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COLEGAO VERA CRUZ (Literatura Brasileira) volume 76 &) | Nan | | Geese: Surin 10 CLOVIS MOURA Introducao 20 Pensamento de EUCLIDES DA CUNHA EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA S. A. MO DE JANEIRO | BIBLIOTECA WISTITUTO DE FILOSOFIA CIENCIAS HUMANAY UNFCAMP | STO Deny | aech hid ac IFC 7 asabo Exemplar n2 c ton capa de Bvoix1 Himscer oO oe & Direitos desta edicio reservados & EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA S. A, Rua 7 de Setembro, 97 RO DE JANEIRO 1968 mpresso not Etadon Unidos do. Brasil Printed tn the United Slates of Bresih Indice Duas Palavras — 5 cariruLo 1 Euclides da Cunha e a Cultura Brasileira — 7 capfruLo it Esquemética do Mundo — 28 capiruto 1 © Republicano — 51 carfruLo 1 “Uma Questo Incémoda” — 67 capiruLo v O Homem Brasileiro — 74 capftuLo vi A Questo Social — 102 capiruLo vit A Questo Agriria — 126 carfreLo vit O Imperialismo — 143 BIBLIOGRAFIA — 157 Introducéo ao Pensamento de EUCLIDES DA CUNHA “Que criaiura, 6 Tempo, niio arrosta © sacrificio por estar exposta na transparéncia de tuas vitrinas? | Alheios, nem sabemos quando vence divida que nos penhora a ti: | quanto nos custaria a permanéncia?” 1 Gem Castros Duas Palavras O presente trabalho & uma tentativa de interpretagaio do pensamento de Euclides da Cunha, Para tal, por questées me- todolésicas, dividimos 0 livro em capitulos que abordam os principais temas e problemas contidos na sua obra. Tentamos ser objetivos, nao procurando embelezar os seus erros, mas esforcando-nos por explicé-los através das coorde- nadas culturais sob as quais atuou, nelas injluindo e sendo or elas influido. Por outro lado, destacamos as antecipagées do seu pensamento no conjunto da cultura dominante do seu tempo. Para isso, tivemos de empregar um método de andlise, sem © que o presente livro nao passaria de wm amontoado de dados sem conexio e perspectiva diacrénica que pudesse, na sua hhistoricidade, dar sentido ao trabatho e @ compreensio do pen- samento de Euclides da Cunha. Aqui nao iremos nos referir ao método de interpretacio que adotamos, porque éle se tornaré dbvio a medida que o leitor avangar no texto. Dentro da constelagio que é a cultura brasileira, a obra de Euclides da Cunha é, por varias razdes, uma das mais desfiguradas. Desfigurada’ pelos seus admiradores. Desfigura- da pelos seus detratores. Nosso trabalho, que nada tem de definitivo e perfeito, € uma tentativa de restaurar o verdadeiro Euclides da Cunha. Durante as nossas pesquisas tivemos 0 apoio de varios intelectuais. Queremos registrar os seus nomes aqui: Nélson 5 Werneck Sodré, pelas sugest6es feitas em carta ou pessoalmen- te, € Aluisio Sampaio, pela pachorra de ouvir capitulos intei- ros do livro, dando as suas opinides sempre inteligentes. Devemos um agradecimento especial ao Professor Arivélsio Paditha, diretor da Casa Euclidiana de Sao José do Rio Par- do, que nos supriu de material indispensavel, como resenhas € conferéncias datilografadas sobre Euclides da Cunha, pronun- ciadas nas comemoracdes euclidianas, e ao Professor Zdenek Hampejs, da Tcheco-Eslovéquia, pelo interésse demonstrado © envio dos seus trabalhos sObre Euclides da Cunha, lidos em Berlim e Rostok. | Queremos destacar, porém, que somos responsdveis por tddas as afirmacées, conclusdes e deficiéncias déste livro. Sio Paulo, 1963 © AUTOR Euclides da Cunha e a Cultura Brasileira SV ssovve quem sissesse que a gléria nada mais 6 do que um conjunto de mal-entendidos. As comemoragdes do cingiien- tendrio da morte de Euclides da Cunha vieram confirmar esta afirmativa de modo clogtiente. Os iniimeros trabalhos publi- cados sdbre a sua obra € 0 set pensamento so tio contradit6- ios que nos deixam perplexos. Ha muita paixéo nos esctitos sObre Euclides da Cunha — paixio inspirada na sua vida, com reflexos vistveis na tentativa de anélise da sua obra — além da vontade de opinar de maneira improvisada, de orelhada, a respeito de um eser tor contradit6rio e complexo. A bibliografia a seu respeito aumenta dia a dia ¢ hé, mesmo, inspirado néle, um culto organizado, que reverencia mais um mito que se criow do que 0 saldo objetivo do seu trabalho de escritor, dentro do quadro da cultura: brasileira. Disto ressalta um fendmeno curioso: muitas das deficién- cias apontadas como contidas na obra do autor de “Os Ser- tes" nfo sto mais do que deficiéncias reflexas de quem o critica. Fenémeno idéntico se verifiea — embora no sentido inverso — nos trabalhos apologéticos. Um dos problemas mais ventilados pelos criticos de Eucli- des da Cunha € 0 da aquilatagio do valor cientifico de sua obra, especialmente do seu maior livro, nos diversos compar- timentos das cigncias sociais. Isto, no entanto, nao tem sido 7 possfvel como era de desejar-se, © painel trégico © dramético da morte do escritor pesa emocionalmente naqueles que ten tam ésse Jevantamento, Acresce ainda dizer que 0 estilo li- terério de Buclides da Cunha influencia de maneira poderosa €sses estudiosos que param no estilo, na carpintaria literdria da obra euclidiana, sem realcarem, como seria necessdrio, a con- tribuigdo dessa obra como degrau no desenvolvimento do pen- samento social e das ciéncias sociais em nosso Pats, s literatos apoderaram-se do legado euclidiano e — manipulando & larga frases encomiésticas sobre a montagem esilistica e literdria de sua obra — omitem o que é para nés fundamental no seu pensamento. As questitinculas, os deta- Ihes, as andlises anédinas de perfodos e trechos, as discusses bizantinas s6bre coisas sem importincia, o devassamento, in- lusive, da sua vida intima, t8m sido 0 prato de resisténcia ‘dés- ses beletristas. O pensamento do escritor — como ja dissemos = 0 seu saldo global inserido no processo de tomada de cons- cigncia da intelligentsia nacional, ficou intacto, virgem, sem que se conseguisse, de mancira satisfatéria, um enquadramen- to objetivo dos seus aspectos fundamentais. Por outro lado, 0 panorama dos estudos sociais no Brasil — com preocupagées voltadas para uma atividade université- tia rigidamente empitica, inimiga das grandes sinteses — con- tribui para que Euclides da Cunha seja desprezado por aquéles que deviam estudar 0 seu pensamento e continue sendo pasto de beletristas e foco de anélise de professdres de estilistica. O lado cientifico de sua obra é subestimado. Sua contribuicéo de estudioso que‘ objetivava 0 conhecimento da realidade bra- sileira, desconhecida. Sua heranca, arquivada sem ser_dis- cutida. A deformagio apologética — “por. protesto e adora- 0” — apagou, também, o verdadeiro Euclides da Cunha, que foi substituido por um mito, uma racionalizaco afetiva, "Pas- sou a ser escritor para ser admirado — nfo estudado, Cita- do nos momentos necessétios, mas nunca compreendido den- tro da evolucio do pensamento brasileiro. Ou génio, que ‘tudo que disse esté certo (1), ou literato, que fz estilo com 0 drama de Canudos (#). Desta forma, tentar-se fazer um levantamento imparcial da contribuigo dada por Euclides da Cunha ao conjunto da cultura brasileira 6 tarefa que requer muito cuidado e isencao, 8 | apontem os val6res permanentes do legado euclidiano e desta, quem, igualmente, as suas limitagdes, os seus erros. Isto exige nao apenas estudos dos livros em questiio e artigos dispersos em jomais do tempo, mas, praticamente, a Teclaboragio critica de todo um period de hossa formacao cultural, vendo-se, inclusive, a cultura como um Processo_ namico e a intelligentsia, cor cifica: retratar a autoconscié; A medida que um autor contribui para essa tomade de auto- consciéncia social, teré construfdo uma obra que coopera para impulsionar @ sociedade; & proporco que sua obra ‘contiibua Para a aliena¢do da realidade social, ter retardado o processo dinamico de desenvolvimento, Porque — conforme veremos adiante — as sociedades, & medida que adquirem consciérens de sua problemética emergente, criam dois tipos de intelecta is, di que essa problemética € dicotémica: um que serve coms, cientemente ao desenvolvimento da sociedade e outro que, consciente ou inconscientemente, procura retardé.lo. ° Isto nos leva a concluir — ‘no caso de Euclides da Cunha especialmente — que, sem uma perspectiva capaz de sition mee obra hist®ricamente, dentro das correntes ¢ ‘teoviae que nos chegavam da Europa e das proprias deficigncias desies tec Gas, nfo abstratamente, mas enquadradas no contexto social do Brasil da época, sera ilus6rio, no digo julgar, © que seria temerério e pedante, mas, pelo menos, tracar uma couriers ea fe sua contribuicio & nossa cultura, iist6ria das ciéncias sociais em ne fs obra de Euclides da Cunha, o seu ponto cities ue ™ BA Ela serviu como elemento catalizador, congregou no seu ferPo Conceptual tendéncias esparsas, pensamentos subjacen, {es para — em seguida, no sentido inverso — influenciar os estudiosos que depois déle se propuseram analisar a nose. rest lidade, ,_© processo de tomada de consciéncia de nc Tealic social reflete-se na obra de Euclides da Cunha aningmicnsee te; forma uma contradigio, De um lado hé o teconhecimento da necessidade de serem a literatura © a ciéncia formas de conhecimento, fat6res instrumentais no processo do devenvel, 9 ‘vimento social, integrados no quadro da sociedade em trans- formagdo, Sua intencio de voltar-se para os nossos proble- mas, apontando solugdes para éles, mostra como Euclides da Cunha encontrava no seu trabalho de escritor uma dimensio patticipante. Este foi o lado de abordagem que o conduziu a procurar uma tomada de consciéncia social e politica. Do outro lado, porém, apoiava-se em teorias, hipéteses, métodos e mestres, em um cabedal de conhecimentos que nfo 0 ajudava fa desvendar os véus que cobriam as solugées dos problemas brasileiros. As interpretagdes que di as possibilidades do nosso homem e as limitagdes que faz aos mestigos bem refle- tem essa contradigio, essa posicéo de escritor ideoldgicamente alienado, mas sensivel aos problemas da sociedade brasileira. Euclides da Cunha foi também atingido pelo momento eritico por que passavam as ciéncias sociais. Na época em que 0 seu maior livro apareceu, nao sdmente no Brasil mas também na Europa a procura de uma teoria capaz de interpr tar cientificamente a tealidade social ¢ descobrir as suas leis mais gerais de desenvolvimento estava passando por um pro- cesso efervescente de gestagéo. A Sociologia vinha das grandes sinteses inconsistentes de Comte © Spencer e se encontrava estacionada em um estado confuso de elaboracio. Por outro lado, jf softia no seu con texto valoragées ideolégicas que a alienavam da possibilidade de dar explicagéo exata © objetiva dos fenémenos sociais na sua dindmica. Preconceitos de classe impediam que 0 estu- dioso — especialmente 0 sociélogo — descobrisse as leis do desenvolvimento social, j4 que desenvolvimento quer dizer mu- danca através do choque dos contrérios, o que apavorava ésses, pesquisadores, pois as ideologias que formavam o sistema con- ceptual désses autores, ao invés de penetrarem na realidade, acrescentavam alguma coisa a ela, sem descobrir-Ihe a essén- cia (8), A alienago no proceso do conhecimento surgia, desta forma, dentro de uma ciéncia que jé vinha com a “marca de fébrica” da burguesia industrial ¢ Yinha ‘como fungio explicar — dentro dos padrées de idéias e valores dessa classe — as modificacées profundas por que passavam instituicdes até entio tidas como eternas ¢ imutéveis, abaladas a partir da Revolucio Industrial, © préprio surgimento da Sociologia tem um sig- 10 nificado sociol6gico, Assim como as grandes utopias da Re- nascenca e dos socialistas pré-cientificos expressavam — den- tro de redomas ideolégicas que limitavam 0 campo de conhe- cimento da dintmica social — as aspiragdes semi-inconscien- tes das classes e camadas que se desenvolviam, a Sociologia, foi, também, expresso da autoconsciéncia de uma classe no poder: a burguesia. Daf essa Sociologia nfo poder, como dis- ciplina académica, explicar 0 processo objetivo do ‘desenvolvi mento da sociedade contempordnea. E ja houve mesmo, den- tro do conglomerado que forma atualmente 0 conjunio do pensamento sociol6gico académico, quem negasse a propria evolugio, ‘A Sociologia académica, como dissemos, especialmente nos paises subdesenvolvidos, ‘constitui-se num corpo teérico uusado por ésses sociGlogos com o objetivo de escamotear a mudanga social e defender a estrutura da sociedade capitalis- ta, negando, inclusive, a existéncia de leis objetivas na socie- dade (4), ‘Vé, além disso, 0 problema da luta de classes, isto 6, 0 conflito imanente, como patologia social no como um proces- so histérico-natural, dando, assim, ao conflito uma conotacio que leva a que se exija 0 contréle, Ainda guarda, dentro do seu bojo, as premissas que a transformam em uma teoria empirica, microssociolégica, incapaz da abordagem cientifica do processo global da sociedade como unidade antindmica, mas vendo a sociedade como uma unidade orginica unitéria, onde a contradicio s6 entra como elemento de desequilfbtio das par- tes que deviam estar harménicamente distribufdas. &, final- mente, um corpo de doutrinas que atua no apenas para justi ficar 0 sistema atual, mas tem fungGes préticas especificas: organizacdo racional do trabalho nos quadros da produgo ca pitalista, planificacio de emprésas, contrdle da opinigo pabli- ca, etc. A Sociologia académica tem por outro lado, uma paiticularidade que a distingue e que Ihe & especifica: os soci6- Jogos vendem sua férca de trabalho as classes dominantes, como sociélogos, a instituicGes ou emprésas — faculdades, de- partamentos de ‘pesquisas, entidades patronais — e colocam a servico dessas instituigdes as técnicas de pesquisa que obje- tivam a melhorar 0 contréle, a disciplina dessas emprésas, ou a resolver problemas politicos, dentro dos quadros institucio- un nais vigentes, de uma sociedade em franco proceso de trans- formacdo social (°). £, om tiltima andlise, dentro das diversas escolas ou dife- rengas’de detalhes, um corpo de doutrina que defende, res- guarda, nao apenas no seu aspecto ideol6gico mas prético tam- bém, a ordem capitalista (*). Isto no significa que os iniciadores da Sociologia, ¢, mesmo, em um certo sentido, os seus continuadores académi- cos, sem conseguirem explicar cientificamente os fenémenos sociais, nfo tivessem dado um passo A frente no processo do conhecimento. O pensamento désses autores, embora refletin- do todo o rescaldo de uma uta ideolégica que espelhava a Tuta das classes fundamentais da sociedade capitalista, contri- ‘buiu para que um névo e mais objetivo método de ‘aborda- gem dos estudos sociais fOsse estabelecido, Metodoldgica- mente, representou_a explicacéo dos fatos sociais por uma causagio natural, eliminando qualquer férca sobrenatural (deu- -ses, deménios, exorcismos ou um “espirito social”) das leis que regem a sociedade. Do ponto de vista ideolégico, porém, foi a tomada de consciéncia de uma classe que, instintivamente, criou 0 seu sistema conceptual de defesa (7). Daf ter surgido, no outro pélo, o marxismo como expres- so independente, autoconsciéncia da classe operdtia, Eo seu corolirio politico: o socialismo. Essa ideologia, no entan- to, cuja primeira obra de maturidade é a “Miséria da Filoso- fig” de Marx, publicada em 1847, (#) nfo podia, de chéfre, penetrar nos diversos setores do conhecimento cientifico. Isto por duas razGes capitais, A primeira é 0 fato do ainda nfo ter sido incorporada, na época, como concepcio do mundo, ao acervo mental dos pensadores que estudavam as ciéncias sociais. Rsses estudiosos tateavam ainda em uma semi-escuridio no campo da sintese, embora produzissem con- tribuigdes valiosas nos setores de sua especialidade. A segun- da razio — para nés mais importante do que a primeira — nasce do proprio papel operacional do marxismo como ideo logia. Expressando essa teoria, nas suas categorias, os inte- résses antagénicos aos da classe que esté no poder, tinha de chocar-se com os conceitos sedimentados na camada que, pela 2 sua prépria fungdo social, maneja, nos quadros das instituicées, dominantes, a abstragao cientifica: os intelectuais académicos. Se nio partirmos de uma posicdo dialética para enfocar 0 fenémeno — 0 caso de Euclides da Cunha ¢ ilustrativo om particular, como veremos — néo entenderemos a esséncia do problema, No poderemos compreender como éle, vindo de uma formagio teérica bastante confusa, conseguiu escrever uma obra que reflete alguns dos problemas fundamentals da sociedade brasileira, muitas vézes desenhando esbogos de inter- pretagdes até hoje aceitaveis. ‘As ideologias que representam uma determinada classe social s6 conseguem atrair elementos de outras 2 medida que a classe que elas representam — isto é o fundamento material dda qual so emanacio teérica, ou, em outras palavras, a parte objetiva da qual sfio a expresso subjetiva — afitma-se poli- tica e socialmente. A classe operdria s6 consegue que a sua ideologia atinja outras camadas e classes 2 medida que se desenvolve, quer do ponto de vista de quantidade, quer do ponto de vista de tomada de consciéncia, Essa fungdio das ideologias levou Hans Freyer a afirmar que s6 sabe algo socio- Togicamente quem quer algo socialmente (°). © quadro do pensamento social no Brasil, na época de Euclides da Cunha, nfo espelhava nenhuma influéncia pro- funda do marxismo, Era impossfvel que a intelligentsia bra- sileira, sem sofret nenhum impacto politico da classe operdria, © aceitasse independentemente das praxis social, 0 que seria tentar colocar o conhecimento nas nuvens. A classe operéria brasileira saira, havia pouco tempo, da escravidio, O desen- volvimento econémico do Pafs, embora tendo se intensificado fa partir da segunda década do século XIX, no possufa con- digdes que proporcionassem 0 desenvolvimento do marxismo entre a intelectualidade, quer pela propria formacéo da mes- ma, oriunda de uma burguesia fraca e conciliadora, quer pela hheranga cultural que carregava, fortemente injetada de teorias que se formavam na Europa procurando combater 0 marxis- mo. O préprio Buclides da Cunha, mesmo conhecendo o marxismo como corrente de opiniéo, nfo podia aceitar essa teoria como weltanschawung. © Brasil do século XIX herdara — do ponto de vista fi- los6fico — a heranga que as lutas pela independéncia haviam 13 Obrigado a nossa intelligentsia a teorizar. © que foi muito pouco. Sofremos a influéncia rala dos enciclopedistas france- ses, conhecidos de citiva, pela rama, vendo-se-lhes smente 0 Jado politico das obras (1°). Essa influéneia foi substitufda posteriormente pelo ecletismo de Cousin, exatament naquela fase de fastigio patriarcal que caracterizou o segundo reina- do (4). As indagagées dos estudiosos que desejavam um instru- ‘mento conceptual para explicar ¢ ao mesmo tempo transformar a realidade nada encontravam aqui teorizado. Para expres- sar 0 processo emergente da tentativa de tomada de conscién- cia social recorriam as teorias e hipdteses que cram elabora- das na Europa. Desta forma, nés vemos um Silvio Romero Tecorrer-se da escola de Le Play, Manoel Bonfim do organicis- mo e Tobias Barreto do pensamento germinico quando pro- curavam interpretar, compreender ¢ tirar ilagdes praticas da situagdo brasileira. “Mesmo um estudioso como Nina Rodri- gues, que procurou — através de pesquisas originais — fazer uma anélise da heranca do negro, concluin que éle nao tinha capacidade, por questées biolégicas, de compreender as abs- tragées do cristianismo (17). A mentalidade dessa intelectualidade que procurava con- traditdriamente uma solucéo para os problemas nacionais esta- va limitada no seu campo de conhecimento pela faixa de pre- conceitos e interésses que o racismo representava como ideolo- gia. As metropoles conseguiam, assim, de qualquer maneira, atirar sobre as colénias e paises subdesenvolvidos o estigma da inferioridade congénita, inapelével. Na Europa, o problema da Antropologia j4 surgia com matizes nitidos de escamoteagio. © racismo aparecia, por- tanto, pintado de céres cientificas; embora os antropélogos da época tivessem trazido contribuigdes parciais para 0 desenvol- vimento dessa disciplina, suas conchusées, frégeis e inconsis- tentes, desempenhavam um papel: justificar 0 dominio que os povos “superiores” exerciam sObie 0s “inf No entanto, os nossos pensadores da mesma época, a0 se valerem dessas teorias tinham objetivos muito diferentes. De- sejavam explicacéo cientifica de uma série de problemas. Mas a formacio de classes e camadas sociais aqui se processara em ritmo muito acelerado, nfo se formara uma crosta tedrica que 4 enquadrasse, dentro de uma sistemética, ésses problemas, préprio Evclides da Cunha assim pensava e escreveu que “as novas correntes, forgas conjugadas de todos os principios e de tddas as escolas — do comtismo ortodoxo ao positivismo desafogado de Littré, das conclusées restritas de Darwin as generalizagBes ousadas de Spencer — 0 que trouxeram, de fato, nfo foram principios abstratos, ou leis incompreensfveis A grande maioria, mas as grandes conquistas liberais do nosso século” (38), | Outros escritores — como é 0 caso de Tobias Barreto — ao se colocarem tedricamente contra o positivismo tinham em mira, muitas vézes, do ponto de vista prético, os mesmos objetivos dos comtistas. Em um ensaio por muitos titulos interessante, Ant6nio Paim mostra como 0 autor do “Discurso em Mangas de Camisa”, ao colocar-se ao lado do germanismo, Procurou, 20 mesmo tempo, ligé-lo A nossa realidade, nacio- nalizando-o por assim dizer (*), Dentro do caudal composto pelos interésses da intelectua- lidade que desejava compreender os problemas estruturais da sociedade brasileira, as escolas, teorias, métodos e principios se confundiam, entremesclavam-se e muitas vézes se com- batiam. Faltava, ainda, como alifs ainda falta até hoje & maio- tia da nossa intelligentsia, uma visio que refletisse 0 nosso ser € nio fésse apenas transbordamento ideolégico das metrépoles nos paises de economia periférica, © conhecimento da problemética nacional, mesmo dentro dos quadros da intelectualidade burguesa, estava empanado por um reflexo nio apenas intelectual, mas estrutural, isto é, econdmico, politico e ideolégico, que a nossa situacao colonial absorvia sem filtrar. Dobravam-se assim s6bre 0 complexo co- Jonial aquéles que procuravam, nfo apenas analisar mas, tam- bém, resolver os nossos problemas. Tavares Bastos, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Manoel Bonfim, Tobias Barreto © os demais sofriam a pressdo de cima para baixo, que advinha da nossa situacdo de semicolénia e, mesmo procurando reagit em face da situacdo objetiva a que se encontravam expostos, nfo chegavam a uma compreensio global do problema nem mesmo do ponto de vista de autoconsciéncia burguesa. A transplantaco de idéias, teorias, hipdteses ou argumes tos de uma sociedade para outra determina o seu enquadramen- is to dentro de uma constela¢do sociolégica inteiramente nova, e conseqiientemente exige que clas desempenhem uma funcao diversa da origindria. & que as idéias nao sfo independentes do contexto social de onde emergem © sempre exercem um Papel especifico de acérdo com as necessidades das classes sociais que delas se aproveitam. Daf Manncheim afirmar — a0 enquadrar © problema do conhecimento — que a “pro- pria autoconsciéncia no surge da mera contemplagio, mas sdmente através de nossas lutas com o mundo, isto é, no de- correr do proceso em que pela primeira vez nos tormamos conscientes de nds mesmos” (18), Essa pritica social exige, como & ébvio, no campo teéri- co, prinefpios que sintetizem essa situacd0 teal e, a0 mesmo tempo, dinamizem a realidade. Essa necessidade de dinami- zagio, que nasce do conhecimento da necessidade de mudanca social, levou os pensadores brasileiros da época de Euclides da Cunha a um trabalho de assimilacio de autores que também plasmaram suas teorias num processo dinfmico de transfor- macio. Mas, como essa transformago € bipolar, éles no com- preenderam que estavam usando os elementos conceptuais da classe que se expandia sbbre os povos subdesenvolvidos, 20 Procurarem defender a soberania nacional. O que era uma contradigio ¢ néo fazia sentido. Foi a pritica que levou ésses estudiosos a usarem elementos tedricos dos autores de pafses capitalistas desenvolvidos para explicarem aspectos da nossa realidade semicolonial, Mas, a propria necessidade social que os impelia a essa atitude analitica levou-os, por outro lado, a conclusdes que se chocam frontalmente com os interésses ¢ os postulados teéricos désses idedlogos alienigenas, fato que é inexplicével se no atentarmos na marcha contraditéria do fe- némeno, A ideologia colonialista que ésses autores hauriram dei xando-os sem visio realista de andlise, dobrados — como jé dissemos — sébre 0 complexo colonial, nfio impediu, no entan- to, que, em determinados momentos, fossem também atingidos pela realidade objetiva, pelos fatos, emitissem conceitos que condiziam com a necessidade de sua época, do ponto de vista nacional, A influéncia de Spencer sObre Euclides da Cunha — conforme analisaremos posteriormente — € uma 16 I contradicfio para quem, como éle, desejava resolver os proble- mas existentes do ponto de vista de uma maior afirmagao na- cional, se nao levarmos em conta os aspectos acima enun- ciados. Nao se pode, portanto, fazer um ajuizado realista das obras désses autores através de simples paralelos mecinicos € sem consisténcia mais profunda. As chamadas influéncias nfo se cifram apenas as de leituras de autores estrangeiros, mas configuram todo um conjunto de subordinago do Brasil como nacio, subordinacio que decorr, em ltima instincia, da nossa situago econémica. Deveios, portanto, ver situacdes reais e necessidades reais de uma sociedade em transformagio: © pensamento do- minante que dat decorre é conseqiigncia de uma estrutura de- terminada e corresponde as necessidades das classes que estio no cimo da pirtmide social. Essas influéncias sio, portanto, concordancias, vinculos ideol6gicos que ligam a cartilagem dos interésses materiais das metrépoles A subservigncia da inte- lectualidade alienada dos paises subdesenvolvidos (2°). 2 Podemos ver, grosso modo, quatro fases fundamentais e marcantes da evolugio do pensamento de Euclides da Cunha, sem que isto implique uma separacio estanque entre elas ou a impressdo de que essas fases se processaram sem contradi- gGes profundas. O que seria absurdo, principalmente em se tratando de Euclides da Cunha, um dos pensadores mais con- tradit6rios da cultura brasileira, conforme procuraremos de- monstrar. Destacamos essas fases, portanto, como sendo 0 Jado dominante no seu sentido tipico, sem que aceitemos a Possibilidade de uma posicéo consciente de Euclides da Cunha em relagio as mesmas. © que acontecen foi, pelo contrétio, uma evolucio inconsciente, ditada, entre outras coisas, pela sua imensa curiosidade intelectual, mas, principalmente, pela evolucio da situagéo social, cultura ¢ politica do Brasil, Sobre Este aspect voltaremos a insistir, ‘Vejamos, portanto, quais as fases que julgamos nodais no processo de desenvolvimento do pensamento de Euclides da Cunha: 7 1) Da Escola Militar Aida a Canudos. Caracteriza-se por uma predominincia acentuada do positivismo comtiano © do spencerianis- ‘mo, com alguma influéncia dos socialistas utépicos; 2) Da ida a Bahia (Salvador), para assistir, como correspon dente de guerra, a luta de Canudos, até sua chegada a0 local, per- mantncia e regresso, fase que se caracteriza por uma posigfo critica A ortodoxia republicana, Predomfnio dos fatos sGbre as teorias que abragava; 3) Do regresso de Canudos & elaborapio de “Os Sertdes”. Nes- sa fase, Ruclides da Cunha, jf distante dos fatos, procurou Iastrear (© seu pensamento com teorias em voga na época, que em nada o ajudaram a compreender ¢ interpretar a csséncia do problema que le presenciara no interior baiano. Preponderfincia do racismo no sou pensamento, Retrovesso ideolégico. 4) Da publicagio de “O Series” ao seu concurso de Légica. Tentou uma revisio mais profunda de suas posicSes teéricas, procu- rando, através de uma atitude eminentemente critica, descobrir novos postulados ideolégicos e metodolégicos para interpretar a realidade brasileira, Impulsionado pela nossa realidade, mas travado pelas cor- rentes de pensamento em voga no seu tempo, correntes que cram difundidas antes de uma digestio maior pelos membros da nossa intelligenssia, Buclides da Cunha — sempre torturado por essa realidade — no conseguiu, todavia, uma conceituacio autoconsciente da realidade brasileira, mas, por outro lado, no caiu em uma alienacao total, completa, da nossa proble- mitica social. Para explicarmos esta meia-posicio de Buclides da Cunha devemos ver — para que a visio nfo fique deformada ou incompleta, conforme j4 acentuamos linhas acima: o tempo fem que éle escreveu; as correntes de pensamento dominantes; como se comportava a nossa intelligentsia; as influéncias pon- deréveis da “ciéncia” colonialista; o grau de penetracio do ra- cismo ¢ a propria insuficiéncia da nossa intelectualidade pros- trada ante 0 complexo colonial. Era a época em que Machado de Assis, ao referir-se 20 drama de Canudos, fazia humor — trégico humor por sinal — e protestava contra 0 fato de nio terem os sabres da poli- 18 cia resolvido antecipadamente 0 problema que perturbava a trangiliidade republicana (#"). poca em que Rui Barbosa, incontestivelmente uma grande voz liberal, no tinha coragem, oportunidade ou suficiente amadurecimento politico para pro- nunciar no Senado o discurso que escreveu em defesa dos cam- Poneses assassinados pelo Exército (18). Enclides da Cunha foi o tinico que — dentro das redomas ideol6gicas limitadas que possufa, mas muitas vézes reagindo sobre clas — uniu o seu destino de escritor ao dos campone- ses insubmissos. E ao mesmo tempo deu 20 seu livro monu- mental um sentido participante, elevado, dando exemplo de qual é a funcio social do escritor. Com muito acérto diz Gilberto Freyre que “era o tempo em que 0 velho Machado, escondendo-se por tras de persona- gens sempre brancos, ioids sempre finos, se fazia adivinhar no umour dos seus romances — talvez os mais profundos que 4 se escreveram na Ifngua portuguésa — quase um inglés ttistonho desgarrado nos trépicos, embora resignado a dogura da vida suburbana de ché com torrada, partida de gamao e modinhas ao piano, nos sobrados velhos e nas chécaras cheias de escravos ¢ de Arvores do Rio de Janeiro de D. Pedro II. © tempo em que Joaquim Nabuco, ao retratar-se menino fidalgo da casa-grande de Massangana, em paginas de saudade profundamente viril, que hio de ficar para sempre em nossa literatura, arredava da vista do Jeitor, com um pudor de mo- ta da época vietoriana, o que parece mais cruamente bra- sileiro, 36 faltando fantasiar as jaqueiras exuberantes e quase obscenias de Pernambuco de olmos ascéticos de algum recanto do norte, no do Brasil, mas da Inglaterra. O tempo de Coe- Tho Neto, de Olavo Bilac, do Doutor Francisco de Castro, de B. Lopes, de Domicio da Gama, de Alphonsus de Guimaraens, da estréia de Afrinio Peixoto, dos primeiros triunfos de Graca ‘Aranha. © tempo em que Afonso Arinos, descrevendo cenas dos sertdes mineiros, nao conseguiu se identificar com os aspec- tos mais antieuropeus da paisagem e da vida sertanejas, per- manecendo diante delas o mesmo simpatizante que Eduardo Prado ou o Visconde de Taunay (2°). Isto no plano meramente literSrio, sem falarmos no poli tico. © que existia, portanto, na época de Euclides da Cunha era 0 matasmo enervante, A apatia. O conformismo pés- 19 jrepublicano. © cosmopolitismo snob. As acomodasdes. Marasmo, apatia © acomodacbes jnteiramente opostos ao’ soy temperamento (%). Silvio Romero que, alids, saudou Bucli- Ges ‘da Cunha em discurso nada académico, quando do seu ingresso na Academia Brasileira de Letras, referiu-se 20 estor. $0 negativo de reformar pelas cimathas a’ que aludita o autor de “Os Sertdes”, © da ameaca dos miliondtios alienigenas se apoderarem “diretamente da producio das fazendas” (1), Ao invés dos deslumbramentos que desejavam os esc fores de punhos de renda, Euclides queria o cip6, a terra, os tios, 0 carrascal, as sécas, os igarapés © as porcrocas, o dure Percorrer da nossa geografia para melhor captar as condigées sociais do homem brasileiro (22). (ach importineia de “Os Sertdes” como fonte de informagées Sobservasées sociolésicas, numerosas vézes elogiads, ‘algunas wines Ssbogada, nunca foi, até agora, examinada com a atencio. que m oles merece. Niio escapa Buclides’ da Cunha ao destin de miltos coke fores cientistas afamados: 0 de ser continuamente glorificade ¢ se. ramente estudado, Em parte, explica-se tse descuido pelo ritmo do desenvolvimen« econdmico do ‘pais. A incorporagio do sertio A esfera da ere, frig moderna nfo se processou com a rapidez necesstria (neste tomo E 2 se enganara), para tormar a investigagdo ‘dessa brasileiro tarefa urgente, nem tornila sequer ‘uma Guest de futuro préximo, Existiam muitos outros. probleme, ema Parte realmente, em parte aparentemente mais urgentes pars” pals © por isso mesmo para a ciéncia, além do problema dos sortGse fer finquos do Nordeste. Daf uma ‘certa falta de atualidade pritice ay ivro que parecia representar para muitos apenas um precios. dos mento literério e estético. Algm disso, o génio de Buclides da Cunha Fea OM Us agudeza excepcional de’ observacdo e intuiclo secre, fica deveras surpreendente — constituiu também um obstéculo. tec 2 valerizasio imediata da obra em proveito da Sociolonia, Doves nossa ciéncia desenvolver a sua nomenclatura, devia passat male do Juma geragfo de. cientistas socials brasileiros’ para “escobrit™ ves ‘mente a relevincia sociolégica da obra-prima de Euclides de Cunhy (ficler, Frederico: — “Canudos, simbolo de um confito cultura” ‘in “Sociologia”, Vol. IV, n° 3, 1942, p. 239) £2), “Excluase, portanto, da ‘admiragio por Os Sertées, a Impresso errénea de estarmos diante de uma obra clentifice ete leamento ¢ falso, essa interpretacio € idlota, essa apreciagio 61, fantil” (Freire, Dorian Jorge: A Margem de'“Os Sertoss"= x we sista Brasiliense”, n.° 24, p. 100), O autor do artigo continua Zendo consideragoes disparatadas ¢ horizontais, afirmando ue “ia slides jamais cantaria os motivos de José de “Atencar, come» ca. 20 Tense nunca conseguitia entender aquilo que aos olhos de Euclides sausou impressio ‘marcante", esquecendo-se que a obra de José te Alencar no 6 apenas *O’ Guarani", “mas também “O ‘Sertanejos ue retrain o mesmo tipo visto por Eucides, © “O Gaichs' ntere lum dos tipos regionais descritos pelo autor de “Os Ssrtoee™ hiuda sobre o regime semifeudel, a economia semifeudal, com 2, datiftindio esmagando os camponeses", diz. adlante Dorian’ Jenne quando Euelides da Cunha foi ‘um dos primeiros, senio'o » & chamar as relagSes sociais no campo, em nOsso pals’ de

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