunção, 11-10 e 20-11-1872 (AHI, 201-1-10).
30 Jovellanos para Cotegipe, Assunção, 28-1-1873 (ABC-IHGB, lata 899,
pasta 144); Cotegipe para Jovellanos, RJ, 31-3-1873 (AHI, 201-1-10).
31 Azambuja para Correia, ofício reservado, Assunção, 3-8-1873 (AHI, 201-1-
10).
32 Jaguarão para Cotegipe, ofício reservado, Assunção, 6-12-1872 (ABC-
IHGB, lata 898, pasta 36).
33 Ver Cárcano (1941:736).
34 Alfredo Sérgio Teixeira de Macedo para Caravelas, Assunção, 9-3 e 24-3-
1873 (AHI, 201-1-11).
35 Jaguarão para Cotegipe, ofício reservado, Assunção, 14-3-1873 (ABC-
IHGB, lata 898, pasta 42); Teixeira de Macedo para Caravelas, Assunção, 25-
3-1873 (AHI, 201-1-11).
36 Teixeira de Macedo para Caravelas, Assunção, 2-4-1873 (AHI, 201-1-11).
Ver Warren (1978:204); Freire Esteves (1921:29).
37 Caravelas para Araguaia, ofício reservado, RJ, 5-6-1873, cópia in:
Caravelas para Gondim, reservado, RJ, 21-10-1873 (AHI, 201-4-7).
38 Caravelas para Araguaia, “reservadíssimo”, RJ, 26-5-1873 (AHI, 401-1-14).
39 Araguaia para Caravelas, Assunção, 26-3 e 23-6-1873 (RRNE, 1874,
“Paraguai — revoluções”, p. 128-129).
40 Jaguarão para Cotegipe, Assunção, 21-6-1873 (ABC-IHGB, lata 898, pasta
47).
41 Ver Cárcano (1941:736); Instruções reservadas do chanceler visconde de
Caravelas para Araguaia, RJ, 8-3 e 5-6-1873 (AHI, 272-4-14, maço 1).
42 Nota do ministro das Relações Exteriores do Paraguai ao governo
argentino, Assunção, 28-11-1873, cópia in: Amaral Valente para Caravelas,
ofício reservado, Assunção, 28-11-1873 (AHI, 201-1-11); Gondim para
Caravelas, ofício reservado, Assunção, 141-1874 (AHI, 201-1-12).
43 Gondim para Caravelas, ofício reservado, Assunção, 15-1-1874 (AHI, 201-
1-12); Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, 1873
(1874), anexo 3.
44 Gondim para Caravelas, ofício reservado, Assunção, 29-1-1874 (AHI, 201-
1-12).
45 Gondim para Caravelas, ofícios confidenciais, Assunção, 2 e 19-2-1874,
loc. cit.
46 Id., ofício reservado, Assunção, 28-2-1874, loc. cit.
47 Id., ofício confidencial, Assunção, 3-3-1874, loc. cit.
48 Id., ofícios reservados, Assunção, 15-3 e 3-6-1874, loc. cit.
49 Caravelas para Gondim, ofício reservado, RJ, 17-2-1874; e confidencial,
23-4-1874 (AHI, 201-4-7).
50 Ver Warren (1978:213).
51 M. Gallegos. Apuntes sobre alguns personas y cosas del Paraguay, que se
relacionan intimamente con intereses argentinos, Assunção, 20-2-1875
(AGNA, Archivo y colección Dardo Rocha, doravante ACDR, Sala VII, legajo
242); Gondim para Caravelas, ofícios confidenciais, Assunção, 4 e 14-4.1874
(AHI, 201-1-12).
52 Gondim para Caravelas, ofício confidencial, Assunção, 14-4-1874 (AHI,
201-1-12). Ver Freire Eesteves (1921:32).
53 Guimarães para Cotegipe, ofício reservado, Assunção, 6-8-1874 (ABC-
IHGB, lata 893, pasta 51).
54 Id., loc. cit.
55 Gondim para Caravelas, ofício confidencial, Assunção, 14-12-1874 (AHI,
201-1-12); Higino Uriarte para Gill, RJ, 2-8-1874 (Arquivo particular de Carlos
Pusineri Scala, doravante APCPS).
56 M. Gallegos. Apuntes sobre algunas personas…; Gondim para Caravelas,
ofício confidencial, Assunção, 14-12-1874 (AHI, 201-1-12).
57 Gondim para Caravelas, ofício confidencial, Assunção, 28-3-1875 (AHI,
201-1-13) e ofício particular, Assunção, 29-8-1874 (AHI, 201-1-12);
“Esplendida demonstración” (La Patria, Asunción, 11-5-1875, p. 1).
58 Higino Uriarte para Gill, RJ, 2-8-1874 (APCPS; RRNE, 1875, suplemento,
p. 11); Gondim para Caravelas, ofício reservado, 21-8-1874 (AHI, 201-1-12).
59 Ver Alcorta (1885:27); Sosa para Jovellanos, mui reservada e intimamente
confidencial, RJ, 27-3-1875 (AGNA, ACDR, correspondencia entre terceros,
legajo 242).
60 Protocolo da Conferência de 10-5-1875 (RRNE, 1875, suplemento, p. 22-
24).
61 Leal para Caravelas, ofício reservado, Assunção, 19-6-1875 (AHI, 201-1-
13); Dardo Rocha para o chanceler Pardo, Asunción, 22-6-1875 (AGNA,
ACDR, legajo 242).
62 Leal para Caravelas, loc. cit.
63 Dardo Rocha para dr. Pardo, Asunción, 22 e 30-6-1875, loc. cit.
64 Ver Quesada (1902:132).
65 Leal para Caravelas, Assunção, 15-5-1875 (AHI, 201-1-13); Pádua Fleury
para Caravelas, ofício reservado, Buenos Aires, 14-6-1875 (AHI, 205-4-2);
Leal para Caravelas, ofício reservado, Assunção, 19-6-1875 (AHI, 201-1-13).
66 Leal para Caravelas, ofício confidencial, Assunção, 3-8-1875, loc. cit.;
“Paraguai” (O Globo, RJ, 22 ago. 1875, p. 2).
67 Pereira Leal para Caravelas, ofício reservado, Assunção, 8-8-1875 (AHI,
201-1-13).
68 Leal para Cotegipe, Assunção, 23-8-1875 (ABC-IHGB, lata 901, pasta 77).
69 Ver Freire Esteves (1921:38); Alcorta para Dardo Rocha, Asunción, 16-10-
1875 (AGNA, ACDR, legajo 242).
70 Leal para Cotegipe, ofício confidencial, Assunção, 16-10-1875( AHI, 248-4-
2).
71 Gill para Cotegipe, Assunção, ofícios confidenciais 18, 24 e 27-10 e 6-11-
1875 (AHI, 248-4-2).
72 Cotegipe para Leal, RJ, 5-11-1875 (ABC-IHGB, lasta 901, pasta 75).
73 Leal para Cotegipe, ofício confidencial, Assunção, 30-11-1875 (AHI, 201-1-
13).
74 Derqui para Dardo Rocha, Assunção, 7-12-1875 (APCPS, Alcorta, 1885,
XL).
75 Saguier para Gill, Buenos Aires, 12-1 e 15-2-1876 (APCPS).
76 Seção “Exterior”, carta sem assinatura, Assunção, 9-11-1875, 13-1-1876 (A
Reforma, RJ, respectivamente 24 dez. 1875, p. 3, e 5 fev. 1876, p. 2.
Biblioteca Nacional, I-215-3-16).
77 Leal para Cotegipe, ofício confidencial, Assunção, 31-12-1875 (AHI, 201-1-
13); Saguier para Gill, Buenos Aires, 23-12-1875 (APCPS); Pádua Fleury para
Cotegipe, 1812-1875; ofício reservado, Buenos Aires, 18-2-1875 (AHI, 205-4-
3).
78 Cotegipe para Aguiar de Andrada, particular e confidencial, RJ, 3-1-1876
(AHI, 2711-7); Pádua Fleury para Cotegipe, Buenos Aires, 18-12-1875 (AHI,
205-4-3).
79 Ver Salum-Flecha (1978:74-79); RRNE, 1877, anexo 1, “República
Argentina e Paraguai”, p. 35-60.
80 Aguiar de Andrada para Cotegipe, Buenos Aires, 4-2-1876 (AHI, 271-1-8);
Cotegipe para Gondim, particular e confidencial, RJ, 4-3-1876 (ABC-IHGB,
lata 896, pasta 158).
81 Eduardo Callado para Cotegipe, Assunção, 6-5-1876 (AHI, 271-1-7);
Instruções de Cotegipe para Callado, RJ, 31-3-1876 (AHI, 201-4-9). Ver Freire
Esteves (1921:39).
CAPÍTULO 9

O cotidiano dos soldados na guarnição da Bahia (1850-


89)*

Hendrik Kraay**

Numa noite de 1862, um integrante do grupo de soldados em


patrulha na cidade de Salvador encostou-se na porta de entrada de
uma casa para ajeitar seu sapato. De dentro da casa, um homem
mandou que ele se afastasse da porta, e o cabo respondeu que não
estava fazendo “nenhum mal”. A resposta que o cabo recebeu foi um
pontapé tão forte que rasgou seu uniforme; de uma janela do
segundo andar, alguém jogou água quente em sua cabeça.1 O
incidente é rico em simbolismo, quando analisado em termos da
dicotomia da casa e da rua, presença tão freqüente em análises da
cultura brasileira. Embora o dono da casa fosse um francês de
sobrenome Boucher, sua agressiva defesa de sua casa diante da
percepção de uma ameaça vinda do desordenado mundo da rua
expressa valores partilhados por muitos brasileiros, desde as classes
mais altas aos pobres honestos. A casa representava a ordem
patriarcal, estabilidade e proteção, enquanto a rua significava
desordem e a dura aplicação de leis incapazes de reconhecer
diferenças de status.2 Os soldados pertenciam ao mundo da rua e,
quando ameaçavam violar uma casa, um chute e uma escaldadela
eram respostas adequadas, pelo menos do ponto de vista do dono
da casa. Os soldados discordaram desse ponto de vista e prenderam
Boucher em flagrante delito, quando cometeu a loucura de deixar o
santuário de seu lar para confrontálos. O comandante do batalhão
apoiou os atos da patrulha e descreveu a ordem de Boucher para
que o cabo saísse de sua porta como “absurda”.3
Este incidente é apenas um entre muitos que revelam as relações
tensas e por vezes contraditórias entre soldados e civis no Brasil do
século XIX. Os soldados podem ter sido um grupo desordeiro e
pouco digno, mas, em cidades como Salvador, eles exerciam a
autoridade de Estado e desempenhavam um papel central no
policiamento de rotina. Nesse caso, no entanto, a tarefa designada
para a patrulha era manter soldados fora dos bares vizinhos aos
quartéis; na verdade, o controle de recrutas problemáticos consumia
muito tempo e esforço dos oficiais. Ainda que o Exército brasileiro
fosse minúsculo pelos padrões europeus, o recrutamento para a
tropa foi debatido constantemente durante o Império — mesmo que
nunca tenha passado por alterações significativas — e os soldados
rasos eram uma visão comum nas ruas das cidades.4 Embora os
historiadores sociais tenham escrito bastante a respeito das classes
baixas na sociedade brasileira, os soldados nunca receberam
atenção comparável à que era dada a escravos, mulheres e pobres
livres em geral.5
Este capítulo começa com uma análise das características
sociais dos praças na guarnição de Salvador durante tempos de paz,
enfatizando suas conexões com a sociedade local. A disciplina
militar, embora fosse formalmente rígida, era moderada por vários
fatores, incluindo a resistência dos soldados, a atitude da sociedade
mais ampla em relação à disciplina e a preocupação dos oficiais em
defender ao menos alguns dos valores professados pela corporação.
Os soldados, por sua vez, formavam uma comunidade que se
estendia bem além dos quartéis e estabelecia laços de solidariedade
corporativa que os vinculavam a seus camaradas em contraposição
a outras corporações. Por fim, as tensas relações dos soldados com
amplos setores da sociedade civil, as quais muitas vezes resultavam
em incidentes como o de Boucher, revelam algumas das fissuras
nessa sociedade e o lugar por vezes contraditório dos soldados nela.

A guarnição de Salvador
Os soldados constituíam parte significativa da população de
Salvador. Ainda que os historiadores observem com freqüência que o
Exército brasileiro do século XIX raramente atingiu, se é que chegou
a atingir, o estado completo, e muitos (incluindo colaboradores deste
livro) apontem as dificuldades em recrutar para as fileiras,
observações como essas estão como que deslocadas.6 Raramente
se faz a pergunta mais importante — quantos homens constituíam de
fato a guarnição e o que eles faziam? De 1850 a 1889, a guarnição
de Salvador tinha em torno de mil homens, a não ser em tempos de
guerra — o curto conflito com Buenos Aires no início dos anos 1850
e a Guerra do Paraguai (1864-70) —, quando era consideravelmente
menor; e, no início dos anos 1860, o número de soldados na
província excedia 1.500 homens (gráfico 1). Embora 20% desses
homens permanecessem estacionados no interior da província, os
soldados se mantiveram como um grupo significativo de homens
numa cidade cuja população cresceu de cerca de 81.500 pessoas
em 1850 para 108 mil em 1872 e 145 mil em 1890.7
Os soldados não apenas formavam uma grande proporção da
população urbana de adultos do sexo masculino livres, mas viviam e
trabalhavam bem no meio da cidade. Os quartéis e fortes da era
colonial que serviam como alojamento para a maioria dos soldados
(Forte São Pedro e Quartel da Palma) tinham há muito sido
absorvidos pela cidade que se expandia. Além disso, a rotina de
obrigações dos soldados levava-os a um contato próximo com os
habitantes da cidade. Em 1857, o serviço de guarnição — um tipo de
policiamento — colocava em circulação na cidade 148 soldados a
cada 24 horas para guarnecer oito postos de guarda cujo tamanho
variava de 10 a 28 soldados, a saber: as três prisões de Salvador, o
Palácio do Presidente, o Arsenal da Marinha, o Hospital Militar, a
Escola de Medicina e a Casa do Comércio; em 1879, 103 homens
eram designados para essas obrigações diariamente.8 Quando em
serviço, os soldados realizavam uma variedade de funções.
Mantinham a ordem e o decoro nas proximidades de prédios
públicos, afastando os mendigos, contendo brigas ou garantindo o
cumprimento de ordens de não fumar e de códigos de vestuários.
Colaboravam no policiamento de Salvador de muitos modos. A
correspondência administrativa do Exército incluía ainda muitas
requisições de soldados, para compor guardas de honra em funerais
de oficiais e nobres, para acompanhar procissões religiosas e
desfiles cívicos, ou para abrilhantar cerimônias de graduação da
Escola de Medicina. Os soldados também combatiam incêndios e
vigiavam os homens condenados a trabalhos forçados, que,
acorrentados aos pares, limpavam os prédios governamentais,
mourejavam em obras públicas e, antes da chegada da água
encanada aos quartéis na década de 1860, transportavam água das
fontes municipais até os estabelecimentos militares. Em resumo, os
habitantes de Salvador não podiam deixar de notar os soldados em
sua cidade.

Tamanho da guarnição de Salvador, 1850-89


Fonte: Mapas da força e outros relatórios sobre o estado da guarnição (apud
Kraay, 1995:483-485).

Cerca de metade dessa guarnição pertencia a unidades que, a


não ser em tempo de guerra, não deixavam a cidade. O Batalhão de
Caçadores da Bahia, criado em 1860 a partir de algumas unidades
menores, transformouse no 16o de Infantaria em 1865, quando partiu
para a Guerra do Paraguai; essa unidade voltou a Salvador no início
dos anos 1870 e permaneceu aí estacionada até o fim do Império.
Uma ou duas companhias de cavalaria, uma companhia de inválidos,
para velhos e recrutas enfermos, e uma companhia de artífices
(rebatizada como Companhia de Operários Militares em 1873), que
fornecia a força de trabalho para o Arsenal de Guerra, completavam
o total de unidades baianas. Tipicamente um ou dois outros
batalhões circulavam pela cidade em períodos de dois ou três anos,
mas, após 1878, o 9o de Infantaria fixou-se, assim como o 16o,
permanentemente em Salvador.
Quais eram as características das fileiras do Exército em
Salvador? Na ausência de livros-mestres (registros de soldados
alistados), que permitiriam uma análise estatística das origens
sociais dos soldados, os dados apresentados a seguir foram
compilados de 620 relatórios de prevenção (registros de deserção
enviados às autoridades civis sempre que um soldado se ausentava
por mais de cinco dias, a definição legal de deserção). Não é, com
certeza, uma amostra representativa dos recrutados, mas oferece
algumas informações fundamentais que, de outro modo, não
estariam disponíveis a respeito de um grande número de soldados.
Os dados na tabela 1 confirmam o que a maioria dos
historiadores presumiram — que as fileiras do Exército eram
compostas predominantemente por indivíduos não-brancos. Os
brancos estavam substancialmente sub-representados em
comparação com a população baiana, assim como os pretos (porém
mais de um quarto dos homens assim classificados ainda eram
escravos em 1872). No entanto, o mais espantoso nos relatórios de
prevenção é a falta de indicações quanto a características raciais em
mais de três quartos deles (ainda que fosse um forma óbvia de
identificar desertores). O formulário padrão de fé de ofício não pedia
a inclusão de informação sobre cor para oficiais ou para praças; o
Exército passara a ser uma instituição formalmente indiferente à cor,
desde a abolição definitiva de preferências raciais no recrutamento
durante os anos 1830.9

Tabela 1
Cor dos recrutas, 1854-87

Fonte: 620 relatórios de prevenção (Apeb/SACP); Brasil, 1873-76, v. 3, p. 509.


Bem mais de metade dos desertores eram naturais da Bahia (294
de 534, para os quais essa informação é conhecida), e a maioria dos
demais (187) era natural das províncias do norte da Bahia. Era mais
provável haver deserções entre soldados servindo relativamente
perto de casa, mas os dados também refletem várias outras
características da guarnição da Bahia. Como o resto do Norte e do
Nordeste do Brasil, a província produzia mais recrutas quando
demandada a guarnecer seus próprios regimentos. O excesso de
recrutas compunha o que Peter Beattie denominou “o comércio de
soldados” do Norte para o Sul, que preenchiam as guarnições na
capital e na fronteira do Rio Grande do Sul.10 Os voluntários, no
entanto, tinham o direito de escolher a unidade em que serviriam, e a
maioria preferia não ir para o longínquo e frio Sul. As autoridades
registram como voluntários nada menos de 40% dos baianos
recrutados em tempos de paz entre 1850 e 1876; entre os 620
desertores, praticamente a mesma percentagem tinha se alistado
como voluntários (tabela 2). É claro que, como já indicaram os
estudiosos do temível recrutamento, muitos se apresentavam sob a
ameaça de recrutamento forçado, mas a guarnição baiana continha
mais voluntários que o Exército como um todo. A Lei do Sorteio
Militar, de 1874, cuja implementação foi prejudicada por trapalhadas
burocráticas e resistência popular, produziu, não obstante, uma
mudança importante. A proporção de recrutados oficialmente
designados diminuiu consideravelmente após meados dos anos
1870, embora a maioria das evidências sugira que o recrutamento
forçado continuasse mais ou menos inalterado (tabela 2).11
Durante esse período, o tempo de serviço permaneceu em seis e
oito ou nove anos (para voluntários e recrutados, respectivamente).
Um pequeno número aceitava gratificação de realistamento (e estes
são a maioria dos engajados no tabela 2), mas muitos soldados
permaneciam nas fileiras por apenas um termo de serviço. É claro
que a falha do Exército em não dar baixa ao soldado quando vencia
o tempo de serviço significava que os soldados muitas vezes serviam
um ou dois anos a mais que o tempo a eles designado — uma das
queixas dos soldados a respeito da instituição —, mas muitos
homens não eram soldados de carreira. Para eles o serviço militar
era uma fase (relativamente longa) em suas vidas.
Muitos soldados tentavam encurtar seu tempo de serviço
desertando. Não há infelizmente nenhuma forma de calcular as taxas
de deserção para a guarnição da Bahia. As taxas de deserção
nacionais podem ser calculadas para apenas quatro anos, entre
1857 e 1862, e indicam que mais de 10% das fileiras abandonavam
o uniforme a cada ano (tabela 3). Se esses números são corretos,
eles são favoravelmente comparáveis aos de apenas um país, os
Estados Unidos, e excedem significativamente os de exércitos
europeus contemporâneos. São também consideravelmente mais
elevados que a estimativa de Peter Beattie de uma taxa média, no
Brasil, de 5% de 1870 a 1916.12 A solução do Exército para o
problema da deserção era já tradicional — a declaração periódica de
anistia geral para os desertores. Vinte perdões como esses foram
proclamados entre 1851 e 1889 (neste último ano, pelo novo governo
republicano), numa freqüência de um a cada dois anos. Anistias
traziam de volta vários desertores e diminuíam sensivelmente o
número de soldados presos à espera de conselhos de guerra. Três
semanas após o perdão de 15 de agosto de 1864, 64 soldados
voltaram para suas unidades ou tiveram as acusações contra eles
canceladas.13

Tabela 2
Status de alistamento dos recrutas baianos em tempo de paz, 1850-
89
Fonte: Relatórios do ministro da Guerra e do presidente da Bahia (apud Kraay,
1995:470-474); avisos de recrutamento e 620 relatórios de prevenção
(Apeb/SACP).

Tabela 3
Taxa de deserção anual no Exército do Brasil e em outros exércitos
contemporâneos
Fonte: Relatórios do ministro da Guerra (1858, 1861,1862, 1863); Coffman
(1986:371); Skelley (1977:134).
* Onze anos individuais.

Focar as altas taxas de deserção nos faz perder, entretanto, a


noção mais importante de que cerca de 90% não desertavam em
nenhum momento e optavam por tirar o melhor da sua condição. Os
soldados constantemente buscavam melhor pagamento ou tarefas
mais agradáveis. A mãe de um deles solicitou sua transferência para
a Companhia de Artífices, como latoeiro, a fim de que pudesse
ganhar mais e sustentá-la melhor. Alegando falta de vocação para a
cavalaria — ele evidentemente odiava cavalos —, outro soldado
tentou uma transferência de volta para a infantaria, em que tinha
servido durante nove anos. Oficiais inferiores fizeram uma petição
em 1852 para receber um aumento de salário há pouco concedido a
seus pares no Rio de Janeiro. A visita do imperador à Fortaleza de
Morro de São Paulo proporcionou a um inválido idoso a ocasião ideal
para requerer uma transferência para o Rio de Janeiro diretamente a
seu comandante-em-chefe.14 Pedidos como esses, dos quais os
arquivos estão cheios, indicam, no mínimo, que os soldados
tentavam melhorar sua situação e sabiam bem como manobrar por
dentro da instituição militar. A prestação de serviços pessoais para
um oficial como camarada, proibida pela Lei do Sorteio Militar em
1874, com o argumento de que era degradante, havia na verdade
proporcionado a alguns soldados uma oportunidade para estabelecer
laços de proximidade pessoais com seus patronos. Dezoito anos de
“muitos, prolongados e dedicados serviços (…) que só se podiam
esperar de um verdadeiro e fiel amigo” proporcionaram ao cabo
Severiano Francisco Coelho um legado de quatro contos de réis do
marechal visconde de Itaparica, em 1870.15 Embora apenas poucos
soldados pudessem estabelecer laços verticais com oficiais, esses
laços proporcionavam serviços bem mais toleráveis e podiam durar
toda a vida.
Pela segunda metade do século XIX, a promoção dos recrutas
para os postos de oficiais era mais e mais difícil, já que os cadetes
(em sua maioria filhos de oficiais do Exército, milícia e Guarda
Nacional, de nobres ou funcionários públicos) passaram a dominar o
quadro de oficiais. Mas o Exército oferecia outras oportunidades de
promoção. As escolas primárias de batalhão, estabelecidas em
meados da década de 1851-60, proviam um caminho estreito de
mobilidade social vertical para a maioria iletrada das fileiras. Em
1854 e 1872, respectivamente, 73 e 47 soldados aprendiam “leitura,
caligrafia, aritmética, geometria a duas dimensões [e] desenho”.
Esses números representam de 5 a 10% do contingente daqueles
para quem a alfabetização não era um pré-requisito — soldado,
anspeçada e cabo.16 O Exército nem sempre podia manter esse
compromisso substancial com a educação primária, pois as
exigências do serviço da guarnição deixavam com freqüência os
soldados sem tempo para assistir a aulas. No entanto, o ministro da
Guerra relatou em 1874 que centenas de analfabetos tinham se
tornado “soldados inteligentes e capazes de serem elevados a
postos superiores”.17
Em resumo, a guarnição de Salvador em tempos de paz figurava
com proeminência na sociedade urbana. Os soldados eram
ligeiramente mais escuros que o resto da sociedade, mas a maioria
era nativa da província e muitos poderiam com razão ter esperanças
de servir em Salvador grande parte dos seis ou mais anos de
serviço. Enquanto alguns soldados procuravam voluntariamente
aproveitar ao máximo seu tempo de serviço militar e buscavam as
limitadas recompensas e promoções disponíveis na corporação,
muitos mais serviam bem penosamente, o que nos leva à questão da
disciplina.

Disciplina
No olhar debochado e oblíquo do oficial que lia os Artigos da
Guerra para os novos recrutas em 1865, o jovem voluntário baiano
Dionísio Cerqueira percebeu o seguinte comentário: “vê, desgraçado,
o que te espera”.18 Os artigos, propostos nos anos 1760 pelo conde
de Schaumburg-Lippe, consultor militar anglo-germânico que
reformou o Exército português durante a Guerra dos Sete Anos,
exemplificam para muitos historiadores o esmagador regime de
disciplina sob o qual os soldados brasileiros serviam.19 Os 26 artigos
que se referem especificamente a recrutados ameaçam com a pena
de morte 15 vezes, por delitos que iam da deserção e do motim ao
roubo e venda de equipamento. Há 10 ameaças de penas de prisão
(três incluindo trabalhos forçados), três referências a punição física,
quatro ameaças genéricas de punição séria e um aviso de que a
embriaguez, em vez de mitigar a responsabilidade, iria fazer dobrar a
punição.20 O único manual do Exército do século XIX escrito
especificamente para soldados definia disciplina como “a fiel
observância das leis, regulamentos e ordens militares” por todos os
membros da corporação e lembrava aos soldados que sua
subordinação era “a base da disciplina”.21 Tais exortações, no
entanto, se dirigiam com freqüência a ouvidos moucos.
A compreensão dos historiadores da disciplina militar foi
influenciada pelo conceito de Erving Goffman de “instituições totais”
e pela análise de Michel Foucault das sociedades disciplinares.
Pertencendo a tradições acadêmicas muito diferentes, ambos os
estudiosos analisam exércitos ocidentais modernos — do século
XVIII em diante — e os apresentam como arquétipos de instituições
que segregam seus membros da sociedade e regulam em detalhes
suas vidas (e, na formulação de Foucault, até mesmo modelam seus
corpos). Vez por outra, alguns soldados internalizavam essas
exigências institucionais e se tornavam instrumentos efetivos de seus
oficiais.22 Embora seja possível identificar um projeto disciplinar
desse gênero na legislação militar brasileira, amplamente derivada
de modelos europeus analisados por Foucault, a pesquisa empírica
revela uma realidade muito mais complexa nos quartéis, onde a
disciplina ficava aquém de um modelo ideal foucaultiano ou mesmo
das expectativas afirmadas pelos oficiais.23 E, é claro, os Artigos da
Guerra têm mais em comum com as punições físicas do Antigo
Regime do que com a disciplina moderna.
A localização dos quartéis bem no meio de Salvador tornava
quase impossível separar os soldados da sociedade. Os portões
permaneciam abertos da aurora ao pôr-do-sol, para atender a
vendedores de comida, carregadores de água, visitantes civis e
familiares dos soldados. Supervisão constante era uma verdadeira
raridade nos quartéis da Bahia. Em 1872, o comandante das armas
reclamou que era comum que as fracas lamparinas de óleo se
apagassem durante a noite, deixando o Quartel da Palma em
“profunda escuridão”, prejudicial à disciplina por permitir aos
soldados “praticar atos imorais e iludirem a vigilância das patrulhas,
pulando os muros do quartel para vagar pelas ruas”. A solução por
ele proposta — lampiões a gás, já em uso no Rio de Janeiro — tinha
sido julgada muito cara uma década antes.24 Os uniformes não
cumpriam seu propósito de homogeneizar os soldados e os distinguir
dos civis. O mercado de uniformes usados, para o qual os soldados
não raro contribuíam ilicitamente, significava que os civis podiam
trajar vestuários militares.25 Descrições contemporâneas de soldados
sugerem que o aleatório sistema de suprimento do Exército fazia
com que muitos dos recrutados andassem maltrajados. Em 1859,
Maximiliano, futuro imperador do México, achou muito engraçado um
soldado negro alto, desarmado e descalço, no exterior do Forte São
Pedro, que trajava uma farda vermelha, branca e azul, “adequada
sem dúvida, pela forma e tamanho, ao seu sexto ou sétimo
aniversário”.26
Desde a “revolução militar” européia dos séculos XVI e XVII, o
treinamento tem sido central para a disciplina nos exércitos
ocidentais. Embora os regulamentos do Exército brasileiro
exortassem os oficiais a exercitar seus homens com regularidade, a
fim de que adquirissem hábitos apropriados a soldados, a guarnição
baiana raramente realizava exercícios. Considerações de ordem
prática intervinham amiúde. Freqüentemente divididos em pequenos
destacamentos policiais e incumbidos do serviço de guarnição, os
batalhões raramente tinham condições de reunir todos os seus
homens para treinar.27 O fluxo irregular de novos recrutas
(conseqüência da conscrição aleatória) impedia o estabelecimento
de campos de treino de recrutas. E, principalmente, o desapreço dos
soldados pelos exercícios reforçava os obstáculos ao treinamento.
Em muitas ocasiões, os oficiais atribuíam as deserções e faltas sem
licença aos treinamentos e inspeções marcados para o dia
subseqüente.28 Em 1857, oito soldados equipados abandonaram o
destacamento em Santo Amaro e se dirigiram ao oficial comandante
de sua unidade em Salvador, reclamando que “eram maltratados
pelo tenente”. Após uma investigação, o comandante das armas
concluiu que os homens haviam desertado porque o tenente, “a bem
do regime e boa ordem que procura manter no destacamento”, havia
iniciado um programa regular de exercícios e treinamento, “hábitos
que lhes eram inteiramente estranhos”.29 As conseqüências do
relatório são inequívocas: outros oficiais haviam escolhido o caminho
de menor resistência e deixado de exercitar os homens. Em seu
pouco apreço pelo treinamento, os soldados podiam contar com o
apoio de fora do Exército. As unidades se exercitavam em público, já
que os quartéis de Salvador não dispunham de praças de armas. Em
1852, quando o comandante do Corpo de Guarnição Fixa determinou
a punição de um soldado desatento durante uma manobra no Campo
do Barbalho, suas ordens foram apupadas por observadores civis.
Embora relatórios subseqüentes tenham buscado minimizar as vaias,
um incidente público como esse podia minar seriamente a autoridade
de um oficial.30
Dados os limites à disciplina impostos pela localização dos
quartéis de Salvador, pelos uniformes de segunda qualidade, pelo
desapreço dos soldados por exercícios e, em última instância, pela
deserção de recrutas, a disciplina aparecia como uma relação social
muito mais complexa, negociada, enfim, que tornava o serviço militar
tolerável para a maioria dos alistados. O fato de oito soldados de
Santo Amaro terem desertado para Salvador e ido queixar-se ao seu
comandante fala com eloqüência sobre suas expectativas.
O recurso definitivo dos oficiais, o poder de impor a pena de
morte sobre os recrutas, nunca foi, até onde sei, aplicado na
guarnição da Bahia entre 1850 e 1889, apesar de sua importância
nos Artigos de Guerra. O castigo físico era no entanto freqüente.
Pelos artigos, os oficiais podiam punir faltas menores com pancadas
de espada de prancha, curtos períodos de prisão a pão e água,
sentinelas extras de 24 horas, carregando várias armas por longos
períodos, ou amarrar o soldado com dois mosquetes, o tornilho.31
Por volta da metade do século, no entanto, a regulação havia
restringido crescentemente a punição física. O chicoteamento, não
autorizado em 1763, tinha posteriormente se tornado uma prática do
Exército, mas foi banido pelo Parlamento em 1831. É verdade que os
açoitamentos ilegais de soldados por oficiais ultrazelosos se
mantiveram, mas foram rapidamente denunciados em 1857 pelo
jornal de oposição, O Guaycurú, e em 1865, anonimamente. No
primeiro caso, o oficial, recém-enviado para a Bahia, justificou suas
ações argumentando que os açoitamentos eram prática comum em
outras províncias; no segundo, o oficial enfrentou um conselho de
guerra.32 O chicote, que reduzia os soldados ao status de escravos e
os oficiais ao de feitores, foi em geral considerado inadequado, mas
a opinião médica era que todas as formas de castigo físico eram
danosas física e moralmente.33
Discussões sobre disciplina estabeleceram uma distinção entre
punições legais e arbitrárias. A corporação buscava preservar a
autoridade moral dos oficiais vis à vis seus homens assegurando que
aqueles seguissem as regras ao lidar com esses. O capitão da
Companhia de Artífices, por exemplo, tentando coagir um soldado
acusado de furtar um relógio de um camarada para obrigá-lo a
confessar, comprimiu-lhe a cabeça com um torniquete, o que, de
acordo com o Correio Mercantil de Salvador, deixou insana a vítima.
Durante a investigação, o segundo-tenente da companhia perjurou
para proteger seu capitão; ambos perderam seus postos após um
conselho de guerra que o ajudante-general classificou como um
“bárbaro e arbitrário castigo”.34 Embora infelizmente não saibamos
se o Conselho de Guerra condenou os oficiais, o caso de qualquer
forma mostra os esforços do Exército para restringir o poder
discricionário dos oficiais, especialmente por meio de um decreto de
1859 que limitava o castigo físico a 50 golpes e exigia a
apresentação de relatórios para cada surra.35
A lei de recrutamento de 1874 aboliu por fim os castigos físicos.
Regulamentos disciplinares subseqüentes instituíram um regime de
sentenças de prisão, acompanhadas por cota extra de tarefas,
exercícios em uniforme completo e trabalhos pesados, culminando
em sentenças a depósitos de disciplina especiais para renitentes, um
dos quais foi estabelecido ao sul de Salvador no isolado Morro de
São Paulo. Pelo menos no papel, o Exército brasileiro ingressava no
mundo foucaultiano de reabilitação coerciva através de punições
disciplinares cuidadosamente reguladas. Os oficiais aceitaram suas
novas responsabilidades com relutância. Mais popular a seus olhos
era, na verdade, a “excelente medida providencial” instituída a esse
tempo, permitindo aos comandantes transferir soldados
36
problemáticos para a Marinha. Enquanto a legislação dos anos
1870 buscava modificar os soldados, os oficiais do Exército
preferiam transferir casos disciplinares para a Marinha, cuja
disciplina, bem mais rígida, é analisada por Álvaro Pereira do
Nascimento neste livro.
A prontidão dos soldados em denunciar os abusos dos oficiais
aponta para uma aguda compreensão e até mesmo uma
manipulação das contradições entre a prática e os valores
professados pela instituição. A lei militar brasileira permitia que
indivíduos reclamassem através de seus superiores ou, se a queixa
envolvesse um superior imediato, através do superior imediato do
superior.37 Os oito soldados que abandonaram seu destacamento
em Santo Amaro estavam no exercício de seu direito, como estavam
também 10 soldados que em 1888 abandonaram seu segundo-
tenente em Minas do Assurua para relatar a seu capitão em
Xiquexique “não terem recebido vencimentos e estarem sofrendo
misérias e privações”.38 Mesmo quando lhes era obviamente
desagradável, os oficiais mantiveram o direito de requerer. Em 1862,
o comandante das armas determinou que a petição por clemência de
um cabo — ele tinha sido sentenciado a receber 40 pancadas de
espada de prancha por roubar um cavalo de um civil — fosse
encaminhada ao imperador, ainda que desaprovasse tal proteção a
um “soldado ladrão”.39 Preocupados com a possibilidade de que os
oficiais ainda assim lhes negassem esse direito, muitos recrutados
usavam parentes, livres de regulações militares, para alcançar
diretamente o presidente ou mesmo o imperador, mostrando que
compreendiam bem a subordinação do Exército às autoridades civis.
Os oficiais lutavam para reprimir essa prática que rompia a hierarquia
institucional. No entanto, somente quando havia provas irrefutáveis
de que o próprio soldado conseguira obter um documento de
terceiros podia o Exército ignorá-lo, quando autoridades civis
solicitavam informações. O cabo Manoel Xavier solicitou ao
presidente licença de saúde em nome de sua mãe, em 1862, mas
fez a tolice de assinar ele mesmo o documento; o Exército rejeitou
sua atrapalhada falsificação.40
Nem sempre era assim tão fácil ignorar solicitações de terceiros,
no entanto. Uma queixa levada à presidência em 1857 pelo tio de um
soldado na Companhia de Artífices resultou na suspensão
temporária do capitão da companhia, Caetano da Silva Paranhos.
Depois de condenar um cabo a 100 golpes por conta da queixa de
uma mulher a quem o soldado teria insultado, Paranhos o manteve
incomunicável por 18 dias, registrando-o como “pronto” em seus
relatórios diários. Não aceitando uma séria reprimenda pública nem a
revisão prévia, pelo comandante das armas, de todas as punições
por ele emitidas, Paranhos solicitou um conselho de guerra para
limpar seu nome. Como era de se esperar, a corte o absolveu,
embora a investigação inicial houvesse encontrado motivos para um
indiciamento. Em seu retorno ao comando, Paranhos tentou vingar-
se dos homens que contra ele haviam testemunhado, confinando-os
ao quartel. Um sargento, por sua própria conta, suspendeu a
proibição, mas o capitão Paranhos registrou 13 ausentes como
desertores e fez saber que cada um receberia 50 pancadas ao ser
recapturado. Um furioso comandante das armas, xingando a
“imprudência [e] nenhuma moderação” de Paranhos, recomendou
que ele fosse novamente suspenso de seu posto e aceitou a
rendição dos soldados, sentenciando-os a penas de prisão sumária
por um período igual ao dobro de sua ausência.41
Os casos disciplinares que chegavam à atenção de autoridades
civis podem ser entendidos de várias formas. De um lado, constituem
evidência gritante dos abusos que sofriam os recrutas e da falta de
habilidade de alguns oficiais em considerar seus homens como
camaradas. Por outro lado, também revelam valores e ideais
partilhados por oficiais e homens (assim como por civis), aos quais
os primeiros freqüentemente deixavam de aderir, mas que os últimos
exigiam fossem respeitados. E esses casos mostram até que ponto a
corporação estava imbricada na sociedade urbana.

A comunidade dos soldados: família, sociabilidade e


camaradagem
Parte significativa da vida dos soldados girava em torno não dos
deveres militares, mas de suas relações familiares e da sociabilidade
com camaradas recrutas. Reconhecer esses aspectos da
experiência dos soldados permite uma visão mais completa de suas
vidas e situa as discussões sobre disciplina e deveres num contexto
mais amplo. Em suma, os soldados se encontravam envolvidos
numa variedade de relações sociais que os ajudavam a lidar com as
exigências do serviço militar e, em alguns casos, facilitavam sua
resistência às demandas do Exército. Uma cultura de solidariedade
de caserna diante dos desafios por parte de civis e de outras
corporações também se desenvolvia entre os soldados.
A legislação militar brasileira não negava aos soldados, como o
faziam as de muitos países, o direito de casar; regulações datando
desde 1816 exigiam que os comandantes autorizassem os
casamentos, desde que o soldado tivesse mais de 24 anos e a
mulher fosse “honesta”.42 Numa sociedade com taxas extremamente
baixas de casamento formal (pelos padrões ocidentais), não
surpreende que poucos soldados tenham se valido desse direito. Na
verdade, apenas 6,6% dos 620 desertores haviam alguma vez se
casado. Soldados casados não viam nada de mais em manter suas
famílias o mais próximo deles possível. Em 1864, um anspeçada
destacado para servir no palácio presidencial pediu permissão para
mudar sua esposa e cinco filhos para cômodos no térreo do próprio
palácio.43 Embora o presidente a tenha negado, a solicitação fazia
sentido, pois era freqüente as esposas de soldados viverem nos
quartéis. Era mais provável que os oficiais as notassem quando
provocavam desordens, como se alega ter feito a mulher de um
sargento, “muito regateira”.44 A rotação de unidades do Exército
entre guarnições causava muito estresse às famílias dos soldados,
apenas parcialmente mitigado pela prática de designar homens
casados para unidades fixas que permanecessem estacionadas em
uma guarnição.45 Soldados (ou suas mulheres ou mães) solicitavam
transferências, como alegou uma mulher em 1864, “para que ele
fique isento de embarques para fora desta província”.46 Petições do
início dos anos 1880 revelam soldados solicitando licença para
buscar mães, esposas e filhos deixados para trás quando foram
transferidos para Salvador.47 Em 1881, o Exército abriu as escolas
regimentais para os filhos de soldados, a fim de que pudessem ser,
segundo um comandante das armas, “salvos da vida de vagabundos
que levam”. Num surpreendente desprezo às barreiras de classe que
restringiam o acesso à educação na sociedade baiana, ele os
admitiu “mesmo em mangas de camisa e descalços”.48 Ao educar os
garotos, ele provavelmente esperava prepará-los para seguirem seus
pais no Exército.
O Exército só reconhecia as relações legítimas dos soldados com
mulheres, e, dadas as baixas taxas de casamento, boa parte das
relações de soldados com mulheres nunca aparece na
correspondência militar. Conflitos entre soldados e suas
companheiras chamaram por vezes a atenção de oficiais. Em 1862,
um cabo cortou o nariz de uma mulher na Fortaleza de Morro de São
Paulo; eles viviam juntos, e ela não fez uma acusação criminal formal
contra ele, por ser “o pai de seus filhos”.49 Mais tarde, no mesmo
ano, em Salvador, o cabo Antônio de Moura Dias Couto brigou com
Rita Maria de Jesus, com quem ele afirmava morar. Ele a surrou, e
ela se vingou envenenando-lhe a comida. Quatro dias depois, ao dar
entrada no Hospital Militar com sintomas que os médicos primeiro
julgaram ser de cólera, Couto morreu.50 O casal em Morro de São
Paulo poderia sem dúvida ter encontrado espaço para estabelecer
acomodações conjuntas no meio das fortificações dilapidadas,
principalmente se o comandante fingisse não ver, mas não fica claro
como Antônio e Rita poderiam ter vivido juntos. Apenas soldados
casados e, mais raramente, aqueles que sustentassem suas mães
poderiam solicitar ser desarranchados, o que lhes permitia viver fora
do quartel e receber em dinheiro o rancho.51 O mais provável é que o
casal aproveitasse para ficar junto cada momento que pudessem ter
quando Antônio se encontrasse de folga ou fugisse do quartel à
noite.
Ausências curtas sem licença eram, na verdade, parte
fundamental da vida dos soldados; elas afirmavam a autonomia dos
homens dentro do Exército e mantinham suas ligações com a
sociedade local. “Defeito quase geral dos soldados”, as ausências
representavam uma importante brecha na autoridade disciplinar no
Exército, mas, diversamente da deserção, não constituíam uma
rejeição do Exército pelo soldado, que por sua parte podia ser
facilmente reintegrado.52 Desde que os ausentes ficassem longe de
confusão e cumprissem com os deveres que lhes haviam sido
designados, os oficiais podiam fazer vista grossa. Um cabo distinguia
cuidadosamente entre dois delitos de um subordinado problemático:
passar a noite fora do quartel e não voltar a tempo de arrear seu
cavalo, sendo a última falta bem mais séria que a primeira. Até
mesmo o comandante das armas reconhecia implicitamente em 1873
que a tolerância com as ausências era uma defesa contra a
deserção. Ele recomendava que os batalhões de Salvador fossem
guarnecidos com nativos da cidade, e não com recrutados do interior
da Bahia.53 Evidentemente, ele julgava os recrutas do interior e de
distritos próximos mais suscetíveis à deserção, e que seria menos
provável que homens de Salvador (que poderiam ter fortes razões
para se ausentar por curtos períodos de tempo) vissem vantagem
em abandonar a cidade.
Algumas evidências sugerem que os soldados consideravam um
direito as ausências sem licença: houve um que socou o sargento
que tentava impedir sua partida, enquanto outro manifestou
formalmente sua recusa a voltar a seu alojamento quando detido.
Numa manhã de 1876, o cabo Raimundo dos Santos Machado
deixou o quartel sem permissão, voltando depois do almoço. Ele
pediu seu rancho, mas recebeu uma reprimenda do capitão por
causa de sua ausência, ao que ele retorquiu “ser isto o maior dos
absurdos”.54 Mais cuidadosos que esse cabo, muitos soldados não
diziam aos oficiais o que pensavam dos regulamentos do Exército.
Simplesmente deixavam os quartéis quando julgavam poder fazer
isso sem correr sérios riscos de punição. E, na verdade, o poder
discricionário dos oficiais para punir ausências curtas levava com
freqüência a uma tolerância seletiva com esse delito.
Os laços com seus camaradas, uma lealdade de caserna muitas
vezes forte, reforçavam a oposição dos soldados aos oficiais.
Ausências sem licença envolviam cooperação entre soldados, já que
eles enganavam patrulhas ou deixavam de denunciar os ausentes. É
claro que nem todos os soldados partilhavam essa lealdade aos
camaradas; era freqüente estourarem brigas entre soldados nos
quartéis.55 Por outro lado, os divertimentos dos soldados dão
indicações de sua solidariedade. Em 1857, o carcereiro da prisão de
Aljube acusou os soldados de guarda de transformarem seu posto
em “uma verdadeira sala de jogo”. Poucas semanas antes, a polícia
prendeu dois cabos numa casa de jogo a alguns quarteirões do
Quartel da Palma.56 O Dique, um pequeno lago nos arredores da
cidade, era a área predileta dos soldados de folga. A cena nas suas
margens em 1859, descrita por Maximiliano, incluía “negras que
lavavam e tomavam banho, com seu séquito de soldados fazendo a
corte”. Alguns anos depois, um soldado se afogou ali, ao tomar
banho, antes que seus companheiros o pudessem salvar.57 Ondas
de preocupação com os batuques de soldados e a participação deles
em sambas em 1878 e 1879 indicam seu envolvimento na cultura
popular.58 Era possível até mesmo que os soldados transformassem
atividades de rotina em esporte: voltando de patrulhas noturnas em
1864, soldados da cavalaria apostavam corrida uns com os outros,
em prejuízo de suas montarias.59
A bebida, uma parte importante da sociabilidade de caserna,
revela aspectos de camaradagem entre os recrutados. A
engenhosidade dos soldados frustrava as tentativas dos oficiais de
manter garrafas de cachaça fora dos quartéis.60 A opinião médica
sustentava que soldados e marinheiros sofriam de uma
predisposição congênita para o alcoolismo, e ocasionalmente
aparecem indicações de sérios problemas com bebida nos arquivos.
Teotônio Ramos de Oliveira, um jovem cabo inválido “por excessos
de embriaguez”, tentou pôr fogo em seu alojamento num momento
de bebedeira; os oficiais alegaram que sua mãe lhe trazia
regularmente garrafas de bebida.61 A maior parte do beber não
levava, no entanto, ao alcoolismo; “bêbado” era um insulto, como se
pode inferir da altercação entre um cabo e um soldado, a qual
evoluiu para uma briga de facas quando o último acusou o primeiro
de “bêbado”.62
Ainda que os drinques servissem certamente como uma fuga à
monotonia da rotina do Exército, também pode ser que os soldados
consumissem álcool para reforçar sua coragem em resistir aos
oficiais. Soldados bêbados freqüentemente dirigiam “palavras
ofensivas” a seus superiores, e os regulamentos alertavam os oficiais
para tratar os bêbados com cuidado, a fim de não levar sem
necessidade o soldado a agravar seu delito.63 Assim, a
insubordinação de Raimundo dos Santos Machado, que chamou as
restrições a ausências sem licença de “absurdos”, surpreendeu
duplamente os oficiais. Ele não estava visivelmente bêbado, e os
oficiais tampouco puderam sentir o característico cheiro de cachaça
em seu hálito. Ainda assim ele chamou seu comandante de
“castelhano ordinário, covarde”, e o acusou de ser “chefe de uma
quadrilha de ladrões”. A decência obrigou as testemunhas a
desistirem de repetir os insultos ainda maiores que o cabo dirigiu aos
oficiais.64 A expressão de Machado do que deveriam ser os
sentimentos sinceros de muitos soldados em relação aos seus
oficiais possibilitou uma significativa reação de seus camaradas. De
acordo com um cabo que testemunhou contra Machado, ele e os
outros soldados presentes aconselharam ao cabo “que se calasse”,
afirmando que o que ele estava fazendo era “muito feio para um
soldado”. O cabo também tentou convencer o Conselho de Guerra
de que Machado se encontrava “um pouco alto: não estava para bem
dizer embriagado; mas tinha tomado alguma coisa”.65 Apesar desse
testemunho, Machado recebeu 20 anos de prisão; sua aparente
sobriedade contou muito contra ele quando tentou, sem sucesso,
conseguir um perdão, após cumprir seis anos de sua sentença.66
Assim como o álcool afrouxava a disciplina dentro dos quartéis,
as tavernas constituíam espaços sociais fora do alcance da vigilância
dos oficiais, onde uma sociabilidade informal e voluntária tomava o
lugar da cultura do dever e da obrigação em que se assentava a
disciplina militar.67 Uma investigação sobre o esfaqueamento de um
marinheiro pelo cabo Manoel Vicente Santiago revela vinhetas de
vida no bar de “Manoel de Tal”, situado perto do Arsenal da Marinha,
na cidade baixa. Mais ou menos às sete e meia da noite de 4 de abril
de 1864, muitos soldados dos batalhões da cidade se amontoavam
em grupos dentro e fora do estabelecimento. Alguns marinheiros
afirmaram que Santiago, trajado de seu uniforme branco, estava
limpando uma faca — algumas testemunhas disseram ser um punhal
— e resmungando agressivamente que não queria viver numa terra
onde não podia molhar a faca se tivesse que sacá-la. Quando um
cabo, fora do bar com um soldado, passou sem querer (de acordo
com o testemunho do cabo) entre dois marinheiros, estes ficaram
ofendidos. Antes que o cabo pudesse se desculpar, “o soldado
Santiago saiu precipitadamente da venda e dirigiu-se aos
marinheiros dizendo: ‘cabo! A melhor satisfação é esta’”, e
esfaqueou o marinheiro. Quando interrogado, o analfabeto Santiago
alegou inocência, afirmando que não havia deixado o quartel naquela
noite.68
Nenhuma das testemunhas do esfaqueamento se arriscou a
defender alguma tese quanto às razões de Santiago. O incidente
guarda semelhança com as lutas de faca em áreas rurais do Brasil e
do Uruguai, analisadas por John Chasteen (1990), em que os
indivíduos — às vezes até mesmo estranhos — lutavam até a morte
para afirmar e defender sua honra. No caso, no entanto, Santiago
esfaqueou o marinheiro para defender um camarada soldado, o que
sugere a existência de uma honra coletiva a defender, em rivalidade
com a Marinha. Ao mesmo tempo, Santiago estava claramente doido
por uma briga, mesmo antes que o cabo ofendesse os marinheiros.
Qualquer que tenha sido a causa subjacente a suas hostis bravatas,
podemos presumir que os oficiais não as teriam tolerado no quartel.
Logo, a localização do bar ganha algum significado: distante mais de
800 metros do Quartel da Palma e mais de um quilômetro e meio do
Forte São Pedro (em ambos os casos os caminhos incluíam ladeiras
íngremes), só era conveniente para marinheiros de licença do navio.
Talvez os soldados tenham deliberadamente buscado um bar
distante dos quartéis para beber e socializar. Ao deixar a caserna, no
entanto, os soldados não abandonavam os laços uns com os outros,
como mostrou Santiago ao defender o cabo.
Em nenhum lugar esses laços se mostravam com mais clareza
do que nos conflitos entre a polícia e soldados do Exército. Essas
corporações realizavam em muitos casos as mesmas funções, mas
serviam em regimes disciplinares diferentes; os soldados da polícia
também ganhavam mais que os do Exército. Uma série de choques
entre esses soldados no fim de 1862 e começo de 1863 teve início
quando um furriel da polícia chamou um soldado para acender seu
charuto. Relatórios do Exército registram que o furriel, “muito
bêbado”, se ofendeu e socou o soldado. Quatro ou cinco soldados da
polícia juntaram-se então ao seu furriel para surrar o cabo com as
suas espadas. Quando um sargento do Exército tentou prender um
dos policiais, chegaram mais para defender seu camarada.69
Quando um capitão residente ali perto acudiu à cena na rua
Castanheda, 200 homens da polícia e dos batalhões do Exército da
cidade encontravam-se “em completa confusão e desordem”. O
oficial tentou prender um soldado da polícia que havia rasgado o
uniforme do sargento do Exército, ao que o homem retorquiu “que a
canalha da primeira linha não o levava preso”. Além disso, de acordo
com um tenente do Exército, esse “desordeiro” declarou “que nem se
importava de morrer fuzilado, contanto que desgraçasse um soldado
de linha”. No clamor da desordem, o tenente conseguiu discernir
“vivas à polícia, à liberdade, e morra a tropa de linha”.70
Os relatórios do Exército sobre esse incidente — a única
documentação disponível — culpam naturalmente os truculentos
policiais, mas o entusiasmo com que os soldados do Exército se
puseram em defesa de seus companheiros sugere que mantinham
uma hostilidade recíproca para com a polícia. Como revelam duas
altercações posteriores entre soldados do Exército e da polícia, as
tensões entre as corporações continuaram fortes por muitos meses.
Dezoito anos depois, o presidente louvou o comandante das armas
por ter (mais uma vez) encerrado tais conflitos.71 Mais que uma
lealdade ao Exército como instituição, essas rusgas refletem uma
versão, em tempos de paz, da lealdade aos companheiros de armas
que os sociólogos identificaram como a principal motivação dos
soldados em combate.72 Embora os soldados em geral não se
identificassem por completo com a hierarquia do Exército, muitos se
identificavam com seus camaradas a ponto de se arriscarem a ser
feridos ou mesmo mortos, bem como de despertarem a ira de seus
superiores, para se defender de algo que percebiam como agressões
de outras corporações.

Os soldados e a sociedade urbana


Quando o pessoal da casa de Boucher chutou o soldado e deu-
lhe uma escaldadela em 1862, eles afirmaram asperamente sua
superioridade sobre os recrutas. Uma vez na rua, no entanto,
Boucher ficava vulnerável à prisão e tinha que se submeter ao poder
dos soldados. A correspondência do comandante das armas está
repleta de referências a encontros violentos entre civis e soldados,
mas raramente há informação suficiente para analisar esses casos.73
Em 1874, um soldado de cavalaria surrou um civil que tinha, como
“gracejo”, espantado o cavalo de um soldado que se estava aliviando
à margem de uma estrada suburbana. Nesse caso, os oficiais
ficaram do lado do soldado quando o subdelegado local o acusou de
atacar sem motivo um “cidadão pacífico”.74 Subjacente a esses
casos havia uma questão de status e poder. Chefes de família
respeitáveis ou “cidadãos pacíficos” tinham que deixar regularmente
o recinto protegido de suas casas para fazer transações no mundo
público da rua. Nesse espaço, onde ricos e pobres diariamente se
misturavam, as distinções sociais demandavam reforço constante,
ainda mais que o desordenado mundo da rua punha soldados (com
freqüência homens de cor) em posições de autoridade sobre
cidadãos honrados, patriarcais chefes de família e seus
dependentes, e até mesmo membros da majoritariamente branca
classe superior. Em conflitos aparentemente de pouca monta, mas
extremamente importantes, soldados e civis lutavam por status nas
ruas.
A negativa dos soldados a ceder aos civis o direito de passagem
nas ruas da cidade levava às vezes a discussões calorosas. O
soldado Simplício Mariano escapou por pouco de ser atropelado em
1861 pelo médico inglês John Patterson, que, de acordo com o
comandante das armas, sempre galopava pelas ruas da cidade,
violando as posturas municipais. O cavaleiro roçou o soldado, cuja
coronha do rifle tocou no cavalo. Enraivecido, Patterson apelou a seu
cônsul para ser reparado por esse “insulto gratuito e público”,
argumentando que o soldado tinha deliberadamente bloqueado a rua
e golpeado a cabeça e o pescoço do cavalo. Se não estivesse com
um ferimento em sua mão, acrescentou Patterson, “teria feito sentir
na cara do soldado o peso de seu chicote de andar a cavalo”, ao que
o comandante das armas respondeu: “bom foi que o queixoso não se
atrevesse nem a ameaçar, quanto mais a praticar o que disse,
porque o soldado sem dúvida lhe responderia com a ponta da
baioneta”. Infelizmente, não se conhece o destino final do soldado,
que foi preso imediatamente após a queixa de Patterson.75
Em 1888, o subdelegado do 2o distrito da freguesia de Santana,
Alfredo Alves Portela, tinha más relações com os soldados
designados para patrulhar sua jurisdição. Ele os insultava
repetidamente com “termos grosseiros e ofensivos à corporação”.
Certa feita, desafiou a autoridade de um soldado responsável por
impedir as pessoas de entrarem nas salas de julgamento com
bengalas e chapéus-de-sol. Quando o soldado impediu a passagem
de Portela, ele “revoltou-se e perguntou ao soldado se não o
conhecia e se não sabia que ele era uma autoridade, que tal ordem
não se estendia a ele, e que era absurdo”. O soldado reiterou suas
ordens e, quando um inferior chegou, Portela entregou-lhe seu
chapéu, dizendo: “pois bem, aqui está o chapéu-de-sol, tomem conta
dele e respondam-me por ele”, ao que o inferior retorquiu “que não
estavam ali para guardar chapéus-de-sol e bengalas e somente para
proibir que subissem com eles”. Nesse momento, o subdelegado
“zangou-se, ameaçou e finalmente prendeu o inferior”, em nome do
comandante das armas. O fato de o comandante ter posteriormente
louvado os soldados por cumprirem suas ordens literalmente
desagradou Portela, que, em outro momento, culpou o 9o de
Infantaria do Exército por uma briga entre policiais e civis.76
O incidente envolvendo Portela e o sentinela, sobre o qual só
dispomos do ponto de vista do comandante das armas, revela bem
as tensões entre o dever dos soldados de fazer cumprir as regras e o
desejo do subdelegado de reafirmar seu status e sua superioridade
em relação aos militares. Tensões similares emergiram na difícil
relação entre a guarda alojada no prédio da Escola de Medicina e os
alunos dessa escola. Esses filhos privilegiados da elite baiana
levavam vidas boêmias, em geral sem nenhum temor, por saber que
sua posição de classe os eximia das regras que se esperava que os
jovens de classes inferiores da guarda fizessem cumprir. Embora os
soldados tivessem autorização até certo ponto ampla para usar a
força contra os pobres livres na praça em frente à faculdade, os
integrantes da guarda tinham que aprender que nos estudantes de
medicina não se podia tocar. Um evento que o diretor da escola
descreveu em 1856 como “uma simples altercação entre estudantes
do primeiro, segundo e terceiro ano (…), que sem dúvida acabaria
como as que ordinariamente se dão entre eles, sem resultado
algum”, evoluiu para um incidente sério quando cinco soldados
fixaram as baionetas para subjugar os estudantes desarmados. Os
soldados não feriram nenhum estudante, mas “maltrataram” vários,
de modo que o diretor pediu ao presidente para remover a guarda e
garantir a inviolabilidade de seus alunos. O comandante das armas
deu ordens para que não se interferisse nos assuntos dos
estudantes, mas relembrou ao presidente que seus homens não
estavam acostumados a meramente “verem desordens ou
distúrbios”.77 Uma investigação formal do Exército inocentou os
soldados de qualquer delito, concluindo que eles foram até
“prudentes demais” ao se depararem com os estudantes “dando nos
soldados com bengalas e chapéus-de-sol, e um deles com um
estoque”, e recomendando que estudantes “criminosos” fossem
punidos. Vale acrescentar que estudantes jornalistas celebraram a
vitória em seu jornal, alegando terem desarmado o guarda, uma
afronta que os soldados negaram ter acontecido.78 Os estudantes,
como é de se supor, não foram presos. Mesmo que não tenham
vencido concretamente os soldados, eles haviam ganhado a guerra,
confirmando seus privilégios de classe.
Outro ciclo de conflitos começou em 1873, quando um grupo de
estudantes zombou de uma patrulha em marcha, batendo com os
pés. O tenente ordenou que os soldados parassem, e os dois grupos
de jovens quase passaram às vias de fato depois que um dos
estudantes arrancou o quepe do oficial. Os estudantes fugiram para
sua faculdade, continuando a debochar da patrulha. O oficial
entendeu bem seu dilema: Se tivesse havido uma briga, explicou, os
pais dos estudantes teriam reclamado; ao não reagir à ofensa, ele se
arriscou a perder sua autoridade sobre seus subordinados. O
comandante das armas tomou o partido de seus homens,
condenando os estudantes por comportamento inadequado a jovens
que se instruíam numa instituição pública, e defendeu o direito dos
soldados de reagir a ataques físicos, ao passo que o diretor se
queixava de agressão dos soldados contra estudantes desarmados.
Como se pode inferir de um relatório a respeito de outra
confrontação ocorrida mais tarde no mesmo ano, o Exército abriu
mão do campo de batalha para os estudantes, ao determinar que as
patrulhas evitassem a vizinhança da Escola de Medicina.79 Em todos
esses incidentes, os soldados, como homens de classes inferiores
encarregados de manter a ordem pública, ameaçavam a hierarquia
de classe entre os jovens, que colocava os estudantes de medicina
bem acima dos recrutas. Para preservar a hierarquia, os estudantes
demonstravam sua superioridade debochando dos soldados
impunemente.80

Conclusão
Para os oficiais, a rotina de tempos de paz nas guarnições de
locais como Salvador significava uma tortura diária de
entorpecedores detalhes administrativos e constantes dores de
cabeça, criadas pela necessidade de manter a disciplina e realizar os
deveres da guarnição em geral com contingente insuficiente. Não é
de espantar, pois, que Manoel Deodoro da Fonseca, futuro
presidente do Brasil e que serviu por pouco tempo como comandante
das armas interino em 1879/80, tenha reclamado: “não passo de um
verdadeiro comandante superior da Guarda Nacional na roça”.81
Para um homem que recebera promoções por atos de bravura nos
campos de batalha da Guerra do Paraguai, a Bahia do pós-guerra
tinha pouco a oferecer.
Muitos historiadores militares tenderam a tratar dos papéis do
Exército em tempos de guerra negligenciando suas atividades em
tempos de paz e sua posição na sociedade civil. Uma leitura
cuidadosa da correspondência administrativa do Exército revela a
teia complexa de relações sociais em torno dos quartéis e mostra
como os soldados, assim como os escravos e outros membros das
classes populares, criaram sua própria cultura e sociedade. As
tensões entre soldados do Exército e da polícia, os incidentes
envolvendo soldados e civis, as obrigações de rotina de guarnição
dos soldados, tudo demonstra quão completamente os recrutas
estavam integrados na sociedade urbana. Somente no início do
século XX, quando o Exército fechou seus quartéis no centro da
cidade e levou os soldados para os arredores de Salvador, foi que
esses traços da vida do Exército, tão característicos do século XIX,
começaram a mudar.

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* Traduzido por Vitor Izecksohn. A pesquisa para este capítulo foi financiada
pelo Social Sciences e Humanities Research Council of Canada. Renato
Soares dos Santos auxiliou o autor na pesquisa em Salvador em 1993. Foram
utilizadas as seguintes abreviaturas nas notas: AHEx/RQ (Arquivo Histórico do
Exército, Requerimentos); AN/SPE (Arquivo Nacional, Seção do Poder
Executivo); Apeb/SACP (Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção de
Arquivo Colonial e Provincial); ASRM (Arquivo da Sexta Região Militar); BI
(Batalhão de Infantaria); CA (comandante das armas); CLB (Coleção das Leis
do Brasil); TCC (tenente-coronel comandante). A menos que haja indicação em
contrário, toda a correspondência foi enviada de Salvador.
** Doutor em história pela Universidade do Texas (Austin, EUA); professor da
University of Calgary (Canadá).
1 TCC, 10o BI, ao CA, 30-10-1862, cópia (Apeb/SACP, m. 3.407).
2 Ver DaMatta (1985, cap. 1-2); Graham (1988:10-27); Beattie (1996, 2001).
3 TCC, 10o BI, ao CA, 30-10-1862, cópia (Apeb/SACP, m. 3.407).
4 Na realidade, uma vista das cenas de rua de Debret (1834-39) e Rugendas
(1835) nos anos de 1820-30 revela a importância dos soldados.
5 Para trabalhos pioneiros no campo da história social no Brasil e que refletem
os interesses predominantes, ver Mattoso (1979); Dias (1984); Chalhoub
(1986). Exceções à lacuna na história social sobre soldados incluem Beattie
(2001, cap. 6-8); e Kraay (2001, cap. 3, 7).
6 A respeito do recrutamento, além dos capítulos de Christiane Figueiredo
Pagano de Mello, Shirley Maria Silva Nogueira, Fábio Faria Mendes e Vitor
Izecksohn, neste livro, ver Kraay (1998); Meznar (1992); Beattie (1996, 2001);
Mendes (1998, 1999); Izecksohn (2001).
7 Ver Mattoso (1978:135, 138).
8 Roteiro das guardas da guarnição, 21-5-1857 (Apeb/SACP, m. 3.429); CA ao
presidente, 30-6-1879 (Apeb/SACP, m. 3.442).
9 No período colonial e nos primeiros anos do Império, os homens negros
eram excluídos das fileiras do Exército. Examino esta questão em mais
detalhes em Kraay (2001:7677, 198-200).
10 Ver Beattie (2001, cap. 6).
11 Ver Kraay (1998:23-33); Beattie (2001, cap. 4-5); Mendes (1999).
12 Ver Beattie (2001:193).
13 CA ao presidente, 3-9-1864 (Apeb/SACP, m. 3.408).
14 Requerimentos de Maria Felipe de Sant’Iago Jesus ao presidente, 22-12-
1863 (Apeb/SACP, m. 3.761); Francisco M. da Silva ao CA, 20-7-1863
(Apeb/SACP, m. 3682); Inferiores da Companhia de Inválidos ao imperador, 23-
3-1852 (AHEx/RQ, JJ-14-394). Ver d. Pedro II (1959:38).
15 Testamento do visconde de Itaparica, 21-6-1870 (Apeb, seção judiciária,
inventários e testamentos, 01/108/162/05, fol. 1Ar.).
16 CA ao presidente, 31-10-1854 (Apeb/SACP, m. 3.386); Presidente ao
ministro da Guerra, 6-2-1872 (ANRJ/SPE/IG1, m. 127, fls. 211-215). A
descrição do curriculum é de Amaral (1870-72:366).
17 Relatório do ministro da Guerra, 1874, p. 3.
18 Cerqueira, 1980:50.
19 Ver Sodré (1965:132-133); McBeth (1977:80-81).
20 Ver Schaumburg-Lippe (1794:228-237).
21 Duarte, 1872:371-372.
22 Ver Foucault (1979); Goffman (1962).
23 Para duas análises críticas pioneiras da disciplina militar, ver Loriga (1991);
e Smith (1994).
24 CA ao presidente, 10-9-1872 e 10-10-1863 (Apeb/SACP, m. 3.429 e m.
3.404).
25 CA ao chefe de polícia, 6-6-1872 (Apeb/SACP, m. 6.464); Detalhe, 21-2-
1879, Livro de detalhes (ASRM); CA ao chefe de polícia, 26-9-1883
(Apeb/SACP, m. 6.465).
26 Maximiliano, 1982:85.
27 Ver os relatórios de treinamento, CA ao presidente, 13-1, 17-2, 16-5 e 19-6-
1864 (Apeb/SACP, m. 3.409).
28 CA ao chefe de polícia, 6-8-1853; 2o tenente-comandante ao ajudante-de-
ordens, Santo Amaro, 10-3-1857, cópia (Apeb/SACP, m. 3.398 e m. 3.390).
29 CA ao ajudante-general, 2-9-1857, cópia (Apeb/SACP, m. 3.389). A respeito
do relatório inicial sobre deserção, ver Tenente-comandante ao CA, Santo
Amaro, 31-7-1857 (m. 3.391).
30 CA ao vice-presidente, 30-7-1853 (ANRJ/SPE/IG1, m. 121, fl. 1.094r).
31 Ver Schaumburg-Lippe (1794:177).
32 CA ao presidente, 30-7-1857; Coronel-comandante, 2o BI, ao CA, 28-7-
1857, cópia; CA ao presidente, 28-10-1865; CA ao presidente, 9-11-1865
(Apeb/SACP, m. 3.389, 3.425 e m. 3.424).
33 Ver Soisa (1845:21-22); Bolivar (1853).
34 “B. a Extrato de Periódicos: Transcripto do Correio Mercantil de 25 [Ago.
1859]; CA ao ajudante-general, 6-9-1859, cópia; Ajudante-general ao ministro
da Guerra, Rio, 159-1859 (ANRJ/SPE/IG1, m. 123, fls. 182, 186r, 189r-190r).
Acusações de atrasos no Conselho de Guerra, lançadas por um senador
baiano, provavelmente encorajaram o Exército a considerar o caso com
seriedade; ver discurso do visconde de Jequitinhonha, 27-8-1859 (Jornal do
Commercio, Rio, 29 ago. 1859).
35 Ver Silva (1874:157).
36 Regulamento do Decreto no 5.884, 8-3-1875, arts. 7, 11, 13 (CLB); CA ao
presidente, 28-3-1877 (Apeb/SACP, m. 3.436).
37 Ver Silva (1874:294-295, 347).
38 CA ao presidente, 16-11-1888 (Apeb/SACP, m. 3.456).
39 CA ao presidente, 9-9-1862 (Apeb/SACP, m. 3.404).
40 Requerimento de Rosa Lima Gomes ao presidente, 17-1-1862 (Apeb/SACP,
m. 3.772).
41 As duas narrativas deste incidente estão em CA ao presidente, 19-5 e 18-
11-1857 (Apeb/SACP, m. 3.448 e m. 3.389).
42 Silva, 1874:155. O Exército britânico da época, por exemplo, só permitia
que seis soldados por companhia tivessem esposas; ver Skelley (1977:30-31).
43 CA ao presidente, 5-1-1864 (Apeb/SACP, m. 3.409).
44 TCC, corpo de guarnição fixa, ao CA, 2-8-1856, cópia (ANRJ/SPE/IG1, m.
122, fl. 763r).
45 Ver Titara (1856:223).
46 Requerimento de Dorotéia Máximo de Campos ao presidente, 14-3-1864
(Apeb/SACP, m. 3.780).
47 Ver os vários requerimentos em Apeb/SACP (m. 3.773 e m. 3.774).
48 CA aos comandantes, 18-8-1881, circular (Apeb/SACP, m. 3.463).
49 CA ao chefe de polícia, 27-2-1862 (Apeb/SACP, m. 6.462).
50 Antônio da Silva Deiró ao diretor, Hospital Militar, 27-7-1862, cópia; CA ao
presidente, 24-7-1862 (Apeb/SACP, m. 3.402).
51 Ver Schaumburg-Lippe (1794:164-165); CA ao presidente, 5-6-1884
(Apeb/SACP, m. 3.443).
52 Major-comandante, esquadrão de cavalaria, ao CA, 20-12-1864
(Apeb/SACP, m. 3.419).
53 Vicente Ferreira da Silva ao capitão-comandante, companhia de cavalaria,
5-3-1856; CA ao presidente, 20-6-1873, reservado (Apeb/SACP, m. 3.388 e m.
3.430).
54 CA ao presidente, 2-10-1863 e 5-2-1861; Francisco de Paula Argolo ao

TCC, 16o BI, 15-11-1876, cópia (Apeb/SACP, m. 3.425, m. 3.455 e m. 3.452).


55 A respeito de brigas entre soldados, ver CA ao presidente, 25-4-1863
(Apeb/SACP, m. 3.389); detalhe de 22-3-1879, Livro de detalhes (ASRM).
56 CA ao presidente, 8-10-1857; CA ao chefe de polícia, 14-3-1857
(Apeb/SACP, m. 3.400 e m. 3.429).
57 Ver Maximiliano (1982:100); CA ao presidente, 27-10-1862 (Apeb/SACP, m.
3.402).
58 Detalhes, 29-10-1878 e 16-2-1879, Livro de detalhes (ASRM); CA ao
presidente, 305-1879, reservado (Apeb/SACP, m. 3.462).
59 Major-comandante, esquadrão de cavalaria, ao CA, 1-6-1864 (Apeb/SACP,
m. 3.418).
60 Um historiador militar registrou vários truques usados pelos sentinelas para
contrabandear bebida; ver Cidade (1927:20).
61 Ver Guimarães (1888:5); tenente-comandante, companhia de inválidos, ao
CA, 1010-1857, cópia (Apeb/SACP, m. 3.389); comandante interino, Fortaleza
do Mar, ao CA, 9-10-1857, cópia (ANRJ/SPE/IG1, m. 123, fl. 1.193).
62 Detalhe de 1-4-1879, Livro de detalhes (ASRM).
63 CA ao presidente, 28-1-1863 (Apeb/SACP, m. 3.389). Para outro exemplo,
ver detalhe de 20-8-1879, Livro de detalhes (ASRM); Schaumburg-Lippe
(1794:215); Silva (1874, v. 1, p. 388).
64 Francisco de Paula Argolo ao TCC, 16o BI, 15-11-1876, cópia; testemunho
de Pedro Rodrigues Monteiro e Constâncio Antônio de Moraes, n.d., cópia
(Apeb/SACP, m. 3.452).
65 Testemunho de Pedro Rodrigues Monteiro, n.d., cópia (Apeb/SACP, m.
3.452).
66 Informação, TCC interino, 16o BI., 12-11-1882 (Apeb/SACP, m. 3.452). A
respeito da negação do perdão, ver Consulta, 24-12-1882 (in: Silva, 1887:326).
67 Ver Forrest (1990:105).
68 Conselho de Investigação, Manoel Vicente de Santiago, 18-4-1864
(Apeb/SACP, m. 3.418).
69 José Pedro da Cruz, “parte,” 25-10-1862 (Apeb/SACP, m. 3.690).
70 TCC, 10o BI, ao CA, 30-10-1862, cópia; José Pedro da Cruz, “parte,” 25-10-
1862; Joaquim Ignacio Ribeiro de Lima, “parte,” 25-10-1862; Francisco Correa
de Moraes ao TCC, Batalhão de Caçadores da Bahia, 25-10-1862,
(Apeb/SACP, m. 3.407 e m. 3.690).
71 CA ao presidente, 17-11-1862 e 16-1-1863, reservado (Apeb/SACP, m.
3.402 e m. 3.404); Relatório do presidente da Bahia, 1-5-1880. p. 55.
72 Ver Holmes (1985:290-315); Henderson (1985:161-166); Brown (1998:248-
253, 256) observa uma dinâmica similar a essa na polícia de Salvador.
73 Analisei em outro trabalho (Kraay, 1999a:279-283) os conflitos entre
soldados e patriotas civis que ocorriam regularmente durante as celebrações
do Dois de Julho.
74 CA ao presidente, 14-2-1874 (Apeb/SACP, m. 3.431).
75 CA ao presidente, 8-4-1861; Cônsul britânico ao presidente, Salvador, 10-4-
1861 (Apeb/SACP, m. 3.421 e m. 1.190).
76 CA ao presidente, 26-12-1888, reservado (Apeb/SACP, m. 3.456).
77 Diretor interino, Faculdade de Medicina, ao presidente, 11-6-1856, cópia; CA
ao presidente, 12-6-1856, cópia (ANRJ/SPE/IG1, m. 122, fls. 802, 803). A
respeito dos estudantes de medicina, ver Borges (1992:37-38).
78 Parecer do Conselho de Investigação, 20-6-1856, cópia (ANRJ/SPE/IG1, m.
122, fl. 804).
79 Tenente Cândido Cardozo d’Oliveira Guimarães ao [TCC, 18o BI], 22-4-
1873; CA ao presidente, 23 e 26-4-1873; José Eugênio Cavalcante, “parte,” 28-
11-1873 (Apeb/SACP, m. 3.430).
80 Segundo Kirkendall (2002:81-85, 114-115), os estudantes de direito também
mantinham relações tensas com os soldados em São Paulo.
81 Apud Sodré (1965:145).
CAPÍTULO 10

Ser homem pobre, livre e honrado: a sodomia e os


praças nas Forças Armadas brasileiras (1860-1930)*

Peter M. Beattie**

Uma coisa desgostava o grumete [Aleixo]: os


caprichos libertinos do outro [Bom Crioulo]. Porque
Bom Crioulo não se contentava em possuí-lo a
qualquer hora do dia ou da noite, queria muito mais,
obrigava-o a excessos, fazia dele um escravo, uma
“mulher à-toa”, propondo quanta extravagância lhe
vinha à imaginação. Logo na primeira noite exigiu que
ele ficasse nu, mas nuzinho em pêlo, queria ver o
corpo…. Aleixo amuou: aquilo não era coisa que se
pedisse a um homem! Tudo menos aquilo.

(Adolfo Caminha, Bom Crioulo)1

Nesse trecho, o ex-oficial de Marinha, republicano ardente e


romancista Adolfo Caminha maneja com destreza símbolos
poderosos que, após um século, continuam a desafiar as
hierarquias sociais de sexualidade, idade, gênero, raça e classe.
Caminha usou seu conhecimento sobre a vida na Marinha para
narrar em detalhes um romance entre um negro que escapara da
escravidão para ser, no entanto, forçado a servir na Marinha e um
grumete louro de olhos azuis de 15 anos de idade.2 Por sua audácia
em explorar o tabu da homossexualidade, Caminha foi ridicularizado
por críticos contemporâneos mais conservadores. Seu melhor
romance, Bom Crioulo, só recentemente conseguiu alcançar
reconhecimento como uma obra importante do cânone literário
brasileiro.3
A carreira e a vida de Caminha parecem um romance. Logo
após o golpe do Exército que promulgou a República em 1889,
Caminha teve que escolher entre a carreira na Marinha e seu
relacionamento com a esposa de um oficial do Exército em
Fortaleza. O jovem Caminha renunciou à carreira e continuou a
viver com sua amante. Por fim, o casal se estabeleceu no Rio de
Janeiro, onde Caminha se dedicava à literatura e ganhava a vida
como funcionário público. Antes de morrer de tuberculose em 1897,
com a idade de 29 anos, Caminha tornou-se um autor reconhecido.
Bom Crioulo fornece um ponto de partida apropriado para a
análise de 19 casos de inquéritos militares envolvendo acusações e
alegações de sodomia na Marinha e no Exército brasileiros, de 1861
a 1908.4 Esta análise busca entrelaçar textos de Bom Crioulo,
documentos de conselhos de guerra, assentamentos (registros de
carreira), teoria médica e direito, a fim de examinar concepções
conflituosas de masculinidade e honra entre oficiais e praças. Em
seguida examina como os reformadores abordaram as percepções
de que os quartéis eram espaços ocultos numa névoa de desvio
social e sexual.
A imagem do serviço militar tornou-se mais e mais problemática
para aqueles que lutavam por abolir o recrutamento forçado em
favor de um sorteio nacional. A esse respeito, parece que aqueles a
que aqui nos referimos como oficiais “reformistas” foram
crescentemente influenciados não só por modelos militares
alemães, mas também pelos novos ideais do Atlântico Norte sobre a
masculinidade adequada, quanto à defesa e à cidadania. Os
esforços para desencorajar e reprimir o intercurso entre pessoas do
mesmo sexo nas fileiras ganharam novo impulso a partir do
reformismo, amplamente inspirado no modelo prussiano que varreu
a maior parte do mundo no século XX. Essas reformas
desempenharam papel importante na reestruturação transcultural de
gênero e de identidade sexual. Como seus congêneres, os
reformistas brasileiros empenharam-se para aperfeiçoar o status e
as condições do serviço militar, a fim de torná-lo uma obrigação
masculina honrável, desembaraçada de insinuações de desvio.

Identidade sexual, gênero e honra


A maioria dos brasileiros categorizava seu conceito de sexo
entre homens em termos de honra. Os indivíduos não eram nem
homossexuais nem heterossexuais per se. A “ofensa” legal se
originava de um ato imoral, mais que de uma identidade abstrata
formada por uma preferência sexual. Pesquisas recentes já
mostraram que o termo homossexual só veio a se tornar comum em
meados do século XX. Até então, as autoridades se referiam a
relações entre dois indivíduos do sexo masculino como “sodomia,
pederastia, inversão sexual e atos imorais”, como era o caso nos
documentos militares do Brasil da virada do século.5
A maioria entendia por intercurso entre homens o sexo anal
entre um parceiro dominante e um parceiro passivo, cada um dos
quais associado a categorias de gênero e às vezes de idade. O
parceiro ativo assumia uma identidade máscula como agressor
sexual, e o parceiro passivo, uma feminilidade emasculada ou, no
mínimo, a masculinidade atenuada de um “menino”. Como se
desesperava Aleixo, ficar exposto para o prazer sexual de outro não
era “coisa que se pedisse a um homem”. Isso refletia a crença
comum de que mulheres e crianças eram passivas sexualmente,
enquanto os homens eram agentes em termos sexuais. A
identificação sexual brasileira refletia uma crença numa hierarquia
em que penetradores dominavam os penetrados. A vergonha era
principalmente dos parceiros passivos, enquanto os parceiros ativos
muitas vezes se gabavam de conquistas sexuais ilícitas como prova
de virilidade. Nem todos (incluindo muitos praças) enxergavam a
sexualidade dessa forma, mas parece ter sido um entendimento
social predominante em todos os níveis da sociedade (e ainda
continua sendo no Brasil e na América espanhola).6
Os médicos do século XIX passaram a encarar o intercurso com
o mesmo sexo e até mesmo a masturbação como perigosos para a
saúde e a estabilidade psicológica. Em Bom Crioulo, Caminha
descreve um grumete que é pego se masturbando: “Herculano
acabava de cometer um verdadeiro crime não previsto nos códigos,
um crime de lesa-natureza, derramando inutilmente, no convés seco
e estéril, a seiva geradora do homem”.7 A crença comum nos riscos
da masturbação é confirmada nos registros sobre o cabo da
Marinha Tomás da Cruz Ferrari, de Pelotas, Rio Grande do Sul.
Tomás padecia de palpitações do coração e doenças freqüentes, e
um médico da Marinha atribuiu esses sintomas ao “vício de
onanismo”.8 Caminha e muitos outros reformistas tentavam
estigmatizar todos os atos sexuais nãoreprodutivos, passivos ou
ativos.
A sociedade brasileira tinha a honra sexual em alta estima. A
maioria supunha que os homens eram responsáveis por proteger
suas famílias, dependentes e a si mesmos de agressões sexuais,
reais ou presumidas, de outros homens. A desonra maculava não só
a vítima, mas também seus protetores. Se deixada sem vingança,
essa desonra podia tornar as vítimas e seus pares, empregadores e
famílias alvo de boatos ultrajantes ou formas ainda mais patentes de
ridículo público, minando suas pretensões a respeitabilidade,
oportunidade e apoio. A sedução ou o estupro pediam vingança
privada para restabelecer a honra, mas as autoridades encorajavam
os cidadãos a resolver essas disputas pacificamente na Justiça.9
A cultura militar reforçava esse código ao encorajar a
hipermasculinidade. As memórias do general Nelson Werneck
Sodré descrevem algumas atitudes entre alunos do Colégio Militar
no fim da década de 1920:

Essa deseducação sexual (…) agravava o conceito (…) da


mulher unicamente objeto de prazer. Em seu fundamento induzia
também a idéia de descompromisso (…) pois não aceitava
conseqüências (…) e embolava-se na burla da própria mulher ou
de irmãos, maridos, que a deviam vigiar. Quebrar esta vigilância
era prova de habilidade, particularmente quando se trata de
maridos. O contraste era repudiado, não se admitia irmãs como
objeto do mesmo prazer que se busca nas irmãs alheias, e os
maridos enganados eram vítimas de ridículo, que ninguém
aceitava para si ou para os seus, naturalmente, e só se salva do
ridículo o marido enganado, que matava a mulher. Separação do
casal (…) estava sempre vinculada à impossibilidade de exercer
o marido seus deveres sexuais. Como a formação militar, que o
colégio procurava levar ao máximo de perfeição, exigia o culto
de machice, essas tendências preconceituosas eram apuradas e
praticadas naturalmente, espontaneamente, normalmente.10

A desonra deixava a um “homem” poucas alternativas, a menos


que ele pudesse tolerar os deboches e afrontas que lhe seriam
dirigidos. Na verdade, no entanto, a maioria dos casos de adultério
feminino não terminava em banho de sangue. Caminha teve que
desistir de sua carreira na Marinha, mas o marido de sua amante
aparentemente nunca tentou ferir fisicamente sua esposa ou
Caminha. Mas quando um marido praticava essa vingança e
invocava a “defesa da honra”, poucos júris civis davam um veredicto
de culpado. Os casos de assassinato de esposa e companheira
consensual entre praças (examinados a seguir) indicam que muitos
soldados apelavam a valores similares a esses. Entre homens
envolvidos em relações com o mesmo sexo, as regras e papéis da
honra sexual também podiam aplicar-se a parceiros ativo e passivo.
A honra é uma arena em que o predomínio e o status social
poderiam ser contestados entre indivíduos, famílias e nações. Para
os militares, a honra sexual tinha um significado coletivo peculiar. A
honra nacional era com freqüência pintada como uma mulher
virtuosa que a sociedade confiava aos soldados para ser defendida
de agressores estrangeiros e insurgentes. Durante a Guerra do
Paraguai (1864-70), uma charge política brasileira mostrava “a
honra nacional” como uma bela mulher de joelhos assediada por
vários espectros denominados “guerra, fome, Urquiza e cólera”. A
figura de um guerreiro índio tupi se interpunha para defender a
honra feminizada do Brasil. De modo similar, um editorial publicado
em Minas Gerais, em 1865, descrevia os paraguaios como
invasores que atacavam, violavam e desonravam virgens e
mulheres casadas, e até mesmo matavam crianças inocentes.11 O
estupro dos inocentes por “bárbaros” violentos foi sempre uma
bandeira unificadora para a mobilização para a guerra. A honra
nacional é assim relacionada e sobrecarregada com preocupações
a respeito de poder e dominação sexuais.12 De forma similar, um
médico advertia que o destino das “nações” ao longo da história se
vinculava à administração da prostituição e das “cópulas
desnaturadas.” Na sua tese, Francisco Ferraz de Macedo procurava
deixar claras as más influências que prostitutas tinham sobre
sociedades. Pior ainda era a sodomia: ao tratá-la, ele achava que
não havia como exagerar a influência maléfica de um vício que
contradizia a natureza.13 Com a ascensão do nacionalismo
militarista, essa retórica se tornou ainda mais pronunciada, porque
promovia um fetiche para a família nuclear heterossexual como o
alicerce da estabilidade social e uma metáfora para a nação.
Implícita na metáfora da guerra estava a idéia de que um país
derrotado se tornava uma nação de emasculados, incapazes de
proteger a virtude coletiva.14
A ascensão do nacionalismo militarista encerrava uma ironia
para os soldados brasileiros. Ainda que designados para defender a
honra nacional, muitos praças vinham da mal-afamada classe dos
desprotegidos. Os recrutadores, a polícia e os juízes extraíam a
maioria dos recrutados das fileiras dos vadios, ex-escravos, órfãos,
criminosos, migrantes, trabalhadores sem qualificação e
desempregados. A maioria dos voluntários se alistava para escapar
da fome, do desabrigo, do desemprego e, às vezes, da escravidão.
A vasta maioria dos praças era composta por brasileiros natos, e
suas fileiras incluíam muitos negros e brancos, mas a maioria era
mestiça. Como o Brasil fez uma transição da escravidão para o
trabalho assalariado entre 1850 e 1888, o serviço militar era
identificado com marginalidade e cativeiro. Como debochava Bom
Crioulo, “marinheiro e negro cativo, afinal das contas, vêm a ser a
mesma coisa”.15
Os quartéis situavam-se no extremo oposto dos valores
estereotipicamente representados pela casa de família. Como
observa Roberto Da-Matta, os brasileiros usualmente associavam a
casa com honra, ordem, casamento, segurança, família e poder
privado, enquanto a rua implicava desgraça, caos, ilegitimidade,
perigo, vadiagem e vulnerabilidade à impessoal ordem pública.16
Diversamente das casas particulares, os quartéis segregavam a
maior parte dos solteiros em superlotados alojamentos coletivos,
como as senzalas da sociedade escravocrata. Como os escravos
pertencentes a senhores, os praças solteiros precisavam do
consentimento de seus comandantes para casar e estabelecer uma
casa de família privada. A mobilização para a Guerra do Paraguai
fortaleceu a associação entre status desonroso e serviço militar, pois
foi quando o Estado emancipou centenas de escravos e libertou
dezenas de condenados para preencher as fileiras esvaziadas.17
O próprio termo usado para os soldados alistados, “praças”,
localizava-os lingüisticamente na rua. Em tempos coloniais, o termo
soldado era um eufemismo para um degredado do sexo masculino,
designando também um homem solteiro.18 Isso ressaltava a
tradicional dispensa do serviço militar de que gozavam os casados e
o uso de degredados para guarnecer regimentos coloniais. O
casamento continuava sendo uma importante insígnia de status na
sociedade brasileira pós-independência. Brasileiros sem titulações
freqüentemente se identificavam primeiro como casados ao lidar
com autoridades. Aqueles que quebravam seus votos de casamento
ao abandonar a esposa ou que zombavam da virgindade de uma
moça ameaçavam esse laço social fundamental e pedra de toque de
status. Caso fossem punidos, os homens que faltavam ao dever em
relação a essas responsabilidades patriarcais ou que tomassem
parte aleatoriamente de distúrbios com outros homens tinham muito
mais chance de ser recrutados à força.19
Os médicos atribuíam a lassidão moral do Brasil à natureza
libidinosa dos africanos, ao clima tropical, à mistura de diferentes
raças e à corrupção da escravidão. Também culpavam as
instituições que praticavam vários graus de segregação entre
homens e mulheres por encorajarem relações com o mesmo sexo.
Como observou um especialista em 1845, as corporações militares
e os internatos produziam a maioria dos sodomitas “ativos”.20 De
forma similar, em 1906, um médico republicano observou que os
presídios, as prisões, os quartéis e as escolas de aprendizes
militares do tempo do Império haviam produzido “ferradíssimos
cultores” do intercurso com o mesmo sexo. “Se é verdade que esse
vício degradante era muito comum no Exército e na Armada antes
da proclamação da República, o que não há de negar é que, depois
que se levantou o nível moral do nosso soldado e do nosso
marinheiro, se a devassidão e a crápula aumentaram com a
tolerância, nos arredores dos quartéis, da prostituição feminina, em
compensação a pederastia quase desapareceu completamente.”
Esse esclarecido reformador chegou a descrever a prostituição com
o mesmo sexo, que ele acusava os oficiais imperiais de tolerarem
nos arredores do Campo de Santana e do Largo do Paço, no Rio de
Janeiro, “tendo como atores marinheiros, soldados, e vagabundos
de toda a espécie”.21 Alguns até consideravam o serviço militar
como pena adequada para homens acusados de praticar a sodomia.
O chefe de polícia de Pernambuco enviou quatro homens para
servir no Exército em 1874, porque eram “larápios, desordeiros,
faquistas” e “dados à sodomia e outros vícios”.22 De certa forma,
antes da conscrição ser implementada em 1916, os quartéis
funcionavam como o equivalente masculino do bordel: ambos
tentavam isolar das casas honradas homens e mulheres
perigosos.23 O recrutamento forçado supostamente protegia as
casas de famílias honradas de homens solteiros perigosos,
congregando-os e supervisionando-os. Os quartéis eram um espaço
social suspeito: um lugar para órfãos, ex-escravos, sedutores,
vadios, “pervertidos” e ladrões, não para “homens e filhos de
família”. Tal como faziam em relação aos escravos, os superiores
tinham dos praças uma imagem estereotipada de homens sem
família, ainda que muitos fossem casados. Caminha reproduz essa
idéia ao descrever um oficial ponderando sobre o triste destino dos
marinheiros ordinários, “aquela pobre gente sem lar nem família”.24
O recrutamento forçado ameaçava as famílias pobres honradas,
porque significava rendimentos comparativamente baixos e, com
freqüência, transferências. Isso podia impor graves dificuldades para
as famílias modestas e suas redes de apoio mútuo. A
vulnerabilidade ao recrutamento implicava uma falta de
masculinidade, de posição social, além de infortúnio. É claro que
muitos praças de carreira, suas famílias e amigos tinham disso uma
visão diferente. Veteranos que arriscaram suas vidas para defender
a honra nacional podiam se identificar com a ideologia européia em
voga da “nação em armas”, que descrevia as instituições militares
como um microcosmo da nação e o abrigo da virtude cívica
masculina25
O serviço militar constituía um sistema de trabalho imposto,
semicoercitivo, e uma instituição protopenal, mas o Estado tentou
mudar essa função com um sorteio cuja primeira formulação legal é
de 1874. A nova lei, contudo, não mais isentava os homens
casados.26 Muitos integrantes do grupo dos pobres com protetores
resistiram a essa lei porque ela ameaçava sujeitá-los à humilhação
e à dureza do serviço militar. O Estado só conseguiu implementar
um sorteio em 1916, impelido pela I Guerra Mundial e apoiando-se
em argumentos de que a conscrição promoveria a higiene pública, a
unidade nacional e o embranquecimento da raça no Brasil. Os
reformadores também lidavam com a imagem sórdida do serviço
militar com retórica e reformas, para torná-lo mais palatável aos
pobres que contavam com proteção.27

Bom Crioulo e conselhos de guerra: janelas para a


masculinidade e serviço militar
A maioria dos oficiais do Exército e da Marinha reprimia as
cópulas com o mesmo sexo nas fileiras, mas, como ilustram o
romance de Caminha e os inquéritos da Polícia Militar, quase todos
os militares estavam cônscios de uma cultura parcialmente
submersa de sexualidade “criminosa” entre militares. Os tribunais
militares algumas vezes perseguiam homens acusados de
intercurso com outros, e alguns contavam sobre suas ligações
sexuais com outros soldados. Oficiais e praças brasileiros, fiéis à
tradição, julgavam a sodomia um pecado abominável. Alguns
reformistas, como Adolfo Caminha, a entendiam como resultado de
patologia médica degenerativa. Outros rejeitavam, ao menos
parcialmente, essas convenções e tomavam parte, eles mesmos, de
associações sexuais proibidas.
Em alguns níveis, a história de Caminha sugere que o impulso
sexual “invertido” de Bom Crioulo se originava primeiramente da
desumanidade da escravidão, somando-se depois às condições
degradantes e aos castigos corporais que o ex-cativo sofreu como
praça. Sem educação e vítima de abusos, Bom Crioulo acreditava
que seus próprios desejos sexuais fossem “naturais”. É plausível
que a intenção de Caminha fosse deixar implícito que a falta de
educação de Bom Crioulo o impedia de ver seu desejo pelo mesmo
sexo como “doença”. Ele também descreve um capitão da Marinha
tido em alta estima — conhecido por ser um sodomita ativo — e que
ele associa com a nobreza imperial como um “fidalgo”:

O comandante do couraçado, bela estampa de militar fidalgo,


irrepreensível e caprichoso, era o mesmo de quem, na frase
tosca de Bom-Crioulo, “falavam-se coisas…”. Uma lenda escura
e vaga levantara-se em torno do seu nome (…) cheio de
indiferença pelo sexo feminino, e cujo ideal genésico ele ia
rebuscar na própria adolescência masculina, entre os da sua
classe [marinheiros]. Fosse como fosse, ninguém o
desrespeitava, todos o queriam assim mesmo, cheio de mistério,
com o seu belo porte de fidalgo, manso às vezes, disciplinador
intransigente, modelo dos oficiais.28

Essa passagem escrita por Caminha retrata uma visão


ambivalente da sodomia entre os marinheiros. Deixa claro que o
capitão e Bom Crioulo desejavam rapazes, e não mulheres. E, ainda
que os marinheiros furtivamente debochassem do capitão, eles
respeitavam e temiam sua autoridade, como faziam em relação a
Bom Crioulo. O capitão e Bom Crioulo eram parceiros ativos em
relações com o mesmo sexo, deixando implícitas virilidade e uma
áspera individualidade não constrangida pelas convenções. Aqui,
Caminha torna público seu ânimo republicano contra o Império
brasileiro, por insinuar que a escravidão, o recrutamento forçado e
privilégios aristocráticos intensificavam essa ordem social e sexual
degenerada. Os extremos da escala social do Antigo Regime
invertiam os desejos “naturais” tanto dos mais privilegiados quanto
dos mais explorados29
Embora fosse um ardente abolicionista, Caminha também
expressava dúvidas quanto a questões como raça e destino
nacional. O caso entre um marinheiro negro que seduz um jovem
grumete branco era calculado, para chocar sensibilidades raciais.
Desafiava a hierarquia social e sexual fundamentada na raça, que
colocava os “brancos” por cima.30
A raça de Bom Crioulo também tinha implicações políticas. O
apartamento do marinheiro negro tinha um retrato do imperador
Pedro II, uma referência sutil ao apoio que muitos negros pobres
continuavam prestando ao monarca deposto. Caminha deixa
implícito um elo entre a ignorância, a raça e a depravação de Bom
Crioulo, o qual o tornava naturalmente um monarquista e, assim, um
inimigo potencial da nova ordem republicana.31
Em Bom Crioulo e outros textos, Caminha se refere a
preocupações científicas com a patologia da homossexualidade e a
loucura por masturbação. Ele manifesta familiaridade com o trabalho
de figuras proeminentes na “ciência” sexual: Richard von Kraft-
Ebing, Kurt Moll, e Ambroise Tardieu. Aqueles que apoiavam a
adoção da conscrição de estilo prussiano talvez tenham ficado
expostos a novas idéias a respeito da sexualidade masculina e sua
relação com a capacidade marcial.32 Os esforços do Brasil para
implementar a conscrição tomaram emprestada a retórica alemã e
partilhavam preocupações similares em assegurar a respeitabilidade
do serviço militar. O chefe de polícia de Pernambuco louvou a
aprovação da lei do recrutamento em 1875: “o Exército muito
ganhará no tocante à disciplina e moralidade porquanto a suas
fileiras afluirá a flor da nação, que a sorte designar, deixando (…) de
ser o receptáculo dos vadios e pervertidos”.33 A incapacidade do
Estado para implementar um sorteio, no entanto, significava que as
fileiras se mantinham como um terreno de despejo penal, mas os
oficiais ainda buscavam orientação nos modelos alemães e
franceses34
Ainda que Caminha fizesse alusões à ciência mais atualizada,
que condenava a miscigenação e o sexo entre homens como
patologia degenerativa, Bom Crioulo é um personagem simpático,
com sentimentos admiráveis. É um homem fisicamente bonito, cuja
“figura colossal de cafre” desafia, com “um sistema de músculos
formidáveis, a morbidez patológica de toda uma geração decadente
e enervada”. Ele exibe força física notável e hábil bravura. Quando
se banha nu pela primeira vez, seu corpo musculoso gera um
clamor entre seus companheiros de navio: “desde então Bom
Crioulo passou a ser considerado um ‘homem perigoso’, exercendo
uma influência decisiva no espírito daquela gente”,35 apesar de sua
baixa patente. O marinheiro é também generoso, trabalhador,
tolerante e filantrópico. Esses traços positivos, contudo, são
corrompidos pela injustiça, tornando trágico o destino de Bom
Crioulo. Quando açoitado ou tratado injustamente, tornase
“preguiçoso” e “rebelde”, propenso a beber cachaça demais e a
provocar brigas. Bom Crioulo também é consumido por um ciúme
corrosivo do objeto de sua mais profunda afeição: Aleixo. A escolha
de um herói trágico tão controverso para condenar o recrutamento
forçado, a escravidão, os castigos físicos, o Império e as relações
com o mesmo sexo deixou perplexa a maioria dos republicanos
contemporâneos de Caminha.
Ainda que alguns críticos tenham posteriormente rejeitado o
romance de Caminha como a descrição distorcida da vida da
caserna, os traços principais da relação entre Aleixo e Bom Crioulo,
se examinados mais de perto, guardam forte semelhança com
testemunhos apresentados pelos registros dos conselhos de guerra.
Embora Caminha tenha usado personagens arquetípicos para
dramatizar sua crítica, sua licença literária não desqualifica a
acurácia de seu retrato. De forma similar, os inquéritos militares
revelam interpretações de eventos conflituosos que devem ser
analisados com sutileza. Independentemente da veracidade das
acusações de sodomia, que podiam ser calúnias, o testemunho fala
do que os militares sentiam ser crível. Logo, Bom Crioulo e os
inquéritos permitem raras visões instantâneas dos choques e
compromissos entre formas de ver divergentes sobre o
comportamento masculino apropriado.

A guerra à sodomia
A disciplina militar reprimia atos homossexuais em dois níveis.
Os registros de praças mostram como os oficiais freqüentemente
empreendiam ações sumárias através dos conselhos disciplinares
dos batalhões para castigar o comportamento homossexual, sem
recorrer a um conselho de guerra formal. Em alguns momentos, no
entanto, acusações de tentativas ou consumação de atos
homossexuais levavam a julgamentos completos, e esses casos
raros fornecem oportunidades de espiar um mundo de outro modo
inacessível.
Em 1900, o soldado Manoel Cardoso do Nascimento foi
trancafiado por seis dias por haver batido em “uma mulher”. Dois
meses mais tarde, foi posto em isolamento por oito dias, após tentar
praticar atos imorais com um camarada na cela coletiva da prisão
militar. A frustrada tentativa de sodomia recebeu uma censura mais
severa que bater numa “mulher” de classe baixa, mas, em termos
de disciplina regimental, oito dias de detenção não era grave36 Por
exemplo, em 1904, o soldado Antônio Moreira Ignacio foi preso por
um período não especificado, com rancho reduzido, por cuspir no
chão, após lhe terem dito repetidas vezes que não o fizesse. Treze
anos antes, ele passara 15 dias na solitária, com apenas uma
refeição por dia, por ter abandonado seu posto de guarda das armas
da companhia. Flagraram-no em cima do portão do forte, praticando
“atos imorais” com um camarada.37 Em muitos casos, os oficiais
aplicavam punições relativamente leves aos que eram pegos em
relações com alguém do mesmo sexo, sinal de que havia certo grau
de tolerância e a expectativa de que tais associações ocorreriam.
Essas ações disciplinares eram suaves, se comparadas ao
Código Penal e Disciplinar da Armada, de 1891 (adotado pelo
Exército em 1899), pelo qual o indivíduo que agisse contra a
honestidade de uma pessoa de qualquer sexo, mediante ameaça ou
violência, com o objetivo de satisfazer paixões lascivas, ou por
depravação moral ou por inversão do instinto sexual, seria punido
com um a quatro anos de prisão.38 O termo “inversão” fazia eco a
um termo francês, cunhado em 1882, mas a lei só considerava
crime sexo por coação. O código de 1763 do conde de Lippe (a
base da lei do Exército brasileiro até 1899) não fazia referência
específica à sodomia, mas tradições medievais estipulavam a morte
para esse nefando pecado.39 A lei civil imperial e a republicana não
definiam como crime os atos homossexuais realizados em particular
e consensualmente entre adultos.40 Se fossem cometidos com
menores de 16 anos, entretanto, eram legalmente considerados
estupros.
A lei militar definia estupro homossexual como crime sério, mas
poucos eram julgados por essas acusações. Muitas vítimas
provavelmente achavam difícil substanciar a acusação ou
humilhante demais relatá-la. Dos extensos inquéritos, apenas um
julgamento de 1893 registrou condenação por esse crime: o foguista
José Joaquim de Sant’Anna e o marinheiro imperial Antônio Ferreira
da Silva foram acusados de estuprar o foguista Pedro Cavalcante.
Os três saíram para beber juntos na ilha de Moncanguê, onde se
localizava a companhia correcional da Marinha para “marinheiros
incorrigíveis” no Rio de Janeiro. Ao voltarem, Antônio, José e Pedro
entraram numa casa abandonada, onde começou uma briga. Um
relatório inicial registrou que Antônio e José despiram e prenderam
o “mais moço e mais fraco” Pedro e “saciaram nele os seus instintos
libidinosos”. A boa vontade de Pedro em testemunhar distingue esse
caso. Outros corroboraram seu testemunho ao observar que, ao
voltar a sua companhia, Antônio declarou: “quem quiser vá que já
acabei”. Antônio aparentemente se gabava de ter saciado seus
desejos em Pedro, convidando, sem piedade, outros a fazerem o
mesmo. Três anos depois, Antônio foi julgado e absolvido por injúria
a um camarada a quem ele teria forçado a “praticar atos imorais”.
Em 1893, no entanto, uma corte marcial sentenciou José e Antônio
a quatro anos de prisão, a sentença máxima, e absolveu Pedro, que
voltou ao serviço.41
Esse caso ilustra temas importantes. Antônio se gabou de sua
dominação e violação de Pedro, sugerindo que sentia orgulho, em
vez de vergonha. Em muitos casos, os parceiros ativos
pretensamente contavam bravatas sobre suas conquistas sexuais
de outros homens. Pedro, entretanto, deixou claro que tinha lutado
para defender sua honra, mas fora subjugado.42 Em vez de buscar
vingança individual, confiou nos oficiais para vingar sua vergonha.
Outro elemento comum era o consumo de cachaça por praças a
serviço e de licença — em bases, no mar, em casa, tavernas,
quartéis e bordéis. Alguns eram acusados de repetidamente
oferecer álcool a camaradas na esperança de obter seus favores,
diminuindo as inibições e levando-os a submeterem-se a seus
“desejos libidinosos”.43 Se a persuasão falhava, como no caso de
Pedro, o álcool facilitava a coerção. Beber muito sem sucumbir à
embriaguez era uma forma de afirmar a masculinidade, mas um
praça incapacitado por bebida punha em risco sua honra. As
acusações feitas em 1897 contra o grumete de 28 anos Olímpio
Martins ilustram esse risco. Olímpio foi acusado de libidinosidade e
insubordinação, aumentando seu já prolífico registro disciplinar. Ele
tinha acabado de cumprir uma prisão de 18 meses por incitar
camaradas contra seus superiores. Após ser libertado, Olímpio foi
obrigado (como a maioria dos sentenciados por cortes marciais) a
voltar ao serviço ativo. De volta ao mar, Olímpio e vários camaradas
saíram para beber numa farra. Dois marinheiros acabaram por cair
dormindo na latrina do navio, onde um deles havia vomitado. De
acordo com o marinheiro menos grogue, Olímpio, bêbado e armado
com uma navalha, o acordou e lhe disse para sair porque ele queria
“praticar atos imorais” com o colega desfalecido. Seguiu-se uma luta
e os dois marinheiros foram detidos. No julgamento, Olímpio negou
as acusações. Insistiu que tinha tentado retirar ambos os
marinheiros para limpar a latrina, mas um deles ficara agitado e
começara uma luta. A corte marcial do navio julgou Olímpio culpado,
sentenciando-o a dois anos de prisão, mas o Supremo Tribunal
Militar (que revia as decisões de todas as cortes marciais) absolveu-
o por falta de provas.44
As exigências de provas tornavam a sodomia difícil mas não
impossível de provar. De 1870 a 1925, os relatórios anuais do
Ministério da Guerra registraram 79 cortes marciais por ofensas
sexuais. Mais de um terço das sentenças que se conhecem
resultaram em condenações (algumas para oficiais).45 Praças com
registro disciplinar ruim ou má “reputação” eram provavelmente mais
suscetíveis a cortes marciais. Tomemos o exemplo de 1884 do
segundo-sargento Gabriel Coutinho Brasil, carpinteiro da Marinha,
de 20 anos. Os assentamentos de Gabriel mostravam que ele vinha
de um sistema escolar da Marinha notoriamente picaresco, em que
as autoridades freqüentemente faziam ingressar menores
abandonados e delinqüentes juvenis.46 Com a idade de nove anos,
a “protetora” de Gabriel, d. Maria Leite de Gouveia, o apresentou ao
Arsenal da Marinha. Gabriel era talvez um enjeitado ou filho de um
escravo ou de um empregado doméstico livre na casa de d. Maria.
O nome do pai registra apenas “Agostinho”, sinal de que Gabriel era
filho de um escravo, já que muitos deles não tinham sobrenomes. O
período de aprendiz de Gabriel não foi promissor; ele era
freqüentemente encarcerado por beber, brigar, fugir da aula de
geometria e deixar de cumprir seus deveres. Em 1882,
suspenderam-lhe o soldo porque foi flagrado em seu alojamento
“praticando atos imorais”. No mês seguinte Gabriel desertou,
voltando dois meses depois. Provavelmente, como punição por sua
deserção, os oficiais transferiram Gabriel para a Marinha regular.
Aparentemente, Gabriel resolveu virar a página. Foi promovido a
cabo e depois a segundosargento, em 1883. No ano seguinte,
porém, foi acusado de “ser dado ao vício de pederastia”, rebaixado
a soldado raso e levado a julgamento.47
Nove testemunhas, a maioria praças no regimento de Gabriel,
alegaram que o segundo-sargento tinha mantido intimidade imoral
com o soldado José Teotônio de Oliveira. De acordo com um
sargento, “era público e sabido em todo o batalhão que [o sargento]
Brasil vivia amasiado com o soldado [Teotônio]”. Outros atestaram
que Gabriel havia se gabado em público de suas relações com
Teotônio, “ousando a ponto de maltratar seus camaradas com
palavras, tudo por ciúmes do referido soldado”. Outro soldado
afirmou que Gabriel declarara abertamente que “Teotônio lhe
pertencia, pois que ele o sustentava, dando-lhe roupa, dinheiro,
cigarros e mais que ele Teotônio precisava”. Gabriel fez saber que
Teotônio era seu protegido, razão pela qual lhe atribuía tarefas leves
e o isentava das revistas. Quando interrogado, Gabriel
simplesmente afirmou que não havia prova de sua culpa. A maioria
dos sete oficiais que integravam a corte marcial concordou e o
absolveu, observando que “para ser punido o delito seria
indispensável que tivesse sido o réu preso em flagrante, ou pelo
menos que as testemunhas ou algumas delas tivessem presenciado
o ato”.48 O Conselho Supremo Militar e de Justiça confirmou a
sentença.
Verdadeira ou não a acusação, a intimidade do sargento com um
soldado mais jovem revela que os praças reproduziam o sistema de
proteção patriarcal, comum na sociedade brasileira. Muitos
buscavam “pistolões” para melhorar as condições da vida na
caserna. Esses vínculos clientelistas podiam ser fortalecidos ou
condicionados por intimidade sexual, mas vinham com um preço a
pagar, como indicavam as testemunhas de que Gabriel havia batido
em Teotônio e destruído coisas de sua propriedade em ataques de
ciúme furioso.
A descrição da relação entre Gabriel e Teotônio se assemelha ao
enredo de Bom Crioulo. Tendo simpatizado imediatamente com o
recém-alistado Aleixo, Bom Crioulo espanca um marinheiro que
maltratava o grumete e acaba sendo açoitado por isso. Para Aleixo,
“a idéia de que Bom Crioulo sofrera por sua causa calou de tal
maneira no espírito do grumete que ele agora o estimava como a
um protetor desinteressado, amigo dos fracos…”. Bom Crioulo
continua a conceder favores e a cortejar Aleixo. Então, uma noite,
os dois penduram suas redes lado a lado, se abraçam num cômodo
isolado do navio e Aleixo sente que

Uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o


corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca
mais experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos
caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele
quisesse — uma vaga distenção dos nervos, um prurido de
passividade. “Anda logo!” murmurou apressadamente, voltando-
se. E consumou o delito contra a natureza.49

A descrição feita por Caminha do despertar sexual de Aleixo a


partir dos avanços de Bom Crioulo enfatiza o “prurido de
passividade”, estereotipicamente um sentimento feminino. Isso
refletia a percepção de que nem o intercurso heterossexual nem o
homossexual eram realizados por iguais, mas por parceiros ativos e
passivos. Caminha também diz que havia uma “vontade ingênita”,
sugerindo assim uma inclinação degenerativa inata no grumete.
Subseqüentemente, Bom Crioulo protege seu amante, fornece-
lhe presentes e um quarto que partilham quando de licença.50 A
maioria de seus colegas provavelmente sabe de sua relação, mas
tem medo de dizer qualquer coisa que pudesse provocar a ira de
Bom Crioulo. Tais relações provavelmente não eram raras nas às
vezes perigosas fileiras. Alguns aceitavam o papel passivo na
esperança de obter proteção constante, realização sexual e
emocional, favores, ou porque gostavam de desempenhar um papel
transgressor. Esses desejos não eram mutuamente exclusivos. Bom
Crioulo sente orgulho em ser o parceiro ativo, como se isso fosse
uma expressão de virilidade, mas a narrativa de Caminha indica que
a atividade sexual de Bom Crioulo tinha conseqüências médicas
graves. Como no drama grego clássico, a tragédia reside na
incapacidade do marinheiro para reconhecer sua transgressão. À
medida que leva adiante seu caso com Aleixo, o marinheiro negro
vai ficando inexplicavelmente mais magro e fraco. Bom Crioulo fica
ainda mais doente e desesperado quando o transferem para um
navio a vapor cujo capitão lhe recusa licença para baixar à terra e o
açoita. Durante sua separação, Aleixo, envergonhado de sua
dominação pelo negro, não procura Bom Crioulo e inicia
orgulhosamente um caso varonil com a prostituta portuguesa
Carolina. Bom Crioulo descobre a traição de Aleixo no hospital da
Marinha, por um colega. Nas últimas cenas, o marinheiro negro
deserta do hospital num estado desvairado e tira a vida de Aleixo
brutalmente, para vingar sua honra. A acauteladora fábula sugere
que derramar “inutilmente (…) a seiva geradora do homem” traz
conseqüências fisiológicas e psicologicamente fatais. As
circunstâncias e as emoções que reuniram Teotônio e Gabriel
podem ter sido similares àquelas de Aleixo e Bom Crioulo.
Como foi dito anteriormente, a lei militar condenava o estupro
homossexual, mas não condenava expressamente atos entre
pessoas adultas do mesmo sexo realizados em particular. Em 1884,
no entanto, um tribunal puniu dois homens que admitiram manter
relações com alguém do mesmo sexo, como determinam os Artigos
de Guerra da Marinha, de 1800. Honório Hermeto Carneiro Leão e
José Moreira da Cunha foram flagrados por três testemunhas
praticando “atos imorais” na latrina do hospital da Marinha no Rio de
Janeiro. O mais velho, Honório, era o “agente” e José, o “paciente”.
Em 1880, José havia sido mandado para a Escola de Aprendizes
Marinheiros pelo chefe de polícia da Paraíba, que julgou tivesse ele
então 14 anos de idade. Três anos depois, foi transferido para o Rio,
onde se tornou grumete. Quando o crime ocorreu, Honório estava
cumprindo uma sentença de seis anos, por ferir gravemente um
colega. Embora fosse um condenado, provavelmente mantido na
ilha das Cobras, encontrava-se freqüentemente no hospital da
Marinha no Rio, recuperando-se de doenças.
Honório negou ter cometido esse ato, mas José, que afirmava
ter apenas 15 anos, disse que, “tendo praticado o delito julgando-se
culpado, nada achava para alegar a seu favor”.51 José não alegou
que Honório o houvesse forçado a se submeter, indicando que tinha
consentido por sua livre vontade. É impossível saber como José se
sentiu a respeito dessa afirmativa. Acaso não teve vergonha de ser
um “sodomita passivo”, desafiando as concepções convencionais de
honra varonil? Ou sentia de verdade que era culpado de um crime
contra a natureza? Ao enfatizar sua idade, 15 anos (o que o fazia
três anos mais jovem do que os seus assentamentos estimavam),
teria ele esperança de atenuar sua punição ao deixar implícita a
ocorrência legal de estupro? Os documentos não têm como
responder a essas questões, mas a última interpretação parece ser
a mais provável. Sexo com um menor de dezesseis anos de idade
era legalmente considerado estupro e, dos casos de que há registro,
José foi o único praça de mais de 20 anos que admitiu essa
“ofensa”. A corte marcial do hospital definiu ambos como culpados,
mas argumentou não ter competência para estabelecer uma
sentença. O Conselho Supremo Militar e de Justiça condenou
ambos, Honório e José, a seis meses de prisão. Nesse caso, a corte
superior não reconheceu o presuntivo “menor” passivo como menos
culpável que o adulto ativo; os atos de ambos eram igualmente
vergonhosos.
Em outros casos, os defensores apresentavam acusações de
sodomia a fim de justificar a violência contra aqueles que
ameaçavam sua “honestidade”. Tal foi o caso de João Estácio, de
22 anos, soldado do Exército. Sua capacidade de ler e a baixa
estatura (1,40m) tornavam-no de algum modo incomum. Acusado
de assassinato, João testemunhou que, ao voltar da cidade com
algumas compras, havia sido abordado pelo soldado Horácio
Veloso. Este teria oferecido a João 5 mil-réis “a fim de servir-se do
réu como mulher”. João retorquiu que “não era guri nem mulher para
prestar-se a tais fins”. Estabeleceu, dessa forma, as linhas precisas
que separavam “homens” de garotos e mulheres em termos de
passividade sexual. Talvez o pequeno tamanho do soldado tenha
encorajado Horácio a manter a iniciativa, acreditando que poderia
subjugar ou intimidar João. Após açoitar Horácio, João deixou suas
compras com sua amante, a lavadeira Balbina Nunes de Almeida.
Mais tarde, ele encontrou novamente Horácio. João atestou que
Horácio escarneceu dele: “então ainda estás com parte de valente
aqui sua sacana?”. Horácio deu uma cacetada na cabeça de João,
agarrou-o e tentou tomar-lhe a faca. De repente, Balbina apareceu,
e Horácio teve que fugir. João insistia em dizer que não sabia como
seu agressor havia recebido um ferimento de faca fatal.52
João chamou vários camaradas e Balbina para atestar a
pederastia de Horácio e sua habitual embriaguez. Vários
testemunharam que o soldado assassinado “dava-se ao vício de
embriaguez” e “achando-se embriagado era mau”. Horácio era
também reputadamente um “pederasta ativo” porque, como
observou um soldado, havia proposto sexo a ele e a outros colegas,
e muitas vezes era visto na companhia de crianças. Um sargento
alegou que Horácio era “visto muitas vezes em companhia de um
menino no qual não queria que lhe tocassem por servir de
instrumento de seus atos libidinosos”. No entanto, ninguém havia
testemunhado Horácio praticando esses atos libidinosos. Vários,
incluindo Balbina, alegaram ter ouvido Horácio chamar João de
“fresco” e, no clássico insulto à virilidade e ao nascimento ilegítimo,
insultar “também a mãe do mesmo”. Outra testemunha afirmou “que
ouviu do réu no ato da luta que Veloso pretendera saciar nele, réu,
desejos libidinosos”. Apesar dessa elaborada defesa, um conselho
de guerra condenou João e o sentenciou a dois anos, mas seus
esforços por desacreditar Horácio podem ter contribuído para uma
sentença extremamente leve. Quando o caso chegou ao Supremo
Tribunal Militar para revisão, os juízes aumentaram a sentença para
oito anos.53
Diversamente de júris civis, os tribunais militares raramente
rejeitavam um caso em que praças alegavam ter assassinado em
defesa da honra. A maioria dos oficiais e dos civis provavelmente
acreditava que poucos praças tivessem alguma honra a perder, mas
os soldados não se viam dessa forma. Em sua maioria, também se
apegavam ao código de honra comum à sociedade civil. Os
soldados veementemente protegiam sua honra ao defender de
violação a si mesmos e suas amantes, seus dependentes e suas
casas. Lutas mortais podiam irromper entre praças, quando um
acusava o outro de ser “pederasta passivo” ou, mais tipicamente, de
servir-se de mulher para os desejos lascivos de outro homem. A
vida militar promovia a hipermasculinidade, que pressionava os
soldados a provar de tempos em tempos sua bravura e dominação.
Às vezes, provava-se a virilidade à custa da honra de um colega.54
A hipermasculinidade encorajava assim confrontações violentas, e
os praças buscavam afirmar sua masculinidade através de
conquistas sexuais não raro nocivas à disciplina militar. Oficiais
reformistas, alguns dos quais influenciados por idéias norte-
européias sobre a sexualidade, a saúde e a ordem, buscavam
desencorajar esse comportamento, ao estigmatizar tanto os
parceiros ativos quanto os passivos como “homossexuais”. Os
reformistas tendiam a ver como incompatíveis a moderna disciplina
militar e uma arrogante sensibilidade à honra pessoal, pelo menos
entre os praças.

Implementando o sorteio militar


O conflito entre as concepções tradicionais de honra varonil e a
moderna ciência militar tornou-se mais evidente à medida que
aumentaram os esforços em prol do recrutamento e da reforma no
início do século XX. A fim de realizar uma reforma, as condições do
serviço (alojamento, comida e tratamento) tinham que ser
substancialmente melhoradas. O Estado também reduziu o contrato
de serviço mínimo de seis anos para um, aboliu os castigos físicos
(mais no Exército do que na Marinha) e eliminou o serviço de
camarada (trabalhos domésticos e servis para oficiais). Além disso,
a propaganda reelaborou a imagem do serviço militar no Exército e
na Marinha, a fim de torná-lo mais respeitável para as famílias
pobres protegidas. A propaganda louvava o serviço militar como um
dever varonil e afirmava que, com a conscrição, os quartéis seriam
mais como casas de família, onde os jovens seriam orientados por
oficiais virtuosos e paternais.
Os defensores do sorteio começaram a refutar diretamente as
percepções de que o serviço militar no Exército implicava
“transgressão” sexual. Em 1916, um folheto pró-conscrição atacava
o preconceito contra instituições que praticavam segregação sexual:
“como há de ter idéia de pátria quem não tem lar nem família?
Gritam todos contra o celibato honesto do padre e o militar, o
soldado e o marinheiro, pela vida miserável que leva, quando quem
não é um desviado sexual é um eunuco”.55 Os reformistas atacavam
os preconceitos específicos que envolviam os quartéis numa aura
sinistra de castração social e perversão sexual. Eles se esforçaram
por dissipar essas percepções, mostrando como o sorteio e a
disciplina militar serviriam para fortalecer os valores familiares, a
solidariedade comunitária, a ética no trabalho e a virtude masculina.
Iniciativas anteriores não tinham sido acompanhadas de um esforço
persistente para vender o novo sistema para o público e remodelar a
imagem de soldados e marinheiros. Diversamente da mobilização
para a I Guerra Mundial nos Estados Unidos, onde os que resistiram
ao recrutamento foram submetidos à ridicularização ligada ao
gênero, rotulando os desertores como ociosos emasculados, no
Brasil os propagandistas tinham que convencer o público de que o
serviço militar era viril.56
Os oficiais do Exército e da Marinha tornaram-se mais e mais
conscientes de suas imagens públicas. Retratavam os quartéis
como uma “grande casa de família” onde os oficiais agiam como
pais cuidadosos. A propaganda descrevia os quartéis como um
típico lar nacional, e os militares como uma família virtuosa. Nos
anos 1930, quando os militares assumiram papel proeminente na
política e lutaram para arrochar o cumprimento das leis do
recrutamento obrigatório, os oficiais tornaram-se mais defensivos.
Logo, não surpreende que a Marinha brasileira tenha tentado
impedir a distribuição de uma nova edição de Bom Crioulo. Como
isso não foi possível, alguns buscaram desacreditar o realismo de
Caminha. A biografia de Caminha, feita por Gastão Penalva em
1939, desmentia seu retrato da vida na Marinha nos anos 1890:
A Marinha de Bom Crioulo, o cenário em que se desenrolam as
tramas do romance, os fatos e personagens que nele vibram,
plásticos e humanos, não são verdadeiramente aqueles em que
existiu e se agitou o romancista. O que lhe influiu no espírito,
imaginoso e ágil, foram, por certo, reminiscências de leituras,
façanhas de outras gentes e outras plagas, e essa falaz tradição
oral que estraga a história e desvirtua as lendas.57

A forma descuidada com que os marinheiros e soldados em Bom


Crioulo pareciam aceitar o intercurso com o mesmo sexo era uma
alegação blasfema para os militares recrutados nos anos 1930.58
Tenham se dado conta ou não, Caminha compartilhava da maior
parte de sua visão sinistra quanto ao comportamento homossexual.
Mas a batalha para reformar as imagens do serviço militar, a fim de
possibilitar a implantação do sorteio, esclarece em parte por que os
militares, na maioria das nações, detestam admitir homens e
mulheres que mostram preferir sexo e romance com alguém do
mesmo sexo.59

Conclusões
A guerra à sodomia nas instituições militares no Brasil ao longo
dos primeiros anos do século XX é prenhe de ironias. Como se
poderia punir homens por atos sexuais “criminosos” numa instituição
em que o serviço militar constituía um sistema de trabalho imposto
semicoercitivo e uma instituição protopenal? Depois de cumprir suas
sentenças, apenas aqueles que cometiam crimes hediondos eram
expulsos. Por exemplo, o guardião Francisco Joaquim Ribeiro foi
acusado de tentar forçar um grumete, e uma corte marcial a bordo o
sentenciou a dois anos de cárcere e expulsão da Marinha por
“imoralidade”. O CSMJ, no entanto, mudou a sentença, reduzindo-a
a seis meses de detenção embarcado; ele deveria ser reintegrado
no posto de marinheiro.60 Antes de 1900, a maioria das
condenações exigia que os praças cumprissem os seus contratos
após terminar seu período de prisão, perdendo todo o tempo
anteriormente servido. Logo, as condenações normalmente
estendiam mais do que reduziam o serviço requerido que o réu
cumprisse. Como muitos homens eram punidos (alguns por ofensas
sexuais) com o serviço no Exército, excluir homens do serviço militar
por praticar ou por terem afirmado haver praticado sexo com alguém
do mesmo sexo era mais um prêmio que uma punição.
O serviço militar obrigatório e o sorteio aos poucos elevaram o
serviço militar de uma instituição punitiva a uma instituição
preventiva para a reforma social. Ficou mais diretamente associado
com um dever masculino respeitável, capaz de ampliar a honra
pessoal através de uma associação com a honra nacional, ao
menos para brasileiros pobres respeitáveis. Mesmo assim, a maioria
dos integrantes das classes média e alta evitava legal ou
ilegalmente o sorteio, porque o serviço militar continuava a ter o
estigma de origem social humilde. Depois de 1916, os militares
começaram a recrutar uma seção transversal maior de jovens
brasileiros de famílias respeitáveis pobres por períodos mais curtos,
em vez de continuar se baseando no recrutamento forçado. O
Estado podia agora conceder dispensas periódicas e expulsar
recrutas problemáticos. Os oficiais podiam também treinar mais
efetivamente os soldados na doutrina nacionalista, nas práticas de
higiene, nos exercícios físicos, na moralidade e nos deveres cívicos.
Ainda falta pesquisar mais para determinar até que ponto os oficiais,
como parte desse programa, pregavam contra a homossexualidade
como uma “doença”.
Os esforços do governo para aperfeiçoar a imagem do serviço
militar em última análise tiveram êxito em tornar mais bem aceito e
fortalecer o recrutamento, mas os reformistas tiveram menos êxito
em propagar novas concepções de identidade sexual que
estigmatizassem igualmente parceiros sexuais ativos e passivos. Na
mente de muitos, a vergonha ainda permanecia com o parceiro
passivo. No final dos anos 1920, Nelson Werneck Sodré lembrava
que entre os estudantes do Colégio Militar o
Homossexualismo, habitual em internatos, como em
penitenciárias — é um dos motivos mais graves para a
condenação desses regimes de clausura que importam em
mutilação das pessoas — só era desonroso quando passivo,
quando ativo aparecia até como demonstração de virilidade.
Eram raros os casos passivos, mas eram comuns ligações,
quase sempre inconseqüentes — as mais das vezes por fins de
ostentação — entre internos. Dois ou três casos, nessas
ligações, deram que falar, provocando brigas e ciúmes; num
deles, o elemento passivo era desses casos excepcionais de
indecisão entre um sexo e outro.61

Sodré e muitos outros continuaram a associar desvio sexual com


uma segregação insalubre dos sexos. A propaganda do Exército
não havia derrotado a percepção de que os quartéis promoviam
promiscuidade entre pessoas do mesmo sexo. Mesmo entre os
estudantes, em sua maioria de classe média, do Colégio Militar, o
parceiro ativo era ainda considerado viril. As relações com outro do
mesmo sexo eram e são parte da vida do Exército ou da vida civil,
mas o parceiro passivo permanece alvo de ridicularização. Sodré
partilha da visão de Caminha e de outros reformistas a respeito da
homossexualidade como sintoma de patologia social mutiladora,
seja o indivíduo ativo ou passivo.
Bom Crioulo, os documentos integrantes de inquéritos, a teoria
médica e a lei põem em evidência importantes conexões entre a
ascensão do nacionalismo militarista e uma crescente preocupação
em definir o comportamento sexual masculino adequado. Até onde
sei, ainda não foi explicitamente sugerido nenhum vínculo entre a
ascensão da conscrição universal e a disseminação de novas
identidades sexuais como uma via útil para estudos adicionais na
literatura acadêmica. A conscrição estimulou as autoridades a lidar
com a “ciência” da sexualidade masculina e a ajustar conceitos de
família e nação. O resultado desses esforços foi variado como as
culturas e os indivíduos que os experimentaram.
O trabalho de George Chauncey Jr. sobre Newark após a I
Guerra Mundial argumenta que os investigadores da Marinha norte-
americana focavam os queens (“bichas”), que freqüentemente
assumiam o papel feminino ou receptivo, e os distinguia dos trade,
homens que tinham sexo com queens mas que não davam sexo em
troca a seus parceiros. No Brasil, ao contrário, as cortes marciais
focaram seus esforços nos parceiros ativos que assumiam o papel
varonil de penetração, talvez refletindo hipóteses diferentes das
norte-americanas sobre sedução, atividade e identidade sexuais.62
No mínimo, as maciças mobilizações militares do início do
século XX são uma chave importante para desenvolver uma
compreensão mais rigorosa e nuançada em termos transculturais
das concepções cambiantes de masculinidade e virilidade. A
conscrição levava as autoridades a estenderem a ciência sexual
para além dos periódicos médicos e fornecia novas oportunidades
para estudar e aplicar a teoria higiênica e eugênica à população
masculina do país. Essas idéias às vezes reforçavam atitudes e
crenças locais a respeito da sexualidade, mas havia conflito quanto
a outros pontos. Os movimentos nacionalistas militaristas tanto da
direita quanto da esquerda na América Latina e em outros lugares
evidenciaram uma profunda preocupação em purificar a “moralidade
nacional”, o que freqüentemente leva a caracterizar e reprimir
aqueles que praticam sexo “não-natural”.63
A adoção ampla de métodos militares de inspiração prussiana
alterou a estrutura e a composição internas das Forças Armadas em
todo o mundo, na medida em que se difundia a noção de que as
doenças venéreas, a masturbação e as relações com o mesmo sexo
eram “doenças” que poderiam enfraquecer os jovens destinados ao
serviço militar. Os indícios analisados aqui poderiam ser usados em
outras nações para estabelecer um quadro comparativo destacando
os vínculos entre a reforma marcial européia e as políticas para
masculinidade, sexualidade, cidadania e comportamento.

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* Traduzido por Vitor Izecksohn. A versão original deste capítulo está em


Beattie (1999). O autor agradece a Donna Guy, Dan Balderston, Hendrik
Kraay, Celso Castro e Vitor Izecksohn por seus úteis comentários, mas é
totalmente responsável pelos erros que o texto possa conter. O apoio para
esta pesquisa veio da Michigan State University e da Albert J. Beveridge
Grant, da American Historical Association. Foram usadas as seguintes
abreviaturas: AN (Arquivo Nacional), CSMJ (Conselho Superior Militar e de
Justiça), CGM (Conselhos de Guerra da Marinha), STM (Supremo Tribunal
Militar).
** Doutor em história pela Universidade de Miami; professor da Michigan State
University.
1 Ver Caminha (2002:55).
2 Ver Barbosa, (1982:7-9); Penalva (1939); Beattie (2004); Howes (2001);
Azevedo (1997).
3 Ver Barbosa (1982:6); Penalva (1939:459). A edição de Bom Crioulo de
2002 registra que o romance agora é adotado como bibliografia para o
vestibular da Unicamp.
4 Os exemplos de cortes marciais aqui analisados encontram-se na coleção
Processo Crime do AN.
5 Ver Halperin (1989); Chauncey Jr. (1985); Fry (1982:93-94); Green (2000).
6 Parker, 1991:70-71; Lancaster, 1992: 237-271; Chauncey Jr., 1985:196.
7 Caminha, 2002:19. Para advertências a respeito do excesso de
masturbação e sexo em geral, ver Macedo (1872); Sousa (1845); Sá (1845).
McMillan (1995) analisa a preocupação dos nacionalistas alemães acerca da
masturbação.
8 Thomas da Cruz Ferrari, pr. 4 (AN, STM, m. 13199, Rio de Janeiro, 1896,
sem numeração de folhas).
9 Sobre os praças e a honra, ver Beattie (2001, cap. 8); sobre defloramento,
ver Esteves (1989); Caulfield (2000).
10 Sodré, 1986:41.
11 O Arlequim, Rio, 14 jul. 1867; O Voluntário, Diamantina, 29 jul. 1865.
12 Ver Sommer (1991:33-51); Costa (1983:240, passim).
13 Ver Macedo (1872:163).
14 Ver Carvalho (1990:75-96); Mosse, (1985:128); Theweleit (1988, v. 2, p. 34,
90-96). O trabalho de Guy (1991) ilumina as discussões sobre sexualidade,
gênero e nacionalismo militarista na Argentina.
15 Caminha, 2002:60. Sobre os praças, ver Beattie (2001, cap. 6); Kraay
(1996, 2001, cap. 3 e 7).
16 Ver DaMatta (1987:31-69). Gilberto Freyre (1985, v. 1, p. 34-41) antecipou
alguns dos insights de DaMatta; Muitos autores criticaram e historicizaram
esses insights, observando que os possíveis significados da casa e da rua
foram se modificando com o tempo e mostrando como os diferentes atores
entenderam a geografia social urbana. Ver também Graham (1988); Esteves
(1989); Caulfield (2000); Parker (1991).
17 Ver Izecksohn (2001, cap. 6); Beattie (2004, cap. 2); Kraay (1997);
Chiavenato (1983).
18 Ver Coates (2001); Pearson (1981:42).
19 Ver Meznar (1992:342-44).
20 Cunha (1845); Macedo (1872:115-121, 167); Almeida (1906:75, 85) e
outros associaram a escravidão com a prostituição: “nas fazendas (…)
mantinham (…) verdadeiros serralhos e prostíbulos de escravos, onde
cevavam seus instintos libertinos”. Ver também, Sousa (1845); Mott (1988).
21 Almeida, 1906:68, 77, 85.
22 Carta de Antônio Francisco Correia d’Araujo ao Presidente, Recife, 10-11-
1874 (Arquivo Público do Estado de Pernambuco, Livro PC-140, f. 237).
23 As autoridades médicas pediam regulamentação das prostitutas em casas
de tolerância. Bordéis com regras adequadas protegeriam as mulheres
honestas das indecentes, ao mesmo tempo em que davam oportunidade de
que as naturais agressões sexuais dos homens se manifestassem sem criar
escândalo. Bordéis públicos serviriam como meio racional de combater a
sífilis e a “serpente terrível de sodomia”. Analistas criam que a sífilis,
prostitutas muito caras e a escravidão (em parte, porque supostamente
impedia o casamento) contribuíam para as altas taxas de sodomia e
prostituição clandestina. Macedo (1872:121); Sousa (1845); Engel (1988, cap.
4).
24 Caminha, 2002:41. Slenes (2000) mostra que o estereótipo de os escravos
não manterem famílias já está ultrapassado.
25 Ver McCann (1977); para um exemplo do militarismo nacionalista popular,
ver Silva (1997).
26 Lei no 2.556, de 26-9-1874 (Brasil, 1875, v. 1, p. 64-66).
27 Ver Beattie (2001); Stepan (1992:36).
28 Caminha, 2002:80. Penalva (1983:130) sugere que o capitão do vapor em
Bom Crioulo era uma referência velada ao almirante Luís Felipe Saldanha da
Gama, oficial sob cujas ordens Caminha serviu durante seu cruzeiro aos
Estados Unidos.
29 Sousa (1845:20) e Macedo (1872:115-121) fizeram afirmativas similares.
30 Ver Skidmore (1993).
31 Ver Caminha (2002:7, 81). A respeito da estima que afro-brasileiros tinham
pela monarquia, ver Trochim (1988:93-104); Soares (1994:185-245).
32 Ver Howes (1982:14); Caminha (1999); Kraft-Ebing (1965); Moll (1893);
Tardieu (1857). Para o pensamento francês sobre sexualidade e militarismo,
ver Nye (1993, cap. 6). Ver também Brandt (1985).
33 Apud Pernambuco (1875:35).
34 Ver Nunn (1983).
35 Caminha, 2002:28, 33.
36 Manoel Cardoso de Nascimento, pr. 396 (AN, STM, cx. 13.390, 1908, f.
59).
37 Antônio Moreira Ignacio, pr. 750 (AN, STM, cx. 13.349, 1904, f. 10).
38 Ver Brasil (1914:58).
39 Ver Mattos (1834-42, v. 3, p. 161); sobre o termo francês invert, ver Nye
(1993:108).
40 Ver Severiano (1923:391-395, 421).
41 Pr. 1922 (AN, CSMJ-CGM, m. 13.191, 1893, f. 17-8, 57-9). Esse caso
também é analisado por Álvaro Pereira do Nascimento em sua contribuição
para este livro.
42 Francisco Joaquim Ribeiro prestou testemunho parecido, mas, em seu
caso, seus esforços impediram um colega de estuprá-lo; pr. 224 (AN, CSMJ-
CGM, m. 13.160, no mar, 1864, f. 20).
43 Para outro exemplo, ver Agripino Antônio da Costa, pr. 434 (AN, STM, cx.
13.309, 1896, f. 6-7).
44 O soldado Herculano foi acusado de estuprar um colega bêbado num
depósito; Herculano Gomes da Silva, pr. 280 (AN, STM, m. 13.273, Curitiba,
1901). O marinheiro Raimundo tinha violado um aprendiz de marinheiro que
se encontrava incapacitado devido à febre amarela e posteriormente morreu;
Raimundo Valentim Germano da Costa, pr. 1930 (AN, STM, m. 13.192, Recife,
1893). O art. 149 do Código Penal da Marinha de 1891 reconhecia esse
problema, especificando que um crime contra a honestidade de outrem seria
considerado violência se as vítimas fossem menores de 16 anos ou incapazes
de se defender; ver Brasil (1894).
45 Ver Beattie (2001, cap. 8).
46 A respeito das escolas de aprendizes do Exército e da Marinha, ver Beattie
(2001, cap. 6); Soares (2001); Nascimento (2001, cap. 2).
47 Gabriel Coutinho Brasil, m. 13.183 (AN, CSMJ-CGM, proc. 1.368, 1884, f.
11-12).
48 Ibid., f. 18-24.
49 Caminha, 2002:31, 43.
50 A sedução de Aleixo, exceto pelo açoitamento, tem paralelo com a
descrição de Macedo (1872:119) de como “pederastas ativos” seduziam
jovens.
51 Honório Hermeto Carneiro Leão e José Moreira da Cunha, pr. 1.346 (AN,
CSMJ-CGM, m. 13.182, 1884, f. 17-22, 40).
52 João Estácio, pr. 236 (AN, STM, m. 13.224, São Gabriel, Rio Grande do
Sul, 1897, f. 47).
53 (AN, STM, m. 13.224, São Gabriel, Rio Grande do Sul, 1897, f. 44-47, 56).
54 Para dois casos em que ataques sexuais levaram a violência e até mesmo
a assassinato entre praças, ver José Dominguez dos Santos, pr. 176 (AN,
STM, cx. 13.203, 1896); Antônio Manoel Rodriguez, pr. 624 (AN, STM, cx.
13.214, 1896).
55 Ubaldo,1916:3.
56 Beattie (2001, cap. 10). A Marinha norte-americana conduziu uma
campanha parecida. O ministro da Marinha Josephus Daniels pregava em
1914: “Sou o pai de mais de 50.000 jovens… e não há nada mais significativo
ao meu coração que vê-los constituídos por um forte caráter cristão, vivendo
vidas limpas para o lar e a família e o país”. Harrod (1978:26-31, 34-48);
Shenk (1992).
57 Penalva, 1939:451. Barbosa (1982:10) cita e concorda com Penalva.
58 A respeito de tentativas de proibir a distribuição de Bom Crioulo, ver Howes
(1982:13). Penalva (1939:457) assim ruminava sobre Caminha: “plasmou-se-
lhe o vulto inconfundível [Bom Crioulo] numa apagada fábula maruja, numa
história do mar que a Marinha inteira desfrutou com mágoa e desencanto.
História que hoje se procura esquecer, porque, indo a enorme distância os
seus brumosos comparsas, ela mesma se transfunde ao claro sol da
verdade”.
59 A respeito dessa questão, ver o capítulo de Maria Celina D’Araujo neste
livro.
60 Pr. 224 (AN, CSMJ, m. 13.160, no mar, 1864, sem numeração de folhas).
61 Sodré, 1986:40.
62 Ver Chauncey (1985, 1994); Harrod (1978:34-73).
63 Ver, por exemplo, Deutsch (1991).
CAPÍTULO 11

Revoltas de soldados contra a República*

Celso Castro**

Uma das imagens mais recorrentes a respeito da instauração


da República no Brasil, em 15 de novembro de 1889, é que teria
sido um acontecimento pacífico, sem resistência, sem lutas, sem
sangue. Uma exceção solitária: o barão de Ladário, então ministro
da Marinha, foi ferido a tiros na manhã do dia 15, mas não morreu.
O golpe militar, desse modo, acabou sendo um simples anúncio
público de que a monarquia havia sido substituída pela forma
republicana de governo: uma “proclamação” da República, como o
evento ficou consagrado pela história.
Apesar da aparente apatia popular no momento do golpe — na
conhecida frase de um jornalista republicano, o povo a tudo assistira
“bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”1 —,
é falso afirmar, como geralmente se faz, que a monarquia não
encontrou pessoas dispostas a defendê-la. Em primeiro lugar, é
importante sabermos que a grande maioria dos soldados e outras
praças que integraram as tropas golpistas no 15 de novembro não
estava consciente de que se pretendia derrubar a monarquia.2 Na
verdade, nem alguns oficiais o estavam. Participantes involuntárias
do drama, levadas por seus superiores dos quartéis para o Campo
de Santana, várias praças logo se arrependeriam do papel que
inconscientemente representaram. Prova eloqüente é que, pouco
mais de um mês após a instauração da República, em 18 de
dezembro, estourou uma rebelião entre as praças do 2o Regimento
de Artilharia, em São Cristóvão, justamente uma das unidades que
haviam participado do golpe. Como veremos, esse não foi o único
movimento de revolta de praças contra a República nascente.
Este capítulo trata de três dessas revoltas, ocorridas em
diferentes pontos do país pouco após o golpe republicano, em sua
maioria protagonizadas por soldados e militares de baixa patente.
Devo enfatizar desde logo que se trata de pesquisa que não
considero concluída, devido à pequena quantidade de fontes
localizadas. Os processos penais militares então abertos contra os
revoltosos não foram localizados, apesar de tentativas feitas no
Arquivo Nacional, no Arquivo Histórico do Exército e no Superior
Tribunal Militar. Ficamos, portanto, restritos a notícias encontradas
em alguns jornais de época, livros e relatórios de presidentes de
estados. Só com a localização de novas fontes poderemos conhecer
melhor essas revoltas, até hoje totalmente ausentes dos livros
escolares e pouco presentes mesmo na produção acadêmica.3

Revolta em Desterro (SC), 18 de novembro de 1889


Na noite de 17 para 18 de novembro, realizou-se uma festa no
Clube Republicano Esteves Júnior, na cidade de Desterro (atual
Florianópolis), animada pela banda de música do 25o Batalhão de
Infantaria. Ao retornar ao quartel, 42 praças lideradas pelo cabo
Cândido Pedro Duarte obrigaram a banda a acompanhá-los em
passeata pelas ruas da cidade. Segundo os jornais, os soldados
“provocaram arruaças” e “levantaram gritos alarmantes” de vivas ao
extinto regime. Em algumas versões, eles teriam obrigado o
comandante do batalhão, o major reformado Santos Dias, que se
encontrava no quartel, a segui-los conduzindo a bandeira imperial.
Uma versão posterior do Exército diria que na verdade o major
impedira os soldados de arrombarem a porta da arrecadação e que,
com “prudência e calma […] valentemente se colocou entre eles”,
dissuadindo-os de seu intento e dispondo-os para a passeata como
um estratagema para dar tempo de preparar-se a resistência.
Um telegrama urgente enviado de Desterro à 1h:40min pelo
coronel Barros ao ministro da Guerra, Benjamin Constant,
informava: “batalhão sublevado dando vivas à Monarquia, não há
força que possa contê-los”. No entanto, foram contidos. O capitão
do 25o Batalhão de Infantaria, Firmino Lopes Rego, então chefe de
polícia provisório, ao tomar conhecimento dos fatos, reuniu guardas
da cadeia e da alfândega, correu ao quartel e recebeu os revoltosos
a bala, quando voltavam da passeata. Um telegrama das 12h:30min
enviado pelo capitão Firmino a Benjamin Constant diz que para
acabar com a revolta dos soldados “foi necessário mandar fazer
fogo, resultando dois a três mortos. Não sabemos destino de perto
de 30 soldados. Não há receio de novo motim”. Outras fontes fazem
uma contabilidade diferente das casualidades. O histórico do
batalhão registra que morreu um soldado, saindo três feridos; o
jornal Kolonie Zeitung fala em um morto e quatro gravemente
feridos.4 Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, conta que teria
dissuadido Deodoro de mandar executar os militares envolvidos.5
Os soldados presos, em número de 40, foram embarcados no
paquete Rio Grande. Uma semana mais tarde passavam, em ferros,
pelo porto de Santos. Como reconhecimento por sua ação
repressiva em defesa da República, o capitão Firmino recebeu no
ano seguinte, dos comerciantes locais, uma espada com bainha de
prata que mandaram fazer na Europa.6

Revolta no Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1889


Na tarde do dia 18 de dezembro, começaram a circular no centro
do Rio boatos de que havia estourado uma rebelião militar que
planejava restaurar a monarquia. Na verdade, estava ocorrendo um
levante de dezenas de praças do 2o Regimento de Artilharia de
Campanha (2o RAC), localizado no bairro de São Cristóvão, que se
aproveitaram do fato de que a maioria dos oficiais havia seguido
para a despedida aos oficiais chilenos do cruzador Almirante
Cochrane, em visita à cidade desde antes da proclamação da
República. Os revoltosos saíram do quartel empunhando a bandeira
imperial e dando “vivas” ao imperador deposto. Tropas governistas
reagiram e fizeram-nos retornar ao quartel. Segundo o Jornal do
Commercio de 20 de dezembro, às 23h:23min saíram presas do
quartel 58 praças desarmadas para o quartel-general, onde
chegaram à 0h:36min. Em seguida, foram recolhidas a uma
companhia do 1o Batalhão de Infantaria.
Sobre a prisão dos revoltosos, temos o depoimento de Medeiros
e Albuquerque, que os viu sendo levados para o quartel-general:

Faziam pena os soldados presos! Eram 30 ou 40, quase todos


pretos ou mulatos. Tinham as fardas amarrotadas ou rotas.
Vinham sem armas, de mãos pendentes, as cabeças baixas…
Apenas de dois ou três vi os olhares fitarem os circunstantes
com arreganho provocador de ameaça.7

Uma das filhas de Benjamin Constant, Bernardina, registrou em


seu diário, sobre o dia 19:

Papai chegou hoje do quartel às quatro horas da madrugada e


eu levantei-me quando ele chegou; os soldados que se
revoltaram já foram desarmados e estão no quartel. (…) Papai
foi para o quartel depois do almoço e só voltou às 12 horas da
noite (…). Por suspeitos como cabeças da revolta de ontem
foram retidos uma porção de senadores e figurões.8

Imediatamente após a revolta ter sido controlada, o quartel do 2o


RAC foi ocupado pelos alunos da Escola Militar e da Escola
Superior de Guerra — a “Brigada Acadêmica”. Reuniu-se o
ministério, e Deodoro cogitou do fuzilamento dos revoltosos, no que
foi dissuadido pelos ministros. Foi também instaurada uma
comissão militar de sindicâncias e julgamentos, presidida pelo
general José de Almeida Barreto e integrada pelos oficiais tenente-
coronel João Neiva, majores Inocêncio Serzedelo Corrêa e Andrade
Silva, capitão Espírito Santo e alferes Joaquim Inácio, perante a
qual depuseram as praças que se tinham sublevado, além de alguns
inferiores e oficiais de diversos corpos. O comandante do regimento,
tenente-coronel Costa Guimarães, foi mantido preso incomunicável
e teve sua casa vasculhada em busca de documentos
comprometedores.
No intuito de averiguar se o movimento possuía inspiração
política, foram conduzidos ao quartel-general diversos políticos
ligados ao regime deposto, entre eles Gaspar Silveira Martins
(detido pessoalmente pelo chefe de Polícia, Sampaio Ferraz), os
viscondes de Assis Martins e de Lima Duarte, Carlos Afonso de
Assis Figueiredo, Ferreira Viana, Tomás Coelho, o marquês de
Paranaguá, Alfredo Chaves, Jerônimo Braga e Prado Pimentel e
Carlos de Laet. Depois de interrogados, foram liberados, à exceção
de Carlos Afonso, conduzido preso para a Fortaleza de Santa Cruz,
e Silveira Martins, que ficou detido em uma sala do quartel-general.
Em 21 de dezembro, o Decreto no 78 do governo provisório
bania do território nacional Afonso Celso de Assis Figueiredo
(visconde de Ouro Preto), Carlos Afonso de Assis Figueiredo e
Silveira Martins. Em 19 de novembro de 1890, passado um ano do
golpe republicano e da revolta dos soldados, esse decreto seria
revogado.
O governo se havia apressado em divulgar uma versão oficial
sobre o ocorrido, enviando, ainda na noite do dia 18, o segundo-
tenente Manoel Luís de Melo Nunes à redação de alguns jornais.
Segundo A Cidade do Rio, o oficial lá chegou às 19h:30min; às 20h,
ele já estava na Gazeta de Notícias.9 O oficial informou que já
estava tudo pacificado e que o evento não tinha maior importância.
A Cidade do Rio informa ainda que os soldados revoltados teriam se
queixado de maus-tratos por parte de seus superiores e do valor
insignificante do soldo que recebiam. O jornal O Farol (Juiz de Fora,
21 dez. 1889) cita versão, “mais ou menos nos termos das folhas
cariocas”, de que a rebelião teria se desencadeado a partir de uma
querela entre um cabo e um sargento.
Diversas versões disseminaram-se nos dias seguintes, e é muito
difícil avaliar seu grau de veracidade. Alguns jornais falam que
ocorrera apenas uma arruaça de praças embriagadas, sem maiores
conotações políticas. Um telegrama passado pelo ministro da
Fazenda, Rui Barbosa, ao delegado do Tesouro em Londres, no dia
19, fala em “embriaguez e suborno, nada mais. Aproveitaram para
isso da ausência dos oficiais. Incidente terminado. O governo
mantém a ordem sem quebra e fará justiça”.10 Segundo Medeiros e
Albuquerque e Evaristo de Moraes, falou-se muito em um “homem
de chapéu de Chile” que teria ido várias vezes ao quartel para
subornar e aliciar as praças para o movimento.11 Segundo a Gazeta
da Tarde (Rio de Janeiro, 20 dez. 1889), muitas praças teriam
declarado, no inquérito que seria logo instaurado, que lhes incutiram
no espírito a idéia de que “a República é contra Deus e é
amaldiçoada, ao passo que a Monarquia é coisa de Deus”.
De algum modo, os espectros de todas essas versões podem
ser vislumbrados através de dois decretos do Governo Provisório. O
primeiro, do dia 20, aumenta os soldos das praças, numa tentativa
de diminuir a insatisfação da tropa. Outro, do dia 23 (no 85A)
considera, entre outras coisas, que a República era irreversível e
que seria inépcia, covardia e traição do governo deixar que fosse
ameaçada pelos “sentimentos ignóbeis de fezes sociais
empenhadas em semear a cizânia e a corrupção no espírito do
soldado brasileiro”, determinando que:

Os indivíduos que conspirarem contra a República e o seu


governo; que aconselharem ou promoverem, por palavras,
escritos ou atos, a revolta civil ou a indisciplina militar; que
tentarem suborno ou aliciação de qualquer gênero sobre
soldados ou oficiais, contra os seus deveres para com os seus
superiores ou forma republicana; que divulgarem nas fileiras do
Exército e Armada noções falsas e subversivas tendentes a
indispô-los contra a República; que usarem da embriaguez para
insubordinar os ânimos dos soldados: serão julgados
militarmente por uma comissão militar nomeada pelo ministro da
Guerra, e punidos com as penas militares de sedição.
Como resultado desse decreto e dos trabalhos da comissão
militar, foram condenadas 58 praças, sendo 55 do 2o RAC e três do
17o Batalhão de Infantaria.12 Foi estabelecida uma gradação das
responsabilidades e penas, sendo 10 soldados condenados à pena
capital — no caso, morte por enforcamento —, “os cabeças e
instigadores do motim”; seis condenados a “carrinho perpétuo” —
aqueles “exaltados, obrando atividade”; oito condenados a “carrinho
por 20 anos” — os “exaltados”; 13 condenados a galés com 10 anos
de prisão — os “exaltados, porém mostrandose quietos em
presença dos superiores” (o que permite supor que os 21
condenados em graus mais graves continuaram desafiando seus
superiores); oito condenados a galés com cinco anos de prisão —
os “participantes do motim”; e 13 condenados a galés com dois anos
de prisão — os “co-participantes moderados”.
A comissão considerou-se incompetente para julgar cinco outras
praças do 17o BI, pois não ficara provado que houvessem
aconselhado ou promovido a revolta, nela apenas tomando parte.
Desse modo, deveriam ser submetidas a processo regular.
Finalmente, a comissão foi de parecer que as praças condenadas a
cinco e a dois anos de prisão não deveriam mais reverter às fileiras
do Exército após cumprirem pena, e que todas as demais praças do
regimento fossem transferidas, como castigo, para os diversos
corpos do Exército de outras guarnições.
Em 22 de fevereiro de 1890, o governo provisório confirmava as
sentenças lavradas pelo tribunal militar. No entanto, considerando
que as praças condenadas à pena capital haviam concorrido para o
estabelecimento da República e também que do processo “consta
terem sido elas introduzidas à sedição por um civil até hoje
desconhecido”, resolvia comutar as penas de morte em de “carrinho
perpétuo”.

Revolta no destacamento militar da foz do rio Apa (MT), 20


de dezembro de 1889
Através de uma longa carta do alferes do 8o de Infantaria, Artur
Augusto Fernandes Leão, comandante do Destacamento da Foz do
Rio Apa (Mato Grosso), enviada a Benjamin Constant em 12 de
fevereiro de 1890,13 ficamos sabendo que, lá, a notícia sobre a
República chegou apenas no dia 20 de dezembro! O alferes, então,
publicou-a em sua ordem-do-dia. Estavam também hospedados no
quartel, na época, um capitão e dois cadetes.
À noite, os habitantes do lugar vieram saudá-los como
representantes do Exército. No entanto, os soldados do 2o Batalhão
de Artilharia, Anastácio José da Vera Cruz e José Mateus de Brito,
“aliciaram algumas praças para darem morras à República e vivas à
Monarquia, declarando que não aderiram à nova forma de governo,
porque eram libertos em 13 de maio pela princesa Isabel”. O alferes
deu-lhes ordem de prisão, mas eles resistiram. Anastácio tirou de
uma das praças da guarda do quartel o sabre-baioneta, com o qual
feriu dois cadetes e um soldado. De sabre em punho, o soldado
agrediu também o tenente, “declarando que não me reconhecia
como seu superior, e que havia de beber o meu sangue”. O alferes
deu-lhe um tiro, vindo o soldado a morrer na manhã do dia seguinte.
O quartel, durante a madrugada, foi incendiado por soldados. O
tenente comandava uma guarnição de 25 praças que considerava
insubordinadas, “em sua maioria, assassinos, capoeiras,
desordeiros, ladrões e bêbados”. Ao escrever a carta para ao
ministro da Guerra, o alferes encontrava-se preso, aguardando
conselho de investigação.

Conclusões provisórias
Não pretendo ter completado o inventário dessas revoltas.
Outros atos, possivelmente menos graves, podem ter ocorrido.
Janotti diz que, no embarque da família real para o exílio, em 17 de
novembro, os imperiais marinheiros que transportaram o monarca
deram-lhe “vivas”. A mesma autora menciona, sem citar referências,
a ocorrência de conflitos também na Bahia.14
Além disso, consegui localizar pelo menos duas manifestações
populares não-militares contra a República logo nas suas primeiras
horas, assim que foram recebidas notícias sobre sua instauração.
Na noite de 16 para 17 de novembro, em Salvador, segundo a
descrição do cônsul britânico, bandos de negros percorreram as
ruas da cidade dando vivas à monarquia. Eles atacaram as casas
de estudantes e de outros indivíduos identificados como
republicanos, matando três deles. Na manhã seguinte, correu o
boato de que o comandante da guarnição, um ardoroso monarquista
— por ironia do destino, o general Hermes Ernesto da Fonseca, que
ainda não sabia que seu irmão havia sido autor do golpe de Estado
— iria liderar suas tropas, mais as da polícia e de “voluntários
negros” contra o suposto desembarque de um encouraçado enviado
do Rio de Janeiro. Em vez disso, jovens oficiais republicanos
prenderam o comandante, cantaram a Marselhesa e marcharam
para a sede do governo.15
Em São Luís, na manhã do dia 17 de novembro, populares
percorreram as ruas da cidade dando vivas à monarquia e foram
reprimidos por uma força militar. Os registros do hospital e do
cemitério da Santa Casa de Misericórdia desse dia mostram que
houve 14 feridos a bala, dos quais morreram: João de Brito, pardo
de 40 anos, Sérgio, preto de 22 anos, Martinho, pardo de 29 anos, e
Raimundo Araújo Castro, preto de 31 anos, todos solteiros e
naturais do Maranhão. O relatório do presidente da província
referente a esse ano informa também que ocorreram desordens em
outras cidades, “devido ao desregramento de alguns libertos”. O
bacharel Pedro Augusto Tavares Jr., que viria a governar
brevemente o estado pouco após o ocorrido, divulgou, no dia 29 de
janeiro de 1890, já afastado do governo, uma carta, publicada no dia
seguinte pela imprensa do Rio, criticando fortemente a junta
provisória de sete membros (cinco deles militares) que assumira o
poder no estado após o incidente, por indicação de Deodoro. Em
suas palavras:
A junta inaugurara a República com o fuzilamento em massa de
cidadãos, cujos protestos contra a nova ordem política eu soube
depois que se podiam perfeitamente abafar sem derramamento
de sangue. Os excessos de toda a ordem seguiram-se logo ao
crime. Os cidadãos, principalmente os de cor, de que a junta
suspeitava, eram presos e logo arrastados ao xadrez, onde se
lhes cortava os cabelos e onde eram barbaramente espancados.
Muitos receberam dúzias de bolos nos pés. Mulheres públicas,
com que alguns soldados tinham contas a ajustar, sofreram de
igual modo esses afrontosos e [ilegível] castigos. O terror enchia
todos os corações e tolhia todas as consciências; e para que
nada transpirasse, e nenhuma voz honesta e patriótica se
fizesse ouvir, foi trancado o telégrafo.16

Qual a motivação dos soldados que se revoltaram em defesa da


Monarquia e contra a República? Há três elementos comuns nas
descrições dessas revoltas. O primeiro é que quase todos os
revoltosos eram representados como negros ou “pardos”. De fato, a
grande maioria das praças no início da República era geralmente
classificada como não-branca. Peter Beattie, examinando um
universo de 315 praças do Exército submetidas a inquéritos militares
a partir de 1896, considera que mais de 75% delas eram negros ou
pardos.17 Um número parecido é apresentado por Hendrik Kraay em
seu capítulo neste livro. Na Marinha, a percentagem pode ter sido
ainda maior — talvez 90% em 1910, segundo Álvaro Nascimento.18
Pelo censo de 1890, 56% dos habitantes do país seriam negros ou
pardos. Esses dados são todos pouco confiáveis, mas parecem
confirmar a predominância de pessoas de cor entre as praças das
Forças Armadas, onde talvez estivessem mesmo sobre-
representadas.
Outra característica comum aos relatos anteriormente
examinados é a afirmação de que a adesão à monarquia não teria
uma motivação política. Essas versões sobre os episódios sempre
(des)qualificam a ação dos soldados como “arruaças” produzidas
por “aliciamento” ou “suborno” por parte de terceiros ou como
conseqüência de “embriaguez”. Os revoltosos aparecem
qualificados como bêbados, embriagados, assassinos, ladrões,
desordeiros e capoeiras.
A pressa dos republicanos em afirmar uma motivação não-
política das revoltas é indicativa do medo que tinham da
possibilidade de serem ações politicamente orientadas. Uma das
grandes preocupações dos republicanos era, desde a abolição da
escravidão em 13 de maio de 1888, com a temida Guarda Negra,
que teria sido instrumento dos políticos conservadores em defesa do
regime monárquico e de sua “redentora” e futura governante, a
princesa Isabel. Formada por capoeiras do Rio de Janeiro, a Guarda
Negra entrou diversas vezes em conflitos abertos com grupos
republicanos e foi violentamente reprimida, especialmente após o
golpe de 15 de novembro. Mesmo antes dessa data, seus
integrantes já eram deportados para o Norte ou recrutados à força
para o serviço militar, visto antes de mais nada como poderoso
instrumento disciplinar.19
Mesmo que ex-capoeiras da Guarda Negra não estivessem
envolvidos nessas revoltas, é significativo que tenha havido vivas ao
imperador e a defesa da princesa Isabel por praças revoltosos que
se afirmavam terem sido por ela libertos. Parece ter sido grande a
adoração da “redentora” por negros no final do Império e início da
República.20 Esse sentimento assumia, muitas vezes, um
componente quase religioso, que não deixou de estar presente
também na Guarda Negra. Conscientemente “esquecida” das
comemorações oficiais do novo regime, a memória da princesa
Isabel entre os negros ressurgia, por vezes, em manifestações que
guardam aspectos muito semelhantes aos das revoltas aqui
estudadas. Como, por exemplo, a que ocorreu em 1891 na pequena
cidade mineira de Mar de Espanha:

Por ocasião dos festejos comemorativos da lei de 13 de maio


desta cidade, um grupo de libertos, por instigações de um tal
Lima, velho sebastianista, percorreu as ruas da cidade aos gritos
sediciosos de “viva a Monarquia”, levando à frente a bandeira
imperial. Como acinte ao ilustre dr. juiz de direito da comarca, o
mais elevado representante da lei na circunscrição, foram os
sediciosos postar-se em frente à sua casa, donde aquele
magistrado, auxiliado pelo delegado de polícia do termo, fê-los
retirarem-se, não sem grande oposição, pois que até pretendiam
queimar a bandeira da República.21

Vale observar que, mais uma vez, se atribui o incitamento à ação


a um “velho sebastianista…”.
Finalmente, além da memória ainda recente da escravidão e de
sua libertação, surgem também referências a baixos soldos e a
maus-tratos no interior dos quartéis. Os trabalhos dos
pesquisadores que têm escrito sobre esse assunto no período em
questão — como Peter Beattie e Álvaro Nascimento — confirmam
cabalmente essa realidade. Não foi por outro motivo que o governo
provisório, já em seu terceiro decreto, baixado no segundo dia da
República, abolia os castigos corporais e reduzia o tempo de serviço
militar. Embora a realidade dos castigos corporais e maus-tratos
continuasse por um bom tempo — a revolta dos marinheiros em
1910 seria um exemplo eloqüente desse fato —, a preocupação do
governo provisório em tentar atenuar essa questão é significativa de
sua extensão e da repugnância que causava na tropa. Além disso,
como vimos, os soldos foram elevados ainda antes de 1889
terminar.
Para avançarmos no conhecimento desses soldados e suas
revoltas, será preciso localizar novas fontes. Já nos é possível,
todavia, desfazer a imagem consagrada de que a República se fez
sem resistência, sem lutas, sem sangue.

Bibliografia
ALBUQUERQUE, José Joaquim Medeiros e. Quando eu era vivo.
Memórias. Rio de Janeiro: Record, 1981.
AMARAL, Braz H. do. História da Bahia do Império à República.
Salvador: Imprensa Oficial, 1921.
ARAÚJO SOBRINHO, Antônio de. A proclamação da República na
Bahia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 257,
1962.
BARROS, F. Borges de. À margem da história da Bahia. Anais do
Arquivo do Estado da Bahia, v. 23, 1934.
BEATTIE, Peter M. The tribute of blood: army, honor, race and nation
in Brazil, 1864-1945. Durham: Duke University Press, 2001.
CABRAL, Oswaldo R. História de Santa Catarina. Florianópolis:
Lunardelli, 1987.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a
República que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
DAIBERT JR., Robert. Isabel, a “redentora dos escravos”: um
estudo das representações sobre a princesa. Dissertação (Mestrado
em História) — Unicamp, São Paulo, 2001.
HAHNER, June E. Relações entre civis e militares no Brasil, 1889-
1898. São Paulo: Pioneira, 1975.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. M. Os subversivos da
República. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MAGALHÃES JR., Raimundo. Deodoro: a espada contra o Império.
São Paulo: Nacional, 1957. v. 2.
MEIRINHO, Jali. A República em Santa Catarina. Florianópolis:
UFSC-Lunardelli, 1982.
MORAES, Evaristo. Da Monarquia para a República, 1870-1889.
Brasília: UnB, 1985.
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada.
Recrutamento e disciplina na Armada imperial. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2001.
SANTOS, Flávio Gomes. No meio das águas turvas. Racismo e
cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte,
1888-1889. Estudos Afro-Asiáticos, v. 21, 1991.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição: os
capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de
Cultura, 1994.

* Versão anterior deste capítulo foi apresentada no XXI Simpósio Nacional de


História, Niterói, UFF, 22 a 27 jul. 2001. O autor agradece a colaboração dos
assistentes de pesquisa Fábio Siqueira, Dulcimar Dantas de Albuquerque e
Marisa Schincariol de Mello.
** Doutor em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ; pesquisador do
Cpdoc/FGV.
1 A frase é de Aristides Lobo, no Diário Popular (São Paulo, 18 nov. 1889).
Sobre a participação popular nas primeiras décadas republicanas e a crítica à
idéia de que a população seria de fato “bestializada”, ver Carvalho (1987).
2 A base da hierarquia militar (as “praças”) incluía, nessa época, as seguintes
graduações, em ordem crescente: soldado, anspeçada, cabo, furriel,
segundo-sargento e primeiro-sargento.
3 Exceções a essa regra são os livros de Janotti (1986) e de Hahner (1975),
que mencionam brevemente algumas dessas revoltas.
4 Agradeço a tradução de Carla Eichler.
5 Ver Magalhães Jr. (1957:117).
6 Ver O Dezenove de Fevereiro (Curitiba, 29 nov. e 7 dez. 1889); O Estado de
S. Paulo (1 e 2 dez. 1889); Kolonie Zeitung (Santa Catarina, 26 nov. 1889);
Histórico do 25o Batalhão de Infantaria; Cabral (1987); Meirinho (1982);
Arquivo Benjamin Constant (Museu Casa de Benjamin Constant), dossiê com
10 telegramas enviados pelo governo provisório de SC e pelo Clube
Republicano a Benjamin Constant (REP/mg 8891116).
7 Medeiros e Albuquerque (1981:121).
8 O diário encontra-se no Fundo da Família Benjamin Constant (Museu Casa
de Benjamin Constant).
9 Ver a edição de 19 dez. 1889 desses dois jornais.
10 Magalhães Jr., 1957:115.
11 Ver Albuquerque (1981); Moraes (1985).
12 Ver o Jornal do Commercio (23 fev. 1890).
13 A carta, de 12 páginas, encontra-se no Arquivo Benjamin Constant
(REP/procl 8900212).
14 Ver Janotti (1986:15, 17).
15 Agradeço a generosidade de Hendrik Kraay, que me forneceu esses
dados. As fontes são: correspondência do cônsul britânico em Salvador ao
enviado no Rio de Janeiro, 1911-1889 (Public Record Office, Foreign Office,
13, vol. 662, folhas 76r-77v); Amaral (1921:317-344); Barros (1934:473-477);
e Araújo Sobrinho (1962:6-15).
16 Relatório do governador do estado do Maranhão, 1890; Gazeta de Notícias
(Rio de Janeiro, 30 jan. 1890).
17 Ver Beattie (2001:155).
18 Ver Nascimento (2001:116).
19 Sobre a Guarda Negra, ver, entre outros, Soares (1994) e Santos (1991).
20 Ver Daibert Jr. (2001).
21 Minas Livre (21 maio 1891); ver Daibert Jr. (2001:153).
CAPÍTULO 12

Entre o convés e as ruas: vida de marinheiro e trabalho


na Marinha de Guerra (1870-1910)*

Álvaro Pereira do Nascimento**

Compostos sobretudo por homens negros e mestiços, os


estratos subalternos dos navios de guerra estavam sob uma rígida
legislação punitiva, que permitia castigos corporais como chibata,
golilha, palmatória, prisão solitária a ferros e outros castigos
semelhantes. Para os oficiais, estes eram os instrumentos mais
confiáveis para domar o gênio dos marinheiros indisciplinados.
Somente assim, no pensamento daqueles homens do mar, a
disciplina e a hierarquia militares estariam garantidas.
Essa realidade — aliada a outras que veremos — afastava
qualquer voluntário do serviço militar, o que obrigava as autoridades
militares a lançar mão do recrutamento forçado e do emprego de
menores. Por vezes, a Marinha de Guerra chegou a correr o sério
risco de ter parte de seus navios ancorados por falta de guarnição.
Não por acaso o tempo de serviço militar obrigatório variava de nove
a 15 anos. Essa situação gerava diversos problemas para as Forças
Armadas.
O conflito entre a conduta dos marinheiros e o desejado pelo
oficialato surgia das diferenças em termos de valores e costumes
apresentados no dia-a-dia das embarcações e quartéis. Confusões
nas ruas, embriaguez, “libidinagem”,1 excessos de licença e
serviços mal prestados eram faltas disciplinares comuns, que
geralmente atrapalhavam o andamento das fainas diárias, irritando
os oficiais.
Através dessa realidade encontrei um campo de investigação
ideal para deslindar o cotidiano desses homens comuns. Dessa
forma, procuro examinar parte dos contatos mantidos pelos
marinheiros, tanto na caserna quanto nas esquinas e portos das
cidades, e a participação dessa rede de ligações em suas
experiências na Marinha de Guerra. Os marinheiros eram pessoas
comuns e, mesmo submetidos a um sistema disciplinar castrense,
procuravam manter seus costumes e valores a partir das
possibilidades existentes.

Vida de marinheiro: entre o convés e as ruas


Até o início do século XX, as Forças Armadas não abriram mão
do apoio da polícia em assuntos de alistamento. Na verdade, este
era um processo mais amplo que o mencionado pelas autoridades
militares e envolvia instituições civis e judiciais, e até mesmo
populares, visando abastecer o Exército e a Armada com novos
homens. Até 1874, pelo menos, havia somente duas formas de
alistamento nas Forças Armadas: o “voluntariado com prêmio” e o
“recrutamento forçado militar”. Caso o primeiro não suprisse as
fileiras com o desejado pelas Forças Armadas, abria-se então a
temporada de “caça” aos novos homens. Sendo irrisória a
quantidade de candidatos que se apresentava por sua livre e
espontânea vontade, a saída era “capturar” outros, prontamente
denominados “recrutados”.2
No mapa estatístico do Corpo de Imperiais Marinheiros isso fica
mais claro. Nele se observa que entre os anos de 1836 e 1888
somente 460 homens se apresentaram espontaneamente, enquanto
6.271 foram recrutados à força. Ou seja, os voluntários somaram
menos de um décimo dos que foram incorporados às fileiras da
Armada em aproximadamente 50 anos. Em contrapartida, os oficiais
trataram de criar uma terceira via através da incorporação de
menores às escolas de aprendizes marinheiros. Estas unidades
foram espalhadas em quase todas as províncias brasileiras e
matricularam meninos pobres, visando instruí-los para o serviço dos
vasos de guerra. Ao longo do tempo esse caminho foi
gradativamente se tornando crucial para a Armada, a ponto de
ultrapassar a quantidade de homens recrutada à força ao longo do
século XIX (entre 1836 e 1888, foram 8.586 menores contra aqueles
6.271 homens recrutados). E mais importante: eram menores,
garotos entre 10 e 18 anos que haviam crescido numa escola militar.
Para ministros e oficiais comandantes, as escolas representavam o
que de melhor fora pensado até então em termos de alistamento,
pois acreditavam poder modelar os costumes e valores dos futuros
marinheiros.3
Havia um grande receio em alistar-se voluntariamente no serviço
das armas, principalmente na Marinha de Guerra. O distanciamento
da família, os salários baixos, o trabalho em alto-mar repleto de
perigos e o convívio com pessoas recrutadas à força afugentavam
boa parte dos interessados. Certamente, o comportamento dos
marinheiros nas ruas, as bebedeiras e confusões, além da
possibilidade de sofrer violência sexual, geravam imenso temor
entre os populares, afastando-os de espaço tão ameaçador. Para
Peter Beattie, que pesquisou as reformas ocorridas no Exército
entre 1864 e 1945, a homossexualidade foi encarada como sério
obstáculo ao voluntarismo:

Reformadores empenharam-se em modificar a imagem do


quartel como um espaço de perigo sexual. Se os filhos de
honradas famílias haviam sido chamados para servir à nação,
elas necessitavam sentir que os quartéis eram um espaço social
masculino honrado e seguro.4

Mudar a imagem que ligava “força militar e amores ilícitos do


mesmo sexo”5 tornou-se questão central para atrair voluntários. Na
Marinha de Guerra isso ficou claro no texto do Decreto no 328, de
12 de abril de 1890, e seria ratificado ainda em 1899 com o novo
Código Penal Militar, no qual “libidinagem” ganhou um “título”
exclusivo sobre o assunto. Ao lado do combate ao sexo entre
homens, as autoridades militares tentavam disciplinar outras
condutas irregulares que afastavam os voluntários exercendo maior
vigilância e repressão à embriaguez, aos excessos de licença, à
insubordinação e à indolência no cumprimento dos seus deveres.
Essas medidas procuravam diminuir ou eliminar as terríveis
confusões a bordo, das quais resultavam ferimentos, mortes,
inimizades, perseguições e desejos de vingança.
Para reprimir condutas indesejadas, os oficiais possuíam um
leque de instrumentos legais que poderia ser aplicado quando uma
falta disciplinar comprometesse as fainas diárias. Como se fosse o
juiz num tribunal do convés, o comandante decidia qual a punição
aos infratores, podendo enviá-los a um conselho de guerra (grupo
de oficiais que julgava crimes como homicídio, roubo, lesão
corporal, insubordinação etc.) ou tentar “corrigir” o indivíduo ali
mesmo na embarcação através de castigos físicos.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (25 nov. 1910), o
marinheiro Eurico Fogo explicou em detalhes como era aplicado
esse terrível castigo no encouraçado Minas Gerais. Segundo ele,

a guarnição formava e vinha o marinheiro faltoso algemado. O


comandante depois do toque de silêncio lia uma proclamação.
Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam nu da
cintura para cima no pé de carneiro (…). E, então, (…)
começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente
gemia, suplicava (…). Os tambores batidos com furor sufocavam
os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. Todos
estavam em segundo uniforme, luvas e armados de suas
espadas.

Eurico Fogo mencionou as etapas básicas do cerimonial que


envolvia o castigo de chibata. Em primeiro lugar, toda a guarnição
devia estar formada no convés para assistir ao trágico cerimonial.
Tendo os pés atados por um “par de machos”,6 o faltoso caminhava
com dificuldade até o local do castigo. Logo após, o comandante lia
o artigo do código disciplinar relativo à falta cometida pelo
marinheiro, e iniciava-se a aplicação dos açoites. Era um castigo em
que todos deviam presenciar o constrangimento e a dor do faltoso.
Seus passos cambaleantes, o próprio castigo e os artigos do código
demonstravam que qualquer marinheiro poderia ser a estrela do
próximo espetáculo (bastaria para isso cometer faltas que
atentassem contra a ordem e a disciplina militares).
O código possuía artigos que regulavam o suplício, como por
exemplo castigar com no máximo 25 pancadas por dia. Assim o
comandante teria poderes garantidos, desde que respeitasse e
ministrasse corretamente as punições. Mas a maioria desses oficiais
não respeitava o previsto no código, pois acreditava que o castigo
só seria exemplar para a guarnição e correcional para o faltoso caso
este último desse provas sobejas de sofrimento, dor e
arrependimento.
Essa era uma prática da Marinha antiga, e na de Guerra pode
ser vista nos vários processos criminais da época. Um dos mais
curiosos é o do oficial imediato José Cândido Guillobel.7 Este, em
1874, ordenou o castigo de 500 chibatadas no marinheiro
Laurentino por ter-se envolvido numa briga com seu camarada e, no
decorrer da mesma, tentado ferir a sentinela com um canivete.
Segundo Guillobel,

Resolvi pois castigar o marinheiro Laurentino (…) severamente,


isto é, proporcionalmente ao delito cometido; formada pois a
guarnição em ato de amostra, foi a praça examinada,
encontrando-se uma camisa de meia e outra de algodão (…)
vendo porém o pouco efeito que no delinqüente fazia o castigo
fui forçado a fazê-lo continuar até chegar ao número de 500
pancadas de chibata.

A colisão entre o previsto no código — ou seja, 25 pancadas por


dia — e a prática seguida a bordo dos vasos de guerra — o desejo
de alcançar o “efeito”, mesmo que para isso fossem necessárias
500 pancadas de chibata — torna-se clara no depoimento de
Guillobel. Outros processos criminais investigados dão provas de
infração aos preceitos do código cometida por oficiais comandantes
ao castigarem seus subordinados. No entanto, esses castigos
faziam parte da relação entre marinheiros e oficiais e ocupavam um
espaço específico no cotidiano da Armada. Ao longo do século XIX
não foi registrada nenhuma revolta de marinheiros que contestasse
os castigos corporais. Ou melhor, a contestação até poderia ocorrer,
caso o marinheiro encontrasse alguma injustiça na punição.
Porém, o código sofreu duas modificações abruptas logo nos
primeiros meses da República. Procurando atrair os marinheiros
para a causa republicana, o Decreto no 3 extinguiu os castigos
corporais no segundo dia do novo regime. Mas, aproximadamente
cinco meses depois, os oficiais comandantes pressionaram o
governo e o ministro da Marinha Eduardo Wandenkolk, que
decidiram retomar a prática dos castigos corporais, através do
Decreto no 328, de 12 de abril de 1890. Para isso, o indisciplinado
passou a ser incluído numa companhia correcional8 cujo fim era
“segregar as praças de conduta irregular e mau procedimento
habitual das morigeradas e cumpridoras de seus deveres”. Os
incluídos tinham seus salários reduzidos à metade, eram rebaixados
de posto, comiam, formavam e dormiam separados dos demais e,
pior, além de castigados fisicamente, ficavam detidos em seus
navios pelo tempo que o comandante ordenasse. Antes da
correcional, o marinheiro sofria o castigo para logo depois estar
liberado. Com as mudanças, além do castigo restavam punições
que humilhavam, retiravam a liberdade e pesavam
economicamente. 9

Boa parte dos oficiais, principalmente os antigos, acreditava


muito mais na correção através do castigo físico. Embora a
correcional limitasse a aplicação da chibata em até 25 pancadas por
falta disciplinar cometida, encontrei relatos de alguns oficiais
descrevendo castigos de 100, 200 e até mais chibatadas logo após
o decreto entrar em vigor.10 Nas palavras de José Cândido
Guillobel, quando respondeu ao Conselho de Guerra, era praxe
entre os comandantes continuar dando pancadas enquanto o
indivíduo não desse provas de que estava redimido dos seus atos.
Como se pode observar, os castigos corporais eram os
instrumentos que, de fato, garantiam a dominação do oficialato a
bordo e nos quartéis. Os oficiais acreditavam piamente neles,
aplicando-os conforme a praxe existente. Por mais que se tentasse
criar limites estipulando as doses do castigo, na verdade quem
havia de saber a medida final era o comandante do navio, o juiz do
tribunal do convés. Contudo, falta-nos entender em que situações os
marinheiros ameaçavam o domínio do oficialato. Afinal, era nesses
momentos que os marinheiros levavam os oficiais a sentirem-se
inseguros quanto ao controle de toda a guarnição, quanto à garantia
da disciplina e da subordinação. Só poderemos entender os limites
dessa insegurança investigando os costumes e valores em jogo
para ambas as partes: oficiais e marinheiros.
Podemos começar com as indisciplinas que mais irritavam os
oficiais. Que situações levavam o comandante a pôr a espada na
cintura para sentenciar um castigo de chibata? Por que o tal “efeito”
se tornava necessário? Que comportamento disciplinar o
comandante gostaria de ver em todo marinheiro e demais
subordinados? Embora sejam perguntas amplas, cujas respostas
poderiam variar de comandante para comandante, há possibilidade
de encontrarmos os pontos nevrálgicos que criavam animosidade
entre oficiais e marinheiros.
Sem dúvida, os principais problemas encontravam-se a bordo.
Afinal, caso as fainas (limpeza das macas, do convés, das
ferramentas, das latrinas, dos reservatórios de água etc.), as
compras diárias e demais serviços não fossem realizados, o
comandante estaria faltando com sua responsabilidade ao deixar de
zelar pela manutenção de um bem público, pertencente à Fazenda
nacional. Por isso mesmo, havia grande preocupação em conservar
o navio em ótimo estado e exigir da guarnição o cumprimento dos
serviços e a submissão à disciplina. Para a maioria dos
comandantes, não havia como se deixar levar pela benevolência
quando uma falta disciplinar ocorria: permitir um ato como este
desacompanhado de reprimenda e correção era o mesmo que
iniciar o processo de desmoralização do poder do oficialato. Mas
havia muitos marinheiros que não aprendiam ou se esqueciam
dessas obrigações…
Avelino Bispo de Olinda era um destes e sempre esquecia o
previsto nos regimentos das unidades navais por que passava.11 Já
na Escola de Aprendizes Marinheiros da Paraíba, de onde era
natural, se meteu diversas vezes no jogo a dinheiro e, sempre que
flagrado por seus superiores, tinha seus vencimentos descontados.
Já quando marinheiro, em agosto de 1888, investiu contra um seu
camarada com a navalha desembainhada, sendo detido por seus
colegas. Ato que o comandante decidiu punir com cinco dias de
prisão solitária, somente a pão e água. Aproximadamente três anos
depois, em março de 1890, Avelino desrespeitou o oficial de quarto,
falta gravíssima nos códigos disciplinares. Vinte dias de prisão foi a
punição decretada pelo comandante. Três meses depois, em junho
de 1890, lançou ao mar um saco de dormir de um seu camarada, o
que imediatamente foi punido com maior severidade; afinal, se
aquele castigo de 1888 tivera maior efeito que os dois últimos,
havia-se então de aumentar a dose para sua cura. Não consegui
descobrir se ele realmente sofreu o castigo de chibata, mas durante
30 dias ele havia de ficar detido no navio, e, para a pena imposta,
reservavam-se 25 pancadas. Mas o resultado do castigo parece não
ter sido dos mais eficazes: em novembro de 1890, flagraram-no
jogando a dinheiro, ele não compareceu à chamada para assumir o
serviço e novamente tentou agredir um camarada com uma navalha.
Foi castigado duramente: prisão a ferros e chibata.
Nove meses depois, ele começou a ter histórias de embriaguez
registradas em sua caderneta. Em agosto e setembro de 1891, ao
retornar a bordo, via-se que o seu estado era de total embriaguez, e
certa vez o português dono de um quiosque queixou-se ao oficial
alegando que Avelino subtraíralhe uma garrafa de aguardente.
Depois disso ainda se meteu com dois colegas em ocasiões
diferentes procurando feri-los com punhal. Como se pode notar,
Avelino não se deixava intimidar totalmente pelo receio de ser
castigado; se tivesse vontade de realizar algo para si, esquecia-se
das normas militares e concretizava o que lhe passava pela cabeça.
Em 1893, contudo, essas tentativas de navalhar seus colegas
finalmente passaram dos limites, e ele foi condenado a um ano de
prisão com trabalho no presídio da ilha das Cobras, na baía de
Guanabara: havia perfurado o marinheiro Patrício José da Silva com
uma faca de marinheiro, como consta dos autos. Avelino, enfim,
fizera tudo o que os oficiais comandantes não toleravam. Quando
não era ele mesmo quem deixava de efetuar um serviço,
indiretamente acabava por tirar outros colegas das funções. Ao
convidá-los para o jogo a dinheiro ou para bebericar uns goles de
aguardente, Avelino levava seus colegas a largarem as vassouras
que varriam o convés, os pincéis que lambuzavam de tinta o casco
do navio, a flanela que lustrava as espadas dos oficiais, as mãos
que preparavam o almoço. Além disso, quando Avelino não
respondia a qualquer uma das chamadas feitas durante o dia, trazia
incômodos à boa marcha do serviço. O oficial de quarto ou o
sargento responsável pela distribuição das fainas tinham de
deslocar alguns marinheiros para procurar Avelino, obrigando todo o
restante da guarnição a permanecer formada à espera do faltoso.
Então, somente quando ele chegava — às vezes de forma bisonha,
sem interesse e adotando outros comportamentos desprezados
pelos oficiais — era que se retomava a divisão dos serviços,
designando um grupo para a limpeza do convés, outro para o barco
das compras e assim por diante. Avelino, ao não responder à
chamada, atrasava todo o serviço. Isso até poderia ser relevado
uma vez, mas depois, com a sucessão de faltas, possivelmente a
reclamação chegaria aos ouvidos do comandante. Daí para a frente,
o tribunal do convés poderia entrar em ação.
Também quando Avelino discutia ou brigava com um seu colega,
ele acabava por atrapalhar os serviços de todos. Afinal, uma
confusão como aquela terminava por quebrar a rotina de um navio,
pois todos os marinheiros tinham de parar o que estavam fazendo
para presenciar os altercantes, ajudar a separá-los e a prendê-los.
Nenhum oficial chamaria a atenção do restante da guarnição por ter
parado as suas fainas. Era como se aquela irritante monotonia fosse
quebrada e esquecida por segundos ou pelo tempo que durasse a
confusão, pois todas as atenções estariam voltadas para ela. No
lugar da monotonia e do trabalho surgia a liberdade, que permitia ao
marinheiro largar a vassoura para assistir a todas aquelas
novidades patrocinadas por Avelino. Finalmente, a guarnição punha-
se a comentar o que ocorrera e a apostar na definição da sentença
do tribunal do convés. Uma confusão como aquela atrapalhava as
fainas e punha o comandante em posição desconfortável.
Júlio do Nascimento era mais um destes marinheiros que
atormentavam a cabeça dos oficiais.12 Fora enviado à Escola de
Aprendizes Marinheiros de Pernambuco por intermédio do juiz de
órfãos, em novembro de 1898, quando ainda tinha 14 anos de
idade. Era um futuro marinheiro que já sabia ler e tocar tambor. Em
1902, aos 18 anos de idade, assentou praça e assumiu o posto de
grumete no Rio de Janeiro. Contudo, logo após iniciar a vida
marítima, ele começou a ter problemas disciplinares.
Para termos uma pequena amostra da sua carreira e do seu
comportamento disciplinar, basta dizer que entre 1903 e 1908 ele foi
castigado de duas a 10 vezes por semestre! Ele podia recusar-se a
remar o escaler que fazia a ligação entre o navio e o porto; a limpar
as ferramentas que usara em serviço; a assumir o posto na guarda
e ainda atirar objetos no sargento; a vigiar o barco das compras,
preferindo passear pela localidade; a fazer a faxina das macas,
refugiando-se no porão para dormir; a lavar o convés; a cumprir as
ordens do oficial de quarto; e mais dezenas de outras faltas ao
serviço.
Mesmo entre os colegas ele devia ser malvisto. Assim como
Avelino, Júlio andava a subtrair pertencentes que não eram seus e
chegou a “tirar do saco [de marinheiro] do seu companheiro um par
de sapatos”, a pegar uma “calça de flanela e ter minutos antes
apanhado dinheiro de outro companheiro”, a roubar “a quantia de 15
mil-réis” de um seu colega, e mais pequenos roubos de peças de
uniforme, alimentos variados, relógio etc. Ele parecia estar sempre
querendo aumentar a renda mensal com o produto do roubo, pois
certa vez o flagraram vendendo “diversas peças de uniformes
pertencentes a outro marinheiro”. Mas ele estava pronto para tudo e
parecia ser bom de briga. Caso alguém quisesse partir para a luta
física, era só tentar, pois Júlio enfrentou diversos companheiros
usando as mãos, garfos, navalha ou o que encontrasse pela sua
frente.
Os oficiais comandantes o castigavam com duas e até oito horas
de golilha, prisão rigorosa a pão e água entre dois e cinco dias,
detenção no navio sem poder pisar em terra por 30 dias, e solitária
também entre três e cinco dias. Contudo, a partir de um
determinado momento, a chibata passa a ser utilizada de forma
indiscriminada para faltas que anteriormente se castigavam com
penas mais leves — como se os remédios, vamos dizer, mais
“brandos” não surtissem o efeito esperado pelo disciplinador. Na
verdade, Júlio entrara para a Marinha quando já vigorava a
companhia correcional, e, como boa parte dos castigos não havia
surtido efeito, o comandante lançou mão do expediente criado por
Wandenkolk. Como já foi dito antes, o marinheiro incluído na
correcional ficava sob este regime enquanto o comandante
entendesse que ele continuasse apresentando “mau comportamento
habitual”. Enquanto alguns colegas seus ficavam alguns meses ou
até menos, Júlio do Nascimento permaneceu incluído na correcional
por mais de um ano, entre 1903 e 1905. E como continuava a
praticar as mesmas faltas, o comandante começou a aumentar as
penas e chegou ao teto de 50 pancadas de chibata num mesmo dia.
Ou seja, se Júlio do Nascimento dava provas contundentes do seu
desacerto com o sistema militar, os oficiais comandantes
continuavam procurando corrigi-lo com castigos cada vez mais
fortes, chegando a ponto de ultrapassar o limite de 25 pancadas.
Júlio do Nascimento chegou a tentar a deserção, em fevereiro de
1906, mas foi capturado por um cabo. Como se pode notar, os
oficiais acreditavam muito mais na praxe do castigo do que em
conselhos de guerra. Embora pudesse chegar a extrema crueldade,
na concepção dos oficiais o castigo físico era um meio eficaz de
correção, além de evitar a perda de um par de braços nas fainas
diárias.
Mas os problemas não se resumiam aos conveses dos navios.
Às vezes, nos dias de folga, o marinheiro se metia em problemas
que também atrapalhavam o serviço a bordo. Podiam ser detidos
pela polícia ou até se ferir em confusões. Em 15 de abril de 1894,
fundeados no Amazonas, alguns deles foram passear nas ruas da
cidade de Manaus, aproveitando o esperado dia de licença.13
Contudo, ao tentarem visitar o Jardim Público, “soldados que
policiavam” o local barraram-lhes a entrada, por estarem vestidos “à
paisana em mangas de camisa”. Foi o início de uma confusão que
só terminou no começo da madrugada, depois que o centro da
cidade se transformou em palco de uma série de conflitos entre
marinheiros e soldados. João Evangelista de Melo Cardoso,
responsável pela Segurança Pública de Manaus, presenciou as
primeiras trocas de palavras entre os soldados da polícia e os
marinheiros. Ao se aproximar dos altercantes, deu voz de prisão aos
marinheiros e solicitou ajuda ao segundo-tenente Luís Henrique de
Noronha, que também estava próximo ao local. As duas autoridades
pensaram que a situação estava controlada e que mais nada
restava a fazer. Contudo, ao dobrarem a primeira esquina, uns seis
marinheiros voltaram a provocar as praças da polícia, e daí por
diante o barulho só aumentou. Por ordem de João Evangelista e do
segundo-tenente Noronha, alguns marinheiros foram presos e
outros encaminhados para bordo dos seus navios ou tiveram de ser
atendidos na enfermaria. Alguns oficiais do navio ainda foram tarde
da noite buscar os marinheiros presos, mas já havia um plano de
libertação em andamento no convés do navio. Segundo o
marinheiro Manoel Francisco Maizinho Bezerra,

Chegando a bordo, narrara o ocorrido aos seus companheiros,


sendo então censurado pelo guardião Galhardo por haver ele
réu deixado o seu companheiro Juvêncio preso e pela Polícia;
que Galhardo pusera à disposição dele réu e de seus
companheiros o armamento de bordo, trazendo do paiol quatro
rifles que foram distribuídos aos acusados.
A maioria dos marinheiros envolvidos e até aqueles que não
participaram do conflito disseram que Galhardo parecia ter mexido
com os brios dos colegas e posto ainda mais lenha na fogueira,
incitando-os ao revide e à libertação dos marinheiros presos.
Arriaram dois escaleres e remaram até a cidade, onde entraram em
confronto com a polícia. Daí por diante teve início um tiroteio entre
praças da polícia e da Marinha de Guerra. Todos foram acusados do
crime de insubordinação, sendo condenados a cumprir entre seis e
oito anos de prisão.
Após dias e até semanas sem pôr os pés em terra, o marinheiro
começava a gozar o doce gosto da liberdade: livrar-se do cotidiano
de bordo, arejar a cabeça com outros ambientes, conversar com
pessoas diferentes, rever amigos e amigas, passear nas praças,
namorar, visitar parentes… Muitas atividades estavam disponíveis
em terra, bem distante dos muros que cercavam o quartel ou do
confinamento nas embarcações. Havia algum tipo de controle
exercido pela polícia, mas nada parecido com aquele existente a
bordo, no qual oficiais, sargentos e até marinheiros poderiam
denunciá-los ao comandante.
O problema é que muitas vezes, nestas visitas a terra, parece
que o marinheiro não dosava os limites de sua liberdade, excedia-se
e arrumava alguma encrenca. Para falar a verdade, o marinheiro
nem precisava ir muito longe dos muros do quartel ou da beira da
praia para encontrar o que desejava. Por isso mesmo, os
ajuntamentos e aglomerações de diversas pessoas pobres que
viviam pelas ruas a beber e sem ocupação eram uma reclamação
constante nos ouvidos de delegados e chefe de polícia. Diversas
autoridades reclamavam maior vigilância na região em que
trabalhavam ou habitavam. Cientes dos costumes dos marinheiros,
já que cotidianamente recebiam algum tipo de queixa policial a
respeito de um seu comandado, os oficiais comandantes dos
quartéis sabiam que ajuntamentos e aglomerações poderiam
imantar soldados e marinheiros, levando-os a se meter em alguma
enrascada. Precavido, reclamava o comandante do 1o Batalhão de
Engenharia do Exército, Caetano Manuel de Faria e Albuquerque,
ao chefe de polícia Enéas Galvão:

No interesse da ordem pública (…) venho pedir-vos enérgicas


providências no sentido de serem arredadas desta localidade
umas tantas mulheres que são um poderoso elemento de
desordem, provocando diretamente as praças ou forçando-as a,
levadas pelas suas predileções, tomarem parte em conflitos que
as ditas mulheres entre si armam, estimuladas pelo álcool que
lhes é vendido nas muitíssimas tabernas aqui existentes e que
são lugares de reuniões de vagabundos e desordeiros, que à
noite entregam-se à vadiagem.14

Parece que os comandantes sabiam como as confusões


estouravam e que novamente receberiam seus comandados
escoltados por praças da polícia com um ofício de um delegado
relatando a razão daquela “entrega”. Mas não somente os
ajuntamentos preenchiam o leque de problemas envolvendo
marinheiros; as casas de negócios de bebidas também eram
espaços geradores de conflitos e por isso também faziam parte das
preocupações dos comandantes. Em 1902, o então vice-almirante
José Cândido Guillobel pedia providências para uma dessas casas
próximas à saída do Arsenal de Marinha na ilha das Cobras:

Em uma casa com negócio de café e bilhar sito à rua 1o de


Março, em frente a este Arsenal reúnem-se constantemente
grupos de vagabundos e desordeiros que não só promovem
distúrbios e ofendem a moral com palavras obscenas, mas
também incomodam a vizinhança com cantorias até alta noite.15

Obviamente a polícia também reclamava de marinheiros e


oficiais aos mesmos comandantes, queixando-se de problemas
idênticos. Em outras palavras, os militares também se reuniam entre
eles, assim como esses “vagabundos e desordeiros”, e de forma
idêntica o chefe de polícia ou algum delegado solicitava maior
controle dos comandantes a fim de que marinheiros e oficiais
evitassem problemas. Para evitar tais inconvenientes, o
subdelegado do 1o Distrito da freguesia de São José solicitava
providências ao ajudante-general da Armada para diminuir o
problema:

Tenho a honra de pedir a V. Ex.a se digne providenciar para que


as praças da Armada não façam ponto de reunião no Cais
Faroux, provocando conflitos com paisanos, por questões de
jogo, quer ali quer na praia de São Manuel, conflitos estes que
se fundam em prejuízos da tranqüilidade pública, podendo
produzir (…) conseqüências.16

Vários outros policiais redigiram ofícios tratando do mesmo


assunto e destinados aos comandantes das unidades navais. Boa
parte destas histórias se passava na praia, da Gamboa à praia de
Santa Luzia, e não faltavam marinheiros e confusões. As delegacias
das ruas mais centrais (do Arsenal de Marinha, na praia de d.
Manuel, ao cais Faroux, ao lado do Palácio dos Vice-Reis, hoje
praça 15 de Novembro), como São José, Candelária, Santa Rita,
eram as que mais reclamações tinham a fazer.
Além dos ajuntamentos e do comércio de bebidas, outro atrativo
dos mais tentadores para os marinheiros era o jogo. O comandante
Sebastião de Sousa (1896-1944) foi um cronista da vida na Marinha
das primeiras décadas do século XX. Em uma de suas histórias,
este oficial, que ficou conhecido pelo pseudônimo de Gastão
Penalva, relatou o triste fim do marinheiro André de Paula, a quem
encontrou na “faxina dos correcionais” — um tipo de trabalho
forçado reservado aos condenados. O oficial ficou intrigado com o
que vira e pôs-se a ouvir o marinheiro.17
Disse ele que, num sábado, ao sair de bordo e passar pela
“porta do Arsenal, um garoto bilheteiro correu atrás” dele e suplicou-
lhe que arriscasse a sorte. Comprou o bilhete e três dias depois veio
a grande notícia: “estava com 20 contos. Uma fortuna para quem
não [tinha] nada”. A partir daí não faltaram amigos pedindo algum
dinheiro emprestado. Resolveu logo em seguida gastar o resto
consigo mesmo. Afinal,

Dívidas deixei para mais tarde. Havia de sobrar. A baiana do


angu e a Joaquina lavadeira que esperassem. De noite corri
para a zona. (…) Um sucesso. O mulherio me cercava como se
tudo aquilo fosse minha família. Nunca vi tanta mulher para um
homem só. Dinheiro, seu tenente… Eu era um paxá. Todas elas
queriam presentes, jóias, vestidos de seda, vidros de cheiro. (…)
Depois, cabeça fraca. Nunca bebi. Mas o homem que tira 20
contos quer fazer tudo. Veio bebida de pagode. Paguei vinho e
cerveja a noite inteira. Só dei por mim no dia seguinte (…)
estirado no jirau do xadrez do distrito. (…) Que pesadelo (…)
minha roupa era só sangue (…) que me teria acontecido?
Apalpei os bolsos: faltava-me tudo —o dinheiro, os cigarros, a
navalha (…) teria eu matado alguém? [Se não fosse a sorte
grande] não teria matado a Inácia, nem ferido o [soldado do
Batalhão] Naval, nem comprado esta argola de papagaio que vai
me enfeitar o pé por 30 anos.18

Esta breve mas rica história de André contada por Gastão


Penalva é repleta de situações cotidianas na Marinha de Guerra. Ali
estava o marinheiro que sai do ofício com dinheiro no bolso,
desejoso de usufruir os prazeres que os rígidos, regrados e
fechados espaços militares não possuíam. Era poder beber à
vontade sem a presença de um oficial a lhe ameaçar com castigo;
também sentir o corpo feminino repleto de dengos e sedução; rir e
cantar com colegas e companheiros de terra, que contavam
novidades e realidades outras, bem distantes daquelas que
cercavam o dia-a-dia a bordo.
O jogo de bilhetes podia gerar uma vultosa verba, como
acontecera com André, mas isso foi uma raridade. Em geral, o jogo
a dinheiro fornecia o suficiente para umas doses de aguardente e
alguns outros prazeres (como participar do próprio jogo). Jogava-se
em terra e escondido a bordo. Se no convés a figura do oficial de
quarto ou sargento era sinônimo de repressão ao jogo, em terra
essa missão ficava a cargo dos urbanos e policiais.19 Contudo, se
no convés o marinheiro estava mais próximo de seus superiores e o
castigo tornava-se quase uma realidade, no caso das ruas ainda
havia a possibilidade de fuga em debandada geral ou mesmo do
enfrentamento com a polícia. O subdelegado do 1o Distrito de São
José relatou um caso desses:

Às nove horas da manhã de ontem a patrulha que rondava o


cais Faroux deu parte na estação do distrito de que se achava
reunido naquele cais grande grupo de imperiais marinheiros a
jogar; sendo intimados para cessarem o jogo por esta, foi ela
desrespeitada, pelo que para ali dirigiuse o comandante da
estação com força, nada também podendo fazer, visto como
declaram os ditos imperiais, que resistiriam na hipótese de ir dali
algum preso, tornando-se salientes no grupo um furriel
reformado da Armada, de nome Veríssimo de Tal, um imperial
marinheiro de nome Rodolfo e um conhecido 11120 da mesma
classe, tendo o dito furriel declarado ao comandante da estação
quando intimado que não vinha, pois nada tinha a fazer na
estação.21

Assim, marinheiros não tinham tanto respeito por policiais e


viceversa. Havia uma grande rivalidade entre eles, por uma série de
razões. A começar, é claro, pelas incessantes incursões policiais em
torno dos marinheiros e soldados do Batalhão Naval. Já tinham de
aturar e respeitar o poder dos oficiais e sargentos durante o dia ou a
semana, e quando estavam em terra, lá vinham os policiais para
assumir o lugar de seus comandantes.
As relações sexuais também podiam transformar-se em
problema disciplinar grave. Um soldado do Batalhão Naval abusou
da sorte quando tentou enganar um colega. Alguns militares
possuíam um documento especial que os habilitava a capturar os
desertores da Armada. Bastava mostrá-lo a um policial para então
receber apoio para efetuar a captura. Pois bem, foi amparado num
documento desse tipo que o soldado José de Oliveira praticou as
maiores irregularidades. O delegado de Irajá, subúrbio do Rio de
Janeiro, informou o ocorrido ao comandante do Batalhão Naval
Francisco José Marques da Rocha:

Comunico-vos que a praça desse batalhão José de Oliveira (…)


tem praticado nesta circunscrição toda a ordem de absurdos
confiado em um cartão por vós assinado autorizando-o a prender
desertores. Além de muitas desordens por ele promovidas,
anteontem prendeu um indivíduo como desertor a fim de abusar
da mulher do mesmo durante a noite em que dormisse no
xadrez.22

Como se pode notar, havia diversos caminhos para que esses


homens praticassem delitos graves. Infelizmente, não tive como
investigar cada uma dessas missivas trocadas entre as autoridades
da Marinha de Guerra e aquelas da polícia, mas se nota uma
variada gama de recursos utilizados por alguns marinheiros para
alcançar seus desejos. A violência contra a mulher através de
abusos sexuais era uma realidade que aparecia aqui e ali nos
registros policiais, e a solução para esses casos poderia ser
inclusive o casamento:23

Tendo sido ontem apresentado por ordem de V. S.a (…) a praça


(…) Raimundo Rodrigues da Silva, a qual confirma ser o raptor e
deflorador da menor Regina Rita da Silva, e para ser efetuado o
respectivo casamento é necessário que V. Ex.a mande a licença
respectiva e bem assim como um traslado da sua certidão de
idade (…).24

Para esses e outros casos a polícia era logo chamada e metia os


ferros nos pulsos do indivíduo até apresentá-lo aos superiores da
Marinha de Guerra. No entanto, havia situações em que a violência
sexual era contra o próprio companheiro. A história do marinheiro
João da Costa Antunes é um desses exemplos.25 Incorporado à
Armada em maio de 1900, ele começou a apresentar problemas
disciplinares dois anos depois. A partir de 1903 sofreu castigos de
golilha e prisão rigorosa a pão e água por descumprir ordens, dormir
em serviço e ter saído no tapa com um companheiro. Em abril de
1911, foi altamente reprovado pelos oficiais por ser “nocivo à
disciplina, faltar respeito aos seus companheiros e espancar um
grumete por este recusar-se a atos imorais”. Na verdade, a prática
de “atos imorais”, a “libidinagem” ou qualquer outra palavra utilizada
pelo escrivão da Marinha de Guerra para referir-se à
homossexualidade, parece ter sido freqüente nas embarcações.
Outra violência sexual ocorreu no Quartel das Torpedeiras, em
Niterói, e nos fornece mais informações.26 Segundo o comandante
do quartel, os marinheiros “Antônio Ferreira da Silva e José Joaquim
de Sant’Ana subjugaram o foguista Pedro Cavalante, mais moço e
mais fraco do que qualquer dos outros, despojaram-no de suas
roupas” e nele saciaram suas vontades. Segundo o ofendido, na
noite de 27 de maio de 1893 ele foi convidado por Sant’Ana para ir a
casa do pescador Machado, que ficava num morro atrás do quartel.
Sant’Ana mandou buscar aguardente e ficou a tocar harmônica
por muito tempo até ingerirem a última gota de álcool. Após aquela
noitada de cantoria e bebedeira, Pedro Cavalcante, que tinha 19
anos, reparou que o marinheiro Antônio Ferreira da Silva, 25 anos,
chamou Sant’Ana ao pé do ouvido e “cochichou”: “vão, que eu já
vou”. Na volta para o quartel,

ao chegarem a uma casa velha abandonada, Sant’Ana disse a


ele interrogado para passarem por dentro da mesma casa por
que era melhor e para encurtar o caminho. Ele interrogado ao
princípio teve certa repugnância em acompanhar por ali o seu
companheiro, mas não querendo abandonar a sua companhia o
seguiu, entrando na aludida casa onde estando, Sant’Ana
começou com umas estórias a fim de conseguir com ele
interrogado a prática de atos imorais; porém ele interrogado não
acedendo aos seus rogos, tomando mesmo isso como mera
brincadeira, convenceu-se do contrário; logo que ele cortou uma
vara de tamarindo e com esta entrou a esbordoá-lo, defendendo-
se ele interrogado como lhe foi possível dessa agressão e
procurando fugir, eis que chega o marinheiro Antônio Ferreira da
Silva com uma faca de ponta na mão e ameaçou feri-lo e até de
matá-lo, havendo então entre eles três uma luta, da qual retirara-
se o [Antônio] por um instante e regressando depois pela sua
retaguarda agarrou-o pelas pernas e deitando-o no chão, e
depois os dois amarraram-no de mãos para trás e nele saciaram
os seus desejos libidinosos; feito que o desamarraram,
abandonando-o afinal naquele lugar, onde foi encontrado pelos
companheiros que vieram à sua procura do quartel (…).

Pedro compareceu ao Conselho de Guerra com um curador, já


que era menor. O marinheiro Antônio Ferreira da Silva já tinha se
envolvido mais de uma vez na prática de atos imorais. Em abril de
1890, na flotilha do Amazonas, ele respondeu a um conselho de
guerra como vítima de uma violência sexual perpetrada por um seu
colega. Segundo averiguou o conselho, Antônio acabou reagindo à
violência e feriu o agressor. Assim, o conselho decidiu inocentá-lo
do crime de ferimento, já que fora “praticado em justificativa de
defesa própria”. Contudo, Antônio, em maio de 1891, foi “preso na
solitária por cinco dias e alistado na companhia correcional segundo
o parecer do conselho de disciplina a que foi submetido a 15 de
maio de 1891 de acordo com o Decreto no 328 (…) e castigado com
25 chibatadas por faltas que ofendem a moral e perturbam a
disciplina de bordo”. Tudo isso ocorreu no Amazonas. No entanto,
cumpriu os cinco meses da correcional no Rio de Janeiro, logo após
receber as 25 chibatadas na flotilha do Amazonas.
O marinheiro Silvano da Costa não fora preso nem castigado
uma vez sequer por tentar violentar alguém ou ser violentado.27 Mas
fora surpreendido algumas vezes em pleno ato. Certa vez, em abril
de 1903, chegou a “perturbar o silêncio da coberta”, de que era
plantão, “com atos de indecorosa libidinagem”, no que já era
reincidente. Passou oito dias preso em “solitária rigorosa”. De outra
feita, “abandonou a guarda do 3o escaler e passou para a lancha,
onde praticou atos contrários à moral com um seu companheiro”.
Desta última vez nem teve escapatória: foi incluído na companhia
correcional. Mas de nada adiantou, e foi castigado com “10
chibatadas” por novamente praticar atos imorais. Como se vê, os
oficiais tentavam corrigi-lo através de castigos; sem dúvida,
acreditavam que a homossexualidade era uma doença ou um
problema moral.28 Devem ter visto na prática que Silvano não
mudaria e, um ano após o marinheiro estar sob a correcional, sem
chances de aceitar outra orientação sexual, mesmo sofrendo todas
as privações do castigo, enfim os oficiais deram-se por vencidos e o
retiraram da dita companhia. Contudo, Silvano ficaria “privado de ter
acesso” a outra classe, conforme o ratificado no art. 6o do
regulamento da companhia correcional.
Outra falta disciplinar punida com a correcional era a
embriaguez. Casos de marinheiros presos promovendo arruaças,
falando alto e xingando os transeuntes no auge do delírio são
encontrados aos borbotões nos ofícios trocados entre a polícia e os
comandantes das unidades navais:

Levo ao conhecimento de V. Ex.a que ontem à noite enviei preso


ao quartel desse corpo o soldado do mesmo Antônio da Luz, que
ao ser preso pelo sargento da força Policial por promover, em
estado de completa embriaguez, grande desordem na rua dos
Inválidos resistiu tenazmente à prisão, chegando a agredir o
referido inferior (…).29

Às vezes, porém, o trabalho policial era redobrado. Afinal, para


enfrentar esses homens nas ruas era preciso saber brigar, e bem,
assim como manusear a navalha ou arma de fogo com agilidade e
pontaria. Um erro poderia custar a própria vida ou a eterna marca da
lâmina. O chefe de polícia narrou um destes casos:
[foi] preso em flagrante o imperial marinheiro Manoel dos Santos
Pereira, conhecido pelo apelido de Tomé, por haver ontem às
nove horas da noite promovido grande desordem na travessa da
Barreira, armado de navalha com a qual feriu ao soldado do
Corpo Militar de polícia Sabino Ferreira de Aquino, quando este
procurara prendê-lo.30

Entrar numa briga com um marinheiro ou tentar prendê-lo, como


fizera Sabino, dependendo da situação, era pôr a própria vida em
risco. Claro que nem todos os marinheiros tinham força e destreza
para se sentir invencíveis. Havia aqueles que já deviam até ser
conhecidos pela polícia mas eram respeitados, e vice-versa. Um
exemplo de indivíduo complicado de se aturar era o capoeira, que
durante boa parte do século XIX e até o século XX atormentou a
paciência dos sucessivos chefes de polícia da Corte. E a Marinha de
Guerra possuía em suas fileiras exímios jogadores de pernadas e
eficientes navalhistas:

Às 12 horas e um quarto da noite, ao terminar o baile da Praça


de d. Pedro II e ao retirar-se uma banda de música que ali
estivera tocando ao passar pela rua 7 de Setembro, canto da
[rua] da Quitanda, um grupo de imperiais marinheiros que ia à
frente da dita banda armado de cacete e em exercício de
capoeiragem agrediu e espancou os soldados deste corpo.31

Episódios como estes acabavam por reforçar e aguçar a relação


entre marinheiros e policiais nas ruas. Afinal, esta não foi a primeira
nem a última vez que indivíduos das duas fardas entraram em
conflito: tais desavenças eram antigas, e muita gente havia morrido
em decorrência dessa animosidade. Talvez essas brigas fossem
mais comuns entre policiais e soldados do Batalhão Naval — pelo
menos é o que se pôde apurar em boa parte dos conflitos
envolvendo indivíduos de ambas as partes.32 Os policiais militares
também eram castigados por faltas disciplinares, mas os castigos de
prisão por alguns dias ou para sentença haviam de ser cumpridos
no presídio da ilha das Cobras, que era controlado pelo Batalhão
Naval. Vários ofícios do Comando da Força Policial atestam que os
policiais detidos tinham de conviver com marinheiros e soldados em
território da Marinha de Guerra:

Faço apresentar-vos devidamente escoltado, a fim de que


cumpra nessa fortaleza o corretivo imposto por este Comando, o
soldado do 1o Regimento Francisco Mendes da Silva.

Para que vos digneis de dar o conveniente destino, inclusa


remeto-vos a quantia de 190 mil e quatrocentos réis, relativa aos
vencimentos a que tiveram direito no mês findo, as seguintes
praças deste Regimento, que se acham cumprindo castigos
disciplinares na Fortaleza que dignamente comandais.33

A rivalidade entre os grupos fica mais clara no ofício do


comandante do Batalhão Naval, em 1908, quando ele analisa a
injusta prisão do soldado do batalhão José Augusto Teixeira. Para
ele, o responsável pela prisão fora um policial “de ronda” que tinha
“o único fim de exercer vingança contra as praças deste batalhão,
pois estivera preso 20 dias nesta Fortaleza [da ilha das Cobras]”.34
Porém, temos de reconhecer que nem tudo era guerra entre
soldados da polícia, marinheiros e soldados do Batalhão Naval. Às
vezes podiam estar lado a lado policiando as ruas, principalmente
em épocas de festas religiosas ou quando estouravam aqueles
quebra-quebras que terminavam em revoltas populares. O carnaval
era uma das festas em que o chefe de polícia solicitava ao
comandante do Batalhão Naval que pusesse de prontidão uma
quantidade de soldados para o caso de acontecerem distúrbios que
o contingente de policiais não conseguisse resolver. A uma destas
solicitações, em 6 de fevereiro de 1902, o comandante do quartel-
general da Marinha, Eduardo Wandenkolk, respondeu da seguinte
forma: “quanto às 30 praças que requisitastes, ficarão, como de
costume, de prontidão no Arsenal de Marinha, durante os três dias
de Carnaval, às ordens do respectivo Comandante do Corpo
encarregado do policiamento em questão”.35
Como se pode notar, havia momentos em que os policiais
partilhavam as mesmas funções com militares da Marinha de
Guerra, e tudo parecia transcorrer às mil maravilhas, como se
estivessem no mais confiante espírito da “ordem” e “disciplina”
castrenses. Mas num piscar de olhos tudo podia mudar:

levo ao vosso conhecimento haver-me comunicado o delegado


da 15a circunscrição que no dia 22 do corrente, às oito horas da
noite, na estação de S. Francisco Xavier, as praças de infantaria
de Marinha que voltavam do arraial de Nossa Senhora da
Penha, onde estiveram de serviço, espancaram a sabre diversas
pessoas do povo e praças de Polícia, não tendo tido este fato
graves conseqüências, devido à calma e correção com que
procedeu a força policial que ali se achava destacada.36

Vários casos como esse também podem ser encontrados nos


jornais, sempre durante as semanas de festas religiosas e
populares. Dada a grande quantidade de pessoas que à igreja de
Nossa Senhora da Penha se dirigia no dia da padroeira, foi possível
encontrar vários episódios iguais a esse nas colunas policiais.
Nesses casos, quem mais sofria eram os populares.37 Se a polícia
já era conhecida pelos seus métodos truculentos de lidar com a
população, tanto no século XIX quanto no XX,38 imagine-se o que
fariam soldados e marinheiros inexperientes em policiamento das
ruas.
Essas confusões em que os marinheiros e soldados do Batalhão
Naval se metiam em dias de licença não eram bem-vistas por
policiais e possivelmente tampouco pela população. Afinal, diversas
vezes tiveram de se defrontar com um desses militares embriagado,
tentando fazer passar o conto do vigário, jogando capoeira,
agredindo pessoas em plena festa religiosa. Tais excessos, que
podiam ser provocados por alguns militares mas que eram
ampliados para toda a classe, tornava a imagem dos marinheiros e
soldados tão ou mais negativa que a dos policiais. O uso dos
castigos corporais em indivíduos como estes podia até ser desejado
por alguns populares, pelo menos por aqueles que tinham sofrido
com os excessos de um marinheiro. Contudo, ninguém mais
desejava o castigo corporal em marinheiros e soldados do Batalhão
Naval que os policiais. Num dos ofícios enviados por um delegado
de polícia ao comandante do quartel-general da Marinha, esse
desejo fica bem claro. Tanto assim que o comandante respondeu ao
mesmo delegado demonstrando sua indignação:

Foram recebidas as praças constantes de vosso ofício de 4 do


corrente e recolhidas presas aos respectivos navios por terem
perturbado a ordem pública segundo parte do inspetor da
mesma circunscrição. (…) Devo, porém, ponderar-vos que este
quartel-general dispensa e não aceita insinuação sobre castigos
que tenha de mandar aplicar de acordo com as leis e
regulamentos e sobre manter a disciplina em toda sua plenitude,
sem distinção de classes.39

O encarregado do quartel-general da Marinha, como se nota,


ficou realmente irado com as declarações e ressalvas do delegado
da 5a Circunscrição, o qual deve ter pedido rigoroso castigo para os
marinheiros que prendera e enviara ao dito quartel. Isto era um
verdadeiro insulto ao comandante, como se ele não soubesse
corrigir um subordinado.
Os oficiais comandantes entendiam que aqueles costumes
demonstrados pelos marinheiros resultavam em desordens que
punham em risco o bom andamento das fainas. Briga, embriaguez,
jogo, homossexualidade, brincadeiras e zombarias podiam gerar
confusões capazes de pôr em risco toda a disciplina e ordem. Da
mesma forma, a falta de zelo, pontualidade e dedicação ao trabalho
era malvista pelo oficialato. Afinal, tudo isso podia levar o navio ao
desmantelo, algo que estava diretamente sob a responsabilidade do
oficialato. Assim, os oficiais não estavam preocupados se o
marinheiro queria ou não servir à Marinha de Guerra por nove ou 15
anos; seu problema era a mão-de-obra fardada, essencial ao
serviço, que devia aceitar as missões designadas pelo oficialato
sem jamais rejeitá-las, concorrendo para que todas as normas
fossem seguidas.
Os marinheiros sentiam a repressão e sabiam dos limites que
ela impunha aos seus costumes. Da vida civil à carreira, os
marinheiros assumiam uma nova rotina tantas vezes não desejada
para si. Abruptamente, tinham de largar a terra natal, afastar-se de
amigos, parentes e familiares e perder o contato com seus valores e
costumes locais. Diferentemente das demais forças militares, a
Armada trazia o indivíduo para o Rio de Janeiro e em seguida o
destacava para outra região — raros foram os casos encontrados de
marinheiros que passaram uma fase da vida militar servindo em sua
terra natal.
A partir daí, ele havia de dividir com pessoas estranhas o mesmo
espaço de dormir, comer e trabalhar. Conviver com elas não era
uma escolha particular, mas uma situação criada e imposta pela
Marinha de Guerra. Os baixos vencimentos, principalmente para os
novatos, tornavam remotas as chances de alugar um quarto numa
cidade como o Rio de Janeiro. Diariamente, ele tinha de seguir uma
rotina de trabalho e regras que regulavam todos os seus passos; do
abrir ao fechar dos olhos.
Nos períodos de licença, quando iam às cidades, tinham de
aprender a conviver na localidade e a descobrir os meios de obter o
que desejavam para si. Tinham de estabelecer novos laços de
amizade nas ruas para namorar, dançar, beber, jogar etc. Não raro,
os marinheiros desconheciam os costumes e valores locais,
podendo ser reprimidos pelas autoridades policiais, como vimos no
caso de Manaus. Às vezes cometiam-se excessos, e o álcool ou o
destempero emocional provocavam efeitos que levavam o
marinheiro ao chão, a uma briga, a uma confusão qualquer e,
finalmente, à cela de uma prisão e ao castigo físico.
A mudança era radical, e para muitos devia ser muito sofrida.
Afinal, essa reconstrução da própria vida levava o indivíduo a
solidarizar-se com uns, a entrar em conflito com outros e a afastar-
se dos indesejados. Esse exercício era fundamental para a própria
sobrevivência numa nova realidade. Ao chegar a uma localidade
que lhe era estranha, essas novas relações pessoais tornavam-se
cruciais para que o marinheiro não se sentisse indefeso, exposto e
frágil. Criando novas relações ele poderia obter informações
necessárias à seleção de amizades que faria em seguida e que o
acompanhariam durante a estada numa localidade qualquer.
Obviamente, muitas vezes, para os mais novos e ingênuos, esse
processo tornava-se dificílimo. Lembremo-nos do foguista Pedro
Cavalcante, mais moço e mais fraco que os dois camaradas que o
convidaram para beber aguardente e o estupraram.
As relações pessoais também podiam ser importantes para que
o marinheiro recém-chegado soubesse como lidar com sargentos e
oficiais a bordo. Embora existissem regulamentos e os códigos
penal e disciplinar para toda a Marinha de Guerra, a interpretação
de quem os aplicava é que definia o que valia ou não na rotina do
navio. Os marinheiros sabiam que a vontade do comandante estava
acima de tudo. Por isso criavam meios pelos quais pudessem dar
largas aos seus costumes e valores, desde que não desagradassem
seus superiores. Não era preciso deixar de visitar a namorada, nem
de freqüentar as casas de bebida, os sambas, os ajuntamentos em
torno do jogo a dinheiro ou de parceiros da capoeira, nem de ir a um
prostíbulo, de praticar “atos imorais” etc. Na verdade, tudo isso
podia acontecer, desde que não provocasse distúrbios a bordo,
desorganização entre turmas das fainas, baixas na guarnição por
ferimento ou morte, prejuízos à embarcação, armas e demais peças
— fosse por furto, roubo, mau uso ou má conservação. Mas, acima
de tudo, o marinheiro não deveria pôr-se em evidência nem testar o
poder do comandante e seus auxiliares mais diretos (oficiais e
sargentos): tudo havia de ser a extensão da vontade do principal
oficial a bordo (ou parecer que assim era).
Com o passar do tempo, o marinheiro aprendia as normas
escritas (regulamentos, regimentos, códigos) e aquelas verbalizadas
pelo comandante no ato de amostra, nas formaturas, ou até mesmo
em suas atitudes e iniciativas diante dos diversos problemas que
enfrentava diariamente. Essas observações e mesmo a troca de
informações nas rodas de marinheiros eram importantes
instrumentos para que nenhum deles contrariasse a vontade do
comandante e corresse o risco de ser punido; saber trilhar esse
caminho era crucial para que eles conseguissem manter seus
costumes e valores. Contudo, para aprender tudo isso, a
experiência a bordo era fundamental.
Por mais que alguém tentasse manter distância, havia as
altercações com indivíduos truculentos que não aprendiam a
conviver com o poder do oficial e não estavam nem aí para as
normas: se quisessem furtar um objeto, esbofetear quem por
descuido lhe pisasse o pé, currar um grumete, beber até cair,
arrumar confusão com a polícia, xingar a mãe do oficial ou cometer
quaisquer outras indisciplinas e crimes, estes homens não
hesitariam em fazê-lo. Eram ímãs para confusões: atraíam tudo, de
brigas a insubordinação. Assim, aquele outro marinheiro que
acatava a autoridade do comandante e aprendia a conviver com ela,
sem no entanto deixar de fazer o que desejava, tinha também de
saber lidar com indivíduos como Júlio do Nascimento, procurando
manter-se afastado deles o máximo possível. Homens assim eram
um perigo para sua integridade física e moral, além de porem em
risco o sonho da ascensão hierárquica.
Havia muita gente que não sabia resolver suas altercações em
lugares e momentos apropriados, longe de oficiais ou possíveis
denunciantes. Esses marinheiros deixavam o álcool tomar conta dos
seus atos; não saíam da rota de policiais; não respeitavam as
normas de tavernas, prostíbulos e casas de jogos; e, principalmente,
desrespeitavam as ordens e a hierarquia militar. Esse tipo de
marinheiro estava sempre prestes a cair na desgraça da chibata ou
de qualquer outro castigo, e quem ficasse perto dele também corria
o mesmo risco. Entre vários outros exemplos, o guardião Galhardo
animou alguns marinheiros a enfrentar os policiais que haviam
prendido colegas seus de navio por causa de um passeio nos
jardins do palácio em Manaus; e o foguista Pedro Cavalcante foi
violentado na ilha do Mocanguê após beber e cantar ao lado de
seus estupradores Antônio Ferreira da Silva e José Joaquim de
Sant’Ana. Os envolvidos no caso de Manaus foram condenados a
seis anos de prisão, e Pedro Cavalcante deve ter vivido difíceis
momentos para superar tal violência e tudo o que ela representava
no universo masculino.

Conclusão
Com o fim da Guerra do Paraguai, as discussões em torno da
condição escrava e a pressão dos oficiais de bordo, as altas
autoridades da Armada procuraram resolver esses graves
problemas disciplinares tornando mais rígida a seleção no processo
de recrutamento. Além disso, criaram medidas para incentivar a
formação educacional e profissional dos marinheiros. Daí o prestígio
conferido às escolas de aprendizes marinheiros — em detrimento do
recrutamento forçado — e às escolas profissionais e de primeiras
letras. Mas, enquanto essas medidas não surtiam efeito, procuraram
também interferir nas relações entre marinheiros e oficiais, criando
leis para regular e limitar o castigo corporal. A Lei no 8.898, de 3 de
março de 1883, por exemplo, reduziu o castigo de chibata para 25
pancadas.
Os resultados dessas medidas ainda eram pífios quando a
República foi inaugurada. Como vimos, a criação da companhia
correcional alegrou e frustrou oficiais e marinheiros,
respectivamente. Essa mudança, em tão pouco tempo, gerou
protestos por parte dos marinheiros, que se aproveitaram dos
conflitos políticos dos primeiros anos de governo militar para expor
suas reivindicações. As primeiras revoltas ou tentativas de revolta
contra os excessos do castigo corporal têm início já na década de
1890.
Até 1910, marinheiros e oficiais tentarão criar novas regras de
conduta mútua para poderem conviver sob o regulamento
estabelecido pela companhia correcional. No entanto, sem voz nem
direito para reclamar coletivamente dos problemas existentes, um
grupo liderado pelos marinheiros João Cândido, Francisco Dias
Martins, André Avelino e Manoel Gregório passou a se reunir em
diversos locais da cidade do Rio de Janeiro para organizar um dos
maiores movimentos de revolta existentes na história da capital
federal.40
Esses marinheiros amotinados desejavam a abolição dos
castigos corporais. Mas somente isto não bastava. Na interpretação
dos amotinados, de pouco adiantaria extinguir a chibata, enquanto
marinheiros indisciplinados e pouco camaradas, como Avelino Bispo
de Olinda e Júlio Nascimento, continuassem nos vasos de guerra.
Daí os amotinados exigirem “educação” para esses marinheiros
“que não sabem vestir a orgulhosa farda”. Óbvio que eles também
exigiam melhores salários, o fim do trabalho excessivo e das leis
que permitiam o castigo corporal. Antes de serem vistas como
inocentes reivindicações, tais medidas resolveriam problemas que,
como vimos, geravam violências diversas e afastavam os
voluntários tão desejados pela Marinha de Guerra. Enfim, os
amotinados de 1910 revelaram à imprensa e aos citadinos uma
realidade diversa daquela exposta pelos oficiais, conquistando
assim o direito de serem ouvidos através de suas próprias vozes.41

Bibliografia
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PENALVA, Gastão. Patescas e marambaias. Rio de Janeiro: SDM,
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———. Festa da Penha: resistência e interpretação cultural (1890-
1920). In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (Org.). Carnavais e
outras festas. Campinas: Unicamp/Cecult, 2002.

* Esta é uma versão modificada e resumida do quinto capítulo da minha tese


(ver Nascimento, 2002).
** Doutor em história pela Unicamp; bolsista da Capes (Pro-Doc) junto ao
Departamento de História da UFRJ.
1 Se flagradas, as relações homossexuais poderiam ser punidas através de
processos criminais intitulados “libidinagem”; ver o fundo Conselhos de
Guerra da Marinha, Conselho Supremo Militar e de Justiça, pertencente ao
acervo do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Os processos de “libidinagem”
também foram analisados por Peter Beattie em outro capítulo deste livro.
2 Em outro trabalho, analisei detidamente o recrutamento para a Marinha de
Guerra; ver Nascimento (2001, cap. 2).
3 Nascimento (2001, cap. 2).
4 Beattie, 2001:202.
5 Ibid. p. 199.
6 Eram algemas interligadas por um pedaço de corrente ou um “varão” de
ferro e que serviam para atar os tornozelos do faltoso.
7 Processo no 695, José Cândido Guillobel, 1874 (Arquivo Nacional,
Conselhos de Guerra da Marinha (doravante AN, CGM).
8 “Companhia” é um tipo de divisão administrativa das Forças Armadas. No
quartel-general da Marinha de Guerra havia dezenas de “companhias”, cada
uma composta por marinheiros, cabos e sargentos. A dita “correcional” tinha
suas especificidades e reunia somente aqueles de mau comportamento. Pelo
que notamos, cada unidade naval possuía sua “companhia correcional”, a fim
de corrigir os indisciplinados na própria embarcação e evitar o desfalque da
guarnição.
9 Ver Nascimento (2001, cap. 3).
10 Carta de Carlos de Barros Raja Gabaglia a Rui Barbosa, 7-12-1910

(Fundação Casa de Rui Barbosa, CR636/1); Processo no 1.918, Juvino de Sá


e outros (AN, CGM, 1893, cx. 13.191, depoimento do tenente Honório de
Barros).
11 Processo no 1.914, Avelino Bispo de Olinda. (AN, CGM, cx. 13.190, 1893).
Tudo que vai escrito daqui por diante está na cópia da caderneta do livro de
socorros deste marinheiro, inclusa no processo. O mesmo vale para outras
histórias relatadas a seguir, com base nos processos criminais do Arquivo
Nacional.
12 Filme no 266/seção A, 22o livro dos sargentos, cabos e marinheiros, 1892-

1911, classificado no Arquivo da Marinha sob o no 46.522, fls. 1, 2, 3, 4, 7 e


30 (Serviço de Documentação da Marinha, doravante SDM).
13 Processo no 1.933, Jovino Francisco da Cruz e outros, cx. 13.192, 1894
(AN, CGM).
14 Autoridades militares, 19-4-1900 (AN, Seção de Documentação
Administrativa, doravante DAS, 020, 6C49).
15 AN, SDA 020: 6C 79, 14-3-1902.
16 AN, IIIM-658, 3-12-1887.
17 Ver Penalva (1981).
18 Ver Penalva (1981:87-88).
19 Sobre o jogo do bicho e a repressão pelo Estado na República, ver
Herschmann e Lerner (1993:61-69).
20 Provavelmente o número de matrícula do referido marinheiro numa das
companhias do quartel-general da Marinha.
21 AN, IIIM-658, 17-9-1889.
22 Livro no 3.596, 18-11-1905 (SDM).
23 Ver Soihet (1989); Abreu (1989); Caulfield (2000); Graham (1992).
24 Livro no 3.596, 14-2-1905 (SDM).
25 22o Livro-mestre dos sargentos, cabos e marinheiros da 13a Companhia,
filme 266, f. 173 (SDM). Este caso também foi discutido por Peter Beattie em
outro capítulo deste livro.
26 Processo no 1.922, José Joaquim de Sant’Ana, Pedro Cavalcante, Antônio
Ferreira da Silva, Cx. 13.191, 1893 (AN, CGM). Tudo que vai escrito daqui por
diante a respeito deste caso se encontra neste processo.
27 23o Livro-mestre dos sargentos, cabos e marinheiros da 9a Companhia,
filme 362A, f. 262 (SDM).
28 Sobre o assunto, ver Ariès e Pollak (1982:55, 80-82); Green (2000:189-
225).
29 Livro no 3.596, 13-10-1905 (SDM); ver também vários casos no livro no
3.595.
30 AN, IIIM-658, 9-8-1888.
31 AN, IIIM-658, 12-5-1888.
32 AN, SDA-020, 6C 244, 22-11-1908.
33 Livro no 3.596, 1905 (SDM).
34 AN, SDA 020, 6C244, 14-8-1908.
35 AN, SDA 020, 6C79, 6-2-1902.
36 Livro no 3.596, 27-10-1905 (SDM).
37 Ver Soihet (2002).
38 Ver Holloway (1997); Bretas (1997a, 1997b).
39 Livros no 5.610 e no 5.611, 5-5-1900 (SDM).
40 Sobre a revolta, ver Martins (1988); Silva (1982); Morel (1984); Maestri
Filho (2000); Carvalho (1995); Hahner (1993); Beattie (2001); Nascimento
(2002).
41 Ver Nascimento (2002, epílogo).
CAPÍTULO 13

Neve, fogo e montanhas: a experiência brasileira de


combate na Itália (1944/45)

Cesar Campiani Maximiano*

Dentro de uma escavação lamacenta, enrodilhado em um


grosso sobretudo e mantas de lã, um soldado Aliado num canto
qualquer da Europa esperava pela chance de avançar e conquistar
as fortificações alemãs, situadas a menos de uma centena de
metros à sua frente. Diariamente, artilharia e morteiros despejavam
granadas sobre as trincheiras, transformando a paisagem já
violentamente alterada numa sucessão de crateras fumegantes,
pontilhadas de castanheiros e carvalhos retorcidos e chamuscados.
Já fazia meses que o soldado aguardava o momento de atacar.
Mantido praticamente imóvel em sua posição, pisava e repisava o
fundo de seu abrigo com suas pesadas galochas de inverno para
evitar que os pés se congelassem, mas a medida havia
transformado o solo numa massa indistinta de barro, neve
semiderretida e outros detritos. Quando chovia, a água acumulada
no fundo do buraco alcançava a altura dos joelhos. Submetido a
temperatura glacial, suas distrações eventuais eram a chegada da
alimentação enlatada que era engolida sem esquentar ou o maço de
cigarros recebido com a ração e fumado às escondidas para que a
brasa e a fumaça não fossem vistas pelo inimigo. Há semanas sem
se barbear, o soldado nem mesmo se lembrava quando tivera a
última oportunidade de banhar-se. Se precisasse satisfazer suas
necessidades naturais, encolhia-se no abrigo e usava invólucros de
munição feitos de papelão, que depois eram descartados pelo
declive abaixo. O que devia ser feito com cuidado, pois a exposição
muito confiante não demoraria a atrair bombardeios, ou pior, um
letal tiro de precisão partido de um dos muitos fuzis dos atiradores
de elite inimigos que espreitavam.
É possível que a descrição de tal quadro tenha evocado
lembranças da guerra de posições estacionárias na França durante
1916. De fato, todas essas condições estavam presentes em frentes
de combate como Somme e Verdun.
A narrativa acima, no entanto, é igualmente aplicável a qualquer
contra-encosta de montanha apenina onde se tenham encontrado
jovens brasileiros nos últimos anos da II Guerra Mundial. As
memórias dos veteranos brasileiros estão permeadas de
recordações sobre a intensidade do conflito que viveram, e não se
pode pensar numa única “memória” uníssona quando o assunto é a
Força Expedicionária Brasileira (FEB). Cada veterano irá relatar
uma experiência diferente; os que combateram na campanha da
Itália presenciaram não somente os cenários estáticos e lamacentos
que lembravam a guerra de 1914-18. Viram também eventos
característicos dos conflitos modernos: ações de forças irregulares;
uma coalizão de contingentes multinacionais; bombardeios
estratégicos (vários brasileiros lembram-se das intermináveis
formações de “Fortalezas Voadoras” que seguiam em direção ao
norte industrial italiano); ataques ar-terra desencadeados por uma
força aérea tática; emprego de armas terrificantes, como granadas
de fósforo branco e bombas de gasolina gelatinosa; tudo coroado
por uma arrancada de alta mobilidade em colunas motorizadas e
blindadas nas batalhas de cerco ao final da campanha.
Contudo, pelo seu envio relativamente tardio ao além-mar e a
dimensão diminuta do contingente expedicionário diante dos
milhões de combatentes de outras nações, fora do âmbito de
recordações promovidas pelas Forças Armadas e associações de
veteranos, a tendência no Brasil tem sido entender a FEB como
uma coadjuvante que teria se envolvido apenas marginalmente nos
eventos que delinearam os rumos do planeta até as últimas décadas
do século XX. Embora os participantes tenham passado por uma
situação extremamente intensa e no limite do suportável, ao
contrário dos veteranos de outras nações beligerantes, sua
experiência de combate não ecoou na sociedade de seu país de
origem. É comum os veteranos ficarem estarrecidos com o fato de
as gerações mais novas ignorarem que o Brasil enviou soldados
para um conflito tão importante como a II Guerra.
Realmente, a 1a Divisão de Infantaria Expedicionária era apenas
uma entre centenas de unidades que os Aliados puseram em
campo. Mas se a proporção de brasileiros que passaram pelo
combate foi exígua, isso não acarretou minoração das contingências
com que nossa tropa se deparou na guerra. Embora a Itália fosse
um teatro de operações “secundário”, para os combatentes a vida
na linha de frente em nada diferia de outros fronts mais ativos.
Os expedicionários defrontaram-se com um clima desconhecido
e um terreno montanhoso, onde as operações eram extremamente
dificultosas. Diante de um inimigo em inferioridade de meios
materiais, mas que tinha ampla experiência de combate, o melhor
armamento de infantaria disponível na época e a supremacia dos
pontos culminantes fortificados, o que conferia uma grande
vantagem aos defensores na guerra de posições, o V Exército
Americano, ao qual a FEB foi subordinada, sofreu com os desvios
de recursos para o noroeste da Europa, onde os principais esforços
dos Aliados ocidentais eram despendidos para a derrota do III
Reich. Várias divisões francesas, americanas e britânicas foram
retiradas da Itália e enviadas para a invasão da Normandia e do sul
da França, de modo que os brasileiros desembarcaram na
península num momento em que a chegada de reforços era
essencial para que o V Exército dispusesse de meios para continuar
a pressionar os alemães e os italianos do Exército Republicano de
Mussolini.
Foi diante desse quadro que os primeiros contingentes
brasileiros desembarcaram na Europa. Qual a trajetória da maioria
dos soldados enviados para o além-mar?
À semelhança dos demais países que mobilizaram suas
populações durante a II Guerra, o Brasil precisou convocar dezenas
de milhares de recrutas para o serviço militar. Nas primeiras
inspeções de saúde para a FEB, realizadas a partir da segunda
metade de 1943, era a princípio obrigatório que o indivíduo fosse
categorizado como “classe especial” para inclusão na expedição:

Apto Especial (E)

Apresentando todos os requisitos de aptidão;

Mínimo de 1,60m de altura para oficiais e 1,55m para praças;

Peso compatível;

Visão sem correção;

Equilíbrio emocional e mental; e

Idade mental de 10 anos.1

As exigências implicaram grande aumento do padrão de saúde


necessário para que um homem fosse enviado à Europa, se
comparado àquele vigente para o Exército territorial. Assim, um
convocado podia ser apto para o serviço no Exército brasileiro e
inapto para a FEB. Esse foi um dos principais motivos para que
fosse empreendida a mobilização. No total, foram efetuadas
107.609 inspeções da saúde para a FEB, nas 10 regiões militares
do Brasil: 3.111 oficiais e 63.013 praças caíram na classe E. Em
todas as regiões, o principal item de exclusão foi “dentadura
insuficiente”.2
Para os padrões da época, uma tropa de 25.445 homens era um
número muito grande de soldados. O Exército brasileiro tinha
apenas 72.566 homens no início de 1943.3 Esse número subiria
para 144 mil no ano seguinte. Não basta uma inopinada
comparação de números absolutos entre os contingentes brasileiros
e de outros países, sem que se tenha em conta o esforço que a
materialização da FEB representou para a realidade nacional. A
tarefa de achar homens aptos foi realmente hercúlea, espelhando
tristemente a situação sanitária do Brasil de então. Para citar um
exemplo, de um contingente do estado do Pará, apenas 150 entre
800 foram considerados aptos para servir na FEB.4 Assim, a maioria
dos homens que compuseram a 1a Divisão de Infantaria
Expedicionária provinha das regiões Sul e Sudeste, dadas as
melhores condições sanitárias de suas populações. Posteriormente,
os padrões de inspeção seriam relaxados para compensar o fluxo
de transferências e evasão de praças e oficiais que causou claros
nas fileiras das unidades expedicionárias antes do embarque para o
além-mar.
Mesmo com o cancelamento das baixas em 1942 somado às
constantes levas incorporadas, o Exército ainda era uma força
pequena. A FEB em 1943 grosseiramente equivalia a 1/3 do total de
homens no Exército, o que leva a pensar que o governo manifestava
um otimismo além de suas possibilidades quando propôs à
comissão de negociações entre Brasil e Estados Unidos sua idéia
inicial de mandar mais de 100 mil homens à Europa. No final da
guerra, o Brasil tinha 180 mil homens mobilizados no Exército.5
Os conscritos se incorporam à FEB não somente como praças
(soldados, cabos e sargentos), mas também em grande número de
oficiais “R/2”, provenientes dos centros de preparação de oficiais da
reserva. O fenômeno da conscrição em massa supriu as
necessidades de material humano para as frentes de combate na II
Guerra. Nesse ponto, em nada o contingente brasileiro se
diferenciava dos demais beligerantes: os expedicionários eram
cidadãos em armas. Embora o Brasil tivesse uma das mais antigas
academias militares das Américas, 60% dos oficiais subalternos de
infantaria da FEB eram da reserva de primeira e segunda
categorias.6 Quais eram as características mais comuns entre os
homens que seguiram para a Europa? O que teria sido determinante
para que os convocados se vissem incluídos na FEB?
Para responder à pergunta, podemos utilizar como exemplo uma
das pequenas frações de infantaria da primeira unidade brasileira a
se engajar em combate: o 1o Pelotão de Fuzileiros (um pelotão tem
cerca de 45 homens) da 1a Companhia do 1o Batalhão do 6o
Regimento de Infantaria, sediado em Caçapava (São Paulo), um
dos três regimentos que compuseram a divisão brasileira.
Seu comandante era um primeiro-tenente R/2, funcionário de
uma multinacional na vida civil e já casado, com dois filhos. Um dos
sargentos era voluntário para o Exército desde quando a guerra
havia estourado, embora outro fosse marceneiro na cidade de
Pindamonhangaba. Entre os soldados havia um feirante, um
alfaiate, um professor de matemática, pequenos agricultores,
lavradores, funcionários públicos, operários e empregados do
comércio.
Como os demais soldados nas pequenas unidades de infantaria,
haviam nascido principalmente entre os anos de 1919 e 1925,
contando entre 19 e 25 anos de idade ao seguirem para a Europa.
Gente das camadas médias e mais privilegiadas da sociedade
primou pela ausência nas fileiras da FEB. Os próprios combatentes
aludiam-se à predominância de recrutas das áreas rurais no jornal
…E a Cobra Fumou!, órgão independente do 6o Regimento de
Infantaria. Uma suposta correspondência entre um soldado e sua
noiva teria sido “interceptada” pelos editores do periódico:

CORRESPONDÊNCIA

Transcrevemos abaixo a resposta do soldado Mingolé, da 3a


Cia., à carta de 4 de dezembro de 44 p.p., vinda do Morro do
Querosene.

“Soprassasso, 30 de dezembro de 44-bico chato.

Querida Durvalina da Capa Preta.

É c’o sapicuá cheio de pito de barro e c’o nariz entupido de


picumã, que tarraco na penosa p’ra te escrever p’ro cê.

Aquerdite que tô co zoio cheio de ramela de tanto pensa em


mecê e na égua.
Durvalina, quando tivé de me mandá presente, não mande rôlo
de fumo, nem jacá de galinha. Se fôr de gosto, diga P’ro Boca de
Cobra mandá a égua, o tacho de cobre, a gamela, baú e o coxo
p’ra égua comê nele, isso tudo por via de mar. Agora, por via de
ar mande rapadura, taiada, saúva torrada, passóca de jabá
socado no pilão e a cadelinha que é de minha estimação.

Desde já agradeço a bela oferta que tive da vitória que me


deram, obrigado, tádito.

Queira pagá, minhas dívida aí p’ro pessoá do Arraiá da Alegria


do Boi.

Aceite do seu noivo um bruto bejo de arrancá torresmo e talo de


côve do vão dos dente.

Mingolé.

Obs.: Esta carta foi censurada e condenada pelo Departamento


de Saúde Pública de Botujurú.7

O fictício Mingolé, presumivelmente um típico “caipira” do interior


paulista, representava bem a ingente quantidade de soldados
humildes, vindos de uma imensidão de municípios e comarcas do
sertão. Muitos veteranos relatam como aqueles convocados de
melhor condição social que tinham algum apadrinhamento
escaparam à incorporação pelos mais diversos meios. A utilização
de recursos escusos não se limitou aos praças. Também oficiais da
ativa valeram-se de subterfúgios para conseguir transferência para
outras unidades não-expedicionárias, como relata José Gonçalves,
comandante do pelotão anteriormente mencionado:

Nos domingos o Estado de S. Paulo trazia a relação dos oficiais


para completar o 6o RI. Quando era no domingo seguinte você
via alterações, tornando sem efeito a transferência desse e
aquele, tal tal. E pondo outros no lugar. Era o jogo da turma que
não queria ir. E que arranjava coberturas aqui, pistolões, e caía
fora. Então não foi fácil completar o efetivo do regimento por
causa disso. Mas isso era no meio do pessoal da ativa. (…) Você
pode, se quiser dar um peso para isso, você põe 20% para o
pessoal da reserva e 80 para o pessoal da ativa.8

Uma possível explicação para a ausência de muitos oficiais da


ativa nas fileiras da FEB provém do relato de um militar profissional,
o segundotenente do 6o RI Gérson Machado Pires, que fez a Escola
Militar do Realengo. Segundo o depoimento de Gérson, ao término
do curso,

Botaram no quadro negro os nomes, pedindo quem ia ser


voluntário para a FEB. O primeiro da turma não quis ir. O
segundo da turma não quis ir. O 15o, esse quis ir. Ninguém da
minha turma tem moral para dizer “não fiz a guerra porque não
me mandaram”. Se não foi, foi porque não quis.9

Apesar do descrédito, da falta de apoio do ministro da Guerra e


do chefe do Estado-Maior do Exército, e das enormes dificuldades
organizacionais, a FEB embarcou sob o comando do general João
Batista Mascarenhas de Moraes, contando com a 1a Divisão de
Infantaria Expedicionária (a 1a DIE, com 15 mil homens) e tropas de
apoio (10 mil homens). Que papel esse contingente desempenhou
na guerra?
Décadas após o conflito, quando os relatórios conservados nos
acervos governamentais já perderam o caráter restrito, ainda não
contamos com um relato de campanha da FEB que utilize a vastidão
de documentos hoje disponíveis para melhor delimitar seu
desempenho tático, ou seja, como uma divisão de infantaria inserida
num corpo de exército. No Brasil, as discussões sobre a atuação da
FEB conferiram excessiva importância à avaliação de fontes
estrangeiras para determinar qual teria sido a relevância de nossa
presença na Itália. Por vezes, isso incorreu na utilização
sensacionalista de documentos, tratando-os como veredictos
inquestionáveis. Se mesmo ações de combate bem documentadas
ocorridas na Europa durante a II Guerra são controversas até os
dias de hoje (como a malfadada operação aerotransportada
empreendida na Holanda em setembro de 1944, ou a negligência
Aliada que permitiu a fuga de grandes efetivos alemães do bolsão
de Falaise na Normandia em agosto do mesmo ano), que dizer das
pouco conhecidas e pequenas escaramuças de um teatro de
operações esquecido que envolveu unidades obscuras nos últimos
dias de guerra, quando a atenção do planeta estava voltada para as
batalhas decisivas da Europa central?
Por exemplo, uma única operação de combate confiada à 1a DIE
foi registrada de maneiras muito diferentes em três relatos
respeitáveis dos dias finais da campanha da Itália. Isso até poderia
ser considerado normal, não fosse o fato de as três narrativas
emanarem da mesma instituição, os registros históricos do Exército
americano. O relato semi-oficial da campanha, publicado em 1948,
From Salerno to the Alps, declara que a cidade de Montese foi
tomada por brasileiros depois de “um forte e acirrado tiroteio”, sob a
mais pesada concentração de artilharia de toda a zona do IV Corpo.
Uma brochura sobre a “Ofensiva da Primavera” publicada pelo
Center of Military History oferece a versão de que “patrulhas
matutinas entraram em Montese (…) sem fazer contato com a 334a
Divisão Alemã” — nesse caso nem mesmo a unidade alemã que
defendia a cidadela foi citada corretamente, tratava-se de fato da
114a Divisão Ligeira.
Casino to the Alps, a “história oficial” do Exército americano,
relega ainda mais o papel de seus aliados brasileiros, afirmando que
Montese teria sido simplesmente “ocupada” por tropa da FEB. É
sabido no meio militar que o termo “ocupação” implica a tomada de
uma localidade sem resistência do inimigo.10
Na perspectiva das referidas obras, a atenção de militares que
escreveram sobre a FEB e historiadores tanto brasileiros quanto
estrangeiros centrou-se nos aspectos mais tradicionais (o que não
significa desimportantes) da história militar. Infelizmente, mesmo a
pesquisa com base nas fontes oficiais acha-se comprometida pela
depauperação de arquivos importantes. Recentemente, parte
considerável do acervo pessoal do general Mascarenhas de Moraes
foi leiloada ou vendida de maneira fragmentada a colecionadores do
Brasil e da Itália. Artefatos e documentação referentes à FEB ainda
existem em diversos quartéis brasileiros, e em vez de ceder ou
vender o material excedente a museus, muitas vezes o equipamento
datado da II Guerra Mundial é simplesmente incinerado ou
destruído, em prejuízo do conhecimento da cultura material do
período.
Se os estudos para aplicação na profissão militar são
incompletos, uma história da FEB que privilegie um viés “de baixo
para cima” é praticamente inexistente.
Por outro lado, é notável que, atualmente, muitos veteranos
demonstrem uma salutar preocupação com o registro de suas
experiências por meio da publicação de seus diários e memórias de
guerra. Costuma-se dizer que o volume de obras sobre a FEB é
diminuto. Entretanto, por havermos contado com apenas uma
divisão de infantaria e tropas de apoio na guerra, a quantidade de
publicações é considerável, sendo difícil no entanto localizar e
organizar um elenco completo de tais obras. Muitos livros foram
publicados sob o caráter de edição de autor, outros até mesmo
produzidos artesanalmente, em pequena tiragem de circulação
muito limitada, por vezes somente dentro do círculo de veteranos.
Se tais obras não possuem caráter historiográfico, elas têm o mérito
de se prestar a fontes não-convencionais produzidas por
protagonistas da campanha. Outro recurso de grande validade é o
de entrevistas com participantes da FEB, orais ou escritas, já que
nem sempre o veterano apresenta disposição ou recursos para
escrever sobre sua experiência, em especial praças e graduados,
parcelas da hierarquia pouco representadas entre os autores de
livros sobre a FEB. Reunidas, suas percepções individuais
possibilitam uma inusitada variável de análise para a compreensão
dos significados da experiência coletiva dos combatentes —
experiência vivida e sentida, pois dificilmente se “representa” a visão
de um companheiro com as pernas arrancadas ou o surgimento de
parasitas sob o uniforme depois de meses chafurdando na terra.
O contato com ex-combatentes, além da aprazível oportunidade
de conhecer em primeira mão os participantes, abre um leque para
o conhecimento de tipos de documentos ignorados na organização
de grandes acervos: é comum que tenham guardadas, entre outras
recordações de campanha, fotografias pessoais com um enfoque da
guerra muito diferente daquele que nos é mais conhecido através
das imagens produzidas pelos correspondentes oficialmente
acreditados às agências propagandísticas; volantes de propaganda
alemães redigidos em português para as tropas brasileiras;
correspondência particular; e uma infinidade de jornais impressos
pelos próprios soldados na Itália.
Uma fonte que auxilia o entendimento das racionalizações
criadas pelos febianos para lidar com a realidade da guerra são as
poesias e canções compostas por soldados, muitas vezes escritas
dentro de seus abrigos individuais no front. Jornais como Cruzeiro
do Sul e …E a Cobra Fumou! tinham seções para que os soldados
pudessem ventilar seu veio artístico. Grande parte dessa produção
não chegou a ser publicada e só pode ser conhecida pela memória
dos ex-combatentes. Parte das canções foi registrada em vinil nos
anos 1960, numa reunião dos antigos componentes de um grupo de
samba do Regimento Sampaio.11 Um dos sambas é especialmente
eloqüente, evocando o moral dos soldados brasileiros nos dias finais
da campanha:

Tedesco levante o braço

E peça paz

Tedesco levante o braço que já é tarde demais

Resolva logo a sua situação

Que lá vai tiro de metralha, de bazuca e de canhão.


Outro samba, lembrado por Antonio Amaru, fuzileiro atirador do
Regimento Sampaio, remete às tensões surgidas entre os
combatentes do front e os soldados dos serviços de retaguarda:

Andar bonito com a roupa toda recortada é lá para os heróis da


retaguarda

Você que é combatente mas não conhece a linha de frente

Só anda bonito e usando o distintivo da Cobra Fumando

Arrume um P.O.12 avançado pra ver o tedesco ser bombardeado

E vê se você se apruma pois na retaguarda a cobra não fuma!

Nem só o bom humor despontava na criatividade dos


expedicionários. Mais comuns são menções ao padecimento nas
posições da infantaria, publicadas na seção “Poetas de Fox-Hole”
de …E a Cobra Fumou! Os versos de Paulo Homem de Mello,
intitulados Profissão de fé, tornaram-se plenos de significado para
muitos veteranos. Homem de Mello assinou o poema como “Saco
A13 da 5a Companhia”. O seguinte trecho faz alusão às condições
de sobrevivência no front:

São vozes muito sumidas,

São vozes entrecortadas

Pelo fragor das granadas

Sobre as linhas brasileiras,

São homens sujos cansados,

Barbudos e enregelados

Na lama-luz das trincheiras.


A dura vivência da linha de frente tornou-se uma das impressões
mais marcantes entre os expedicionários. Outro poeta-soldado, que
se deu a alcunha de “Infante Congelado”, extravasou seu sofrimento
no poema Eh, vida marvada:

O “fox-hole” é uma coisa triste

Prá ser cavado leva a vida inteira

Mas, seu tenente, estou com frieira

Dor de cabeça e pé de trincheira

Infelizmente, a vida é assim

A nossa sina é virar pingüim.

É óbvio que a experiência de combate não se limitou a viver


dentro das trincheiras. Mesmo nos estágios finais da campanha, os
brasileiros tiveram oportunidade de participar de refregas
brutalmente disputadas. Italianos e alemães resistiram com o
máximo de suas capacidades até a assinatura do acordo de
rendição em 2 de maio de 1945.
A partir de seu emprego inicial na linha de frente em setembro
de 1944, o contingente expedicionário viu-se obrigado a desalojar
tropas inimigas de elevações escarpadas. Carregando montanha
acima um fardo de munição em cunhetes de aço juntamente com o
armamento, a carga individual do combatente era de cerca de 25kg.
Até alcançar as posições inimigas em busca de contato, o atacante
deveria precaver-se contra bombardeios, campos minados e bem-
ajustadas rajadas das ultra-eficazes metralhadoras alemãs. Em
algumas ocasiões a FEB se defrontou com tropas de segunda linha,
mas com alguma freqüência os brasileiros se viram frente a frente
com o melhor material humano que o Eixo podia pôr em campo.
Contra-ataques e golpes de mão contra as posições Aliadas eram
geralmente desferidos por tropas de montanha ou infantaria ligeira,
com treinamento e equipamento adequados para o combate em
terreno acidentado.
Como já foi dito, a dimensão dos efetivos não implicava
atenuação das contingências da guerra. O primeiro combate
importante da FEB ocorreu contra a divisão Monterosa e unidades
da 42a Ligeira e 232a de Infantaria (alemãs) em fins de outubro de
1944 na região de Barga, embora no período anterior da campanha
os brasileiros já tivessem sentido o gosto e o cheiro do aço e
pólvora inimigos. Cinco companhias do 6o Regimento de Infantaria
avançaram contra um batalhão de tropa alpina italiana que era
assessorado por graduados e oficiais subalternos alemães. Depois
de uma bem-sucedida infiltração e um tiroteio de armas
automáticas, os brasileiros conseguiram se estabelecer no terreno.
No decorrer da madrugada, alemães e italianos contra-atacaram, e
o combate ocorreu a distâncias tão curtas como 10 ou 15 metros.
Um dos postos de comando de uma companhia brasileira instalado
numa casa teve seu andar superior ocupado pelos alemães.
Retirando as tábuas do assoalho, os atacantes despejavam
granadas de mãopela fresta aberta, e rajadas de submetralhadora
eram trocadas de um cômodo para o outro, pois os tiros
transfixavam facilmente as paredes. No setor de outra companhia, a
munição das armas leves se esgotou, e a última onda do ataque
inimigo foi detida com tiros diretos de bazuca contra a infantaria
adversária. Treze brasileiros caíram prisioneiros, e o 6o Regimento
de Infantaria perdeu cinco soldados.
Em novembro de 1944, a divisão brasileira se encontrava
completa com a chegada dos regimentos do Rio de Janeiro e Minas
Gerais. Estes soldados, sem experiência e treinamento suficientes,
foram enviados para atacar fortificações alemãs na região de Monte
Castello. A infantaria inimiga estava bem abrigada dentro de porões
de casarões de pedra e casamatas de madeira sob o solo.
Avançando em campo aberto, os expedicionários foram alvos fáceis
para os morteiros e metralhadoras que defendiam o monte. Nos
primeiros ataques o inimigo se utilizou também de carros de assalto
com canhões de 88mm que disparavam diretamente sobre os
brasileiros. O fogo que alvejava os atacantes também provinha das
elevações circunvizinhas, e o Castello só cairia em fevereiro de
1945, depois que uma operação em conjunto com uma tropa de
montanha americana de lá despejou os alemães sucessivamente,
até que as trilhas de acesso ao cume do morro estivessem
relativamente livres de tiros vindos de outras posições. O 2o
Batalhão do Regimento Sampaio ocupou a extrema direita do
dispositivo brasileiro e suportou enfurecidos contra-ataques inimigos
que visavam expulsar expedicionários e americanos do terreno
recém-conquistado. Durante as noites subseqüentes à conquista de
Monte Castello, pelotões alemães investiram sucessivamente contra
as companhias do Regimento Sampaio. O combate foi aproximado
e houve uma das únicas oportunidades de emprego de arma branca
em toda a história da FEB. Um sargento brasileiro foi morto com um
golpe de baioneta, acontecimento raríssimo durante a II Guerra.
Mas depois dos meses de inverno, que serviram para adaptar e
treinar a tropa em situações reais, os brasileiros já não eram mais
os novatos recém-desembarcados. Os grupos de combate tinham
sido reforçados com mais armas automáticas, lança-granadas e
bazucas. Combatendo a curta distância e chegando a ponto de
devolver as granadas de mão atiradas pelo inimigo, a infantaria
brasileira conseguiu desbaratar o contra-ataque. Nesse episódio, o
tenente Apolo Miguel Resk, oriundo do CPOR do Rio de Janeiro,
recebeu a distinguished service cross, a segunda maior honraria do
Exército americano (a primeira é a Medalha de Honra do
Congresso, não concedida a estrangeiros).
Depois de Monte Castello a FEB efetuou a varredura das linhas
defensivas subseqüentes, sempre diante das mesmas dificuldades.
É certo que o combate mais acirrado enfrentado pela divisão
brasileira foi a conquista de Montese, pequena cidade situada na
última cadeia de montanhas antes que se descortinasse o vale do
rio Pó e o norte da Itália. Os três regimentos expedicionários foram
empregados, com baixas assustadoras. Uma companhia de
fuzileiros perdeu mais de 50% de seu efetivo num avanço de 100
metros. Cerca de 3 mil soldados alemães defendiam a cidade e
morros adjacentes, que foram atacados pela infantaria brasileira e
blindados americanos. Do topo das colinas que circundam Montese,
tiros diretos de artilharia eram trocados entre alemães e carros de
combate americanos que apoiavam o avanço da FEB. No total a
divisão brasileira sofreu 435 baixas entre mortos e feridos, em
quatro dias de batalha. O casario de Montese era construído
principalmente de pedras, cujos escombros serviram de defesa para
a infantaria alemã abrigada nos porões. Nas elevações adjacentes,
os defensores se abrigaram em casamatas e abrigos subterrâneos,
que os brasileiros precisaram pôr fora de combate com cargas
explosivas atiradas depois de perigosa aproximação.
Os defensores de Montese pertenciam principalmente a uma
divisão ligeira, mas no fim da guerra os alemães colocavam em
linha um amálgama de soldados de todo tipo de unidades,
praticamente pegos à força durante viagens de trânsito na
retaguarda. Nas listas de mortos conservadas na prefeitura da
cidade há registro de soldados da Luftwaffe e Waffen-SS entre os
soldados abatidos por brasileiros. Entre 300 e 400 soldados
alemães morreram defendendo Montese e cercanias.
Nos dias que antecederam a rendição incondicional das forças
alemães e da Itália republicana, a divisão brasileira cercou e
capturou 15 mil combatentes inimigos, que tentavam evadir-se do
envolvimento com carros de combate e furiosos contra-ataques,
como confirmam depoimentos de alguns soldados feitos prisioneiros
na ocasião. A rendição ocorreu nas proximidades da cidade de
Fornovo e foi a última grande ação de combate em que os
brasileiros tomaram parte.
Como a participação na II Guerra Mundial consistiu na única
campanha essencialmente militar do Brasil no século XX, procurou-
se glorificar e valorizar os episódios concernentes à FEB: em
contraste com o desdém das universidades e currículos escolares,
criou-se em nosso país, na esfera das comemorações oficiais, a
idéia de uma força que desempenhou papel preponderante e
decisivo na luta pela Itália.
Embora a 1a DIE brasileira tenha dado conta de seus objetivos,
equiparando-se a outras unidades Aliadas que atuaram na Itália,
mesmo um exame superficial do conjunto de relatórios e obras tanto
dos Aliados quanto do Eixo sobre o teatro de operações do
Mediterrâneo demonstra que ao papel dos brasileiros não se
reserva tanto destaque quanto se tentou propor nas obras aqui
produzidas. A FEB era vista pelos seus aliados e inimigos como
mais uma unidade a ser empregada nos combates, sem nenhuma
especificidade a não ser o fato de os americanos terem a
preocupação de superar as barreiras culturais e lingüísticas e
amenizar eventuais atritos, tendo em vista a política internacional do
pós-guerra. Já os alemães e italianos empregaram contra a FEB
uma maciça campanha de propaganda alertando sobre os riscos do
“imperialismo ianque”: folhetos de propaganda alemães
disseminavam a noção do perigo da ocupação americana no Brasil,
enquanto seus melhores soldados defendiam interesses alheios na
Europa. Portanto, se a presença da FEB na Itália despertou alguma
atenção diferenciada em seus aliados e inimigos, isso tinha a ver
com as tentativas ou de evidenciar ou de conter as possíveis
dissensões de natureza cultural ou política, mas não com a
capacidade combativa da divisão brasileira.
No Brasil, as tentativas de estabelecer uma memória que
avultasse os grandes capitães e feitos no campo de batalha
perderam de vista que, na Itália, os expedicionários quase não
participaram de grandes refregas envolvendo quantidades
consideráveis de soldados. As exceções são os combates por
Monte Castello e Montese, e a arrancada final em direção ao vale
do rio Pó, com a captura da 148a Divisão de Infantaria e unidades
da 90a Panzer Grenadier, da divisão italiana Monterosa e de frações
da Bersaglieri Italia e dos fuzileiros navais da divisão San Marco, em
fins de abril de 1945.
Com maior freqüência, a divisão brasileira foi empregada de
forma fragmentada, em missões que exigiam o empenho de
pequeno número de soldados: alguns pelotões ou companhias de
fuzileiros, no máximo um batalhão, que compreendia quatro
companhias (cada uma com cerca de 190 homens). Dados os
pequenos efetivos, as decisões de combate estavam mais
subordinadas às pequenas lideranças, como chefes de grupos de
combate, pelotões, companhias e batalhões, do que aos escalões
superiores.
Do ponto de vista do soldado de infantaria, as dificuldades a
serem enfrentadas eram tão grandes quanto em ações de combate
de maiores dimensões. Seus testemunhos proporcionam o
entendimento da guerra a partir das vozes emitidas pelos escalões
subalternos.
Assim, de setembro de 1944 até o início de maio de 1945, uma
parcela da juventude brasileira conheceu intimamente o cotidiano de
horror que assolava a Europa.
Entre os veteranos, o reconhecimento das deficiências da
instrução para a campanha é generalizado. Newton Lascaléia,
sargento no comando de uma seção de morteiros de 81mm,
surpreendeu-se ao chegar à região montanhosa onde a FEB
combateu por oito meses:

É tudo diferente; eu, por exemplo, as únicas montanhas que


tinha visto de longe no Brasil foram o Pico do Jaraguá em São
Paulo e o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro. E de repente me vi
lá dentro da cordilheira apenina no meio daquela vastidão de
elevações enormes enfrentando o começo de um inverno
rigoroso. A tarde nos dias de chuva, com aquelas nuvens
negras, já amedrontava e tornava o panorama tétrico. No nosso
treinamento no Brasil nunca se falou em montanha.14

Abrigados em escavações precárias situadas a várias centenas


de metros de altitude, muitas vezes sob uma temperatura de -20°C,
que não era amainada nem mesmo com a parafernália dos
equipamentos de inverno fornecidos pelo Exército americano, os
expedicionários tomaram parte numa azáfama diuturna de vasculhar
terrenos minados, ou se embrenhavam pela paisagem devastada
das montanhas em patrulhas de observação e reconhecimento,
empreendendo golpes de mão contra posições inimigas e vigilância
de postos avançados. As memórias do soldado Vicente Pedroso da
Cruz fornecem uma idéia das dificuldades:

Quando saíamos em patrulhas, vestíamos uma capa de lã e por


cima outra de capuz, double-face, com o lado branco para
confundir na neve. Sob o capacete de aço, um capuz de pele de
coelho, que nos dava proteção contra o frio já beirando os 14
graus abaixo de zero. Entretanto, o agasalho era aconchegante
quando se estava parado, mas, numa patrulha, após ter levado
alguns tombos, o suor brotava pela testa e corria até o queixo,
dando-nos uma sensação de desespero e mesmo vontade de
arrancar tudo aquilo para atirar longe. Nas patrulhas à noite o
silêncio era um fator importante, a caminhada muito vagarosa, e
parecia-me que cada passada devia ser meditada. Aquele
ranger da galocha penetrando na camada de neve fazia a gente
crer que podia ser percebido a alguma distância e não se sabia
se ao se enterrar os pés naquele “talco” não iria tocar alguma
mina.15

Essas atividades eram realizadas sob constante fadiga, com


séria exposição às intempéries e com horários irregulares para os
descansos e alimentação. Em poucos meses, o resultado da
submissão a tais condições era o esgotamento físico e mental.
Durante o inverno de 1944/45, o segundosargento José Maria
Romeu Corrêa registrou em seu diário a preocupação com a
depleção causada nas fileiras:

muitos soldados eram encontrados chorando de frio dentro dos


abrigos, porém viram cair desde a primeira até a última nevada,
sem nunca terem abandonado suas posições. (…) Muitos dias
se passaram, e esperávamos agora pela substituição. Nossos
soldados já haviam sofrido bastante. Permanecer dias e noites a
fio, sentado ou deitado dentro de um subterrâneo, tremendo de
frio, quando sobre este se acumula uma grossa camada de
neve, e com a roupa encharcada, quando a mesma começa a
derreter e a água infiltrando-se na terra, lenta e continuamente,
fazia do abrigo um lodaçal, só se conseguia com bastante força
de vontade; apesar desta não faltar aos soldados, precisavam
eles ser revezados. Porém o tempo passava, e nem sombra de
outra tropa. Foram mandados 35 homens do depósito, para
preencher as vagas dos que estavam baixados ao hospital, e foi
com estes que o capitão resolveu fazer um pequeno
revezamento, e sem prejuízo das posições. Em grupos de quatro
ou cinco, os que estavam na primeira linha eram substituídos e
iam para o local onde ficava a casinha, onde podiam fazer um
pouco de exercício e aí permaneciam uns seis ou oito dias.16

Com 239 dias de ação contínua na linha de frente, a FEB,


embora tenha começado a atuar em combate em meados de
setembro de 1944, foi uma das unidades Aliadas que mais dias
permaneceram em emprego contínuo. Dada a semelhança
organizacional e material, uma comparação com a infantaria do
Exército americano se mostra útil: de 44 divisões empregadas no
teatro de operações europeu (não confundir com o teatro do
Mediterrâneo), apenas 12 permaneceram em combate por mais dias
do que a 1a DIE. No total, os Estados Unidos organizaram 91
divisões durante a guerra.
Outras divisões de infantaria que se encontravam na Itália
também eram novatas no front, como a 91a DI, engajada totalmente
em combate em setembro de 1944, ou a 10a Divisão de Montanha,
que ultimou sua disposição no front somente em janeiro de 1945.17
Das divisões que estiveram em combate por mais dias que a
brasileira, podem ser contadas unidades veteraníssimas, como 1a,
9a, 34a, 36a e 45a, que participaram dos desembarques no norte da
África e dos combates iniciais na península italiana, prosseguindo o
avanço na França, e que sofreram revezamento equivalente a 200%
de seus integrantes. Mesmo divisões americanas consideradas de
primeira categoria, como a 4a e a 29a DI, empregadas em combate
pela primeira ocasião no desembarque na Normandia em 6 de junho
de 1944, ficaram poucos dias a mais do que a FEB na linha de
frente (com 299 e 242 dias de ação respectivamente).18 Esses
números mostram que algumas divisões foram retiradas da linha de
frente para repouso e recebimento de reforços, prerrogativa da qual
a FEB não desfrutou devido à carência de recursos humanos no
teatro de operações do Mediterrâneo. Basta ver que a 29a DI, por
exemplo, passou apenas três dias a mais no combate do que a
divisão brasileira, embora tenha estreado em linha com 100 dias de
antecedência.
No Brasil, anos depois da guerra, a quantidade de
expedicionários baixada aos hospitais por motivos de doença
(baixas fora de combate) foi alvo de especulação a respeito da
incapacidade física da tropa, sem levar em consideração que tais
baixas foram resultado da permanência em primeira linha, na qual
também homens em excelentes condições de saúde eram
drasticamente debilitados.
A precariedade de condições de sobrevivência no front era
apenas um entre muitos obstáculos surgidos na campanha. A
eficácia das armas de fogo e explosivos causava dilacerações
terríveis nos combatentes. O inimigo dispunha de meios para
aniquilar seu adversário sem necessidade de contato visual, a
centenas de metros ou até quilômetros de distância, e até mesmo
semanas ou meses depois de haver passado por uma localidade
posteriormente ocupada por tropa Aliada. Era o caso dos campos
minados, espalhados pelas encostas de montanhas italianas. Eis
um exemplo dos ferimentos de guerra causados no sargento da
FEB Osvaldo D. Santos, atingido em ação em janeiro de 1945 por
fragmentos de granada: Santos perdeu parte dos ossos de todo o
maxilar. A mesma granada vazou seu olho esquerdo e esmagou sua
clavícula e úmero. Seis meses após ter recebido os estilhaços, os
ferimentos ainda não tinham cicatrizado nem calcificado.19
A chance de sofrer desmembramento, mutilação, emasculação,
desfiguramento, queimaduras ou evisceração culminava com a
probabilidade de ter a existência terminada precoce e
dolorosamente. Infelizmente as pesquisas sobre a FEB são tão
ínfimas que nem é possível precisar o número exato de brasileiros
mortos em combate. O número de 465 mortos e desaparecidos em
campanha, divulgado ao término das hostilidades, é conhecido, mas
não inclui aqueles que morreram ainda durante a guerra, entre os
600 feridos recambiados para tratamento em hospitais militares no
Brasil. A esses mortos se deveria fazer justiça, com sua inclusão no
rol de caídos no conflito.
Outros morreram no pós-guerra imediato, em decorrência de
ferimentos, e um detalhe que poucos veteranos gostam de lembrar
é o alto índice de suicídios entre antigos integrantes da FEB. O ex-
combatente Luís Paulino Bonfim atesta:

Uma prima em primeiro grau, que se casou com um cabo do 6o


RI, ficou viúva quatro anos depois dele voltar, passar todo este
tempo entrando e saindo de hospitais psiquiátricos até ir para o
fundo do quintal e meter uma bala na cabeça. Nos dois anos que
eu fui presidente da Anvfeb, sete ex-combatentes aqui do Rio
cometeram suicídio.20

Uma das maiores ofensas que se pode proferir contra um


veterano é atirar-lhe a pecha de “louco de guerra”. Mesmo assim,
sem desejar incorrer em generalizações, os veteranos de pronto
admitem os danos causados pela “neurose de guerra” — chamada
de síndrome do estresse pós-traumático em jargão contemporâneo
— originada não por instabilidade mental, mas pela sujeição a
condições insuportáveis.21 Pesquisas realizadas pelo Serviço de
Saúde Aliado no teatro de operações do Mediterrâneo
consideravam que uma taxa “aceitável” de baixas
neuropsiquiátricas, chamada “razão NP”, estaria na proporção de
uma baixa “NP” para cada cinco baixas fora de combate, lembrando
que uma doença respiratória ou congelamento contraídos no front
não eram tidos como baixas em combate. De setembro de 1944 a
março de 1945, as oito divisões anglo-americanas do V Exército
sofreram 2.583 baixas por motivos neuropsiquiátricos (média de 322
homens por divisão), enquanto a 1a DIE no mesmo período recebeu
314 pacientes em seu posto avançado de neuropsiquiatria.22
Mesmo se a maioria foi dada por recuperada, as seqüelas se
fizeram sentir por décadas após o fim da guerra, como relatou o
soldado Antonio Corrêa, fuzileiro do 11o Regimento de Infantaria:

Quando eu voltei da guerra, eu tinha medo de dormir. Não queria


dormir, porque toda noite eu ia estar novamente na guerra. Ia
sonhar com a guerra! Toda noite, toda noite, toda noite, toda
noite! Graças a Deus passou isso tudo. (…) Mas eu sofri muito,
fiz tratamento de neurose, entende, sofri demais. Mas ainda me
dou por muito feliz, porque muito companheiro meu teve
conseqüências muito piores do que a minha.23

Muitas conseqüências de fundo emocional só viriam a se


manifestar quando o jovem ex-combatente retornava ao lar.
Ocorrências desse tipo são baixas não-contabilizadas entre os
feridos e mortos. Fora do plano familiar e da comunidade de
veteranos, onde as referências sobre a guerra evocam o heroísmo e
glorificam as vitórias, a experiência dos combatentes não ecoou de
forma a se fazer sentir e consolidar uma idéia bem-fundamentada
das preocupações que mais afligiam suas memórias. Por serem os
veteranos um grupo reduzido (25 mil homens diluídos num país de
40 milhões de habitantes quando a FEB voltou da Itália, cerca de 5
ou 6 mil no início do século XXI), sua experiência nunca se
disseminou a ponto de tornar-se socialmente reconhecida. Tal
coletividade é coesa justamente por não poder relacionar suas
experiências com as dos cidadãos comuns, que não passaram pela
situação-limite de uma guerra. Com freqüência, receosos de
horrorizar seus interlocutores, os veteranos suprimem de suas
narrativas as recordações e impressões mais brutais.
Em contraposição, solidificou-se um ideário a respeito da FEB
que remete aos combates por Monte Castello, elevação escolhida
pela retórica institucional para constar como fator de laudação às
Forças Armadas. Tais celebrações nem sempre surtiam o efeito
desejado entre os ex-combatentes.
A insistência com que se comemorou a tomada de Monte
Castello, em detrimento da recordação de outras ações de combate
da FEB, entristeceu muitos veteranos de unidades que não
participaram do ataque vitorioso de 21 de fevereiro. Uma injustiça
teria sido cometida para com grande parte dos expedicionários. É o
que acredita o antigo terceiro-sargento Avestil Justo Ferreira, chefe
de grupo de combate da 4a Companhia de Fuzileiros do 6o
Regimento de Infantaria:

Nas jornadas de 28 e 29 de abril de 1945 com certeza houve


ordens superiores para que não se desse ênfase ao feito do 6o
RI e não se apagasse o “brilho” da tomada de Monte Castello
pelo I Batalhão do 1o RI do Rio. Fiquei muito magoado com
nossos chefes fazendo política com o sacrifício de nossas
vidas.24

O desencontro entre as comemorações oficiais e a recordação


individual demanda a elaboração de um relato de campanha
abrangente e crítico, menos sujeito às divagações da exaltação que
levaram a campanha da FEB à identificação com o regime militar e
a uma contrapartida de iniciativas que se propuseram questionar,
nem sempre de maneira honesta, a atuação da FEB na Itália como
uma forma de atingir o Exército. A apologia da guerra como uma
aventura heróica inspirou uma compreensível desconfiança em
relação aos episódios que circundam a história da FEB, mas a
escolha do tema de pesquisa não predetermina os caminhos que o
historiador pode trilhar. O obscurecimento daquilo que a participação
na campanha da Itália representou para milhares de jovens
convocados é o resultado da indiferença com que a FEB tem sido
tratada.

Bibliografia
ADDISON, Paul; CALDER, Angus. Time to kill: the soldier’s
experience of war in the West, 1939-1945. London: Pimlico, 1997.
BRANCO, Manoel Thomaz Castello. O Brasil na II Guerra Mundial.
Rio de Janeiro: Bibliex, 1960.
BROOKS, Thomas. The war north of Rome. New York: Sarpedon,
1996.
CALDAS, Mirandolino. O posto avançado de neuropsiquiatria da
FEB. Rio de Janeiro: Laemmert, 1950.
CRUZ, Vicente Pedroso da. Os caminhos de um pracinha. O
Expedicionário, v. 95, 1981.
DOUBLER, Michael. Closing with the enemy. Lawrence: University
Press of Kansas, 1994.
FIGUEIREDO, Lima. Grandes soldados do Brasil. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1944.
FISHER JR., Ernest F. Casino to the Alps. Washington: Center of
Military History, 1993.
GONÇALVES, Carlos Paiva. A seleção médica do pessoal da FEB.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1951.
MIRANDA, Antônio Batista de. Guerra: memórias… destino…
Belém: Edição do Autor, 2002.
MORAES, João Batista Mascarenhas de. A FEB pelo seu
comandante. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1947.
POPA, Thomas. Po Valley. Washington: Center of Military History,
1998.
STARR, Chester. From Salerno to the Alps. Washington: Infantry
Journal Press, 1948.
VAN CREVELD, Martin. Fighting power: German and US Army
performance, 1939-1945. Westport: Greenwood, 1982.
WILTSE, Charles M. Medical service in the Mediterranean and minor
theaters. Washington: Office of the Chief of Military History, 1965.
* Doutor em história pela USP.
1 Gonçalves, 1951:91.
2 Ibid., p. 125-142.
3 Ver Figueiredo (1944:258).
4 Ver Miranda (2002:69) .
5 Ver Branco (1960:80).
6 Estatística obtida pela contagem dos oficiais listados no relatório de
campanha da FEB; ver Morais (1947:274-279).
7 …E a Cobra Fumou! Estacionamento em Porreta Terme, Itália, 31 jan. 1945.
8 Entrevista ao autor, Barueri, 2002.
9 Entrevista ao autor, São Paulo, 1995.
10 Ver, respectivamente, Starr (1948:401); Popa (1998:110); e Fisher Jr.
(1993:476). É interessante observar que a narrativa mais antiga, quando a
memória da campanha era mais vívida, é a mais próxima das versões
brasileiras do episódio.
11 20 anos depois, expedicionários em ritmos (Rio de Janeiro, Chantecler
Discos, CMG 2397, 1965).
12 Posto de observação.
13 Saco A é uma referência aos dois sacos de transporte de roupas
distribuídos aos febianos. O saco A acompanhava o soldado até a cozinha de
sua companhia; o saco B, com itens de importância secundária, era
armazenado na retaguarda. Logo, os combatentes de infantaria assumiram o
apelido de “Saco A”.
14 Depoimento escrito, São Paulo, 2000.
15 Cruz, 1981:13.
16 Diário, 5a Companhia (II Batalhão, 6o Regimento de Infantaria, FEB, Itália,
1944/45).
17 Ver Brooks (1996:83).
18 Ver Doubler (1994:236-237).
19 United States Military Attaché. Example of FEB war injuries. Rio de Janeiro,
22-6-1945 (Arquivo Histórico do Exército).
20 E-mail ao autor, mar. 2002.
21 Há quem questione a legitimidade da exaustão mental como baixa de
combate. Van Creveld (1982:95-96) sugeriu que o alto índice de baixas
psiquiátricas no Exército americano originou-se parcialmente da
permissividade em retirar do front os combatentes afetados — sem avaliar
que os efeitos de tais baixas ultrapassaram por muitos anos o fim da guerra.
Estudos demonstraram que a taxa de afetados por exaustão era maior entre
aqueles que não tinham revelado predisposição para distúrbios durante o
processo de seleção dos convocados; ver Addison e Calder (1997:151).
22 Ver Wiltse (1965:452). A respeito do tratamento de baixas por “neurose de
guerra” na FEB, ver Caldas (1950). O dr. Caldas distinguiu-se após a guerra
por ser um dos primeiros a reconhecer a necessidade de assistência
especializada aos veteranos da FEB.
23 Entrevista ao autor, São Paulo, 1994.
24 Carta ao autor, Marília, 17-8-2001.
CAPÍTULO 14

Os veteranos da FEB e a sociedade brasileira

Francisco César Alves Ferraz*

Na historiografia brasileira, são relativamente poucos os


estudos que abordam a participação brasileira na II Guerra Mundial.
Desses, a maioria concentra-se nas implicações políticas internas e
externas que tal participação proporcionou. Apenas recentemente o
espectro da pesquisa tem sido ampliado, com estudos discorrendo
sobre a preparação e organização das forças militares brasileiras, o
front interno, as relações étnicas, as memórias de guerra dos ex-
combatentes e o comportamento dos soldados brasileiros em
combate. No entanto, continuam raros os estudos sobre o que
aconteceu com os “pracinhas” — termo pelo qual ficaram
conhecidos as praças e os oficiais subalternos da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) que lutaram ao lado dos Aliados na
II Guerra Mundial — depois de seu retorno ao país.1
A FEB compunha-se de aproximadamente 25 mil jovens
brasileiros que foram transformados em cidadãos-soldados para
combater as forças do Eixo, na campanha da Itália, entre 1944 e
1945. Eles constituíram a única força combatente da América Latina
no continente europeu. Encerrado o conflito, foram desmobilizados,
e a maioria dos expedicionários, composta de civis recrutados,
procurou retornar às relações sociais e profissionais que tinham
quando de sua convocação.
O objetivo deste capítulo é compreender a trajetória de vida
desses combatentes após o final da II Guerra Mundial. Que
aconteceu com os “pracinhas” depois da guerra? Qual o impacto da
guerra em suas vidas? Que tipo de relações travaram com a
sociedade brasileira? Que respostas receberam do Estado, das
Forças Armadas, da sociedade? Como desenvolveram a memória
social de sua participação na guerra? Apesar de todas essas
questões estarem interligadas, o problema da difícil reintegração
social e material de praças e oficiais da reserva, depois do retorno
da campanha da Itália, receberá aqui maior destaque, pois o embate
entre os veteranos cidadãossoldados — pelo reconhecimento de
seus direitos ao amparo e à própria memória — e os órgãos de
governo e a sociedade mostra um espaço de conflito ao qual poucos
prestaram ou prestam atenção. As formas com que tais conflitos
foram resolvidos ou protelados oferecem, por sua vez, um quadro
vivo das dificuldades históricas para o exercício pleno da cidadania
e dos direitos no Brasil, em face dos costumes seculares do
clientelismo e do favor, de um lado, e da violência mais ou menos
velada, de outro.

Veteranos de guerra: um problema social e político


Desde a institucionalização generalizada da conscrição universal
masculina, a partir do final do século XVIII, na Europa, o serviço
militar obrigatório substituiu as diversas formas de recrutamento
existentes, incorporando aos deveres da cidadania o encargo de
soldado. Todo cidadão seria, potencialmente, um soldado da pátria.
Essa transformação conferia pelo menos três vantagens aos
Estados nacionais emergentes das crises do Antigo Regime:
proporcionava efetivos em quantidade abundante para a guerra
moderna; abria a ascensão para o oficialato através do mérito,
quebrando o monopólio aristocrático; e, não menos importante,
contribuía para instituir o culto à pátria, pela qual as massas de
cidadãos-soldados poderiam sacrificar suas próprias vidas.
Por seu turno, o mesmo Estado nacional que exigia o dever
militar de seus cidadãos se comprometia a certas contrapartidas.
Recrutar o cidadão significava tirá-lo de seu trabalho e, portanto,
ameaçar seu sustento e o de sua família. Ao Estado caberia então
armar, treinar, alojar, alimentar e vestir os recrutados, bem como
pagar-lhes soldos, enquanto estes estivessem sob sua
responsabilidade. A saúde dos soldados, durante sua mobilização,
estaria também a seu encargo. Em caso de falecimento ou
invalidez, deveria o Estado indenizar a família do conscrito. Dessa
maneira, ao cobrar o “tributo de sangue”, o Estado comprometia-se
a restituir à sociedade o mesmo cidadão que ingressou em suas
fileiras, ou pelo menos indenizá-la pelo seu sacrifício.2
No entanto, a compreensão desses deveres recíprocos, embora
aparentemente justa, levou mais de um século para consolidar-se.
Somente após as grandes guerras de massas de conscritos, no
século XX, com o retorno à vida civil de milhões de cidadãos-
soldados, é que seus dramas de reintegração social e material
chamaram definitivamente a atenção dos Estados nacionais e suas
sociedades. Foi uma adaptação difícil, que teve seu ponto mais
crítico no período posterior à I Guerra Mundial. Os ex-combatentes,
principalmente na Europa, tornaram-se força social e política de
relevo. Multiplicaram-se as associações de veteranos de guerra,
reunindo milhões de cidadãos que reivindicavam desde a melhoria
de suas situações pessoais até a participação ativa nas políticas
públicas, por tê-las defendido com o sacrifício do próprio sangue e
do de seus companheiros tombados. Crescia também a pressão
para que os benefícios e/ou indenizações fossem extensivos a todos
os combatentes, implicando, além de pensões pecuniárias,
programas mais consistentes de reintegração social. Como principal
conseqüência, a II Guerra Mundial mal havia começado e os
governos das principais nações beligerantes já estavam planejando
o que fazer, no futuro, com as massas de cidadãos-soldados
transformados em ex-combatentes.3
Esta realidade estava muito distante da brasileira. Assim como a
guerra, os procedimentos modernos do pós-guerra também eram
uma novidade para a organização militar do país. Quando seus
jovens foram convocados para o conflito, inaugurava-se um novo
tipo de estrutura organizacional para o Exército: a de cidadãos que
são convertidos em soldados para lutar pela pátria. Essa estrutura
era nova nas forças militares brasileiras, apesar da experiência
havida na Guerra do Paraguai. Nesta, para estimular o alistamento,
o Império prometia compensações ao final das hostilidades, como
pensões especiais para veteranos incapacitados, para os herdeiros
dos mortos, bem como preferência na disputa por empregos
públicos e lotes de terra para todos os combatentes.4
Uma vez encerradas as hostilidades, ficou evidente que as
promessas e as leis não teriam muita validade. Em 1914, ou seja,
45 anos depois de encerrado o conflito, um levantamento do
Ministério da Guerra contabilizou que, dos mais de 69 mil
combatentes, apenas 3.648 obtiveram alguma reparação ou
benefício do governo. A imensa dívida contraída pelo governo
imperial para custear a Guerra do Paraguai esgotara as reservas
nacionais. Cortes drásticos atingiram todos os ministérios, em
especial os militares. As pensões para viúvas, órfãos e ex-
combatentes mutilados deixaram de ser pagas. Mas não se tratava
apenas de um problema de cofres públicos vazios. As leis tinham
sido feitas, mas não havia condições nem disposição para cumpri-
las. Poucos lotes de terra foram concedidos, em sua maioria
distantes e sem os insumos necessários para seu aproveitamento. A
preferência na ocupação de empregos públicos também não foi
respeitada. Oficiais militares protestavam contra o que entendiam
ser um descaso e uma injustiça.5
Assim, a experiência brasileira de reintegração social do ex-
combatente da maior guerra externa da história do país havia sido
desastrosa e ineficiente. Na prática, não se concebia, seja no
aparelho de Estado, seja nas elites, seja na população em geral, o
combatente como um cidadão em armas pela nação. A tradição do
recrutamento forçado e a visão generalizada de que o serviço militar
era mais um castigo do Estado do que uma prestação de serviço do
cidadão contribuíram para fazer dos combatentes e, depois, ex-
combatentes grupos desprezados ou mesmo temidos pela
sociedade habituada a ver neles os desordeiros revoltados ou a
malta perigosa das ruas.6
Quando, décadas depois, foi necessário convocar os cidadãos
para combater em outra guerra externa, os problemas
reapareceram. O serviço militar fora instituído para todos os
cidadãos desde 1916, mas o processo de recrutamento e seleção
continuava a visar principalmente as classes trabalhadoras pobres
do campo e da cidade. O Exército pagava mal e freqüentemente
com atraso, prejudicando assim aqueles que não conseguiam ou
não podiam fugir ao “tributo de sangue”. E somente atraía os mais
pobres e menos instruídos, que viam nos quartéis a garantia mínima
de emprego, alimentação e abrigo. Os empregadores, por sua vez,
tinham reservas em contratar jovens em idade de recrutamento.
Essa situação refletiu-se na formação da FEB. O objetivo dos
exames físicos e intelectuais era selecionar uma elite de brasileiros
para combater na Europa. Contudo, se em tempos de paz as
classes mais altas e escolarizadas da sociedade já usavam todos os
expedientes à mão para eximir-se do recrutamento, na formação
das tropas expedicionárias esses recursos foram usados à
exaustão. “Padrinhos” poderosos conseguiam a dispensa de seus
protegidos, ou pelo menos o remanejamento deles para unidades
não-expedicionárias. Mesmo dentro da instituição militar, cuja razão
profissional de existência era a preparação para uma eventual
guerra, foi comum praças e oficiais regulares escaparem da guerra
através dos mesmos expedientes clientelistas do meio civil. O
resultado foi a formação de uma tropa expedicionária composta, em
sua maioria, de soldados pobres, com escolaridade baixa e com
pouca motivação inicial para o combate, dado o escasso
conhecimento, nas tropas recrutadas, das razões de lutar contra o
Eixo.7
Fora dos quartéis, o comportamento em relação aos convocados
seguiu o mesmo tom. Mal havia começado a formação das tropas
expedicionárias, e já os casos de desrespeito às leis de convocação
se avolumavam. Pela lei, fosse ou não para guerra, o convocado
teria direito, depois de desmobilizado, a retornar ao emprego que
deixara no momento da convocação, devendo receber do
empregador 50% de sua remuneração enquanto estivesse
licenciado.8 Muitos empregadores, burlando a lei, demitiram seus
empregados convocados, o que obrigou o governo a prescrever
multas e punições aos patrões transgressores.9 Tal problema
causou preocupação ao chefe do Serviço Psiquiátrico do Exército,
major Mirandolino Caldas, que em relatório datado de 16 de
novembro de 1943 advertiu às autoridades que a insegurança
resultante do não-cumprimento da legislação prejudicaria muito o
moral da tropa que iria para a guerra. Argumentava o oficial que
dificilmente um cidadão comum, transformado em soldado da pátria,
teria motivação para a luta sem a garantia de que sua vida poderia
ser retomada quando a guerra acabasse, ou de que sua família
seria amparada, caso morresse ou ficasse inválido.10
Assim, após sumários exames médicos e psicológicos e escasso
treinamento de combate, os convocados embarcaram para a Itália,
em vários escalões, a partir de 18 de julho de 1944, totalizando
25.334 homens, dos quais 15.069 em unidades efetivamente
combatentes.
Na Itália, os expedicionários foram integrados ao V Exército,
uma composição multinacional de tropas, sob comando e
organização norte-americanos. O contato com os cidadãos-soldados
de outros países e as necessidades da própria guerra mostraram
aos expedicionários brasileiros um novo modelo de exército, menos
autocrático, composto de cidadãos-soldados mais conscientes de
seu papel na guerra, e cujo rigor na emissão e cumprimento de
ordens priorizava a eficiência em combate. Esta cultura militar era
bem diferente daquela vivenciada no “Exército de Caxias”, no qual a
superioridade hierárquica e suas emanações resultavam na
tiranização do praça às vontades e ordens nem sempre justificáveis
dos oficiais. Assim, o “Exército da FEB”, como ficou conhecido entre
os expedicionários, contrastava com o “Exército de Caxias”, que
ficara no Brasil e cujo treinamento para a guerra tinha pouca
utilidade para o tipo de combate a ser travado nas montanhas
italianas.11
Nos Apeninos, a maioria das unidades combatentes teve de
aprender a lutar na prática, no fogo das missões. Superando esses
obstáculos e mesmo a descrença de alguns oficiais do próprio
Exército brasileiro — que preferiram criticar de camarote, no Brasil
—, os expedicionários amadureceram nos reveses e aos poucos
conquistaram vitórias contra os alemães e o respeito das lideranças
aliadas no teatro de operações italiano. Voltariam vitoriosos, contra
todas as dificuldades. Estas não foram poucas. Além de ter de
superar, durante o combate, as deficiências materiais e
organizacionais típicas de uma força armada de um país periférico,
amargaram 465 mortes e sofreram 11.617 baixas, das quais 2.722
por ferimentos e acidentes, e 8.895 por doenças ou outros
motivos.12 Restava, agora, resolver o problema da desmobilização e
reintegração social dos que voltavam da guerra, bem como do
amparo aos familiares daqueles que tombaram em combate ou nele
ficaram incapacitados. Como puderam logo perceber, o problema
não era apenas administrativo, mas fundamentalmente político.

O caráter político da dissolução da FEB


Quando a vitória estava assegurada, no final de abril, alguns
oficiais e praças já se preocupavam com o retorno ao país. Mas
nem todas as preocupações eram iguais. Para muitos oficiais do
Estado-Maior da Divisão Expedicionária, a FEB teria importância
política determinante, ainda mais porque as notícias que recebiam
indicavam que o Estado Novo agonizava e que haveria eleições
para a sucessão de Vargas. Apenas uns poucos, como o
comandante da FEB, general Mascarenhas de Moraes, preferiam
ficar à margem de tais conjecturas. A imprensa brasileira, cada vez
mais liberada da censura do regime, propagava a FEB como
símbolo das “tropas da democracia” e sublinhava a
incompatibilidade entre uma tropa que “derrotou o fascismo” e a
ditadura doméstica. Criava-se, assim, grande expectativa para o
retorno dos expedicionários ao país, especialmente os oficiais, na
maioria opositores do regime.13
Há nessa questão uma controvérsia historiográfica que merece
alguns comentários. Durante muito tempo acreditou-se que Vargas
temia a volta da FEB porque isso poderia apressar o fim de seu
regime. Explicava-se assim a desmobilização feita às pressas,
ordenada pelo Ministério da Guerra quando a FEB estava ainda
embarcando seu primeiro escalão de retorno, no dia 16 de julho de
1945. Todavia, estudos mais recentes salientam que as maiores
desconfianças em relação aos expedicionários não partiram de
Vargas ou de seus aliados, mas das principais autoridades militares
brasileiras, os generais Dutra (ministro da Guerra) e Góis Monteiro
(chefe do Estado-Maior do Exército), e de setores políticos que
teriam mais a perder com a livre expressão política dos “pracinhas”
do que Getúlio Vargas.14
A ameaça que os expedicionários da FEB poderiam proporcionar
à ordem política de então, fosse essa ameaça simbólica (“os
combatentes da democracia”) ou efetiva (grupo mobilizado, unido e,
acima de tudo, armado), havia chamado a atenção de Dutra e Góis
Monteiro. A oposição “oficial” a Vargas, concentrada na recém-
criada União Democrática Nacional (UDN), anunciava abertamente
que, com a vitória da FEB contra o nazifascismo, não havia mais
razão para a manutenção de Vargas no poder. Por outro lado, as
lideranças militares e políticas acompanhavam preocupadas a volta
dos comunistas às ruas e aos comícios, cujos discursos
sublinhavam, para praças e estádios lotados, que a FEB expressava
a luta antifascista e que seus membros, quando retornassem,
continuariam a luta do proletariado contra o que sobrasse do
fascismo brasileiro e dos seus aliados conservadores, antigos
sócios e fiadores da ditadura do Estado Novo que de modo
oportunista se colocavam agora na oposição a Vargas.15 Vários
grupos políticos, portanto, competiam pelo simbolismo político que a
FEB poderia proporcionar.
Para evitar o envolvimento político dos expedicionários, fossem
eles oficiais ou praças, os procedimentos da desmobilização da FEB
foram sumários. A autoridade das tropas expedicionárias, já
desarmadas, foi passada para o comando do Exército no Brasil,
antes mesmo de os navios-transporte carregados de soldados
chegarem ao país.16 Após os desfiles e cerimônias festivos, os
expedicionários deveriam aguardar nos quartéis da capital federal a
dispensa, com a percepção dos direitos e a passagem para casa.
Deu-se-lhes um prazo limite de oito dias para usar uniformes e/ou
distintivos da FEB. Proibiram-nos, ainda na Itália, de emitir
comentários sobre a FEB e a guerra, sem autorização do Ministério
da Guerra.17 O conjunto dessas medidas objetivou “quebrar” o
impacto político que a chegada da FEB poderia proporcionar,
envolvendo a instituição militar diretamente.
A estratégia deu resultado. Poucos meses depois de iniciado o
retorno dos expedicionários, Góis Monteiro explicitou os objetivos da
desmobilização acelerada da FEB ao comentar, em reunião com
oficiais-generais no Rio de Janeiro, que a ordem social e política
havia sido garantida com o licenciamento rápido dos convocados,
evitando assim que a massa de expedicionários pudesse ser
envolvida pelos comunistas, cada vez mais próximos de Vargas.18
Este, baseando sua manutenção no poder na mobilização das
massas populares, perdeu o apoio do principal fiador do regime, o
Exército, e por ele foi deposto, em 29 de outubro de 1945. Os
expedicionários já estavam nos seus lares, cuidando de suas vidas,
e não tiveram qualquer participação no golpe militar. Mesmo entre
os oficiais febianos, o único que, entre os articuladores da queda de
Vargas, pertencera à FEB foi o general Cordeiro de Farias. Mesmo
ele, em depoimento oral, reconheceu que somente os militares e
políticos que se encontravam no Brasil poderiam articular a
derrubada de Vargas.19
Por outro lado, se a maioria dos oficiais regulares e da reserva
se opunha ao Estado Novo e ao seu líder, o apoio da maioria da
FEB (o grosso da tropa, formado por praças e oficiais subalternos) a
Vargas ficou evidente nas festividades de recepção dos
expedicionários. Estas constituíram-se em verdadeira celebração do
prestígio de Getúlio, que via nos soldados da FEB apoiadores fiéis,
em vez de tropas prontas para derrubá-lo.20
Portanto, os procedimentos de desmobilização apressada,
dirigidos pela cúpula militar brasileira, podem ser explicados pelos
perigos políticos potenciais que o retorno dos expedicionários
implicava: a ameaça que representava para o “Exército de Caxias”
esse novo tipo de exército, o “Exército da FEB”, mais profissional,
liberal e democrático; o medo de que os oficiais febianos pudessem
tornar-se o fiel da balança político-eleitoral; e principalmente, o
temor de que os expedicionários, entre os quais Vargas desfrutava
de grande popularidade, pudessem apoiá-lo e empolgar a
população para soluções diferentes daquelas do pacto conservador
das elites políticas brasileiras para a sucessão de Vargas (leia-se,
ou Dutra ou Eduardo Gomes).
Contudo, os expedicionários, em sua maioria esmagadora,
estavam tão alheios às idas e vindas da política quanto o estavam
dos motivos que os levaram à guerra. Para eles o retorno ao Brasil
tinha outro sentido. Significava a volta ao calor familiar e à vida
cotidiana em tempos de paz. Aguardavam com ansiedade o
desembarque no Brasil, para retomar suas vidas civis.

Das festas ao esquecimento


A chegada dos pracinhas ao Rio de Janeiro causou comoção
popular. Um verdadeiro carnaval de boas-vindas os esperava, e o
entusiasmo tomou conta de todos. O mesmo acontecera nas outras
cidades. Reforçando a empolgação, havia ainda o pagamento dos
soldos devidos e do terço de campanha, o que fazia qualquer
pracinha sentir-se no melhor dos mundos: vitorioso, coberto de
glórias e bem abonado.21
Aos poucos, porém, o entusiasmo popular decresceu, e com o
passar do tempo “ninguém mais se interessava pelas histórias de
guerra”. Quando havia curiosidade sobre a vida cotidiana no front,
ela revelava antes desconfiança sobre a “vida boa” em que
supostamente os combatentes viviam do que interesse nos
momentos mais tensos ou dolorosos. O resultado de meses sob
regime de alimentação reforçada e balanceada que lhes fora
fornecida pelos americanos não passou despercebido. “Voltaram até
mais gordos! Devem ter é ficado na sombra e água fresca!”,
começavam a dizer alguns populares, fazendo seus os preceitos
tácitos do antigo Exército de Caxias, no qual a rigidez do soldado
deveria ser medida pelas condições mais abjetas e precárias de
sobrevivência em combate.22 O dinheiro também se esvaiu rápido
para os pracinhas:

Somando-se o Fundo de Previdência, o soldo correspondente ao


último mês e as economias em liras, depositadas na Itália antes
do embarque, cada soldado tinha cerca de 10 mil cruzeiros, os
cabos e sargentos um pouco mais. Não dava para se arrumar na
vida, mas bastava perfeitamente para encomendar dois ternos
de casimira e cair na farra… Angústias e privações, aflições sem
conta, desapareciam num turbilhão feito de embriaguez alcoólica
e satisfação sexual. (…) Muitos esbanjavam aquele pecúlio com
um açodamento que tinha algo de contrição religiosa. Era como
se não quisessem conservar o dinheiro maldito, como que
manchado de sangue.23

Para piorar as coisas, os anúncios grandiloqüentes das


autoridades de que os “heróis” da pátria receberiam inúmeras
vantagens e benefícios — que não passaram de bravatas —
aumentaram mais ainda a desconfiança de que esses indivíduos já
estavam querendo demais.
Na verdade, seus anseios eram mais modestos. Primeiramente,
retomar sua vida. Voltar àquele emprego de antes da guerra ou, no
caso de ter sido convocado quando estava desempregado,
conseguir um novo. Recuperar a rotina familiar e social, viver
novamente. Porém, eram homens diferenciados, que passaram
meses em um outro ambiente social, falando outra linguagem,
pensando em outras coisas, vivendo outra vida. Como lembrou o
soldado Joaquim Xavier da Silveira, não bastava preparar o
combatente para retomar sua vida na paz (o que não fora feito):
também não havia, por parte da população, informação ou preparo
para perceber que aqueles homens que voltaram aos lares já não
eram mais os mesmos. Não tardaram os conflitos, no emprego, nas
famílias, na sociedade.24
Os problemas começaram pelas medidas oficiais de
desmobilização. Embora compartilhassem com a máquina de guerra
americana as lições de planejamento e execução de todas as fases
de combate, as autoridades militares brasileiras não planejaram
nenhuma política de reintegração social de seus veteranos.
Enquanto nas demais nações aliadas as tarefas de reconversão
material e humana para os tempos de paz já eram estudadas desde
o início da guerra, no Brasil praticamente nada havia sido feito de
concreto para a reintegração social e material dos ex-combatentes
brasileiros. O Estado-Maior da FEB no interior limitou-se a realizar
estudos e planejamentos apenas para os procedimentos de
desmobilização e licenciamento das tropas expedicionárias.25
Se não bastasse a falta de planejamento, havia ainda flagrante
má vontade com a FEB por parte de algumas autoridades do
governo. Dentro da instituição militar, os oficiais que preferiram
permanecer no Brasil (por interesses políticos, receio de arruinar a
carreira num possível revés militar, ou mesmo covardia) temiam ser
preteridos nas futuras promoções pelos oficiais e praças
expedicionários, que podiam exibir experiência em combate real,
condecorações e promoções conquistadas no front. A recepção dos
militares febianos regulares nos quartéis foi fria e até mesmo hostil.
Por seu turno, a cúpula da hierarquia militar brasileira contribuiu
para as dificuldades dos militares febianos, destacando-os para
guarnições distantes e não desenvolvendo nenhuma forma de
aproveitar a experiência dos combatentes, únicos então na América
do Sul com experiência da guerra moderna. As lições do front
europeu foram desprezadas, junto com seus possíveis instrutores.26
Muitos militares febianos reclamavam que, no dia-a-dia dos
quartéis, eram hostilizados pelos seus pares que não foram à
guerra. Suas queixas aumentaram com a prática cada vez mais
freqüente das autoridades de conceder aos militares não-febianos
— ou seja, os que ficaram no Brasil nas missões de defesa do litoral
ou mesmo no sossego dos quartéis do interior — os benefícios e
direitos que antes eram privativos daqueles que combateram na
Itália. Essa “carona”, inicialmente limitada aos militares de carreira,
com o passar dos anos foi estendida ao mundo “civil”, através das
leis que ficaram conhecidas como “da praia”.27
Contudo, embora considerassem injusto o tratamento que
recebiam nos quartéis, os militares febianos podiam ainda contar
com uma carreira segura, pensão integral na reforma e atendimento
médico e psicológico formalmente garantidos. Os expedicionários
civis, ao contrário, sem a proteção institucional do Exército, tiveram
de lidar com problemas bem mais graves. Deveriam reintegrar-se à
vida cotidiana em uma sociedade que não vivenciara os horrores da
guerra que eles lutaram e que não estava preparada para recebê-
los tão diferentes do que eram quando haviam partido.

A volta à vida civil


Nas primeiras semanas após o retorno, praticamente todos os
expedicionários que realmente estiveram na frente de combate
sentiram, em maior ou menor grau, de modo efêmero ou
permanente, dificuldades no convívio social com a população não-
combatente. Esse fenômeno ocorreu em todos os países e guerras
que utilizaram massas de cidadãos-soldados em combate. As
guerras, com seus permanentes riscos de vida e a necessidade de
matar o inimigo, deixam traumas físicos e psicológicos indeléveis.
Nos países em que as guerras de massas mobilizaram milhões de
cidadãos, a reintegração constituiu-se em problema nacional. No
caso brasileiro, dado o número insignificante de expedicionários,
comparado à população total (0,06% do total), esperava-se que o
veterano se adaptasse à sociedade, e não o contrário.
As trajetórias dos veteranos brasileiros foram variadas. Os que
possuíam formação escolar e/ou habilitações profissionais
encontraram menores dificuldades, bem como os expedicionários
vinculados a algum emprego público antes da guerra. Esses, porém,
constituíam uma minoria.
O grosso do contingente expedicionário deparou-se com o medo
do desemprego (os patrões eram obrigados a readmitir seus
empregados mobilizados, mas logo os demitiam, sob alegação de
desajustamento, incompetência profissional, neurose etc.). As
dificuldades de conseguir um emprego foram potencializadas pelo
fato de a maioria dos expedicionários ter sido recrutada justamente
na idade de aprendizagem de uma profissão. Sem capacitação
profissional definida, tinham de enfrentar um mercado de trabalho
recessivo, em desigualdade de condições com os que ficaram no
país.28
Muitos ex-combatentes, portadores de ferimentos ou doenças
contraídos na Itália, tinham de enfrentar toda a má vontade
burocrática para provar sua incapacidade. O caso do soldado Nagib
Salomão, do 11o Regimento de Infantaria (um dos três regimentos
que compuseram a Divisão Expedicionária), foi um dos mais
notórios. Na vida civil, antes da convocação, trabalhava num
laticínio, no interior de Minas Gerais. Durante a guerra, foi ferido
gravemente por uma explosão de mina, que lhe tirou a visão de um
olho e lhe deixou apenas a visão parcial do outro, perfurado por
estilhaço e salvo quase milagrosamente por intervenção cirúrgica.
De volta ao laticínio, não podia exercer sua função, que exigia
acuidade visual no controle da pasteurização. Requereu, então,
pensão de incapacidade, como previsto em lei. A burocracia militar
não lhe concedeu a incapacidade porque não estava cego dos dois
olhos. Levou anos na luta por ter reconhecida sua deficiência, o que
só conseguiu graças a uma carta que escreveu à esposa do
presidente da República, sra. Darci Vargas, pedindo-lhe que
intercedesse por ele. Anos depois, sua pensão de incapacitado foi
publicada no Diário Oficial.29
Histórias de veteranos reduzidos à mendicância ou aos favores
de parentes, enfrentando a incompreensão dos desajustes de sua
sociabilidade, se repetiam às centenas, contadas por veteranos e
jornalistas, ao longo dos anos.30 De todos os casos, talvez o mais
chocante tenha sido o do combatente Liberato José dos Santos,
encontrado morto em 1975, num terreno baldio na cidade de
Olímpia, interior de São Paulo, com o corpo em adiantado estado de
decomposição. Considerado indigente, foi sepultado em vala
comum. Somente meses depois foi encontrado um saco plástico
com pertences do morto, entre os quais uma medalha de
combatente da FEB, uma plaqueta de identificação de soldado (dog
tag) e dois certificados expedidos pelo Ministério da Guerra e cuja
numeração permitiu finalmente identificá-lo. Segundo as memórias
do veterano Leonércio Soares:

em condições semelhantes, morreram milhares… Somente em


Curitiba, onde os ex-combatentes tiveram acolhida das
melhores, foram sepultados cerca de 200. E, esclareça-se: 200
identificados pelo secretário de assistência da Legião Paraense
do Expedicionário.31

À parte exageros numéricos, o problema realmente existia e era


denunciado pelas associações e pela imprensa.

As associações de ex-combatentes
Logo depois do retorno, as queixas aumentaram, e a idéia de
criar associações de ex-combatentes, cogitada ainda na Itália, foi
retomada. Em 1o de outubro de 1945, foi fundada no Rio de Janeiro
a primeira associação de ex-combatentes do Brasil. Outras foram
criadas, de maneira espontânea, em várias cidades do país.
Inicialmente, essas associações eram dirigidas, na maioria, por
praças e oficiais subalternos da reserva.
As associações tinham outras importantes atividades, além de
intermediar queixas. Eram centros de convivência social dos
veteranos e de suas famílias, proporcionavam esclarecimentos
sobre os direitos dos afiliados, realizavam encontros e congressos
periódicos, promoviam visitas a escolas e outras instituições
culturais para divulgar a memória da participação brasileira na
guerra, editavam jornais e boletins informativos, organizavam
homenagens, desfiles, coleta de fundos para construção de
monumentos comemorativos e museus, ofereciam cursos técnicos
para os afiliados e seus familiares. Vigilantes, ocasionalmente
denunciavam organizações e manifestações nazifascistas, como as
editoras que na década de 1980 publicavam obras “revisionistas”,
de cunho anti-semita. Promoviam também jantares e eventos
sociais em suas sedes. Organizavam viagens para as localidades
italianas em que haviam combatido (o que obviamente só poderia
ser feito por veteranos com maior poder aquisitivo). Até hoje
desempenham todas essas atividades. Desde seus primórdios,
estão filiadas ao Conselho Nacional das Associações de Ex-
combatentes do Brasil, com sede no Rio de Janeiro. Este conselho,
por sua vez, é filiado à Federação Internacional de Ex-combatentes.
Os primeiros anos dessas associações foram tumultuados. As
disputas políticas, agravadas pelos ecos da Guerra Fria, acabaram
por dividir a associação, que até então agregava combatentes de
todos os credos partidários. O primeiro sinal de cisão apareceu na
primeira Convenção Nacional das Associações, em 1946, no Rio de
Janeiro. Autoridades do governo federal e da prefeitura do então
Distrito Federal, acusando o congresso de “comunista”, fecharam à
última hora as portas das sedes do encontro. Este acabou sendo
realizado na sede da Academia Brasileira de Medicina e contou com
reduzido apoio de políticos e da imprensa.
Distante do conflito ideológico, nessa convenção, foi elaborado,
por uma comissão, um plano de readaptação e reintegração do ex-
combatente, baseado em estudos das legislações norte-americana,
inglesa e francesa. Propunha a criação de um órgão misto, para
supervisão dos problemas dos excombatentes, um programa de
cursos técnicos para os veteranos, em escolas das Forças
Armadas, da rede Senac e Senai, Liceu de Artes e Ofícios de São
Paulo e congêneres, bem como facilidades para o ingresso no
ensino superior. Prescrevia também um programa de amparo aos
veteranos incapacitados. Segundo seus autores, a principal
vantagem desse programa era a pouca repercussão dos programas
no erário público. O benefício social seria grande, e a despesa do
Estado, relativamente pequena. Mas o esforço foi em vão. Um dos
elaboradores comentou o início de um padrão de encaminhamento
das reivindicações dos veteranos:
O Conselho Nacional (…) deferiu ao signatário deste a tarefa de
levar o fato ao governo federal, à cuja frente ainda continuava o
marechal Eurico Gaspar Dutra. O plano foi entregue ao próprio
presidente, lá no antigo Palácio do Catete. Seu fim foi o mesmo
dado a todos os planos elaborados e submetidos aos governos
que se sucederam. Indiferença, insensibilidade e… gaveta ou…
cesta.32

As diferenças políticas radicalizaram-se em 1947, quando uma


chapa integrada por comunistas concorreu à presidência do
Conselho Nacional. Alertada, a ala anticomunista partiu para o
confronto. Oficiais superiores da FEB, que não tiveram participação
ativa na criação das associações, perceberam sua importância e
seu poder crescente e disputaram acirradamente a liderança do
Conselho Nacional. A eleição foi disputada e tensa, com acusações
de ambas as partes. Ao final, a chapa anticomunista conseguiu a
maioria e, nas palavras do então coronel Humberto de Alencar
Castelo Branco, um dos líderes da ala vencedora, “evitou-se que a
associação fosse solapada pelos comunistas”.33 Derrotados na
ocasião, os membros da ala à esquerda denunciavam que havia
pressão do Ministério da Guerra para que as lideranças hierárquicas
participassem mais ativamente nas associações e disputassem seu
controle. Para o expedicionário comunista Jacob Gorender,
candidato da chapa vencida, desde então as associações de ex-
combatentes perderam muito de sua autonomia política. “Foi uma
ação mais ou menos concertada. Eles [os oficiais superiores
anticomunistas] tomaram conta das diretorias. Desde então, as
associações de ex-combatentes se tornaram apêndices das Forças
Armadas”.34
Esse episódio marcou profundamente o caráter das associações
até os dias atuais. Derrotados na eleição do conselho, perseguidos
e colocados na ilegalidade, os comunistas se afastaram delas. As
associações assumiram cada vez mais uma política assistencialista
e de colaboração com as Forças Armadas e com os governos.
Evitando debates políticos, tentaram ficar à parte das discussões
que dividiram as Forças Armadas no início da década de 1950,
como a campanha do petróleo e as eleições do Clube Militar.
Porém, vários militares veteranos da FEB e da FAB participavam
ativamente dos debates nacionais, a despeito das recomendações
das associações. Prisões arbitrárias de oficiais veteranos
“nacionalistas”, às vésperas das eleições do Clube Militar em 1952,
mostravam de maneira clara até onde iam os limites entre o
“convencimento” e a coerção pura e simples, para as autoridades
militares. Tal situação chamou a atenção da imprensa e provocou
protestos de deputados. A mensagem, porém, já estava dada.35
Nas décadas seguintes, evitar os debates políticos capazes de
dividir os militares e os ex-combatentes continuaria sendo a tônica
das associações. Vez ou outra surgiam críticas aos procedimentos
das lideranças do Conselho Nacional, geralmente no momento das
eleições. As principais críticas concentravam-se nas atitudes de
relacionamento com o Poder Executivo, excessivamente tímidas e
pouco incisivas, segundo seus opositores. Propunham-se, em
contrapartida, atitudes mais agressivas, reivindicatórias, junto aos
deputados, senadores e opinião pública. Invariavelmente, porém, a
maioria dos delegados das associações votava para manter a
política como estava sendo feita.36
Por sua vez, por conta de políticos ávidos de conseguir votos de
beneficiados de ocasião, as leis e benefícios aos ex-combatentes
foram cada vez mais estendidos àqueles que não fizeram parte da
FEB. Essa progressiva extensão culminou com a Lei no 5.315, de 12
de setembro de 1967, que ficou conhecida como “Lei da Praia”
pelos febianos. Embora fosse feita justiça a muitos cidadãos que
executaram missões variadas durante a guerra, como por exemplo o
patrulhamento da costa, essa extensão dos benefícios acabou por
premiar indistintamente militares e civis que não foram para a
guerra, mas que podiam requerer os benefícios que a legislação
lhes conferia. Obviamente, em face da desinformação generalizada
dos ex-combatentes sobre seus próprios direitos, era comum
encontrar veteranos da guerra na Itália sem benefício algum,
enquanto “oficiais de espada virgem” e burocratas espertos
logravam obter pensões e vantagens com facilidade. Tal fenômeno
acabou provocando divisões nas associações, a ponto de algumas
terem mais “ex-combatentes” que não participaram diretamente da
guerra do que veteranos da FEB, FAB e Marinha de Guerra entre
seus associados. Essa divisão entre “veteranos” e “praieiros”
(também chamados “patos d’água”) aumentou os conflitos e
dificuldades da política das associações.37
Uma associação privativa dos veteranos da FEB foi criada em
1963, à parte das associações de ex-combatentes (que
compreendiam, além dos veteranos da campanha da Itália, os
incluídos na categoria de ex-combatente pela legislação e veteranos
estrangeiros da II Guerra Mundial): a Associação Nacional dos
Veteranos da FEB (Anvfeb). Apesar de congregar apenas os
efetivos veteranos da FEB, não houve cisão, mas
complementaridade nas políticas das duas associações. A Anvfeb,
contudo, reúne menos membros e possui menos sedes. Com
poucas desavenças entre si, as duas associações relacionam-se em
clima cordial e solidário.

As leis de amparo: a teoria e a prática


As associações de ex-combatentes, desde seus primórdios,
funcionaram ativamente como um grupo de pressão perante os
governos estaduais e federal. No entanto, antes de seu surgimento,
algumas leis de amparo já haviam sido decretadas.38 Os resultados
ficaram aquém do esperado, e logo seu debate tornou-se público.
Na Assembléia Nacional Constituinte de 1946, os deputados já
denunciavam os problemas de adaptação dos veteranos, bem como
o descaso e mesmo o não-cumprimento das (poucas) leis de
amparo. Denunciavam o abandono dos “pracinhas” no pós-guerra e
comparavam sua situação com “as dificuldades sentidas pelos
veteranos da Guerra do Paraguai, vivendo de caridade pública”.39
Um documento importante é a resposta do Departamento de
Administração do Serviço Público (Dasp) ao pedido de
esclarecimento da Assembléia Constituinte sobre a situação em que
estavam os expedicionários retornados, em maio de 1946. Em
dezembro do mesmo ano, o Dasp respondeu que a maioria dos
expedicionários que estavam já empregados, no serviço público ou
na iniciativa privada, no momento da convocação teve seu emprego
de volta, quando do retorno. Os que estavam em “preparação
educacional” teriam garantido por lei seu retorno aos
estabelecimentos escolares, mas o órgão não se refere a qualquer
emprego público ou privado. Os trabalhadores agrícolas e os
desempregados, reconhece o Dasp, não tiveram e dificilmente
teriam qualquer vantagem, pois os trabalhadores do campo “nem
regulamentação própria têm”, e o desempregado poderia, no
máximo, requerer à Comissão de Reabilitação dos Incapazes das
Forças Armadas (Crifa) um emprego público ou privado, “de acordo
com suas capacidades e habilitações”. Acrescentava o órgão que os
incapacitados já possuíam amparo assegurado por leis, cabendo
aos mesmos requerê-lo.40
Nos anos seguintes foram estabelecidas leis de amparo aos
participantes efetivos da guerra. Outras medidas facilitavam o
acesso dos ex-combatentes ao serviço público (de acordo com suas
capacidades e formação), concediam bolsas de estudos a veteranos
e seus filhos e, posteriormente, até crédito imobiliário. A legislação
dos anos seguintes ampliava ou regulamentava as medidas
previstas nas duas leis supracitadas.
Era de se esperar que a situação dos ex-combatentes fosse
finalmente resolvida. Todavia, continuaram as reclamações e
denúncias de desamparo, de “pouco caso” dos órgãos públicos para
com os “pracinhas”, muitos dos quais ainda passavam por
dificuldades de emprego e mesmo de percepção dos benefícios a
que tinham direito. O problema dos que retornaram não era a
legislação existente, que bem ou mal os acolhia, mas as
dificuldades crescentes de seu cumprimento. Os patrões dos
centros urbanos acolhiam inicialmente os veteranos, mas alguns
logo os demitiam, sob as mais variadas alegações, como
dificuldades físicas, desajustamentos, neuroses etc. Já os da zona
rural nem podiam contar com tal sorte, dadas a quase inexistente
fiscalização e a tradicional falta de proteção e de direitos do
trabalhador rural. Como o país, na década de 1940, ainda contava
com maior população no campo do que nas cidades, e como a FEB
reproduziu essa estrutura demográfica, pode-se bem avaliar a
dimensão do problema.
A lei que conferia ao ex-combatente prioridade de ingresso no
serviço público por concurso também era desrespeitada, pois
interferia na principal moeda de troca do clientelismo político
brasileiro, o cargo público. Assim, era freqüente um veterano
pleitear uma colocação no serviço público e a chefia responsável
pela seção (municipal, estadual, federal, autarquia etc.) extraviar
seu pleito nos intermináveis labirintos burocráticos, alegando novas
exigências e colocando algum apaniguado na vaga.
As privações motivaram protestos públicos, como os realizados
em 1947 no Rio de Janeiro, nos quais milhares de veteranos, em
trajes civis, solicitavam maior assistência ao governo.41
Esta situação não passou despercebida à grande imprensa: vez
ou outra, aparecia alguma reportagem denunciando a falta de
amparo aos antigos combatentes. As autoridades eram
questionadas e argumentavam que faziam o possível, dentro dos
limites da legislação, para assegurar-lhes uma vida mais digna.
Enquanto isso, os presidentes das associações de ex-combatentes
e do Conselho Nacional enviavam projetos de estatuto do ex-
combatente aos presidentes da República, da Câmara Federal e do
Senado, tentando unificar definitivamente as centenas de leis,
regulamentações e jurisprudências referentes ao ex-combatente,
mas sem sucesso. Como já foi comentado anteriormente, o destino
de tais projetos, apresentados desde o governo Dutra, foi perder-se
nos poços sem fundo da burocracia nacional.
Chegamos assim a um paradoxo visível: a legislação então
existente, se não era a melhor possível, proporcionava um
atendimento mínimo às necessidades dos veteranos. Por que então,
até o início da década de 1990, as associações de ex-combatentes,
a imprensa e os políticos denunciavam constantemente o abandono
dos veteranos? O que deu errado?
Primeiramente, as leis são apenas papéis sem valor quando não
existem condições e/ou vontade política para sua aplicação,
tampouco a garantia de sanções para aqueles que as transgridem.
É preciso, também, dar ciência aos interessados da existência de
tais leis. À lentidão e à burocracia dos órgãos responsáveis pelo
encaminhamento do amparo aos ex-combatentes soma-se a
ignorância da própria existência dessas leis, por parte de pracinhas
espalhados por todo o país, especialmente os residentes na zona
rural, que já eram marginalizados pela ausência de legislação
trabalhista.
Outra razão é que boa parte da legislação de amparo ao ex-
combatente envolvia o sistema clientelista de distribuição de cargos
e vantagens a protegidos dos políticos. Numa estrutura política
como a brasileira, em que os representantes eleitos pelo povo são
medidos pela sua eficiência na distribuição dos dividendos da
política do favor, os excombatentes sempre foram concorrentes
diretos à parte mais importante da distribuição de vantagens e
sinecuras de políticos do Legislativo e do Executivo.
Contudo, em vez de opor-se vigorosamente a tudo isso, os
próprios veteranos aceitavam essa ordem das coisas. Para a
maioria dos expedicionários, o paternalismo do governo ou de
qualquer “autoridade” ainda era a única forma conhecida de se
conseguir alguma coisa do poder público. Assim, o “cidadão-
soldado” brasileiro que lutou na II Guerra continuou tão alheio e
distante das práticas de cidadania e do exercício dos seus direitos
quanto o estava dos reais motivos por que tinha lutado. Como
lembrou um antigo presidente de associação de ex-combatentes,
que não concordava com essas práticas mas pouco podia fazer
para combatê-las, é preciso reconhecer que “a maioria dos
pracinhas queria mesmo era um emprego público, estável, bem-
remunerado, queria mesmo era a troca de favores, se arrumar, toma
lá, dá cá”.42
As associações poderiam constituir-se em uma alavanca de
mudança dessa mentalidade, mas não o fizeram. A opção política
das associações, censurando as posturas mais combativas, que
eram logo identificadas com o comunismo ou a subversão, e o
direcionamento das reivindicações para concessões de cunho
assistencial estabeleceram os limites claros até onde se podia
chegar, sem confrontar os governos ou mobilizar a opinião pública.
Algumas associações, aliás, passaram a reproduzir nas suas
direções a hierarquia militar, com seus presidentes escolhidos entre
os mais graduados nas chapas. Os pronunciamentos públicos dos
dirigentes evitavam as considerações mais críticas, limitando-se a
criticar eventualmente o não-cumprimento da assistência legal ao
ex-combatente.
Os problemas encontrados pelos antigos combatentes tinham
seu paralelo na classe trabalhadora brasileira. Na era Vargas (e nas
décadas seguintes também), a debilidade das políticas de amparo e
previdência social dos trabalhadores foi generalizada. Mesmo as
categorias mais combativas tiveram grande dificuldade na luta por
melhorias de suas condições de trabalho e de seguridade social. A
combinação perversa da repressão aos movimentos sociais mais
combativos com a política paternalista do “Estado promotor do bem-
estar do trabalhador” não minou apenas as justas reivindicações dos
que combateram pela FEB, mas de toda a classe trabalhadora
brasileira. E não seria a FEB, desmobilizada, pulverizada por todos
os cantos do país, deparando-se com a luta diária pela vida, que
haveria de tornar-se a ponta de lança de um movimento mais
incisivo.
Algo, porém, parecia separar os cidadãos-soldados da FEB dos
outros cidadãos. É que os veteranos combatentes ainda tinham dois
obstáculos a mais na luta pelos seus direitos: estavam dispersos
pelo país, no mais das vezes isolados e desinformados sobre o que
concernia à sua situação de ex-combatentes. E, para piorar as
coisas, eram considerados pela população em geral, pelas
autoridades civis e militares e por eles mesmos como ligados
intrinsecamente às Forças Armadas, o que restringia mais ainda sua
expressão política própria. Assim, como quase todo mundo achava
que a FEB “fazia parte” das Forças Armadas, poucos haveriam de
preocupar-se com os veteranos, pois os militares provavelmente já o
faziam. Os veteranos participavam das paradas militares, e suas
festividades enfatizavam o cerimonial militar. Os discursos de suas
lideranças não destoavam do que era aceito pela instituição armada.
Dessa forma, eles eram e ainda são vistos como parte integrante da
instituição militar, com seus defeitos, virtudes e posicionamentos
políticos. Ainda hoje é o Exército a instituição que melhor se
relaciona com os veteranos e suas associações. Embora muitos
reclamem do excesso de governismo dos veteranos, com sua
obrigatória presença nos desfiles comemorativos militares, deve-se
reconhecer que as Forças Armadas nunca os relegaram ao
desprezo e ao esquecimento, embora também tenham tirado
proveito do suporte a um grupo que despertaria fácil apoio popular.
Foi com essa base de apoio que, nas décadas de 1980 e 1990,
os “pracinhas” consolidaram algumas conquistas de seus direitos.
Curiosamente, foi apenas após o fim do regime militar, inaugurado
por um febiano — o então coronel Humberto de Alencar Castelo
Branco —, que os veteranos consolidaram os dispositivos de seu
amparo.
Atualmente, estima-se que não mais de 5 mil veteranos estejam
vivos no país. Após décadas de lutas, esses poucos senhores têm
hoje uma pensão digna garantida por lei e ocasionais sinais de
reconhecimento social. Para a maioria dos que combateram na
Itália, contudo, os benefícios e reconhecimentos de sua luta
chegaram tarde demais.

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* Doutor em história social pela USP; professor da Universidade Estadual de


Londrina (PR).
1 O tema aparece, geralmente com comentários breves, em algumas
memórias escritas de ex-combatentes. Barbosa (1985) é o único que aborda
mais detidamente a questão.
2 Ver Corvisier (1999:58-59, 260).
3 Ver Prost (1992:27-50); Thomson (1994:105-117); Severo e Milford
(1990:283-297).
4 Ver Mello (1978:5-6); Beattie (2001:38-40); Sodré (1968:143).
5 Ver Schulz (1994:73, 75, 91); Beattie (2001:47, 173-174).
6 Ver Beattie (2001:78, 172); McCann (1982:21-30).
7 Ver McCann (1982:114).
8 Decretos-lei no 4.548, de 4-9-1942, e no 4.902, de 31-10-1942.
9 Decreto-lei no 5.689, de 22-7-1943.
10 Ver Caldas (1950).
11 Ver Andrade (1949:311-387); Ferraz (2003:90-98); Castro (2000:112-115).
12 Ver, neste livro, o capítulo de Cesar Campiani Maximiano sobre a
experiência de combate dos expedicionários brasileiros na campanha da
Itália.
13 Ver Silveira (1965:30-31).
14 Ver Smallman (1998:238 e segs.); Ferraz (2003:128-139).
15 Ver Prestes (1945:16).
16 Aviso no 197-166, reservado, 11-6-1945; boletim reservado do Exército, n.
6, p. 50 (Arquivo Histórico do Exército, doravante AHE).
17 Ver Brayner (1968:520-521); Silveira (1989:231 e segs.); Barbosa
(1985:39); McCann (1995:344-345).
18 Relatórios nos 17 e 18 (8 e 9-1945), cx. 11, pasta 6, doc n. 1 (AHE —
Arquivo Góis Monteiro).
19 Farias (1981:373); Silva (1976:260).
20 Ver Smallman (1998:238); Ferraz (2003:133).
21 Ver Ferraz (2003:147 e segs.).
22 Depoimento do veterano da FEB Boris Schnaiderman ao autor, São Paulo,
17-7-2001; ver Soares (1985:16).
23 Schnaiderman, 1995:215.
24 Silveira (1989:235); Ferraz (2003:162).
25 FEB/DP, cx. 522, arm. no 17 (AHE).
26 Ver McCann (1982).
27 Ver Ferraz (2003:178).
28 Ferraz, 2003: 205-206.
29 Ver Neves (1992:12-20).
30 Ver Soares (1985:16-17, 20-23, 341-344); Louzeiro (1965:143-161);
Silveira (1989:244 e segs.).
31 Soares, 1985:339.
32 Silva, 1974:7.
33 Apud Dulles (1978:178-179).
34 Entrevista, São Paulo, 30-11-1999.
35 Ver Smallman (1998:244-245).
36 Mesmo assim as oposições reconheciam as dificuldades práticas de uma
militância mais aguerrida. Ver, por exemplo, a entrevista que o candidato de
oposição à presidência do Conselho Nacional concedeu à revista O
Expedicionário (v. 9, n. 108, dez 1982).
37 Pelas declarações de ex-combatentes, as recriminações que fazem não se
dirigem àqueles que foram convocados e realizaram algum tipo de serviço
ativo durante a guerra, mas sim aos oportunistas que conseguiram benefícios
sem merecê-lo, como por exemplo militares regulares que não quiseram ir à
Itália (por covardia, por medo de comprometer a carreira no caso de um
fracasso militar da unidade expedicionária ou por outros interesses) e que
tiveram seu sossegado serviço nos quartéis brasileiros considerado, anos
depois, como “serviço de guerra”.
38 Pensão para famílias de expedicionários mortos, desaparecidos e

incapacitados; Decretos no 7.270, de 5-1-1945, e no 7.374, de 13-3-1945;


prioridade de ingresso no serviço público federal para expedicionários
habilitados em concurso público; Decreto-lei no 8.361, de 13-12-1945.
39 Anais da Assembléia Nacional Constituinte. 6a Sessão, 13-2-1946, Rio de
Janeiro, v. 1, p. 196 e segs.
40 Exposição de motivos do Dasp, relativa ao requerimento no 118/1946, do
deputado Valfrido Gurgel, em que sugere um plano de amparo aos ex-
combatentes da FEB desempregados. 5a Sessão, 4-12-1946 (Anais da
Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional,
1952. v. 7, p. 4-7).
41 Ver Leal (1957:13)
42 Neltair Pithan e Silva (Entrevista, São Paulo, 31-3-2000).
CAPÍTULO 15

A profissionalização da violência extralegal das Forças


Armadas no Brasil (1945-64)*

Shawn C. Smallman**

Como muitas instituições militares latino-americanas, as Forças


Armadas brasileiras fizeram uso, ao longo da história, da violência
extralegal para atingir metas políticas e sociais: reprimir classes
sociais “perigosas”, manter a hierarquia racial da nação, aumentar o
poder do Estado e reprimir movimentos de contestação interna.
Ainda assim, os militares em geral confinaram a violência a
momentos de crise institucional, visando grupos isolados na
sociedade. Isso mudou no momento posterior à II Guerra Mundial. O
normal era que o uso da violência extralegal para alcançar uma
meta política ou institucional fosse um instrumento reacionário,
tendo como objetivo fazer a sociedade voltar a uma imagem
idealizada do passado.1 No Brasil, contudo, tornou-se um
instrumento revolucionário, que permitia às Forças Armadas
expandir radicalmente sua influência na sociedade. No pós-guerra, a
profissionalização militar foi acompanhada pelo uso ampliado da
violência política.
Muitos estudiosos já consideraram a questão da repressão
militar, que varreu a América Latina durante os anos 1960 e 1970,
quando democracias foram derrubadas por regimes autoritários.
Alfred Stepan mostrou que as agências de inteligência militares
ganharam tanta autonomia no Brasil que eram temidas até mesmo
pelas Forças Armadas, que deram início à democratização em parte
para reconquistar o controle desses órgãos. J. Patrice McSherry
estudou como as Forças Armadas argentinas usaram o medo
durante a “Guerra Suja” para remodelar a academia, os costumes, a
economia e até mesmo a cultura argentinos. David Pion-Berlin e
Daniel Zirker examinaram a fundo a violência de Estado na
Argentina, no Brasil e no Peru. Até certo ponto, esses autores e
muitos outros buscaram entender como diferentes Forças Armadas
na região usaram a repressão para impor um elaborado programa
político e econômico à sociedade.2 Eles focalizaram, porém, a
repressão ocorrida após golpes militares, mais do que as origens
históricas da violência extralegal militar institucionalizada. Aqui,
portanto, examinarei essa violência de uma perspectiva histórica.3
Esse esforço não deriva de um desejo de fazer sensacionalismo
com o passado, e sim de entender como as Forças Armadas num
país da região criaram um intricado instrumento de repressão
política.
Este capítulo argumenta que, no Brasil, a estrutura da repressão
que mais tarde perseguiria civis foi de início criada para eliminar
oficiais dissidentes. A repressão militar interna foi uma ponte para o
uso geral da violência contra a sociedade. O fator-chave nessa
evolução foi a profissionalização militar. No momento em que as
Forças Armadas passaram a se definir em termos ideológicos, o
dissenso se tornou mais e mais inaceitável. Ao mesmo tempo, a
violência tornou-se burocrática, institucionalizada e centralizada; seu
uso requeria não apenas especialistas treinados, mas também uma
ampla rede de pessoal de apoio.4 O sistema de repressão que
assombrou o Brasil durante o regime militar (particularmente 1964-
77) não emergiu num momento de violência.5 Foi, ao contrário,
criado lenta e cuidadosamente por oficiais profissionais e com alto
nível de instrução.

Teorias da violência extralegal


Não se supunha que essa violência extralegal existisse. Nos
anos 1950 os teóricos da modernização haviam argumentado que
os exércitos em países em desenvolvimento poderiam promover
desenvolvimento econômico e político, por causa de sua disciplina,
educação e profissionalismo. Era verdade que o Exército havia se
envolvido com assuntos civis no passado e que militares tinham sido
responsáveis por violência política. Mas autores como Samuel
Huntington afirmavam que esse problema poderia ser vencido com
treinamento adequado. Darius Rejali expressou esse ponto de vista
sucintamente: “e se soldados contra-insurgentes ocasionalmente
torturam, isso é evidentemente um problema técnico de fornecer
recursos adequados e treinamento de campo aos soldados. Bons
soldados simplesmente sabem mais”.6 Essa perspectiva otimista se
mostraria, no entanto, falha durante os anos 1960 e 1970, quando
governos militares tomaram o poder e estabeleceram Estados
autoritários por toda a América Latina.
A teoria da modernização mostrou-se particularmente
problemática, porque os Estados que criaram regimes autoritários —
e usaram violência política — eram os mais desenvolvidos
economicamente na região. Os países que passaram para o
controle militar (como Chile, Argentina, Uruguai e Brasil) tinham os
militares mais profissionais na América Latina. Alfred Stepan
analisou esse problema num artigo seminal em que afirmou que o
que importava era o caráter do treinamento militar. As Forças
Armadas latino-americanas haviam doutrinado seus oficiais na
ideologia da segurança nacional, um sistema de crenças que
enfatizava a importância da guerra de contra-insurgência. Stepan
argumentou que essa doutrina específica fornecia aos soldados não
só a crença de que sua intervenção em assuntos civis se justificava,
mas também as habilidades (obtenção de informações e repressão
interna) para fazê-lo. Esse argumento refletia um interesse
disseminado na doutrina de contra-insurgência, tornando-se
extremamente influente durante os anos 1970.7
Ainda assim, permanecia sem resposta a questão mais ampla a
respeito de haver uma contradição entre modernidade (incluindo o
profissionalismo militar) e a violência institucionalizada. Autores
como Darius Rejali e Edward Peters questionaram essa crença. Na
verdade, a violência tinha acompanhado o processo de
modernização (caracterizado por desenvolvimento econômico,
industrialização e a criação de um Estado central poderoso) em
muitos países. Parecia mesmo que em alguns casos a
modernização e a violência se vinculavam porque o Estado usou a
repressão para promover disciplina social e as políticas a que a
modernização conduzia.8 Dessa perspectiva, não era o caráter do
treinamento militar que importava, como sugeria Stepan. Não havia
contradição entre profissionalismo militar e violência de Estado, já
que o profissionalismo não garantia moralidade ou não-violência.9
Martha K. Huggins defendeu uma posição similar em seu
trabalho de 1998, Political policing: the United States and Latin
America, em que estuda cuidadosamente como os Estados Unidos
influenciaram a polícia no Brasil e em outros países latino-
americanos. Sua tese central era “que ‘modernização’ e
‘profissionalização’ têm conseqüências não antecipadas (ou,
algumas vezes, antecipadas) que contradizem a hipótese de que
esses processos sempre conduzem a um maior limite da polícia em
direção à legalidade e à justiça”. Huggins argumentou que quanto
mais ajuda estrangeira as polícias latino-americanas receberam,
“mais brutais e menos democráticas” se tornaram.
Embora Huggins tenha estudado as polícias latino-americanas,
suas observações também eram pertinentes para os militares latino-
americanos. É óbvio que não há um vínculo necessário entre
modernização e repressão militar violenta. No entanto, o caso
brasileiro sugere que, no contexto latino-americano, os dois se
associaram. À medida que os militares se profissionalizavam (o que
impunha crescente escolaridade e treinamento, mais recursos
profissionais, melhor organização e doutrina militar moderna),
surgiam novas instituições de repressão. A criação dos modernos
meios de comunicação de massa e de obtenção de informações
facilitou a centralização da repressão. Mais recursos do Estado
permitiram a expansão de instituições dedicadas à violência política.
Ao mesmo tempo, os militares respondiam a mudanças na
sociedade, como a mobilização de massa e o crescente poder das
classes trabalhadoras, que, acreditavam os oficiais, ameaçavam o
Estado. Isso encorajava a criação de uma mentalidade de “nós
contra eles”, que foi ainda mais fortalecida pela nova importância da
conformidade ideológica no interior das Forças Armadas. Por fim, a
Guerra Fria criou um contexto social e político que levava
importantes atores políticos (incluindo tanto as elites nacionais
quanto as dos Estados Unidos) a tolerarem a violência extralegal
como um ataque ao comunismo. Todas essas mudanças permitiram
que militares cada vez mais profissionais, disciplinados e instruídos,
adotassem um programa de repressão, primeiro para reprimir
dissidentes internos e depois para atingir civis. Dessa forma a
violência militar evoluiu de casos isolados de extrema disciplina e
violência para um sistema institucionalizado de controle social.

A luta dos militares do pós-guerra


Os militares brasileiros há muito usavam a violência extralegal
em momentos de crise. Logo após a rebelião na Marinha, em 1910,
prisioneiros foram sufocados com soda caústica em suas celas
subterrâneas e sumariamente fuzilados a bordo.10 Depois que
jovens oficiais se rebelaram nos anos 1920, alguns soldados (não-
oficiais) foram mandados para exílio interno, tendo sido vendidos
praticamente como escravos para seringueiros.11 Em 1935, o
levante comunista no interior do Exército desencadeou uma
repressão brutal, em que estiveram envolvidas as Forças
Armadas.12 Durante o Estado Novo (1937-45), o regime de Vargas
praticou a violência extralegal como instrumento político, com o
apoio político dos militares, que controlavam postos importantes na
polícia. Ainda assim, essa repressão não estava institucionalizada
nas instituições militares. Não havia organizações permanentes de
intimidação e violência. O alto comando militar, ao contrário,
passava à violência quando começava a crer que a existência dos
militares (ou seu controle das instituições) estava em perigo. Esse
padrão mudou, contudo, com as tendências políticas após a II
Guerra Mundial.
Com o fim da guerra em 1945, os militares brasileiros
derrubaram o presidente Vargas e devolveram à nação um regime
democrático. Ainda que o novo presidente, Eurico Gaspar Dutra,
fosse um oficial militar profundamente envolvido no regime anterior,
tinha também sido democraticamente eleito pelo povo brasileiro.
Nesse contexto, os militares como instituição se recusaram a
sancionar o envolvimento direto das Forças Armadas na violência
extralegal que havia caracterizado o Estado Novo, mas torturas
policiais continuaram sendo praticadas contra negros e pobres.
A hierarquia militar, no entanto, mostrou-se disposta a
abandonar a violência apenas na medida em que os desafios a seu
poder eram exceções. Isso significava que os militares não podiam
ser divididos em facções internas por ideais políticos. As tendências
políticas pós-guerra tornaram problemática essa política. Num
período anterior, no mesmo século, quando os militares ainda se
mantinham relativamente pouco profissionais, contestações políticas
entre o oficialato haviam se caracterizado por lutas por poder entre
generais. Muitas facções políticas dentro das instituições militares
eram designadas pelo nome de seus líderes. Formas tradicionais de
autoridade militar tinham condições de lidar com desafios desse
tipo. Mas, à medida que as Forças Armadas se profissionalizavam,
os oficiais passavam a definir suas lealdades mais e mais em
termos de ideologia.
Ao mesmo tempo, uma ordem mundial bipolar surgiu como
conseqüência da II Grande Guerra, pressionando os exércitos
regionais a definir sua visão sobre defesa em relação à Guerra Fria.
Em 1947, essa situação levou os militares brasileiros a se dividirem
em duas correntes ideológicas com visões opostas do papel dos
militares e do futuro da nação. Os antigos mecanismos de controle
no interior da instituição não podiam lidar com essas novas
identidades.13 Tampouco podiam os comandantes das Forças
Armadas confiar apenas na obediência militar para impor sua visão
ideológica à instituição. Em conformidade com essa situação, a
hierarquia militar adotou a violência sistemática e rotineira como
instrumento para vencer desafios ideológicos. Isso conduziu a um
novo compromisso com a repressão, a qual os militares não mais
deixaram ficasse a cargo da polícia.14
As duas maiores facções militares após a II Guerra Mundial
definiam-se claramente por sua visão da relação do Brasil com os
Estados Unidos.15 Essa única questão moldava integralmente suas
opiniões políticas e econômicas. Um bloco, o dos
“internacionalistas”, desejava se aliar com os Estados Unidos na
Guerra Fria, em troca de apoio financeiro para o desenvolvimento
do Brasil. Os internacionalistas eram anticomunistas e liberais em
termos econômicos. Desconfiavam do nacionalismo e do populismo
(que associavam ao comunismo) e defendiam o investimento
estrangeiro. Essa facção, controlada pelo Estado-Maior do Exército,
buscava impor um novo papel para a instituição: a defesa
continental contra a agressão comunista.
Esse esforço deixava horrorizados muitos oficiais nacionalistas
entre os militares, em especial oficiais jovens envolvidos em
empreendimentos estatais.16 Eles haviam sido doutrinados para ver
o Exército como agente de desenvolvimento econômico durante o
Estado Novo e defendiam o nacionalismo em parte porque temiam
tanto os Estados Unidos quanto suas corporações multinacionais.
Também apoiavam o desenvolvimento econômico dirigido pelo
Estado e a neutralidade política na Guerra Fria. Quando a hierarquia
do Exército empreendeu esforços para liberalizar a legislação
econômica e para estabelecer aliança com os Estados Unidos, os
nacionalistas se organizaram politicamente nas Forças Armadas.
Sua tática refletia a nova importância da política de massa e da
ideologia política. Esses oficiais impuseram aos líderes militares um
novo desafio a seu poder, manipulando o sentimento popular a
respeito de questões simbólicas.
Os oficiais nacionalistas decidiram reunir apoio civil para
proteger a indústria petrolífera do Brasil, como meio de dar
continuidade ao antigo papel do Exército no desenvolvimento
dirigido pelo Estado. Fundaram uma organização para fazer lobby,
discursavam e organizavam comícios, sob a liderança do general
Júlio Caetano Horta Barbosa.17 O alto comando raramente havia
experimentado resistência organizada, em que oficiais dissidentes
reuniam apoio civil. A oposição militar e o sentimento público
arruinaram os planos do ministro da Guerra, general Canrobert
Pereira da Costa, de liberalizar a legislação do petróleo em 1948. O
grupo nacionalista também venceu as eleições para o Clube Militar
(uma organização social para oficiais) em 1950. Os comandantes
nacionalistas usaram essa organização para divulgar suas opiniões
políticas, através de discursos, seminários e do periódico do clube, a
Revista do Clube Militar. Também apoiaram a candidatura
presidencial de Getúlio Vargas, que havia sido deposto pelos
militares em 1945. O sucesso dos nacionalistas enfurecia em
especial a hierarquia do Exército (composta de oficiais como os
generais Canrobert Pereira da Costa, Euclides Zenóbio da Costa,
Álvaro Fiúza de Castro, Alcides Etchegoyen e Osvaldo Cordeiro de
Farias), dominada pela facção internacionalista. Embora as três
armas estivessem envolvidas no conflito resultante, a luta era
particularmente intensa dentro do Exército.
A hierarquia do Exército tentou de início usar sua autoridade
oficial para enfraquecer o poder político de seus oponentes. O
periódico do Clube Militar publicou, por exemplo, um artigo
denunciando o envolvimento dos Estados Unidos no conflito
coreano. O ministro da Guerra, Canrobert Pereira da Costa, aplicou
sanções à liderança do clube, que foi espalhada por todo o Brasil.18
Esse passo, contudo, apenas conduziu oficiais ainda mais radicais a
posições de poder. Ficou claro que as estruturas formais de patente
e posto não garantiriam o controle da hierarquia. Os oficiais
internacionalistas começaram a lançar mão de muitas das táticas de
organização adotadas primeiro por seus oponentes. Em março de
1952, fundaram a Cruzada Democrática. Esse grupo político
pretendia competir com os nacionalistas para readquirir o controle
do Clube Militar nas eleições de 1952. Tinha o general Alcides
Etchegoyen como presidente e o general Nelson de Melo como
vice-presidente. Ambos haviam dirigido a Polícia Federal durante o
Estado Novo, o que lhes dera experiência na gestão de serviços de
inteligência, assim como contatos com a polícia.
Ambas as facções criaram grupos políticos durante a campanha
para ganhar o controle do Clube Militar, buscando apoio de oficiais
para sua plataforma política.19 Nessa disputa, o grupo nacionalista
pode ter conseguido a simpatia dos oficiais, mas o grupo
internacionalista controlava o Estado-Maior do Exército e as linhas
de poder oficiais em todas as três forças militares. Além disso, a
Cruzada Democrática conseguia captar grandes somas de dinheiro
das elites empresariais conservadoras.20 O Estado-Maior usava
esses fundos para ajudar a derrotar seus opositores.
Em abril e maio de 1952, à medida que se aproximava a data
das eleições, o êxito dos nacionalistas em organizar a campanha
eleitoral começava a preocupar os oficiais internacionalistas.
Conforme ia ficando mais claro que a eleição poderia ser decidida
fora da capital, os oficiais internacionalistas passaram a perseguir os
comandantes nacionalistas que trabalhavam no interior, levantando
fundos entre civis, encontrando-se com soldados e tentando
convencer oficiais. A hierarquia do Exército prendeu esses oficiais,
manteve-os incomunicáveis e praticou torturas, segundo afirmou o
oficial da Aeronáutica Francisco Teixeira: “em março de 1952, às
vésperas da eleição — a eleição ocorreria em maio — foi
desencadeado um processo anticomunista nas Forças Armadas. Foi
tremendo! Inclusive com torturas bárbaras!”.21 Informações sobre
esses eventos alcançaram a imprensa e o público brasileiro, mas a
liderança do Exército convenceu os civis de que a brutalidade era
necessária para retirar os comunistas do meio dos militares. Por
isso houve pouco protesto popular contra o fato de que os soldados
recebiam golpes nos órgãos genitais, eram queimados com cigarros
e confinados a retretes.22
Soldados empenhados na campanha nacionalista foram presos
em todo o Brasil em abril e maio de 1952.23 O major da Aeronáutica
Sebastião Dantas Loureiro, por exemplo, foi preso em 7 de abril de
1952, quando viajava para unidades do interior em campanha a
favor dos nacionalistas. A Polícia Militar apreendeu, sem devolver,
dúzias de cédulas que ele trazia, todas favorecendo a chapa
nacionalista. Loureiro não foi o único. Vários de seus compatriotas
também foram presos e mantidos incomunicáveis. Além disso,
muitos oficiais alegaram haver sido torturados por militares, uma
acusação que ocuparia a atenção da imprensa por anos a fio. Essa
violência pode ter sido resultado do desespero dos oficiais
internacionalistas ao verem que, sem intimidação, seus oponentes
talvez ganhassem a eleição pendente.24
Era difícil ocultar essa violência. Os prisioneiros mostravam
sinais visíveis de maus-tratos.25 Oficiais torturados e suas famílias
enviaram um documento à Assembléia Geral das Nações Unidas,
descrevendo os sofrimentos dos prisioneiros.26 Parlamentares
denunciaram os maus-tratos aos prisioneiros. Em 1953, soldados
nacionalistas publicaram anonimamente um livro que descrevia as
torturas recebidas, Depoimentos esclarecedores sobre os processos
militares. Segundo o jornal Correio da Manhã (2 jul. 1955), a
população adquiriu rapidamente milhares de exemplares do livro.
Mas nem mesmo essa publicidade interrompeu a violência. A base
naval da ilha das Cobras era o lugar da tortura, como havia sido
após a Revolta da Chibata em 1910 e voltaria a ser após o golpe de
1964.27
Em 1952, a sociedade brasileira estava consciente de que havia
uma atmosfera de terror dentro das Forças Armadas. Mesmo assim,
muita gente aceitava, como justificativa para a intimidação, a
alegação da hierarquia de que os soldados presos eram
comunistas.28 Essa tolerância permitiu a ação coordenada das
Forças Armadas e da polícia para eliminar dissidentes militares.29
Na prática, a participação de todas as três armas e da Polícia Civil
na repressão era completamente integrada.30 Oficiais da Aronáutica,
da Marinha e do Exército conduziam investigações atacando oficiais
dissidentes em todas as forças.31 Embora o conflito entre facções
tenha começado no Exército, por volta de 1952 todas as três armas
testemunharam a prática da violência extralegal.
Nos dias que antecederam a eleição, a repressão venceu a
organização política dos nacionalistas. Muitos oficiais nacionalistas
designados para trazer caixas com cédulas para o Rio de Janeiro
desapareceram. O medo silenciou os soldados, que haviam se
tornado ativos politicamente.32 No início de abril de 1952, a
embaixada norte-americana acreditava que venceria o candidato
nacionalista, general Estillac Leal. Porém, em 25 de abril de 1952,
Estillac Leal fugiu da capital para Porto Alegre, no meio da
campanha eleitoral. No aeroporto, contou aos repórteres, perplexos,
que estava viajando porque desejava caçar e pescar. Um homem de
princípios, Estillac voltou à campanha na capital alguns dias antes
da eleição. Mas não havia mais esperança.33 Em 21 de maio de
1952, a Cruzada Democrática ganhou a eleição.
Essa organização social nunca mais defenderia reformas
políticas e sociais radicais. A hierarquia do Exército estava decidida
a apagar até mesmo a lembrança dessa luta. Organizaram um baile
com 36 debutantes para celebrar sua vitória. As adolescentes
passaram a noite dançando com oficiais superiores e generais
(incluindo o general Alcides Etchegoyen) enquanto eram
fotografadas. O evento foi parte de uma campanha de propaganda
cuidadosamente planejada. As moças estavam vestidas de branco,
a cor da pureza. A imprensa se referiu às debutantes como “uma
espécie de guirlanda de rosas humanas…”.34 A finalidade dessa
imagem era apagar da memória pública o destrutivo conflito. No dia
seguinte à sua eleição, Etchegoyen encontrou os jornalistas em seu
apartamento. Antes das perguntas, advertiu os jornalistas: “estou
pronto a responder apenas a perguntas que versarem sobre
assuntos posteriores às eleições. Esqueci tudo o que aconteceu
antes do pleito. Tenho a memória fraca…”.35 Enquanto jovens de
branco dançavam com oficiais superiores, militares dissidentes eram
torturados sob o comando do general.
Após sua decisiva vitória, a Cruzada Democrática continuou a
limpar todas as três forças militares.36 Os serviços de todas as
Forças Armadas trabalhavam em estreita colaboração com a
Divisão de Polícia Política do Departamento Federal de Segurança
Pública nessa empreitada.37 Os oficiais internacionalistas chegaram
a ponto de usar ameaças e acusações de comunismo contra a
Justiça Militar para garantir que os comandantes nacionalistas
permanecessem presos e sem ligação com o mundo exterior, em
violação às próprias normas militares.38 Muitos oficiais nacionalistas
só foram libertados em julho de 1954.39 Nesse período, o Exército e
a Marinha para os quais retornavam haviam mudado: estavam em
desenvolvimento novos mecanismos para garantir o controle por
oficiais internacionalistas, como os generais Nelson de Melo e
Alcides Etchegoyen.40
O sistema de inteligência e intimidação militares sobreviveu. Os
comandantes internacionalistas não podiam se dar ao luxo de
desmantelá-lo, porque a ameaça da facção nacionalista se
mantinha.41 À medida que o Brasil se tornava politicamente
polarizado nos anos 1950, a hierarquia do Exército temia que
oficiais nacionalistas pudessem formar novamente uma aliança civil-
militar poderosa. A Cruzada Democrática pretendia impedir que isso
acontecesse. Os oficiais internacionalistas também desejavam
promover sua visão do futuro econômico e político da nação. Como
os oficiais internacionalistas dependiam crescentemente da
violência extralegal, eles acabaram por se dar conta de que esse
instrumento também poderia impor suas opiniões políticas aos civis.
Da mesma forma, a repressão evoluiu de um instrumento para
modelar a política militar para um instrumento que permitia aos
militares influenciar a sociedade brasileira.

A repressão antes do golpe


Para organizar essa repressão militar, os oficiais
internacionalistas contaram com um dos líderes da Cruzada
Democrática.42 O tenente-coronel Golberi do Couto e Silva entrou
na Escola Superior da Guerra em março de 1952, onde permaneceu
até 1955. A hierarquia do Exército criara essa escola como
instrumento de propaganda interna para doutrinar oficiais nas
diretrizes da Cruzada Democrática. Nessa função, a oposição de
Golberi a políticos “liberais” tornou-o estimado entre influentes
generais. Golberi ficou preso por oito dias em novembro de 1955,
após ter tentado impedir a posse de Juscelino Kubitschek como
presidente. Também tentou sem sucesso impedir a posse do vice-
presidente João Goulart, líder do Partido Trabalhista Brasileiro
(nacionalista de esquerda), em setembro de 1961. Nesse mesmo
mês, Golberi deixou seu posto como chefe do Conselho de
Segurança Nacional e foi para a reserva, recebendo a patente de
general.43 Sua reforma não encerrou seu envolvimento em assuntos
civis.
A equipe do general havia planejado um golpe entre o final de
agosto e o início de setembro de 1961, que fracassou em parte por
causa dos sargentos nacionalistas e seus aliados civis.44 Já mais
tarde, a Cruzada Democrática acreditava que para um golpe ser
bem-sucedido seria necessário primeiro fazer calar os militares
nacionalistas, quebrando seus laços com a sociedade civil. O
general Nelson de Melo, um dos fundadores da Cruzada
Democrática, era a esse tempo ministro da Guerra. Com sua
aprovação, Golberi foi transferido para organizar o sistema informal
de inteligência militar, estendendo seu alcance à sociedade civil. Em
novembro de 1961, Golberi ajudou a criar o Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (Ipês), com o apoio de membros da elite
conservadora. Pelos três anos seguintes Golberi atuaria como
diretor de pesquisa do Ipês.45 Ele usou sua experiência anterior,
dirigindo o trabalho de inteligência do Conselho de Segurança
Nacional sob o presidente Quadros, para criar um “serviço de
inteligência eficiente” nesse órgão civil-militar.46 De sua sede no Rio
de Janeiro, a equipe do general Golberi controlava mais de 3 mil
telefones com equipamentos de gravação secretos. Com base
nessa informação, Golberi enviava relatórios especiais a
comandantes de alta patente. Esses estudos alegavam que a
disciplina militar estava ruindo porque os líderes sindicais haviam
formado perigosas alianças com sargentos nacionalistas. Essa
informação ajudou os oficiais internacionalistas a convencer
generais influentes a apoiar um golpe, para proteger a instituição de
uma rebelião interna.47 Em março de 1964, a Cruzada Democrática
aproveitou uma crise política para reunir os militares contra o
governo.
O general Golberi participou do planejamento do golpe de
1964.48 Primeiro organizou uma onda de repressão em que
centenas de soldados foram presos. Oficiais foram mandados para
a reserva, transferidos, aprisionados e destituídos de todos os
direitos políticos. Oficiais dissidentes se desesperaram com
ameaças de morte a seus familiares; colegas seus eram presos em
casa, e ouviam-se tiros no meio da noite.49 Alguns foram para a
clandestinidade, mas com muito pouca chance de escapar.50 Os
militares de patentes inferiores enfrentaram repressão ainda mais
selvagem. Essa repressão eliminou a oposição dentro das Forças
Armadas e garantiu as condições de êxito para o golpe que se
seguiria em 31 de março de 1964. Após o golpe, a organização de
Golberi passou a reprimir civis, para acabar com a oposição política.
Em seguida, cerca de 7.500 homens devem ter sido expulsos das
Forças Armadas, e umas 30 mil pessoas foram aprisionadas, entre
soldados e civis.51
No dia 14 de junho de 1964, o Exército institucionalizou a
organização do general Golberi, transformando-a no Serviço
Nacional de Informações (SNI), que teve como seu primeiro líder o
próprio Golberi.52 É verdade que tal organização era apenas uma
entre muitas da repressão.53 A Marinha tinha desempenhado papel
ativo na repressão imediatamente anterior ao golpe, e as
instalações do Cenimar, o serviço de inteligência naval, mantiveram
uma temível reputação ao longo do regime militar.54 As Forças
Armadas usaram os inquéritos policiais-militares (IPMs) contra civis,
como tinham feito contra soldados.55 Ainda assim, coube ao SNI o
papel principal de levar a violência política para a sociedade civil.
Mais tarde, Golberi lamentaria ter sem querer criado um monstro.56
Na verdade, sua organização fora resultado de anos de cuidadoso
planejamento e de trabalho com organizações civis.57 A tortura não
foi um instrumento de oficiais renegados, desconhecido pelos
líderes do Exército. A violência política havia sido parte da estratégia
do alto comando para controlar o Exército desde 1952. Após 1964,
esse mesmo sistema foi adaptado para garantir o controle sobre a
sociedade civil.
Conclusão
As democracias ruíram em toda a América Latina nos anos 1960
e 1970. As intervenções militares que se seguiram foram
qualitativamente diferentes das de décadas anteriores. No passado,
os militares atuaram freqüentemente como um “poder moderador”
que intervinha na política para substituir um presidente civil por
outro. Mesmo quando as Forças Armadas mantinham o poder, não
tentavam transformar a sociedade. Mas isso mudou após o golpe de
1964 no Brasil. Como descrito por J. Patrice McSherry no caso
argentino, os militares tomaram o poder com um programa
extremamente amplo de transformação da sociedade, da economia
e da política. As Forças Armadas desejavam mudar até a forma de
pensar do público. Os militares argentinos proibiram o ensino da
“matemática moderna”, acusada de subversiva; alteraram currículos
em universidades e expulsaram estudantes de oposição. O medo
era uma parte essencial do projeto das Forças Armadas. Na
Argentina, criou-se assim um mundo de pesadelo: milhares de
pessoas foram jogadas de aviões no Oceano Atlântico,
estabeleceram-se campos de concentração especiais para
prisioneiras grávidas, e cerca de 30 mil pessoas devem ter
desaparecido.58 As forças de segurança brasileiras também jogaram
presos no mar e no rio Amazonas, ainda que numa escala muito
menor, segundo entrevistas com dois homens que tomaram parte
nessas práticas.59
Uma questão-chave é como Forças Armadas da região criaram
seus aparatos de repressão. Pelo menos no Brasil, a prática de
intimidação não era nova. O que mudou foi a emergência de um
sistema permanente de inteligência e tortura para reprimir desafios
em termos ideológicos dentro das próprias organizações militares, já
que a instituição se tornou cada vez mais profissional. Essas
estruturas permitiram aos militares brasileiros transplantar para a
sociedade em geral um sistema voltado para reprimir o dissenso
dentro das Forças Armadas. Por toda a América Latina estabeleceu-
se um padrão similar: quanto mais os militares da região se
profissionalizavam, seu crescente poder era acompanhado de
repressão e violência política extralegal. No caso brasileiro, os
militares continuaram a se profissionalizar durante o regime
autoritário, quando a violência de Estado era comum.60 Essa
profissionalização não inibiu a prática de arbitrariedades; ela tornou
as Forças Armadas mais ambiciosas em sua aplicação. A repressão
militar não é um subproduto de um desenvolvimento “pré-moderno”
e de instituições não-profissionais; ao contrário, é um problema
complexo relacionado a questões sociais e políticas mais amplas. É
preciso entender a história da violência militar extralegal para poder
superar o seu legado.

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* Traduzido por Vitor Izecksohn. A versão original deste capítulo está em


Smallman(2000). O autor agradece a Frederick Nunn e Emília Viotti da Costa
por seu apoio na realização deste projeto.
** Doutor em história pela Yale University; professor da Portland State
University.
1 Ver Huggins (1991); para trabalhos teóricos sobre o terror, ver Taussig
(1984); Scarry (1985). Raramente a finalidade primária da tortura é obter
informações; ver Cancelli (1993:193).
2 Ver Stepan (1971:3, 28, 33-37, 40-41); McSherry (1997:91, 93, 97); Pion-
Berlin (1989); Zirker (1988).
3 Há alguns estudos históricos sobre a violência extralegal dos militares no
Brasil; ver Maspero (1971:15-43); Alves (1966); Argolo (1996).
4 A respeito da necessidade de pessoal de apoio, ver Rejali (1991:135).
5 Para uma introdução geral aos militares brasileiros, ver McCann (1991);
Carvalho (1982).
6 Para a discussão de Rejali sobre a teoria da modernização (que ele chama
de “developmentalist approach”) ver Rejali (1991:132-133) e Huntington
(1957). Para uma discussão contemporânea dos ideais de Huntington, ver
Norden (1998:145).
7 Ver Stepan (1973:47-68).
8 Ver Rejali (1991:138-140); Peters (1996).
9 Ver Huggins (1998:14).
10 Para a melhor narrativa dessa rebelião e suas conseqüências, ver Morel
(1979). Outras fontes importantes são Morgan (2001) e Nascimento (1997).
11 Ver Morel (1979:176); Pinheiro (1991:95-104).
12 Ver Waack (1993:146, 252, 258, 280); Sodré (1986:99-102); Hilton
(1981:81-83, 104; 152-153). Ver também Smallman (1999).
13 Comandantes usaram, por exemplo, a corrupção para garantir a lealdade
de seus homens; ver Smallman (1997).
14 Ver Maspero (1971:11).
15 Ver Manor (1978:561-562); Peixoto (1980:73-80); Smallman (2002:161-
163).
16 Argumento que muitos desses nacionalistas eram veteranos (Smallman,
1998). Outros, especialmente Stepan (1971:239, 242), alegam que os
veteranos brasileiros apoiaram a posição da hierarquia.
17 Ver Moura (1986:62).
18 Para o artigo que desencadeou a controvérsia, ver X (1950:75-80); para o
conflito que se seguiu, ver a entrevista de H. Miranda (Cpdoc/FGV, 1992:63);
Manor (1978).
19 Para a semelhança entre facções militares e partidos políticos, ver Rouquié
(1980:9-17).
20 Ver a entrevista de Nelson de Melo (Cpdoc/FGV, 1992:310). A Cruzada
Democrática recebeu apoio da União Democrática Nacional (UDN).
21 Ver os comentários de Francisco Teixeira em Lima (1986:230). Ver também
Miranda (1983:341-348); e a entrevista de H. Miranda (Cpdoc-FGV, 1992:10).
22 Ver Anônimo (1953); esse livro, assim como outros que desagradavam aos
militares, sumiu das bibliotecas brasileiras durante o regime militar. Nelson
Werneck Sodré (1967:331-334, 342-343), porém, o cita longamente. Para
uma referência contemporânea ao livro, ver Correio da Manhã (2 jul. 1955, p.
7).
23 Segundo Sodré (1967:334-338), a hierarquia dirigiu seu ataque a oficiais
que traziam votos do interior. Muitos dos oficiais detidos haviam distribuído
uma revista nacionalista chamada Emancipação; ver a entrevista de M.
Miranda (Cpdoc/FGV, 1992:62, 94).
24 Ver Correio da Manhã (2 jul. 1955, caderno 1, p. 7). Para uma lista de
soldados presos, ver Miranda (1983:343).
25 Por exemplo, um soldado perdeu 15 quilos em 26 dias de prisão (Última
Hora, 5 jul. 1954, p. 7).
26 Ver Miranda (1983:342); ver também o documento que 15 prisioneiros
contrabandearam para fora da prisão militar (ibid., p. 349).
27 Ver o manifesto da Associação Brasileira de Defesa dos Direitos do
Homem; Miranda (1983:346).
28 O ministro da Guerra, general Ciro de Espírito Santo Cardoso, alertou
sobre atividade comunista nas Forças Armadas em 8 de maio de 1952 (The
New York Times, 9 maio 1952, p. 3).
29 The New York Times, 22 mar. 1952, p. 4.
30 Ver Miranda (1983:346).
31 Para uma lista de oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que
conduziram essas investigações, ver Lima (1986:230). Sobre prisões de
oficiais nas três armas, ver The New York Times (30 mar. 1952, p. 12; 15 abr.
1952, p. 3; 17 abr. 1952, p. 4).
32 Os soldados tinham sua própria organização social, a Casa do Sargento.
Em 21 de março de 1952, a Polícia Militar prendeu o presidente e um diretor
do clube, que foram acusados de serem comunistas. Ver os comentários do
embaixador dos EUA Herschel V. Johnson para o secretário de Estado, em 24
mar. 1952 (National Archive-USA, RG 59, 732.55/3-2.452); entrevista de M.
Miranda (Cpdoc/FGV, 1992:89); The New York Times (22 mar. 1952, p. 4; 23
mar. 1952, p. 24).
33 William W. Wieland para o Departamento de Estado, 3 mar. 1952 (NA-USA,
RG 59, 732.55/4-352); para a conferência de imprensa de Estillac, ver Jornal
de Debates (25 mar. 1952, p. 1).
34 O Cruzeiro (23 ago. 1952, p. 78).
35 O Cruzeiro (7 jun. 1952, p. 108).
36 Ver The New York Times (12 nov. 1952, p. 4; 20 nov. 1952, p. 14).
37 Ver Correio da Manhã (1 jul. 1952, p. 4).
38 Até mesmo o The New York Times comentou sobre o segredo a respeito
do expurgo. Ver The New York Times (13 jul. 1952, p. 1; 1 set. 1952, p. 2; 22
out. 1952, p. 8); Correio da Manhã (3 jul. 1952, p. 5); O Cruzeiro (23 set. 1952,
p. 36-42).
39 Ver Última Hora (5 jul. 1954, p. 7).
40 Ver entrevista de H. Miranda (Cpdoc/FGV, 1992:13). Em 1955, a Marinha
criou o Centro de Informações da Marinha, que ganhou rapidamente péssima
reputação pela prática de tortura; ver Hunter (1997:34).
41 Na verdade, em 1958, os nacionalistas ganharam novamente controle do
Clube Militar; ver Peixoto (1980:96); ver também em Lima (1986:230) os
comentários de Paulo Eugênio Pinto Guedes.
42 Ver em Lima (1986:230) os comentários de Paulo Eugênio Pinto Guedes
sobre o fato de Golberi do Couto e Silva ser um dos líderes da Cruzada
Democrática.
43 Para informações sobre Golberi do Couto e Silva, ver Beloch e Abreu
(1984:3.1573.162).
44 Ver Sodré (1988:240-250; 1967:382-383).
45 Ver Hepple (1986:84); sobre o Ipês e sobre o golpe de 1964, ver Dreifuss
(1987).
46 Ver Dulles (1970:189); para a criação dessa organização, ibid., p. 172.
47 Ver Beloch e Abreu (1984).
48 Ver Stepan (1971:97).
49 Ver Sodré (1988:279-281).
50 Sodré, por exemplo, fugiu para o interior, onde foi capturado (ibid., p. 286-
290).
51 Ver Silva (1988); Comblin (1980:77); Maspero (1971:10); Sodré (1988:245-
349); Huggins (1998:121). Muitos comandantes mais antigos se opuseram ao
golpe, o que encorajou oficiais de patente mais baixa a darem continuidade às
expulsões; ver Stepan (1971:223-225); Sodré (1988:295).
52 Sobre a liderança de Golberi no SNI, ver Beloch e Abreu (1984:3.158-
3.159).
53 Ver D’Araujo (1994).
54 Ver Maspero (1971:50-51); Hunter (1997:34); Zirker (1988:592).
55 Ver Huggins (1998:122-123).
56 Ver Stepan (1988:16).
57 Ver Stepan (1988:17). Sobre os laços entre civis e soldados, ver também
Stepan (1971:175-177, 186, 246).
58 Sobre o caso argentino, ver McSherry (1997:59-60, 79, 83, 85, 86-87, 93-
94, 99); ver também Verbitsky (1996).
59 Um oficial brasileiro da Aeronáutica afirmou que sua unidade jogou no
Oceano Atlântico, em maio de 1968, vários estudantes que haviam
participado de manifestações. Em outro depoimento, um integrante do
DOI/Codi referiu-se a agentes jogando prisioneiros de um avião que
sobrevoava o Amazonas. As prisioneiras eram primeiro estupradas. Ver
Huggins (1998:143, 165); Langguth (1978:152).
60 Ver Hunter (1997:27).
CAPÍTULO 16

Poder Judiciário e poder militar (1964-69)*

Renato Lemos**

Um novo senhor é sempre severo!

(Ésquilo, Prometeu acorrentado.)

Votamos uma lei absolutamente necessária, porque


esta revolução tem feito todo o possível para se
manter dentro dos quadros da lei, mas não se manterá
dentro dos quadros da lei se os seus princípios forem
frustrados, porque, acima de tudo, estão os princípios
da sobrevivência da pátria dentro de um regime de
moralidade e de dignidade.

(Senador Daniel Krieger)1

Os novos senhores do Brasil após o golpe de 1964 foram


severos. A significação do grau de dureza com que exerceram o seu
domínio não deve ser deduzida da comparação com experiências
análogas. Diferenças quantitativas — número de prisões,
assassinatos, “desaparecimentos” etc. — contam pouco, quando
tomadas como atenuantes no processo perante um suposto tribunal
da história. Contam muito, contudo, se entendidas como indicativas
da variedade de modos pelos quais se concebem e implementam
estratégias de dominação política.
A imposição de práticas autoritárias no Brasil após o golpe militar
de 1964 atingiu uma gama extremamente variada de pessoas:
políticos e militares ligados ao governo deposto, líderes comunistas
e nacionalistas, intelectuais, professores e estudantes, sindicalistas
rurais e urbanos, clérigos etc. Logo, contudo, o campo dos atingidos
e os pretextos para “punições” se ampliaram em direção a pessoas
desprovidas de quaisquer qualificativos especiais e acabaram por
institucionalizar-se. A vida se tornou perigosa para os cidadãos em
geral, e não apenas para as oposições políticas. Por mais que cada
um soubesse o que não podia fazer, era impossível ter segurança
quanto ao que se podia fazer2 — havia regras, mas a interpretação
de como aplicá-las podia mudar a qualquer momento.
Do ponto de vista do cidadão, a situação autoritária era até
tímida, se comparada com o que se sucederia em outros países.
Cientista político argentino perseguido pela ditadura militar em seu
país, Guillermo O’Donnell passou a viver no Brasil em 1979. Ele
assim comentou o estado de insegurança em que vivia sob o regime
militar instalado na Argentina três anos antes, não só pelas
ameaças de prisão, seqüestro e assassinato, mas também pela
inexistência de regras formalizadas:

Uma vez que o regime — em consonância com sua natureza


profundamente terrorista — se recusava a estabelecer quaisquer
regras claras sobre o que era ou não passível de punição, era
praticamente impossível sentirse seguro. (Em nossos
melancólicos encontros com amigos chilenos e uruguaios
acabávamos descobrindo que sentíamos inveja de seus regimes
não menos repressivos, porém mais burocratizados e, portanto,
mais previsíveis.)3

Talvez comparativamente mais burocratizada e previsível do que


suas congêneres latino-americanas, a ditadura brasileira se
distinguiu também pela importância que a esfera jurídica veio a
assumir nas relações de dominação política. Teodomiro Romeiro
dos Santos era militante do Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário (PCBR) e, em outubro de 1970, foi seqüestrado na
rua por indivíduos à paisana. Matou um deles, sem saber que se
tratava de um sargento da Aeronáutica a serviço dos órgãos de
repressão política. Inicialmente preso num quartel de Salvador, foi
muito torturado e pensou que iria morrer. Enquadrado na Lei de
Segurança Nacional, tornou-se menos pessimista quanto ao futuro
no momento em que soube que seria julgado e não temeu pela vida
mesmo quando foi condenado à morte em 1971:

No momento em que o juiz lia a minha sentença, me


condenando à morte, eu sabia, estava convicto de que a partir
daquele momento não mais morreria. (…) Eu estava convicto de
que, aqui no Brasil, quem tinha de ser morto foi morto sem ter
sido preso ou sem ter chegado a julgamento. (…) Com o
encaminhamento da minha prisão, processo e demais
procedimentos legais, já sabia que não morreria.4

A sentença de morte, no seu caso, teria sido “apenas uma arma


de pressão, para ameaçar e tentar desmotivar quem lutava do lado
de fora”, uma decisão “isolada, de caráter regional”. Em seguida, foi
transformada pelo Superior Tribunal Militar (STM) em prisão
perpétua e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em pena de 30
anos de reclusão, como viria a acontecer com outros dois presos
políticos condenados à morte depois.5
O episódio protagonizado por Teodomiro, ocorrido na fase mais
dura do regime militar, exemplifica bem a complexidade do problema
da lei no contexto da dominação política. As instituições jurídicas
surgem, para ambos os extremos do conflito — detentores do poder
e oposição radical —, como espaços em que o respeito a
determinadas regras, ainda que apenas parcial, confere à luta
política alguma previsibilidade e “racionalidade”.
Este capítulo trata da conexão do Poder Judiciário com o
processo político brasileiro no período que vai do golpe militar que
depôs o presidente João Goulart, deflagrado em 31 de março de
1964, à edição do Ato Institucional no 6, de 1o de fevereiro de 1969,
que promoveu uma reforma parcial no Judiciário, modificando sua
composição e suas competências. Mais especificamente, discute o
papel exercido pelo STF e o STM nessa conjuntura, com o objetivo
de apresentar uma análise do ângulo da história política.

O problema
A atuação do Judiciário durante a ditadura militar tem recebido
pouca consideração sistemática por parte das ciências sociais.
Tende-se a estudar o regime militar brasileiro, como forma de
dominação política, exclusivamente em seus aspectos coercitivos:
práticas policiais, legislação autoritária etc. As instituições do Estado
são analisadas como mecanismos de implantação e reprodução de
relações políticas autoritárias. Pouco se discute, contudo, o alcance
da insistência que a corrente civil-militar que empolgou o poder
político em 1964 demonstrou em manter funcionando, mesmo que
sob estrito controle do Executivo, instituições democráticas, como o
Judiciário, o Legislativo e o sistema partidário. O importante trabalho
de Maria Helena Moreira Alves, por exemplo, constata a força
política do Judiciário, mas não se pergunta por que os militares no
poder a respeitaram durante tanto tempo.6 Mesmo o livro de Emília
Viotti da Costa, o mais abrangente acompanhamento das relações
entre o STF e o processo político nacional, também não vai além da
constatação de que os militares mantiveram a Constituição de 1946,
reformando-a, em um primeiro momento, apenas no tocante aos
poderes do Executivo, decisão cujas razões a autora não
questiona.7
Sader avançou na superação da insuficiência das análises do
regime militar brasileiro em relação a esse aspecto. Para ele, a
ditadura militar foi a mais “dissimulada” entre os regimes análogos
do continente. Os demais, ainda que evitassem proclamar
abertamente seu caráter de ditadura, não hesitaram em se anunciar
como agentes da substituição do regime democrático por uma “nova
ordem”. No Brasil, embora alguns setores militares tenham
esboçado a defesa de uma ordem não-democrática duradoura, essa
“tentação” terá sido “minoritária ou breve”:

Os militares brasileiros, ostensivamente escolhidos pela


corporação militar e a ela prestando contas, sempre cumpriram o
ritual da “eleição pelo parlamento” e reverenciaram o mito da
“representação popular”. Podese dizer que se tratava apenas de
“salvar as aparências”. Mas isso não explica por que salvá-las.
Por que não mudar as aparências? Não explica a importância do
persistente compromisso com o “pleno restabelecimento da
normalidade democrática”. Afinal, essa inconseqüência aparente
dos nossos chefes militares deu ao regime uma flexibilidade que
outros não tiveram e deu a margem necessária para operar as
transformações exigidas, guardando sempre uma ligação com
organismos da representação civil.8

Uma sugestiva linha de reposta aos “por quês” apresentados por


Sader e que vai além da discutível idéia de estratégia dissimuladora
pode ser encontrada em estudo de Maria D’Alva Gil Kinzo. A autora
entende que a adoção do “regime híbrido”, que combinou traços
autoritários e ditatoriais com mecanismos de um sistema
democrático, pode ser explicada

pela necessidade de preservar a imagem do país no exterior, de


assegurar um lugar para os civis que haviam participado da
“Revolução” e de preservar a unidade das Forças Armadas. A
estes fatores, poderíamos acrescentar que a intenção inicial dos
militares não era a instauração de um regime tipicamente militar-
autoritário, mas sim de uma “democracia tutelada” ou restrita.9

Anne-Marie Smith apresenta uma outra possível razão para a


“manutenção das formas tradicionais” da política brasileira. Tal
atitude,
na medida em que era intencional e não mero resultado da
inércia, visava às elites e à classe média, cuja cultura política
incluía uma preocupação com o estado de direito e uma
expectativa de que ele seria respeitado. Para esses brasileiros,
cujo apoio era essencial para a estabilidade e o bom êxito do
regime e para os quais se destinavam muitas de suas políticas,
era reconfortante a manutenção de certas instituições
tradicionais.10

Os novos donos do poder argumentavam que o movimento


contra o presidente João Goulart fora necessário ao
restabelecimento do regime democrático no país, que estaria sendo
seriamente ameaçado pela orientação política que seu governo
vinha adotando. Dessa perspectiva, o período balizado pelo golpe e
pelo Ato Institucional no 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968,
é visto como de “saneamento político” e consolidação do novo
regime.
É verdade que a existência de correntes militares com
importantes divergências quanto à condução do processo político
torna mais complexa a caracterização dessa conjuntura, mas
também é fato que o compromisso do regime com a “democracia”
aparece com um leitmotiv da aliança que dirigiu o país no período.
Soa quase anedótica a angústia do autoproclamado ministro da
Guerra do novo regime, general Artur da Costa e Silva, diante da
demora na definição do primeiro ato institucional: “que lhe dessem
algum documento, ‘qualquer coisa’, dizia, que lhe permitisse iniciar
as punições”.11 O episódio, no entanto, indica que a preocupação
com a formalidade jurídica pode ter significado mais do que mero
preconceito juridicista, traduzindo uma dificuldade de atuar à
margem de certos paradigmas de cultura política. Mesmo na
Alemanha nazista, onde a supressão das liberdades democráticas
esteve em um nível ainda inigualado, não foi interessante descartar
imediata nem totalmente a tradição constitucional germânica, como
nos informa Hanna Arendt:
Nos primeiros anos do poder, os nazistas desencadearam uma
avalanche de leis e decretos, mas nunca se deram ao trabalho
de abolir oficialmente a Constituição de Weimar; chegaram até a
deixar mais ou menos intactos os serviços públicos — fato que
levou muitos observadores locais e estrangeiros a esperar que o
Partido mostrasse comedimento e que o novo regime
caminhasse rapidamente para a normalização. Mas, após a
promulgação das Leis de Nuremberg [que institucionalizaram a
perseguição aos judeus], verificou-se que os nazistas não tinham
o menor respeito sequer às suas próprias leis.12

No mundo de pós-guerra, o “mercado mundial de idéias”


estabeleceu a legitimidade democrático-representativa como pré-
requisito para a aceitação da dominação política, o que impôs aos
regimes não-democráticos surgidos a partir de então um quadro de
“esquizofrenia ideológica”: praticar o autoritarismo no presente
prometendo a democracia no futuro.13 “Autoritarismo consentido”,
“democracia tutelada”, “democracia restrita”, “democracia com
Executivo forte”, “ditadura branda” são expressões que tentam
distinguir do anterior o regime político implantado no Brasil pós-1964
e, ao mesmo tempo, definir o seu perfil. Eufemismos e adjetivações
funcionam para apresentar como próximo à democracia algo bem
distante da idealização que se costuma fazer desse tipo de
regime.14 Mesmo analistas que se pretendem críticos da ditadura
militar parecem ter-se deixado confundir pelos aspectos “liberais” do
regime, enfrentando dificuldades para descrever a sua face mais
dura:

Por certo, tais limitações não impediram os surtos de práticas


extremamente violentas que ultrapassaram os níveis de
prepotência admitidos pelo marco institucional. Tal ocorreu todas
as vezes que os agentes diretos da repressão conseguiam
apelar com êxito para a chamada “escusa da necessidade”. Não
obstante, também é verdade que, na ausência de uma
congruente cobertura normativa e valorativa, as práticas
toleradas em situações críticas tenderam a tornar-se
exorbitantes em face do refluxo do movimento conjuntural que as
engendrara.15

Se há alguma virtude em texto redigido de forma tão abstrusa é


a autorização que dá ao leitor para decodificá-lo com infinita
liberdade. Do trecho acima transcrito, talvez se possa inferir que a
violência, na forma de prisões arbitrárias, humilhações, torturas e
assassinatos de opositores — muitas vezes, apenas supostos
opositores—, na verdade registrados em todo o percurso do regime
militar, não passaram de irrupções em um “marco institucional” que
não os admitia como prática constante. Sendo adequada a
inferência, não haverá surpresa na leitura do que se segue:

Admitindo que o autoritarismo possa ser tratado como uma


variável, suscetível de assumir diferentes valores ao longo do
tempo, é forçoso reconhecer que o regime, apesar de ter-se
tornado agudamente autoritário em diversos momentos, não só
nunca chegou a atingir os graus extremos de intensidade
registrados em outros países capitalistas periféricos (Chile,
Argentina), como até mesmo assumiu, em certas oportunidades,
características próximas às da normalidade republicana, tal
como essa expressão é contemporaneamente entendida.16

O argumento do comparativamente baixo grau de intensidade do


autoritarismo é usado também em defesa da ditadura: “em nosso
país, a moderação dos militares é comprovada por um número
menor que três centenas de mortos”.17 Ou: “a quantidade de gente
que sofreu é ínfima, em relação ao que se vê por aí afora. Compara
com Argentina, Chile, Cuba, Iugoslávia. O que se fez aqui foi
irrisório”.18 Quanto às “características próximas da normalidade
republicana”, os autores não explicam de que estão falando. O certo
é que a democracia que os golpistas de 1964 apresentariam como
“restaurada” não correspondia à que teria sido conspurcada por
Goulart e seus partidários. E isto não só porque se apresentava
“saneada” de forças políticas anatematizadas, mas, principalmente,
por sustentarse em elementos destituídos de mandato
representativo, por desconhecer, na prática, os clássicos direitos à
liberdade de expressão, reunião e organização, e por fazer da rede
burocrática policial-militar o principal canal do seu poder. Nada muito
“contemporâneo” das democracias existentes em 1983, ano da
edição do texto comentado acima.
Na verdade, a democracia resultante de conúbio com o
autoritarismo trazia no gene dominante sua negação formal — a
ditadura —, dela se tornando expressão eufêmica, que deveria vir
acompanhada da seguinte errata: onde, em discursos e práticas, se
lê “democracia”, entenda-se a sua formulação adaptativa à
estratégia contra-revolucionária postulada pela doutrina de
segurança nacional.19 Mas nem por isso o que se tinha de
democracia no período era mera formalidade. A tese da “fachada
democrática”, muito disseminada à época entre as correntes
oposicionistas, desfruta de grande influência também nos vários
matizes de análises críticas mais recentes. Para Emir Sader, por
exemplo:

Foi mais fácil para a ditadura, após depurar o Legislativo e o


Judiciário, conviver com eles, sem necessidade de fechá-los,
como aconteceu nos outros países do Cone Sul. Não foi um
sinal de “liberalismo” do regime militar, mas de fraqueza das
forças democráticas e de ambigüidade acentuada dos liberais:
aquelas puderam ser derrotadas, mantendo-se a fachada das
instituições, e estes compactuaram com o regime de força.20

Mesmo a autora que vai mais longe na análise da preservação


de mecanismos liberais se deixa envolver pela tese. Discutindo a
adoção do bipartidarismo em 1965, ela afirma que a estratégia do
governo, ao investir na existência de um pequeno partido de
“oposição formal”, visava “apenas garantir uma fachada
democrática”.21 Segundo uma variação desse ponto de vista, “os
generais que dirigiram o país desde 1964 tiveram o bom senso de
governar recorrendo amplamente à distorção e não à destruição das
instituições básicas da democracia política”.22 Bolivar Lamounier é
terminante em face desse modo de ver:

Naturalmente, não faltam análises nas quais essa preservação


de traços representativos é explicada como engodo, fachada,
mistificação, ou, quem sabe, até como capricho. São, no meu
entender, visões banais, fundadas num equívoco básico que é o
de não compreender os dilemas de um processo complexo de
legitimação (…).23

O hibridismo político produziu uma realidade tão concreta quanto


o regime derrubado. Traços democráticos e ditatoriais se
relacionaram numa nova síntese, adequada à correlação de forças
políticas inaugurada em 1964. Tratando-se de um regime que
tentaria adequar uma sociedade portadora de razoável grau de
complexidade econômica e social às conveniências dos capitais
monopolistas internacionais,24 nem a democracia nem a ditadura
poderiam ser como antes do golpe. A necessidade de eufemismos
simboliza as contradições entre a nova coalizão no poder. Se por
um lado a facção que controlava o governo na primeira fase do
regime — apelidada “castelista” ou “autoritária liberal” — rejeitava o
tipo de democracia vigente até 1964, por outro ela não tinha
necessariamente um projeto de ditadura à antiga.25 Já a extrema
direita do regime — as variantes da “linha dura” — parecia não ter
muitos escrúpulos em defender a redução drástica e duradoura do
campo democrático.
A identidade do novo modo de dominação combinaria
dinamicamente traços de ambas as tendências do regime, mas
articulando-os de maneira a responder às questões específicas que
funcionaram como motivação da frente anti-Goulart, a começar pela
necessidade de ampliar os poderes do Executivo. Roberto Campos,
um dos pilares do regime durante o governo do general Castelo
Branco, formulou esse aspecto da questão de maneira precisa: “a
opção política que nos convém — e que é na realidade a opção
consagrada pela revolução de 1964 — é a de democracia
participante com um Executivo forte”.26 O perfil do regime pode ser
definido pela tentativa de instalação de estruturas de democracia do
tipo mencionado por Campos, uma constante na trajetória global do
país no período. A significação político-ideológica da reiteração
desse projeto contra-revolucionário é um tema ainda à espera de
pesquisas de maior fôlego, mas aparece neste estudo como uma
preocupação subjacente à abordagem do tema principal.
Não é relevante, aqui, discutir se a combinação das instituições
democráticas preservadas com os mecanismos criados pela
ditadura corresponde ou não à idéia de uma “verdadeira”
democracia, ou se os dirigentes eram ou não “verdadeiros”
democratas. Segundo um especialista em linguagem figurada, não
ser verdadeiro o que se diz “não impede a sua institucionalização;
pelo contrário, [o que se diz] assume um tal ar de totalidade que,
totalitariamente, sufoca qualquer outra manifestação que, de algum
modo, possa revelar sua imitação e inverdade”.27
A idéia de democracia que o regime se esforça por construir
para legitimar-se perante certas parcelas da sociedade e
externamente se concretiza em relações institucionalizadas. É
preciso ter em conta que o regime militar implantado no Brasil em
1964 teve natureza ditatorial, mas não se apoiou exclusivamente
numa classe social determinada. Mantendo uma relativa autonomia
política em face dos grupos socialmente dominantes, construiu
passo a passo, e ao sabor dos conflitos com as oposições —
internas e externas — e com os aliados, o esquema de dominação
híbrido. A articulação de instrumentos de exceção com dispositivos
da legalidade herdada de 1946 visava tornar flexível a administração
dos conflitos e reduzir seu inevitável custo político. O Poder
Judiciário, por exemplo, foi chamado a situar-se, no período em
questão, num quadro em que a prática de violências contra presos
políticos convivia com a possibilidade de denunciá-las nos tribunais.
Mantido em funcionamento, o Judiciário exerceu um papel ativo no
sistema político e interagiu complementar e contraditoriamente com
as demais instituições — tanto as preservadas quanto aquelas
criadas pela ditadura —, contribuindo decisivamente para a
determinação da conjuntura política.
Dessa perspectiva, o momento crucial do fim do regime militar —
a sucessão do general João Figueiredo — pode ser apresentado
como emblemático dos aparentes paradoxos ensejados pela
estrutura híbrida. A eleição indireta do candidato oposicionista,
Tancredo Neves, em janeiro de 1985 só foi possível porque uma
corte preservada pelos governos militares — o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) — interpretou um artigo da Emenda Constitucional
de 1969 — na prática, uma Constituição e a mais autoritária jamais
conhecida na história do país — e concluiu que o instituto da
fidelidade partidária não valia para o Colégio Eleitoral. A dissidência
do Partido Democrático Social (PDS), governista, pôde, então, dar
ao candidato oposicionista os votos sem os quais seria derrotado.28
Em geral, as obras que tangenciam a temática em discussão
optam por analisar atitudes pontuais do Judiciário em momentos
críticos da implantação das estruturas ditatoriais. Alguns tendem a
ver o Judiciário como uma estrutura que sofreu a ação “saneadora”
do novo grupo no poder, exerceu influência pouco significativa na
definição dos rumos políticos do país e cumpriu um papel
exclusivamente coonestador do regime. Outros, a apontá-lo como
último e invicto bastião da resistência democrática à ditadura.
Clóvis Rossi informa que todos os regimes militares da América
Latina submeteram o Judiciário ao Executivo, embora nem todos
tenham tido o atrevimento de formalizar a relação. O Uruguai fugiu à
regra e foi onde “levou-se mais longe que em qualquer outro país a
legislação de exceção: um dos atos institucionais baixados após o
golpe de 1973 subordinava claramente o Poder Judiciário ao
Executivo, rompendo o clássico esquema de três poderes (…)”.29
Já Marcus Figueiredo observa que o Judiciário é o limite da
liberdade coercitiva da elite dominante. O grau de autonomia com
que esta usará a coerção como instrumento político “é dado pela
relação entre ela e o Poder Judiciário, naquilo em que este
representa o direito de defesa individual e coletivo contra o
arbítrio”.30 Para Lúcia Klein, a função do Judiciário durante a
ditadura militar consistiu, apenas, em implementar a nova ordem
legal.31
Não é considerada por estes autores a possibilidade de o
Judiciário constituir uma instância a um só tempo limitadora do
poder de coação e legitimadora da ordem coatora, na medida em
que o próprio fato de estar em funcionamento sugere que vigoram
as regras democráticas. O Judiciário sintetiza as contradições da
ordem fundada na lei: limita o exercício de práticas reprodutoras da
desigualdade, regulando-as, mas também as legitima, reforçando a
idéia mistificadora de que a preservação da legalidade é o ponto
central da vida política, independentemente da heterogeneidade,
freqüentemente contraditória, dos interesses por ela regulados. O
problema de angariar legitimidade para o novo regime implica o de
reduzir o potencial de resistência à nova ordem. Para isso, é
importante evidenciar que o Judiciário, pilar da democracia, funciona
livremente e faz prevalecer o respeito à lei também por parte do
governo militar.
Quanto ao Superior Tribunal Militar, ainda recentemente os
próprios militares se queixavam de que a instituição é esquecida
pelos estudiosos, inclusive da área de direito.32 De fato, encontram-
se apenas menções ligeiras e subsidiárias ao STM em análises
políticas. Eliezer Rizzo de Oliveira33 é autor de um estudo em que o
tribunal é o tema central, mas restrito ao período de governo do
general Ernesto Geisel (1974-79), quando se inicia a transição
controlada para a democracia. Em relação aos anos anteriores, há
duas importantes exceções fora da área acadêmica: Brasil nunca
mais34 — que, no entanto, sendo uma obra de intervenção política,
se dedica mais à descrição do funcionamento da Justiça Militar do
que à análise dos seus órgãos — e Esquerda armada (testemunho
dos presos políticos do presídio Milton Dias Moreira),35 que contém
depoimentos e análises de presos políticos sobre a Justiça Militar,
entre outros aspectos da ditadura.
Esse quadro de indigência historiográfica talvez decorra de um
entendimento do STM como órgão pouco mais que decorativo no
contexto político do regime militar,36 embora o integrassem oficiais
da ativa de conduta nem sempre sintonizada com a orientação
dominante. Severas críticas feitas ao governo militar por dois
generais-juízes são classificadas por um analista como meras
“escaramuças verbais”.37 Interpretação que não corresponde
exatamente à dos oposicionistas perseguidos no período,38 mas
desfruta de ampla circulação, ao menos tacitamente, entre os
analistas.
Entretanto, há fortes indicações de que o Judiciário cumpriu
outro papel no enredo do regime militar, tendo participado de
importantes negociações com o Executivo em contextos de crise
política. As relações entre Executivo militar e Judiciário
apresentaram significativas peculiaridades na conjuntura em foco.
Miranda Rosa observa, por exemplo, que, ao contrário do
acontecido em países europeus sob regimes ditatoriais (como a
Itália fascista e a Alemanha nazista) e latino-americanos (como a
Argentina da Junta Militar e o Chile sob Pinochet), os membros do
Judiciário brasileiro não foram objeto de perseguição privilegiada na
primeira fase do regime militar. Depois da onda punitiva inicial, os
magistrados que “por qualquer motivo tenham sido considerados
inconvenientes ou adversários políticos” passaram a ser tratados
sem os “excessos anteriores” e segundo uma orientação “na qual
não tinha lugar a demissão, muito menos a prisão, nem foram
encetados ‘processos’ punitivos ou outros tipos de restrições à
liberdade”.39 Teria mesmo ocorrido uma autolimitação dos militares
em relação aos juízes. Tal comportamento se explicaria por
elementos culturais — “a velha ideologia da conciliação nacional”,
que teria conduzido a um tratamento “aparentemente menos
agressivo do que contra aqueles que atingiu, com suas limitações,
restrições e ‘punições’, nos demais quadros da vida nacional”.
Também teriam sido beneficiadas as decisões judiciais, em geral
respeitadas, pelo menos formalmente.40 Miranda Rosa percebe nos
militares “condicionantes sócio-culturais” explicativos deste
sentimento quase “cerimonioso” em face da magistratura:
Afinal de contas, a única outra instituição brasileira no serviço
público, com alguma semelhança com as Forças Armadas, era e
é a magistratura. Ela se pauta por normas de comportamento
muito rigorosas, nela se manifesta também um nítido quadro
conservador, e juízes e tribunais, mais ainda que os militares,
têm como função a manutenção da ordem jurídica existente.41

Desrespeitar abertamente o Judiciário, fechando-o simplesmente


ou cometendo violências físicas ou simbólicas contra seus
membros, jogaria o governo militar contra a crença na justiça, difusa
e desigualmente disseminada pela “civilização ocidental”. A força
desta crença é o fundamento do poder do Judiciário que, observa
Fábio Konder Comparato citando Montesquieu,

apresenta, em relação aos demais ramos do Estado, a


peculiaridade de não ter poder, mas sim autoridade. O “Poder”
incumbido de julgar os outros “Poderes” é despido de força, mas
investido do necessário reconhecimento de sua superioridade
pacificadora. (…) É, pois, um “Poder” que vive, essencialmente,
da legitimidade.42

O papel desempenhado pelo Poder Judiciário na primeira fase


do regime ditatorial militar tem a ver com a sua identificação ao
problema da legitimidade e pode ser explicado pela tentativa, feita
pelas correntes que exerciam a direção política, de combinar a
formalidade de certas estruturas democráticas com práticas e
inovações institucionais consideradas necessárias à implantação de
um novo modo de dominação, escorado no fortalecimento do
Executivo. A significação teórica desse tipo de opção remete à
discussão da capacidade que regimes como o implantado pelos
militares brasileiros tiveram para institucionalizar-se, construindo as
bases da sua legitimidade. É forte entre os analistas a idéia de que
a natureza autoritária do regime dificultou a sua institucionalização,
levando-o a compor com a tradição democrática. Para Bolivar
Lamounier, na verdade projetos autoritários e democráticos
convivem de longa data em elementos de cultura política
detectáveis no processo histórico brasileiro:

A afirmação de que a legitimação autoritária permanente é


inviável não deve ser vista como negação do fato de que o
modelo burocrático-autoritário tem sido, factualmente, quase ou
tão importante quanto o democráticorepresentativo, desde os
anos 1930. É inclusive certo que ele possui no Brasil importante
linhagem teórica que o apresenta como o sistema melhor
“adaptado” à “realidade nacional”. Nada disso nos deve
entretanto fazer perder de vista a sua precariedade enquanto
modelo ideológico com aspirações de se tornar definitivo ou
duradouro. Sintoma mais do que suficiente dessa precariedade é
o fato de que, mesmo nos momentos em que a prática autoritária
foi mais aguda e mais extensa, não faltaram manifestações
cerimoniais prometendo preservar as instituições
representativas, mostrando sua supressão como algo transitório
e, o que é ainda mais importante, cuidando sempre de deixar
aberta uma válvula pela qual os canais de legitimação popular,
pela via eleitoral, pudessem ser retomados.43

Assim, pode-se concluir que o fato de o regime não se ter


institucionalizado não deve obscurecer a importância factual e
teórica dos esforços feitos pelos seus dirigentes para consegui-lo.
Os poderes Judiciário e Legislativo, um sistema partidário, a liturgia
sucessória etc. receberam atribuições específicas nas estratégias
formuladas com o fim de obter legitimidade para o novo modo de
dominação política. O seu funcionamento é um dos fatores
explicativos da dinâmica do processo político no período.44

Hipóteses
O STF desempenhou um importante papel nessas estratégias,
como espaço atenuador de práticas policiais e jurídicas tendentes a
aprofundar o caráter ditatorial do regime. É inegável que em muitas
ocasiões o tribunal foi determinante para a garantia de respeito a
direitos políticos e individuais. Mas essa evidência não invalida a
hipótese, apenas indica o conteúdo contraditório das relações entre
o Executivo militar e o Judiciário. O lugar reservado a este, na
medida em que o mantinha em funcionamento, implicava o risco de
que os juízes, ao menos alguns, votassem contra os interesses
imediatos dos militares no poder. Como isso acontecia
esporadicamente, ou em relação a questões sem transcendência
política, podia ser encarado como um preço razoável a ser pago
para reforçar a idéia de uma ditadura provisória claramente
comprometida com o restabelecimento da democracia.
Quanto à Justiça Militar, como parte do Poder Judiciário, a sua
atuação foi determinada pelas características da luta política nos
momentos de ajuste de contas com o regime deposto e de
instalação dos pilares da nova ordem, bem como nas crises que
marcaram o período. A sua inserção no processo político na
conjuntura fez-se em uma tríplice condição.
Primeiramente, como órgão central do aparato de coerção
jurídica. A atribuição de interpretar e aplicar a legislação repressiva
foi progressivamente ampliada, culminando com a transferência dos
casos relacionados com crimes políticos da jurisdição do STF para a
do STM.
Em segundo lugar, como instrumento auxiliar na estratégia de
legitimação do regime. Integrado por oficiais de alta patente e já
próximos ao fim da carreira, portanto pessoalmente maduros e
politicamente experientes, o STM tendeu a atuar de maneira
relativamente moderada. Julgava de acordo com a legislação
derivada da doutrina de segurança nacional e com base em
processos construídos a partir de práticas violentas (prisões
arbitrárias, confissões obtidas à base de torturas etc.), mas, com
freqüência, reduzia penas propostas na primeira instância e
rejeitava processos formalmente defeituosos, o que beneficiava os
acusados. Desta maneira, contribuía para disseminar a idéia de que
o regime contava com uma corte empenhada em respeitar os
fundamentos jurídicos da democracia e os direitos dos presos
políticos. Importantes advogados que atuavam na Justiça Militar
expressaram, na época, opinião neste sentido, como Heleno
Fragoso na cerimônia de instalação do STM em Brasília, em 1973,
época de fastígio do regime ditatorial:

ninguém mais que os advogados poderiam nessa hora dirigir


suas homenagens ao Superior Tribunal Militar, exatamente na
hora em que ele vem se juntar aos demais tribunais superiores
da capital do país. São os advogados que conhecem mais
intimamente o mecanismo de realização da justiça podendo
julgar com precisão sobre os méritos dos tribunais. O Superior
Tribunal Militar tem sido autêntica Casa de Justiça, testado nas
causas mais delicadas, que são as que se referem a crimes
contra o Estado, nos quais o acusado aparece comumente como
inimigo a que facilmente se recusa o exercício dos direitos
fundamentais de liberdade. O Superior Tribunal Militar sempre
cumpriu o seu dever de distribuir justiça com independência e
serenidade, com observância dos princípios que governam o
processo penal democrático (…).45

O STM constituiu, por fim, uma arena de confronto entre


correntes militares que disputavam a primazia no regime. Na prática,
os juízes digladiavam com a primeira instância da Justiça Militar,
dominada por oficiais de baixa patente, em geral simpatizantes da
linha dura e aplicadores das penas mais altas previstas na
legislação. Mesmo os ministros mais conservadores faziam
restrições ao trabalho das auditorias militares e das comissões de
inquérito espalhadas pelo país para apurar supostos crimes de
subversão e corrupção. Com a ampliação das atribuições da Justiça
Militar por força do Ato Institucional no 2 (27-10-1965), o caráter
político de suas deliberações se tornou progressivamente mais
complexo. Refletindo conflitos entre o regime e os setores
oposicionistas — imprensa, Igreja, entidades representativas da
sociedade civil etc. —, mas, também, posições de facções militares
dissidentes e de oficiais independentes, críticos do governo, o STM
se tornou um cenário de disputa política.46
O Judiciário começou a desempenhar o seu papel no regime
ditatorial ao assumir a fiança simbólica da transmissão de poder às
forças golpistas. Na madrugada de 2 de abril de 1964, o presidente
da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, foi investido pelo STF
na presidência interina da República. A justificativa jurídica do golpe
— acusava-se João Goulart de ferir a Constituição com seus
procedimentos políticos — era extremamente frágil, e a posse,
ilegal, já que o presidente ainda se encontrava em território nacional
e não havia como, honestamente, proclamar a vacância do cargo.
Entretanto, o presidente do STF, ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da
Costa, sem consultar o tribunal, declarou apoio à nova situação.
Alguns dias depois, o Congresso Nacional “elegeu” o general
Humberto de Alencar Castelo Branco presidente da República —
isto é, chefe do primeiro governo do regime militar.
Em comparação com o Legislativo, que viu algumas de suas
funções precípuas transferidas para o Executivo e, em todo o país,
centenas dos seus representantes perderem mandatos e direitos
políticos, talvez o Judiciário tenha sido mais preservado pelo novo
regime, apesar dos 49 juízes afastados em 1964.47 Os atos
considerados crimes políticos, principal objeto da ação repressiva,
permaneceram inicialmente na alçada dos tribunais civis, o que
confirma a importância que o governo parecia atribuir à estrutura
judiciária.
Até o golpe de 1964, o Poder Judiciário funcionara de acordo
com o art. 94 da Constituição de 1946,48 que determinava o seu
exercício pelos seguintes órgãos: Supremo Tribunal Federal,
Tribunal Federal de Recursos, juízes e tribunais militares, juízes e
tribunais eleitorais, juízes e tribunais do trabalho. Na condição de
mais alta corte do Poder Judiciário, o STF sempre teve suas
funções políticas envolvidas em controvérsias interpretativas.49 A
dimensão política de algumas de suas atribuições, definidas no art.
101, é, no entanto, evidente. Cabia ao STF processar e julgar o
presidente da República, ministros, litígios entre estados, crimes
políticos etc. Acrescente-se a isso a competência para julgar, em
recurso extraordinário, causas em que a decisão original colidisse
com a Constituição ou que questionassem a validade constitucional
de leis federais ou locais. Por fim, é importante lembrar que os
membros do STF eram nomeados pelo presidente da República,
que submetia seus nomes ao Senado, não precisando os indicados
apresentar currículo de juízes ou promotores, mas apenas a
condição de brasileiros, a idade mínima de 35 anos, “notável saber
jurídico e reputação ilibada” (art. 99). Um órgão com tais
características não poderia senão sintetizar as contradições políticas
do regime ditatorial.
No período em estudo, o STF foi objeto de alterações
importantes por iniciativa do Executivo militar. A primeira, em
decorrência do ato institucional baixado em 9 de abril de 1964, que
suspendeu as garantias de vitaliciedade e estabilidade dos
funcionários públicos, abrindo campo para o afastamento
compulsório de juízes, via demissão ou aposentadoria, o que
violentava o disposto no art. 95 da Constituição de 1946. O
Judiciário ficou, também, impedido de controlar o mérito de atos
punitivos como a suspensão de direitos políticos e a cassação de
mandatos legislativos pelos autoproclamados comandantes-em-
chefe que assinavam o ato.
Tecnicamente, os atos punitivos resultavam de processos
iniciados com o Inquérito Policial Militar (IPM), que visava, em geral,
instituições identificadas com as forças políticas derrotadas em
1964, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Na prática, contudo, atingiam
um amplo universo de pessoas cuja única falta, muitas vezes, tinha
sido despertar a desafeição de gente que se beneficiava
particularmente da onda repressiva. Informações de caráter pessoal,
administrativo e patrimonial eram coletadas pelos órgãos de
informação ou fornecidas por delatores e usadas de maneira que
quase sempre resultava, no mínimo, em perda de emprego,
podendo chegar a prisão, tortura e morte do “suspeito”. A rede
formada por agentes e práticas relacionadas com os inquéritos
rapidamente constituiu-se em um ator político específico, que colidiu
com setores civis e militares do regime comprometidos com
estratégias mais conciliatórias e com as estruturas democráticas
preservadas:

Os IPMs tornaram-se uma fonte de poder de facto para o grupo


de coronéis designados para chefiar ou coordenar as
investigações. Configuravam o primeiro núcleo de um aparato
repressivo em germinação e o início de um grupo de pressão de
oficiais de linha-dura dentro do Estado de segurança nacional.
Como, na época, a decisão era passível de revisão pelo
Judiciário, o Supremo Tribunal Federal e os tribunais estaduais
freqüentemente revogavam as decisões dos IPMs. Estabeleceu-
se, assim, um confronto crescente entre a estrutura legal
tradicional e a estrutura paralela extralegal ou “revolucionária”.
Os coronéis dos IPMs passaram a protestar com indignação
cada vez maior contra esta autonomia judicial, forçando afinal o
Executivo a ampliar as medidas de controle sobre os juízes e
sobre o próprio Judiciário.50

Contudo, nem as alterações institucionais nem as pressões da


extrema direita castrense foram suficientes para evitar atritos entre o
Executivo militar e o Judiciário. O primeiro ato institucional vedara a
apreciação jurídica da motivação, conveniência ou oportunidade da
suspensão das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e
estabilidade de civis e militares, mas não dos inquéritos e processos
relativos a supostos crimes contra o Estado, seu patrimônio ou a
ordem pública. Esta brecha na nova legalidade permitiu que o
Judiciário desempenhasse “um importante papel liberalizador neste
período”.51
Importantes desentendimentos entre o STF e o Executivo
ocorreram em conseqüência da violação de princípios federativos,
uma vez que os militares depuseram governadores, afastaram
secretários de Estado e tentaram processá-los sem respeitar o foro
especial a que, segundo jurisprudência firmada pelo tribunal, tinham
direito.52 Processos interpostos neste sentido foram julgados de
maneira favorável a governadores, aos quais foi concedido habeas
corpus em várias ocasiões. Mauro Borges, de Goiás, Plínio Coelho,
do Amazonas, e Miguel Arrais, de Pernambuco, conseguiram que o
STF lhes reconhecesse o direito a foro especial por prerrogativa de
função. Os casos, especialmente o último, levantaram problemas
com a linha dura, e o general Castelo Branco precisou mediar o
conflito, agravado por outras decisões favoráveis a presos políticos.
Os atritos entre os dois poderes traduziam aspectos imediatos
da luta política, mas é razoável supor que tivessem, também, uma
dimensão mais abrangente. A implantação de um regime
democrático de corte autoritário, centralista, com Executivo forte —
projeto da corrente civil-militar que controlava o governo e procurava
definir os rumos do processo político — implicava a reforma do
Judiciário. Esta tese é objeto de conclusões denegatórias a que
chegou Elio Gaspari após coligir documentos sobre as crises nas
relações entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário na primeira
metade de 1965, que resultariam na edição do Ato Institucional no 2,
em 27 de outubro de 1965:

Quando Castelo aceitou a recaída ditatorial do AI-2, nada do que


nele se colocou respondia a arcanas concepções de governo ou
a racionalizações políticas. Produziu-se uma mixórdia ditatorial
destinada exclusivamente a mutilar o alcance do voto popular e
a saciar o radicalismo insubordinado de oficiais que prendiam
sem provas e não queriam libertar cidadãos amparados pela
Justiça.53

Contudo, um levantamento sistemático das discussões políticas


travadas no Congresso e através da imprensa no primeiro ano do
regime militar indicará dois importantes aspectos da conjuntura.
Primeiramente, o governo enfrentava grandes dificuldades para
aprovar algumas propostas de reforma da Constituição, reunidas no
projeto de Emenda Constitucional no 5.54 Acrescente-se que a
reorganização partidária, que seria determinada pelo AI-2 em
outubro, já estava em andamento desde julho de 1965, quando foi
aprovada a Lei Orgânica dos Partidos Políticos.55
Em segundo lugar e simultaneamente ao tempo curto da
conjuntura, atualizavam-se tendências de fôlego relativamente longo
na história política do país — a “linhagem teórica” de que fala
Bolivar Lamounier —, das quais os pensadores antiliberais Alberto
Torres e Oliveira Viana costumam ser identificados como
representantes máximos. A eles pode-se juntar Gilberto Freire,
contemporâneo de ambos quando jovem estudante nos Estados
Unidos da América, cujo sistema político lhe parecia prometer um
paraíso livre de forças demagógicas e dirigido por uma “aristocracia
técnica”.56 Em meados de 1965, talvez parecesse dada a
oportunidade para o início da construção de uma democracia isenta
de pressões da massa, orientada pela tecnocracia e estabilizada
pelo controle legal dos representantes políticos das classes
dominantes.57 Expurgado o sistema político de comunistas,
populistas, nacionalistas de esquerda e corruptos em geral, havia
que recompô-lo em novas bases. “Racionalizações políticas”,
negadas por Gaspari, convergiriam para áreas estratégicas.
Os principais marcos do processo político subseqüente seriam
determinados pela insistência do governo em manter seu projeto de
“restauração democrática”, mesmo ao custo de desgastantes
negociações com a área civil — situacionista e oposicionista — e
com a extrema direita militar. Foi assim com a questão eleitoral: ao
mesmo tempo em que garantiu a realização dos pleitos estaduais
previstos para outubro de 1965, tomou providências para anular
candidaturas oposicionistas consideradas indesejáveis pela linha
dura. Derrotado em Minas Gerais e na Guanabara, o governo
respeitou os resultados, mas baixou o Ato Institucional no 2,
consolando a extrema direita com um pacote de reformas, muitas
das quais agravaram o perfil ditatorial do regime.
Uma importante reforma política foi a substituição do
pluripartidarismo pelo bipartidarismo, a qual os analistas tendem a
explicar pela frustração eleitoral nos dois estados. Em relação a
esse tema, o AI-2 guardava uma linha de continuidade com
questionamentos das bases do sistema político registrados desde a
crise que precedeu o golpe de 1964, principalmente a ausência de
limitações à criação de novas agremiações.58 O bipartidarismo
poderia oferecer estabilidade a uma democracia antiliberal, e o
partido situacionista “serviria para institucionalizar e alargar a
aceitação popular dos ideais revolucionários, a exemplo do Partido
Revolucionário Institucional (PRI), no México”.59 Este quadro é
congruente com a hipótese de que a preservação do Legislativo em
funcionamento, ainda que sob severas limitações, se explica por um
propósito de estabelecer um outro tipo de democracia.60
Na Câmara dos Deputados, no Senado e nas páginas da
imprensa, desde inícios de 1965 discutia-se também o futuro do
Judiciário. Instituições de estudos, como o Instituto de Direito
Público e Ciência Política da Fundação Getulio Vargas, e de
representação da área jurídica, como o Instituto dos Advogados
Brasileiros, elaboraram pareceres sobre medidas de que o
Executivo, argumentando que o Judiciário enfrentava excesso de
serviço, estaria cogitando: aumento do número de membros do STF,
divisão dos ministros em três turmas ou criação de mais um tribunal
— o “Supreminho”, como o apelidaram vozes críticas.61
Portanto, quando o AI-2 foi baixado, muitas das suas
determinações não causaram surpresa, inclusive a ampliação do
número de membros do STF, de 11 para 16, com que o governo
pretendia aumentar suas chances de vitória entre os juízes.
Enfrentar juízes nomeados por governos anteriores e de orientação
política oposta modificando a composição do tribunal não era uma
tática incomum na história política. Havia precedentes notáveis que
serviram de inspiração aos juristas do governo.62 Após o movimento
políticomilitar de 1930, por exemplo, o Governo Provisório reduziu o
número de ministros do STF de 15 para 11 e aposentou
compulsoriamente seis.63 Alguns anos depois, em 1937, o
presidente dos Estados Unidos da América, Franklin Roosevelt,
tentou ampliar o número de membros da Corte Suprema para
viabilizar projetos do New Deal que implicavam intervenção na área
econômica e vinham sendo obstados por uma maioria de juízes
comprometidos ideologicamente com a defesa do liberalismo
econômico.64
Mesmo a mais grave das medidas do AI-2 em termos imediatos
— o deslocamento dos crimes políticos da competência civil para a
da Justiça Militar — já era, de alguma maneira, aventada, pelo
menos entre civis envolvidos com o apoio ao governo, como sugere
carta enviada pelo governador de Minas Gerais, José Magalhães
Pinto, ao general Castelo Branco em agosto de 1965.65 Trata-se,
portanto, de medidas que se aproximam mais de “racionalizações
políticas” do que de “mixórdias ditatoriais”.
Foi, também, em razão de uma racionalização política que o
governo militar resolveu não mais remendar a Constituição de 1946
e baixar uma nova em 1967. Certamente, não foi uma decisão
voltada para agradar à linha dura, muito mais afeita a atos
institucionais e violências informais. A Constituição de março de
1967 definiu um Estado predominantemente baseado no Poder
Executivo, com o Judiciário e o Legislativo esvaziados em suas
atribuições de nível nacional.66 Ainda assim, confirmou-se o
hibridismo político inaugurado em 1964, ao serem preservados
elementos da tradição democrática de 1946. O ambiente
relativamente liberal em que a nova Carta foi promulgada estimulou
a oposição legal, inclusive setores sindicais e o movimento
estudantil, à realização de campanhas contra várias políticas do
governo e pela mudança do regime. Embora esses movimentos
fossem duramente reprimidos pelo governo, a reorganização
oposicionista foi tomada pela extrema direita como sinal de que a
“revolução” corria perigo. Desde julho de 1968, pelo menos,
integrantes do governo, como o ministro do Exército, sugeriam que
se tomassem medidas de endurecimento do regime:

A crise institucional sobreveio porque os elementos


democráticos da Constituição davam à oposição alguma
margem de manobra, graças à qual podia invocar os altos
objetivos democráticos e exigir maior participação popular nas
decisões do governo — negadas por restrições contidas em
outros trechos da Constituição (…). Por outro lado, os setores
preocupados com a busca da segurança absoluta e com a
manutenção da segurança interna considerariam tais protestos
como evidência de infiltração comunista. Aplicaram-se, assim, as
outras partes da Constituição — aquelas que garantiam a
segurança nacional e a defesa de um modelo específico de
desenvolvimento.67

O hibridismo institucional produzia seus efeitos. No Congresso,


alguns parlamentares esticavam ao máximo o arco da liberdade
vigiada. No dia 2 de setembro, o deputado oposicionista Márcio
Moreira Alves concitou a população a combater o militarismo e
boicotar os festejos do Dia da Pátria, em discurso considerado
ofensivo às Forças Armadas por setores da corporação. O governo
solicitou autorização ao Congresso para processar o deputado, mas
não foi atendido. Na seqüência dos fatos, baixou em 13 de
dezembro o Ato Institucional no 5.
Com o AI-5 chegaram ao ápice as restrições ao exercício das
liberdades democráticas no regime militar. O Poder Judiciário foi
particularmente visado. O Executivo passou a ter o direito de demitir,
aposentar ou remover juízes, que, mais uma vez, tiveram suspensas
as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade.
Mantiveram-se o julgamento de crimes políticos por tribunais
militares, a proibição de apreciação pelo Judiciário de recursos
impetrados contra punições baseadas em ato institucional e a
negação do direito de recurso aos réus julgados pela Justiça Militar.
A garantia de habeas corpus foi suspensa nos casos de crimes
políticos:

A conseqüência mais grave do Ato Institucional terá sido talvez


que abriu caminho para a descontrolada utilização do aparato
repressivo do Estado de segurança nacional. Crucialmente
importantes a este respeito foram as restrições impostas ao
Judiciário e a abolição do habeas corpus para crimes políticos.
Podiam-se efetuar prisões sem acusação formal e sem
mandado. Juntamente com as restrições ao Judiciário, isto
impedia advogados e outros que defendiam os presos políticos
de aplicar as garantias legais. Não podiam assim evitar sérios
abusos de poder e a tortura de presos políticos.68

A coação sobre juízes e advogados facilitou o recrudescimento


da ofensiva contra cidadãos suspeitos de atividades contrárias ao
regime: “a invasão do domicílio, a violação da correspondência, as
prisões ilegais, o seqüestro, a tortura física, os assassinatos nas
cadeias ou mesmo acintosamente nas praças, nas ruas e nas
próprias residências particulares”.69 A onda repressiva atingiu
diretamente também o STF e, em janeiro de 1969, foram
aposentados compulsoriamente os ministros Vítor Nunes Leal,
Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. As cabeças dos dois últimos
vinham sendo pedidas pela extrema direita desde os primeiros dias
após o golpe.70 Em protesto contra a violência, o recém-empossado
presidente do tribunal, Antônio Gonçalves de Oliveira, e o ministro
Antônio Carlos Lafaiete de Andrada renunciaram a seus cargos e
entraram com pedido de aposentadoria.
No passo seguinte, o governo militar determinou uma reforma do
Judiciário. Pelo Ato Institucional no 6, de 1o de fevereiro de 1969,
reduziu-se o número de magistrados do STF de 16 para 11 e foram
transferidos para a competência da Justiça Militar os supostos
crimes contra a segurança nacional ou as instituições militares
cometidos por civis, bem como os processos contra os
governadores e seus secretários, nos quais o Superior Tribunal
Militar passaria a atuar como instância originária.
Na área militar, houve acerto de contas. A “operação limpeza” de
1964 atingira fortemente as Forças Armadas. Militares de todas as
patentes, identificados com o governo de João Goulart ou com
organizações nacionalistas ou comunistas, foram objeto de algum
tipo de violência: prisão imediata, aposentadoria compulsória,
processo sem direito de defesa etc. Segundo um militar historiador,
atingido pela primeira onda punitiva em decorrência de sua
militância comunista,
tratava-se de liquidar todos aqueles que tivessem o mínimo
resquício de pensamento nacionalista ou democrático; tratava-
se, ademais, de levá-los à barra dos tribunais militares,
acusando-os por terem defendido, ou pretendido defender o
governo anterior, que, diga-se de passagem, era o governo legal,
a que nenhum militar poderia recusar obediência sob pena de
incorrer nas culpas previstas nos códigos. Invertia-se, assim, o
sentido da disciplina e da hierarquia e da subordinação, com a
agravante retroativa: levava-se a inquérito e a processo os que
haviam cumprido o seu dever, tentado defender a ordem
existente. Isso passava a constituir crime.71

Agora, o alvo era menos expressivo em números, porém


igualmente significativo em termos políticos, já que indicava
contradições no interior da própria Justiça Militar. Na primeira
instância, o juiz auditor-militar José Tinoso Barreto foi aposentado
por vir absolvendo presos políticos.72 No STM a violência recaiu
sobre o general Peri Constant Bevilaqua. Membro do Tribunal desde
março de 1965, quando deixou a chefia do Estado-Maior das Forças
Armadas (Emfa), ele constituía um quase solitário bolsão de teimosa
resistência jurídica aos métodos de trabalho da oficialidade que
controlava os órgãos de investigação e repressão. Em alguns
momentos contava com a cumplicidade do general Olímpio Mourão
Filho — que, de autor do pontapé inicial do golpe militar, se
transformara em crítico da orientação antidemocrática do regime —
e do almirante José Santos Saldanha da Gama. Os votos em geral
favoráveis aos pedidos de habeas corpus, as críticas à Lei de
Segurança Nacional e a defesa da decretação de anistia política,
que ele tomara a si desde os primeiros momentos após o golpe de
1964, espicaçavam a linha dura.73 Em reunião do Conselho de
Segurança Nacional realizada no dia 30 de dezembro de 1968, foi
examinada representação contra ele, de autoria do ministro do
Exército, general Aurélio de Lira Tavares, e decidida a sua
aposentadoria compulsória.74 Mais tarde, um memorialista da
extrema direita militar expressaria seus remorsos:
Foi um exagero, uma maldade. Três meses depois, essa
aposentadoria viria compulsoriamente por limite de idade; então
por que não esperar? Não se justificaram, também, a tomada de
uma Ordem do Mérito superiormente conquistada e a
mesquinharia de tirar-lhe uma arma pessoal que o Exército
pusera sob sua custódia.75

A punição de um oficial desta envergadura por atos cometidos


no interior do Judiciário é emblemática dos traços do processo
político brasileiro que singularizam a relação entre os três poderes
durante o regime militar. O fato alegado como justificativa para a
decretação ao AI-5 era desproporcional à virulência das medidas
adotadas e não passava de um pretexto. Por outro lado, a
cronologia dos acontecimentos é indicativa da importância que o
grupo dirigente ainda atribuía à preservação das estruturas
democráticas. Mesmo dispondo de poderosos instrumentos de
coação, o governo manteve por três meses desgastantes
negociações com o Congresso até que fosse recusada a licença
para processar o deputado. Naturalmente, esse foi um tempo de
negociações também com a linha dura, que, com a vitória política
representada pela decretação do AI-5, iniciou uma nova fase na
história do regime militar brasileiro.

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* Este capítulo informa resultados parciais de pesquisa em andamento no


Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Participaram da coleta de informações Cláudia Gonçalves da Silva e Valquíria
da Silva Vasconcelos, alunas do curso de graduação.
** Doutor em história pela UFF; professor da UFRJ.
1 Anais do Senado (Brasília: Senado Federal, 1970. p. 74-75 — sessão em
18-8-1965).
2 Ver Figueiredo (1978:149-150).
3 O’Donnell, 1985:104.
4 Apud Escariz (1979:45). Agradeço a Celso Castro a indicação dessa fonte.
5 Ibid.
6 Ver Alves (1985:57).
7 Ver Costa (2001:165-166).
8 Sader, 1982:179.
9 Kinzo, 1988:217-218.
10 Smith, 2000:45.
11 Apud Viana Filho (1975:56).
12 Arendt, 1978:140-141 (os colchetes são da própria autora).
13 Ver O’Donnell e Schmitter (1988:35).
14 Para um comentário sobre o recurso a eufemismos no discurso político dos
militares, ver Fiorin (1988:132).
15 Cruz e Martins, 1983:14 (grifos meus).
16 Cruz e Martins, 1983:14 (grifos meus).
17 Vieira, Tarcísio dos Santos (coronel). Anistia, pacificação e atualidade.
Disponível em: <http://fortalnet.com.br/~gilsonba/pacifico.html>.
18 Almirante Mário César Flores (apud Castro e D’Araujo, 2001:283).
19 Sobre a doutrina, ver Alves (1985).
20 Sader, 1990:86 (grifo meu).
21 Kinzo, 1988:15.
22 O’Donnell e Schmitter, 1988:46 (grifo meu).
23 In: Rattner, 1979:93.
24 Ver Cardoso (1972:55).
25 Ver Cruz e Martins (1983:16-17).
26 Apud Cardoso (1972: 80).
27 Kothe, 1986:34.
28 Para detalhes dessa operação hermenêutica, ver Couto (1999:389-390).
29 Rossi, 1990:42.
30 Figueiredo, 1978:114-115.
31 Ver Klein (1978:30).
32 A queixa aparece generalizadamente nos artigos da Revista do Superior
Tribunal Militar (Brasília, v. 19/20, 1997/98).
33 Ver Rouquié (s.d:114-153).
34 Ver Arquidiocese de São Paulo (1985).
35 Ver Dias (1979).
36 Ver, por exemplo, Schneider (1971:300).
37 Ver Fiechter (1974:129).
38 Ver, por exemplo, o depoimento de Teodomiro Romeiro em Escariz (1979).
39 Rosa, 1985:16-17. Esse autor chama a atenção para o fato de que os
magistrados aposentados compulsoriamente, por força dos atos institucionais
no 1 e no 5, permaneceram recebendo seus vencimentos integrais.
40 Rosa, 1985:18.
41 Ibid.
42 In: Krischke, 1983:193-194.
43 In: Rattner, 1979:93.
44 Smith (200:44) enfatiza essa “característica significativa do regime militar
brasileiro”: “apesar de autoritário, o regime também desejava legitimar sua
ocupação do Estado — por vezes em termos contraditórios”. A autora analisa
o impacto prático dessa preocupação na atuação da imprensa no regime
militar.
45 Apud Pires (1997/98:34).
46 Eliézer Rizzo de Oliveira trabalha com essa idéia em relação à presidência
do general Ernesto Geisel, baseando-se em material de imprensa.
47 Ver Alves (1985:61). “Comparativamente em cada ciclo e no geral, as
áreas da Justiça e policial foram as menos atingidas” (Figueiredo, 1978:162,
165-166).
48 Para um histórico sumário do STF, ver Kornis e Junqueira (2001:5.630-
5.631). Para uma informação mais substancial, ver Costa (2001).
49 A propósito, ver Baleeiro (1972:5-14) e Lima (2001:29).
50 Alves, 1985:57 (grifo no original).
51 Alves, 1985:55.
52 Ver Vale (1976:66).
53 Gaspari, 2002:259 (grifos meus).
54 Ver Motta (1971:61).
55 “Na época do Ato Institucional no 2, oito dos pequenos partidos já estavam
praticamente extintos, e os grandes se lançavam à tarefa de reformulação de
suas estruturas organizacionais e ideológicas” (Motta, 1971:62).
56 Apud Chacon (1981:192-193).
57 Foi talvez pensando nesse quadro como um ambiente democratizado que
Elio Gaspari escolheu o termo “recaída” para qualificar a atitude
evidentemente autoritária do general Castelo Branco ao baixar o AI-2.
58 Fleischer (1981:185) chama a atenção para a existência de “uma tendência
bipartidária dentro do Legislativo, desde o começo da quarta legislatura (em
1959), quando se formaram dois grandes blocos de ação parlamentar, a
Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e a Ação Democrática Parlamentar
(ADP)”, coligações, respectivamente, reformista e conservadora.
59 Motta, 1971:67.
60 Ver Motta (1999:112-117).
61 Aarão Steinbruch (Anais do Senado. Brasília: Senado Federal, 1970 —
sessão em 17-8-1965).
62 Ver Baleeiro (1972:13-14).
63 Ver Lima (2001:163).
64 Ver Vieira (2002:69-77).
65 Ver Kinzo (1988:22-23); Gaspari (2002:258).
66 Ver Alves (1985:111).
67 Alves: 1985:105.
68 Alves, 1986:131.
69 Moniz, 1984:17-19.
70 Ver Vale (1976:58-61).
71 Sodré, 1979:400.
72 Ver Chagas (1985:138).
73 Ver D’Aguiar (1976:254; 1999:420); Melo (1979:686).
74 Ver Melo (1979:689).
75 D’Aguiar, 1999:420-421.
CAPÍTULO 17

Mulheres, homossexuais e Forças Armadas no Brasil*

Maria Celina D’Araujo**

Este capítulo analisa a incorporação de mulheres às Forças


Armadas do Brasil. Em caráter preliminar, analisa também o debate
sobre a possível incorporação de homossexuais. No caso das
mulheres, pode-se dizer que, apesar dos preconceitos e limitações
em termos de promoção na carreira, elas foram assimiladas pelas
três forças brasileiras de forma bastante positiva. Já o debate sobre
o acesso explícito de homossexuais a essa profissão ainda encontra
obstáculos de ordem moral e religiosa no Brasil. O capítulo mostra
também como essas duas modalidades de incorporação estão
acontecendo nas Forças Armadas dos países membros da Otan e
faz um apanhado geral do quadro existente hoje na América Latina.
Observa-se que as limitações impostas aos homossexuais são
basicamente de ordem moral, enquanto os argumentos contrários a
um pleno acesso das mulheres a todas as etapas da carreira militar
estão basicamente relacionados à força física.
A América Latina — região onde as Forças Armadas tiveram no
último século preeminência política e social em grande parte dos
países — vem passando por dois processos simultâneos e
igualmente cruciais. O primeiro diz respeito à redefinição das
relações civis-militares, passando-se, na maioria dos casos, de uma
situação de tutela para outra de autonomia ou subordinação dos
militares ao poder civil. O segundo relaciona-se à ampliação dos
direitos civis, políticos, econômicos e sociais. No que toca às
relações de gênero, acompanhando a tendência observada em
vários países do hemisfério norte, leis de pederastia e sodomia
passam a ser questionadas, a união civil entre homossexuais entra
na agenda política, e as constituições começam a afirmar a
igualdade de direitos entre os sexos.
A incorporação de mulheres e homossexuais às Forças Armadas
só pode ser devidamente considerada quando as sociedades
estabelecem para si que a liberdade de escolha e a igualdade de
direitos são parte inviolável da soberania individual, ou seja, quando
os princípios de igualdade e democracia se tornam a gramática da
política.1 De toda forma, o que este capítulo deixa claro é que o
acesso das mulheres às Forças Armadas é de mais fácil assimilação
que o dos homossexuais. Neste último caso as restrições tornam-se
mais rígidas por estar o homossexualismo ainda repleto de
conotações negativas do ponto de vista social, moral, religioso e até
sanitário. A homossexualidade, em praticamente todos as partes da
América Latina, é vista como desvio ou depravação moral, uma
doença, uma anomalia ou indignidade social. Diferente, portanto, da
condição feminina, associada a fraqueza física, vocação maternal,
mas não a aspectos reprováveis do ponto de vista moral ou religioso.
Vários países já aceitam a incorporação de mulheres e
homossexuais às Forças Armadas. Essa incorporação corresponde,
na pós-modernidade, ao processo de democratização das
sociedades e à expansão dos direitos de igualdade entre etnias,
crenças, sexos e gêneros. As Forças Armadas não são instituições
isoladas da sociedade e estão intrinsecamente conectadas ao
processo social e ao projeto que cada sociedade estabelece para si
em termos de defesa e de construção de direitos de cidadania e de
soberania.2 A partir daí pode-se sustentar que tal incorporação é fato
importante na definição das relações civis-militares. Isto porque, em
princípio, se um país estabelece o alinhamento das Forças Armadas
ao poder civil democrático, as Forças Armadas devem expressar o
perfil da sociedade à qual servem e obedecem.
Estas mudanças não significam, no entanto, transformações
substantivas nos critérios de ação interna e de organização da
instituição militar. Os princípios que tradicionalmente regem as
Forças Armadas são basicamente os da disciplina e da hierarquia. E,
ao que tudo indica, assim continuará sendo na pós-modernidade.
Também não significa alterar o etos da instituição que visa formar
seres humanos preparados para defender a sociedade, ou seja,
aquilo que na versão medieval e mais tradicional se chamava de
“guerreiros” e que modernamente chamamos de “soldados”.
De toda forma, a diversidade de perfis humanos dentro das
Forças Armadas altera alguns comportamentos tradicionais (como os
trotes, que geralmente apelam para brincadeiras ligadas a
feminilidade e masculinidade), impondo novos desafios para a
formação de um “soldado profissional” secularmente associado à
valentia como atributo masculino.

As mulheres vão aos quartéis


Atualmente a maioria dos países ocidentais aceita mulheres nas
Forças Armadas, ainda que com restrições quanto à possibilidade de
galgarem todas as posições hierárquicas e as de comando.3 Uma
mudança significativa de valores, se considerarmos que
tradicionalmente a vida militar tem sido associada a atributos mais
ligados à masculinidade, tais como risco, alta mobilidade geográfica,
separação temporária da família, necessidade de praticar a violência,
exposição a perigos, treinamentos intensivos, disciplina férrea,
exercícios físicos pesados e obediência profissional acima de
qualquer direito ou dever pessoal. Da mesma forma, vários estudos
têm abordado o impacto dessa profissão na família do oficial e nas
relações com as esposas e os filhos.4 Os aspectos mais
mencionados são a instabilidade da vida escolar dos filhos e a
impossibilidade de a esposa dedicar-se a uma profissão. Devido às
freqüentes mudanças, as esposas se veriam obrigadas a exercer a
função de dona de casa, abandonando uma possível carreira no
mercado de trabalho. Este é, aliás, um dos argumentos utilizados
pelos militares para justificar por que devem ganhar mais do que os
funcionários públicos civis ou por que devem ter um sistema
previdenciário distinto e com melhores condições que o dos outros
servidores públicos. Privados da complementação de uma renda
familiar que poderia advir do trabalho regular das esposas, eles
deveriam ser compensados com melhores proventos e melhores
pensões para seus familiares.
Por isso mesmo a relação da mulher com a vida militar esteve por
muito tempo associada a seu papel de esposa e aos
constrangimentos que a profissão do marido pudesse causar a ela e
à família. A mulher podia ser afetada pela vida militar, mas dela não
fazia parte.5 Essa idéia sobre as mulheres e as Forças Armadas
começou a mudar à medida que foram emergindo novos direitos,
entre eles o de a mulher poder escolher profissões tradicionalmente
tidas como masculinas.
No Brasil, as mulheres ganharam o direito de freqüentar
universidades em 1874; a partir de 1932 puderam votar e ser
votadas, mas só a partir de 1981 puderam jogar futebol
profissionalmente, o principal esporte do país. Aliás, o grande
conjunto de mudanças para as mulheres do Brasil veio a partir dos
anos 1980: surgiram as primeiras delegacias voltadas para o
atendimento a mulheres vítimas de violência, as escolas militares se
abriram para elas, e aumentou a bancada feminina no Congresso
Nacional — de 5% para 8% nas eleições de 2002. Nesse mesmo
ano, nas eleições para presidente da República, em quase todas as
chapas havia uma mulher como candidata a vice-presidente, e dois
dos 27 estados brasileiros escolheram uma mulher para o governo
estadual.
As polícias estaduais também passaram a incorporar mulheres
em quase todas as unidades da federação brasileira. Mesmo com
sua eficiência comprovada, a presença feminina ainda está limitada a
10% do pessoal da corporação e elas não podem comandar
batalhões com homens. Apenas em um estado, o de São Paulo, há
mulheres coronéis — o topo da carreira.
Na década de 1980, abriram-se as portas da caserna para as
mulheres. Como veremos adiante, foram aceitas inicialmente nos
quadros complementares de apoio administrativo e passaram a
integrar os quadros de médicos, dentistas, farmacêuticos,
veterinários, professores, economistas, advogados e outros. Foram
depois incorporadas aos quadros permanentes, não exclusivamente
femininos, mas ainda assim não têm as mesmas oportunidades que
os homens para galgar o topo da carreira. Muitos dos postos
superiores estão condicionados ao exercício do comando, função
ainda vedada às mulheres.
A presença da mulher em missões bélicas e em guerras, ou seja,
a existência de “mulheres guerreiras”, está associada normalmente a
momentos excepcionais. Fora disso, sua imagem está mais
referenciada ao lar, aos filhos, à maternidade, à ternura do que à
violência e ao mundo rude e cruel da guerra ou mesmo à rotina
impessoal e fria da caserna. Há exceções, como Joana D’Arc, que
confirmam a regra de que mulheres guerreiras são mais comuns em
situações excepcionais. Por isso mesmo são normalmente figuras
lendárias, temas para filmes e mitologias.
No Brasil não seria diferente, e duas mulheres se destacam como
pioneiras nessa área. A mais famosa, Maria Quitéria de Jesus,
nascida na Bahia na década de 1780, tornou-se lendária por sua
participação nas lutas pela independência do Brasil, sob o nome de
soldado Medeiros. Em fins de 1822, já identificada como mulher,
incorporou-se ao Batalhão dos Voluntários de d. Pedro I, tornando-se
assim, oficialmente, a primeira mulher do Brasil a assentar praça em
uma unidade militar. Nessa condição chegou a ser recebida pelo
imperador, de quem recebeu o soldo de “alferes de linha” e a insígnia
de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro. Como acontece com os
mitos, em torno de sua figura criaram-se várias versões. Quanto à
sua feminilidade, alguns dizem que era delicada e elegante,
enquanto outros a apontam como um dos primeiros exemplos
notórios de “mulher macho” ou de travesti.
Outra figura expressiva é Jovita Alves Feitosa, nascida em
meados do século XIX no Piauí, segundo alguns, no Ceará, segundo
outros, tendo-se tornado uma das mais célebres figuras da Guerra
do Paraguai. Aos 18 anos teria cortado o cabelo e se vestido de
homem para se apresentar como “voluntário da pátria”. Depois de ter
sua identidade descoberta, foi assim mesmo aceita no posto de
sargento.
No século XX, particularmente a partir da II Guerra Mundial, a
relação das mulheres com a vida militar mudou significativamente,
mas assim mesmo sua entrada nos quartéis se deu de forma muito
especial. No Brasil não seria diferente: são admitidas, em geral,
desde que limitadas a funções administrativas, não podem ser
deslocadas para funções de combate, e na Marinha de vários países
estão impedidas de embarcar. As restrições vão caindo com o passar
do tempo, mas ainda são objeto de intenso debate, pois os desafios
da luta e do combate continuam associados ao mundo masculino.
Com base em uma ampla experiência de entrevistas com
militares que ocuparam as principais posições de comando militar no
Brasil nos últimos 30 anos, podemos inferir a percepção que as
autoridades militares brasileiras têm da participação feminina e dos
homossexuais nos quartéis, bem como as identidades de gênero
construídas a partir daí.6 Podemos verificar também que, em escalas
distintas, essa percepção pouco difere da discussão internacional
sobre o tema. As mulheres são consideradas, em geral, seres que
precisam ser protegidos, dentro e fora dos quartéis, e isso pressupõe
sua exclusão de certas atividades consideradas de risco e de rigor
disciplinar e, portanto, masculinas. Os homossexuais, por sua vez,
são vistos, em geral, como portadores de um desvio de
comportamento que ameaça o bom funcionamento técnico e moral
da corporação militar ou das instituições como um todo.
Segundo vários de nossos entrevistados, as mulheres são
consideradas prejudiciais à guerra por despertar nos homens o
sentimento de proteção. Citam estudos de Israel (que
desconhecemos) mostrando que, quando as mulheres entram em
combate, a guerra se torna mais violenta, por duas razões: o homem
tenderia a proteger a colega mulher e com isso o inimigo ganharia
tempo para avançar; o inimigo, também movido pelo sentimento de
proteção ou de superioridade, não aceitaria lutar com mulheres e se
atiraria com mais violência contra os homens. Ou seja, as mulheres
não seriam compatíveis com a guerra. Um exemplo desse ponto de
vista fica bem claro no depoimento de Mauro César Rodrigues
Pereira, ministro da Marinha de 1995 a 1998:

Nós estudamos muito isso [o serviço militar feminino], inclusive


para poder ter uma justificativa, porque nossa Constituição diz
que não se pode fazer distinção de raça, sexo, e há um parágrafo
especificamente dedicado à mulher. Nós conversamos com a
Advocacia Geral da União e, graças ao argumento que tivemos,
pudemos fazer a distinção. Vou lhe dar um exemplo simples:
Israel. Eles resolveram tirar as mulheres da frente de combate,
porque com elas morria muito mais gente. A tendência do homem
era proteger a companheira e por isso morria mais gente. E,
mais: o inimigo não queria se render à mulher, o que também
causava mais mortes.

Os chefes militares também são bem claros quando falam da


incompatibilidade da mulher com certas atividades militares:

Há justificativas de ordem física. Bota 40 quilos de mochila nas


costas de uma fuzileira e manda ela caminhar 10 quilômetros.
Não chega. Não agüenta. Nos Estados Unidos, fizeram essa
experiência. Num grupo enorme de mulheres, apenas uma
chegou. Provavelmente, não era bem mulher… Dentro do navio
há coisas pesadíssimas para serem feitas. Por exemplo, tem que
fazer o escoramento com toras de madeira enormes. A mulher
não ia agüentar e o homem teria que trabalhar duas vezes: por
ela e por ele. Então, não dá. Não pode ser. Tem que raciocinar.
Quando tinha que suspender um navio, nunca perguntei a um
marinheiro, a um oficial meu, se o filho estava com febre, se a
mulher estava doente. Íamos embora, passar 10, 30 dias fora. Eu
posso fazer isso com uma mãe? Não posso. É diferente (…). E
se tiver que morrer, é preferível morrer o homem do que a
mulher.7

Os cuidados para receber as mulheres nos quartéis são


ilustrativos das incertezas que os chefes militares tinham quanto ao
impacto de sua entrada na instituição:

No princípio, era até um pouco exagerado. Na formação das


mulheres, quando elas transitavam no corredor, aparecia alguém
com um apito, apitava, saíam todos os homens, esvaziava-se o
corredor para elas poderem passar. Isso era um exagero que não
podia continuar. Não é mais assim. Elas hoje entram em
formação junto com os homens. Só têm alojamentos separados.
Mas tomei cuidados. Por exemplo, para a ventilação do banheiro,
botei um vidro escuro que não é transparente, se não ia ter gente
espiando. Isso é natural.8

Nossas conversas com os militares brasileiros confirmam que o


mundo feminino, construído a partir das percepções sexistas, é
classificado de forma diferente e desigual e que as qualidades
masculinas são exclusivas, assim como as femininas. E, entre as
características femininas, a que mais aparece é a fragilidade. Temos
assim um paradoxo: como admitir mulheres, por natureza
fisicamente débeis, em uma instituição que por definição tem que
lidar com o monopólio da força bruta? Como incorporar pessoas que
evocam os sentidos, a libido e o afeto em uma instituição que deve
estar acima de sentimentos pessoais? A saída dos dirigentes
militares foi incluir as mulheres com restrições. Outra medida
diferenciadora é que, enquanto o serviço militar no Brasil é
obrigatório para os homens, para as mulheres é opcional.
Vemos também que os argumentos formulados pelas lideranças
militares para fazer restrições à participação feminina nos quartéis
vão além da metáfora da guerra. A mulher é vista como alguém que
deve ser protegido por regulamentos e procedimentos militares em
caso de deserção ou de morte do marido ou do pai, por exemplo.9
A integração de mulheres nas Forças Armadas do Brasil
começou em 1980, na Marinha, com a criação do Corpo Auxiliar
Feminino da Reserva, para atuar na área técnica e administrativa.
Em 1998 esse corpo foi extinto e a participação se estendeu aos
corpos de engenheiros e intendentes, quadros médicos de
cirurgiões-dentistas e quadros de apoio. Na mesma época, passou-
se a permitir a presença feminina em missões nos navios
hidrográficos, oceanográficos e de guerra e em tripulações de
helicópteros.
A Aeronáutica foi a segunda força a inovar nessa questão. Em
1982, diplomou-se a primeira turma de mulheres da Força Aérea
Brasileira (FAB), graduadas como segundos-tenentes, terceiros-
sargentos e cabos. Em 1996, 17 mulheres ingressaram como
cadetes na Academia da Força Aérea (AFA) em Pirassununga-SP,
nos quadros de intendência (área administrativa e financeira). Três
anos depois teríamos a primeira turma de oficiais militares femininas,
formada em uma academia militar no país.
Finalmente, em 1992 o Exército constituiu a primeira turma: 29
mulheres ingressaram na Escola de Administração do Exército
(EsAEx), em Salvador. Cinco anos depois, 10 mulheres ingressaram
no respeitado Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de
Janeiro, e em 2001 criou-se o Curso de Formação de Sargentos de
Saúde (auxiliar de enfermagem). Além da formação dessas militares
de carreira, o Exército iria também promover a formação de mulheres
militares para funções temporárias. Assim, em 1996 instituiu-se para
uma turma de 290 mulheres o Serviço Militar Feminino Voluntário,
destinado a médicas, dentistas, farmacêuticas, veterinárias e
enfermeiras de nível superior. Dois anos depois criou-se o Estágio de
Serviço Técnico para profissionais de nível superior em direito,
contabilidade, administração, análise de sistemas, engenharia,
arquitetura e jornalismo, entre outros. Finalmente, em 1998 foi
implantado na região amazônica um projeto piloto para prestação do
serviço militar voluntário feminino na função de “atiradoras”, projeto
desativado em 2002.
A incorporação no Brasil pode ser comparada com o que se
passa nos países membros da Otan. Esta organização é formada por
19 países, mas um deles, a Islândia, não tem Forças Armadas, razão
pela qual não está presente na tabela 1. Note-se que em quatro
países, Canadá, Dinamarca, França e Turquia, a admissão de
mulheres existe há mais de meio século, e que os Estados Unidos
são o país com o maior contingente feminino, em termos absolutos e
proporcionais. A maioria desses países adotou o serviço militar
feminino a partir dos anos 1980, mas a proporção de mulheres
dentro da instituição varia bastante. Surpreende, por exemplo, que a
Turquia, um país muçulmano, tenha sido, junto com Canadá, um dos
primeiros países a adotá-lo, pioneirismo que não se repete quando
se trata de homossexuais, como veremos adiante.

Tabela 1
Mulheres nas Forças Armadas nos países membros da Otan
Fonte: Annual Review of Women in NATO’s Armed Forces. Summer 2001.

Gays e lésbicas: um tabu militar no Brasil e na América


Latina
Segundo as autoridades militares, o relacionamento entre
homens e mulheres nos quartéis leva a considerações de ordem
afetiva e sexual. Supõe-se que a mulher seja objeto do desejo do
homem e portanto deveria ser poupada de um contato mais próximo
com eles no dia-a-dia. O homem, especialmente em momentos de
carência afetiva por afastamento prolongado da esposa, poderia
fazer da colega militar o alvo de seus instintos masculinos. Essa
proximidade seria ainda mais sensível nos navios, situação de
solidão mais extrema que poderia levar o homem a querer suprir
suas carências afetivas, ainda que maternais, com as mulheres a
bordo.
Aqui, de acordo com uma concepção tradicional, não se admite
que o homem possa ser objeto do desejo da mulher. Ao contrário,
vista como alheia à iniciativa sexual, a mulher (objeto do desejo)
poderia ser fonte de distúrbios. O argumento da carência afetiva dos
homens heterossexuais em relação às mulheres é também usado
contra os homossexuais. Mas, enquanto se supõe que o homem
heterossexual pode conter ou domesticar seus impulsos em relação
à mulher, o homossexual seria portador de um comportamento
erótico intempestivo. Isso fica claro no depoimento do ex-ministro da
Marinha:

Há um artigo de um padre americano, muito interessante, que


mostra que o assédio sexual do mesmo sexo é muito pior do que
o assédio sexual de sexos opostos. Eles não se agüentam. Lá
pelas tantas, começam a assediar mesmo. Vivendo em
ambientes confinados, restritos, essa coisa fica insuportável.
Você já imaginou uma barraca de fuzileiros acampados dias e
dias no mato, dois caras, um sendo homossexual? Não tem
como. O problema das mulheres a bordo dos navios também não
é fácil. Eu acho que não dá certo. Passar 30 dias no mar, um
bando de homens com meia dúzia de mulheres, o desejo sexual
vai aparecer, naturalmente. Nesse caso o respeito ainda pode
aparecer, mas quando é homossexual o respeito vai embora.
Depois de um certo tempo, o homossexual começa a perturbar.
Ele não se agüenta. Num determinado momento, ele começa a
querer coisas absolutamente incompatíveis. Começa a querer
conquistar os praças, não dá certo.10

Pelo que se deduz desse depoimento, homossexuais e


heterossexuais do sexo masculino têm papéis invertidos quando se
trata do desejo sexual. O heterossexual deseja a mulher, mas não
seria objeto do desejo feminino. Seria, sim, objeto do desejo dos
homossexuais. Nesse caso, portanto, mulheres e homens
heterossexuais teriam em comum o fato de estar em situação de
vulnerabilidade quando desejados sexualmente. Aqui o raciocínio
iguala homens heterossexuais a mulheres, e nesse caso ambos são
vulneráveis e precisam que a instituição os proteja.11
O assédio sexual dos homens pelas mulheres não chega a ser
mencionado como possibilidade por nossos entrevistados. Na
prática, é um tema recorrente entre os jovens das Forças Armadas,
os quais muitas vezes entendem haver superproteção dos chefes em
relação às mulheres, o que inibiria a iniciativa de denunciá-las. Além
disso, dado o machismo acentuado dos quartéis, os jovens temem
ser ridicularizados com a denúncia.12
Como se pode ver, a presença de homossexuais nos quartéis
ainda é uma problemática delicada e difícil de ser assimilada. Nesse
caso o argumento não se relaciona a características físicas de força
e capacidade, mas unicamente a comportamento e valores. O
homossexual freqüentemente é visto como uma ameaça à
tranqüilidade da tropa, dos cadetes e dos conscritos, pois não seria
capaz de controlar impulsos nem de respeitar padrões morais
condizentes com a profissão.13 De toda forma, o tema está sendo
discutido no Brasil e em vários países da América Latina, no âmbito
de um debate mais amplo sobre os direitos civis e o banimento das
leis que condenam opções sexuais.
No Brasil, em 2002, o Executivo encaminhou ao Congresso
Nacional um projeto de lei sobre direitos humanos propondo alterar o
art. 235 do Código Penal Militar de 1969, que prevê punições para
práticas “libidinosas”, homossexuais ou não, em dependências
militares. A proposta é suprimir dos regimentos de disciplina militar
as palavras “pederastia” e “homossexuais”. Eis como se pronunciou
a respeito o deputado e ex-militar Jair Bolsonaro, representante da
linha conservadora dentro das Forças Armadas:

Com mais este passo dado em relação à liberalização sexual


dentro das Forças Armadas, eu seria compelido a lutar contra o
serviço militar obrigatório. Nenhum pai estaria tranqüilo ao saber
que seu filho, durante cinco dias de acampamento, foi obrigado a
dormir numa minúscula barraca com um recruta homossexual
sem poder reclamar, pois se assim procedesse seria punido por
crime de discriminação sexual! (…) Contase que um comandante
da Marinha inglesa precocemente pedira transferência para a
reserva e, indagado sobre o motivo, já que tinha tudo para uma
longa carreira, respondeu: “quando entrei para a Marinha, o
homossexualismo era proibido; agora passou a ser tolerável; vou
embora antes que se torne obrigatório”.14

É interessante observar que o exemplo de recrutas em barracas


de acampamento é freqüentemente mencionado como uma situação
limite de partilhamento da privacidade entre homens heterossexuais,
mas incompatível com a possibilidade de convivência com
homossexuais. Esta seria, por sua vez, uma situação
desestabilizadora em que se potencializariam as características do
homossexual, deixando o colega em situação constrangedora ou
desprotegido. Essa compreensão fica ainda mais clara quando se
mencionam a separação dos banheiros entre os sexos e a
impossibilidade de fazer o mesmo com os homossexuais.
Geralmente o raciocínio é que o homossexual tem que ser
identificado para ser evitado. Por tudo isso, a posição dos líderes
militares é bastante reticente quanto à possibilidade de os
homossexuais se adaptarem à vida da caserna. A orientação seria
para expulsálos sempre que manifestassem tal comportamento.
Lembramos a um de nossos entrevistados que há certo “folclore”
no Brasil a respeito de um maior índice de homossexualismo na
Marinha. Ele admite ter havido essa permissividade em outros
tempos, mas afirma que a posição atual é de maior rigor:

A Marinha velha tinha aqueles suboficiais antigões que, dizem,


gostavam de garotos etc. Mas isso, na minha época, já ocorria
muito pouco, já era coibido de todas as formas e praticamente
desapareceu. Pode não ter desaparecido de todo. Ninguém pode
ficar fiscalizando se o camarada é homossexual. Eventualmente,
descobre-se um. E quando se descobre, ele não é nunca
maltratado, mas vai ser alijado. Não é expulso por ser
homossexual, mas pelo comportamento.15

Como na América Latina as informações sobre esse tema são


ainda escassas, limito-me a tecer alguns comentários sobre o
andamento do debate em alguns países. Na Colômbia, desde 1999,
por sentença judicial da Corte Constitucional, os homossexuais —
gays e lésbicas — não podem ser expulsos das Forças Armadas. De
acordo com a Corte, o homossexualismo não pode ser considerado
conduta reprovável em nenhuma esfera da vida humana. O jornal El
Tiempo (Bogotá, 13 mar. 2003) traz longa entrevista com um capitão
homossexual em que ele narra com detalhes aspectos de sua vida
íntima, dentro e fora dos quartéis, e afirma que o homossexualismo é
compatível com a vida militar. Uma entrevista como esta não seria
possível na maioria dos países das Américas, o que demonstra
haver na Colômbia maior facilidade para absorver o tema.
Também na Argentina o debate a esse respeito está avançando.
Desde 1999, por proposta inicial do chefe do Exército argentino
Martín Balza, vêm sendo sugeridas reformas no Código de Justiça
Militar visando descriminalizar a conduta homossexual privada dos
militares. O que se pleiteia é que os militares não sejam punidos por
suas preferências sexuais privadas, medida ainda restrita porquanto
não se fala em admitir homossexuais, e sim em não puni-los, uma
vez dentro das Forças Armadas, desde que tais atividades sexuais
se restrinjam a espaços fora do quartel. Essa inovação vem no bojo
de uma série de medidas visando a modernização das Forças
Armadas, como a que aboliu o serviço militar obrigatório e a que
permitiu o ingresso de mulheres nos quartéis.
No Peru, o assunto está sendo debatido publicamente por
associações de defesa dos direitos, o Movimiento Homosexual de
Lima. O tema chegou ao Ministério da Defesa, cujo ministro, Aurélio
Loret de Mola, embora considerado homofóbico por esses grupos,
reconheceu, no início de 2003, que a orientação sexual não pode ser
motivo de discriminação ou punição. Os debates sobre reforma
constitucional no Peru incluem, portanto, a demanda no sentido de
abolir qualquer discriminação derivada de orientação sexual.
Na Bolívia o tema também entrou na agenda política. Em ato
inédito, no início de 2003, a Comissão de Constituição da Câmara
dos Deputados recebeu representantes da Red Nacional de
Comunidades Gays, Lésbicas, Bisexuales, Transgéneros, Travestis,
y Transexuales de Bolívia que ali foram demandar uma reforma na
Constituição para que a orientação sexual não seja objeto de
punição ou de restrições de qualquer tipo. O ministro da Defesa,
Oscar Guiliarte, argumentou que “o quartel é para homens”, e o
comandante-geral dos militares, Alvin Anaya, acrescentou: “os
homossexuais não servem para os quartéis. Na Bolívia há uma
cultura tradicional que relaciona o quartel ao espírito varonil. As
Forças Armadas se baseiam na disciplina. Que acontecerá se um
jovem com inclinações homossexuais entrar no quartel e seduzir
outros soldados, ou até mesmo o instrutor?” Perguntado acerca da
presença de mulheres, já que os quartéis seriam destinados aos
“varões”, explicou que nesse caso “há determinadas regras, há um
controle mais estreito”.16 Ou seja, tal como em diversas declarações
de chefes militares brasileiros, aqui também fica a impressão de que
o homossexual, ao contrário das mulheres, não pode ser controlado,
o que põe em risco a instituição militar.
Ainda na Bolívia, na campanha para a Presidência da República
em 2002, o tema deu ensejo a um duro pronunciamento por parte de
um dos candidatos, o capitão Manfred Reyes Villa, que afirmou ser a
homossexualidade uma doença e a Aids uma epidemia
homossexual. Tal pronunciamento gerou vários protestos de
organizações relacionadas a gênero,17 o que mostra a mobilização
da sociedade a esse respeito.
Também no Chile o assunto vem sendo debatido desde 1998, no
intuito de abolir do Código Penal os artigos que tratam como crime a
prática da homossexualidade.
O tema tende a ganhar relevância à medida que se ampliam os
debates mundo afora. Por isso mesmo se tornam necessários mais
estudos, ainda escassos no Brasil e na América Latina. Reafirmamos
a tese de que ele está ligado à questão da democratização das
sociedades, o que por sua vez pressupõe igualdade para todos,
independentemente de preferências sexuais. Ao mesmo tempo, é
preciso reconhecer que essas mudanças devem alterar
comportamentos e condutas dentro das Forças Armadas, que, como
toda instituição sólida e secular, respondem lentamente à mudança.
A incorporação das mulheres às Forças Armadas do Brasil foi
uma iniciativa bem-sucedida, não obstante os cuidados iniciais
superdimensionados e as limitações na carreira. Quanto aos
homossexuais — gays e lésbicas —, o debate em curso deixa claro
que se trata de questão ainda delicada na América Latina, dentro e
fora dos quartéis. A maioria dos países da região já incorporou as
mulheres em alguns de seus quadros, mas apenas alguns deles
começaram a estudar a possibilidade de descriminalizar a
homossexualidade na instituição — por exemplo, Argentina, Brasil,
Colômbia, Chile, Bolívia, Peru, México e Uruguai. Situação bem
diferente é a que vemos no quadro.

Homossexualidade nas Forças Armadas dos países membros da


Otan

País Status legal


Alemanha Não há legislação impeditiva, e sim avaliação
médica para aferir se a opção sexual do recruta
pode interferir no desempenho militar. O soldado
ou oficial discriminado por sua orientação sexual
pode recorrer à Justiça.

Bélgica Não é considerada crime nem há


questionamentos a esse respeito.

Canadá Permitida desde 1992. Em 1998, as Forças


Armadas canadenses aprovaram recursos para
mudança de sexo de recrutas, considerando que
a legislação confere atendimento universal aos
cidadãos canadenses em questões de saúde.

Dinamarca Aceita desde 1955. Até 1978 eram


encaminhados para servir na Home Guard. A
partir de 1979 foram abolidas essas distinções.

Espanha Em 1984 foi abolido o artigo do Código de


Justiça Militar pelo qual o comportamento
homossexual era considerado uma ofensa.

Estados A lei de 1994 do governo Clinton (don´t ask, don


Unidos ´t tell — não perguntar, não contar) determina
que os militares não sejam questionados sobre
sua opção sexual.

França A opção sexual é considerada assunto


estritamente privado e não pode haver
discriminação.

Grécia O militar homossexual é desligado das Forças


Armadas se tornar pública sua opção sexual.

Holanda Admitida desde os anos 1970.


Hungria A recomendação nas Forças Armadas é para
não aceitá-la.

Itália É considerada inadequada ao serviço militar.

Luxemburgo Não é permitida.

Noruega Não há impedimentos.

Polônia O homossexualismo é considerado desordem


de personalidade.

Portugal Considera-se que os homossexuais têm perfil


psicofísico inadequado ao serviço militar.

Reino Unido Ainda é considerada incompatível com o serviço


militar, mas a opção sexual do indivíduo é
assunto privado.

República Oficialmente não existe discriminação.


Tcheca
Turquia Proibida.

Fontes: World Legal Survey. The International Lesbian and Gay Association.
Disponível em: <www.ilga.org/information>; Moskos, Williams e Segal (2000).

Notas finais
Segundo uma vasta bibliografia, a entrada de mulheres e
homossexuais nas Forças Armadas deve ser vista por dois ângulos:
como uma conquista democrática e como um problema institucional.
Mesmo em países que absorveram a participação das mulheres
ainda há restrições à prática de algumas atividades bélicas, o que
implica privá-las de certos treinamentos de ataque e defesa.18 O
tema torna-se mais polêmico quando vemos que até mesmo entre as
mulheres há quem condene a vida militar como uma alternativa
feminina e quem considere negativa a presença das mulheres nas
Forças Armadas. Algumas pesquisas sustentam que as mulheres
são responsáveis por uma quebra de coesão militar e por uma
atitude mais “frouxa” e de “amolecimento” do profissional militar. Para
alguns, o mau desempenho dos militares americanos é atribuído à
presença feminina, que teria levado a uma feminilização da atividade
militar, opinião contestada por outras autoras.
Da mesma forma, há quem defenda a tese de que a presença de
homossexuais nas Forças Armadas norte-americanas é responsável
por menores graus de coesão interna e de combatividade dos
militares. Ou seja, o debate sobre a pertinência ou a legitimidade da
presença de mulheres e homossexuais nas Forças Armadas não se
restringe ao mundo ou ao preconceito masculinos, nem aos militares
mais velhos.19
No caso dos Estados Unidos, há que mencionar a mais
importante pesquisa feita com os militares nos últimos anos, cujos
resultados encontram-se na já clássica coletânea organizada por
Peter Feaver e Richard Kohn (2001). Naquele país, principalmente
entre militares da reserva e da ativa, ainda existe a noção de que os
assuntos militares são prioritariamente masculinos. Dois autores
lembram que as resistências à presença de mulheres e
homossexuais nas Forças Armadas, especialmente em funções de
combate, derivam de três argumentos: existe discrepância entre civis
e militares no que toca à definição de políticas para as Forças
Armadas; isso leva os civis a apoiarem políticas para as Forças
Armadas que são consideradas pelos militares inadequadas ou até
mesmo perniciosas para a instituição; a adoção das políticas
demandadas por civis levaria a uma perda de coesão militar e, logo,
a uma queda em sua capacidade de combate.20 Ainda é forte,
portanto, a idéia de que a “feminilização dos exércitos” levaria ao
declínio do poder americano, assim como o argumento segundo o
qual as Forças Armadas não podem ser usadas como laboratório
para experimentos de integração social ou de implementação de
direitos civis demandados pela sociedade.21
A pesquisa mostra que os civis são mais propensos a considerar
positiva a integração de mulheres e homossexuais nas Forças
Armadas, mas estão de acordo com os militares quando se trata de
isentar as mulheres das funções de combate e isto por duas razões:
as mulheres teriam menos força física e sua presença como
soldados no campo de guerra geraria problemas de coesão
interna.22 Os militares, por sua vez, também sustentam que a morte
de mulheres em combate seria uma desmoralização para os
soldados e que a presença delas no palco de guerra prejudicaria o
desempenho deles. Segundo a pesquisa, os militares fazem mais
restrições aos homossexuais do que às mulheres. Apenas 6,5%
deles afirmam que deixariam as Forças Armadas se as mulheres
fossem admitidas plenamente nas funções de combate, enquanto
27,5% dizem que fariam o mesmo se os homossexuais fossem
livremente admitidos na instituição.23 Da mesma forma, 65,5%
admitem que se sentem mais seguros sob um comando militar
masculino, enquanto apenas 20,2% aceitam o comando feminino,
mas nenhum deles aceita ser comandado por homossexuais.
Não se pode dizer, contudo, que essas restrições aos
homossexuais signifiquem uma posição homofóbica por parte dos
militares norte-americanos. Eles aceitam a participação deles em
outras áreas de atividade, mas entendem que as Forças Armadas
exercerão melhor seu papel se continuarem regidas por valores
tradicionais. A justificativa para essa restrição é que, mais do que as
mulheres, os homossexuais são fator de disrupção, de quebra de
coesão interna, embora estes sejam conceitos imprecisos.
Outras pesquisas igualmente rigorosas para aferir o impacto da
incorporação de mulheres, gays e lésbicas vêm sendo desenvolvidas
na Europa e nos Estados Unidos. Os resultados são surpreendentes
e em geral mostram que a integração tem-se dado sem qualquer
aspecto negativo para o conjunto das Forças Armadas, não interfere
em assuntos de defesa e ameniza o assédio sexual de mulheres e
homens. No caso de Estados Unidos, Inglaterra e Canadá,24 essa
integração teria ocorrido sem qualquer necessidade de mudanças
institucionais nos padrões de funcionamento da rotina militar.
Portanto, o tema é novo, mas de grande impacto social e
institucional. Além disso, as pesquisas, algumas bem consistentes,
ainda não permitem a formação de paradigmas ou tendências que
possam generalizar-se. Incorporar esses dois novos atores à
instituição militar é uma inovação nos costumes e uma novidade
sociológica. Os estudos mal começaram na América Latina, mas
parece que a tendência é dar maior divulgação ao tema, e este, para
nós, ainda está mais perto do tabu que do debate.
Por isso mesmo, permito-me inferir que, nas entrevistas
realizadas com os chefes militares e aqui utilizadas, as questões
relativas a gênero foram respondidas mais por educação e
consideração à entrevistadora do que pela relevância social que
pudessem ter para os entrevistados. O tema era delicado e ainda
difícil de ser abordado, mas assim mesmo conseguimos um diálogo
profícuo, o que certamente atesta o profissionalismo dos chefes
militares no sentido de não evitar questões polêmicas.

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* A autora agradece a Helenice Vieira de Andrade e Pedro Pio Azevedo de


Oliveira Filho, por sua participação na pesquisa da internet e em periódicos
especializados, e especialmente a Hendrik Kraay e Vitor Izecksohn, por seus
proveitosos comentários. Este trabalho dá continuidade a uma linha de
pesquisa iniciada em 1992 com o projeto “1964 e o regime militar”,
desenvolvido no Cpdoc/FGV com recursos da Finep e do qual já resultaram
várias publicações. Os resultados de um questionário aplicado a oficiais da
Marinha estão disponíveis em: <www.cpdoc.fgv.br>.
** Doutora em ciência política pelo Iuperj; pesquisadora do Cpdoc/FGV e
professora da UFF.
1 Moskos, Williams e Segal (2000) mostram como o tema está sendo abordado
em vários países do mundo.
2 Sobre as Forças Armadas como um microcosmo da sociedade, ver Segal e
Segal (1983).
3 Alguns autores afirmam que a entrada de mulheres nas Forças Armadas,
depois da II Guerra Mundial, foi uma resposta à pouca atração que a
corporação passou a ter como opção profissional para os homens. Ver
Moskos, Williams e Segal (2000).
4 Ver McCubbin, Dahl e Hunter (1976).
5 Ver Snyder (1999).
6 Nessa etapa da pesquisa, limitamo-nos a analisar os argumentos de
autoridades militares brasileiras — e conseqüentemente masculinas — com
relação à entrada das mulheres nos quartéis. Será necessário no futuro
examinar as argumentações femininas a esse mesmo respeito.
7 Pereira, 1999.
8 Pereira, 1999.
9 Em caso de deserção, a mulher é considerada viúva e como tal recebe uma
pensão. As filhas solteiras também têm direito a uma pensão militar, direito que
tem sido questionado nos últimos tempos. Há ainda outras situações especiais
em que a instituição se vê obrigada a proteger a família do militar que esteja
viajando.
10 Pereira, 1999.
11 Sobre este ponto, agradeço as sugestões do antropólogo Sérgio Carrara, da
Uerj.
12 Takahashi (2002) examina a questão do assédio feminino na Aeronáutica.
13 Vários países da Europa já aceitam a entrada de homossexuais (gays e
lésbicas); outros, como os Estados Unidos, não mais consideram o
homossexualismo crime regimental. Várias políticas a esse respeito vêm sendo
formuladas e discutidas em várias partes do mundo.
14 In: Pereira, Carlos F. Homossexuais nas Forças Armadas: tabu ou
indisciplina?. Disponível em:
<http://campus.fortunecity.com/clemson/493/jus/m06-021.htm>.
15 Pereira, 1999. Ver o capítulo de Peter Beattie neste livro.
16 Planeta Nacional (Sucre, 28-4-2002).
17 Disponível em:
<://www.megalink.com/liberdad/adesproc_archivos/DENUNCIA.htm>.
18 Ver Elshtain (1992); Miller e Williams (2001).
19 Ver, por exemplo, Miller (1998); Rosen (1999); Elshtain (2000); Van-Creveld
(2000). A tese da feminilização das Forças Armadas em decorrência da
entrada das mulheres é rebatida por Belkin e Levitt (2001).
20 Ver Miller e Williams (2001:363).
21 Ver, por exemplo, Mitchell (1998).
22 Ibid., p. 370.
23 Ibid., p. 379.
24 Ver, respectivamente, Evans (2001); Belkin e Evans (2002); Belkin e
McNichol (2000).

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