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UMA BREVE HISTÓRIA DA HISTERIA: DA ANTIGUIDADE

ATÉ OS TEMPOS ATUAIS*


Dossiê

Erik Dorff Schmitz**

Resumo: nesse artigo, apresentaremos uma história da histeria através de uma aborda-
gem histórico-crítica e bibliográfica. Teremos como base os estudos de Michel Foucault,
Sigmund Freud e Etienne Trillat, autores de obras como História da Loucura na Idade
Clássica, Estudos sobre a Histeria e História da Histeria, respectivamente. Apresentare-
mos como a histeria foi abordada, com muitos estereótipos, durante vários períodos da
história, sendo confundida e/ou denominada em algumas épocas como furor uterinus,
ninfomania, melancolia, epilepsia, loucura. Posteriormente demonstraremos como a
histeria se aproxima e também se distingue da loucura e de outras psicoses, havendo uma
psiquiatrização da mulher histérica. Após isso, abordaremos como na modernidade a
histeria é relegada a uma análise cientificista e psicanalítica, permitindo o surgimento
de abordagens mais claras e distintas. Por fim, nosso objetivo é apresentar por quais
motivos a histeria teve algumas diferentes abordagens no decorrer da história, e como
ela é vivenciada nos dias atuais.

Palavras-chave: Histeria. História. Psiquiatria. Psicanálise. Mulher.

A BRIEF HISTORY OF HISTERY: FROM ANTIQUITY TO CURRENT TIMES

Abstract: In this article, we will present a history of hysteria through a historical-critical


and bibliographic approach. We will base on the studies of Michel Foucault, Sigmund
Freud and Etienne Trillat, authors of works such as History of Madness in the Classical
Age, Studies on Hysteria and History of Hysteria, respectively. We will present how hys-
teria was approached, with many stereotypes, during various periods of history, being
confused and / or denominated in some periods as furor uterinus, nymphomania, me-
lancholy, epilepsy, madness. Later we will demonstrate how hysteria approaches and is
also distinguished from madness and other psychoses, with a hysterical psychiatrization
of women. After that, we will approach how in modern times hysteria is relegated to a

* Recebido em: 04.01.2021. Aprovado em: 29.04.2021.


** Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: erik.schmitz@hotmail.com.

Revista Mosaico, v. 14, p. 227-238, 2021. e-ISSN 1983-7801 DOI 10.18224/mos.v14i2.8754 227
scientific and psychoanalytic analysis, allowing the emergence of clearer and different
approaches. Finally, our goal is to present why hysteria has had some different approaches
throughout history, and how it is experienced today.

Keywords: Hysteria. Story. Psychiatry. Psychoanalysis. Woman.

A
histeria foi objeto de estudos de vários pensadores durante a história da humanidade.
A conhecida obra de Michel Foucault, História da Loucura na Idade Clássica (1961), explora
através de uma arqueologia do saber e do poder a história desse fenômeno, e especialmente a
loucura, que intrigaram pensadores, escritores, médicos e psicólogos. A obra apresenta um estudo, sob
a perspectiva da arqueologia histórica; das ideias, práticas, instituições, arte e literatura concernentes
ao tema da loucura na história ocidental. Nessa arqueologia e historiografia, Foucault começa sua
obra mostrando a Nau dos Loucos no século XV, por onde os considerados anormais eram afastados
da sociedade e levados para algum lugar longínquo. Porém, na Renascença, o louco começa a ser
visto como aquele que chegou muito perto das razões de Deus, e era em parte aceito no meio social, e
objeto de obras literárias (com em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, por exemplo). Mas a partir
do século XVII inicia-se na sociedade Europeia um movimento denominado por Foucault como o
Grande Confinamento, onde os loucos começam a serem presos em instituições, como os manicômios,
clínicas, internatos, hospitais, sendo segregados da sociedade civil.
O fenômeno da histeria, que desde a Antiguidade também intrigou pesquisadores, é
lembrado pouco por Foucault. Porém outros pensadores viram esse fenômeno como parente
da loucura, e ora ou outra, foi confundido em círculos médicos com a epilepsia, melancolia e
outras patologias. Daremos nesse artigo, atenção maior para o fenômeno da histeria e como ele
foi abordado durante a história. Primeiramente buscaremos como a histeria foi abordada, com
muitos estereótipos, durante vários períodos da história sendo relacionada a problemas no útero,
desordens na sexualidade feminina, excesso de desejo sexual, estando rodeada dos julgamentos
morais e culturais da Idade Antiga e Média no Ocidente. Num segundo momento demonstraremos
que a partir do século XVIII, a histeria começa a ser abordada através do cientificismo da Salpe-
triere na França, com o surgimento dos manicômios e clínicas, com os grandes confinamentos, e
principalmente com os estudos de Jean-Martin Charcot e Sigmund Freud. No terceiro momento,
abordaremos que no final do século XIX e início do XX a histeria é analisada sobre o crivo da
psicanálise, somando-se ao rol de psicoses e neuroses. Por fim, abordaremos que atualmente tal
termo foi desaparecendo dos manuais de medicina e psiquiatria, sendo substituídos por outros
menos estereotipados, que buscam abordam fenômenos semelhantes. Nossa abordagem histo-
riográfica toca em outras áreas do saber, e não buscará esgotar o tema, mas tem como objetivo
oferecer uma leitura crítica do fenômeno da histeria e de como ele foi abordado pelos círculos
culturais em algumas épocas e espaços.

HISTERIA E SEXUALIDADE FEMININA: FUROR UTERINUS

O fenômeno da histeria foi ligado durante a história da humanidade à sexualidade feminina.


Em sua etimologia, histeria deriva do grego ὑστέρα, hystera, útero. Assim, a histeria foi relacionada
desde a Antiguidade como uma doença surgida no útero.
Podemos demonstrar com o suporte do francês Etienne Trillat em sua obra História da Histeria,
que desde tempos milenares antes mesmo de Hipócrates e Platão, o senso comum acreditava que o
útero era um organismo vivo, que possuía autonomia e se movimentava dentro do corpo da mulher,
provocando perturbações:

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O saber sobre a histeria entrou depois no domínio da medicina, quando esta se constituiu no
século IC a. C., em torno de Hipócrates. Hipócrates e, nós o veremos, Platão, não fizeram mais
que retomar por sua conta crenças milenares. A ideia segundo a qual o útero é um organismo vivo
análogo a um animal dotado de uma certa autonomia e de uma possibilidade de deslocamento
remonta, com efeito, à mais alta Antiguidade, cerca de 2000 anos a.C. (TRILLAT, 1991, p. 17).

Essa mentalidade irá permanecer durante boa parte da Idade Antiga e da Idade Média, até nos
primórdios da Modernidade. Segundo tal visão, o útero sendo um organismo vivo possuía vapores que
naturalmente desciam para os órgãos sexuais durante as relações sexuais. Caso a mulher se encontrasse
em abstinência, por qualquer motivo, tais vapores subiam num fluxo para o cérebro, provocando os ata-
ques histéricos, espasmos e contorções. O homem, por sua vez, estaria mais livre de tal mal, por possuir
vapores mais voláteis. A partir dessa concepção, a histeria é intimamente ligada a sexualidade feminina:

O homem estaria, portanto, ao abrigo de acidentes histéricos. Em compensação, a semente da


mulher contém, além de fermentos voláteis como no homem, fermentos fixos, pesados, muito
pouco voláteis. Isso freia o transporte dos vapores para os lugares que a natureza lhes destina:
os órgãos sexuais. As coisas se agravam com a abstinência voluntária ou forçada. A semente se
acumula e, não encontrando exutório no exercício da sexualidade, os vapores nascidos dessa
fermentação sobem para o cérebro pelo canal dos nervos e provocam a convulsão histérica, a
confusão, o delírio, a inchação do ventre, a mania ou a possessão diabólica (TRILLAT, 1991, p. 64).

Quando mulheres eram acometidas de ataques histéricos, logo indagava-se se estavam em abs-
tinência sexual, voluntária ou forçada, seja por falta de um parceiro, ou por algum preceito moral e/
ou religioso. A atividade sexual era recomendada pelos médicos, ou se não fosse possível, indicava-se
a prática de exercícios físicos, chás e alimentos leves. O saber sobre a histeria começa a mostrar e es-
tereotipar a relação que se cria entre tal mal e sexualidade feminina, seus desejos e comportamentos.
Michel Foucault nos mostra em História da Loucura na Idade Clássica (1961), como a histeria era
entendida antes do desenvolvimento da ciência e da psiquiatria como conhecemos hoje, na mesma
linha que Trillat nos apresenta, relembrando a visão antiga:
Muito frequentemente, a histeria foi entendida como o efeito de um calor interno que espalha
através do corpo uma efervescência, uma ebulição ininterruptamente manifestada por convulsões e es-
pasmos. Esse calor não será parente do ardor amoroso ao qual a histeria é tão frequentemente associada,
nas moças à procura de marido e nas jovens viúvas que perderam o seu? (FOUCAULT, 1972, p. 310).
Também podemos ter conhecimento através da obra de Foucault que alguns médicos publicando
seus primeiros estudos sobre a histeria tentaram a distinguir de outros males como o frenesi, o delírio,
a mania, a melancolia e a estupidez. Ora tais males são distintos uns dos outros, ora são confundidos.
Em todos os casos, até então não havia muita segurança nos médicos em fazer diagnósticos quando
os sintomas eram semelhantes:

Em 1672, Willis publica seu De Anima Brutorum, cuja segunda parte trata das “doenças que
atacam a alma animal e sua sede, isto é, o cérebro e o gênero nervoso”. Sua análise retoma as
grandes doenças reconhecidas há muito pela tradição médica: o Frenesi, espécie de furor acom-
panhado por febre e que é necessário distinguir, por sua maior brevidade, do Delírio. A Mania
é um furor sem febre. A Melancolia não conhece nem furor, nem febre: caracteriza-se por uma
tristeza e um pavor que se aplicam a objetos pouco numerosos, frequentemente a uma única
preocupação. Quanto à Estupidez, é característica em todas as pessoas nas quais “a imaginação,
bem como a memória e o juízo, estão em falta” (FOUCAULT, 1972, p. 222).

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A histeria dentro dessa concepção antiga provocava estereótipos tanto nas mulheres acome-
tidas por ela, como nas famílias das pacientes. Ao ligar a histeria a uma perturbação no útero, de
ordem sexual, os médicos e a cultura, sobretudo o cristianismo medieval, estigmatizaram a mulher
histérica como uma ninfomaníaca. Curiosamente em 1786 o médico D. T. Bienville publica a obra
A Ninfomania ou O tratado do furor uterino. Tal obra é uma mescla de tratado de medicina, livro
de remédios caseiros, e literatura erótica. Para Bienville a mulher que sofre de histeria, ninfomania
ou furor uterinus está claramente sedenta das relações sexuais da qual se encontra privada, por um
motivo ou outro, até o ponto de se tornar agressiva caso um homem recuse satisfazer a seus desejos:
E caso algum homem recuse tais favores com um sábio desprezo, que se prepare para enfrentar
a desgraça de uma figura humana, de uma mulher que se lança aos acessos de furor, sobrecarregando
com as mais injustas repreensões o Sábio, que não a escuta. Esse tipo de mulher chega muitas vezes
a persegui-lo, a caluniá-lo, a denegrir sua boa fama e, após ter feito mil tentativas contra seu sossego
e sua honra, deixa-se arrebatar com ímpeto e sem reservas pela tentação cruel de uma vingança alu-
cinada para redimir o orgulho ferido (BIENVILLE, 1999, p. 27-8).
Com essa afirmação, percebe-se como a mulher e sua sexualidade foram associadas ao mal e
ao desequilíbrio desde tempos antigos, sendo chancelada por visões religiosas, morais e familiares
de caráter rigorista: “A Ninfomania, ou Furor Uterino, é uma doença sórdida e horrível, que cobre de
opróbrio e de infâmia não só o indivíduo que por ela é atacado, mas também os genitores que tive-
ram a desgraça de pô-lo no mundo” (BIENVILLE, 1999, p. 65). A mulher e sua intimidade segundo
essa mentalidade são associadas ao perigo, e além disso, começam a ser objeto de estudo médico que
posteriormente irá psiquiatrizá-la como objeto de estudo nos meios científicos. Nessa historiografia,
é importante ressaltar o estereótipo negativo que alguns círculos médicos tragicamente lançaram
sobre as mulheres. O próprio Bienville, ao descrever as causas de tal mal, reforça o caráter horroroso
de tal doença associada ao corpo da mulher:

Começa essa doença com um delírio maníaco, cuja causa reside no vício do útero: ao progredir,
degenera-se num delírio maníaco, que se inicia com um distúrbio do cérebro. Quando esses dois
acidentes se juntam, causam a doença que denominamos Ninfomania. [...] Basta saber como a
continuação e a veemência dos movimentos das fibras nas partes orgânicas produzem infalivel-
mente nas da cabeça uma tensão e uma pressão causadoras do delírio: que este delírio em algumas
é universal, em outras, provocado somente por objetos particulares; e que, finalmente, considerado
sob um certo aspecto, não deixa mais nenhuma esperança de cura (BIENVILLE, 1999, p. 36, 52).

De fato, a visão médica da época ainda era limitada e influenciada pelas concepções que ver-
savam sobre tal fenômeno estereotipando-os como temos apresentado.

HISTERIA E CIENTIFICISMO

A partir do século XIX, com o avanço dos círculos científicos, principalmente na França, o
fenômeno da histeria começa a ser analisado sob um ponto de vista mais científico. A mulher histérica
é cientificizada, buscando-se em causas neurológicas e psicológicas as bases para os ataques histéricos,
e deixando um pouco de lado a fixação sobre o útero como fonte desse mal. Um olhar cada vez mais
científico, pelos círculos médicos, é projetado sobre a mulher.
O precursor desses estudos foi Jean-Martin Charcot, que no século XIX descobriu na hipnose
um método para diagnosticar e tratar a histeria. Os pacientes analisados por Charcot e seus alunos
eram postos sob os métodos clínicos científicos e analíticos. Iniciou-se também nessa época o uso da
hipnose e do magnetismo em vários lugares para se tratar e curar a histeria. A partir desse momento,

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os histéricos, e principalmente as mulheres acometidas pela histeria começam a serem analisadas
com olhares clínicos, científicos, onde buscam-se causas naturais, de caráter neurológico e/ou psico-
lógico para tal mal. Trillat (1991, p. 146) reforça como a partir do século XIX a histeria entra no rol
das doenças, entra na ciência:

Ao ser submetida ao método anatomoclínico, a histeria se tornava uma doença como as outras,
ela entrava na ciência. É essa entrada que foi saudada pela apóstrofe triunfante de Déjerine em
1911: “Graças a seus estudos sobre a histeria, Charcot soube subtrair aos psiquiatras um campo
que estes tentaram em vão reconquistar...” Isto é certo, mas Déjerine se esquece de nos dizer que
nesse intervalo, Charcot se tornara um pouco psiquiatra.

Na imagem a seguir, é possível observar como a figura da mulher histérica é posta no centro
das atenções dos cientistas (homens).

Figura 1: Uma aula clínica do Dr. Charcot na Salpêtrière por André Brouillet1

Com isso, podemos constatar que o olhar médico que versava sobre o fenômeno da histeria
foi hegemonicamente um olhar masculino sobre um fenômeno que acometia geralmente o público
feminino. A distinção que se faz mais claramente entre a histeria na Antiguidade e Medievalidade e a
histeria nesse momento, é o fato de que a partir do século XIX, o útero começa a ser deixado de lado
como causa do mal, e as disfunções neurológicas e psicológicas começam a serem mais investigadas e
consideradas. Os médicos do círculo de Charcot, e de outros círculos começam a se preocupar a estabe-

1 Disponível em: https://www.google.com/search?q=historia+da+histeria&tbm=isch&ved=2ahUKE-


wifuKKYqqLrAhXIMLkGHZe9CL4Q2-cCegQIABAA&oq=historia+da+histeria&gs_lcp=CgNpb-
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t-BR#imgrc=1hbsaKe-CPiUOM&imgdii=uZyaDqkKLkGl2M. Acesso em: 17 ago. 2020.

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lecer distinções entre a histeria e outras doenças, como a epilepsia. Com isso percebe-se o crescimento
do cientificismo do século XIX adentrando nesses círculos e sendo lançado sobre as pacientes histéricas:

Como se estabelecia o diagnóstico diferencial entre a epilepsia e essa outra “neurose” que era a
histeria? Para Delasiauve (1854), o diagnóstico é difícil, tanto mais que a união dos dois “gêneros”
não é impossível. A abolição do sentimento nem sempre é completa na epilepsia; na histeria, a
perda do conhecimento não é jamais absoluta. Durante o ataque histérico, a maioria dos doentes
pode ouvir, responder e conservar, após a crise, uma certa consciência daquilo que se passou.
Delasiauve salienta, sobretudo, um caráter distintivo muito geral: na epilepsia, os sintomas são
mais “cerebrais”, as agitações convulsivas provém do cérebro: “é na cabeça que reside o foco da
epilepsia”. Na histeria os sintomas são mais “toráxicos” (TRILLAT, 1991, p. 166).

Mesmo com diversos estudos, ainda não é possível para os médicos uma clareza total na dis-
tinção da histeria em relação a outras enfermidades. A análise cientificista, naturalista e neurológica,
com base em métodos de hipnose e magnetismo ainda não é suficiente para distinguir alguns fenô-
menos semelhantes, que ora confundiam os próprios médicos. Pierre Janet - aluno de Charcot - outro
neurologista, psicólogo e psiquiatra francês começou a contribuir com essas investigações ao ser um
dos primeiros a trazer a histeria para o campo da psicologia e psiquiatria. Sigmund Freud – também
aluno de Charcot - um pouco depois, irá psiquiatrizar totalmente a histeria. Com a análise psicológica,
através da verbalização do paciente, os cientistas começam a penetrar mais profundamente no mal
histérico, não ficam somente na periferia dos sintomas:

É preciso dar lugar à análise psicológica. É um terreno virgem que se abre a exploração. Não
mais interessará a descrição superficial dos sintomas físicos aleatórios, mas procurar-se-á bus-
car a verdade projetando luz sobre a origem mesma de todas as manifestações sintomáticas. [...]
O médico e o magnetizador permaneciam na periferia; o psicólogo penetra no lugar por efração
(TRILLAT, 1991, p. 194-5).

Janet é o promissor ao se preocupar em coletar todos os sintomas dos pacientes, tanto no âm-
bito físico, como no âmbito neurológico e psicológico. A histeria torna-se uma doença no campo da
psicopatologia, uma psicose, uma neurose. Com métodos um pouco mais aprofundados, os estudos
de Janet ficam um tanto mais credíveis nos círculos científicos e acadêmicos:

Tal como a fisiologia permite explicar a produção dos sintomas das doenças orgânicas, a psico-
patologia torna compreensível a produção dos sintomas psíquicos. Assim o caminho de Janet
fica simétrico ao da medicina. Ele elabora uma psicopatologia que vai dar conta dos sintomas
psíquicos; posteriormente não restará senão agrupar os sintomas nas entidades nososgráficas e
o elo torna a se fechar fundando as bases de cada grupo nosográfico sobre uma psicopatologia
específica (TRILLAT, 1991, p. 195).

A novidade do método de Janet está em coletar e separar com maior clareza os sintomas, algo
que os adeptos dos métodos de hipnose e magnetismo por si só não faziam. Após isso, buscava situar
numa explicação global a produção de todos os acidentes histéricos, dando atenção maior para o
estado de consciência da paciente:

A façanha de Janet foi a de ter situado numa explicação global a produção de todos os acidentes
histéricos (ataques e estigmas, fugas, sonambulismo e personalidades múltiplas), apoiando-se

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em duas características dadas como fundamentais do estado mental dos histéricos: um estado
de subconsciência ou dissociação da consciência do qual o sonambulismo é a representação clí-
nica (ele resume todos os outros sintomas) e um estreitamento da consciência que é dado como
primitivo e fundamental; o desdobramento da personalidade sendo a consequência imediata da
fraqueza da síntese psíquica (TRILLAT, 1991, p. 200).

Esse desenvolvimento no diagnóstico e tratamento da histeria, acontece na medida em que a


ciência e a sociedade, confinam com mais veemência os considerados anormais. A Salpêtrière2 na
França foi um hospital e manicômio que teve como objetivo confinar os loucos, anormais, histéricos
e histéricas, durante o século XIX para servirem de análise e estudos para os cientistas da época.
Percebemos que ao mesmo tempo que há o processo de confinamento dos loucos e histéricos, há a
evolução das pesquisas científicas e publicação dos diagnósticos e tratamentos para tais males.

HISTERIA E PSICANÁLISE

A partir de Janet, mas sobretudo com Freud, o fenômeno da histeria é abordado com o olhar da
psicanálise. Afinal, segundo Trillat, “[...] toda a teoria psicanalítica nasceu da histeria. Porém, a mãe
morre após o parto” (TRILLAT, 1991, p. 221). De fato, a psicanálise nasce a partir dos estudos de Freud
e seus colegas a respeitos de casos de histeria, relacionando-os a traumas psíquicos de natureza sexual.
O tema da sexualidade volta à tona, porém não se concentra no aspecto físico do útero e seus
vapores, como na concepção Antiga e Medieval já abordada. Através dos estudos de casos concretos,
Freud parte para a análise do inconsciente das pacientes, através da interpretação de sonhos e da
verbalização no divã: “Em 1900 aparece A Interpretação dos sonhos e, a partir daí, Freud utilizará
para interpretar a histeria tudo o que ele tirou da hermenêutica dos sonhos” (TRILLAT, 1991, p. 248).
A verbalização das imagens, sonhos, pesadelos, fantasias e desejos tornaram-se um material de estu-
do para os analistas que ligando os fatos, atos, gestos, símbolos e sentimentos, buscam diagnosticar
as causas para as neuroses e psicoses de caráter sexual ou não. A histeria, que continua acometendo
principalmente as mulheres é posta ao lado de outras neuroses e psicoses, e a partir de Freud é sexua-
lizada no inconsciente3 da paciente.
De fato, podemos afirmar também que a psicanálise só se desenvolve a partir de quando o
sexo é posto em discurso, como na análise arqueológica de Foucault. Primeiramente a pastoral
cristã buscou através do sacramento da confissão interferir na sexualidade das pessoas e dos casais,
fazendo eles falarem sobre sua sexualidade ao confessor ou diretor espiritual. Tal mecanismo foi
transposto para outras estruturas como a medicina, a psicologia, o direito e as prisões. Segundo o
próprio Foucault em História da Sexualidade I “Pelo menos até Freud, o discurso sobre o sexo – o

2 Fundada no século XVII, num local onde posteriormente existia uma fábrica de pólvora em Paris, a Sal-
pêtrière foi projetada para atender pobres, mendigos, desocupados, que pudessem perturbar a ordem da
cidade de Paris. Acabou servindo de prisão para prostituas e criminosos, e para os considerados “doentes
mentais” que poderiam colocar em risco a população e sociedade parisiense.
3 Com o uso desse termo queremos afirmar que as teorias de Freud primeiramente dividem a psique humana
em consciente e inconsciente, sendo que o consciente é só a ponta do iceberg (Ego), onde no inconsciente
submerso (Id) estão represados o que a cultura, a moral e as convenções sociais (Super Ego) reprimem em
todas as fases da vida familiar e social. O acesso ao inconsciente, segundo Freud, se dá brevemente pelos
sonhos, chistes e atos falhos, mas segundo seu método, precisam da verbalização do paciente posto em
análise, e do terapeuta que irá relacionar os símbolos contidos no sonho relatado, com a história de vida,
e com os sintomas físicos, a fim de diagnosticar onde está a origem do recalque, fazendo o paciente tomar
consciência de tal. Tais recalques nos estudos e análises de Freud geralmente tinham uma motivação ode
cunho sexual, que fora reprimida na infância ou adolescência no contexto familiar e/ou social.

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dos cientistas e dos teóricos – não teria feito mais do que ocultar continuamente o que dele se falava”
(FOUCAULT, 1997, p. 53).
Trillat mostra que para Freud a histeria inicia-se num acidente ou incidente de caráter sexual,
geralmente na infância ou adolescência, que não sendo dissociado no âmbito psicológico e emocional,
provoca um recalque, gerando posteriormente os sintomas histéricos no âmbito físico:

“Eu suspeito o seguinte fato: a histeria é determinada por um incidente sexual primário ocorrido
antes da puberdade e que foi acompanhado de desgosto e de terror. Para o obsessivo, o mesmo
incidente foi acompanhado de prazer” (Carta a Fliess, 1895). A moça sendo passiva e o rapaz
sendo ativo, compreende-se que a histeria atinja principalmente a mulher e, a obsessão, o homem
(TRILLAT, 1991, p. 240).

Freud encontra na distinção entre feminino passivo e masculino ativo, uma possível origem
para as neuroses de cunho sexual. Assim, é compreensível que a histeria acometesse principalmente
as mulheres, que sofriam traumas ou repressões em sua sexualidade. Aos homens com caráter mais
obsessivo, ficava relegada uma personalidade mais ativa na dimensão da sexualidade, ou algumas
poucas desordens. Porém, além disso, o fenômeno histérico se relaciona diretamente com o que Freud
chamou de mecanismos de defesa ou neuroses de defesa do inconsciente, que durante as terapias eram
associados pelo analista para se encontrarem as causas da histeria.

Com Freud, a “defesa” constitui a partir de então o referencial central da histeria. Mas como o
mesmo mecanismo opera em outras neuroses, assiste-se a uma redistribuição nosográfica da
histeria no quadro ampliado das “neuroses de defesa”. Ao menos, com ou sem hipnose, Breuer e
Freud fazem da tendência à “dissociação do consciente” um fenômeno fundamental da histeria
(TRILLAT, 1991, p. 234).

Com o método da verbalização, a psicologia e psicanálise atuam para compreender como o


trauma atinge o paciente em sua interioridade psíquica e emocional. O que importa não é o trauma
em si, mas o trauma para si, ou seja, qual a repercussão que uma atitude, gesto, palavra, símbolo ou
imagem provocou no interior emocional e psicológico. Tais traumas submersos ao inconsciente só
podem ser acessados pelas ligações que o analista faz pela verbalização do paciente de seus sonhos,
ou em casos mais raros e esporádicos como o ato falho ou o chiste:

O que conta não é o traumatismo em si, é o traumatismo para si, é a maneira pela qual ele foi
vivido. O fato de que a fantasia à qual o sujeito dá a espessura da realidade tenha provocado o
sintoma, prova bem a força, o peso, o poder da “realidade psíquica”. A realidade psíquica é de
alguma forma mais real que a realidade fatual, ao menos para o histérico (TRILLAT, 1991, p. 242).

Assim surge e se consolida a psicanálise. Adentrando na abordagem de Freud, ele e seus colegas
se convencem que a histeria tem suas causas em traumas psíquicos, e estes geralmente têm ligação
com traumas de natureza sexual. Segundo o próprio Freud em Estudos sobre a Histeria (1893 – 1895):

De maneira análoga, nossas pesquisas revelam para muitos, se não para a maioria dos sintomas
histéricos, causas desencadeadoras que só podem ser descritas como traumas psíquicos. [...] No
caso da histeria comum não é rara a ocorrência, em vez de um trauma principal isolado, de vá-
rios traumas parciais que formam um grupo de causas desencadeadoras (FREUD, 1996, p. 21).

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As análises de Freud irão sexualizar a histeria ao nível psíquico e emocional. Os sintomas
histéricos são resultados de pulsões e desejos reprimidos, ou de traumas de cunho sexual que não
foram associados e digeridos pelo consciente dos acometidos pela histeria. Em sua obra Uma neurose
demoníaca do século XVII e outros trabalhos, Freud mostra como a repressão sexual está intimamente
ligada com as neuroses e psicoses, realizando também psicoses de caráter religioso como crenças em
possessão demoníaca. Uma libido não satisfeita, reprimida e recalcada, é para Freud uma das causas
mais frequentes das neuroses, que irão provocar os sintomas histéricos:

No conflito criador da neurose, o que está em jogo são interesses unicamente libidinais ou in-
teresses libidinais em vinculações íntimas com interesses autopreservativos. Em todos os três
casos, a dinâmica da neurose é a mesma. Uma libido representa que não pode ser satisfeita, na
realidade logra êxito, com o auxílio de uma regressão a fixações antigas, em encontrar descarga
através do inconsciente reprimido (FREUD, 1976, p. 56).

Também em Estudos sobre a Histeria (1893 – 1895), Freud elabora sistematicamente os métodos e
caminhos para se diagnosticar a histeria, associar os sintomas e descobrir as causas para tal fenômeno
em cada paciente analisado. Relatando casos concretos de suas pacientes, sobretudo mulheres, Freud
parte do princípio de que para os sintomas histéricos se desenvolverem, uma premissa é necessária:
uma representação precisa ser intencionalmente recalcada da consciência e excluída das modificações
associativas. Segundo ele:

Ora, eu já sabia, pela análise de casos semelhantes, que antes de a histeria poder ser adquirida
pela primeira vez, uma condição essencial precisa ser preenchida: uma representação precisa ser
intencionalmente recalcada da consciência e excluída das modificações associativas. Em minha
opinião, esse recalcamento intencional constitui também a base para a conversão total ou parcial
da soma de excitação. A soma de excitação, estando isolada da associação psíquica, encontra
ainda com mais facilidade seu caminho pela trilha errada para a inervação somática. A base do
próprio recalcamento só pode ser uma sensação de desprazer, uma incompatibilidade entre a
representação isolada a ser recalcada e a massa dominante de representações que constituem o
ego. A representação recalcada vinga-se, contudo, tornando-se patogênica (FREUD, 1996, p. 89).

A representação recalcada e não associada pelo psíquico e emocional do paciente forma a base
para a inervação física, espasmos, gritos, choques e ataques de toda ordem. Em outra obra, Um caso de
Histeria, Três Ensaios sobre Sexualidade e outros trabalhos (1901 – 1905), Freud mostra como se efetua o
processo psíquico do recalcamento, origem de muitas, ou quase todas as histerias, neuroses e psicoses:

Com efeito, o recalcamento muitas vezes se efetua por meio de um reforço excessivo do oposto
do pensamento a ser recalcado. [...] O pensamento reativo mantém o pensamento objetável sob
recalcamento por meio de um certo excesso de intensidade, mas, em vista disso, ele próprio fica
“amortecido” e invulnerável aos esforços conscientes do pensamento. Portanto, a maneira de
retirar o reforço do pensamento hiperintensificado consiste em tornar consciente seu oposto
recalcado (FREUD, 2006, p. 35).

Esse tomar consciência do objeto ou símbolo recalcado se dá pela verbalização, análise do psi-
quiatra e pela associação que o analista e o paciente fazem de todo o conjunto de símbolos durante as
sessões de terapia. Com isso a imagem do divã de Freud ganha espaço nesses processos, e o método
psicanalítico ganha mais espaço no tratamento de pacientes histéricos, deixando um tanto para trás a

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hipnose e o magnetismo. Podemos afirmar, com esse percurso, que a partir desse momento, no início
do século XX com os estudos de Freud, a psicanálise encontra muitas respostas para o fenômeno da
histeria que era objeto de curiosidade de pensadores e médicos desde a Antiguidade:

A psicanálise elimina os sintomas dos histéricos partindo da premissa de que tais sintomas são
um substituto - uma transcrição, por assim dizer - de uma série de processos, desejos e aspirações
investidos de afeto, aos quais, mediante um processo psíquico especial (o recalcamento), nega-se
a descarga através de uma atividade psíquica passível de consciência (FREUD, 2006, p. 101).

Com Freud os estudos sobre histeria avançam bastante, mesmo que ainda existam dúvidas em
relação a alguns conceitos. Os diagnósticos e tratamentos científicos se baseiam no divã: verbaliza-
ção, análise do terapeuta, vinculação entre símbolos, teorias e história do paciente, e busca do ponto
recalcado no inconsciente. Tal método será usado não por todos, mas por muitos terapeutas durante
o século XX, e os outros aos poucos começam a desaparecer.

A HISTERIA HOJE

A partir de meados do século XX, as discussões sobre a histeria começam a diminuir, e as con-
cepções mais antigas não são tão levadas em conta. O desenvolvimento cada vez maior da neurologia,
da psicologia e da psiquiatria colocam sob o aparato médico e psicanalítico o fenômeno da histeria
tanto em homens, como em mulheres. Porém alguns estigmas ainda permanecem na imagem da
mulher histérica. De forma geral, ainda se considera que a histeria ainda tem alguma ligação com a
abstenção sexual, ou com a sexualidade reprimida. O próprio Trillat mostra que a histeria ainda no
século XX é vista contendo ligações com a dimensão sexual do ser humano:

A histeria de conversão é o tipo de recalcamento com mais sucesso, visto que ele não se acompanha
de fenômenos psicológicos parasitas como nas fobias ou obsessões. [...] Quando o sintoma, expressão
do recalcamento não é mais tolerado, quando ele é combatido e reprimido, sempre em nome da
ciência, aliás, a pulsão recalcada se refugia em posições recuadas mais fáceis de defender, e o final
desse recolhimento, desse “enterramento” é a doença psicossomática (TRILLAT, 1991, p. 280).

As repressões de toda ordem gerada por estruturas rígidas da sociedade, foram vistas após as
Revoluções Culturais e Sexuais da década de 1960, como um dos fatores desencadeantes do fenômeno
da histeria. “A pulsão é recalcada pelo Eu e o produto desse recalcamento (o sintoma) é, por sua vez,
reprimido pela sociedade” (TRILLAT, 1991, p. 281). Na Idade Média e na Era Vitoriana na Europa,
as estruturas sociais e familiares mais rígidas, com bases cristãs mais conservadoras, contribuíram
para que o mal da histeria fosse propagado também numa dimensão cultural e social, para além da
dimensão psicológica descoberta com o advento da psicanálise. Trillat mostra que com a desconstru-
ção de algumas dessas estruturas, as pessoas, e especialmente as mulheres, se libertaram de muitas
predisposições culturais, sociais e religiosas que tornavam o fenômeno da histeria, que era mais
frequente em outras épocas, quase desaparecer:

Esse tipo de interpretação volta a sustentar que a histeria é o produto de uma repressão exerci-
da sobre a livre manifestação das emoções, das pulsões, dos instintos. A erosão das estruturas
autoritárias ou coercitivas, ao deixar o sujeito exprimir-se livremente, em particular no seu
comportamento sexual e especialmente para a mulher, tornava supérfluo o recurso às formas de
expressão substitutivas ou simbólicas (TRILLAT, 1991, p. 283).

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Mais recentemente, algumas pesquisas sobre o fenômeno da histeria mostram que os círculos
médicos evitam usar o termo histeria, substituindo-o por outros como transtornos dissociativos, trans-
tornos de personalidade, transtorno bipolar ou síndromes psicóticas, entre outros. Ou seja, o fenômeno
não desapareceu por completo, mas a nomenclatura científica substituiu o termo original por outro,
e busca novas abordagens para diagnóstico e tratamento:

Verifica-se em manuais de diagnósticos como o DSM IV e o CID-10, que o diagnóstico de histeria


foi rejeitado pela comunidade científica, dando lugar às novas classificações diagnósticas dos trans-
tornos dissociativos, transtornos de personalidade, transtorno bipolar ou síndromes psicóticas.
Essa constante mutação diagnóstica indica, ainda, um risco de abandono dos ensinamentos da
psiquiatria clássica, principalmente no que tange à etiologia da neurose histérica. Comprometidos
com essa lógica, os instrumentos terapêuticos, muitas vezes invasivos e ineficazes no tratamento
da histeria, visam à suspensão de alguns sintomas, tornando-se inaudível o dizer do sujeito sobre
seu adoecimento, sobre o sofrimento psíquico (BURSZTYN, 2008, p. 127).

O que essas pesquisas mais recentes mostram é que a histeria como era concebida antigamente
foi praticamente esquecida dos círculos médicos. Porém, novos transtornos são diagnosticados, com
mais ou menos os mesmos sintomas da histeria. Além de causas e tratamentos no nível psíquico,
busca-se também dar uma atenção para os fenômenos de somatização, ou seja, problemas no nível
psíquico que recaem em sintomas físicos:

O desaparecimento da histeria dos diversos manuais médicos vem a serviço de uma tentativa de
classificação mais quantificável das enfermidades, norteada pelo preenchimento ou não de critérios
clínicos, em busca de uma mensurabilidade que antes não se especulava para o caso específico dessa
condição. Se, para outras patologias isso representou um avanço, não nos parece que o mesmo
tenha ocorrido em relação à histeria. Essa é uma entidade que segue parâmetros próprios, muito
diversos dos buscados por uma ciência que prima, cada vez mais, por evidências demonstráveis
e replicáveis. As evidências encontradas para a histeria, aliás, muitas vezes são evidências de
camuflagem em outros diagnósticos – esses sim, quantificáveis (ÁVILA; TERRA, 2010, p. 339).

Em todos os casos, a histeria sendo chamada assim, ou com qualquer outro termo que venha
substituí-la, continua possuindo alguns enigmas, onde o cruzamento de saberes médicos, científicos e
estigmas sociais e culturais, não permitem ainda uma total clareza sobre esse fenômeno. Sim, é claro
que nesse percurso histórico muitas concepções evoluíram, mas alguns métodos e abordagens ainda
não são totalmente claras.

CONCLUSÃO

Mas o que nossa breve história da histeria pode concluir? Podemos apresentar que o fenômeno da
histeria teve algumas diferentes abordagens na história da humanidade, à medida em que diferentes con-
cepções culturais, sociais, filosóficas e científicas foram se estabelecendo nos círculos médicos e familiares.
Como apresentamos, a histeria permaneceu desde a Antiguidade até o início da Modernidade
com muitos estereótipos, sendo confundida e/ou denominada em algumas épocas como furor uterinus,
ninfomania, melancolia, epilepsia, loucura, ocasionando a construção de estereótipos na imagem da
mulher acometida por tal fenômeno. A partir do século XIX a histeria se aproxima e também se dis-
tingue da loucura e de outras psicoses, havendo uma psiquiatrização da mulher histérica, no mesmo
movimento do Grande Confinamento dos loucos, que Foucault explora em sua História da Loucura na

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Idade Clássica. Na virada do século XIX para o XX, a histeria é relegada a uma análise cientificista e psi-
canalítica, permitindo o surgimento de abordagens mais claras e distintas dentro dos estudos de psicoses
e neuroses mentais. Freud e seus colegas foram os baluartes dessa abordagem, que através da psicanálise,
revolucionou o diagnóstico e tratamento da histeria. A partir de meados do século XX o termo histeria
começa a ser retirado dos manuais de diagnósticos médicos, e tal fenômeno recebe outras denominações,
percebendo-se o amortecimento de tal fenômeno, mas não seu desaparecimento por completo.
De fato, podemos afirmar com um olhar crítico, que o saber sobre a histeria foi nas diversas
épocas um construto cultural, moral, social, religioso e científico. Isto se demonstra em nossa pesquisa
pela gama de concepções distintas que houveram durante os diversos tempos históricos no Ocidente,
e em vários ambientes da sociedade. Uma resposta única não é possível se quiséssemos definir o que
é ou o que foi a histeria na história. Ressalto que recentemente tal termo foi retirado dos manuais de
medicina e psiquiatria, sendo substituído por outros. Porém os tratamentos continuam existindo,
baseados hoje em terapias e uso de psicotrópicos. Com tudo isso, é possível ainda observar que os
estereótipos da mulher histérica não desapareceram da sociedade, sendo esta confundida vez ou
outras com a mulher nervosa ou com apetite sexual exagerado. Grupos e momentos sociais também
são vistos como histerias coletivas, impulsionados por movimentos de manada, conflitos ideológicos e
sociais. A histeria existe ainda hoje? Podemos crer que sim, mesmo com outros nomes ou abordagens.
E assim também, fazemos essa indagação ao leitor.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Lazslo Antonio; TERRA, Joao Ricardo. Histeria e somatização: o que mudou? Jornal
Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 59, n. 4, p. 333-340, 2010.
BIENVILLE, D. T. A Ninfomania. Tradução: Lúcia Leiria. Porto Alegre: L&PM, 1999.
BURSZTYN, Daniela Costa. O tratamento da histeria nas instituições psiquiátricas: um desafio
para a psicanálise. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 126-135, abr. 2008.
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. Tradução: José Teixeira Coelho Netto.
São Paulo: Perspectiva, 1972.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque
e J. A. Guilhon Albuquerque.12. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1997.
FREUD, Sigmund. Uma neurose demoníaca do século XVII e outros trabalhos. Rio de Janeiro:
Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria (1893 – 1895). Rio de Janeiro: Iago, 1996.
FREUD, Sigmund. Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901 –
1905). Rio de Janeiro: Imago, 2006.
TRILLAT, Etienne. História da histeria. Tradução: Patrícia Porchat. São Paulo: Escuta, 1991.

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