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Amor e Responsabilidade: entendendo corretamente as bases da amizade

Por Edward P. Sri (baseado em seu livro “Men, Women and the Mystery of Love”)

O que um padre celibatário pode nos ensinar sobre amor, sexualidade, e relacionamentos entre homem e mulher?

Essa é a pergunta que um padre polonês, Karol Wojtyla, se fez na introdução de seu livro revolucionário, “Amor e
Responsabilidade”. Publicado em 1960, esse livro sobre a ética sexual foi fruto do extenso trabalho pastoral do Pe. Wojtyla
com jovens, e das reflexões filosóficas que fez sobre esse tema quando ainda servia como sacerdote e professor
universitário em Cracóvia – muito antes do mundo conhecê-lo como João Paulo II.

No livro “Amor e Responsabilidade”, o Pe. Wojtyla argumenta que, apesar de faltar ao sacerdote a experiência direta do
casamento e da sexualidade, ainda assim existe algo que lhe confere uma perspectiva ainda mais ampla nesses assuntos:
uma vasta “experiência secundária”. Como conselheiro espiritual que trabalhava bem próximo a muitos jovens adultos e
jovens casais em meio a suas batalhas no campo do amor e da sexualidade, Pe. Wojtyla pôde aprender com a experiência
de lidar com um variado espectro de personalidades, relacionamentos e casamentos, de um modo tal que não seria possível
a um homem leigo. “Amor e Responsabilidade” foi o fruto dessa rica experiência pastoral, bem como de suas próprias
reflexões filosóficas e teológicas sobre o amor, o sexo e o matrimônio.

Um grande livro

Janet Smith, dos Estados Unidos, uma das grandes palestrantes de ética sexual, afirma que “Amor e Responsabilidade” não
é apenas um livro importante. Ela diz que esse livro deveria ser reconhecido como uma das maiores obras da civilização
ocidental. Segundo ela, deveríamos colocar “Amor e Responsabilidade” junto com a “Ilíada” de Homero, a “Divina
Comédia” de Dante, as “Confissões” de Santo Agostinho, na lista dos grandes livros do mundo, pelos séculos que virão.
Ela diz: “Eu acredito que o livro do Papa João Paulo II deve figurar nessa lista por achar que as gerações futuras irão ler
esse livro – elas certamente o devem fazer, pois se o fizerem verão que o livro enfrenta com firmeza questões que todo
temos sobre a vida, além de oferecer uma maneira de ver as relações humanas que, se aceita, pode alterar radicalmente a
maneira com a qual conduzimos nossas vidas”. (1)

De fato, “Amor e Responsabilidade” fornece insights sobre o relaiconamento homem-mulher que realmente são capazes de
mudar vidas – e são desesperadamente necessários hoje em dia. A nova geração, crescida no período pós-revolução sexual,
está sedenta por qualquer direcionamento que a ajude a conduzir seus relacionamentos com o sexo oposto. Solteiros, noivos
e jovens casais encontrarão em “Amor e Responsabilidade” não apenas uma perspectiva diferente de tudo que o mundo
tende a oferecer, mas uma visão que, uma vez encontrada, certamente terá um impacto positivo na maneira com que nos
relacionamos com os outros.

Nesta curta série de artigos, meus objetivos são modestos. Não pretendo oferecer uma análise acadêmica desse livro, nem
entrar em debates eruditos sobre ética sexual. Pretendo, apenas, tornar mais acessíveis aos leitores leigos alguns dos
insights dessa desafiante obra filosófica, e oferecer algumas de minhas próprias reflexões durante esse caminho, com a
esperança de que os leitores possam se beneficiar da visão que o Papa João Paulo II tem sobre o amor e a sexualidade, e
para que possam encontrar aplicações em suas próprias vidas.

O princípio personalista

O primeiro grande objetivo do Papa João Paulo II no livro “Amor e Responsabilidade” é explicar o que ele chama de
“princípio personalista”. De acordo com esse princípio fundamental para as relações humanas, “uma pessoa não deve ser
para a outra pessoa apenas um meio para atingir um fim”. Em outras palavras, nunca devemos tratar as pessoas como meros
instrumentos para atingir nossos próprios objetivos.

João Paulo II explica porque deve ser assim. As pessoas humanas são capazes de autodeterminação. Ao contrário dos
animais, que agem de acordo com seus instintos e apetites, os seres humanos podem agir deliberadamente. Através da
autorreflexão, as pessoas podem escolher um curso de ação para si mesmas, e impor seu “mundo interior” para o mundo
exterior através de suas escolhas. Tratar uma pessoa humana como mero instrumento para meus próprios objetivos é violar
a dignidade da pessoa como ser que pode se autodeterminar. “Toda pessoa é, por natureza, capaz de determinar seus
próprios fins. Qualquer um que trate uma pessoa como um meio para um fim violenta a própria essência do outro” (trecho
do livro Amor e Responsabilidade).

Amar ou usar?
O que torna difícil viver na prática esse princípio básico das relações humanas é o espírito de utilitarianismo que permeia
nossa sociedade Na visão utilitarista, as melhores ações humanas são aquelas que são mais úteis. E útil é aquilo que
maximiza meu prazer e conforto e minimiza minha dor. A pressuposição que está por trás desse pensamento é que a
felicidade consiste no prazer. Portanto, eu deveria sempre, segundo essa visão, perseguir tudo que me desse conforto,
vantagem e benefício, e deveria evitar tudo que causasse sofrimento, desvantagem e perda.

Essa visão utilitarista afeta a maneira com que nos relacionamos com o outro. Se meu objetivo principal é perseguir meu
próprio prazer, então eu faço as escolhas na minha vida com base em quanto elas me levarão a esse objetivo. Disso resuta
que muitas pessoas hoje em dia – até mesmo bons cristãos – podem avaliar um relacionamento em termos de quão útil uma
pessoa é para que eu atinja esse objetivo, ou quanta “diversão” eu tenho com essa pessoa. O Papa João Paulo II diz que,
uma vez adotada essa atitude utilitária, começamos a reduzir as pessoas em nossas vidas a simples objetos que usamos para
nosso próprio prazer.

Isso ajuda a explicar porque muitas amizades e “namoros” (e até mesmo casamentos) hoje em dia são tão frágeis e tão
facilmente se dissolvem. Se eu avalio uma mulher com base apenas no que ela pode me trazer de “vantagem”, ou apenas
com base no quanto eu posso obter de prazer estando com ela, então esse relacionamento não tem fundamentos sólidos.
Assim que eu deixar de experimentar prazer ou benefício do tempo que passo com ela – ou assim que eu encontre outra
pessoa que me dê mais prazer ou benefício –, ela passa a não valer mais nada para mim. Essa visão é muito distante do
princípio personalista, e mais distante ainda de um relacionamento baseado no amor compromissado.

Amor e amizade

Aqui, pode ser útil mencionar os diferentes tipos de amizade, de acordo com Aristóteles, a quem o Papa João Paulo II cita
na sua discussão sobre o amor.

Para Aristóteles, há três tipos de amizade, baseados em três tipos de afeição que unem as pessoas. Primeiramente, em uma
amizade “por utilidade”, a afeição está baseada no benefício ou uso que os amigos extraem do relacionamento. Cada pessoa
ganha alguma coisa com a amizade que serve a seu benefício, e o benefício mútuo da relação é o que une as duas pessoas.

Por exemplo, muitas amizades no ambiente de trabalho estão nessa categoria. Digamos que Bob possui uma empresa de
construção civil em Boston. Ele tem uma amizade com Sam em São Francisco porque Sam vende pelo melhor preço o tipo
de parafuso que Bob precisa. Para realizarem seus negócios Bob e Sam se encontram algumas vezes no ano, falam no
telefone mais ou menos uma vez por semana, e trocam e-mails com certa frequência. Ao longo dos anos fazendo negócios,
os dois aprenderam sobre a carreira, a família e os interesses do outro. Eles se dão bem, e sinceramente desejam tudo de
bom na vida da outra pessoa. Eles são amigos, mas o que os une é o benefício particular que ganham com a amizade:
parafusos para Bob e vendas para Sam.

Em segundo lugar, em uma amizade “por satisfação” a base da afeição é o prazer que se tira do relacionamento. Vê-se o
amigo como a causa de algum prazer ou satisfação para si. Essa amizade busca sobretudo ter “diversão” com a outra
pessoa. Os amigos podem escutar o mesmo tipo de música, praticar o mesmo esporte, gostar do mesmo tipo de atividade
física, viver no mesmo dormitório, ou gostar de sair para as mesmas baladas. As duas pessoas podem se importar
sinceramente com o outro, e desejar para o outro tudo de bom na vida, mas o que os une como amigos é primariamente o
prazer ou a “diversão” que vivenciam juntos.

Fundamentos frágeis

Aristóteles nota que os tipos de amizade “por utilidade” e “por satisfação” são formas básicas de amizade, e não
representam a amizade no sentido mais pleno. Amizades “por utilidade” e “por satisfação” não são necessariamente ruins,
porém são as mais frágeis. Têm menos probabilidade de sobreviver ao teste do tempo, porque quando não existem mais os
mútuos benefícios ou a “diversão” já não resta mais nada a unir as duas pessoas. Por exemplo, se Sam deixasse de vender
parafusos, e passasse a vender livros, o que aconteceria com sua amizade com Bob, já que ele não venderia mais os
parafusos que Bob precisa? Eles poderiam até trocar cartões de Natal, e e-mails de vez em quando, mas a amizade
começaria a se dissolver, pois eles não precisariam mais se comunicar regularmente para tratar de negócios. A relação não
é mais mutuamente benéfica.

De modo similar, na amizade “por satisfação”, quando os interesses de uma pessoa mudam, ou quando alguém se muda e
não está mais por perto para compartilhar os momentos “de diversão”, provavelmente a amizade se esvanece. Isso ajuda a
explicar porque a amizade entre os jovens muda com tanta rapidez. No processo de mudança do colégio para a faculdade e
depois para o mundo profissional eles amadurecem, e seus interesses, valores, convicções morais e localizações geográficas
tendem a sofrer muitas mudanças. Se suas amizades nesse período de transição não está baseado em algo mais profundo do
que o simples fato de viverem no mesmo dormitório, praticar o mesmo esporte, e se divertirem juntos, as amizades
provavelmente se dissolverão com o tempo.
Essas amizades baseadas em momentos de “diversão” juntos tendem a não continuarem depois que as experiências
agradáveis não se encontram mais ali para serem compartilhadas.

Amizade virtuosa

Para Aristóteles, a terceira forma de amizade é a amizade no sentido pleno. Pode ser chamada amizade virtuosa porque os
dois amigos estão unidos não por interesses próprios, mas por interesse em um objetivo comum: a “vida virtuosa”, a vida
moral que se encontra na virtude.

O problema das amizades por prazer ou utilidade é que a ênfase está no que eu obtenho com ela. Entretanto, na amizade
virtuosa, os dois amigos estão comprometidos em alcançar algo fora de si mesmos, algo que vai além de seus interesses
pessoais. E esse bem maior é o que os une na amizade. Lutando lado a lado pela vida virtuosa, e encorajando um ao outro
na vivência das virtudes, o amigo verdadeiro não se preocupa com o que vai obter do relacionamento, mas com o que é
melhor para seu amigo e se preocupa em alcançar a vida virtuosa com seu amigo.

O que faz ou acaba um relacionamento

Com esse contexto em mente, o Papa João Paulo II nos fornecer a chave para evitar que nossos relacionamentos caiam nas
águas egoístas do utilitarianismo. Ele diz que a única maneira de dois seres humanos evitarem usar um ao outro é se
relacionar em vista de um bem comum, como na amizade virtuosa. Se a outra pessoa vê o que é bom para mim, e adota isso
como bem para si própria, “estabelece-se uma ligação especial entre eu e essa outra pessoa: a união de um bem comum e de
um objetivo em comum”. Esse objetivo comum une as pessoas interiormente. Quando não vivemos nossos relacionamentos
com esse bem comum em mente, inevitavelmente trataremos a outra pessoa como um meio para um fim, para algum prazer
ou uso.

Especialmente no casamento, há uma tentação a se portar de forma egoísta, a querer que o cônjuge ou os filhos se adaptem
a nossos próprios planos, agendas e desejos. Por exemplo, quando se aproxima o final de semana, eu posso pensar apenas
nas coisas que quero fazer – projetos que desejo completar em casa, trabalho que preciso realizar, eventos esportivos que
quero assistir – sem dar prioridade ao que meu cônjuge ou meus filhos possas precisar de mim. Eu posso alegremente
concordar em gastar dinheiro com coisas que são importantes para mim, mas resistir firmemente aos desejos de minha
mulher de investir em algo que não me beneficia diretamente, mesmo sendo importante para nossa família.

Entretanto, o Papa João Paulo II nos lembra que a amizade verdadeira, especialmente a amizade no matrimônio, deve ser
centrada na união por um bem comum. No matrimônio cristão, esse objetivo comum envolve a união dos esposos, e o
serviço um ao outro, ajudando um ao outro a crescer em santidade, e também a procriação e a educação dos filhos.

Nossas próprias preferências e agendas devem estar subordinadas a esses bens maiores. Marido e mulher devem estar
subordinados um ao outro para o bem dos filhos, buscando evitar que qualquer individualismo egoísta atrapalhe a família.
Como em um time, marido e mulher trabalham em prol desse bem comum, e discernem juntos como usar melhor seu
tempo, energia e recursos para atingir esses bens comuns do matrimônio.

O Papa João Paulo II explica como a união em torno desse bem comum garante que uma pessoa não esteja sendo usada ou
negligenciada por outra. “Quando duas pessoas diferentes conscientemente escolhem um objetivo comum, isso as coloca
em igualdade e afasta a possibilidade de uma estar sendo subordinada a outra. Ambas… por assim dizer… estão
subordinadas àquele bem que constitui o objetivo comum”.

Sem essa finalidade comum, nossos relacionamentos inevitavelmente cairão em algum tipo de utilização da outra pessoa
para nosso benefício ou prazer. No próximo artigo, consideraremos quão crucial esses pontos fundamentais de “Amor e
Responsabilidade” são no trato com as atrações emocionais e físicas que tantas vezes experimentamos quando encontramos
pessoas do outro sexo.

__________
Notas:
(1) Janet Smith, “John Paul II and Humanae Vitae” in Why Humanae Vitae was Right (San Francisco: Ignatius Press,
1993), 232.
(2) For a more extensive treatment of friendship in Aristotle, see J. Cuddeback, Friendship: The Art of Happiness (Greeley,
CO: Epic, 2003).
O Autor: Edward Sri é professor assistente de Teologia do Benedictine College em Atchinson, Kansas, Estados Unidos, e
autor de vários livros de Teologia e espiritualidade.

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Traduzido de: http://www.catholiceducation.org/articles/marriage/mf0078.html

Amor e Responsabilidade: para além do impulso sexual

No segundo artigo desta série sobre o livro “Amor e Responsabilidade”, Edward P. Sri aprofunda-se nos temas expostos
por João Paulo II.

Por Edward P. Sri, baseado em seu livro “Men, Women and the Mystery of Love”

Em nossa primeira reflexão sobre o livro “Amor e Responsabilidade”, de João Paulo II, consideramos o “princípio
personalista”, o qual diz que não devemos tratar as outras pessoas meramente como meios para um fim.

Particularmente, vimos como o utilitarianismo enfraquece nosso relacionamento, fazendo-nos valorizar as pessoas
primeiramente em termos de algum prazer ou benefício que recebemos na relação com ela.

Ainda assim utilitaristas sofisticados podem argumentar que não há nada de errado em duas pessoas “usarem” uma à outra
na medida em que eles consentirem mutuamente e receberem mutuamente alguma vantagem da relação. Na verdade, alguns
dizem que um relacionamento que traz consigo o egoísmo (interesse próprio) do homem e o egoísmo da mulher de modo
benéfico para os dois seria na verdade um relacionamento de amor.

Por exemplo, o que tem de errado com Bill e Sally terem sexo antes do casamento, se cada um dos dois consente, e cada
pessoa ganha algum prazer com isso? Já que no ato sexual o desejo que Bill tem por prazer se harmoniza com o desejo que
Sally tem por prazer, tal ato não parece ser egoísta. Ambos dão prazer um para o outro, e não apenas para si próprios.

O Papa João Paulo II aponta um grande problema com esse tipo de relacionamento: “No momento em que deixarem de
consentir e deixarem de ser vantajosos um para o outro, nada mais restará da harmonia original. Não haverá amor, em
nenhuma das pessoas nem entre elas”.

Esse tipo de relacionamento me impede de estar realmente em comunhão com a outra pessoa, de estar comprometido com
ela como pessoa, pois esse tipo de relação ainda está dependente do que eu vou conseguir da outra pessoa. Estou
“comprometido” com a pessoa apenas até o ponto – e somente até aí – em que recebo prazer ou vantagem do
relacionamento. Na verdade, o Papa João Paulo II compara tal relacionamento de utilização mútua à prostituição.

Como a prostituição

Imagine um homem de negócios que tem um relacionamento com uma prostituta toda semana numa determinada noite. O
homem deseja o prazer sexual que ela pode lhe dar, e a mulher deseja o dinheiro que ele pode lhe dar. Ambos possuem
objetivos pessoais que convergem para o ato sexual e beneficiam a outra pessoa. Ambos conseguem o que querem, e no
processo atendem aos desejos da outra pessoa.

Entretanto, no momento em que o encontro dessas duas pessoas deixa de ser mutuamente vantajosa, o que acontecerá com
esse relacionamento? Se a prostituta pode ser mais bem paga por um homem mais rico naquela noite particular da semana,
provavelmente ela vai deixar o primeiro homem de negócios pelo segundo, mais rico. Por outro lado, se o homem de
negócios não acha mais a prostituta prazerosa, e encontra uma prostituta mais jovem e mais atraente, ele também
provavelmente vai deixar a primeira prostituta pela segunda, mais jovem.

Isso pode parecer um exemplo exagerado, mas pense quantas relações entre homem e mulher no mundo de hoje não são
muito melhores que isso? Quantos relacionamentos são baseados mais em um mútuo uso do que em amor compromisso e
em uma comunhão verdadeira de pessoas? Por exemplo, quantas jovens mulheres entregam sua virgindade e dormem com
um homem em troca da segurança emocional de ter um namorado ou por medo de que, se não o fizerem, esse homem pode
terminar o relacionamento com ela? Quantos homens querem somente uma garota bonita para dormir com ela pelo prazer
físico que pode conseguir com essa relação? Esses relacionamentos não são de autêntico amor que trazem as pessoas à
comunhão uma com a outra. Ao invés, são simplesmente formais socialmente mais aceitáveis de um uso mútuo – similar à
prostituição.
Insegurança, não amor

João Paulo II nota como as relações baseadas no utilitarianismo lançam medo e insegurança em uma ou ambas as pessoas.
Um sinal de alerta que mostra a possibilidade de existir uma relação utilitária é quando uma pessoa tem medo de conversar
com a outra sobre assuntos difíceis, ou teme resolver problemas na relação com a pessoa amada.

Uma razão pela qual muito casais (seja de namorados, noivos, ou casados) nunca enfrenta as dificuldades na relação com o
outro é porque no fundo sabem que não há muita base sólida para o relacionamento continuar – apenas o prazer ou
benefício mútuo. Teme-se que, se o relacionamento se tornar desafiador, exigente, ou difícil para a outra pessoa, ela vai
“cair fora”. A única maneira de manter o relacionamento é esconder os problemas e fingir que as coisas não estão assim tão
ruins quanto parecem. “O amor assim compreendido é por si mesmo evidentemente uma pretensão que tem que ser muito
bem cultivada para esconder a realidade escondida: a realidade do egoísmo, e do tipo mais baixo de egoísmo, aquele que
explora a outra pessoa para obter para si o ‘máximo de prazer’”.

O Papa João Paulo II então mostra como as pessoas nesse tipo de relacionamento às vezes permitem até mesmo serem
usadas pelo outro a fim de conseguir o que desejam do relacionamento: “Cada uma das pessoas está preocupada
principalmente em gratificar o próprio egoísmo, mas ao mesmo tempo consente em servir o egoísmo do outro, porque isso
pode trazer a oportunidade de satisfazer depois o próprio egoísmo – e fazem isso apenas enquanto isso é verdade”.

Nesse caso, a pessoa deliberadamente se permite ser usada como meio para as intenções egoístas da outra pessoa. “Se eu
trato uma outra pessoa como meio e como instrumento com relação a mim, não posso me considerar senão igualmente, à
mesma luz, como meio. Nós temos aqui algo como o oposto do mandamento do amor”.

O impulso sexual

A sexualidade é uma das principais áreas onde podemos cair na atitude de usar uma outra pessoa. O Papa João Paulo II,
portanto, despende muito tempo refletindo sobre a natureza do impulso sexual.

Primeiramente, ele discute como o impulso sexual se manifesta na tendência das pessoas humanas buscarem o sexo oposto.
Ele diz que o impulso sexual orienta um homem para as características físicas e psicológicas de uma mulher – seu corpo,
sua feminilidade – que são os próprios atributos mais complementares ao homem. E a mulher, por sua vez, está orientada
para os atributos físicos e psicológicos de um homem – seu corpo e sua masculinidade – as propriedades que são
naturalmente complementares para a mulher. Portanto, o próprio impulso sexual é experimentado como uma atração
corporal (física) e emocional (psicológica) para uma pessoa do sexo oposto.

Entretanto, o impulso sexual não é uma atração para as qualidades físicas e emocionais do sexo oposto no abstrato. O Papa
João Paulo II enfatiza que esses atributos somente existem em uma pessoa humana concreta. Por exemplo, nenhum homem
é atraído ao “loira” ou “morena”, abstratamente. Ele se sente atraído, ao invés, a uma mulher – uma pessoa em particular –
que pode ter cabelo loiro ou moreno. Uma mulher não se sente primariamente atraída pela “masculinidade” como um
conceito teórico, mas ela pode se sentir muito atraída por um homem particular que exibe certos traços tradicionalmente
masculinos, tais como coragem, decisão, força, e cavalheirismo.

O Papa João Paulo II enfatiza esse ponto para mostrar como o impulso sexual, em última análise, dirige-se à pessoa
humana. Portanto, o impulso sexual não é, em si mesmo, ruim. Na verdade, por se destinar a nos orientar em direção a
outra pessoa, o desejo sexual pode fornecer um espaço para o autêntico amor se desenvolver.

Isso não quer dizer que o impulso sexual deve ser igualado ao amor. O amor envolve muito mais do que as reações sensuais
ou emocionais espontâneas que são produzidas pelo desejo sexual; o autêntico amor requer atos da vontade dirigidos em
prol do bem da outra pessoa. Ainda assim, o Papa João Paulo II diz que o impulso sexual pode fornecer a “matéria-prima” a
partir da qual atos de amor podem surgir – isso se for guiado por um grande senso de responsabilidade pela outra pessoa.

Mais do que instinto animal

É importante notar que o impulso sexual nas pessoas humanas não é o mesmo que o instinto sexual encontrado nos
animais. O Papa João Paulo II explica que nos animais o instinto sexual é um modo reflexo de ação, que não depende de
pensamento consciente. Por exemplo, uma gata fêmea no cio não reflete qual o melhor tempo, lugar ou circunstância para
ela acasalar, e não pensa em qual gato macho das vizinhanças ela quer como parceiro ideal. Os gatos simplesmente agem
por reflexo, de acordo com seus instintos.
As pessoas humanas, entretanto, não precisam ser escravas do que está borbulhando dentro delas na esfera sexual. No final
das contas, a pessoa está em controle do impulso sexual – e não o contrário. A pessoa pode escolher como vai usar esse
impulso.

Um homem, por exemplo, pode experimentar uma atração sexual por uma mulher. Ele às vezes pode até experimentar essa
atração como algo que acontece a ele – algo que começa a tomar lugar em sua vida sensual ou emocional sem nenhuma
iniciativa de sua parte. Entretanto, essa atração pode e deve estar subordinada ao seu intelecto e sua vontade. Uma pessoa
pode não ser sempre responsável pelo que lhe acontece na área da atração sexual, mas ela é sempre responsável pelo que
decide fazer em resposta a esses estímulos interiores.

Amar ou usar?

Lembremo-nos que o impulso sexual nos conduz aos atributos físicos e psicológicos da pessoa do sexo oposto. Mas, em
última análise, existe para nos conduzir à pessoa que possui esses atributos – não apenas aos atributos em si. As
manifestação do impulso sexual, portanto, nos colocam diante de uma decisão entre amar a pessoa e usá-la devido a seus
atributos.

Por exemplo, digamos que Bill conhece Sally no trabalho, e rapidamente se sente atraído pela sua beleza e personalidade
encantadora. Bill pode escolher entre se elevar acima dessa reação sexual inicial e ver nela mais do que apenas seu corpo e
sua feminilidade. Ao olhar além dos atributos físicos e psicológicos que lhe dão prazer, ele tem a possibilidade de vê-la
como uma pessoa, e responder a ela com atos de amor desinteressado.

Por outro lado, Bill pode experimentar a atração sexual e escolher a fixação nas qualidades físicas e psicológicas que lhe
dão prazer. Fixando-se na sua beleza e no seu charme feminino – e no prazer que deles deriva – ele se distrai, perde a
capacidade de ver Sally como ela realmente é, não consegue mais amá-la como uma pessoa. Ele pode ser gentil com ela,
mas está, ao menos em algum grau significante, fazendo isso a fim de receber algum prazer sensual ou emocional derivado
da proximidade para com ela. No final das contas, portanto, Bill a está usando como fonte de prazer para si.

O Papa João Paulo II diz que, se a interação entre um homem e uma mulher permanece no nível dessas reações iniciais
produzidas pelo impulso sexual, o relacionamento não é capaz de amadurecer para uma comunhão verdadeira de pessoas.
“Inevitavelmente, então, o impulso sexual em um ser humano está sempre no curso natural das coisas que se direcionam a
outro ser humano. Se está se direcionando apenas aos atributos sexuais como tais, isso deveria ser reconhecido como um
empobrecimento ou mesmo uma perversão desse impulso”.

Esse é um ponto importante para nossos encontros cotidianos com pessoas do sexo oposto. Seguindo o princípio
personalista, o Papa João Paulo II nos lembra como devemos ser cuidadosos a fim de evitar tratar as outras pessoas como
potenciais objetos para nosso próprio prazer sensual ou emocional. Lendo essas linhas, devemos nos perguntar uma questão
crucial: O que faremos quando experimentarmos a excitação da atração sexual por uma particular pessoa do sexo oposto? O
que um homem escolherá fazer quando percebe a beleza física de uma mulher? O que uma mulher escolherá fazer quando
se sente atraída por um homem?

Nesses momentos importantes, podemos fazer a escolha de nos fixarmos nos prazeres sensuais ou emocionais que
recebemos do corpo ou da masculinidade ou feminilidade da outra pessoa. E, ao fazer isso, estaremos vendo a pessoa como
um objeto para usufruto pessoal, e assim estaremos caindo no utilitarianismo. Ou, ao contrário, podemos procurar cultivar o
amor autêntico pela própria pessoa, dirigindo nossa atenção para a pessoa na sua integralidade. Olhando além dos atributos
físicos e psicológicos, e vendo a pessoa real, abrimos as portas ao menos à possibilidade de desejar o bem da outra pessoa,
como na amizade virtuosa, e nos abrimos a realizar atos de gentileza verdadeiramente altruístas – os quais não dependem
da quantidade de prazer que recebemos do relacionamento.

Com esses insights, o Papa João Paulo II nos lembra que nossas delicadas interações com as pessoas do sexo oposto
demandam grande responsabilidade. “Por essa mesma razão, as manifestações do impulso sexual no ser humano devem ser
avaliadas no plano do amor, e qualquer ato que dele se origina forma um elo na corrente da responsabilidade, a
responsabilidade pelo amor”.

Nas próximas reflexões, exploraremos os insights do Papa João Paulo II sobre como podemos, na prática, dirigir nossa
atenção para a pessoa, não apenas para seus atributos sexuais, a fim de acolher o amor e a responsabilidade autênticas por
aqueles que estão perto de nós.

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O Autor: Edward P. Sri é professor assistente de Teologia do Benedictine College, em Atchison, Kansas, Estados Unidos, e
autor de vários livros de Teologia e espiritualidade.

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Traduzido de: http://www.catholiceducation.org/articles/marriage/mf0076.html

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