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HD - SCHIPANI, S. Reler Os Códigos de Justiniano
HD - SCHIPANI, S. Reler Os Códigos de Justiniano
Sandro Schipani
Tradução de Dalva carmen Tonato
4.3 | A coroação de Carlos Magno como Imperador em Roma, no Natal do ano 800, por
obra do pontífice Leão III, tinha posto em movimento uma dinâmica unificadora daquele
aglomerado de povos e instituições que haviam se concentrado sob o poder do soberano
franco, o que abria a reflexão sobre a perspectiva da lex communis e, portanto, da lex
Romana. Concluída tal experiência em 843, no ano 962, óton I “o Grande” , Rei da
Alemanha, era novamente coroado Imperador em Roma. A problemá- tica da renovatio e
da translatio Imperii dos Grecis in Germanos e das relações entre Império e Igreja, que
sucessivamente emerge e reveste aspectos fundamentais da organização política
medieval, é parte dos acontecimentos desta fase do sistema jurídico romanístico, o qual,
deste encontro, retira significativo alimento e, segundo uma específica perspectiva, retira
92 [sumário] fundamento para o uso do direito romano codificado por Justiniano e pelos
seus juristas (ratione imperii). Também sob esta perspectiva deve-se, todavia, ressaltar
que o sistema jurídico romanístico não se molda em um único sistema comum com a
integralidade das instituições jurídico-medievais, restando, antes, em concorrência com
muitas destas, como, por exemplo, o feudo; e a inclusão dos libri feudorum entre os libri
legales não elimina esta contraposição.
4.5 | Também o direito da Igreja desenvolve, graças à influência que recebe dos Códigos
de Justiniano, o seu completo amadurecimento como um direito comum, sem
contradições e, ao mesmo tempo, a sua posição paralela aqueles. Vivendo a grande parte
dos cristãos dos séculos das origens segundo o direito romano, este havia penetrado na
vida da Igreja, que passou a assumir termos, técnicas e instituições por ela
transformados, algumas vezes, de modo profundo (pense-se, por exemplo, na questão da
aequitas), com reflexos também no âmbito da elaboração eclesiológica e teológica
(pense-se, por exemplo, no corpus, nas res communes etc.). Se em época antiga as
compilações dos textos deste direito limitaram-se aos atos legislativos (cânones
conciliares, decretais etc.), o objetivo da harmonização dos textos – posto ao centro da
Concordia discordantium canonum, dito Decreto de Graciano (por volta de 1140) –
manifesta a penetração profunda de um método que se concretiza seja na construção dos
casos escolásticos, seja nos dicta Gratiani ou nas ligações que instaura também com os
textos do direito romano, assentando as bases teóricas para uma elaboração sistemática
que torna própria e independente. Isso se estabiliza na formação dos juristas in utroque
iure e no Corpus Iuris Canonici, que constitui a referência em torno ao qual se organizam
os textos posteriores até o Codex iuris canonici de 1917. Algumas das Universidades
distinguem-se exatamente pelos estudos de direito canônico, como é o caso de Oxford e
Cambridge, fundadas no início do século XIII; em Paris – fundada por volta de 1200 –, o
ensino do direito romano foi proibido a partir de 1229, permanecendo a Faculdade de
direito canônico.
4.7 | Uma ulterior contribuição, mais indireta, ao uso da obra justinianeia chega com o
humanismo jurídico, que se desenvolve na Itália do norte e na França a partir das
pessoas e obras de A. Alciatus (1492-1550), Budeus/Budé (1467-1540), U. zasius (1461-
1535), recebendo o nome de mos Gallicus. Vão recordados J. Cuiacius/Cujas (1522-
1590), D. Godofredo (1549-1622), A. Fabro (1557-1624), F. Hotman (1524-1570), H.
Donellus (1527-1591). Diversamente do que acontecia na Idade Média, a postura relativa
à antiguidade que amadurece com o Humanismo restringe a sua avaliação positiva ao
período que vai do século I a.C. ao século III d.C., cujo epicentro é constituído pela época
de César e Cícero, Virgílio, Augusto, Trajano e Adriano. A tensão em direção à busca do
direito dos juristas clássicos para além das alterações introduzidas por Triboniano, que
são concebidas como verdadeiros “delitos” contra o pensamento e a obra dos grandes
juristas cujos escritos foram utilizados nos Digestos, faz preferir às vezes, ao pressuposto
da unidade e coerência do texto justinianeu, a admissão de possíveis contradições
conexas com a história e o remanejamento dos textos e faz individuar as interpolações. A
ênfase ciceroniana sobre o ius civile in artem redigere, traduzida também em uma obra
que não chegou até nós, mas presente no texto De Oratore, 1,42,187 e s., concorre ainda
a motivar uma profunda rejeição com relação à ordem expositiva do Código de Justiniano
e dos Digestos e a apreciar aquela das Instituições, radicada na obra de Gaio e centrada
sobre algumas poucas categorias sistemáticas gerais (D. 1,5,1: personae, res, actiones),
que evidenciando na sua sequência o primado do direito das pessoas estão em
consonância com a visão geral de mundo então sustentada; esta induz a tentar construir
uma nova e mais racional ordem de exposição da matéria. Nessa reorganização
sistemática dos conteúdos, assim como com a aceitação das possíveis contradições entre
os textos e dos remanejamentos, abrem-se novos espaços e o reconhecimento de uma
maior riqueza e variedade de perspectivas provenientes dos próprios juristas antigos. Isso
renova ulteriormente as interpretações, sempre partindo, porém, daqueles textos
codificados por Justiniano, aos quais se retorna para criticar certas leituras e propor
outras novas que também se inserem, de modo vital, no posterior trabalho dos juristas,
entrelaçando-se com os resultados do trabalho dos juristas do mos Italicus e
acrescentando-os. O maior interesse pelo discurso sistemático encontra-se, em seguida,
com os desenvolvimentos do racionalismo.
4.8 | A idade das grandes revoluções e das codificações do sistema jurídico romanístico
começa com as grandes descobertas geográficas: da descoberta daquele que foi
chamado o “Novo Mundo” à circunavegação de todo o globo. Realiza, portanto, a
superação do universalismo fechado da Idade Média, chegando a conceber o Império
como algo em que “o sol jamais se põe”. Completa, também, a superação da estrutura
feudal da sociedade e da conexa contraposição entre as suas instituições e as do direito
romano do Império, ratio scripta para uma iuris dictio que renovou o seu próprio
universalismo estrutural, culminando com as revoluções políticas e sociais – da Francesa
àquela da independência latino-americana, à de Outubro, e a da República Popular
Chinesa –, assim como com o processo de codificação e constitucionalização em que se
desenvolve o confluir das duas grandes fontes de direito do sistema: a ciência jurídica e a
lei. Este longo processo ainda está em curso (Cuba, que havia recebido o Código
espanhol de 1889, em 1987, criou um próprio; a Federação Russa aprovou um novo
Código Civil entre 1994-1995 e o Brasil em 2002; a China o está elaborando,1 ou seja,
ainda estão em curso de elaboração projetos de códigos que possam responder às
exigências de unificação supranacional do direito).
4.8.1 | No início desta época, a Segunda Escolástica espanhola enfrenta a nova realidade
das “Índias” desenvolvendo a parte do sistema codificado de Justiniano que é a mais
direta expressão da ratio, ou seja, o direito das gentes e o direito natural; realiza isso
acentuando a utilização dos resultados da reflexão filosófica, de matriz aristotélico-
tomista. Tal desenvolvimento, sustentado pelo direito canônico (bula papal Sublimis Deus,
de 1537), traduz-se na vedação de reduzir à escravidão os homens que são, em tal Novo
Mundo, os donos das suas coisas (R.P., Madri, 2 de agosto de 1530 e cap. 20-25 das
Leyes nuevas de Indias, de 1542), o que não consegue impedir, todavia, nem muitos
abusos graves nem tampouco o transporte, para ali, de escravos trazidos do Velho
Mundo, mas que apesar disso estabelece as bases para uma sociedade que em breve
renova a consciência no nexo entre res publica – independência – eliminação da
escravidão (unidade da libertas em oposição ao regnum, à dominatio, à servitus). A tal
desenvolvimento se fazem acompanhar as disposições (1530 e 1555) de Carlos V sobre o
respeito dos “costumes e as formas de viver dos indígenas” (Recompilación de Indias
2,1,4; 5,2,22) – forte expressão da perspectiva do Império atento à pluralidade dos povos
e ao valor do costume (recordei já a atenção deste soberano aos costumes com relação à
Bélgica) –, além da elaboração da doutrina das “duas repúblicas”, uma dos indígenas e
outra dos espanhóis (Instrucción a Canete, de 1556). Ulteriormente, a ideia de “Quinto
Império” do jesuíta português Padre Antônio Vieira (1608-1697), entre direito e profecia,
abre caminho à ideia da “Roma Americana” avançada por José da Silva Lisboa no
momento da independência e conectada com a formação dos juristas, a ser radicada, já
então, no Brasil. A presença do sistema de direito romano codificado é alimentada, a
seguir, pelas migrações – principalmente de espanhóis e portugueses – por meio das
quais se realiza uma “transfusão” deste e da já mencionada tradição ibérica, castelhana e
lusitana, nos séculos XVI-XVIII. Transferem-se as Siete Partidas, fundam-se as
Universidades (San Marcos, de Lima e a do México, em 1551), os navios espanhóis
transportam às Índias bibliotecas inteiras de direito romano comum e de direito régio,
derivantes da obra de Justiniano e de seus juristas, assim como obras fundamentais
foram também impressas na América. Desenvolveu-se a ciência jurídica local do barroco
americano, herdeira de uma precoce superação das instituições feudais, acompanhada
por uma forte intervenção de um legislador longínquo, cujas disposições não sempre
podem ser “cumpridas” e que o jurista deve saber avaliar (recurso de suplicación; la ley se
obedece, pero no se cumple) e de um exercício da jurisdição com vértices centralizantes
e unificadores. Esta ciência – refiro-me a juristas como Hevia Bolanos (1570-1623), J. de
Solorzano Pereira (1575-1655), até F. J. de Gamboa (1717-1794); a estes, de certo modo,
poderiam ser emparelhados os tratadistas e “decisionistas” portugueses, cujos escritos
projetavam-se sobre o território brasileiro, a começar por A. Valasco (1526-1593), F. de
Caldas Pereira de Castro (1543-1597), A. da Gama Pereira (1520-1595) – valeu-se do
método e das soluções dos romanos para guiar a convivência daquela nova realidade de
povos em imensos e inimagináveis espaços, os quais, pela primeira vez, são vividos e
concebidos de modo articulado, porém unificado pelo direito romano; naquela América
que, após a independência e diante do risco de perder a própria consistência, com um
desenho de unificação e defensivo decidiu-se chamar “Latina”.
4.8.2 | A racionalidade intrínseca à postura dos juristas romanos, plasmada nos Digestos
e nos textos das fontes antigas, constituiu uma via para enfrentar a crise gerada pela
Reforma e pelas guerras a ela conexas no centro da Europa. Nas obras produzidas, o
sistema que vem sendo edificado – deduzido de princípios filosóficos – intersecciona-se
com o sistema de conceitos e institutos do Corpus Iuris; mas os novos princípios
filosóficos assumidos, que gravitam em torno do desenvolvimento do individualismo,
oferecem os instrumentos para uma unilateralidade de perspectivas e de releituras do
direito romano que o transforma notavelmente; estes promovem um programa de
transformações da sociedade que desemboca no iluminismo jurídico e na Escola do
Direito Natural. No quadro da filosofia da época, Leibniz (1646-1716) ressalta “além dos
escritos de geometria não há nada que se possa comparar à sutileza dos escritos dos
juristas romanos”, nos quais encontramos “certíssimas e quase que matemáticas
demonstrações”. O uso moderno das Pandectas nutre-se também de métodos e
resultados deste discurso jusnaturalista que, precisamente, conecta-se com o seu
trabalho na atualização do direito. Se pensarmos em H. Grócio (1583-1645), ou em Les
lois civiles dans leur ordre naturel de J. Domat (1625-1696), ou nas Institutiones iuris
naturae et gentium de Christian Wolff (1679-1754), vemos uma extraordinária riqueza de
linhas que vão sendo desenvolvidas e, reciprocamente, influenciando-se. Dessa situação
resulta indireta, mas ulteriormente reforçado, o tipo de trabalho centrado sobre as
Institutiones, que já vinha sendo valorizado desde os humanistas mais do que não o fora
em época antiga. Os “institucionalistas”, ou seja, os autores daqueles “princípios e
elementos” do direito que são as obras institucionais, por um lado, enriquecem as suas
obras com conteúdos buscados em outras partes do Corpus Iuris – conteúdos separados
da discussão dos exemplos e dos problemas, no exame dos quais as soluções eram
amadurecidas; conteúdos simplificados e expostos de forma prevalentemente axiomática,
segundo a ordem expositiva sistemático-institucional, que, por assim dizer, tende a
irradiar-se sobre a totalidade do direito – e, por outro lado, oferecem a sua ordem e o seu
aparato conceitual seja às obras de direito natural, seja à redação do direito
consuetudinário ou, em todo o caso, das diversas legislações locais, que assim adquirem
consistência. Às obras de Institutiones iuris Romani emparelham-se obras de Institutiones
iuris naturae et gentium, às vezes do mesmo autor (famosíssimo J.G. Heineccius, [1681-
1741]), obras de comparação (Institutiones iuris Romano-Neapolitani etc.) e obras de
direito consuetudinário ou civil (Institutes coutumières; Institutiones Juris Regni
Neapolitani; Instituciones de derecho Real de Castilla y de Indias etc.). O ALR prussiano
de 1794 representa a expressão mais significativa de uma das linhas que vinham
emergindo: ele é fruto da Escola do direito natural, da programaticidade nesta incluída e
também da ligação que esta instaura com o absolutismo paternalista daquele estado
territorial moderno, que assume o objetivo do mais completo controle sobre a produção do
direito, assim como do próprio texto de direito produzido (considere-se a redação por obra
do legislador dos princípios gerais do direito, que devem estar contidos no próprio código,
par. 49, e a obrigação de recorrer ao legislador diante do casus dubius, para que este o
esclareça, cf. par. 46-48). Paralelamente, mas em outra direção, em Portugal, a Lei da
Boa Razão (1769) e a reforma pombalina dos Estatutos da Universidade de Coimbra
(1772) concentram-se no jurista, em sua formação e na bagagem comum e aberta
constituída pelo “Uso Moderno das mesmas leis romanas entre as Nações que hoje
habitam a Europa”.
4.8.3 | O Code Napoléon (1804) é o código da Revolução que cancelou os resíduos das
instituições feudais (podemos considerar este código como o vértice do complexo de
códigos que inclui os códigos de comércio, penal, de processo e a própria codificação
constitucional. Nos acenos que seguem, ater-me-ei às referências ao Código Civil,
assumindo-o como emblema do processo de codificação). Creio que a leitura do título D.
50,17 das Pandectae Justinianeae, in
novum ordinem digestae, de R.-J. Pothier (1699-1772), ofereça uma indicação
fundamental para a compreensão imediata do papel dos Códigos de Justiniano na
preparação dos códigos modernos e, especificamente, do Code Napoléon. No citado
título, de fato, encontramos expostas por Pothier mais de 2.000 regulae, um número muito
superior ao daquelas ali colocadas pelos juristas de Justiniano; e isso foi feito extraindo-as
de outros fragmentos presentes nos demais títulos da obra, separando-as dos respectivos
contextos, generalizando-as e colocando-as de acordo com uma ordem sistemática
derivante daquela das Instituições, com um isolamento do enunciado normativo da
totalidade do discurso no contexto originário que se põe sobre uma das linhas dos
desenvolvimentos metodológicos referidos e, ao mesmo tempo, indica-nos a via que leva
ao Code. Certo, não pode ser esquecida a variedade de outros percursos e contribuições
que precedem, colocam-se ao lado e dão sequência a estas páginas de Pothier, com
relação às quais, além da costumeira menção aos frutos do iluminismo jurídico, queria
sublinhar aquela dos “institucionalistas”, recém-indicados e, sobretudo, queria indicar a
corrente profunda, constituída pelo uso quotidiano e direto dos textos romanos, que parte
do mos Italicus e se enriquece ecleticamente das outras sucessivas contribuições já
recordadas e que, com estas páginas, é solidária e as torna inteligíveis. As páginas deste
título restam, todavia, emblemáticas. Semelhantemente emblemáticas são páginas como
aquelas de O. Taglioni (Codice civile di Napoleone il Grande con confronto delle leggi
romane [...] ad uso delle Università e dei Licei del Regno d’Italia, 3 v., Milão, 1809-1811).
Estas, com as extensas notas de comentário a cada título do Código (1806) – que o
conectam com as fontes romanas e respectivas discussões sobre as estas, das quais
resultou –, constituem um testemunho imediato, ainda que parcial, do papel que tais
fontes conservam após a aprovação do código e de como este é visto em solidariedade
com o sistema e deste assuma significado. A esta “solidariedade” se refaz, aliás, a
acolhida do Code Napoléon em tantos países fora da França e a recuperação deste por
parte dos próprios soberanos da restauração (na Itália, de Nápoles a Módena e a Turim).
Tal solidariedade envolve também o ABGB, de 1811, do qual, todavia, não se deve deixar
de sublinhar as peculiaridades, ainda que as tabelas comparativas de Saint-Joseph – ao
colocarem lado a lado os artigos dos diversos códigos da época – tendam a evidenciar
indiretamente a consciência do sistema comum. As notas das Concordancias, motivos y
comentários del Código Civil Español, do projeto de F. García Goyena (1852), mostram,
com o mesmo imediatismo daquelas ao Código Napoleão, já referidas, de um lado o
enriquecer-se do complexo de textos dentro dos quais vem se inserindo a elaboração dos
sucessivos códigos e, de outro lado, o permanente papel dos códigos de Justiniano e a
comunhão dos conceitos, princípios e institutos que se vai recodificando, sem fragmentar
o sistema.