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O MEIO AMBIENTE URBANO E 0 DISCURSO ECOLOGICO* 1. INTRODUCAO Scré que se pode afirmar que, hoje, o mundo toma conscincia de si através da questio ecoldgica en- quanto alerta a destruigao da natureza? Fezsc, inicialmente necessério, refletir sobre 0 contetido do discurso ecolégico © seu cunho ideol6gico que produz uma representacio das coisas ¢ das rela- Ges humanas, Em primeiro lugar, pode-se afirmar que © discurso ecol6gico naturaliza os fenémenos socials. A partir da apologia da natureza vem colocando a huma- nidade em segundo plano de modo que o virtual, as possibilidades dc transformagio da sociedade passe cstar fora do homem e do humano, No caso do meio ambiente urbano, o discurso ecolbgico afasta-se da questéo central posta pelo desem- volvimento da sociedade urbana ~ a crise urbana — in- ventando o anti-urbano, criando a cidade desumana. Com isso perde-se 0 sentido da obra do homem. © problema que esta posto € que o caminho se- guido para a andlise do meio ambiente urbano tem des- prezado 0 espaco urbano enquanto produto do trabalho social do homem. Este perde a dimensio do produzido pela sociedade e para a sociedade enquanto manifesta- gio da vida ¢ de um modo de apropriacao. O espago ur- bano tem assim, uma existéncia concreta © real enquanto materializacdo do trabalho social, no entanto, aparece apenas em sua dimensfo natural, enquanto na- tureza, que na verdade 6 o fundamento inicial a partir do qual o urbano se produz. Esse aspecto 6 importante na medida em que, abstraindo-se a dimensio da produ- do humana, toma-se a natureza como um lado absoluto eliminande-se 0 proceso de constituicéo da propria humanidade do homem. ‘Ao longo do processo civilizat6rio, 0 homem se produz eaquanto ser humano e social a partir de uma dupla relagéo: com a natureza de um lado, com 0s ho- mens de outro. Deste modo, o meio ambiente urbano ‘Ana Fant Alessadre Carlos”* deve ser analisado enquanto produto da histéria do ho- ‘mem n0 scu proceso de constituicao, transformando, suplantando ou mesmo acusando danos ircepardvels & natureza. Outro aspecto fundamental 6 que no limite néo podemos dizer que hé hoje uma primeira natureza, pois mesmo nos mais remotos confins do planeta, este esté sempre posto como virtualidade, como uso possivel para a vida e para a expanséo da sociedade em seus mais diferentes aspectos. Portanto, 0 espaco tem um sentido de finalidade: aquele da produgdo da vida hu- mana, Mas como a natureza transformada, por vezes ameaada tem uma existéncia real, seja enquanto forga- de-trabalho, ou consumida produtiva ou improdutiva- mente, ela se configura enquanto uma das dimensdes do espago urbano. Este nfo pode ser entendido nem analisado como receptéculo passiva da intervengio hu- mana ou do planejamento urbano visando o creseimen- toharmonioso e equilibrado. Cotidianamente, ao abrirmos os jornais ou ligar- ‘mos a TY, nos vimos em contato com temas ligados & depredagio/ conservagao da natureza. No discurso eco- Iogico o homem aparece, sistematicamente, como 0 destruidor. "Na vida real a natureza foi ao longo dos tempos impiedosamente castigada pelos homens. Estu- prada, Humilhada, Desprezada™ para citarmos um ‘exemplo. As bandeiras do movimento ecolégico — nada sais em moda — desfraldam-se em pr6 de uma necessi dade urgente: preservar a natureza. Os cmpresérios co- megam a incorporar a idéia de um *descnvolvimento sustentado" como uma necessidade imperiosa. (1) Trabatho apresentado 20 3 Bacontro Nacional de Estudos sobre o Meio Ambiente, Londrina~ 1981. (¢*) Professor Aasistente Doutor do Departamento de Geo- rain da Faculdade de Filosofia Letras ¢ Ciéacias Humenas de Uni= ‘eridade de So Paulo. (1) "A Natureza €0 Negécio da Década’ in: Reviets Brame, 104e julio de 1991+ Sio Paulo, 6 ‘Todavia, coloca-se de um lado como fundamental, ‘uma reflexéo critica © aprofundada sobre o contetido ideolégico desse discurso; por outro lado, eabe refletir sobre a natureza do conceito de meio ambiente. ( debate tem-nos remetido a secular relagio ho- mem-natureza, s6 que essa relacdo, tomnou-se a0 longo do processo civlizat6rio, extremamente complexa n0 sentido que tem caminhado para a abstragdo. Por outro lado, nio se trata de um homem, ou de agrupamentos fhumanos, mas de uma sociedade cada vez mais diferea- Giada e desigual, Nao se trata também de uma natureza cexclusivamente natural, da natureza primeira, © uso ppossfvel coloca-se cada vez mais a dimensio da socieda- de humana na perspectiva do produzido socialmente, Na realidade, 0 discurso ecolégico tem neutraliza- do o espago ¢ com isso negada sua existéncia, Na outra vertente, produz-se a idéia exteriotipada do homem: aqucla de destruidor-depedrador. Com isso nega-se 0 mundo como produto social, hist6rico e o homens com sujeite consciente da obra. Negando-se a obra humana, nega-se 0 proprio homem enquanto ser que se constr6i hist6ricamente a partir de sua rolagéo com a natureza. Em contrapartida cria-se a apologia da natureza e do natural. A relagio homem-natureza, na perspectiva hist6- rica, coloca-nos diante de um duplo processo: a natura- izagio do homem/humanizacio da natureza. Artificialmente ponsa-se hoje que a separago homem- natureza é um fato indiscutivel. O que néo passa de ‘uma simplificagéo: E bem verdade que a sociedade su- pre suas necessidades a partir de produtos cada vez ‘mais industrializados — objetos humanos, nao mais ime- diatamente naturais, pois a natureza deixa de estar dire- ‘tamente no cotidiano do homem. Mas, apesar desses bens terem contornos, formas e nomes diferenciados, estes néo permaneceriam objetos da natureza? Como climinar a natureza de uma ato banal de nosso cot no que € 0 de ligar o interruptor de luz, abrir a torneira ou 0 chuveiro? Por outro lado, a natureza biolégica do homem, transformado, aparece sem cessar no contetdo de vida humana, Escamoteia-se 0 fato de que a realida- de bumana tem um duplo aspecto: tudo € adquirido, produzido pelo trabalho social, mas por ourto lado, ‘tudo vem da natureza. preciso considerar que "a natureza s6 existe para o homem na medida em que esse homem se reco- thece como ser histérico em conseqiéncia de uma rcla- (fo te6rica ¢ pratica com o universo imediato ¢ sensivel 1) 0 ser histérico tende a se sobrepor ao homer como ser natural quando a suas relagdes imediatamente natu- rais como a apropriagéo da agua, do ar, da terra, so mediatizadas por relagdes sociais. RelagSes que se tor- nam cada vez mais complexas ao longo do processo que constr6i 0 préprio Homem, e que constréi ¢ recoastréi (0 mundo material como extenso de si mesmo, como ampliagéo da sua propria natureza orginica. A relagao homem-natureza tende pois historicamente para a abs- tracto. 2. ASPECTOS IDEOLOGICOS Enquanto produto ¢ condicdo da reproducio da vida humana 0 espago tornouse 0 lugar principal das Iutas © agdes usando objetives diferenciados. O espago nio é neutro. Pode-se depreender uma estratégia ho- mogeneizante (apesar da multiplicidade das inter-rela- ‘gées) na perspectiva da histéria da produgio do espago umano que nfo ocorren sem lutas € guerras sangren- tas. Pensa-se 0 espago no nivel mundial tanto do pon- to de vista do mercado mundial (de capital, mio-de- obra e produtos) como das técnicas ¢ da ciéncia, A. preocupacéo ceolégica coloca-se dentro dessa perspec- fiva, Quando aponta a poluicao, o virtual esgotamento dos recursos, a destruigao da natureza pensa 0 planeta como tum todo. ‘Mas parece ingénuo afirmar que o homem é 0 de- predador. Essa idéia apaga as referencias historicas ¢ 8s desigualdades que esto no interior do processo de constituicio do espaco. "Um grupo, sua classe ou frago de classe s6 se constituem c se reconhecem enquanto sujeitos engendrando (produzindo) seu espago. As idéias, representages, valores que néo conseguem se inscrever no espago engendrando-o, (produzindo) uma morfologia apropriada, dissecam-se em signos resolven- (@) Odette Carvalho de Lima Seabra ~Os Meandros dos Rios nos Meandros do Poder ~ 0 processo de valrizaclo dos ros ¢ das Wirveas. Tose de Dovtorameato. Departamento de Geografia ~ FELCH - USP, Sto Paulo, 1987 do-se em narrativa abstrata, transformando-se em fan- tasmas’, O diseurso ecolbgico tem substituide o espaco coacreto da pratica social do vivido, aquele do habitar xno sentido amplo (percurses, encontros, gestos, simbo- los, signos, conflitos) pelo espago abstrato ~enfocando- se apenas 0 quadro morfol6gico ¢ social segundo os interesses em jogo. Passa-st do vivido ao abstrato para projetar essa abstracdo no nivel do vivido, Nesse senti- do, a natureza vira signo, ¢ torna-se estratégica e politi- ca, Basta vermos atentamente a atitude de uma parte significativa dos empresdrios brasileiros para sabermos que 0 que move scu comportamento no que se refere & preservagio da natureza, é a realizagio do processo de valorizagao do capital "Um projeto suspeito de ferir a natureza dificilmente consegue levantar 10 ou 20 déla- res em financiamentos industrais’ afirma o presidente do Conselho de Administragao da Vale do Rio Doce*. Para o superintendente da Riocell®, "a ecologia entrou na drea comercial’. O presidente da Belgo Mineira vai mais longe a0 afirmar que a movimentagio dos grupos de pressio no exterior podem atrapalhar as exportagées Inasileiras "Os partidos verdes estfo ganhando mais € mais cadeiras nos parlamentos, ¢ nio vai demorar para ‘que comecem a voltar-se contra nbs', diz ele, "Por isso, ‘mais vale investir que ter a imagem estragada, pois 0 ‘custo para recuperé-la seré mais alto”, Portanto, a "consciéncia ecoldgica do empres do brasileiro” esta sendo gerada de fora para dentro © visa 0 processo de reprodugdo do capital baseado nos ramos de desenvolvimento imposto pelo BIRD defen- dendo e ampliando a ordem econdmica liberal, facili- tando os investimentos estrangeiros. ‘Mas a ecologia abre um outro filfo de luero: os srandes projetos ecoldgicos com a "Disneylandia Ecol6- ica" a Aquépolis promovida por 38 empresas lideradas pela Mitsubishi em Manaus ou ainda as "vilas verdes" que a rede Club Mediterranée pretende instalar na Amazdnia c Pantanal, Na realidade 0 discurso ecol6gico tenta criar a identidade entre paises reduzindofeliminando as dife- rengas entre povos/lugares, criando uma nova nacionali- dade, n Para Castells’, a ideologia do meio ambiente pode ser considerada como a versio mais acabada ¢ mais pla- netéria das ideologias do urbano na medida em que en- globa todas as situagdes sociais e todos os meios para tratié-los segundo os termos de uma $6 dicotomia (Ho- mem-Natureza) que se concebe em termos estritamente biol6gicas ¢ fisicas. Para o autor, a aparéncia politica, hhumanitéria e universal do meio ambiente culmina proceso de naturalizagio das contradi¢bes socials (Grifo meu), tese bésica da cultura urbana. Castells relaciona a ideologia do meio ambiente com a do urbano na medida em que a urbanizagao, con- sequéncia do progresso técnico, é interpretada como artificial, anti-natural e, por conseguinte, 0 que esté na base dos desequillbrios socias, sio em grande parte, ex- pressics de descquilibrios biolézicos. ‘Na realidade, essa ‘volta 4 natureza" abre grandes perspectivas imobiliérias de um lado e de outro permite a venda macica de produtos anti-poluentes. © discurso ecolbgico apresenta uma concep¢ao idealizada da natureza contraposta & cidade ¢ inventan- do 0 anti-urbano, Isso vem a calhar. Como 0 processo de reprodugao do espago urbano, fundamentalmente nas metrépoles, tem quase climinado as dreas vazias € esgotado 0 processo de verticalizagéo, os empreende- ores imobilidrios vem cada vez mais sendo obrigados a limitarem suas aces as Areas periféricas & mancha ur- bana, com isso tem surgido o “subGrbio jardim’, os lo- teamentes de alto Iuxo, Como convencer uma parcela da populagio de alta renda a abandonar a metr6pole, aumentar seus custos € tempo de deslocamento, bem ‘como seus gastos para manutengio da residéncia? "Ven- dendo 0 Verde’. Criando a necessidade do consumo de espagos verdes, de uma vida saudave! longe da polui ¢ embolsando lucros fantésticos, pois as terras so ad- guiridss de agricultores ¢ proprietérios rurais por hec- tare, para em seguida, serem loteadas e vendidas por ) Heari Lefovre. La prodution de Nespece Editions Anthro- = pes, Pris, 1986, p47. (Revista Beams, idem, (5) Revista Exam, ibidem, (© Revista Exams, ivigem, (7 Manuel Castells, sociclogia de espacio industri Baitorial Ayuso, Mads 1975. cap. V. B Utilizam-se da "preocupagiio ecol6gica’, da ideo- logia anti-urbana como art 3. A SOCIEDADE URBANA A sociedade urbana coloca-nos diante da perpec- tiva do provesso de socializacéo da sociedade através da urbanizacio completa da sociedad. Para Lefbvre® a cra industrial destr6i o original, as particularidades ¢ os lugares substituindo a obra pelo produto, que por todos ‘0s meios tende para o homogéneo em dire¢io ao idénti- co ¢ andlogo. O urbanismo 6 um meio de racionalidade industrial (aquela da empresa como organizacio ¢ resti- tuigdo) para se prolongar e continuar dominando a pré- tica urbana como a indAstria dominow a natureza. A crise urbana 6 produto da atomizagéo da socie~ dade que se dissocia em individuos e fragmentos. A to- talidade parece fugir, 0 urbano se reproduz elimiaando © sentido do habitar ~ do cidadao inserido numa comu- nidade - eliminando-se os pontos da encontro/reencon- tro, 0 lidico, o lugar de festa. Os contatos se diluem. A. distancia entre lugar de moradia/trabalho aumenta os deslocamentos. Os congestionamentos aumentam enor- memente 0 tempo de deslocamento, cada vez mais a vida dos cidadios ¢ consumida pelo tempo de traba- Iha/tempo de transporte, As condigées de vida se deterioram. Mas néo por causa dinica da poluigao. Mas devido as relagies sociais inerentes ao processo de reproduco do espago urbano, que transforma a cidade cada vez mais em valor de tro- ca em detrimento do valor de uso. A cidade perde 0 sentido de obra e € vendida aos pedagos. © que esté posto € que as relagbes de produgéo capitalista degradam a natureza material ¢ a natureza humana. De um lado o habitar, o sentido da vida plena, © direito a cidade. De outro, a perda dos sentides do homem, como atributo humano, como elemento através do qual o homem se afirma no mundo objetivo A pova alianga do humano com a natureza, para Lefbyre®, nao se concretiza. O conflito se agrava 20 in vés de resolver-se. Na sociedade virtual o ser humano social deveria enfim gozar da natureza ¢ da sua propria natureza no seio da segunda natureza, incluindo a pri- meira No limite pode-se levantar questdes: a questio ecolbgica nfo seria um desvio no caminho de transfor- magao da sociedade que suporia a posse e gestdo coleti- v2 do espaco? Até que ponto o debate ecolégico tal como ocorre hoje nao se colocaria como uma necessi- dade histérica uma consequéncia do processo de aeu- sulagéo aberta pela terceira revolugio industrial? (8) Henry Lefbvre, Le manifest diferencias, p. 127128 Gatimard. Pais, 1970. (©) Henry Lefbre, Une pensde devenve monde. p. 184, Bd. Fax ‘ne. Paris, 1980,

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