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HISTORIA, TEXTOS E CONTEXTOS © 2015 Editora Unesp Anaiews, George Ret, Ema Vit da Costa and Franklin W wcks and Whites in Sao Paulo, Brasil, 1898-1996" Review, 1.29.2, 1992, p. 141-58, © 1992 : da Universidade de Wisconsin System. Publicado Universidade de Wisconsin Press Knight Consetho de Regente Com permissio dy Direitos de publicagio reservados a: Fundagio Editora da Unesp (FEU) Praga da Sé, 108 1001-900 — Sao Paulo - SP Tel.: (Oxxl) 3242-7171 Fax: (Oxx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br wwwlivrariaunesp.com.br feu@editora.unesp.br CIP-Brasil. Catalogacio na publicagao Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R) Cit Costa, Emilia Viotti da Brasil: hist6ria, textos e contextos / Emilia Viotti da Costa. - Led. ~ Sao Paulo: Editora Unesp, 2015. ISBN 978-85-393-0607-7 1. Brasil - Historiografia. I. Titulo. 15-25916 CDD: 981 CU: 94181) Editora afiliada: ICI ena Bel CONCEPCAO DO AMOR E IDEALIZACAO DA MULHER NO ROMANTISMO:* CONSIDERAGOES A PROPOSITO DE UMA OBRA DE MICHELET! Um dos setores da Hist6ria de mais dificil abordagem cientifica 0 da Histéria da Sensibilidade.? As dificuldades com que se de- fronta qualquer historiador, em face da documentagao, aparecem * Publicado originalmente em 1963 como separata da revista Alfa. 1 Estas notas nao pretendem sendo apresentar um documento curioso para o estudo da histéria do amor: o livro LAmour, de Jean Michelet. 2. Esse setor da Historia é em geral estudado como um capitulo da Histéria das Ideas: Histoire des mentaltés, como preferem os franceses, ou Geistgeschichte, dcengeschichte dos alemaes, ou ainda History of Ideas ou Intelectual History dos ingleses e americanos. Entre outros artigos a respeito, veja Duby, His- toire des mentalités. In: ’Histoite et ses Méthodes; Wiener, Some Problems and Methods in the History of kdeas, Journal ofthe History of Ideas; Lovejoy, Reflections on the History of ldeas, Jaumal ofthe History of Ideas; bem como humerovos artigos de Lucien Febvre publicados nos Annales. Economies sexittés civilisations, por exemplo Sorcellene, sottise ou révolution mentale, De I’ peu prés la précision; La mont dans histoire; 1d., Combats pour (Histoire, p.207-44. Ha muitos trabalhos de psicdlogos que abordam temas da Histéria da Mentalidade e que tém encontrado grande aceitacio por parte do pablico, por exemplo os de Ench Fromm ¢ Karen Homey. A clinteresse, essas obras em getal parecem sumpliicar lamente 0 quadra histénco, condicionando a andlse do real a Sormulas aprioristicas mats ou menos rigidas RASIL HISTORIA. TEXTOS & CONTEXT, newe campo muito aumentadas. Nem sempre € fe) interpre verdadeiro sentido das palavras, evitar a PHOJECAO de wpe, ta ¢ realsades presente no passado ou deixar de incorser aan ralizagiesaptessadas. A possbilidade dese cometer inure mente tansgressies dessas normas metool6gicas est van ameasar a cya de econstituigéo histéniea, pancipalmente se trata de analisar ideias, valores ou sentimentos de outras Seca Caractericar a maneira de pensar ou sentir de certo, gra sociais, mesmo de determinados individuos, nao é tarefa fees! mais dificil é interpreté-la. ° Para ranto nao faltam documentos. Hé documentos exer, como cartas, memérias, didtios, obras literérias, € hi mecn,, documentacio iconogrifica. A maior dificuldade reside em sn, utilizagao.|No caso da documentagio escrita, Por exemplo, o dificil € comhecer o sentido exato das palavras. Muitas vesc, elas conservaram, através dos tempos, a mesma forma, masse, sentido ja no é o mesnio; Descobrir o verdadeiro sentido de. palavras contidas em um texto é tarefa que se impoe a qualauce historiador, mas no campo da Historia das Ideias ou na Historia da Sensibilidade ela € uma das préprias razdes de ser da pesquisa, Outro problema que frequentemente interfere perturbando o trabalho de reconstituigao histérica € o perigo das generaliza. ges apressadas. Na impossibilidade de fazer um levantamento exaustivo (total) da realidade, para o que faltam documentos € 0 tempo € escasso, 0 historiador vé-se obrigado a generalizar certos fendmenos que observa. Nesse processo de generalizacéo reside uma das maiores provas a que se submete o trabalho do historiador. Pode-se afirmar que o valor de suas conclusses, a validade de sua obra, depende da validade de suas generalizacées. Mesmo que ele nao endosse as concepgdes mais ou menos socto- l6gicas dos que afirmam, como Marx, que o ser social do homem determina sua consciéncia, o historiador vé-se, frequentemente, compelido a atribuir a determinado grupo social idetas e habitos comuns, ¢ ao fazer isso nem sempre leva, ou pode levar em conta, certas peculiaridades existentes dentro do grupo. As vezes, se -se tentado a estender a toda uma categoria social, a uma epoca historica, a um povo, certos aspectos que conseguira registrat através da documentacio, inevitavelmente parcial e descontinua CONCERLAD DO AMOR EIDEALIZAGAO DA MULIER "i jatehemente, nao dispde o historiador de od vndique OS limites que ndo devem ser tr ‘he general um instrument ° set tr c " nde sensibulidade e absolutamente seguro que ty : ANSPOstOs EM seu Es cdo. Ora, € comum observar individuon ae see um mesmo ramo de atvidade profissional, por exemple, smas inclinagdes, sentimentos ou tendéncias, reesentando-se até contraditérios. O estudo do comportamento ‘Ihe wairios grupos que compdem uma determinada sociedade revelard, por sua vez, a coexisténcia de sentimentos diversos seeantagonices. Comparando-se as obras de Philippe Wolff sobre ae comerciantes e mercadores de Toulouse com as de Armando Sapori sobre mercador italiano na Idade Média, verifica-se jue as mercadores de Toulouse do século XIV nao partilhavam, em absoluto, dos sentimentos, gostos, curiosidades, ambigdes desejos de seus colegas de Florenca. Como, pois, falar na menta- lidade do mercador medieval sem ter em conta as diferengas que existem entre o mercador que na mesma época vive em Florenga, Portugal, Toulouse ou no Baltico? | Ao pretender reconstituir a maneira de pensar ou de sentir SL \ de uma certa época ou de uma certa coletividade, o historiador dispde de documentos escritos, obras literdrias, que nem sempre so testemunhos do verdadeiro estado de espirito dessa coleti- vidade. Ha obras que sao mais um protesto contra uma situagdo existente do que seu retrato. Sao, isso sim, formas de evasao da realidade. Tomar esse protesto pela propria realidade é confundi- Ja. Isso nao quer dizer que uma obra daquele tipo nao possa ser igualmente elucidativa de uma maneira de pensar ou sentir. O risco esté exatamente em tomar as nuvens por Juno. 4 Ha a considerar ainda que as obras mais famosas, as cha- YS madas grandes obras, nem sempre so as que melhor definem © pensamento ou a sensibilidade de um certo grupo social. As menos significativas, as de menor valor literério, podem melhor caracterizar as tendéncias gerais, assim como ter um maior campo de influéncia, uma penetracio maior junto ao piiblico. Outro embaraco que ocorre frequentemente na utilizago do documento deriva do uso de textos traduzidos. Nem sempre 0 estudioso pode ler 0 texto original. Recorre entao as tradugdes e fica 4 mercé delas. © pensamento original poderd estar completamente defor- ye no 1EM as MH que BRASIL, HISTORIA, TENTOS E CONTENTOS mado na tradugio, pelo emprego de termos moderos que trazem consigo um significado atual, muito distante das ideias primitiva Desse fato resultam graves ertos de interpretagao. E 0 caso, por exemplo, de um autor que pretendeu demonstrar que oito séculos antes de Darwin, Alberuni ja manifestava ideias evolucionis Ao que parece, utilizara para seu estudo um texto vertido para © inglés em 1887 - em uma época em que as ideias de Darwin estavam em plena voga. Possivelmente, o dito evolucionismo de Alberuni nada mais seria, na realidade, que o evolucionismo de seus tradutores!? Na caracterizagdo histérica de um sentimento ou uma ideia hi a considerar ainda a facilidade com que ideias de épocas passadas sao incorporadas, a cada instante, no presente, conservando-se intactas ou sendo reinterpretadas. Dai a dificuldade de se separar © que é tipico de um autor, ou de uma época, daquilo que ele foi buscar em leituras casuais, em autores de outros tempos que o impressionaram. No esforgo analitico e compreensivo que o historiador desenvolve ao caracterizar uma ideia ou tentar explicé-la esta comprometida, consciente ou inconscientemente, toda a sua posigao filoséfica, sobretudo a posicdo que assume em face de certas questes. Como ele encara o problema da identidade e diversidade da natureza humana através do tempo? (mutabili- dade ou permanéncia da natureza humana) Qual a importancia que atribui respectivamente aos fatores racionais e irracionais na explicacao da conduta individual e coletiva? Dé ele maior importancia ao carater individual e auténomo de uma ideia ou sentimento, ou preocupa-se em estabelecer a coincidéncia entre o sentimento individual e do grupo e mais amplamente o de uma época? Na explicagao de uma ideia ou sentimento da maior éniase as condicdes econdmico-sociais, subordinando aqueles a estas, ou procura explicé-los dentro de seu préprio contexto, isto é, acredita que as ideias encontram sua explicagao em sua propria historia, de maneira mais ou menos independente dos demais fatores?* 3 Wiener, Some Problems and Methods in the History of Ideas, Journal the History of Ideas. 4 Essas duas tendéncias podem ser facilmente observadas, por exemple. em certos trabalhos sobre Histéria da Arte. Comparando-se os livros CONCEDGAO DO AMOR L IDEALIZAGAO DA MULHER % A maneira pela qual ele responde a essas ques pesquisa ¢ condiciona, até certo ponto, seus resultados, Na Histéria das Ideias ou da Sensibilidade sucede o que tam- bem se observa na Historiografia em geral: uma obra de Histéria é frequentemente tio clucidativa sobre a época em que ela foi a, sobre seu autor, quanto o é sobre a época que pretende abordar. Na andlise que o historiador faz dos sentimentos ou ideias do passado, é provavel que revele tanto de si mesmo quanto do passado que estd estudando.* Essas consideragGes metodolégicas, mais ou menos abstra- tas, tornam-se mais compreensfveis na andlise de um problema conecreto, por exemplo no estudo da concepgao do amor e da idealizagio da mulher no Romantismo. ‘ Através das fontes literdrias é facil verificar que a maneira de amar, ou pelo menos de exteriorizar o amor, assim como a concep- ao que dele se faz, nao tém sido as mesmas através do tempo. Os numerosos estudos sobre o amor na época da cavalaria, o amor no século XVII, na época do “preciosismo” na Franga, por exemplo, demonstram essa variedade de manifestagao amorosa. A leitura dos autores do Romantismo — embora estejam eles muito mais proximos de nés do que os troubadours medievais ou os “preciosos” do Setecentismo— permite-nos também apreciar as diferencas de comportamento entre os personagens que vivem em suas obras e aqueles que povoam o romance e o teatro contemporaneo. Ficamos, muitas vezes, perplexos diante dos transbordamentos rominticos dos autores do século passado, sua idealizagao da S norteia sua de Woelflin com os de Tapié, encontramos nos dois enfoques diversos. Consulte a esse respeito os trabalhos de Mandrou, Le barroque européen mentalité pathétique et révolution sociale, Annales, n.5; Tapié, Barrogque et Classcisme. 5. Acesse respeito, Carr, em sua recente obra What is History faz interessantes consideragdes sobre a obra de Mommsen, Grote, Trevelyan ¢ Namier, € afirma: “I should not think it an outrageous paradox if someone were to say Grote's History of Greece has quite as much to tell us today about the thought ofthe English philosophical radicals in the 1840's as about Athenian democracy in the fifth century BC or that anyone wishing to understand what 1848 did to the German liberals should take Momsen's History of Rome as one of the books", p.30-3, ” BRASIL HISTORIA, TEXTOS F CONTEXTOS le de maneiras figura feminina.!Poderiamos falar em diversida de sentir? Ou nos contentaremos em afirmar que os autores de al diferente de amor, assim como }Entre Romantismo tinham um id idealizavam a mulher de uma maneira diversa da noss: a ideia que se tem de um sentimento e aquilo que realmente se sente, que disténcia existe? Poderemos algum dia chegar a escrever uma histéria dos sentimentos ou teremos de renunciar aisso e nos limitar a escrever a histéria das ideias que se tem dos sentimentos? Por outro lado, até que ponto esses romances, essas personagens do Romantismo, refletem uma realidade social em que vivem mergulhados os autores que os criaram, e até que ponto Tepresentam um protesto contra essa mesma realidade, um desejo de modificé-la? E finalmente: em toda essa maneira de conceber © amor ea mulher, tao diversa daquela que encontramos hoje, que existe de mero artificio literario, tendéncia literdria ou estilo? A que grupos sociais corresponde o retrato do amor e da mulher que as obras do Romantismo nos oferecem? Poder-se-ia dizer que ele corresponde a uma determinada sociedade, ou tere- mos de nos limitar a reconhecer naquela caracterizagao o retrato do amor, tal como é concebido por um pequeno grupo: aquele de onde saem os escritores romantics, principalmente aqueles onde eles vivem e para o qual escrevem? E ainda: até que ponto teriam eles exercido, com suas obras, uma influéncia no sentido de modelar a conduta e os sentimentos de seus leitores? Essas consideragGes nos ocorreram ao ter em mos, por acaso, © livro de\Michelet L Amour.\Publicado em 1858, ele apresenta uma visio do amor e da mulher perfeitamente a gosto de certa ten- déncia do Romantismo e s6 pode ser bem compreendido se enqua- drado dentro das caracteristicas gerais da literatura romantica. Ja no século XVIII esbogavam-se muitas das manifestagdes comuns ao Romantismo: a crenga na bondade natural do homem, oculto da amizade, da recordagao e da lembranga, 0 culto da sen- sibilidade, o habito de se abandonar As doces emogées, ao terno, a tendéncia a se cultivar a piedade pelo infortinio fisico ou moral, assim como outros motivos de enternecimento: o gosto contem- plativo da natureza, o amor pelas paisagens melancdlicas, lunares ou outonais. A maior parte dessas caracteristicas 6 encontrada na literatura oitocentista da Franga (Nouvelle Heloise de Rousseau, OONCERY AO TX) AMOR EIDEALIZAG AO DA MULEER poe exemplo, L761), na Inglaterra (em Si” Charles Grandison de Ruchandooan [1764]) ena Alemanha (Werther de Goethe (1774]). Obvervasse nessa hteratura pré-romantica o prazer de sentir bom, earndoso e meigo, a preferéncia pelas atitudes su: ves, gasim como a conviegio de que virtude e sensibilidade de alma wio sininimosJA sensibilidade ¢ medida pela exteriorizagio em ma conduta que, para muitos, hoje, seria considerada ridicul um transbordamento de emogées e lagrimas faceis, atitudes implorativas, posigAo de joelhos, siplicas e enternecimentos que empolgam tanto as figuras femininas como as masculinas.* literatura do século XVIII também se manifesta o gosto pela critica social ¢ moral, voltando-se ela principalmente contra os preconceitos aristocraticos. Criticavam-se os casamentos de conveniéncia, sem amor, tio frequentes na aristocracia e no menos comuns, provavelmente, na burguesia. Um apelo a liber- dade perpassa por todas essas obras. Elas refletem, algumas vezes, uma verdadeira crise do pensamento cristéo, bem como a crise dos valores da sociedade aristocratica, antecipando o mal du siécle. Todos esses aspectos que ja se anunciam no século XVIII permanecem como caracteristicos da literatura romantica do século XIX. As agitagGes revoluciondrias e as transformagées politico-sociais que atingem o mundo ocidental de maneira mais ‘ou menos profunda conforme os paises, os movimentos liberais, e nacionalistas do perfodo que se segue 4 Revolugio, a tentativa de Restauragio dos Antigos Regimes, os progressos da Revolugao Industrial em algumas nagées, como a Inglaterra e a Franca, tudo isso nao eliminou da literatura aqueles tragos, acentuando-os mais ainda. Ao mesmo tempo, outros aspectos surgiram. Ha novas condigées de vida para os homens de letras. Alguns saem de classes mais populares. Os “saldes", embora continuem a se manter, perdem muito de sua primitiva importancia. Com o desenvolvimento da imprensa, 0 campo de ago do escritor se amplia, o piiblico muda pouco a pouco. Ambiciona-se uma literatura que seja original, “moderna” e verdadeira. Pretende-se evitar 0 convencional. Tao grande é 0 6 Van Tieghen, Le Romantisme dans la litterature européenne, p.433 ss. - FORA, TIXTOS F CONTEXTS BRASIL deseo de ner auténtico € comprovar sua Prépria autemticidade ve se ea, por Vezes, em usm outEO tipo de convencionalisiny. O estado de alma romAntico foi partithado por um frande rninneno de individuos, que reencontravam nos autores romintica de sua alma. O Romantismo expressava uma tendéncia sr a certos grupos da sociedade dentro da qual viviam o, ces. Estes faziam-se intérpretes nfo de toda a sociedade familia de espiritos que se ren. pee exnter deseu tempo, mas de uma vast ava em suas obras.’ quanto para os representantes do Classicismo a “razio” era a caracteristica essencial do homem = sua prépria substincia —e a sensibilidade ¢ imaginagio apareciam como acidentais, para os rominticos estas eram as qualidades mais importantes. J em 21 Coleridge observava que toda verdade € uma espécie de revelaco. Partindo- -se dessa convicgao, passava-se a acreditar que a sensibilidade € guia mais seguro do que a razio. Os autores do Romantismo revelam, em sua maioria, revolta contra a sociedade, horror 4 realidade, desejo de fuga através da » ou do tsolamento, refugiando-se 0 autor dentro de sua propna sensibilidade. Curiosamente, ao lado dessa tendén- Cia & evasao, certas obras desse perfodo denotam o gosto pelas desengies minuciosas da realidade. A parur da ideia da preponderincia do sentimento sobre a rato, a vida afetiva passou para o primeiro plano, marcada por rofundo subjetivismo e acompanhada de uma conduta que se ceracterizava por transbordamentos e confissdes de carater extre- mamente intimo e pessoal. O tema do amor tornou-se absorvente. Ele assume lugar importante na obra da maior parte dos autores roméntucas. As vezes, aparece como uma espécie de culto voltado 2 Deus ou 2 Natureza: uma verdadeira religiao. Considerado nao como uma simples inclinago dos sentidos ou um capricho do cora¢éo, mas como um “principio divino”, amor adguire direitos imprescritiveis que primam sobre a tradi- social ou 2s leis civis: dois setes que os homens separam tém 0 EONCERSAO DO AMOR E IDEALIZAGAO DA MULHER, direito a unit-se diante de Deus, dois seres que 0 homens uniram sem amor tém o diteito de considerar essa unio como nula. J-se mesmo a afirmar, como Schlegel, que “todos os legais, pois que is do que concubinager easamentos nao sio ma eo verdadeiro amor nao apds o timbre divino”. A mesma ideia € desenvolvida em Shelley (A rainha Mab), urge contra a lei que obriga a amar ou a fingir ou de amar, A fidelidade da mulher no casamen- to, quando niio hé amor, é considerada por Stendhal uma coisa contra a natureza," chegando ele a dizer: “I est beaucoup plus contre la pudeur de se mettre au lit avec um homme quon n'a vu que deux fois, apres trois mots latins dits a Péglise que de ceder malgré soi u onde o autor se ins quando se ces din homme qu’on adore depuis deux ans”. Também nos primeitos romances de George Sand o amor ado, seus direitos consagrados ¢ a “comédia do amor” moral reinante € criticada. leis deveriam curvar-se aos € santific exigida pela sociedade e pel Jacques, ela chega a afirmar que as sentimentos ¢ nao os sentimentos as le! Os autores romanticos rebelam-se contra as convengdes sociais. Byron, Tennyson, George Sand, protestam contra a s direitos do amor e sociedade © a moral social reivindieando ¢ da mulher.” Encarnando o nina ter na literatura romantica um papel marcante. A figura lizada da mulher oscila entre duas tendéncias: a mulher mulher anjo & a purificadora do amon, a sensibilidade, a emogao, a figura femi- ide: anjo ¢ a mulher deménio., dora coragio do amante, capaz de enobrecer sua alma ¢ de tortifics- The a sensibilidade para ou patristica, revigora-o ia: amulher -lo, aproximando-o de Deus: desperta obelo, encoraja-o em sua missio polit moralmente. Ea mulher benfeitora, a conselheira e luz divina,!" a mulher inspiradora. | que reflete ul, p.267 10 Stendhal, De U1 Tbud,, p88, 12 Pican, Bl wmanticiomo sovtal 13 Flora Tastan em Mephis, apud Picard, op: ett? moun, PL. 309. BRASIL: HISTORIA, TENTOS E CONTENTOS omo uma virtude: todo amor é Oamor, nesse caso, aparec sincero ¢, por isso mesmo, nobre e edificante. O amor divinizado, sm certas obras de George Sand, Lamartine, Hugo, sem falar es como Schlegel ou Novalis, assume toros da ros autores alet religido.Desenvolve-se, a0 mesmo tempo, a mistica do pameiny amor, Ad lado dessa ideia surge a tese da redengio da pecadora ¢ redimida por um verdadero a mais vil das mulheres pode dO} Essa tese, de preteréneia trancesa, ids, desde Marion Delorme até a Dama amor, puro e desinteres criou grandes tipos liter: das Camélias. Para outros, a mulher nao & anjo ¢ sim demanio que, com eduz ¢ enfeitiga. O amor é febre que con: seu encanto magico, some, € perdicio e loucura. Aparece como uma especie de mal- digo e tormento."* Tem, por vezes, © sabor de uma profang s, atingindo, em certas FoMances, os tica que envolve os personagens 0 gosto de todos os vicio paroxismos de uma ftitia orgia em um clima de frenesi ¢ loucura. Jano século anterior, em algumas obras de Richardson (Cha rice Harlowe), nas Liaisons Dangereuses, de Choderlos de Laclos, e principalmente nas obras do marqués de Sade, desenvolvia-se © tema do vicio e da crueldade triunfando sobre a pureza.! O prazer da destruigio, da transgressio, o Extase satinico, o gusto pela blasfémia misturavam-se nessa que representa jé uma das tendén Espetaculos cruéis e terrorificos,' que inspirou as obras do marques de Sade, sin retratadtos em cer tas obras em que o amor eo desejo aparecem como sentimentes torturantes e cruéis. Baudelaire, em um de seus sonetos, defini em poucas palavras essa tenebrosa concepy: ombria concepy.io do autor do Romanusmo.* que continuam o espirite 14 Sobre essa maneira de encarar 0 amor, ve) morte ¢ ul diavolo nella letteratura romantic 15 Justine ou les Malhewrs de be y o lw de Py Proper’ da owe (1791) ¢ Jud (1796) sie os titulos de duas obras do marques dle Sade que pucecees ores dy Romancisms Dyas, 0 tntludneta sobre certs a exercido gra obra citada, destaca, entre outtos, Hugo, Gautteg, Sand, Sve, Nb Dumas. Chega mes firmar que o aspect exper ttion sky mal be wile n tay © saclisme. 16 Peas, op. e4t, p.106 17 had, p.115-6, 156, passim éoom CONCEPCAO DO AMOR E IDEALIZAGAO DA MULHER.. 99 LAmour dans sa guérite Tenebreusx, embusgué, bande som arc fatal. Je connais les engins de som veil arsenal: Crme, horreur et folie! (Fleurs du Mal, “Sonnet D'Automne”). Prende-se essa tendéncia a uma visio pessimista e mérbida da natureza humana, que é vista como se comprazendo no pecado ¢ desejando o mal. Sao adultérios, incestos, torturas, quadros macabros, che- gando por vezes aos extremos do vampirismo, as traigdes, os crimes, as flagelacdes que caracterizam as obras que se enquadram dentro dessa linha de inspiracao. A mulher aparece ora como vitima de torturas infinitas (continuando a tradicao oitocentista), ora como instrumento de perdicao do homem e seu algoz."* Nao raro, é descrita como figura dotade de implacavel crueldade, instrumento de Sata, impiedosa ¢ libertina."* Dotada de forca magica, conhecedora de todos os sortilégios, ela se torna irresistivel ¢ arrasta os homens aos mais infinitos vicios, conduzindo-os a perdicao e, as vezes, ao crime. Ostentando um género de beleza funesta, diabélica, escraviza 0 homem aos seus caprichos, levando-o ao delirio. Infiel, insté- vel, caprichosa, imperiosa e cruel, é 0 extremo oposto da outra figura feminina retratada pela obra romantica: a mulher anjo, encarnacao do bem e da virtude. “Ay que es la mujer angel caido”, exclamava Espronceda, interpretando essa visio da mulher. 16 Tied, p.343. 19 Thid..p.149. 20 Referindo-se 4 inconstineta da mulher, dizia Byron: “ome man, alone, at frst her heart can mene. she than prefers him in the plural numisr”. E Espronceda Stergre ual necias mayeres! muentad reras cancas/ otro mundo, otras delcras 0 maldno vea el placer, vuestron bess vm mentira.! mentira tuestra temeura (Puyals, Exprocenda y Lord Byron). Em Byron y4 se observa inchinagio a ema concepsto do amor. Em suas Ocweres de Jeunesse (p.125-6), dele di Flavtbrer: “line cropait a nen sce n'est avons les vices, dum Dieu eseare, existant rte le plas de fare le mal”. Esse retrato, embora descutivel. for a menon pela masona dos rominncos, ¢ 0 “byronsmo” for mus Byron. Entre os autores que continua a tradi do amor, Pr ww BRASIL: HISTORIA, TEXTOS E CONTEXTOS, Nos exageros romanticos, 0 amor abre as portas do paraiso oy conduz aos infernos. Faz de seus “eleitos ou de suas vitimas figuras pilidas, delicadas, melancélicas ou iluminadas ¢ enobrecidas por tum ideal que as eleva € putifica, ou sio devoradas por paixies que conduzem aos abismos”."' Entre os tragos caracteristicos do Romantismo francés, aparece, principalmente a partir de 1830, a preocupagio com as questdes sociais. / Poucos foram os roménticos franceses propriamente assoctais, como Musset, ou que subscreveriam as rimas de Gauthier em que ele afirma que & desses poetas: aqui sinquigtent pew d'etre bons citoyens qui vivent au hasard et non autre maxime si non que tout est bien pourvuc qu’on ait la rime.”* Passadas as primeiras tendéncias pessimistas, © otimismo social tornow-se caracteristico do Romantismo." A maior parte dos autores manifestou verdadeira consciéncia social ¢ abando- nou a literatura ou poesia puramente individualista dos primei- ros tempos, por inspiragdes de ordem mais geral. Ao idealizar a sociedade, aspiram, muitas vezes, a superar a pintura da realidade ¢ expressar as necessidades desta, antecipando o momento em que suas esperangas viessem a se converter em realidade: ceux peindre homme tel que je souhaite qu'il soit”, esctevia George Sand em 1851. Nenhum sofrimento, nenhuma miséria Ihes era diferente. Queriam consolare reabilitaros desgragados e decafdos, e exigtam J sociedade que se reformasse para destruir os males e injustigas, cuja criagio permitira. Liberdade, justiga © progresso, temas comuns ao literato ¢ a0 reformador social. No movimento romin- Swinburne & 22 Picard, op. ett, p48. 23 thud. p.50e 51 24 Van Tieghen, op. cit. p.573 CONCEDGAO DO AMOR LE IDEALIZAGAO DA ML LHER... 101 tico as douttinas literirias estavam pois, frequentemente, ligadas Ax preocupagdes sociais.: Muitos desses autores preocupavam-se com o papel social da mulher e refletiam em stuas obras o desejo de emancipi-la, Nesse sentido, ligavam-se ao pensamento social de seu tempo, Questoes literdrias e sociais apareciam lado a Jado ja moda, como a Revue des Deux Monde, Le Globe S80 Nas revistas coutras, Asidei libertagiio da tutela da mulher, parecem empolg ticos, dando origem a uma tendéncia feminis que corresponde A tendéneia feminista do pensamento social, ja de Saint Simon, Fourier, Enfantin, no que se refere muitos romin- a da literatura, sa. aa mulher, de submissio das mais populares, to de a mulher esbogada desde a Revolugio France {A condigio social em que viv se de miséria nas cama caréncia de leis protetoras da maternidade, 0 viver cerceada pela proibigio legal ou convencional do acesso a determinadas carreiras.:* constituem tema de protesto para os pensadores socinis ¢ motivo ou pretexto para os escritores roman- ticos que aspiram d redengio da mulher. Os saint-simonistas € os feministas em geral, principalmente estes tiltimos, pretendiam em ‘as suprimir a exploragio da mulher pelo homem, sexos, chegando a admitir que ela Jes © participar de todos os suas campant Je entr todas as dignida dese}; pudesse empregos. A obra Valentine, de George Sand, foi saudada com entu- siasmo pelos saint-simonistas, Jacques foi considerada auténtica 25 Prantl. op. cit. pte 51 26 Na épuca de Luts Fehpe, na Franga, as mulheres estavam excluidas de telos ox empreys pi pquante je hibits impedia-Thes 9 acesso aos escrtdnios DPrcatd. op. ett. p 316) mulheres era 6 pan ices, assim come das profissdes hber 27 Hamer acreditava que a extensiny dos prvitéios sso savits, Alirmaya que en necessine CApto eral de taxdos os pray hherat as mutheres de todas as submrastes © anyu ae axial i ruthet, cas No Falansténe, pretende conceder bherdade potiona, e sass, consnterava ele, pateria a soctedade desenvover seus t Tosa tamlyim era a wleia de Caber (Meant op at. p 312 0.8 Wwesmo a touaklade entre mands e mulher inclusive no que se retere ine na nieve peunad, lecimento dod pattor pater bem comasorestal w RAST HISTORIA, TEXTOS FE CONTEN TOS: vndo aceite tode inverprenagio das ideias de Fnfantin, embora © programa feminist, Ae onselhando, por exemplo, uma educa Keio diterente para o homem ¢ a mulher,” discordande portante Maqieles que, como Stern, afirmayam que se devia dar aun ¢ lg lids, no era ceito pelos © ponto de vista # titores do Romantismo, Michelet, sho idéntic a outro edu Unanimemente como veremos, discordart dele O tema predileto da maioria dos pensadores sociais er mulher companheira, inspiradora das agdes do homer Una tendéneia tepresentada por Enfantin pens a ideia de ibertagio da mulher com ade reabilitagie ¢ deixar de ser considerado um voda a conju ja carne Segundo ele, o amor fisico deveri inal, como "pretenders o pensamento eristio", ¢ pass: tificado, Interpretande pocticamente esse pensamento, exclama ago em sua obra Redengdo da mulher: “Et qufon ne peutd Vhewe ott les sens sont en feu/ Eteindre la beatté sany croire embrasser Dieu". Assim o ria at ser sane mor fistco aproximaya o homem de Deus. Eessas novas concepgdes foram muitas veres Jevadas a seus extremos,” A audacia do pensamento feminista, expresso Ny obra de alwuns romanticos, nie tardou a provecar reagiio, A imprensit vituperon os excessos que acabaram por levar Enfantin © seus disefpulos ds harras dos tribunals por ultraje aos bons costumes. Esse pracesso corren ao mesmo tempo contra Hugo, por sua obra Le Ror s'amuse ‘os criticos sensfveis As analogiays que existam entre certas teses do Romantismo ea escola de Enfantin e Saint Simon englobavam a ambos em suas ironias"." A reagao contra as tendéneias feministas também encentrou acatlida em alguns autores come Ba 1. © primeitn, em sua Lad rie ‘ ans, chegou a afirmar que emancipat amulber é corrompé-la, ¢ Guizot manifestan-se cont mo das mulheres, uma ve woe Gu mume de tren au sued Providéneia quis que estas s¢ Contaese que M. de Keratry, # consagrassem A vida dom 28 Peatdopoett path 29 Wu p M0 30 Ud Me tad p Me CONCEPGAO DO AMOR E IDEALIZAGAO DA MULHER. 103 quem George Sand submeteu seus primeiros ensaios, Ihe te fio faga livros, faga filhos”.? dito: FA mulher no deve escrever, 1 De maneira geral, pode-se afirmar que, apesar de algumas jas do pensamento social refletem-se na obra de autores do Romantismo a partir de 1830, aparecendo bem rtirio social da mulher ~ escrava do lar, sactificada pelo egofsmo masculino =, o problema da mae solteira repudiada pela sociedade e o da mulher incompreendida. Tam- az a defesa da cortesa: vitima do meio que mantém em 2 de regenerar-se, elevando-se até tesisténcias, as idei cterizados om bem se su triste condigiio, mas 1 os cumes da virtude, por um amor sincero ¢ abnegado. As vezes, as obras a apologia da mulher forte que quer viver encontra-se ne independentemente sua vida ou da jovem que almeja emancipar- -se. Ni raro se defende a tese da reforma da educagio feminina: asamento, para a vida profissional e a necessidade de maior um melhor prey social, ao mesmo tempo que se insinua liberdade ¢ garantias jurfdicas para a mulher.” Até que ponto af esto retratados os anseios da sociedade ou de um grupo social, até que ponto & 0 Romantismo o fator desses clarecer completamente, assim como é as obras sobre a sociedade. ro para o anseios, é impossfvel impossfvel avaliar a influéncia exata de: Talvez tenha sido maior a dos autores de segunda ordem, como aul de Koch e Eugenio Sue (no Brasil, certamente com os folhe- tins), sentimentais.! A verdade é que criando verdade 32 tbid., p32 33 Thu. 1.167. Plei op. cits p27: “education a absunlité de! Europe moderne, moms eles ont d'education proprrement dit Plus eles valent”, E, mats adiante, p.29: “Quel est Uhonmne, dans Camonr ow quale bentheur de pouvoir communiquer ses pensées telles le al prasse sae e4e? TL trouve dle mettre ses 40 para a mulher, diri Stendhal, nulle des femmes tant prut- é livre? pois esses 4 aqueles que lidade das escrever pat dos, esmagados pela f incessante, pois o que se poderia aconselhar a quem ni Era, pois, a uma certa “classe média” que ele se dirigia, e esta parece té-lo recebido bem. Apesar de todas as restrigdes feitas a0 n 1889 publicava-se a 18! edi- 0, se sucederam.” ainda em 1920, J. Lemaitre, ao prefaciar uma nova edici Ihe os aspectos positivos. Sua concepgao do amor como redengio, ¢ da mulher como 9, nfo é, certamente, a Gnica encontrada na anjo frépil e indefes literatura romAntica que, como vimos, contou também com tradigio “byroniana”, Mas no livro de Michelet reencontramos um dos retratos da mulher ¢ do amor, com 0 qual nos familiari- do Romantismo. Basta uma sado muita gente zamos, nas obras de alguns autor leitura para verificar que no Brasil do século idealizou o amor ¢ encarou a mulher pelo mesmo prisma dessa mesma tradigio roméntica. ‘A maior parte dos atributos femininos que ele tio carinhosa- Lisa, ¢ sua maneira de conceber o comportamento do mento, parecem-nos hoje inadequa- mente ana homem ¢ da mulher no ea No retrato do amor que a literatura ¢ 0 cinema ocidental nos maioria das teses de dos. apresentam, encontramos quase sempre Michelet nesadas ¢ desmentidas, Isso Thes dé mais ainda o valor histérien de um testemunho do Romanusmo, A mulher, diz ele, vive marcada pelo peso de uma grande favorece mndicionamento biolégice. A natur fatalidades seu nem ¢ nie a mulher. Esta é trigil fisica ¢ moralmente, mats mas influéncias, menos capaz de aw he aos deslize propenss 5 Onarages, p17 42 Pildiograptae ¢ ws BRASIL HISTORIA, TENTOS E CONTENTOS «1 ser protegida ¢ amada. Ela € totalmente diterente do homem. Agitam-se em seu fntimo qualidades contré- nas: eleva-se por sua beleze é mantida pela natureza em uma servidio de fraqueza e sofrimento. Ponsa, fala © age diferentemente do homem. Seus gostos sao di- ferentes, seu sangue corre de maneira diversa e até o ar que ela respira segue outto ritmo. Nao come tanto quanto o homem nem aprecia as mesmas iguarias. Seu processo digestivo & diverso — perturbado a todo instante por sua emotividade: “elle aime du fond cles entruilles™.’ A mulher & uma doente ¢ como tal precisa set tratada, com dogura e carinho. “La femme n'est pas sewdement tae malade mais une blesse. Elle subit incessamment ['étemelle blessure amour”, E na relagiio de dependéncia da mulher em relagao a0 homem, ¢ nio na protesdo que este dispensa a mulher, que se forja a familia." Quando ela nao extermina seu sexo por um trabalho excessivo, como as camponesas, por exemplo, que se convertem em homens, quando permanece mulher, ela & sensivel e condena- tla por seu processo biokigico X moléstia. Por isso, dada sua fraca constituigao © aos achaques priprios de seu sexo, ela é um mau “perio. Michelet repele os argumentos dos economistas que Va lorzavam o desempenho da mulher na inddstria ¢ afirma que em texlos os tempos © lugares ela ocupou-se apenas dos trabalhos A mullee ae de agriculura ¢ jardinagem.** Ss ae —— ncapaz mesmo. de Pensar ¢ prazeros3 n: pense por mim.** Sua verdadeira missi0 fazer © coragio do homem. Protegida ¢ € editicar seu lar, ref alimentad cle, e! entada por ele, ela alimenta de amor. “Qu'el est son but de La premiere d’ natuare, sa mission trostéme, atmer toujours" detender, Dor isso pre’ 2 poesia, sua viva intuigao, m domésticos, ‘aimer, la seconde aimer un seul, la Ela esté exposta A menor varia tro, ao medo, so climatica ou emonva 2° dor 1 5 Frade hae Sot 8s Pertutbasies digestivas. Cabe aw homet™ conduzica e orienticla nos cui lados de higiene, assim como deve 4} Michelet, 44 Thad pss. 45 Bd. pod do Thal p93 40 th p50. pet CONCEPGAO DO AMOR F IDEALIZAGAO DA MULLER. 109 ele inici-la nos mistérios da vida ¢ iluminar-lhe o intelecto. O homem deve assenhorear-se da mulher, pois cle, apesar de tod: ras limitagée 0 detentor da verdade. O homem ¢ clarividéneia; a mulher, as trevas." Natureza fecundagiio do espirito, o que se explica, em parte, por sua prépri natureza e em parte por sua educagio, em geral mal orientada. Em seu papel de instrutor, de educador, o homem deve conduzir- se cautelosa e criteriosamente, escolher suas leituras, dosar 0 assunto, nao exigir demasiado de seu espirito, evitar sobrecarress- cla, pois a leitura muito variada © mal selecionada poder ter efeitos deploraveis sobre seu espirito. E preciso respeitar o ritmo vital ao qual esta subordinada ¢ orientar seu estudo e suas leituras de acordo com as épocas bioldgicas propfcias.” Niio se deve dar 4 mulher cultura idéntica 4 do homem: “Meme a tout dge la femme doit savoir autrement que Uhomme”, pois ela corre risco de vulgarizar-se. A ela deve permanecer 0 ainda é bem mais do que el fio receptiva é entretanto, pouco receptivel & 48 Ibid, p.157. Num simbolismo tio a gosto de cer cm quie as nogdcs de ying e yang sio fundamen Iternantes de todos os cont familiares a Michelet ~ Simbolos concretos, aspectos apostos € a possiveis do universo, o ying € © yang presidem a ordenag: astes » de todas as coisas: © cosmo, as estagdes, a vida do homem, seu pensamento © os rasta, Numa dlistingio ampla, o ying é feminino, & oyang a acontecimentos que sombra, umidade, fri, a ygnordneia, a forga lor, osec0, a ascendéncia e sabedonia, a forga‘em movimento ete ‘em Fepouso ete. luz, 0a Uni nio existe sem o outro, um sucede ao outta it penxituo do universo, Nessa alternativa rfamica .€-a presenga de tum pressuyxic imediat anavelmente, no ritmo » ying contém oyany emt germe € vice-ve mente a de outro. Sio manitestagies alternantes ¢ complementares, (rmulas sftmicas da vida do universe e por conseguinte da vida socral, politica € relignoss (Rividre, El pensamiento filowsfico de Asta, p.278 »s.). Roland Barthes, em observa varias vezes a existéncis de a sua obra Michelet pur 1 mem raves day imayens miche principio masculino € um prineipio femini Tenanas, sem ¢ aproximagio entre Michelet © ess mul de Michelet evidencis rega ter feito ess ado do concepgao tilosstica chinesa. A len que ele ficou fortemente impresstonado por elas: Pode-se fentar essa aproximagio em vainas passagens de sew livre sobre & Amor, que estamos analisango, sem que se esquega das influéncias de Hegel e de Vico s to 49 Michelet, op ett p17 seu pensame i) BRASIL: HISTORIA, TENTOS E CONTENTOS ne . aplo do homem, o altar de seu coragao, onde todos os dias ele tel retomara a chama do amor puro: homme passera par les malheurs, les travaux de Vexstence, franchira les déserts, Varidité de ce monde, les piertes, les caillow, es rocs,oit souvent saigneront ses pieds. Mais chaque soi il bora la ys dans ce fruits déliciews, cout plein de la rosée du ciel. Chasue matin Paurore, il va s'éveiller rajeuni.® Conceda-se tudo 8 mulher desde que se conserve sua pureza, o aveludado de sua alma. Essa mulher que é a fonte regeneradora do homem é, entre- tanto, fragil e sensivel. Os alimentos fortes, as refeigdes carnivoras the sio prejudiciais, por isso deve alimentar-se principalmente de leite, legumes e frutas. Ela € sobretudo timida, cheia de pudor por um nada se perturba e se ruboriza. Ignorante dos mistério, do amor, necessita do amparo do homem, de sua protecao ely rividente. Cabe a ele toda iniciativa: mesmo a direcdo do lar’ A vaidade do homem leva-o a julgar que a mulher a ele se entrega vencida pelo amor fisico. Como ele se engana! Ac mulheres sto em geral frias por natureza, dado o desgaste de suze forgas nervosas. Cedem, sem paixdo, para cumprir seu destino de mulher, para assegurar o amor do homem e criar uma familia. Cedem por ternura pelo homem, pelo nobre desejo de se devotar, de se dar. Contra a sedugao, a mulher sozinha pouco pode. Cabe ao homem defendé-la das tentagdes:> “Toute folie de la femme est une sottise de l'homme”. Culpado é 0 homem, quer quando ele € 0 sedutor, quer quando, no papel de marido, nao sabe zelar pela mulher, aban- donando-a em momentos dificeis e perigosos, nao Ihe dando a assisténcia necessdria, permitindo que o tédio a envolva. A mulher mais instavel é a que mais necessita de amor e, se amada 50 Ibid., p.177. 51 Ibid., p.131. 52 Ibid. p.197. 53. Ibid., p.291 © 300, 54 Ibid., p.18. 7% CONCEPCAO DO AMOR E IDEALIZAGAO DA MULHER, m Vigorosamente, seré a mais fiel das mulheres. A mulher 6 por natureza monogamica ¢ fiel; se a natureza se perverte, isso se da por culpa do homem.* Encarando-a em sua fragilidade, Michelet insurge-se contra a legislagao civil de seu tempo, pois, embora a declare menor, € Por isso a interdite, colocando-a sob tutela do marido, quando se trata de julga-la em suas faltas, trata-a como maior e plenamente responsdvel por seus atos. Ao mesmo tempo, apoiando-se nos estudos mais recentes de Embriologia, que estavam em grande voga (Coste e Puchet, G. Saint-Hilaire e Serras, Baer e Negrier),” insurge-se contra 0s preconceitos que “haviam tradicionalmente considerado a mulher como impura”. Como a maioria dos romanticos, pretende reabilitar 0 amor carnal. Critica o pensamento “escoléstico” que, em seu entender, maculara a santidade da unio dos sexos, encarando-a como liber- tina, desconhecendo 0 perigo e o devotamento que constituem 0 Amago dessa unio, assim como a profunda troca de vida que é seu verdadeiro mistério. Criatura marcada pela natureza, fragil e incapaz de se condu- sir sozinha, necessitando 0 amparo do homem para manter sua propna dignidade, onde a sociedade nao a corrompe, exerce, por sua vez, uma influéncia benéfica sobre o homem, civilizando-o. Se o homem libera a mulher por sua forca, satide ¢ indepen- dencia, ela o libera das baixezas, das fraquezas, da tristeza e da avidez do dinheiro. O amor fisico afina as faculdades: 0 contato com a mulher pura e amada, cujo coragio responde ao coracio, comunica algo de sua exceléncia moral, de sua doce serenidade.” O espirito se harmoniza, a observagio, a andlise, a logica, ficam liberadas e em sua plena produtividade. Assim o amor carnal Purifica homem e aproxima-o de Deus. 55 Thd., AC. 56 Ibid. p15. 57 Thid., p.199. 58 Mhi., p.36 59 Nhu, p.373, mz BRASIL. HISTORIA, TEXTOS E CONTEXTOS Ao atingir a maturidade, a mulher torna-se colaboradora do homem, sua inspiradora confidente. Ela zela por ele,® tranquiliza-o, recontorta-o. A mulher, tal como ele a vé, € um misto de santa, rainha, doente e crianga.*! No retrato que nos traga da figura feminina, © que nos revela no é um ideal de emancipagao da mulher para converté-la em um simile do homem, mas sua emancipagao para a realizagao de suas potencialidades femininas que sfo, a seu ver. profundamente distintas da do homem. A mulher é, para ele, o objeto de devogao: um objeto sagrado que quando conserva pure ‘seu coragio é divindade.“ O amor € coisa cerebral." Todo: desejo uma ideia, as vezes confusa, que um estado fisico secundou. inflamou, mas que assim mesmo o precedeu. “Des deux poles de la tie nervewse, la péle inferiewr, le sexe, a peu d'initiative. I attend le signe d'en haut". O desejo se renova incessantemente, pela fecundagio de espinto, a originalidade das ideias, a arte de ver © encontrar novos aspectos morais, enfim — pela Stica do amor. © amor verdadeiro, diz ele, & sempre puro, € adoragio, devogio, quase uma religiio: “J'ai tongours ew en ce monde la religion de l’Amour et le destr de laugmenter” O amor nfo é uma crise, um drama ou um ato, € uma suces- s longa, de sentimentos diversos que alimentam toda a vida e a renovam coudianamente. Cabe ao homem a iniciavt € aresponsabilidade de moldar a alma e o corpo da mulher, trans: formando-a de jovem in; ua © pura em esposa, mae e mulher E nessa obra de criago que © homem por sua vez se reno aperfergoa com a ayuda da mulher! A semelhanga da maiona dos escritores de seu tempo, Miche- let nao taz distingdes entre uniio livre e casamento legal, embora desenvolva uma concepgio exclusivista ¢ monogimica do amor 6 thd. p49. ot The Teed, p. 150 A.pa3t Tad past 68 Ted p38 co Tn p77

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