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: : - : Capitulo ORIGENS E CONSTITUIGAO CIENTIFICA DA‘CULTURA PauLo César ALVES" ( * Avida éemsi mesmae sempre um naufrigio. Naufragar nao é afogar-se. O pobre ser humano, sentindo-se submergir no abismo, agita os bragos para se manier é tond. Essa agitacdo dos bracos com que reage ante sua prépria perdicao é a cultura ~ um movimento natatério. Quando a cultura ndo € mais do que isso, cumpre seu sentido” ¢.0 humano ascende do proprio abismo. Mas dez séculos de continuidade cultural trazem consigo, entre nido poucas vantagens, o grande inconveniente de que o homem se cré seguro, perde a emogao do naufrdgio esua cultura vai se. carregando de obra pa- rasitdriae linfética, Por isso tem que sobreviver alguma descontinyidade que renove ino homem o sentimento de perdicao, substancia de sua vida. E ‘preciso que falhem ao ‘seu redor todos os instrumentos flutuadores, que ndo tenha onde agarrar-se. Entdo, seus bracos voltardo a agitar-se salvadoramente. : Ortega y Gasset Sociologia da Universidade Federal da Bahia, \duagdo em Cultura e Sociedade e Programa jordenador do Niicleo Professor Titular do Departamento de Programa Multidisciplinar de Pés-Gra de Pés-Graduagao em Ciéncias Sociais. Bolsista do CNPq. Co de Estudos em Ciencias Sociais, Ambiente ¢ ‘Satide (UFBA) 21 Cultura: miltiplaslelturas INTRODUGAO ‘ O presente capitulo tem por objetivo desenvolver uma pequena intro. dugioaum importante e complexo conceito: o de cultura. O propésito é ‘apre. sentar algumas questdes gerais que a tradicao e as ciéncias sociais colocam quando discutem 0 significado do termo “cultura”. Destinado prioritariamen. te a um piblico que se inicia nos meandros dos estudos sobre essa temitica, © texto.é abrangente, de facil leitura e nao elabora maiores detalhes no trata- mento dos tépicos apresentados. Para um leitor interessado em se aprofundar no assunto, apresentamos no decorrer do texto uma lista de sugest6es para leituras complementares, Para tornar a bibliografia ainda mais acessive, tive- mos 0 cuidado de reduzir as citagdes em lingua estrangeira, priorizando textos de edigdes brasileiras. Embora carregada ‘de certa ambiguidade e generalidade, “cultura” 6 um termo amplamente utilizado a partir do século XVIII para-denominar,em uma acepgao extremamente geral, tudo aquilo que ¢ feito pelo homem_e.que é transmitido de uma geracio aoutra. a paletra anne é »ém_é aplicada a diversas icional, cultura ee alta ee subcultura, cultura da Idade Média etc.). Nas ciéncias sociais, esse vocébulo apresenta uma variedade, de significados, podend® designar tanto 0 conjunto de valores qui a condigio humana qui do da identidade naci de diferentes grupos sociais. Ha certos fios condutores que so comunis aos di- ‘Versos significados de cultura ou devemos tratar esse conceito como um mosai- co nao relacionado de significagdes? Afinal, como é possivel classificar diversos ‘produtos da “cultura”, como a religiio, a arte, a ciéncia, os costumes, as institui- bes politicas e sociais? Estabelecer um denominador comum a todas elas é uma tarefa drdua, pois, entre outros.aspectos, as premissas usualmente utilizadas para caracterizar o significado de cultura estao fundamentadas em pressupostos filo- sOficos que se diferenciam entre si, tanto em’ aspectos. ontoldgicos como episte- molégicos ou metodolégicos. Para alguns pensadores, nao haveria uma unidade subjacente As diversas conceituag6es do termo cultura: Para outrds, somente por uma “sintese filoséfica” seria possivel reduzi-las a um denominador comum: 0 de ser um “sistema simbélico”. Para 0 filésofo alemio Ernst Cassirer (1992) — {assim como para a grande maioria dos estudiosos da questio — o “simbolism0” 22 Origens e consttuigdo cientiica da cultura seria 0 componente fundamental da cultura, o “universo” pelo qual a realidade propriamente humana se diferencia da sua base biolégica’. ‘ ‘Tendo em vista a massa de definiges atribuidas.ao conceito de cultura, qualquer tentativa de sintese pode correr 0 risco de grave simplificagao. Assim, o presente texto nao procura reduzir esse termo a um nuimero limitado de significados ¢ tampouco agrupar as virias definig&es em categorias exclusivas. presente trabalho’ recorre & constituicao histérica desse conceito, apresen- tando de forma sintética os seus significados, desde as origens gregas até & formulagio cientifica atual’, "AS GRANDES, LINHAS INTERPRETATIVAS NA'HISTORIA DO SIGNIFICADO DE “CULTUTRA” Embora a palavra “cultura”, tal como a entendemos atualmente, tenha sido criagao do século XVIII, o seu significado é antigo. Etimologicamente, vem do latim “colere”, que significa 0 cuidado dispensado ao campo, ao gado, a0 “cul- tivo agricola”. Dentro dessa concepcéo seméntica, 0 termo “cultura” designa, até o século XIII, um estado da terra cultivada (algo, portanto, que ja est4 dado) ‘para, aos poucos, passar a se referir & agdo de cultivar a terra (algo que esta em processo). Nos fins do século XVI, comegam a aparecer algumas mudancas se- manticas do termo. Cultura alarga o seu significado e passa a ser usada pata se 2 A redugdo do universo cultural exclusivamente a um sistema simbélico tem sido atualmente objeto de ampla discussio (Ingold, 1996, 2006; Jackson, 2005; Weiner, 2001; Paris, 2002; Jonias, 2004).-Em vez de “ser cultural” (definigao que relega as condigdes biolégicas do humano a um lugar subotdinado), muitos estudiosos tém preferido utilizar expressdes do tipo “animal cultural” ou equivalentes, no sentido de indicar uma base mais ampla para compreender as miltiplas manifestagdes do humano, Nessa perspéctiva, a andlise do universo cultural nao fica restrita ao seu préprio Ambito, fechado em si mesmo, mas aparece como um fendmeno que man- tém estreitas relagées tanto com a infraestrutura biolégica do humano quanto 20 _seu contexto ecoldgico e demogréfico, Para uma discussio antropologica sobre a relagio entre cultura e natureza ver o texto de Elena Calvo-Gonzalez na presente coletanea. Ver também 0s artigos contidos nos dois primeiros volumes de “Nova antropologia: o homem em sua existencia biologica, social e cultural”, organizados por H.-G. Gadamer e P, Vogler (1977). , 3 Paraum estudo mais detalhado sobrea historia da palavra cultura, ver Bénéton (1975). 2B Cultura: milltplas letras referir a0 cultivo da lin It gua, da arte, das ciéncias. Nos meados do sécul com sentido ja bastante expandido, desi infOni ison pened Datta pany desigria o patrinfOnio universal dos conhe, Terry Eagleton observa que “colere” pode significar: ] qualquer coisa, desde cultivar ¢ habitar a adorar ¢ proteger. Seu signi de “habitar” evoluiu do latim colonus para o contemporineo “coloni aaa Mas‘colere também desemboca, via 0 latim cultus, no termo religioso “culto”, assim | como a prépria ida de cultura vem na Idade Moderna a colocar-s no lugar de um sentido desvanecente de divindade etranscendéncia(.). A cultura, entio, herds | maito imponente da autoridade religiose, mas também tem afnidades desconfr- téveis com ocupagao e invasicy e & entre esses dots pélos, positive negativo, que |, corte, nos das deo et locaizado, Cultura é uma dessas raras idéias que tm | sido tio essencias para a esquerda politica quanto vitals para a difeta que toma \ sua hist6ria social excepcionalmente confusa ‘eambivalente (2005, p. 10-11). “3 ‘A designacio grega para o cultivo espiritual do \dividuo, 9 de educa- gio ¢ formagio da personalidade e 0 produto intelectual de um povo era a de’ paideia'. Esse termo refere-se a capacidade ou poder individual de traduzir em qualidades pessoais os conhecimentos e valores transmitidos pela sociedade. Mais especificamente, paideia diz respeito ao esforco individual para se alcan- gar a virtude ou perfeicéo moral (areté)®. Cultura seria, portanto, educagio para se adquirir areté, a qual deveria ser iniciada na infancia, estimulando no ter humano o desejo de tornar-se um cidadio perfeito, Nessa perspectiva, « concepgao de paideia incita os individuos a se ocuparem consigo mesmos € a nao descurarem de si. Cultura, nesse sentido, adquire uma dimensio subjetiva, pois implica uma certa maneira do individuo estar’atento a “si mesmo” como - condigéo de obter a perfeicao moral. ° ie co contetido ¢ significado de paideia nao é sindnimo das modernas “civilizagao”, “cultura”, “tradigio” ou “educagio”. “Cada a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para terfamos de empregi-los todos de uma 4 Conforme Werner Jaeger, ‘expresses tum desses termos se limita abranger 0 campo total do conceito grego, 6 vex” (1989, p. 1)- 5 Conforme Jaeger, “..) aimportancia ‘dasua concepgao do lugar do individu + mos o povo grego sobre o fundo histori funda que os Gregos parecem fundir-se numa unidade com 0 tempos moderna. isso chega a0 ponto de podermos sem dificul. sare inka da liberdade e do individualismo modernos” (1989, P- 2. 1s como educadores deriva universal dos Grego: plar- 10 na sociedade. E, com efeito, se contem ico do antigo Oriente, a diferenca ¢ tio pro ‘mundo europeu dos Idade interpreti- 24 . Origens econstituigdocientifca da cultura _ Oconceito de paideia expressa algumas das mais importantes dimen- ses da sociedade grega, principalmente a partir do século V a.C.: a construgdo de um ideal de vida superior para os homens (ou, melhor, para determinados setores da populagio), a formagéo de uma polis democratica, a educacio se- gundo uma escala de valores e a pessoa humana como centro da reflexio. Cultura para o mundo classico greco-Jatino estava associada a um concei- toelevado de pessoa, alguém que impulsiona o espirito a se apropriar e realizar a verdadeira “beleza”, a mais alta perfeigio moral a que o individuo podia aspirar. Conforme Jaeger (1989), a expressio mais alta da educagio era dada pela forma aristocratica da espiritualizagio de um povo, na qual a virtude ou a perfeigao moral + atributo prdprio da nobreza de espirito — se identificava com o altru- ismo, a amizade e a honra a patria, Para Homero, a formagio do tipo ideal de homem surge do cultivo das qualidades que sio inerentes aos nobres ¢ herdis. Os ideais e as normas da cultura séo dados pelos mitos ¢ lendas histéricas. Nessa perspectiva, 0s aristocraticos e guerreiros Aquiles e Ulisses seriam modelos da perfeico moral. Homero extrai das narfagbes imagindrias o significado da vida, a origem do cosmo, os fundamentos para a legitimagio das leis e da autoridade 05 fundamentos morais que constituem a virtude humana. Lembremos que € dos mitos que surgem a literatura, a tragédia e a comédia gregas, fontes inesgo- taveis de saber e de cultura para os séculos posteriores. : £ importante chamar a atengao que a nogio de cultura entre os'gregos" nao se limitou aos ideais de uma sociedade aristocrdtica. Hesiodo, no seu livro 0s trabalhos e os dias, apresenta uma outra importante fonte da cultura. Para ele, o trabalho e a justica, transmitidos pela vida camponesa constituiriam a verdadeira areté (virtude) do ser humano. Nesse aspecto, a educagao popular, transmitida através de miiltiplas tradigdes, representaria os valores e normas fundamentais da cultura. Mas tanto na vertente “homérica” quanto na de He- siodo predomina uma dimensio prescritiva da cultura, isto é, um conjunto de regras, normas, principios morais e modelos de agio que indicam 0 modo pelo qual os individuos e coletividades devem se comportar. Assim, a tonica na definicao da cultura recai sobre os valores e modelos normativos existentes em uma dada tradigao (na meméria coletiva) que devem ser assimilados pelos individuos para que possam alcanar a formagio humanista. Nas concepgdes de Homero e Hesiodo, a ideia de um sujeito cultivado — portanto, aquele que tem,“cuidado de si mesmo” apresentando um estado 25 “tara: miltiplas leituras desejado de perfeicio moral — pressupde uma contrapartida: a dé quem nio Possui esses Ppredicados, aquele que carece dessa “nobreza”, 0 “pobre de espiri- to”, o “nao cultivado”. Nesse sentido, ambas privilegiam a capacidade criadora dos homens de espirito. Mesmo os sofistas que, ao longo do século V ac, acentuaram uma educagio voltada para a vida cotidiana, dando um caréter mais profissional-e especializado 4 formagdo do “cidadao” (techné), tinham como mira o enriquecimento do espirito humano (areté), a instrugao no do- minio politico e ético do homem enquanto membro da polis. _ A concepgio de paideia foi fundamental para que os gregos desenvol- vessem uma reflexio sobre a unidade e vinculo entre cultura espiritual (areté) ea cultura moral em seu sentido politico. Através dessa reflexdo, tocaram em questées relacionadas ao universalismo e a6 relativismo-no tratamento com “os outros”. O cada sociedade ou cultura, enquanfo um pensador como Aris- toteles procurava estabelecer semelhangas mais do.que diferengas entre grupos de pessoas. Sécrates considerava como uma missio politica a luta do homem para alcancar a liberdade interior em meio a um mundo dominado por forcas ameacadoras 4 condicéo humana. Para ele, a verdade, a moralidade e a justica —principios que se encontram por detras da ordem social — deviam funda- mentar toda a conduta do cidadao. O pensamento platénico levou ainda mais longe o ideal de uma,educacdo para a areté, vindo posteriormente a se tornar uma concepgao paradigmatica para a religido cristae 0 pensamento do hu- manismo renascentista. Plato, para quem as premissaé filos6ficas adquiriam uma dimensio educativa, partia do principio de que.o conhecimento da ver- dade era fundamentalmente um conhecimento para a conservacio e estrutu- racio da vida e nao apenas para resolver os enigmas do mundo, Platao buscava uma concep¢io comum do bem através de fundamentos racionais (embora nao desprezasse os costumes ancestrais). Por sua vez, Arist6teles preocupou-se em investigar as bases da boa acao e do bem supremo (em que um principio racional — logos — é exercido em harmonia com a exceléncia — areté). Para ele é necessdrio separar tudo aquilo que é naturalmente dado (e que tem base orginica), como as “paixdes” (emogées como amor, dio, alegria) e as “facul- dades” (capacidades humanas para experimentar as emocdes) da virtude, um estado de carter originado pelo ensino, pelos exercicios de casos ilustrativos e “bons habitos”. Ou seja, Arist6teles sustentava que os apetites e desejos siio fe- n6menos naturais que esto presentes em todos os seres humanos €, portanto, nao sio bons nem maus em si mesmos; as qualidades morais (virtudes) s6 se inaterializam na medida em qué sio moduladas por habitos apropriados. A avaliaco e o tratamento que os gregos faziam dos costumes, da lin- gua, da ocupagio, das instituigdes sociais e politicas de outros povos também estavam em grande medida subordinados aos ideais da areté. Herédoto é um exemplo marcante. Nas suas narrativas de viagem a varias partes da Asia Oci- dental e do Egito, esse historiador das Guerras Persas atribui, em determina- dos mlomentos, as distinges pessoais as questdes de diferencas.contextuais. Contudo, assim.como os demais gregos.interessados no “outro”.(como o ge- Ografo Estrabao), as descrigées dos costumes, dos habitos, das instituigdes so- ciais e econdmicas de outros povos sio marcadas usualmente por pressupostos etnocéntricos.e pelo desdém por tudo que é estrangeiro.-A tonica dominante eraa de caracterizar 0 outro como “moralmente deficiente”. Em sintese, o pensamento grego sobre educagao ja estabelecia alguns elenientos que caracterizam diversos aspectos das modernas discussdes sobre o significado de cultura, tais como: a) a modela¢o do homem de-acordo com * um padrao ideal preestabelecido; b) a formagio do individuo em relacao aos costumes considerados como imperativos (seja do mundo cortesao, seja do “homem simples”); c) a desigualdade e diferenca dos grupos humanos como consequéncia das diferengas dos valores espirituais (como a diferenca entre o “parbaro” e o “civilizado”). A paideia como cultivo do espirito humano impregnou também o mundo romano; Com os romanos, a educaco humana é inicialmente com: _parada com a agricultura. Para Cicero, assim como um campo sem cultivo é improdutivo, também a alma sem educagao nao da frutos. Parg ele, o cume do cultivo espiritual (cultura animi) é dado pela aquisigio da filosofia..Cultu- ra como cultivo do espirito refere-se a ideia de que para alcancar a perfeicao humana é necessdrio incorporar ao esforco individual um saber especifico. Ou seja, a “cultura animi” é 0 resultado da combinago da personalidade de um individuo (que nao quer permanecer em um estado de ignorancia) com a incorporagao de um patriménio tradicional do saber. Assim, por nio ter 0 cultivo intelectual e tampouco desejar “sair da ignorancia”, 0 “barbaro” nao possui “cultura”, Um coniponente essencial da cultura animi é promover a coesio daqueles que partilham os mesmos pressupostos espirituais e, como nem todos os homens alcangam as formas mais elevadas de cultivo, a cultura é um privilégio hierarquico de determinados estratos da populacio, Mas 9, romanos também desenvolveram uma outra concep¢ao mais.ampla de-cultins — cultus vitae — para designar‘as formas originais de vida (usos e Costumes) que distinguem uma sociedade da outra. O trabalho de Técito sobre as ttibos germanicas é um éxemplo. De nitido sabor antropoldgico, o termo “cultys nao é tao restrito como o de “cultura”. A Idade Média nao desenvolverd um conceito de cultura que ultrapasse de forma significativa a paideia grego-romana. Mantém a ideia de “espirityy. lidade”, de uma busca de praticas e experiéncias, tais como purificagao, asce. se, rentincia, como condigées para o aperfeigoamento do espirito. Portanto, um “cuidado de'si mesmo” como o prego pelo qual o individuo paga para ter acesso & graca.divina. Mas existem alguns elementos que se distinguem da concepgao classica. Em primeiro lugar, é importante salientar que a-clivagem cultural estava na separacio entre os clérigos e os laicos. Ou seja, ao passar a ser monopélio da Igreja, a cultura intelectual deixa de ser um fenémeno diretamente relacionado com questées de classe social ou de nobreza indivi- dual®, Em segundo lugar, a aquisicio do saber deixa de ser uma finalidadé em si mesma, tornando-se um meio para conhecer o sentido que Deus atribuia ao mundo e 4 existéncia humana. Nessa concep¢ao, 0 homem é visto.como pertencente a um todo, ao mundo entendido como cosmos criado e ordenado por Deus. Totalmente imerso nesse universo, cabe a0 homem contemplar a perfeicao das coisas criadas. eel : No final da Idade Média, a situagio religiosa tornou-se problemitica. A teologia comegou a perder o status que até entéo manteve; houve uma maior acentuagao das questées relacionadas 4 mistica;'as nagdes comegaram a se constituir, gerando um declinio do poder da Igreja; houve urn soerguimento do racionalismo e maior preocupagao com a descoberta da natureza. O Hu- manismo e o Renascimento terminaram por reviver 0 cultivo espiritual (deno- minado pelos escritores italianos renascentistas de “coltura”) e um processo de “secularizacao do saber”, Para Elias (1993), o desenvolviniento das convengdes Sociais, como o aumento do controle individual sobre a vida emocional (a re- Pressio das tentacdes e paixdes), assim como a luta pela aparéncia e prestigio ee : 6h ; ed fvada"’ Embora considerados como uma “elite cultivada”, os clérigos nao pertenciam ne- cessariamente as aristocracias “indigeno-romanas”. _ Origens econstituicdo cientifica da cultura « social e 0 retorno aos clissicos, foram fatores importantes para 6 soerguimen- to da ideia de cultivo espiritual do individuo. importante também lembrar que nos séculos XV e XVI desenvolveu- se a concepcao de individualismo. O cultivo da personalidade (a exaltagao do homem singular) era expresso na convicgao do valor intrinseco da pessoa e na nobreza do mérito pessoal. Em segundo, a importancia adquirida pela cidade, a qual traz o germe de uma nova cultura (atestada no estilo de vestir, nas for- mas do comportamento e do falar e nas relagées sociais). Junto com a corte de principes e altas dignidades eclesidsticas, a “cultura urbana” passa a ser grada- tivamente a medida pela qual sio avaliadas as demais manifestages humanas. ~ Ba forma de vida ideal que distancia o homem da natureza Fecal selvagem”, ; A partir do Renascimento, a relacao do homem com o cosmos adquire novas bases existenciais que diferem daquelas legadas pela Idade Média (JO- NAS, 2004). Até entdo concebido como um ser tragado pelo.universo organi- zado por Deus, no qual contempla a ériagdo divina, o homem renascentista sente-se como um ser “aparte” desse mundo’. E nesse momento histérico que se distingue a “mente divina” da “mente humana’; que o homem toma consci- éncia da sua ignorancia frente a um universo infinito e impenetravel (Nicolau de Cusa diré que a verdadeira filosofia é a docta ignorantia em que consiste ‘o mais alto saber)’. A natureza passa a ser considerada como dotada de uma 7 A ideia de uma “perda” de Deus significa fundamentalmente a importantissima mudanga de concepgao de Deus, em que a concepgio de que Deus estaria na base de todo conhecimento humano sobre o mundo cede lugar para uma outra, ina qual Deus é substituido pela razio humana e pela natureza. Com essa substituigéo, 0 ser humano nao contaré mais com a ideia de Deus para fundamentar 0 seu co- nhecimento sobre 0 mundo ¢ a natureza. Terd agora que buscar novas bases que possibilitem esse conhecimento. E, mais do que isso, provar que esse conhecimento é certo, capaz de desvendar o mundo exterior. Assim, na medida em que o homem se sente seguro em interpretar o mundo exterior, Deus ja nao é mais do seu maior interesse. Nessa perspectiva, o ser humano vé-se “separado” nao apenas de Deus como também da natureza, pois esta ultima nao Ihe é mais dada pela graga divina, mas parcialmente acessivel pela razio, A natureza é vista como infinitae nao total- mente penetravel pela razao humana, 8 Pascal explicita a solidao do ser humano’no universo da cosmologia moderna ao dizer: “Tragado pela amplidio infinita dos espagos, de que eu nada sei e que nada sabe de mim, eu estremego” (apud JONAS, 2004, p. 235). 29 dinamica propria (desconhecemos seus priricipios e causas tiltimas ¢ 8 mos contentar-nos em medir 0 curso dos fenédmenos’), e o conhecim, i natureza nao é mais dado pela contempla¢ao, mas por uma interrogaco truida (aprioristicamente) por uma hipétese e parcialmente confirma, da ee teriormente) pelo experimento"’. No século XVII, Descartes levaré a fete 0 mundo a um plano altamente filoséfico, quando afirma que a alucinagss engano dos sentidos ¢ 0s erros fazem com que nio seja mais possive sacha, menor seguran¢a neste mundo. Dispondo-se a pensar que tudo pode ser falso, conclui que somente:a existéncia da divida escaparia a falsidade (logo, o ey que pensa é algo verdadeiro). Assim, Descartes separa a realidade do sujeito pensante (res cogitans) do mundo (res extensa). Sao duas esferas da realidade que nao tém contato nem semelhanga alguma entre si. Em sintese, o objetivo . do conhecimento volta-se cada vez mais para fins praticos, para superar as ne- cessidades e misérias da humanidade, para aperfeicoar e administrar melhora vida humana. Conhecimento torna-se poder e dominio sobre o mundo. O ho- mem cultivado nao é mais aquele que busca a mera felicidade da especulagio, que almeja o conheciiento pelo prazer espiritual. . A invengio da imprensa e a crescente alfabetizacao contribuem para a valorizagao do actimulo de conhecimentos sobre o thundo-e a natureza"’. O livro passa a constituir um bem cultural que possibilita uma intensa “comuni- cacdo” com antepassados e contemporaneos, facilitando a divulgacéo de visbes por vezes incompativeis sobre um mesmo assunto, A leitura torna-se nio ape- nas um passatempo privilegiado, mas também um instrumento para adquirir informagio e valor marcante para identificar o individuo cultivado eerudito, Excluida a concepgao crista de que o homem participa dos fins ¢.ob- jetivos do universo criado por Deus, to qual-hé uma hierarquia interna do le. a 9 Hé na cultura hermética dos alquimistas, dos astr6logos e, posteriormente, no 0¥9 espirito cientifico uma crescente fascinagdo em se descobrir os segredos da nate reza, as suas “forcas ocultas”, com o objetivo de desenvolver técnicas para melhor conhecer 0 mundo, r 10 As experiéncias nao eram concebidas como confirmagao exata da hipdtese, porque ss condigées reais ndo coincidem com as do caso ideal da construgiio mental a priori. 11 Conforme Briggs ¢ Burke (2004, p. 26), calcula-se que entre o ano de 1450 (data provavel para a invencio, na Europa, da prensa grifica) e 1500 havia cerca de 13 milhdes de livros circulando em uma Europa com cem milhées de habitantes- 30 Origens e constituigdo cientifica da cultura ser, o ser humano gradualmente se distancia da natureza. Agora, visto como um ente superior e distinto de todos os outros “seres naturais”, 0 homem ir buscar sentido em si mesmo, estabelecendo ur lugar distinto de tudo o mais — 0 “mundo humano”. O século XVIII representaré o triunfo des- sa nova convic¢ao que foi lentamente gestada nos séculos anteriores. Foi 0 século que criticou muitas das'convicgées tradicionais, desde a fé crista até a monarquia absoluta de origem divina, que afirmou a histéria e as normas sociais que regulam as sociedades como condigdes necessarias para o estabe- lecimento do espaco originalmente humano. , : No século XVIII, cultura passa a ser 0 termo que identifica a especifi- cidadé do mundo humano. Essa palavra nio mais se refere a “formagéodo espirito” do individuo, m: ; ao conjunto objetivo de representagées, padroes de comportamento, valores e normas enquanto patrimdnio comum seja da_ humanidade ou de uma dada sociedade. Designa a soma de saberes acumula- dos e transmitidos pala humanidade. Considerada como um fenémeno dis- intivo da espécie humana, cultura refere-se a ideia de progresso, de evolucio, de educacio — palavras-chave do pensamento iluminista. Com isso, o Iu- ininismo colocou a tnica sobre a dimensio."objetiva” da cultura: as formas e meméria coletiva (tradigao) » culturais enquanto_um conju 16ria C codificada e acumulada no te Nesse sentido, o Iluminismo relega a um segundo plano a dimensio “subjetiva” da cultura até entio hegemonica (cul- tura ao cultivo espiritual do \dividuo, portanto, um “cuidar de si mesmo”). A nogio de “cultivo espiritual” é agora de ordem coletiva. Serve para designar o refinamento cultural dos costumes. Contrapée-se & pretensa selvageria ou barbarie dos povos “nado civilizados”. . £ também nesse século que é gestado 0 conceito de “civilidade” e “ci- vilizagao” (“civilisation” em francés; “civilization” em inglés;.“kultur” em alemio), para designar o refinamento cultural dos costumes, contrapondo- se 4 pretensa selvageria ou barbarie dos povos que nao tém tais refinamentos — os “nao civilizados”. . Como chama atencio Cuche, “cultura” e “civilizagao” sao duaé palavras que “pertencem ao mesmo campo semintico, refleteiti as mesmas concepcdes fundamentais. As vezes associadas, elas no sio, no entanto, equivalentes” (1999, p.21). Embora as diferengas de significado nao sejam claras (ver Elias, 1993), “cul- tura” diz respeito ao conjunto de saberes ¢ praticas que constituem o patriménio vo ou sociedade, enquanto “civiliza¢ao" expressa a ideia dg fina ivo de comportamentos, instituigbes, usos ¢ costumes da human ia caletive ultura’, somente aqueles dotadlos de rej A nee i dos os povos tém aE » 3 pee Se r amental possuem ‘civilidade”. Ou seja, ciyiy do desenvolvimento da cultura, Em Jano coletivo certos aspectos do de um pot Tefinam institucional e comport Weagig g movimento coletivo resultante Outras al angie 6 ° es Le cata guarda o significado latino de an ing SE steaas™ nio se restringiu exclusivamente a ideia de am pag ménio da humanidade (portanto, de um universalismo especifico que Caracte. riza a unidade do género humano). Principalmente na concepgao alemi, ey. tura adquiriu também uma nogao particularista para Significar A consolidacg de diferencas nacionais. Foram inicialmente os alemaes que desenvolverim concepgées como 0 de “génio nacional” e “espirito do povo” para se Teferirem as singularidades ou especificidades culturais de uma comunidade. Daj ex: pressées do tipo “cultura alema”, “cultura brasileira” etc. Tal concepcio estar na raiz dos conceitos de “na¢do”, “nacionalismo” e “nacionalidade”. A expansio do significado de “cultura” reflete uma complexa transfor. macio da percep¢io sobre a alteridade ou das especificidades entre diferentes tipos de sociedade. Uma nova sensibilidade € inaugurada a partir do século XVIII, quando intelectuais iluministas (como Voltaire, Diderot, Rousseau, Montesquieu, Mirabeau — s6 para citar os franceses) comecam a conceber 0 homem como um ser cosmopolita e passam a tomar consciéncia da importin- cia das formas simibélicas na constitui¢ao da vida humana. Contrariando os Princ{pios teolégicos, a preocupacao com a dimensio histérica e 0 continuo Progresso da humanidade é traco marcante da época!, Com o aumento da consciéncia de que cada cultura tem sua propria validade, os fildsofos desse século lancam os germés para a ideia de “relativismo cultural”. Mas a percepeio iluminista de diferentes ordens éulturais nfo eliminot eafnietgaet a existéncia de uma enorme eee e Pressupostos lst, eae eremncgimesne tie, ANE F as » Seria necessario reconhecer as diferengas entre ——_—______, a ideia cull os 12 Nesse processo, os relatos.de v; : América'contibuiram, Petia de individuos que visitaram povos a Ait ficativamente pa mento de cre” 585, comporlamentos e costumes de autres paves re eis 32° Origens e constituigdo cientifica da cultura culturas de uma sociedade tribal e uma “civilizada”, A diferenca é estabelecida pela ideia de progresso: um processo de refinamento cultural dos costumes, © crescimento do ideal racionalista, 0 controle de forgas irraciomais € emotivas. O modelo idealizado de progresso é reflexo da sociedade europeia ou ociden- » tal. Daf o etnacentrismo que, revestido de “eurocentrismo” ou “ocidentalcen- trismo”, dificulta’o reconhecimento do “relativismo cultural”. A ideia-de progresso — termo tao caro ao Jluminismo — introduz de~ uma maneira peculiar uma periodizacio (que nao deixava de ser uma hierar- quia) entre as diversas culturas. Assim, as mais “primitivas” estatiam situadas nos estagios iniciais, enquanto as mais “civilizadas”-se encontrariam em es~ tagios posteriores. Em outras palavras, 0 conceito de progresso recoloca, em uma dimenséo coletiva, o significado de cultura como “formagao espiritual””, Condorcet, por exemplo, propés uma periodizagao da hist6ria universal em dez estagios, baséado na ideia de que as sociedades evolufam constantemen- te no avanco do conhecimento e da ciéncia. Giambattista Vico (1668-1744) falou da “Ciéncia Nova” para se referir & Busca de regularidades necessdrias subjacentes a histéria universal. Kant, por sua vez, definiu o progresso como 0 crescimento da liberdade individual combinado com 0 avango da virtude., Em sintese, a ideia de progresso cancebida pelo Iluminismo pressup6e que a heterogerieidade das culturas é convertida, pelo desenvolvimento inico e tem- poralmente ordenado de todos os povos, em homogeneidade, a qual é iden- tificada pelos'valores e estruturas das sociedades “civilizadas”, cujo exemplo significativo seriam a sociedade inglesa, a francésa ou a ale". > ‘Ao acentuar as formas culturais enquanto compostas por um conjun- io coletivo de comportamentos, valores, princfpios e técnicas acumulados no tempo, a concep¢ao iluminista fundamentou 0 conceito cientifico de cultura, que sera desenvolvido a partir do século XIX, épocas da vida da humanidade, Hegel 13. Ao buscar uma interpretagio para as diversas dividualizar as formas culturais como utilizard a expressio “espirito objetivo” para in objetivagées histéricas concretas. 14 Para o estudo sobre progresso, ver Sztompka (1998). 33 (Cultura: miltiplas leituras O CONCEITO CIENTIFICO DE CULTURA O conceit cientifico de cultura nasce da premissatle que a culty, serestudada de forma objtivaesistemstca, pois se trata deum fender a) natural do ser humano; b) dotado de causas e regularidades;b) cq ® proporcionar a formulacao de leis. Composta “objetivamente” pelas an representacdes sociais,tradigdes e costumes adquiridos pelo homem, enquanty, membto de uma sociedade, a palavra “cultura” adquire uma dimensio vq, critiva” que se diferencia da sua dimensio “prescritiva’, isso é, aquela que g refere & cultura como um conjunto de valores que deyem ser adquiridss pe los individuos ou coletividades, como a ideia de paideia ou de cultura anim (CRESPI, 1997)" ; O conceito cientifico de cultura é formulado inicialmente pela “teori evolucionista”, Herdeira do Huminismo, a teoria evolucionista clissica desen. ‘volveu uma concepgao universalista da cultura. Ao examinar 6s mecanismos da-evolugio, os tebricos dessa “escola” abordaram os fatos culturais sob uma 6tica sistematica, estabelecendo os princ{pios nortealores do estudo cientifico sobre esse fendmeno', Por isso, sao considerados: por muitos historiadores como fundadores da etnologia cientifica, principalmente britanica. “A teoria evolucionista clissica ¢ resumida por L. H. Morgan quando, em seu famoso livro A Sociedade Antiga (publicado em 1877), afirma que: 15 £ importante salientar que a designaco “descritiva” de cultura nao elimina o seu aspecto “prescritivo", Desde o inicio da interpretacio cientifica de cultura — n0- tadamente da sociologia e da antropologia — esse termo traz consigo essas duas, dimensées, embora priorize o seu primeiro ‘aspecto, 16 O periodo de maior prestigio do evolucionismo cultural nas ciéncias sociais ocor- feu aproximadamente entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial. O.americano Lewis Henry Morgan (1818-1881), rico advogado e estudioso da cultura iroquesa; 0 inglés Edward Burnett Tylor (1832-1917), nascido de préspera familia quacre londrina, Professor de Oxford (apesar de nunca ter cursado uma uniyersidade); € 0 €sco- cés James George Frazer (1854-1941), nascido em uma familia de classe média € também professor de antropologia social, so usualmente considerados na tradigi0 antropolégica como os trés autores clissicos do evolucionismo cultural, embora existam diferengas entre eles, : Origens econsttuigdo cientifica da cultura [..J as principais instituigdes da humanidade foram desenvolvidas a partir de uns poucos germes primérios de pensamento; e que 0 curso eo modo de seu desenvol- vimento foram predeterminados, bem como mantidos dentro de estreitos limites de divergéncia, pela logica natural'da mente humana e pelas necessirias limitacoes de’ seus poderes. Descobriu-se que, nuin mesmo status, 0 tipo de progresso foi substan- cialnente 0 mesmo em tribos e nagdes habitando continentes diferentes e até mes- mo nao conectados, com desvios da uniformidade ocorrendo em casos particulares e sendo produzidos por causas especiais. O argumento, quando desenvolvido, tende a estabelecer a unidade de origem da humanidade (apud CASTRO, 2005, p. 63-64). Partindo‘do pressuposto de que toda a humanidade deveria passar pelos mesmos processos evolutivos, a teoria evolucionista classica (a) reduzia a diversi- dade cultural a uma questdo de estagios histéricos de um mesmo caminho evolu- tivo; (b) partia do principio de que haveria'uma unidade psiquica de toda a espé- cie humana; e (c) identificava em cada sociedade “sobrevivéncias” ou “reliquias” de crencas e costumes (como as crendices e superstices populares nas sociedades “modernas”) de estagios anteriores”. Nessa perspectiva, € possivel “medir” os es- tagios e os ritmos evolutivos dos grupos humanos mediante uma escala universal (fundamento da concepgio do “método comparativo” proposto por ‘Tylor)"*. De acordo com a tendéncia epistemolégica dominante na época, os evo- lucionistas classicos procuram estabelecer “leis” que reconstituissem 0 processo geral da evolucdo cultural do homem. Assim, a principal tarefa do pesquisador seria dissecar e classificar os itens culturais de uma sociedade e; mediante com- paracGes com outros grupos sociais, identificar e caracterizar os diferentes esta- gios de cultura. Inspirado pelas ciéncias naturais, Tylor observa que . [..J 0 trabalho’ do etnégrafo € classificar [...] detalhes com vista a estabelecer sua distribuicdo na geografia e na histéria e as relagbes existentes entre eles. [...] Assim como o catélogo de todas as espécies de plantas e animais de um distrito representa sua flora e fauna, a lista de todos os itens da vida geral de um povo representa aquele iodo que chamamos sua cultura (apud CASTRO, 2005, p. 77). 17_A ideia de “sobrevivéncias” culturais foi particularmente importante para Tylor, pois, como pensava esse antropélogo, através delas seria passivel reconstituir 0 con- junto cultural original. 18 O pressuposto tedrico desse método est fundamentado na ideia de que é possivel reconstituir o caminho evolutivo da humanidade através das suas etapas, pois 08 relatos de fendmenos de cultura sio similares e recorrentes em diferentes partes do mundo. 35 Cultura: miiltiplas letturas ‘Ao argumentar que @ fiumeniteds uma $6 origemetrajegy homogenea da humanidade), @teoria evolucionig, Wi forme (a natire7s yr natural entre os diversos grupos human estabelecia uma iB je igualdade esté na concepsao de que oe especificamente 9 igura ea contribuigo de cada pov6 pari g yi eae ie ie satima, A diversidade cultural é resultado da te zB dss exitentes no processo oe ou de “escala de civ Em outras palavras; a desigualdade cultural é uma questio “temporérign Mas por outro Jado, é também importante paentar: 0 cardter hierdrquico a cy, fura — “graus” de desenvolvimento que situam medem 4s coletividades em determinadas escalas valorativas (tidas como objetivas), 8 quais refletem, em titima instancia, caracteristicas dos pafses desenvolvidos, usualmente ociden, tais,O significado de “civilizagio”, “progresso” e “desenvolvimento” recuper, ‘em uma outra dimensio, 0 aspecto prescritivo da cultura (conjunto de valores dicam os objetivos'ideais a prosseguir pelas.coletividades), ‘A teoria evolucionista formulada no século XIX nao desfruta atualmen. te da mesma aceitagio. Contudo, coma jé observado, ela inaugurou um con. junto de pressupostos tedrico-metodolégicos para os esturdos sobre cultura, © ponto fundamental a ser observado diz respeito ao fato de que as teorias socioantropolégicas, desenvolvidas a partir do século XIX e até a segunda me. tade do século XX, tenderam a considerar,as wnidades sociais como sistemas possuidores de leis préprias'e como realidades “sui generis” que perseguem as suas proprias finalidades, relativamente autonomas das percepgées individu- . Podemos denominar essa tendéncia analitica (ou perspectiva) nas ciéncias sociais como “sistémica” ou “estrutural””, aig que in 19 Mas isso nao significa dizer que a teoria evolucionista esteja totalmente desaparesi- da. Uma modalidade de “sobrevivencia” do evolucionismo esté na chamads “teoris neoevolucionista” que entrou em evidéncia nos anos 1950, principalmente nos Es tados Unidos, através dos trabalhos de Julian Steward (conhecido como. fundador da ecologia cultural moderna) ¢ Leslie White. Guardando as devidas proporsees uma outra forma de “sobrevivéncia” do evolucionismo encontra-se nas concepts de “crescimento” e “desenvolvimento” que usualmente sao empregades por hist riadores e cientistas sociais contemporincos. 20 O termo “estrutural” nao deve ser confundido com “estruturalismo", social. O primeiro diz respeito a uma™perspectiva analitica” e, como tal, ™ abrangente do que uma “teoria”, ¥ uma teoria muito mais 36 Origens e constituigto cientfica da cultura ~ Em termos gerais, até a segunda metade do século XX, dominaram nos trabalhos sociolégicos e antropoldgicos sobre cultura duas grandes concepgdes “sistémicas”: aquelas voltadas para a organizacao social e as diri ficagao e comunicagio simbélica. Ambas com preocupagées holisticas e uni versais na definigao de cultura, sendo que, no primeiro caso, a anilise recai nas. estruturas (e transformages) materiais das sociedades e nas interagées sociais, expressas pelas teorias neoevolucionistas, ecologia cultural, funcionalismo es- trutural, teoria dos sistemas; no segundo, no entendimento das estruturas de significado, nos “sistemas simbélicos”, nas descricées das “gramaticas cultu- ee ee fais”, como no caso do estruturalismo. Em ambas, a tese subjacente era a de que a abstracao é 0 recurso explicativo ultimo dos fenémenos socioculturais. Nessa perspectiva, embora consideradas como empiricas, as ciéncias sociais pretendem se situar distante de qualquer nogdo derivada imediatamente da percepcao. O postulado cientifico dominante éra de que a explicagio de casos particulares, empiricos, requer do pesquisador um ‘mover-se para o Ambito da completa abstracao. Essa tese — de nitido sabor kantiano — parte do princi- pio de que, qualquer que seja 0 objeto de anilise, para que ela seja cientifica, é necessdrio trata-lo a partir de um ponto colocado fora dos fenémenos, isto é, no plano cognitivo, no plano conceitual. Mais especificamente, preocupando-se em estabelecer um conhecimento “objetivo” que seja capaz de apreender a realidade sociocultural “em si mesma”, 0s estudos socioantropolégicos partiram do pressuposto de que os fendmenos culturais sdo constituidos de uma realidade especifica, composta de estruturas ou sistemas de relacdes independentes das vontades ou consciéncias individuais. Dotadas de regularidades, tais “estruturas” podem ser apreendidas (e verifica- das) mediante técnicas cientificas apropriadas. Nessa perspectiva metodoldgi- ca, a possibilidade de explicacio do fendmeno humano pressupée um ponto arquimediano — um ponto colocado fora da experiéncia a partir do qual seja possivel analisar 0 mundo social. Ou seja, a tese fundamental é de que, qual- quer que seja 0 objeto de anilise socioantropoldgica, para que ela seja cientifica € necessario tratar os acontecimentos mundanos a partir de um ponto colocado aprioristicamente fora da concretude desses fendmenos (como eles aparecem na percep¢io) — no plano cognitivo, conceitual. Assim, como bem resume Whi- tehead (2006, p. 16), um elemento fundamental da ideia de ciéncia estava na convicgio da existéncia de uma “ordem das coisas” ou “senso de ordem”, como utr maps ears oN . im “enredo” proprio, Todas as coisas « seomundo as reinam em toda a ordem Data 4 erm cs Pr ago quando o colocamios em uma “ordem dag Colsa gy aex ceauticames stench é voltada, portanto, para configuracses cme ‘en de ordem”. Iiticos; para principios cognitivos que guiam o conhecing is og modelos ‘o -eeggaforiaa’ multiplicidade das cols, por mais gen ™™ 74 procedimen onfusa que seja,em certos padrBes e configura en ne iene = observa Bruno Latour (2005), 0 termo “social” designa y Pers, eat de acontecintentos, um conjunto de lagos que, mais tarde, meaty mobilizado para explicar outros fendmenos. Buma forga especifica deers, durabilidade das relages humanas. Ou seja, 0 social € feito de algo (for, oy ou capacidade) perdurdvel. ee ’ Em uma concepgao “sistémica” ou “estrutural”, a Preocupacio, Comacy, tura est voltada para analisar.o impacto de, “modelos culturais Constituidose (como modelos de comportamento, definigdes de papéis, orientacdes de valores normas vigentes com base em uma tradicao consolidada no tempo, Conjunto de crengas, formagées institucionais) sobre os individuos e grupos sociais, Nese sentido, cultura tem um cardter relativamente auténomo (uma légica internae uma coeréncia semintica prépria), pois: (a) exerce uma fungio de estabelecera integragao, a coesdo e 0 consenso social, apoiada em sangBes erecompensa que regulamentam o agir dos individuos; (b) é uma dimensio constitutiva da pero- » nalidade dos individuos, a qual vista como construida pela interiorizacio dos “ modelos e valores culturais”!, : A perspectiva “sistémica” foi relativamente hegeménica até aproxima-_ damente a década de 1970, quando as.ciéricias sociais comecaram a desenvol- ver, de uma maneira geral, uma crescente Preocupacao em repensar os pres- ‘supostos-tedrico-metodolégicos sobre os quais se assenta o seu entendimen- to cientifico do mundo. Como exemplo dessa preocupacio, basta observar 0 niimero de autores clssicos que sio atualmente objeto de releituras (como Mead, Durkheim, Simmel e, principalmente, Weber); a multiplicidade de pa- radigmas e de referéncias tedrico-metodolégicas; as tentativas de integragio € sinteses tedricas propostas; as tentativas de superacdo de uma série de pares ae a ai ria freudiana, rincipaltente no que sé refere 20 0 “superego’, éde gamle Portincia para o conceito de interiorizagao dos valores, 38 Origenseconstituigdo cfentfia da cultura de conceitos classicos (tais como “subjetivo e objetivo”, “agente e estrutura”, “coletivo e individual”, “macrossociologia e microssociologia”); a expansio de novos campos de pesquisas que ultrapassam as tradicionais fronteiras disci- plinares”. © movimento autorreflexivo que caracteriza a teoria social contem- poranea renovou uma preocupacio com os pressupostos filos6ficos e epis- temoldgicos das ciéncias sociais. Nessa perspectiva, autores mais alinhados & filosofia.do que propriamente com-as ciéncias sociais, como Alfred Schutz, Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, Michel Serres, Foucault, Charles Taylor, Gada- mer e Castoriadis, fazem usualmente parte dos programas de teoria social. Por outro lado, cientistas sociais como Bourdieu, Giddens, Luhmann, Jeffrey Ale- xander escrevem artigos de cardter eminentemente filoséfico. Assim, um pon- to fundamental no processo de transformagio que ocorre nas ciéncias sociais diz respeito As trocas multidisciplinares que realimentam.novas problematicas no campo das ciéncias sociais (WALLERSTEIN, 1996). Como resultado desse processo — e ai talvez esteja uma das grandes novidades das ciéncias sociais contemporaneas — comegou a haver uma diminuicao do nivel de consenso em torno das linhas de demarcacao entre as disciplinas do mundo social, com isso impulsionando 0 estabelecimento da reconciliagio e.novas aliangas entré posigdes até entio tidas como antinémicas entre ciéncias da natureza, ciéncias humanas e filosofia. O didlogo — e mesmo a intersego — dessas ciéncias com a filosofia, a histéria, a psicologia, a linguistica, a literatura sao atualmente tio comuns que as vezes somos tentados a indagar se estamos realmente diante de 22 Existem varios estudos que analisam as transformagdes socioculturais ocorridas a partir da década de 1970 [ver Ritzer, (1990); Levine (1997); Corcuff (2001); Picé (2003); Latour (2005)]. Embora desenvolvam diferentes perspectivas interpreta- tivas, esses estudos mantém um’ certo consenso na identificagao dos fatéres que + impulsionaram a “crise” das ciéncias sociais: mudangas das condicbes materiais, de estilos de vida, de liberdades pessoais, os conflitos internacionais ¢ 0 “clima politico radical”, como a “revolta estudantil” dos finais dos anos 60. Entre esses fatores, cabe destacar o tiltimo para o campo das citncias sociais, pois contribuiu significativa- ‘mente para colocar em questo a qualidade do ensino, a estreiteza das estruturas cientificas, a deterioragao das fungGes universitérias e o predominio da sociedade tecnocritica. Nesse contexto, essas ciéncias (notadamente a sociologia) foram obje- to de ataque: pela sua colaboragio com os planos reformistas; pela sua identificagio com a teoria funcionalista americana; pelo seu “sociologismo” e fechamento as in- dagagoes filos6ficas; pelo seu carater nomotético e uniparadigmatico, 20 Cultura: miiltiplas leituras uma determinada disciplina jé classicamente definida (como Sociologia oy antropologia) ou uma outra que estd se configurando no Senaio intelectugys ‘As transformagées de ordem cognitiva € pitiatioriel Tevam a efor, mulacées nos estudos sobre cultura, fomentando um conjunto de teoriag que podemos agrupar com o nome de “perspectiva en 2M qual as req. lidades sociais sio apreendidas como construgGes histéricas € cotidianas dog atores individuais e coletivos™. As teorias “sistémicas que colocavam a culty. ra como unidade relativamente aut6noma perdem seu cardter hegeménico e passam agora a conviver com diferentes teorias Sse redimensionam cultura como algo diretamente relacionado com a ago social. Ou seja, as novas inter. rogacées sobre o vinculo social, como as questées relacionadas & acio ea his. toricidade, implicam uma outra escala de andlise, mais mundana e, Portanto, mais préxima dos atores sociais*’. Os estudos voltados para a compreensio do 23 Essa anilise reproduz literalmente trechos do trabalho-desenvolvido por Alves (2009). vas , . 24 O termo “construtivista” é retirado de Corcuff (2001) para designar um conjunto de teorias sociais como as “teorias de base fenomenoldgica” (a “sociologia existen- “dial” de John Johnson, Joseph Kotarba e Jack Douglass antropélogos e sociélogos como Tim Ingold, Michael Jackson, Weiner, Katz; a etnometodologia de Garfinkel € Aaron Cicourel), a “teoria do ator-rede” (Brino Latour), a “teoria da acio cria- tiva” (Hans Jonas), a “antropologia pés-modernista” (James Clifford, George Mar- cus, Paul Rabinow, Geertz), além das mais conhecidas, como a “praxeologia” ou “construtivismo estruturalista” de Pierre Bourdieu ¢ a “teoria da estruturagio” de Anthony Giddens. £ importante chamar a atencio para o fato de que a chamada “Perspectiva sistémica” nao desaparece. Apenas deixa de ser hegeménica e con- tinua até os nossos dias, embora com novas “roupagens” e probleméticas, Exem- Pls significativos sio a teoria neofuncionalista (Jeffrey Alexander, Paul Colom, Charles Camic), 0 *marxismo analitico” (Jon Elster, Ernesto Laclou e Jameson). 25 Como observa acertadamente Arendt, : “quanto maior’a distancia entre o homem €0 seu ambiente, o mundo.ou a terra, i mais ele pode observar e medir, e menos 000, p. 263). Ou ‘seja, quanto mais nos des- ‘Nos retiramos a uma distancia do que nos "Ao centrar a reflexdo sociol6gica na buses de regularidades 40 Origenseconstituigo cfentifica da cultura cotidiano tém o papel de alavancar metodologias mais sensiveis & perceps4o do instituinte do que do instituédo. As andlises socioculturais passam grada- tivamente a reformular os modelos interpretativos fundamentados na Logica interna de instituigdes culturais manipuladoras e redutivas, sem com iss6 cair em um modelo oposto de *divinizar” (ou dissolver) 0 individuo e suas capa- cidades estratégicas ou taticas®’. A teoria social cada vez mais leva em devida consideragéo a complexidade crescente dos problemas socioculturais e recusa qualquer forma de dogmatismo ou de reducionismo, passando a lidar mais proximamente com os grilhdes da experiéncia terrestre, Com isso, reconhece a impossibilidade e a inutilidade de encerrar o ser humano numa légica exclu- sivista, quer seja moral, cultural, fisica ou genética. ‘Ao centralizar a andlise em questdes da ago social, a perspectiva “cons- trutivista” retoma a ideia de historicidade, cujo ponto de partida refere-se a0 fato de que é propriedade humana a faculdade de agir (em tempos ¢ espagos especificos), de iniciar processos novos e sem precedentes (embora necessaria- mente assentados em “contextos” preexistentes), cujos resultados podem ser incertos e imprevisiveis”. Mais especificamente, a ideia de historicidade nos aponta para o carater processual (temporal) € essencialmente situado da agao. Tida como a condigéo ontoldgica do ser humano, a nogao de historicidade alimenta todas as teorias de base “construtivista”. : "A nogio de historicidade pressuposta na teoria social contemporanea possui trés importantes aspectos: a) lida com construgdes passadas (a ideia de’ vista a pluralidade humana, as distingSes, diferengas e alteridades que marcam as ages humanas ¢ 0s mundos sociais. ‘ 26 A questio do “descentramento” do sujeito, para utilizarmos uma expressio de La- can, 6 talvez um dos pontos mais problematicos na perspectiva “sistémica”. ‘ 27 & importante nao confundir historicidade com histéria e tampouco com histori- cismo. Embora de significado muito mais complexo, historia pode ser concebida como “relato de fatos” em uma forma ordenad. Historicismo é um conjunto de teorias que enfatizam o papel desempenhado pelo cardter histérico do homem. Em oiitras palavras ohistoricismo parte do pressuposto de que a compreensio adequa- da de qualquer fendmeno humano é dada quando se leva em devida consideragio a fungio do lugar que esse fendmeno ocupou-dentro de um processo de desenvolvi- mento, Historicidade, por sua vez, designa tudo o que é caracteristico do histérico, do “gestarese”. Fundada na temporalidade, a historicidade éa possibilidade huma- na de construir a histéria. . 41 Cultura: miltiplasleituras que o mundo sociocultural se constréi a partir das condicées diretam, das e herdadass do pasado); b) essas construgées sio atualizadas ngs, e nas interacées da vida cotidiana dos atores (as formas sociais Passad, Keay apropriadas, reproduzidas e transformadas enquanto outras sio linen? €) constitu abertura de campos depossiblidades no futuro (aheranga pos o trabalho cotidiano sempre abrem perspectivas para ofaturo)* Assi, gen’ ceito de histoicidade apresenta simultaneamenteaspéctos de “objetvacger “interiorizagées” da realidade social. Se por um lado, remete a mundos objet, -vados (os individuos e 08 grupos se servem de palavras, objetos, coisas, Tegras, instituicdes etc., legados pelas geragées anteriores, transformando-0s ¢ crian. do novas formas) por outro, se inscreve em mundos subjetivos e interiorizados (construidos de formas de sensibilidade, de percepgio, de conhecimento)®, Em sintese, uma caracteristica fundamental da andlise construtivistaéa de que a cultura nao se coloca como uma realidade j4 dada perante os indivi- duos, mas é constituida na relacdo com os agentes sociais. Em outras palavras, a cultura é 6 resultado de processos ativos de produc¢ao de comportamentos, valores, principios, que os individuos desenvolvem has suas relacées com as condigées materiais e sociais do mundo em que-vivem. O ponto de partida dessa concepcao sublinha a prioridade do “ser-no-imundo” como elemento constitutivo da tomada de consciéncia dos sujeitos®, Dai decorre que todo . conhecimento: (a) sé se desenvolve como interpretagao a partir da insercao do sujeito em um contexto histérico concreto ja culturalmente mediado; (b) é ori- ginariamente constituido na relagao-rec{proca entre os atores sociais. Assim, ' toda a definicao de realidade s6 pode ser compreendida através da referéncia lente da, 28 Ver Corcuff (2001, p. 26-27). 29 Na perspectiva “sisténtica”, como observa Sartre (1967, p. 129), “a historia apa" ce como um fendmeno puramente passivo, seja porque a estrutura contém em sh desde a origem, os seus germes de morte, seja porque um acontecimento exterior? destr6t..1. Quando nio morre de morte natural, estrutura sucunibe por cident Mas nunca os homens, eles préprios, que a modificam, porque no sio eles que fazem: pelo contririo, eles sio feltos por ela” ‘ . 30 Deacordo coma perspectiva © mundo que partilho com 0s utFeS pessoal que a ciéncia constitui. £ fundamental sobre o qual atuamos e frente ao qual os nossos poms ‘na maiotia das vezes, intercambidveis. ‘mente um mundo familiar de vista ¢ 05 dos outros sio, Origens constitu cientifica da cultura a0 mundo de significados a que pertence aquele que interpreta essa realidade (CRESPI, 1997, p. 112), Consequentemente, a perspectiva “construtivista” co- loca em evidéncia o cardter ativo dos processos de constituico da realidade. social ea dimensao interativa (ages) que Ihe est na base: Ao estabelecer intimas ligacdes entre a cultura e 0: ‘agir social, a perspectiva construtivista recuperou, em uma nova dimensio, a nogio de agente ou sujeito social. Trata-se agora de um sujeito encarnado, dotado de senso pratico (inscrito no corpo € nos movimentos do corpo); localizado em tempo e espaco concretos, que exerce atividades cotidianas realizadas mediante raciocinios praticos (ou “I6- gica pratica”, no dizer de Bourdieu) e nao um “idiota cultural” (como chamou Garfinkel), individuo hiperconformado com as normas sociais preestabelecidas, fracamente reflexivo e muito menos um individuo racional e utilitarista, subme- tendo o “mundo externo” e as condutas humanas ao crivo da racionalizagao™. Ao privilegiar o estudo da agao, a perspectiva “construtivista” reconhe- cea prioridade da pratica (ou prdxis), da esfera do fazer e agir, sobre o pensa- mento ea reflexao. Essa concepsio conduz alguns autores a voltar sua atencao a0 corpo, partindo do principio de que ha uma relacio originaria entre consci éncia e mundo que sé pode ser compreendida quando recupéro a mediagao do corpo. Nesse sentido, o corpo torna-se fundamento de nossa insercao pratica no mundo. Mais do que uma simples ferramenta a servico de um individuo, 0 corpo é visto como condicio e possibilidade para que as coisas se convertam em meios ou objetos para o sujeito. Para um rapido exemplo de como a tematica do corpo ocupa um plano privilegiado em muitas teorias “construtivistas”, basta observar a importancia que Bourdieu atribui a0 conceito de habitus, definido como a “histéria en- carnada nos corpos” sob a forma de sistemas de disposicées duraveis®, Para Bourdieu, é 0 encontro da,“histéria feita corpo” (habitus) e da “histéria feita coisa” (campo) que caracteriza a producio do mundo social (ou, conforme 31 Como observam Schutz e Luckmann (1973, p. 28), 0 conhecimento que-adquiro “e utilizo no dia a dia esta atrelado a interesses priticos, “devo compreender meu mundo da vida fio grau necessario para poder atuar nele e operar sobre ele”, 32 Disposigées so inclinagdes para perceber, sentir, fazer e pensar de uma certa ma- neira, as quais sio interiorizadas't incorporadas, usualmente de forma inconscien- te, pelos individuos que desenvolvem trajet6rias sociais em situagdes objetivas de existéncia, . 43 * cacées, a perspectiva “consti Cultura: miltiplas leituras MMe, Pog resumida na sua famosa frase, “esse duplo movimento construtivigt, riorizadao do exterior e de exteriorizagdo do interior"). Um outrg thas Michel Foucault, que no seu estudo sobre 0 surgimento do sistema ae i na Europa passou a usar'o conceito de disciplina como uma = mo habitus, discipliria dest? ¢ modern mal fundamental da sua teoria social. Assim co poder que foram impressos no corpo, formando disposicbes permanentes ‘Assim, em vez de situar a cultura no universo jé construido de objet rativista” problematiza o processo mesmo em qu, as normas, os valores, os costumes ganham sentido para os atores ene i {questo nao é mais identificar 0 momento em quea cultura se faz presente nog comportamentos e atitudes dos sujeitos (pois todas as experiéncias humanas i so em si cultura), mas o de considerar como os atores desenvolvem um modo de colocar-se'frente aos fendmenos culturais. O interesse pela dinamica de formacao da experiéncia humana coloca a atencao sobre os meios, recursos e, sobretudo, os processos que conduzem 4 sintese corpo- mundo. Nesse sentido, cultura é, antes de mais, 0 horizonte a partir do qual os atores sociais se engajam praticamente no mundo. Antes de se constituir como fato, cultura é experiéncia, um processo constante de formacao humana. constitui¢ao e trans! CONCLUSAO Pela rapida andlise historica do significado de cultura acima apresentada, é possivel identificar duas grandes dimensdes desse termo: a “subjetiva” ea “ob- jetiva”. Blas estio presentes desde as origens gregas do conceito de cultura até 0 advento da sua concepcio cientifica. Na primeira dimensio, cultura diz respeito uma propriedade ou capacidade do individuo de desenvolver, suas “faculdades espirituais” através da educagao, da filosofia, das artes. Portanto, a um cresci- mento progressivo da pessoa. Paideia, cultura animi, coltura e bildung si0 Ve _siantes terminolégicas que indicam a formacao intelectual e moral do individu, Na concepgio “objetiva’, cultura é um produto coletivo, preesistente,exterio® dotado de certa autonomia e constritiva em relacio ao sujeito individual. A dimensio “objetiva” da cultura passou a ocupar um lugar proe™ nente a partir do século XVIII e principalmente com o advento da conceps#® “sistémica” — cientifica — de cultura, Esse termo é utilizado para definir conf 44 Origen const ena de cultura guracdes de costumes, valores, princ{pios, técnicas existentes em uma determi nada época. Na sua dimensao “objetiva”, tanto no seu aspecto “universalista” (cultura como patriménio da humanidade) como “particularista” (para iden- tificar determinados agrupamentos sociais, como “cultura brasileira”, “cultura nordestina” etc.), cultura é concebida como uma “realidade especifica”, usual- mente concebida como um “sistema”, composta por um conjunto de elementos inter-relacionados dentro de uma determinada sociedade oti comunidade. O que € colocado como primeiro plano de anilise é o cardter de organicidade da cultura (que no sao necessariamente totalidades harmoniosas, inteiramente orginicas ou supersistemas). Nessa perspectiva, cultura éalgo a ser “descrito”. Com isso, a concepgio cientifica de cultura parece ter perdido — ou relegado a um segundo plano — a dimensio “subjetiva” desse termo, Mas € importante enfatizar que a colocagio da dimensio “subjetiva” em uma posicao sécundéria nao é uma caracteristica necesséria ou essencial da concepgio de cultura nas ciéncias sociais. Essa premissa existe porque a perspectiva “sisté- 'mica” nao leva em devida consideragio 0 ator, a acdo e o conhecimento prati- co que, na sua atividade cotidiana, o individuo desenvolve em tempo, espaco e situagdes concretas. Contrapondo-se a essa perspectiva, as teorias “constru- tivistas” tem se voltado para a construcdo de anilises cientificas que procuram, estabelecer intercimbios entre o ponto de vista exterior do pesquisador sobre © que observa e as maneiras como os atores sociais percebem e vivem 0 que fazem no decorrer de suas aces. Ao restituir a posicao do.ator, da agao e do conhecimento pratico, a perspectiva “construtivista” abre espaco para com- preender.(em nivel “cientifico”) a dimensao “subjetiva” da cultura. Em outras palavras, as teorias “construtivistas” propdem rediscutir trés aspectos fundamentais que estado presentes historicamente na conceituacio “subjetiva” da cultura: (a) a preocupacao pelo “cuidado de si mesmo”, um ocu- par-se de si mesmo, uma certa maneira de estar atento consigo mesmo (isto 6, uma maneira de ser, uma atitude pela qual 0 individuo apropria-se de regras gerais com o objetivo de impulsionar o espirito — “progredir” — a se apro- priar e realizar um determinado ideal, como a “formagio intelectual e moral”, a“beleza”, a “perfeicdo espiritual”, a “virtude”); (b) a agio, isto é, sequéncia de atos com significados que um sujeito (individual ou coletivo) realiza em situ- agbes determinadas, compostas por outros sujeitos (capazes de ago ¢ reacio), instituigdes e coisas; (c) um movimento ascensional, avaliado mais ou menos 45 (Cultura: mitiplas letras " Jo de autoformagao gy, Positivamente. Foucault exprime bem esta fee aa " lo ‘thao que deve ser implant, ta: “O euidado de si é uma espécie de aguilhso at 0 um pring Pi i: _ avado na sua existéncia, € con aa came dos hoinens, oe movimento, um principio de per the, tagio, um principio no curso da existéncia” (2004, a xe idade que esta subjacente 20 fen men, e ; ay Ao enfatizaro cardter Se nos fornece pistas bastante Significag;, a “const em maior ou menor grau, a dindmica, Varia. rta “fixidade” e “homogeneidags cultural, a perspectivs M vas para que possamos indies an ai iment . mudangas e desenvolvi s + ‘a a¢do soci ar de eat como “estrutura”. Ao ocupar-se com i ia, ese da nea ressaltou a historicidade imanente do fendmeno cul tural, algo tig " dot Lokise \s conceitos originais de paideia, areté e cultura animi, mas caren, presente no: 0s orig , y na visio objetivista-sistémica da cultura. REFERENCIAS ALVES, P. C. A teoria sociolégica contempordnea: da superdeterminagio pel teoria & historicidade. Salvador, BA: UFBA, 2009. 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