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Charles Baudelaire lingue I Voltemos, por favor, a treze meses atrs, ao come¢o da questo, € que me seja permitido, nesta apreciagao, falar apenas em meu proprio nome. Este Eu, em muitos casos acusado com razao de impertinéncia, supde no entanto uma grande modéstia; ele encerra © escritor nos mais estritos limites da sinceridade. Reduzindo sua tarefa, ele a torna mais facil. Enfim, nao é necess4rio ser um bom probabilista para adquirir a certeza de que essa sinceridade encon— trar4 amigos entre os leitores imparciais; evidentemente, ha algumas chances para que o critico ingénuo, contando apenas suas proprias i ext N mais uma vez, que os escritores que se vangloriam de professar as opinides mais prudentes, as mais classicas, nado dao a menor im- portancia para o bom senso, nem para comedimentos, nem mesmo a vulgar polidez, na critica das opinides que lhes sao contrarias. Os artigos do Sr. Fétis nao passam de uma diatribe desagradavel, mas a exaspera¢io do velho diletante serviu apenas para provar a importancia das obras que ele condenava ao anatema € ao ridiculo. Além disso, de treze meses para c4, durante os quais a curiosidade publica nao diminuiu, Richard Wagner sofreu bastante por outras injirias. H4 alguns anos, na volta de uma viagem 4 Alemanha, Théophile Gautier, muito emocionado por uma apresentacao de Tannhduser, havia, contudo, no Moniteur, traduzido suas impresses com esta certeza plastica que da um charme irresistivel a todos os seus escritos. Mas esses diversos documentos, saindo a intervalos distantes, mal tocaram o espirito da multidao. Tio logo os cartazes anunciaram que Richard Wagner apre- sentaria trechos de suas composi¢ées na sala dos Italianos, deu-se um fato engracado, a que ja assistiramos anteriormente, e que prova a necessidade instintiva, precipitada dos franceses, de tomar partido em relagio a qualquer coisa antes de a ter examinado ou refletido. Alguns anunciaram maravilhas e outros se puseram a denegrir, ao maximo, obras que ainda nem haviam escutado. Ainda hoje dura esta situagao ridicula e podemos dizer que nunca um assunto desconhecido foi tio discutido. Em resumo, os con- certos de Wagner se anunciavam como uma verdadeira batalha de doutrinas, como uma dessas pomposas crises da arte, uma dessas querelas em que criticos, artistas e publico tém o costume de jogar confusamente todas as suas paixdes; crises felizes que denotam a satide e a riqueza na vida intelectual de uma nagio, e que nés, por assim dizer, desaprendemos desde os grandes dias de Victor Hugo. Tomo emprestadas as linhas seguintes do folhetim do Sr. Berlioz (9 de fevereiro de 1860): “Era muito curioso observar 0 foyer do ThéAtre-Italien na noite do primeiro concerto. Eram furores, gritos, discussdes que sempre pareciam estar a ponto de degenerarem para as vias de fato”. Sem a presenga do soberano, 0 mesmo escindalo 19% teria podido se produzir, h4 alguns dias, na Opera, sobretudo com um piblico mais verdadeiro, Eu me lembro de ter visto, a0 final de um dos ensaios gerais, um dos reputados criticos parisienses plan- tado pretensiosamente diante do balcio de controle, enfrentando a multidao a ponto de atrapalhar a saida, e se pondo a rir como um maniaco, como um desses desafortunados que nas casas de satide sao chamados agitados. Esse pobre homem, acreditando que seu rosto era conhecido de toda a multidao, tinha o ar de dizer: “Vejam como estou rindo, eu, o célebre S...! Assim, tomem o cuidado de conformar vosso julgamento ao meu”. No folhetim ao qual ja fiz alusao, 0 Sr. Berlioz, que, no entanto, foi muito menos caloroso do que se poderia esperar de sua parte, acrescentava: “O que se lan¢a agora de insensatez, de absurdos e mesmo de mentiras é verdadei- ramente prodigioso, e prova com evidéncia que, pelo menos por aqui, desde que se trate de apreciar uma misica diferente daquela que corre pelas ruas, apenas a paixdo, os preconceitos tomam a palavra e impedem 0 bom senso e 0 bom gosto de falar”. *¥ Wagner tinha sido audacioso: o programa de seu concerto nao continha nem solos de instrumentos, nem can¢des, nem nenhuma das exibigdes tao caras a um publico amoroso dos virtuoses e de suas proezas. Apenas trechos, coros ou sinfonias. A luta foi violenta, é verdade; mas o ptblico, estando entregue a si mesmo, inflamou-se em alguns dos irresistiveis trechos nos quais o pensamento era para ele mais claramente exposto e a musica de Wagner triunfou por sua propria forca. A abertura do Tannhduser, a pomposa marcha do segundo ato, a abertura de Lohengrin em especial, a musica de ntipcias e 0 epitaldmio foram magnificamente aclamados. Muitas coisas, sem diavida, permaneceram obscuras, mas os espiritos imparciais se diziaml “Como essas composic6es sao feitas para o palco, é preciso esperar; as coisas nao suficientemente definidas serao explicadas pela montagem se acene isso, faltava reconhecer que, como sinfonista, como artista capaz de traduzir os tumultos da alma humana pelas mil combinagoes dos sons, Richard Wagner altura do que ha de mais elevado, tao grande, certamente, Frequentemente, ouvi dizer que a musica nao poderia se van- | gloriar de traduzir com certeza 0 que quer que fosse, como faz a palavra ou a pintura. Apenas em certa medida isso é verdade. Ela traduz, sim, 4 sua maneira e pelos meios que lhe sio préprios. Na | misica, como na pintura e mesmo na palavra escrita, que é, con- tudo, a mais positiva das artes, sempre ha uma lacuna completada pela imaginac4o do ouvinte. Sem davida, sao essas reflexdes que levaram Wagner a consi- derar a arte dramatica, isto é, a reuniao, a coincidéncia de variadas artes, como a arte por exceléncia, a mais sintética e a mais perfeita. Ora, se descartarmos por um instante o apoio da forma plastica, do cenario, da incorporagio de tipos imaginados nos atores vivos e até da palavra cantada, permanece incontestavel que quanto mais a musica é eloquente, mais a sugestao é rapida e justa, mais chances ha para que os homens sensiveis concebam ideias relacionadas aquelas que inspiraram o artista. Neste momento, tomo como exemplo a famosa abertura do Lohengrin, sobre a qual o Sr. Berlioz escreveu um magnifico elogio em estilo técnico; mas quero aqui me contentar em verificar seu valor pelas sugest6es que ela oferece. Eu lino programa distribuido por essa ocasido no Théatre- -Italien: “Desde os primeiros compassos, a alma do piedoso solitario que espera 0 cAlice sagrado mergulha nos espacos infinitos. Ele vé formar-se pouco a pouco uma aparicdo estranha que toma um corpo, uma figura. Essa aparicao se torna ainda mais precisa, 0 cortejo milagroso de anjos, levando em meio a eles o calice sagrado, passa diante dele. O santo cortejo se aproxima; o coragio do eleito de Deus pouco a pouco se exalta; alarga-se e dilata-se; inefaveis aspira- ces despertam nele; ele cede a uma beatitude crescente, sempre mais proximo da luminosa aparigéo, e quando, enfim, o proprio Santo Graal aparece em meio ao cortejo sagrado, ele mergulha em uma adoracao extatica, como se 0 mundo inteiro de repente tivesse desaparecido, “Entrementes, o Santo Graal espalha suas béncios sobre o santo em oragao e 0 consagra seu cavaleiro. Depois as chamas flamejantes amenizam progressivamente seu brilho; em sua santa alegria, 0 cortejo de anjos, sorrindo 4 terra que deixa, ganha as celestes alturas. Ele +23) deixou o Santo Graal sob a guarda dos homens puros, no coragao dos quais o divino néctar se espalhou, € 0 augusto cortejo se desvanece nas profundezas do espaco, da mesma forma como delas saira.” O leitor logo compreendera porque sublinho essas passagens. Tomo agora 0 livro de Liszt e 0 abro na pagina em que a imagi- na¢4o do ilustre pianista (que é um artista e um filésofo) traduz 4 sua maneira o mesmo trecho: “Esta introducio contém e revela o elemento mistico, sempre presente e sempre escondido na pe¢a... Para ensinar-nos a inenar- ravel forga desse segredo, Wagner nos mostra inicialmente a inefavel beleza do santudrio, habitado por um Deus que vinga os oprimidos e s6 pede amor ¢ fé a seus fi¢is. Ele nos inicia no Santo Graal; ele faz brilhar aos nossos olhos o templo de madeira incorruptivel, de paredes perfumadas, de portas de ouro, de vigas de asbesto, de colunas de opala, de fachadas de cymophane, de cujos espléndidos pdrticos s6 podem se aproximar os que tém o coracio elevado e as m4os puras. Nao é na imponente e real estrutura que nos faz perceber isso, mas, como que conduzindo nossos fracos sentidos, ele primeiro o mostra refletido em alguma onda azulada ou reproduzido por alguma nuvem irisada. “No comeco é um grande manto calmo de melodia, um éter vapo- roso que se estende, para que o quadro sagrado se desenhe aos nossos olhos profanos; efeito confiado exclusivamente aos violinos, divi- didos em oito estantes diferentes, que, depois de varios compassos de sons harménicos, seguem adiante nas notas mais altas de seus registros. O tema é, em seguida, retomado pelos instrumentos de sopro mais doces; as trompas € os fagotes se juntam a eles e preparam. a entrada dos trompetes e dos trombones, que repetem a melodia pela quarta vez, como uma fulgurante explosao de cores, como se nesse instante tinico o santo edificio brilhasse diante de nossos olhares cega- dos por toda sua magnificéncia luminosa e radiante. Mas a viva cintilacao levada aos poucos a essa intensidade de luz solar se apaga com rapidez, como um leve fulgor celeste. O transparente vapor de nuvens se fecha, a visio desaparece pouco a pouco no mesmo incenso matizado em meio ao qual ela apareceu e o trecho termina com os primeiros 56 seis compassos agora ainda mais etéreos. Seu carater mistico ideal torna-se sensivel sobretudo pelo pian{ssimo sempre mantido pela orquestra e que é interrompido apenas no curto momento em que os metais fazem resplandecer as maravilhosas linhas do tnico tema dessa introdugao. Tal é a imagem que, ao ouvirmos esse sublime adagio, se apresenta inicialmente aos nossos sentidos emocionados.”! Estaria eu autorizado a contar, a devolver com palavras a tra- dugao inevitavel que minha imaginag3o fez do mesmo trecho, logo que eu o escutei pela primeira vez, de olhos fechados e que me senti, por assim dizer, elevado da terra? Nio ousaria, certa- mente, falar com complacéncia dos meus devaneios, se nao fosse util acrescenta-los aqui aos devaneios precedentes. O)leitor'sabeique ‘Além disso, aqui nao sera ridiculo argumentar a priori, sem andlise e sem comparagées, pois © que seria verdadeiramente surpreendente seria que 0 som ndo pudesse sugerir a cor, que as cores nao pudessem dar a ideia de uma melodia, e que o som ea cor fossem impr6prios para traduzir ideias, sendo as coisas sempre exprimidas por uma analogia reciproca, desde o dia em que Deus criou 0 mundo como uma complexa e indivisivel totalidade./ A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam filtrar nao raro insdlitos enredos; O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares. Como ecos longos que a distancia se matizam Numa vertiginosa e ligubre unidade, Tao vasta quanto a noite e quanto a claridade, Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.? Prossigo, pois. Lembro-me de que, desde os primeiros compas- sos, experimentei uma dessas felizes impressGes que quase todos os homens de imagina¢’o conheceram, pelo sonho, durante o sono. Senti-me liberado dos limites da gravidade e encontrei pela lembranga 270 | | fa extraordinaria voltipia que circula em lugares altos (notemos, en passant, que eu nao conhecia 0 programa citado ainda h4 pouco). Em seguida, imaginei involuntariamente 0 delicioso estado de um homem preso a um grande devaneio em uma solidio absoluta, mas uma solidio com um imenso horizonte e uma larga luz difusa; a imensiddo sem outro cendrio senao ela mesma. Logo experimentei a sensagdo de uma dlaridade mais viva, de uma intensidade de luz crescendo com tal rapidez, que as nuances oferecidas pelo dicio- nario nao bastariam para exprimir esse aumento sempre renascente de ardor e brancura, Entio eu concebi plenamente a ideia de uma alma movendo-se em um ambiente luminoso, de um éxtase feito de voliipia e de conhecimento, pairando acima e bem longe do mundo natural. Dessas trés tradugdes, poderao notar facilmente as diferencas. Wagner descreve um cortejo de anjos que levam um cdlice sagrado; Liszt vé um monumento miraculosamente belo, que se reflete em uma miragem didfana. Meu devaneio é muito menos ilustrado por objetos materiais: € mais vago e mais abstrato. Mas o impor- tante aqui é apegar-se as semelhancas. Pouco numerosas, elas constituiriam ainda prova suficiente, mas, por felicidade, elas s4o numerosas e impressionantes, chegando ao supérfluo. Nas trés traducdes, encontramos a sensa¢io da beatitude espiritual e fisica; de isolamento; de contemplagao de alguma coisa infinitamente grande e bela; de uma luz intensa que alegra os olhos e a alma até 0 desfalecimento; e enfim a sensa¢ao de espago ampliado aos tiltimos limites concebiveis. Nenhum misico se sobressai, como Wagner, na pintura do espaco e da profundidade, materiais e espirituais. E uma marca que muitos espiritos, e dos melhores, nao puderam se impedir de fazer em muitas ocasides. Ele possui a arte de traduzir, por meio de gradacées sutis, tudo que h de excessivo, de imenso, de ambicioso, no homem espiritual e natural. Por vezes, escutando essa mtsica ardente e despdtica, despedagado pelo delirio, temos a impressio de encontrar as vertiginosas alucinagdes do 6pio pintadas sobre um fundo tenebroso. a) | A partir desse momento, isto é, do primeiro concerto, fui pos- | suido pelo desejo de entrar cada vez mais na compreensao dessas | obras singulares/Eu havia sofrido (ao menos assim me pareceu) uma | operaco espiritual, uma revelagao. Minha voltipia havia sido tao forte ¢ tao terrivel, que eu nao podia me impedir-de.querer voltar a elas sem cessar, indefinidamente. Nisso que senti, havia muito daquilo que Weber e Beethoven ja me haviam feito conhecer, mas também alguma coisa nova que me sentia impotente para definir, e essa impoténcia provocava em mim uma célera e uma curiosidade misturadas a um Baud : - uu (gozo)bizarro. Durante muitos dias, durante um longo tempo, eu me fine dizia: “Onde esta noite eu poderei ouvir a misica de Wagner?” Meus e Gerd | amigos, aqueles que possuiam um piano foram, mais de uma vez, ut tadh meus mértires/Logo, como acontece com toda|novidade) os trechos sinfonicos de Wagner ressoavam nos cassinos abertos todas as noites auma multidao amante de volipias triviais /A, majestade fulgurante dessa musica caia ali como um raio em lugar errado. O barulho se espalhava depressa, e tinhamos frequentemente o espeticulo cémico de homens graves e refinados que se viam obrigados a conviver com uma turba malcheirosa, para gozar, esperando o melhor, da marcha solene dos Convidados do Wartburg ou das majestosas niipcias de Lohengrin. No entanto, as repeti¢des frequentes das mesmas frases mel6- dicas, nos trechos tirados da mesma 6pera, deixavam supor miste- riosas intengdes e um método que me eram desconhecidos. Decidi informar-me do porqué, e de, assim, transformar minha voldpia em conhecimento, antes que uma representa¢ao cénica pudesse me proporcionar uma elucidagdo perfeita. Interroguei amigos e inimigos. Mastiguei o indigesto e abominavel panfleto do Sr. Fétis. Li o livro de Liszt, e enfim eu me ofereci, na falta de L’Art et la Révolution e de L’GEuvre dart de Vavenir, obras nao traduzidas, essa intitulada: Opéra et Drame, traduzida em inglés. I As zombarias francesas continuavam a fazer seu caminho, € 0 jornalismo vulgar operava sem trégua suas infantilidades - 313 profissionais/Como Wagner nunca cessou de repetir que a misica (dramatica) deveria expor 0 sentimento, adaptar-se ao sentimento com a mesma exatiddo da palavra, mas evidentemente de outra maneira, isto é, exprimir a parte indefinida do sentimento de que a palavra, muito positiva, nio pode dar conta (no que ele nao di- zia nada que nao fosse aceito por todos os espiritos equilibrados), uma multidio de gente, influenciada por todos os gozadores do folhetim, imaginou que o mestre atribuia 4 musica o poder de ex- primir a forma positiva das coisas, isto é, que ele invertia os papéis e as fung6es/Seria tio intttil quanto aborrecido enumerar todas as bobagens fundadas sobre essa falsidade que, tanto por ignorancia quanto por mé fé, tinham por resultado enganar a opinido do pi- blico. Mas em Paris, mais que em qualquer outro lugar, € impossivel fazer parar uma escrita que se acredita engracada. A curiosidade geral sobre Wagner engendrou artigos e brochuras que nos apre- sentaram 4 sua vida, aos seus esforcos, aos seus longos tormentos. Em meio a esses documentos, hoje muito conhecidos, vou extrair apenas aqueles que me parecem mais apropriados a esclarecer e a definir a natureza e o cardter do mestre. Aquele que escreveu que o homem que nao foi dotado por uma fada, ainda no bergo, do espirito de desprezo por tudo que existe, ndo chegard jamais a descobrir 0 novo devia indubitavelmente encontrar nos conflitos da vida mais dores que qualquer outro/E dessa facilidade para softer, comum a todos os artistas e tanto maior quanto for o seu instinto daquilo que é justo e belo, que extraio a explicagio para as opinides revolucionarias de Wagner. Amargurado depois por tantos enganos, decepcionado por tantos sonhos, ele foi obrigado, em certo momento, em conse- quéncia de um erro desculpavel em um espirito sensivel e excitado ao extremo, a firmar uma cumplicidade ideal entre a misica ruim e os maus governos. Possuido pelo desejo extremo de ver o ideal na arte dominar definitivamente a rotina, ele pode (¢ uma ilusio essencialmente humana) esperar que as revolugGes na ordem politica favorecessem a causa da revolugao na are/O proprio sucesso de Wagner nio deu raz4o as suas previsOes & ds suas esperangas, pois na Franga foi preciso a ordem de um déspota para fazer executar a «3a obra de um revolucionario. Da mesma maneira, j4 vimos em Paris a evolucio romantica favorecida pela monarquia, enquanto os liberais e os republicanos permaneciam obstinadamente apegados as rotinas da literatura dita classica. Eu vejo, pelas notas que ele mesmo forneceu sobre sua ju- ventude, que, ainda crianga, Wagner vivia no ambiente teatral, frequentava os bastidores e escrevia pegas. A mtisica de Weber e, mais tarde, a de Beethoven agiram sobre seu espirito com uma forca| irresistivel, e logo, com a acumulagio dos anos de estudo, foi-lhe impossivel nao pensar de uma “‘maneira\dupla) p } poética e musical- mente, ndo_entrever toda ideia sob duas formas s simultaneas, uma das duas artes comegando I4 onde se detinham_os limites.da outra. Ofinstinto dramatico] que ocupava um tio grande lugar em suas faculdades, devia empurr4_lo a se revoltar contra todas as frivoli- dades, as banalidades e as aberragées das pegas feitas S para a “Assim, a Providéncia, qaeiveulaesneschoes da arte, amadurecia em um jovem cérebro alemio o problema que tanto havia agitado o século XVIII. Quem quer que tenha lido com atengao a Lettre sur la musique, que serve de prefacio a Quatre poemes d’opéra traduits en prose francaise, nao pode manter a este respeito nenhuma divida.* Os nomes de Gluck e de Méhul sao citados nela com uma simpatia apaixonada. Isso nao agrada a Sr. Fétis, que certamente quer es- tabelecer para a eternidade a predominancia da misica no drama lirico, a opiniao de espiritos tais como Gluck, Diderot, Voltaire e Goethe nao é de se desdenhar. Se esses dois Gltimos desmentiram mais tarde suas teorias prediletas, isso foi neles apenas um ato de desespero e de desencorajamento. Folheando a Lettre sur la musique, senti reviver em meu espirito, como por um fenémeno de eco mneménico, diferentes passagens de Diderot que afirmam que a verdadeira musica dramatica nao pode ser outra coisa senao 0 grito ou 0 suspiro da paix4o transposto em notas e ritmos. Os mesmos problemas cientificos, poéticos, artisticos se reproduziram sem cessar através dos tempos, e Wagner nao se faz passar por um inventor, mas simplesmente por alguém que confirma uma velha ideia que serd sem diivida, ainda mais uma vez, ora.v4 ora vencedora. 3 abu Todas essas questées so, na verdade, extremamente simples € € bem surpreendente ver se revoltarem contra as teorias da mtsica do futuro (para me servir de uma locugio tao inexata quanto acreditada) aqueles mesmos que escutamos frequentemente queixarem-se das torturas infligidas a todo espirito racional pela mesmice do libreto comum de épera. Nessa mesma Lettre sur la musique, na qual o autor faz uma andlise muito breve e muito clara de suas trés obras anteriores, LArt et la Révolution, Lceuvre d'art de Vavenir e Opéra et Drame, encontramos uma preocupa¢’o muito viva com o teatro grego, muito natural, inevitavel mesmo em um/musico dramaturgo\que devia buscar no passado a legitimagao de sua aversio pelo pre- sente e conselhos titeis para as novas condigées do drama lirico. Em sua carta a Berlioz,’ ele j4 dizia, ha mais de um ano: “Eu me perguntei quais deveriam ser as condi¢des da arte para que ela pudesse inspirar ao pitblico um respeito absoluto e, a fim de nao me aventurar demais no exame dessa questao, fui buscar meu ponto de partida na Grécia antiga. Ai encontrei inicialmente aobra artistica por exceléncia 0 flrania,)no qual a ideia, quao profunda ela seja, pode se manifestar com clareza e da maneira a mais uni- versalmente inteligivel. Hoje causa espanto, com razdo, que trinta mil gregos tenham podido seguir com um interesse continuo a representagao das tragédias de Esquilo, mas, se_procurarmos 0 meio pelo qual se obtinha tais resultados. descobriremos que é pela alianga de todas as artes concorrendo juntas para 0 mesmo objetivo, isto é, paraa producao da obra artistica, amais perfeita e Funica verdadeira. Isso me levou a estudar as relacdes dos diversos ramos da arte entre eles e, depois de ter captado a relagdo que existe entre a representa¢ao plastica e a mimica, examinei aquela que se acha entre a miisica e a poesia: desse exame brotaram de repente clarées que dissiparam completamente a obscuridade que até entio me havia inquietado.7& “Bu reconheci, com efeito, que precisamente 14, onde uma des- sas artes atingia limites instransponiveis, logo come¢ava, com a mais rigorosa exatidao, a esfera de acio da outra; que consequentemente, - 3% LL t—S ¥ao> oY s Chie pela_uniao intima dessas duas artes, se exprimiria com a clareza mais satisfat6ria 0 que ndo poderia exprimir cada uma delas iso- ~ ladamente; que, pelo contrario, toda tentativa de oferecer com os “meios de uma delas 0 que nao poderia ser oferecido senao pelas duas juntas devia fatalmente conduzir 4 obscuridade, inicialmente 4 confusao, e, em seguida, 4 degenerescéncia e 4 corrup¢ao de cada arte em particular.” WAqnor CLO Aalvan a arte E no prefacio de seu ailtimo livro, ele volta ao mesmo assunto nestes termos: “Encontrei em algumas raras criagdes de artistas uma base real onde assentar meu ideal dramAtico e musical; agora a hist6ria, por sua vez, me oferecia o modelo ¢ 0 tipo das relagdes ideais do teatro e da vida publica como eu imaginava. Esse modelo eu encontrei no teatro da antiga Atenas: 14 0 teatro abria seu espago apenas a certas solenidades em que se realizava uma festa religiosa que acompanhava as alegrias da arte. Os homens mais distintos do Estado tomavam parte direta nessas solenidades, como poetas ou diretores; eles eram como sacerdotes aos olhos da popula¢ao reunida, da cidade e do pais, e essa populacao estava cheia de uma tao alta expectativa pela sublimidade das obras que iam ser representadas diante dela, que os poemas mais profundos, os de um Esquilo ou de um Séfocles, podiam ser propostos ao povo e serem, com certeza, perfeitamente entendidos”. Esse gosto absoluto, Alespotico} de um ideal dramatico, em que tudo, desde uma declamagio anotada e sublinhada pela misica com tanto cuidado que é impossivel ao cantor se perder em qual- Phe ACAWE quer silaba, verdadeiro-arabesco de sons desenhado.pela paixao, até aos cuidadgs mais, CIS Featiyos aos cenarios e a en- cenagio, em ‘ine todos os”det' levem concorrer sem cessar a uma totalidade de efeito, tudo isso fez o destino de Wagner. Era nele como uma postulagio perpétua. Desde o dia em que ele se desembaragou das velhas rotinas do libreto e corajosamente renegou sua Rienzi, 6pera da juventude que foi honrada com um grande sucesso, ele caminhou, sem se desviar uma linha, em direcio a esse imperioso ideal. Foi, portanto, sem espanto que encontrei nessas suas obras que estao traduzidas, particularmente +39. em Tannhduser, Lohengrin e O navio fantasma, um método de cons- truco excelente, um espirito de ordem e de divisio que lembra a arquitetura das tragédias antigas. Mas os fendmenos e as ideias que se produzem periodicamente através dos tempos emprestam sempre a cada ressurrei¢4o o carater complementar da variante e da circunstancia. A radiante Vénus antiga, a Afrodite nascida da espuma branca, nao atravessou impunemente as terriveis trevas da Idade Média. Ela nao mais habita o Olimpo nem as margens de um arquipélago perfumado. Ela se retirou para o fundo de uma caverna magnifica, é verdade, mas iluminada pelos fogos que nao sao aqueles do indulgente Febo./Tendo descido para debaixo da terra, Vénus se aproximou do inferno e vai regularmente, sem divida, em certas solenidades abominAveis, prestar homenagem ao Arquideménio, principe da carne e senhor do pecadofAssim, os poemas de Wagner, mesmo se revelam um gosto sincero e uma perfeita compreensio da beleza classica, participam também, em forte dose, do espirito romintico/Se eles fazem sonhar com a majestade de Sdfocles e de Esquilo, eles obrigam o espirito, ao mesmo tempo, a se lembrar dos Mistérios, da época a mais plasticamente cat6lica/ Assemelham- se as grandes imagens que a Idade Média exibia sobre as paredes de suas igrejas ou tecia em suas magnificas tapegarias. Tém um aspecto geral decididamente lendirio: 0 Tannhduser, lenda; o Lohengrin, lenda; lenda também O navio fantasma. E nao é apenas uma propensio natural a todo espirito poético o que conduziu Wagner em diregao a essa aparente especialidade; é um viés formal tomado no estudo das condigdes as mais favordveis para o drama lirico. shor NER Ele mesmo tomou o cuidado de elucidar a questao em seus _ livros. Com efeito, nem todos os temas sao igualmente apropriados para oferecer um vasto drama dotado do carater de universalida- de. Haveria, evidentemente, um imenso perigo em traduzir em afresco o delicioso e o mais perfeito quadro de género. E, sobre- tudo, no cora¢io universal do homem e na historia desse coragio que o poeta dramatico encontrar esses quadros universalmente inteligiveis. Para construir com plena liberdade o drama ideal, eas sera prudente eliminar todas as dificuldades que poderiam nascer de detalhes técnicos, politicos ou mesmo muito positivamente historicos. Deixo a palavra ao proprio mestr © “Q tnico quadro da vida humana que pode ser chamado poético é aquele em que os motivos que s6 tém sentido para a inteligéncia abstrata cedem lugar aos motivos puramente humanos que governam o cora¢io. Esta tendéncia (aquela relativa 4 invengdo do tema poético) é a lei soberana que preside 4 forma e 4 representagao poética... O arranjo ritmico € 0 ornamento (quase musical) da rima sao, para o poeta, os meios de assegurar ao verso, 4 frase, uma forca que cativa como por feitigo e governa ao seu gosto o sentimento. Essencial ao poeta, essa tendéncia 0 conduz até o limite de sua arte, limite que toca imediatamente a miisica e, por consequéncia, a obra mais completa do poeta deveria ser aquela que, no ultimo acabamento, seria uma musica perfeita.“” ¢ ?/ “Dai eu me via necessariamente levado a designar 0 mito como a matéria ideal do poeta. O mito é 0 poema primitivo e anénimo do povo, e nés o encontramos em todas as épocas retomado, remanejado sem cessar, mais uma vez, pelos grandes poetas dos periodos cultos. Com efeito, no mito, as relagSes humanas se despem quase completamente de sua forma convencional e inte- ligivel apenas para a raz4o abstrata; elas mostram o que a vida tem de verdadeiramente humano, de eternamente compreensivel e a mostram sob essa forma concreta, isenta de toda imitagao, que da a todos os verdadeiros mitos seu cardter individual reconhecivel ao primeiro olhar.” E adiante, retomando o mesmo tema, ele diz: “Deixei de uma vez por todas o terreno da histéria e me estabeleci no da lenda... Todo detalhe necessario para descrever e representar 0 fato histérico e seus acidentes, todo detalhe que uma época especial e recuada da historia exige para ser perfeitamente compreendida, e que os autores contemporaineos de dramas e de romances hist6ricos deduzem, por essa razio, de uma maneira tio circunstanciada, eu podia deixar de lado... A lenda, em qualquer época e em qualquer nagio a que ela pertenca, tem a vantagem de compreender exclusivamente 0 que AGe essa €poca € essa nacdo tém de puramente humano, e de apresent4—lo sob uma forma original muito marcante, e desde logo inteligivel ao primeiro olhar. Uma balada, um refrio popular bastam para Tepresentar-vos, em um instante, esse carater sob os tragos os mais decisivos e os mais surpreendentes... O cardter da cena e 0 tom da Jenda contribuem juntos para jogar o espirito em um estado de sonho que logo o leva a plena dlarividéncia, e 0 espirito descobre entao um novo encadeamento dos fenémenos do mundo, que seus olhos nao podiam perceber no estado de vigilia ordindria...” Como Wagner nio compreenderia admiravelmente o carater sagrado, divino, do mito, ele que era ao mesmo tempo poeta e critico? Eu escutei muitas pessoas deduzirem da propria grandeza de suas faculdades e de sua alta inteligéncia critica uma razio de desconfianga relativamente ao seu génio musical, e eu creio que esta é a ocasiado propicia para refutar um erro muito comum, cuja principal raiz é, talvez, o mais feio dos sentimentos humanos, a inveja. “Um homem que argumenta tanto sobre sua arte nio pode, naturalmente, produzir belas obras”, dizem alguns que assim despem o génio de sua racionalidade e lhe atribuem uma fungio puramente instintiva e, por assim dizer, vegetal. Outros querem considerar Wagner como um teérico que teria produzido éperas tio somente para verificar a posteriori o valor de suas préprias teo- tias. Nao apenas isso é perfeitamente falso, pois o mestre comegou muito jovem, como se sabe, pela producao de ensaios poéticos e musicais de natureza variada, e s6 progressivamente chegou a imaginar um ideal de drama lirico, mas € mesmo uma coisa absolutamente impossivel. Seria um acontecimento completamen- te novo na histéria das artes um critico se passando por poeta, uma reviravolta de todas as leis psiquicas, uma monstruosidade; ao contrario, todos os grandes poetas se tornam naturalmente, fatalmente, criticos. Eu lamento os poetas guiados apenas pelo instinto; creio que sio incompletos. Na vida espiritual dos pri- meiros, infalivelmente acontece uma crise na qual eles querem discutir sobre sua arte, descobrir as leis obscuras em virtude das quais produziram e extrair desse estudo uma série de preceitos +45 - cujo objetivo divino é a infalibilidade da produgio poética. Seria prodigioso que um critico se. tornasse poeta, mas é impossivel que em um poeta nao haja um critico. O leitor nao se espantar4 que eu considere 0 poeta como o melhor de todos os criticos. As pessoas que censuram 0 mtisico Wagner por ter escrito livros sobre a filosofia de sua arte e que dai supdem que sua miisica nao é um produto natural, espontineo, deveriam igualmente negar que Leonardo da Vinci, Hogarth, Reynolds tenham feito boas pinturas simplesmente porque eles deduziram e analisaram os principios de sua arte. Quem fala melhor de pintura que nosso grande Delacroix? Diderot, Goethe, Shakespeare, tanto criadores quanto admiraveis criticos. A poesia existiu, afirmou sua primazia e engendrou o estudo das regras. Tal é a histéria incontestavel do trabalho humano. Ora, como cada um é 0 diminutivo de todo mundo, assim como a histéria do cérebro individual representa, reduzida, a hist6ria do cérebro universal, seria justo e natural supor (por falta de provas existentes) que a elaboracio dos pensamentos de Wagner tenha sido andloga ao trabalho da humanidade. Tl Tannhduser representa a luta de dois principios que escolheram © coragao humano como principal campo de batalha, isto é, da carne com 0 espirito, do inferno com o céu, de Satanas com Deus. E essa dualidade é imediatamente apresentada pela abertura com incomparavel maestria. O que ainda nao foi escrito sobre essa pega? No entanto, é presumivel que ela ainda oferecera matéria a muitas teses e comentarios eloquentes, pois ¢ proprio das obras verdadei- ramente artisticas serem uma fonte inesgotavel de sugestdes. A abertura, digo eu, resume, pois, 0 pensamento do drama em dois cantos, 0 canto religioso e 0 canto voluptuoso que, para usar uma expressio de Liszt, “‘sdo aqui postos como dois termos, e que, ao final, encontram sua equac40”. O coro dos peregrinos aparece como © mais importante, com a autoridade da lei suprema, como mar- cando, imediatamente, o verdadeiro sentido da vida, 0 objetivo da Ae peregrinacao universal, isto é, Deus. Mas, como o sentido intimo de Deus logo se perde em toda consciéncia pelas concupiscéncias da carne, 0 canto representativo da santidade € pouco a pouco submergido pelos suspiros de voltipia. A verdadeira, a terrivel, a universal Vénus ja se esboca na imaginagio de todos. E que aquele que ainda nao ouviu a maravilhosa abertura do Tannhduser nao imagine um canto de amantes vulgares, tentando matar o tempo sob caramanchdes, nem os clamores de uma turma embriagada desafiando Deus na lingua de Horacio. Trata-se de outra coisa, a0 mesmo tempo mais verdadeira e mais sinistra. Langores, delicias misturadas a febre, e entrecortadas de angustias, retornos incessan- tes a uma volipia que promete saciar, mas que nio sacia, nunca, a sede; palpitagdes furiosas do coragio e dos sentidos, ordens im- periosas da carne, todo o diciondrio das onomatopeias do amor se faz ouvir aqui. Enfim, o tema religioso retoma pouco a pouco seu império, lentamente, por gradagées, e absorve 0 outro em uma vitéria apaziguante, gloriosa como aquela do ser irresistivel sobre o ser doentio e desordenado, de Sao Miguel sobre Licifer. No come¢o deste estudo, observei a forca com a qual Wagner, na abertura de Lohengrin, havia expressado os ardores do mis- ticismo, os desejos do espirito pelo Deus incomunicavel. Na abertura do Tannhduser, na luta dos dois principios opostos, ele nio se mostrou menos sutil nem menos poderoso. Onde, entao, o mestre encontrou esse canto furioso da carne, esse conhecimen- to absoluto da parte diabélica do homem? Desde os primeiros compassos, os nervos vibram em unissono com a melodia; toda carne que se lembra p6e-se a tremer. Todo cérebro bem formado leva em si dois infinitos, o céu e o inferno, e em toda imagem de um desses infinitos reconhece imediatamente a metade de si mesmo. As titilacées satanicas de um vago amor logo sucedem os arrebatamentos, os deslumbramentos, os gritos de vitoria, os gemidos de gratidao e depois os urros de ferocidade, de censura de vitimas e os hosanas impios de sacrificadores, como se a barbarie sempre devesse tomar lugar no drama de amor, e 0 gozo carnal conduzi , por uma légica satanica inelutavel, as delicias do crime. -49- Quando o tema religioso, atravessando de um lado a outro o mal desencadeado, vem pouco a pouco restabelecer a ordem e retoma a primazia, quando ele se apresenta novamente, com toda sua sélida beleza, acima do caos das voltipias agonizantes, toda alma experi- menta como que um revigoramento, uma beatitude de reden¢ao; sentimento inefavel que se reproduzira no comego do segundo quadro, quando Tannhiuser, tendo fugido da gruta de Vénus, se encontrar4 no caminho reto, entre o som religioso dos sinos de sua terra natal, a cangao singela do pastor, o hino dos peregrinos ¢ a cruz postada na estrada, emblema de todas essas cruzes que é preciso arrastar sobre todas as estradas. Nesse tiltimo caso, existe uma forga de contraste que age irresistivelmente sobre o espirito e que faz pensar na maneira larga e calma de Shakespeare. Um pouco antes, estavamos nas profundezas da terra (Vénus, como dissemos, habita perto do inferno), respirando uma atmosfera perfumada, mas sufocante, iluminada por uma claridade rosa que nao vinha do sol; pareciamos o proprio cavaleito Tannhiuser, que, saturado das delicias extenuantes, aspira a dor! grito sublime que todos os criticos juramentados admirariam em Corneille, mas que, talvez, nenhum desejaria ver em Wagner. Enfim somos devolvidos 4 terra; respiramos o ar fresco, aceitamos as alegrias com gratidao, as dores com humildade. A pobre humanidade é devolvida a sua patria. Ainda ha pouco, tentando descrever a parte voluptuosa da abertura, eu supliquei ao leitor desviar seu pensamento dos hinos vulgares do amor tais como podem ser concebidos por um alegre galanteador em momento inspirado; com efeito, aqui nada ha de trivial; 6 mais o extravasamento de uma natureza cheia de ener- gia, que derrama no mal as forgas destinadas a cultivar o bem; € 0 amor desenfreado, imenso, cadtico elevado a altura de uma contrarreligiao, de uma religido satanica. Assim, o compositor, na tradugo musical, escapou a essa vulgaridade que acompanha muito frequentemente a pintura do sentimento 0 mais popular—eu ia dizer popularesco — e por isso, bastou-lhe pintar 0 excesso no desejo ¢ na energia, a ambi¢’o indomével, imoderada, de uma alma sensivel AGG a que se enganou de caminho. E assim também na representacio plastica da ideia ele felizmente se libertou da fastidiosa multidao das vitimas, das inumeraveis Elviras. A ideia pura, encarnada na anica Vénus, fala bem mais alto e com muito mais eloquéncia. Nao vemos aqui um libertino comum, borboleteando de bela em bela, mas um homem comum, universal, vivendo morganaticamente com 0 ideal absoluto da voltipia, com a rainha de todas as diablesses, de todas as faunesses e de todas as satyresses,’ exiladas sob terra desde a morte do grande Pan, isto é, na companhia da indestrutivel e irresistivel Vénus. Uma mio mais exercitada que a minha na andlise das obras liricas apresentara, aqui mesmo, uma resenha técnica e completa desse estranho e desconhecido Tannhduser’; devo entio limitar-me a impress6es gerais que, mesmo sendo rapidas, nao sio menos ateis. Além disso, nao é mais c6modo, para certos espiritos, julgar a beleza de uma paisagem colocando-se no alto, que percorrendo sucessivamente todos os caminhos que a cortam? Eu devo somente fazer observar, para o grande louvor de Wagner, que, apesar da importancia muito justa que ele da ao poema dramitico, a abertura de Tannhduser, como também a de Lohengrin, € perfeitamente inteligivel, mesmo para aquele que no conhece o libreto; e, ainda, que esta abertura contém, nao apenas a ideia mie, a dualidade psiquica que constitui o drama, mas ainda as formulas principais, claramente acentuadas, destinadas a pintar os sentimentos gerais expressos na continuacdo da obra, como o demonstram os retornos for¢ados da melodia diabolicamente volup- tuosa e do motivo religioso ou O coro dos peregrinos, todas as vezes que a acio requer. Quanto 4 grande marcha do segundo ato, ela conquistou desde muito tempo o aplauso dos espiritos mais rebel- des, ¢ pode-se aplicar a ela o mesmo elogio feito as duas aberturas das quais jé falei, a saber, ela exprime da maneira a mais visivel, a * A primeira parte deste estudo apareceu na Revue Européenne, na qual Sr. Perrin, antigo dire- tor da Opéra-Comique cujas simpatias por Wagner sio bem conhecidas, ¢ 0 encarregado da critica musical. (Nota de Charles Baudelaire.) 2530 mais colorida, a mais representativa, aquilo que quer comunicar. Quem, entao, ao escutar essas entonag6es to ricas e tio orgulhosas, esse ritmo magnifico igualmente cadenciado, essas fanfarras reais, poderia imaginar outra coisa sendo uma pompa feudal, um desfile de homens heroicos, em vestimentas vistosas, todos de estatura alta, todos de grande determinacio e de fé simples, tao magnificos em seus prazeres quanto terriveis em suas guerras? Que diriamos da narrativa de Tannhiuser, sobre sua viagem a Roma, em que a beleza literdria é tio admiravelmente completada e sustentada pela melopeia que os dois elementos formam um indi- visivel todo? Temia-se a longa duragdo desse trecho, no entanto, a narrativa contém, como vimos, uma forca dramatica invencivel. A tristeza, o acabrunhamento do pecador durante sua dura viagem, sua alegria vendo o supremo pontifice que absolve os pecados, seu desespero quando este Ihe mostra o cardter irreparavel do seu crime, e enfim o sentimento quase inefavel, tanto ele é terrivel, da alegria na danagio; tudo é dito, exprimido, traduzido, pela palavra e pela misica, de uma maneira tao positiva, que € quase impossivel conceber outra maneira de cont4-lo. Entéo, compreende-se bem que tal infelicidade s6 possa ser reparada por um milagre, e des- culpamos o desgracado cavaleiro por ainda procurar o misterioso caminho que o conduz 4 gruta para reencontrar ao menos as gra¢as do inferno junto a sua diabélica esposa. O drama de Lohengrin leva, como também o de Tannhauser, o carter sagrado, misterioso e, no entanto, universalmente inteligivel da lenda. Uma jovem princesa acusada de um crime abominavel, © assassinato de seu irmao, nao tem qualquer meio de provar sua inocéncia. Sua causa serd julgada pelo juizo de Deus. Nenhum cavaleiro se apresenta para defendé-la, mas ela confia em uma vi- sio singular; um guerreiro desconhecido veio visita-la em sonho. E esse cavaleiro que tomar sua defesa. Com efeito, no momento extremo em que cada um a julga culpada, um barco puxado por um cisne atrelado a uma corrente de ouro aproxima-se da margem. Lohengrin, cavaleiro do Santo Graal, protetor dos inocentes, defen- sor dos fracos, escutou a invocagio do fundo do retiro maravilhoso -55- onde esta preciosamente conservado 0 cAlice divino, duas vezes consagrado: uma pela Santa Ceia e outra pelo sangue de Nosso Senhor, que José de Arimateia nele recolheu enquanto escorria de sua ferida. Lohengrin, filho de Parsifal, desce do barco, revestido de uma armadura de prata, 0 elmo na cabega, o escudo sobre os ombros, uma pequena trompa de ouro ao lado, apoiado sobre sua espada. “Se eu alcancar para vocé a vitéria, diz Lohengrin a Elsa, quer que eu seja seu esposo?... Elsa, se deseja que eu me chame de teu esposo..., € preciso que tu me facas uma promessa: jamais tu me interrogars, jamais tu procurards saber nem de que paragens eu venho, nem qual é o meu nome e minha natureza.” E Elsa: “Jamais, senhor, tu ouviras de mim esta questio”. E como Lohengrin repete solenemente o enunciado da promessa, Elsa responde: “Meu escu- do, meu anjo, meu salvador! Tu que crés firmemente em minha inoc€ncia, poderia haver aqui uma diivida mais criminosa que a de nao ter fé em ti? Como tu me defendes na minha desgraca, da mesma forma eu zelarei fielmente pela lei que tu me impdes”. E Lohengrin, apertando-a em seus bra¢os brada: “Elsa, eu te amo!” Hé ai uma beleza de didlogo® como se encontra frequentemente nos dramas de Wagner, impregnados de magia primitiva, engran- decida pelo sentimento ideal, e cuja solenidade nao diminui em nada a graca natural. A inocéncia de Elsa é proclamada pela vitoria de Lohengrin; a feiticeira Ortrud e Frédéric,’ dois malvados interessados na con- denacio de Elsa, conseguem excitar-lhe a curiosidade feminina, esmaecer sua alegria pela diivida e a atormentam até que ela viola seu juramento e exige de seu esposo a confissio de sua origem. A davida matou a fé, e a fé desaparecida leva com ela a felicidade. Lohengrin pune Frédéric com a morte em uma cilada que este lhe preparou e diante do rei, dos guerreiros e do povo reunidos, declara enfim sua verdadeira origem: “...quem quer que seja escolhido para servir o Graal é imediatamente investido de uma forga sobrenatural; mesmo aquele que é enviado por ele a uma terra Jonginqua, encar- regado da missio de salvar o direito da virtude, nao € despojado de sua forca sagrada contanto que sua qualidade de cavalheiro do -57°

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