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EM BUSCA DO MITO EM BUSCA DO MITO “As secregées das palavras na poesia do mito” “dado que nao mais penso da "realidade” como realidade, teria eu alguma razéo de pensar do sonho como sonho? (-.) esperados, aguardados os héspedes nunca vieram & minha cabana na montana ~ a jé agora com genial solidao sem a qual viver odiaria” Saigyo (apao, sec. Xi “Poemas da cabana montannesa’) Uma concepsao ancestral entre os ioruba nos diz dos segredos que se escondem no corpo. Gayatri nos avisatia que seria bom delxa-los descansar em siléncio. Para qué acordar um tigre? Mas, a personagem apaixonante de Mircea Eliade em seu romance ‘Noites de Bengali’ (quase autobiografico), também nao resiste em manter o tigre adormecido. Sua "alma tigrada” (expressao de Durand), mestiga, acorda com os arrepios da pele - epigrate do texto corporal - quando tocada pelos dedos do desejo. Dedos do ovidental professor de francés. Eros que se reveste da impulso da vida. Aqui, quando os segredos escapam do corpo, transbordam e inundam nosso sensivel... so as maos pequenas de um cupido ou as flechas do grandalhao Kamal (na paisagem hindustani) que nos artebatam com as explosdes da descoberta de um mundo outro: mundo revelado no exterior e nutrido pela re- EM BUSCA DO MITO descoberta do mundo interior. Ainda permanecemos nos mares de uma velha gnose. Que sentido teria o conhecimento, se nao conhecimento de si mesmo mediado pelo Outro? Ainda que sob os riscos de um Ulisses soberbo de sua asticia a penar 30 anos perdido no oceano até voltar a Itaca e sua Penélope tecela. Empreendemos ainda a mesma viagem, os mesmos riscos, as mesmas tentativas, a mesma saudade... Lig&o aprendida (ou quase) no vapor barato dos séculos... lembrando nosso grande poeta baiano, Wall Salomao: “vou descendo por todas as ruas, e vou pegar aquele velho navio..." Todas as ruas aqui trafegam na mitohermenéutica saudavel que vai descendo a desembocar no velno navio vapor barato do mito, a nos auxiliar na jornada de nés mesmos nos mares possiveis da existéncia. Uma mitodologia, diria o mestre Gilbert Durand, que a desdobra em uma mitocritica e uma mitanélise (ferramentas indispensaveis de uma mitohermenéutica lastreada na hermenéutica simbdlica), todas “em busca do mito”. O amigo, Rogério de Almeida, nos fornece, num texto simples e “quase” didatico, as complexes chaves de um ‘passo-a-passo” generoso para os estudantes de vide inteira que se aproximam as investigagdes do imaginario. Didatico? talvez, nao fosse sua concepgao tragica de esctita e a poesia a pervagar-Ine os argumentos na excelente companhia do infante Fernando Pessoa Sim, somos, ao mesmo tempo, a princesa adommecida que, sob os ventos hermesianos da concillagao dos contrarios, espera a nds mesmos para “des-pertar’ com 0 beijo, quase-dsculo profano-sagrado da celebragao-desejo de vida, na aceitagao dela mesma, e portanto, tendo a morte por noiva e companheira... Quem I C EM BUSCA DO MITO nao lembraria 0 poema-panfleto de Edgar Allan Poe, “Annabel Lee”, num reino 20 pé-do-mar, sob 0 marulho do mar, velar minha amada e noiva, gelada pela morte imposta pelo ciume dos anjos do céu ¢ dos deménios do © mar ao amor devotado, “a pequena que eu soube amar". |" Neste mesmo reino ao pé-do-mar, rio oceano primordial, singra uma barca com o ritmo, 0 pulso, a cadéncia sob a musica oceanica, possibilitado pela ‘harmonia”, atadura de madeira que junta os cascos da barca, E pelas m&os serenas de um carpinteiro habil meticuloso, Guilherme Mirage Umeda, que temos 0 texto seguinte a nos envolver na sua "musica sonora’. Novamente, 0 meu jubilo junto a estes autores, pensadores e poetas que aqui tento prefaciar. A alegria de ter sido cumplice ao “orienta Guilherme em sua tese de doutoramento, “Educaggo na linguagem da Anima: diélogos ontoldgicos. com a miisica’, de cujas investigagées, reflexdes e inguietagdes saem parte deste primoroso texto. Ele proprio em seus exercicios de carpintaria, na paixao comum que mantemos pela madeira € polas arvores; mas também pianista, soube nos conduzir de maneira poética e rigorosa aa universo mitico da musica e a0 Universo musical do mito. Muito bem acompanhado pelos pensadores que convoca para seu quarteto de camara: Durand, Merleau-Ponty, Bachelard e Campbell; num exercicio mitohermenéutico de desvelar e velar 2 mousiké que nos propicia, a partir do arrebatamento em térprete ou ouvinte, a entrada em tempo/espago outro. lllud tempus, diria 0 mestre Mircea Eliade. O tempo primordial do espago que se cosmologiza no processo mitopoiético de avangar 0 caos. Inauguragao. Guilherme nos mostra (ou nos musicaliza?) como a insisténcia metodolégica e “fenomenotécnica’ de Bachelard, seguida por seu discipulo fiel, Gilbert Durand, € EM BUSCA DO MITO EM BUSCA DO MITO existéncia, entre intérprete e ouvinte, possivel mestre € possivel discipulo, pessoas. Por isso, o mestre-carpinteiro, Guilherme nos sugere poaticamente: “estagdo e encruzilhada séo pura passagem, como também o é a musica que me habita, mas que efémera logo se esvai, hermesiana, deixando para tras nao uma ideia, mas um sentido”. ( sentido de uma lagrima que nao cai, entregue & musica, nos aumenta o desejo de aprofundar as vestigagdes que so coroadas de juibilo e de dor, no outro exemplo mitohermenéutico magnifico ¢ pranteado das grandes amigas, Eunice Simées Lins Gomes e Leyla Thays Brito da Silva. importante: no ceder ao carater estatico da classificagao das imagens pela sua forma; mas, em seu “estruturalismo figurativo", partir da figuracéo, para poder “configurar’ e. numa fantastica transcendental, poder “transfigurar’. Ou numa expressao mais simples - como nos indica também a corporeidade - devemos nos preocupar é com o movimento das imagens. Diria Cassirer, néo nos preocuparmos nem tanto com sua forma, mas com sua forca. Esta cinematica das imagens que nos permite melhor compreender a dinamica da narrativa mitica. E Guilherme, participe de um regime crepuscular, regido limitrofe dos entremeios, dos transitos ¢ dos peregrinos, sob @ conjungéo contraditéria entre sol e lua, noite e dia, ele mesmo afirma a divisa . poética € investigativa: “clareia sem iluminar, brilha sem © prantear feminino no ritual finebre, apoiado no ofuscar’. E 0 mesmo movimento que guarda em seu bojo Pedro apécrifo, nao apenas nos fornece elementos cinestésico, a origem musical do mito muito antes de se importantes para a compreensao do rico manancial do gravar em palavras: o canto. cristianismo ainda velado pelos catolicismos dogmaticos, Tanto em sua acepgao de estilo melddico como em | como nos guia pelo universo liquide das lagrimas. sua acepgdo de rincdo natal, lugar de origem. Entre a voz e Resisténcia e amor devotado, o desejo de ungir 0 a tera, 0 encontro reciproco e engendramento das | corpo do Amado no sepuloro que se revela vazio, E destinagdes. O movimento que se transforma em ritmo, sortindo, 0 Mestre pergunta “Mulher, por que choras?” ou base pulsatil da vida, marulho oceanico a rebentar a beira- | ainda na vulgata mais conhecida: “Por que procurals os mar, sempre em espumas diferentes e sempre iguais, a | — vivos entre os mortos?’ oportunidade do encontro com as ocednides, as sirenas, as ‘Complexa rede simbélica, coicha de retalhos miticos ondinas... Animas para um ser das Aguas devotado & | e fuxicos de pregnancias simbélicas, as lagrimas estéo vertigem. Como nos lembra Bachelard, a dor das aguas é | entre estes segredos liquidos que se escondem no corpo & uma dor infinita, Diz 0 proprio Guilherme: “Os olhos | — somente vém a tona, a ser compartilhado com aqueles que preparam uma lagrima que nao cai. Estou entregue a0 | se ama, no transbordamento dos sentimentos, éxtase tempo da miisica”. mistico, dor da saudade, desejo lancinante que galopa & Mas, 0 tragico (como aceitagéo mesma da vida, em _beira-mar da consciéncia de incompletude. ; seu carater mitico) € que se trata, precisamente, neste Eunice e Leyla, sempre rigorosas e sensiveis, encontro possivel e fortuito, sincronia imprevisivel, a “ligao munidas das ferramentas tedricas de um rico manancial pedagégica mais importante: a possibilidade de um mitohermenéutico, nos pinta, quadro a quadro - ou para ser encontro, na harmonia-presilha da nau no mar da i 10 i EM BUSCA DO MITO mais rigoroso - nos borda, as cenas miticas de um processo profundo de renascimento. Me lembra um desenho singelo e belissimo de Mario de-Andrade, na famosa Missdo de Pesquisas Folciéricas (1938), hoje no acervo do /EB - Instituto de Estudos Brasileiros (USP); em que o mestre retrata duas carpideiras. O trago singelo (quase que em estilo japonés sumi-6 - poucos tragos que contém o todo representado sob 0 pincel que nao admite retoques, num Unico golpe sobre o papel) do coro das duas carpidelras ¢ completamente isomérfico de duas lagrimas caindo.... O pranto € ele mesmo, sinénimo do corpo que se curva sobre o amado... fora das censuras do poder instituido (império romano ou globalizagao) poder ungir 0 corpo do mestre e cumprir com o funeral que Ihe abre as portas do renascimento em nosso proprio caminhar e britho do olhar. Mas, a surpresa na pedra que jA ndo bloqueia o sepulcro e 0 vazio a inquietar 0 coragao que se devota, se insinua em desespero até que se reconhece o mestre. Ele ja ressuscitou antes de ser regado pelas lagrimas do feminino. Utero ambulante, 0 mestre se fecunda ¢ renasce. A princesa mesma que dormia. Anima que, desvencilhada das amarras da racionalidade instrumental, de um academicismo estéril, das repetigdes estruturais de uma critica escolar, emerge do velho mar a nos guiar a jornada. Companheira, amante e sabia... é a érvore de cuja sombra nos abrigamos para ouvir a palavra que secreta a poesia do mito. EM BUSCA DO MITO ‘Nao procure seguir no encalgo dos homens da antiguidade; procure o que eles procuraram (Go-Toba, imperador japonés, sec. XI!) Prof. Dr. Marcos FERREIRA-SANTOS professor de mitologia, USP 13 OCurso de Graduagéo em Recut ce recat Res iCmr cmc rancia, ATi tate etc ele as eh Ceceeniee te oneness WS Caceres ges ones Cite UEC see ec elmer oN clears tcf Peles eee eel tet Peon mkeduc ace) cium ceetece “conhecendo, aprender a respeitar os dife

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