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DANTE LUCCHESI

SISTEMA, MUDANÇA E LINGUAGEM


Sumário

Prefácio desta edição.......................................................................................


Prefácio à edição portuguesa....................................................................... 6

Introdução
Considerações preliminares
sobre fazer história da lingüística........................................................................ 9
Sobre fazer história da Lingüística........................................................................ 10
A hipótese de trabalho.......................................................................................... 13
Breves considerações sobre a terminologia
de Thomas S. Kuhn para a historiografia da ciência.............................................15
As partes integrantes deste livro............................................................................22

1ª Parte
A primazia do sistema e o ostracismo da mudança..........................................25

Capítulo I - A concepção de língua


como sistema em Saussure: o surgimento do modelo.......................................33
Os limites linguísticos do sistema..........................................................................34
A construção da concepção de língua
como um sistema de relações objetivas.................................................................37
A dicotomia língua e fala:
língua como fato social exterior ao indivíduo.......................................................39
A interação entre o social e o individual
no processo de construção da língua......................................................................42
Imprecisões do conceito de língua na dicotomia língua e fala..............................43
A (falta de) sustentação empírica
do conceito de língua em Saussure: a noção de estado de língua..........................44

Capítulo II - Sincronia e diacronia:


o ostracismo da mudança....................................................................................48
Um paralelo com as ciências econômicas.............................................................50
A autonomia do sistema sincrônico.......................................................................52

2
Alguns exemplos, outras críticas e uma metáfora.................................................56
Mudança fonética versus analogia.........................................................................62
Conclusão: a mudança na fronteira entre a fala e a língua....................................65

2ª Parte
A mudança no domínio do sistema....................................................................69

Capítulo III - A língua como um sistema


funcional: uma fissura no modelo......................................................................75
As funções da língua.............................................................................................76
Considerações sobre o programa de estudo
da língua (poética) do Círculo de Praga................................................................78
A concretitude da concepção de língua como um sistema funcional...................80
As funções da língua no estudo do seu nível fonológico......................................82
Apêndice ao III Capítulo
O esquema das Funções da Linguagem de Roman Jakobson...............................88

Capítulo IV - A língua em seu sistema fonológico:


a sua mais completa tradução............................................................................91
O Círculo de Praga e a Moderna Fonologia.........................................................91
Um lugar para o fonema na estrutura da língua....................................................92
Da Fonética à Fonologia: os trabalhos de Trubetzkoy e Jakobson.......................96
Em busca do fonema e do sistema fonológico.....................................................100
A análise por traços distintivos: a objetividade da análise
fonológica e o seu estatuto lingüístico.................................................................107
Sistema Lingüístico ou Sistema Fonológico?......................................................111
Objetividade e Concretitude na Fonologia Estrutural..........................................113
Em questão a unidade e a homogeneidade do sistema fonológico......................115

Capítulo V - A mudança no domínio do sistema:


desenvolvimento e crise do modelo...................................................................118
Uma tese contraditória.........................................................................................121
Roman Jakobson: teleologia e taxionomia..........................................................124
André Martinet: explicação e causalidade(s).......................................................127
Função, Estrutura e Economia.............................................................................128

3
Avaliando o modelo estrutural-funcionalista
na explicação das mudanças lingüísticas particulares.........................................135
As implicações da explicação teleológico-funcionalista da mudança
para a concepção da língua como um sistema funcional.....................................142
O vôo de Icaro, ou o papel da questão da mudança na superação
da concepção estruturalista de língua como sistema...........................................144

3ª Parte
O sistema no domínio da mudança...................................................................146

Capítulo VI - A sistematicidade da mudança:


do estruturalismo à sociolingüística.................................................................156
O estudo da mudança em progresso.....................................................................156
Uma teoria sociolingüística da mudança (e da língua)
e seus “fundamentos empíricos”..........................................................................158
Os cinco problemas da mudança lingüística........................................................163

Capítulo VII - A língua como um sistema heterogêneo:


os limitações da superação do modelo..............................................................171
O paradoxo da história da estrutura frente a estrutura sem história....................171
A mudança lingüística no contexto social...........................................................175
Questões teóricas e epistemológicas
acerca do objeto de estudo da Sociolingüística...................................................177
A concepção de língua como um sistema heterogêneo.......................................187
Uma teoria para a estrutura da língua:
as limitações da Sociolingüística.........................................................................192

Palavras Finais
Sistema, mudança e linguagem.........................................................................197
Os caminhos atuais da Lingüística......................................................................198
A alternativa gerativista.......................................................................................201
A situação da Sociolingüística.............................................................................205
Palavras Finais.....................................................................................................207

Bibliografia.........................................................................................................208

4
Ich bin der Geist, der stets verneint!
Und das mit Recht; denn alles, was entsteht,
Ist wert, daß es zugrunde geht;
MEPHISTOPHELES

5
Prefácio à edição portuguesa

A escolha do tema de sua Dissertação de Mestrado, que agora, na dimensão edito-


rial solicitada, se torna livro, certamente não foi para Dante Lucchesi uma escolha neutra,
fortuita, seleção feita entre várias possíveis, já que seria o trabalho final de um curso de
Mestrado em Lingüística Histórica - amplíssimo campo - realizado na Universidade de
Lisboa.
Entrevejo e entrevi nessa escolha - pelas teias do destino vim a ser a sua orienta-
dora - um direto reflexo da personalidade argumentadora de Dante Lucchesi, que tem o
prazer em descobrir contradições e em buscar deslindá-las. Some-se a isso o fato de ter
ele também uma personalidade de historiador: não foi sem razão que começou a sua gra-
duação no curso de História da Universidade Federal da Bahia. Abandonando-o, veio a
fazer o Bacharelado em Letras Vernáculas e, terminando esse em apenas três anos, logo
partiu para Lisboa, com bolsa da CAPES, para o mestrado em Lingüística Histórica. Po-
deria ter escolhido outro, dentre os que eram oferecidos na mesma Universidade.
Além dessa não-neutralidade, decorrente de características do indivíduo, como
bem diz o Autor logo na Introdução do seu Livro:

não se pode entrever outra atitude em quem faz história da Lingüística hoje que não seja
uma atitude empenhada e irremediavelmente comprometida com uma das perspectivas
concorrentes no desenvolvimento da Lingüística contemporânea, à qual esse historiador se
filia enquanto lingüista

Entre as “perspectivas concorrentes” em que se pode recortar hoje a Lingüística,


certamente Dante Lucchesi optou por aquela que não abdica do caráter sócio-cultural e
histórico das línguas humanas (leia-se o seu último capítulo, Palavras Finais).
Assim, este livro, Sistema, mudança e linguagem. Um percurso da Lingüística
neste século - que se insere no amplo campo bibliográfico decorrente da Lingüística saus-
suriana e pós-saussuriana, e na nova historiografia da Lingüística, tendo como pano de
fundo formulações epistemológicas contemporâneas, em que, nesses últimos anos, se
busca integrar a Lingüística enquanto ciência - centra-se em um problema fundamental
que se colocou para o modelo hegemônico das primeiras décadas da chamada Lingüística
Moderna, ou seja, o(s) Estruturalismo(s), qual seja o problema da mudança das línguas no

6
tempo ou, mais rigorosamente, a contradição entre a mudança e o sistema homogêneo
estático, construído pela teoria do Cours de Saussure.
Será o sistema, na concepção saussuriana, como Dante Lucchesi demonstra no
desdobrar-se dos capítulos do seu Livro, um ponto de ruptura no modelo proposto pelo
Cours de Linguistique Générale de 1916 e, mais que isso, um ponto de partida para a sua
superação no próprio interior das orientações estruturalistas subsequentes: já a partir do
Círculo de Praga, nos anos vinte, aprofundando-se no Estruturalismo Funcionalista de
André Martinet, no pós-guerra, e, tomando uma nova forma, ou seja, desdobrando-se em
novo modelo, em que o sistema não é homogêneo, como o concebeu Saussure, mas hete-
rogêneo, a heterogeneidade estruturada da Sociolingüística Variacionista ou Correlacio-
nal, que tem como obra programática fundadora os Empirical foundations for a theory of
language change de Uriel Weinreich, William Labov e Werner Herzog, apresentada cin-
qüenta anos depois do Cours, no simpósio da Universidade do Texas sobre as novas dire-
ções da Lingüística Histórica, em 1966.
O percurso, que subintitula o Livro, seguido pelo Autor é o acima indicado. Muito
apropriadamente Dante Lucchesi o caracteriza como um percurso, porque outros percur-
sos da Lingüística neste século partem de outras contradições do rico Cours de Linguisti-
que Générale. O selecionado por Dante Lucchesi torna-se fundamental para que se per-
ceba um dos caminhos pelos quais se fez o retorno à Lingüística Histórica, excluída pelo
modelo saussuriano, estritamente sincrônico.
Este Livro, de um jovem lingüista brasileiro, caminha por uma pauta rigorosa de
exegese argumentativa sobre um conjunto de clássicos da Lingüística deste século e de-
monstra a filiação da Sociolingüística, hoje conhecida como laboviana, ao Estruturalismo
Funcionalista, que tem em Roman Jakobson e em André Martinet seus principais lumina-
res. Vale explicitar, como curiosidade biográfica, o tecido das influências no desenvolvi-
mento do trabalho científico: Labov foi discípulo de Weinreich, que estudou com Marti-
net, na sua temporada americana em meados do século.
Se Dante Lucchesi se especializasse na historiografia da Lingüística do século
XX, esperaríamos dele o traçado de outros percursos da Lingüística neste século. Com
sua vocação especulativa, argumentativa e de historiador escrutinador de fontes do passa-
do, poderíamos dele esperar uma história da Lingüística Contemporânea. Contudo, traba-

7
lha ele agora em uma outra complexa seara: coerente com a perspectiva que escolheu nos
campos diversificados da Lingüística da atualidade, inicia outra marcha, em busca de res-
ponder a uma questão teórico-histórica que envolve a compreensão do português brasilei-
ro, ou seja, a chamada “hipótese da crioulização prévia” do português popular brasileiro.
É essa temática que agora investiga, com significativo trabalho empírico de campo, na
sua rota em direção ao futuro doutoramento.
Quer pela via da história da Lingüística, quer pela via da história da língua, cum-
pre Dante Lucchesi a sua escolha dentre as perspectivas possíveis abertas para a Lingüís-
tica, a partir das rupturas pós anos cinqüenta no modelo inaugural da Lingüística Moder-
na.
E certamente cumprirá bem, como o fez neste Livro, que, sem dúvida, envolverá
os Leitores, aqueles que se interessam pelo processo de construção de uma ciência, no
caso a ciência da linguagem e das línguas, graças a sua escrita aliciadora e clara, de erudi-
ta informação, equilibrada por medida leveza.
Ao Leitor o Livro. O Prefácio, há que ser breve!

Salvador, 12 de agosto de 1997

Rosa Virgínia Mattos e Silva

8
Introdução

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE


FAZER HISTÓRIA DA LINGÜÍSTICA

9
Sobre o fazer história da Lingüística

Não é exagerado dizer que o interesse pela história da Lingüística tem, nos últi-
mos anos, experimentado um crescimento razoável. Nos diversos espaços em que esse
tema tem sido abordado, levantam-se naturalmente questões acerca da razão desse inte-
resse; dos critérios que devem balizar a postura de quem se propõe a escrever sobre a his-
tória da Lingüística (ou seja, qual a visão de história da ciência que orienta esses historia-
dores); e, finalmente, qual a concepção do objeto dessa Historiografia da Lingüística que
ressurge (ou seja, qual a concepção da Lingüística que norteia os que se dedicam à tarefa
de historiá-la). Penso que tais questões estão inter-relacionadas, de modo que a resposta a
uma necessariamente traz referências às outras. Assim sendo, nesta introdução, farei al-
gumas considerações preliminares sobre como o fazer história da Lingüística se relaciona
com o próprio fazer da Lingüística.
Em primeiro lugar, o atual interesse pela história da Lingüística não é meramente
diletante, ele comporta uma motivação mais profunda: os problemas que a Lingüística
enfrenta no presente são, na verdade, problemas da Lingüística com o seu passado, mais
precisamente, com o seu passado recente. Em cada etapa de sua história, uma ciência se
afirma, na medida em que assume uma identidade, que lhe é conferida pelo modelo teó-
rico hegemônico no período. A construção da identidade histórica da Lingüística con-
temporânea começa a formar-se na virada da década de 1960, na ruptura epistemológica
com o modelo teórico até então vigente: o Estruturalismo. Desse modo, a Lingüística
contemporânea define o seu perfil através do modo como enfrenta esse momento de rup-
tura, ou melhor, na medida em que consegue responder as questões que esse momento de
ruptura faz emergir. É a necessidade de concluir esse processo de ruptura que tem moti-
vado esse retorno da Lingüística à sua história, a busca dos parâmetros para a construção
de sua nova identidade, para determinar um novo limiar em seu desenvolvimento enquan-
to ciência. Portanto, não se pode entrever outra atitude em quem faz história da Lingüísti-
ca hoje que não seja uma atitude empenhada, irremediavelmente comprometida com uma

10
das perspectivas concorrentes no desenvolvimento da Lingüística contemporânea, à qual
esse historiador se filia enquanto lingüista.
Nesse sentido, o trabalho do historiador e o trabalho do lingüista se tocam, pois
esse último, quando propõe uma solução para um determinado problema lingüístico, o faz
frente às questões que lhe são apresentadas pela própria história da disciplina: o fazer da
ciência é sempre comprometido com o seu passado, com o que já foi feito, e a decisão
sobre o que deve ser feito em cada momento nada mais é do que um desdobramento do
processo histórico de constituição da ciência, a atualização desse processo. Essas afirma-
ções não se aplicam apenas ao estágio atual da Lingüística, mas a qualquer ponto da sua
história que se considere1.
A legitimação de uma solução dentro do processo de constituição do saber lin-
güístico efetiva-se, então, não em função de “uma maior objetividade” dessa solução, mas
em função de sua competência argumentativa e da sua capacidade de convencimento.
Desse modo, o proponente da solução deve não apenas demonstrar que ela responde aos
desafios que se colocam para a disciplina naquele momento, como também convencer os
demais de que, se ela não é a única solução, é pelo menos a melhor. Essa tarefa é mais, ou
menos, difícil consoante o momento do desenvolvimento da ciência que se considere.
Numa situação de predomínio de um determinado modelo, as disposições argumentativas
já estão hegemonicamente estabelecidas, o que torna mais fácil a tarefa do lingüista. Num
momento em que um ou vários modelos buscam a sua afirmação, num momento de dis-
puta pela hegemonia, a intensidade dos debates aumenta, e uma boa estratégia de argu-
mentação desempenha um papel decisivo.
O atual retorno à história da Lingüística pode ser visto, então, como mais uma pe-
ça dessa estratégia argumentativa. Nesse momento, o lingüista abandona o terreno da dis-
cussão inter paribus e elege a história como seu interlocutor. A história torna-se assim o
derradeiro terreno da disputa, na medida em que, em última instância, é perante a história
da disciplina, que as soluções propostas pelo lingüista devem se firmar. Investido do pa-
pel de historiador de sua ciência, o lingüista não é um observador imparcial, mas alguém
que argumenta com a história, e dentro dela. Desse modo, o ponto de vista do historiador
também é determinado historicamente e se define pela maneira como esse historiador se
insere no desenvolvimento da disciplina, isto é, pela posição teórica que ele assume2. Es-
sa afirmação contrapõe-se frontalmente à idéia de que se coloca para o historiador a pos-
sibilidade de deitar sobre a história um olhar objetivo, neutro; um olhar de quem se colo-
ca fora da história.
1
Veja-se, sobre isso, K. Rajagopalan (1989).
2
cf., a esse respeito, K. Rajagopalan (1989).

11
A indissociabilidade entre historiar a Lingüística e o próprio fazer da Lingüística
levanta a necessidade de se falar um pouco sobre o modus operandi desta ciência. Vejo a
Lingüística como uma ciência argumentativa, que se desenvolve em torno das questões
que orientam e fundamentam a construção do seu objeto de estudo3. Tal visão parte do
princípio de que o objeto de uma ciência como a Lingüística, antes de ser uma coisa em si
(algo que possua uma “existência objetiva”), é uma construção teórica que se ergue a par-
tir das manifestações mais imediatas do fenômeno lingüístico, que constituem necessari-
amente o ponto de partida da Lingüística, mas não o seu objeto. A teoria que preside o
processo cognitivo é que seleciona quais dessas manifestações são consideradas relevan-
tes para o conhecimento e determina o modo como elas se integram na construção do que
é de fato o objeto de estudo. Isso confere um papel crucial às questões com as quais a
Lingüística problematiza a apreensão e construção do seu objeto. Assim, a história da
Lingüística pode ser vista como o desenvolvimento de argumentações sobre as questões
que definem a representação teórica do seu objeto de estudo. Tal raciocínio justifica a op-
ção por uma história da Lingüística, mais voltada para questões, conceitos e formulações
teóricas, do que para escolas, políticas institucionais e a biografia de pesquisadores. Tal
escolha não nega o papel central do indivíduo na história de uma ciência e os seu condi-
cionamentos sócio-históricos, ela apenas opera dentro de uma distinção meramente meto-
dológica entre a história interna e a história externa de uma ciência.
Ao falar dessa distinção, Schlieben-Lange (1989:05-6) define a história externa da
Lingüística como: “a história das comunidades argumentativas, isto é: das pessoas e das
instituições, (...), comunidades nas quais se discutem questões que dizem respeito às lín-
guas”. Essa história, segundo a autora, pode ser estendida, para além da história dessas
instituições, a um panorama sócio-econômico e cultural mais abrangente, integrando os
movimentos institucionais no quadro mais amplo das demandas sociais. Já a história in-
terna teria por objeto “as argumentações em si”: a seleção das questões relevantes, a esco-
lha dos dados, critérios de avaliação dos esquemas explicativos adotados etc.
Considero uma distinção desse tipo meramente metodológica, porque não se pode
pensar seriamente que o jogo argumentativo de uma ciência se desenrola independente-
mente da disputa ideológica mais ampla que se trava na sociedade em que essa ciência se
desenvolve (assim, por exemplo, o Positivismo deve ser considerado no quadro mais am-
plo da grande expansão das forças produtivas no capitalismo, bem como a admirável ca-
pacidade de renovação através da qual o capitalismo se tem perpetuado diz muito sobre o
racionalismo popperiano, dentro do qual as questões cruciais são neutralizadas no terreno

3
Para uma visão da Lingüística como uma ciência argumentativa, veja-se Schlieben-Lange (1989).

12
acéptico de uma racionalidade puramente lógica). Contudo, a distinção metodológica se
sustenta, na medida em que o desenvolvimento da ciência não é um reflexo direto do pro-
cesso social mais amplo. A relativa autonomia da ciência decorre da mediação da ação
determinante das forças sociais e dos interesses de classe sobre o discurso científico. Po-
de-se pensar, então, que o discurso científico possui uma lógica própria, onde a sua razão
de ser, as suas determinações mais profundas são, com maior ou menor intensidade, dis-
simuladas. Se as mudanças sócio-históricas determinam alterações no desenvolvimento
da ciência, tais alterações devem se legitimar no interior do discurso científico, pois é
somente ao lograr essa legitimação dentro das disposições argumentativas da ciência que
um determinado sujeito histórico pode obter êxito neste espaço específico da disputa pela
hegemonia na sociedade4. Assim, o historiador que não tem a pretensão de chegar às de-
terminações últimas de um dado percurso na história da ciência pode tentar narrá-lo atra-
vés do desenvolvimento das contradições que se manifestam no interior do discurso cien-
tífico e que legitimam, no interior da própria ciência, os processos que constituem a sua
história.

A hipótese de trabalho

A análise que aqui se propõe de um determinado percurso da Lingüística no sécu-


lo XX centra-se na contradição entre a concepção de língua como um sistema, de um
lado, e a questão da mudança lingüística, de outro. A visão da sistematicidade da língua
remete à questão do funcionamento da língua enquanto instrumento privilegiado da co-
municação humana, a sua condição de código, que, para cumprir as suas funções, deve
ser estruturado. É no modo estruturante da linguagem que se deve, portanto, buscar a ex-
plicação para o fascinante mecanismo provedor de informação referencial que é a língua.
A questão da funcionalidade da língua levanta a necessidade de se fixar o sistema lingüís-
tico para que se possam analisar os mecanismos do seu funcionamento.
Por outro lado, a questão da mudança levanta uma pergunta igualmente aliciado-
ra: o que faz um sistema que funciona tão bem mudar? A resposta a essa questão acaba
por afastar a atenção do observador da funcionalidade do sistema e o conduz para as rela-
ções que a língua mantém com a sociedade, ou para fatores fisiológicos envolvidos na
fonação e na percepção dos sons vocais, ou ainda para tendências inerciais que são postu-

4
A disputa pela hegemonia na ciência nada mais é do que um front da luta ideológica que se trava na soci-
edade, de modo que os resultados obtidos nesse front contribuem em muito para a construção da hegemonia
ideológica de uma classe na sociedade.

13
ladas em níveis imponderáveis da estruturação histórica das línguas. Destaca-se uma série
de fatores que não raro sobrepujam a lógica puramente funcional que emana da conside-
ração da língua como sistema. Portanto, a contradição entre mudança e sistema assen-
ta sobre duas dimensões fundamentais e antitéticas do fenômeno lingüístico: a sua di-
mensão estrutural e estruturante e a sua dimensão sócio-histórica.
Não surpreende que, com maior ou menor dramaticidade, a tensão que emana
desse binômio tenha estado presente sob as mais variadas roupagens ao longo de toda a
história do estudo da linguagem. Já na antiga Grécia, por exemplo, surpreende-se a polê-
mica entre anomalistas e analogistas; estes buscando a essência do fenômeno lingüístico
no terreno da regularidade, que se poderia definir – sem evitar o risco do anacronismo –
como estrutural e funcional; e aqueles, em contrapartida, conduzindo a sua especulação
para as forças imponderáveis do aleatório. Mas nem sempre esses dois pólos ocupam o
cenário da ciência da linguagem numa disputa em igualdade de condições. Pode-se, ao
contrário, perceber uma sorte de movimento pendular, em que se alternam períodos de
predomínio de um enfoque sobre o outro. Desse modo, é um movimento pendular desse
tipo que reúne a Gramática de Port Royal, quando a língua é vista como uma estrutura
que se explica por princípios racionais e filosóficos, e o historicismo neogramático, se-
gundo o qual a língua, atomizada, está à mercê da ação cega e irrefutável das leis fonéti-
cas.
Esta contradição entre sistema e mudança desempenha igualmente um papel fun-
damental em outro momento decisivo na história da ciência da linguagem: o surgimento
do Estruturalismo, que muitos identificam com o próprio surgimento da Lingüística en-
quanto ciência, ou pelo menos com o nascimento da sua era moderna. No período que se
estende do final da década de 1920 ao início da década de 1960, o Estruturalismo foi,
através de suas várias matizes, o modelo teórico hegemônico dentro da Lingüística. O
surgimento e a ascensão do Estruturalismo explicam-se pelo fato de esse modelo ser ca-
paz de superar as contradições que então se colocavam no desenvolvimento da teoria lin-
güística, com base na nova concepção do objeto de estudo que ele apresenta. Por outro
lado, ao tempo em que promovia sínteses para a superação das contradições com que se
debatia a teoria lingüística, o Estruturalismo também engendrava novas contradições,
que, no plano da história interna da Lingüística, podem explicar em grande medida o seu
desenvolvimento e a sua própria superação enquanto modelo teórico hegemônico.
Creio que a resolução da disputa pela hegemonia, no quadro atual da Lingüística,
entre os modelos teóricos que sucederam o Estruturalismo repousa em grande medida na
capacidade desses modelos em apresentar formulações que permitam a superação das

14
contradições teóricas que provocaram a crise do Estruturalismo – em particular, da con-
tradição entre sistema e mudança. É essa compreensão que orienta o nosso olhar.

Breves considerações sobre a terminologia de Thomas S. Kuhn para a


historiografia da ciência

A proposição do conceito de modelo hegemônico, neste texto, levanta a necessi-


dade de se tecer algumas considerações entre a relação desse conceito com o de para-
digma proposto por T. Kuhn (1975 [1962]). Assim, sem pretender aprofundar-me na dis-
cussão sobre a validade da visão de Kuhn sobre a história da ciência, nem sobre a sua
aplicabilidade à história da Lingüística, buscarei a seguir explicar por que adotei uma
terminologia distinta5.
A visão de Kuhn assenta sobre dois princípios básicos. Em primeiro lugar, os pa-
drões de definição de cientificidade variam de acordo com os períodos que se consideram
dentro da história da ciência, portanto a noção de ciência, sendo historicamente determi-
nada, é relativa. O segundo princípio estabelece que o desenvolvimento de uma ciência
não é constituído por um movimento constante de progressivo acúmulo de conhecimento,
antes ele é marcado decisivamente por momentos de ruptura, em que se operam profun-
das transformações no quadro desse conhecimento. Tais momentos de ruptura são deno-
minados por Kuhn revoluções científicas6. O conceito de revolução científica está inti-
mamente associado a um outro conceito crucial no esquema de Kuhn: o paradigma7. Em

5
Thomas S. Kuhn apresenta a sua concepção da história da ciência, pela primeira vez, em 1962, em um
ensaio intitulado The structure of scientific revolutions, publicado como um volume na International en-
cyclopedia of unified science. Uma versão revisada desse texto é publicada em 1970, com o acréscimo de
36 páginas de post scriptum. Para uma discussão da visão de Kuhn, veja-se Lakatos e Musgrave (1970),
onde, inclusive, o próprio Kuhn (1970) procura responder aos seus críticos. Sobre a aplicabilidade da con-
cepção de Kuhn à história da Lingüística, Percival (1976) e Dascal (1978) apresentam visões opostas.
6
cf. Kuhn (1975 [1962]: 25): “Mais claramente que muitos outros, esses episódios exibem aquilo que cons-
titui todas as revoluções científicas, pelo menos no que concerne à história das ciências naturais. Cada
um deles forçou a comunidade a rejeitar a teoria científica anteriormente aceita em favor de uma outra in-
compatível com aquela. Como conseqüência, cada um desses episódios produziu uma alteração nos pro-
blemas à disposição do escrutínio científico e nos padrões pelos quais a profissão determinava o que deve-
ria ser considerado como um problema ou como uma solução de um problema legítimo. (...) cada um desses
episódios transformou a imaginação científica, apresentando-os como uma transformação do mundo no
interior do qual era realizado o trabalho científico. Tais mudanças, juntamente com as controvérsias que
quase sempre as acompanham, são características definidoras das revoluções científicas.” [os negritos são
meus]
7
cf. Percival (1976: 287): “Paradigms are related to revolutions in the following way: each scientific revo-
lution corresponds to a paradigm, and vice versa. Thus a revolution uniquely determines the character of
the paradigm which is adopted in its aftermath. The two concepts are, in fact, defined in terms of each oth-

15
suas linhas mais gerais, a definição de paradigma de Kuhn (1975 [1962]: 13) é a seguin-
te8:

Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente reconhecidas


que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comuni-
dade de praticantes de uma ciência.

Uma revolução científica se constitui fundamentalmente pela substituição de um


paradigma antigo por um novo. Após o “período de controvérsia” que se estabelece entre
os partidários dos dois paradigmas, o novo paradigma se impõe e passa a determinar os
rumos do desenvolvimento da pesquisa científica. Isso ocorre porque o novo paradigma
comporta as respostas às questões básicas que norteiam a representação do objeto de es-
tudo daquela ciência. Assim, no período de domínio desse paradigma, que Kuhn denomi-
na de ciência normal, cabe aos pesquisadores apenas e tão somente aplicar e ajustar es-
ses princípios teóricos gerais aos fatos analisados, o que Kuhn descreve como a solução
de quebra-cabeças (puzzle-solving), porque a solução, ou não, do problema geralmente é
tributada à perícia do pesquisador em promover os ajustes necessários, e não à validade
ou não do princípio estabelecido pelo paradigma. Desse modo, o paradigma constitui um
modelo metodológico e conceitual que define quais são os problemas relevantes de um
ciência, ou seja, quais os problemas que merecem tratamento científico, e qual a postura
teórica do pesquisador diante desses problemas.
Mas nem sempre os pesquisadores são bem sucedidos na solução dos problemas
que são permitidos pelo paradigma. Tais fracassos em ajustar um problema aos princípios
estabelecidos pelo paradigma constituem o que Kuhn chama de anomalias. Um acúmulo
de anomalias ou o incremento da importância conferida pela comunidade a uma determi-
nada anomalia pode provocar uma crise do paradigma, criando-se as condições necessá-
rias a uma nova revolução científica.
Há ainda dois aspectos bastante relevantes na teoria de Kuhn que devem ser des-
tacados. O primeiro é a relação entre as decisões que se tomam no âmbito do desenvol-
vimento de uma ciência e a disputa político-ideológica que se trava na sociedade:

Não é preciso ir além de Copérnico e do calendário, para descobrir que as condi-


ções externas podem ajudar a transformar uma simples anomalia numa fonte de crise
aguda. O mesmo exemplo ilustraria a maneira pela qual condições exteriores às ciências
podem influenciar o quadro de alternativas disponíveis àquele que procura acabar com
uma crise propondo uma ou outra reforma. Penso que a consideração de exemplos desse

er: “Scientific revolutions”, explains Kuhn, “are here taken to be those non-cumulative developmental epi-
sodes in which an older paradigm is replaced in whole or in part by an incompatible new one” (92).”
8
Entretanto, no desenvolvimento do texto, o conceito de paradigma aparece de forma razoavelmente ambí-
gua. Masterman (1970) chega a arrolar 21 usos diferentes do termo paradigma no ensaio de Kuhn.

16
tipo (...) adicionaria uma dimensão analítica primordial para a compreensão do avanço ci-
entífico. (Kuhn, 1975 [1962]: 15)9

Portanto, embora o discurso científico tenha uma lógica interna própria, aquele
que pretende chegar às suas determinações mais profundas, às suas motivações mais se-
cretas, deve buscá-las alhures, no desenvolvimento das forças produtivas, nas alterações
das relações sociais e políticas, nos interesses de classe. Desmistifica-se, assim, o cenário
de disputas que se decidem simplesmente por critérios científicos, exclusivamente no
plano de uma racionalidade neutra e acéptica, como propõe Popper. Essa certa dose de
irracionalidade que permeia as disputas que caracterizam o desenvolvimento de uma ci-
ência, em particular a passagem de um paradigma a outro, é o segundo ponto relevante a
ser destacado nesta breve resenha. Restaria, ainda, fazer algumas considerações sobre a
validade da teoria de Kuhn para a historiografia das ciências em geral e da Lingüística em
particular.
Em primeiro lugar, penso que o sucesso ou o insucesso da aplicação do esquema
de Kuhn à história de uma ciência depende menos desse esquema em si do que da manei-
ra como ele é aplicado. Se o historiador adota os princípios e conceitos gerais de Kuhn
como instrumentos para iluminar um determinado processo histórico, penso ser essa teo-
ria bastante profícua. Mas, se o historiador toma o esquema de Kuhn ao pé-da-letra, e o
transforma numa fôrma na qual se devem encaixar os processos históricos que constituem
o devir de uma ciência, ele estará irremediavelmente condenado ao fracasso. Ou seja, o
modelo de Kuhn só pode ter validade se tomado como um conjunto de princípios gerais
que devem orientar a analise do historiador, e não como um modelo rigidamente restriti-
vo de descrição de eventos; por uma simples razão: os processos que caracterizam o de-
senvolvimento de uma ciência constituem eventos históricos, e, enquanto tais, guardam
uma individualidade. Não se pode impingir a processos históricos uma taxionomia mili-
métrica. Infelizmente, ao que me parece, essa tem sido a tônica da avaliação da aplicabi-
lidade da teoria de Kuhn10. E, é uma visão desse tipo que fundamenta críticas à ambigüi-
dade dos conceitos propostos por Kuhn, quando eles só podem ser ambíguos11.
Tais críticas e as aplicações restritivas do esquema de Kuhn acabam por compro-
meter o seu aproveitamento para o desenvolvimento de uma teoria da história da ciência.
Não quero dizer com isso que o texto de Kuhn não dê azo a esse tipo de crítica e de apli-

9
Como declara o próprio Kuhn, esses exemplos não são tratados no ensaio de 1962, mas são discutidos em
trabalhos anteriores.
10
Não quero dizer que o texto de Kuhn não indica essa direção. O que quero dizer é que identifico uma
certa má vontade em se utilizar os pontos positivos da teorização de Kuhn.
11
No sentido da linguagem plurissignificativa que caracteriza a narrativa literária, da qual, não por acaso, a
historiografia se tem aproximado.

17
cação, nem que não haja pontos questionáveis em sua teoria (como o papel preponderante
do indivíduo nas revoluções científicas, quando elas deviam ser concebidas como proces-
sos bem mais amplos, em que a ação de um indivíduo isolado constitui apenas um dos
fatores a serem considerados). Busco apenas chamar a atenção para o fato de pontos es-
senciais da teoria de Kuhn não serem aproveitados em função de uma crítica a aspectos
absolutamente secundários.
Contudo, não obstante os seus méritos, não se pode deixar de reconhecer que a
terminologia proposta por Kuhn está hoje marcada por todas essas incompreensões. Essa
seria uma primeira razão pela qual eu não utilizei neste texto os termos propostos por
Kuhn. Mas a principal razão da não utilização da terminologia de Kuhn neste texto está
associada à adequação do modelo de Kuhn, particularmente o seu conceito de paradigma,
à história da Lingüística e de todas as ciências sociais.
Deve-se observar que toda a teorização de Kuhn – como ele próprio o admite –
está voltada para as ciências naturais. Apesar de reconhecer a diferença existentes entre
as ciências sociais e as ciências naturais, Kuhn não compreende a natureza dessa diferen-
ça. Sobre essa questão, ele afirma:

Fiquei impressionado com o número e a extensão dos desacordos expressos


existentes entre os cientistas sociais no que diz respeito à natureza dos métodos e proble-
mas científicos legítimos. Tanto a História como os meus conhecimentos fizeram-me du-
vidar que os praticantes das ciências naturais possuam respostas mais firmes ou mais
permanentes para tais questões do que seus colegas das ciências sociais. E, contudo, de
algum modo, a prática da Astronomia, da Física, da Química ou da Biologia normalmente
não evocam as controvérsias sobre os fundamentos que atualmente parecem endêmicas
entre, por exemplo, psicólogos ou sociólogos. A tentativa de descobrir a fonte dessa dife-
rença levou-me ao reconhecimento do papel desempenhado na pesquisa científica por
aquilo que, desde então, chamo de paradigmas. (Kuhn, 1975 [1962]: 12-3) [negrito meu]

Assim, o conceito de paradigma é proposto para explicar essa diferença entre as


ciências naturais e as ciências sociais; mais precisamente para contrapor o modus ope-
randi das ciências naturais ao das ciências sociais. E o conceito kuhniano de paradigma
inaugural não deixa de veicular implicitamente uma idéia de superioridade das primeiras
em relação às últimas.
Para Kuhn, uma ciência só atinge o seu estágio de maturidade quando todos os
seus membros assumem “um corpo qualquer de crenças comuns” (1975 [1962]: 33). Es-
sas crenças resultam das respostas às questões fundamentais acerca da concepção do ob-
jeto de estudo dessa ciência e do modo pelo qual ela deve apreendê-lo. Sem uma resposta
comumente aceita a essas questões, o que só ocorre com a emergência de um paradigma,

18
não há condições para uma produção satisfatória de conhecimento científico12. Assim,
antes da emergência do primeiro paradigma, os pesquisadores, ou se enredam em discus-
sões “improdutivas” acerca dessas questões fundamentais, ou se encerram em suas pró-
prias concepções, perdendo de vista o conjunto do que se produz em outras áreas de pro-
dução do conhecimento, de modo que o que se faz até então é “algo menos que ciência”
(1975 [1962]: 33).
Acontece que, no quadro geral das ciências, só no campo das ciências naturais se
podem encontrar aquelas que se enquadram dentro desse perfil, ou seja as que já atingi-
ram um “consenso estável na pesquisa”. Mas o fato de se poder afirmar que as ciências
sociais não possuem paradigmas não significa dizer que elas ainda não atingiram a sua
maturidade enquanto ciência, nem que elas sejam “menos científicas” que as ciências na-
turais. Em realidade, isso resulta de uma distinção fundamental que existe entre as ciên-
cias naturais e as ciências sociais, que a teorização de Kuhn não chega a captar. Essa dis-
tinção fundamental decorre da natureza radicalmente distinta do objeto das ciências natu-
rais frente ao objeto das ciências sociais, ou mais precisamente, da postura dessas ciên-
cias frente ao seu objeto.
Nas ciências naturais, é difícil evitar a idéia do objeto de estudo como coisa em si,
como algo exterior ao sujeito do conhecimento. Isso faz com que as questões fundamen-
tais acerca da concepção do objeto e da perspectiva adotada pelo observador sejam se-
cundarizadas em função da discussão acerca do modo de observação e apreensão do obje-
to, no que se pode chamar de fetichismo do método. Assim, a aparente idéia de que as
questões fundamentais sobre a concepção do objeto de estudo e sobre a atitude do sujeito
do conhecimento estão resolvidas faz com que a disputa no interior da ciência ocorra cru-
cialmente no terreno da observação, seleção e mensuração dos fatos a serem analisados.
Esse é no fundamental o quadro de uma ciência sob o domínio de um paradigma.
Só quando os problemas metodológicos se aguçam (isto é, nos momentos de crise
do paradigma) é que emergem as questões fundamentais que orientam de fato a pesquisa
científica. Em outras palavras, essas questões só se colocam no momento em que os pro-
blemas quantitativos do método se transformam em problemas qualitativos acerca das
concepções fundamentais do objeto de estudo da ciência. Portanto, nas ciências naturais,
as decisões acerca das questões fundamentais para o seu desenvolvimento são mediadas
pelo complexo e sofisticado instrumental metodológico que essas ciências desenvolve-

12
cf. Kuhn (1975 [1962]: 23): “A pesquisa eficaz raramente começa antes que uma comunidade científica
pense ter adquirido respostas seguras para perguntas como: quais são as entidades fundamentais que com-
põem o universo? como interagem essas entidades umas com as outras e com os sentidos? que questões
podem ser legitimamente feitas a respeito de tais entidades e que técnicas podem ser empregadas na busca
de soluções?”

19
ram. É esse cenário subjaz o conceito de paradigma, nos termos em que ele é proposto
por Kuhn.
Nas ciências sociais, o cenário é (e não pode deixar de ser) totalmente distinto, na
medida em que a idéia do objeto como coisa em si dificilmente se sustenta. Desse modo,
as questões fundamentais acerca da construção teórica do objeto de estudo e da perspecti-
va adotada pelo sujeito do conhecimento estão sempre presentes, mesmo quando a dis-
cussão é “metodológica”. Ou seja, a idéia de “um consenso estável na pesquisa” e a forti-
ori o conceito kuhniano de paradigma, que nela se fundamenta, não se aplicam à história
das ciências sociais. A disputa explícita sobre as questões fundamentais faz com que a
relação do desenvolvimento de uma ciência com os condicionamentos sócio-históricos
“externos” seja muito mais nítida nas ciências sociais, e os alinhamentos em torno de po-
sições de classe tornam-se por vezes muito evidentes. Isso faz com que, em muitos casos
(como na Economia Política, por exemplo), modelos antagônicos se mantenham em con-
flito, dialógico ou não, no interior de uma mesma ciência, durante longos períodos.
Assim, se não é plural, o cenário de qualquer ciência social é sempre muito mais
matizado do que o cenário da ciência normal, que caracteriza os períodos de estabilidade
de uma ciência madura, na concepção de Kuhn. Mas, antes de ser um índice de “imaturi-
dade” ou de “menor cientificidade”, essa é uma característica inerente às ciências sociais.
Em realidade, a definição da situação de domínio de um paradigma como uma situação
de maturidade de uma ciência e a idéia de que as ciências sociais só atingiriam a sua ma-
turidade com a emergência de um paradigma (como definido por Kuhn) corrobora a visão
de que as ciências naturais devem ser tomadas como modelos de todas as ciências.
Penso que, em qualquer ciência, se deve buscar a ampliação do espaço de con-
fronto entre suas várias teorias, para o que contribui uma maior definição de critérios co-
muns de verificação empírica das hipóteses. Mas daí a pensar que se podem estabelecer
critérios de avaliação de esquemas explicativos objetivos (ou independentes de contexto),
ou que a discussão das questões fundamentais deva ser substituída por uma metodologia
unificada e “neutra”, vai uma grande diferença.
A argumentação em torno das questões cruciais sobre a construção teórica do ob-
jeto de estudo constitui uma das dimensões essenciais das ciências sociais. As estratégias
argumentativas e a capacidade de convencimento, dentro dos parâmetros lógicos da ar-
gumentação, desempenham um papel decisivo no seu desenvolvimento, o que torna a ló-
gica desse desenvolvimento bastante distinta da lógica do desenvolvimento das ciências
naturais, pois, nas ciências sociais, a conversão de problemas metodológicos quantitativos
em problemas qualitativos acerca da própria concepção do objeto de estudo é muito mais
dinâmica e constante do que nas ciências naturais. Assim, por entender que o conceito de

20
paradigma de Kuhn não se ajusta à lógica do desenvolvimento das ciências sociais, não
adotei a sua terminologia, não obstante concordar com pontos fundamentais da sua teoria.
A utilização de termos como modelo teórico hegemônico ou modelos teóricos
concorrentes, ao invés de paradigmas, se justifica por uma concepção de que o desen-
volvimento das ciências sociais se processa através da disputa pela hegemonia dentro das
disposições argumentativas estabelecidas no interior da ciência; disposições essas que
podem inclusive se alterar no desenvolvimento das argumentações. Entretanto, em algu-
mas situações, um determinado modelo pode se sobrepor aos demais e ocupar os princi-
pais espaços em que se opera o desenvolvimento da ciência, colocando-se como o mode-
lo mais produtivo em termos teóricos e analíticos. Diz-se, então, que tal modelo conquis-
tou a hegemonia nesta ciência. Tal é o caso do Estruturalismo, no período que vai do final
da década de 1920 ao início da década de 1960. A existência de um modelo hegemônico
não significa a extinção dos outros modelos teóricos13, mas apenas que esses subsistem
em uma posição secundária. Assim, o cenário mais comum nas ciências sociais comporta
mais de um modelo. E mesmo no interior do modelo hegemônico, identificam-se corren-
tes distintas, que, se compartilham princípios básicos acerca da concepção do objeto de
estudo e do método, apresentam posições particulares acerca dessas questões, já que elas
estão sempre presentes nos percursos argumentativos (as vertentes européia e americana
do Estruturalismo podem ser tomadas aqui como exemplo).
Por outro lado, adotando a visão de rupturas epistemológicas como momentos
cruciais na história de qualquer ciência, devo destacar o caráter de processo de tais even-
tos, antes de seu caráter pontual. Assim, no plano da história interna da ciência, essas rup-
turas podem ser vistas como o resultado do desenvolvimento de contradições produzidas
no interior dos percursos argumentativos. E na medida em que a história da ciência é vis-
ta como o desenvolvimento de argumentações em torno das questões com as quais a ci-
ência problematiza a construção do seu objeto, essas contradições podem ser expressas
através de contradições entre questões, conceitos e formulações propostas, como é caso
da contradição entre mudança e sistema que constitui o objeto deste livro.
Tal visão da história das ciências sociais dá conta também da recorrência de ques-
tões sobre a representação do objeto de estudo e sobre o método, ao longo da história, o
que também não se enquadra dentro do esquema estabelecido por Kuhn14. Portanto, pro-

13
O que está previsto também na teoria das cinousuras de Hyme (1974).
14
Assim, por exemplo, Chomsky (1966: 72-3) concebe a história da Lingüística como uma alternância en-
tre períodos marcados por abordagens antagônicas: a racionalista e a empiricista. Do mesmo modo, como
esbocei acima uma outra visão da história da Lingüística em função da consideração das duas dimensões
cruciais e antitéticas do fenômeno lingüístico: a sua dimensão estruturante e a sua dimensão sócio-
histórica.

21
curei demonstrar nessas breves considerações que a diferença entre a concepção de histó-
ria da ciência de Kuhn e a que adoto aqui não é meramente terminológica, embora haja
muita coisa em comum entre ambas. Por outro lado, maiores esclarecimentos sobre a
concepção da historia da ciência que adotei serão dados, naturalmente, através do modo
como narro o percurso da história da Lingüística, que constitui o objeto deste livro.

As partes integrantes deste livro

A concepção do Estruturalismo como o modelo hegemônico na Lingüística, de


acordo com o que foi dito acima, pressupõe um cenário matizado, em que as diversas cor-
rentes desse modelo, ao tempo em que guardam um conjunto de características comuns,
mantêm uma identidade própria e expressam de maneira específica o desenvolvimento
das contradições geradas no interior desse modelo. Não constitui nosso objetivo aqui ana-
lisar globalmente a trajetória do Estruturalismo dentro da história da Lingüística. Algu-
mas das mais importantes matizes desse modelo, como o Estruturalismo americano, não
são focalizadas. Busco analisar um dos percursos dentre os que constituem essa trajetória.
A delimitação que aqui se propõe está diretamente subordinada a uma hipótese
axial: no plano da história interna, a contradição entre mudança e sistema desempenha
um papel capital no desenvolvimento e na superação do Estruturalismo como modelo
teórico hegemônico na Lingüística. Assim, o percurso que busco traçar é aquele que, a
meu ver, expressa de maneira mais nítida e incontestável essa hipótese; considerando
também , obviamente, que tal percurso é satisfatoriamente representativo do desenvolvi-
mento do Estruturalismo como um todo. Ou seja, se a necessária delimitação não permite
que se observe diretamente o todo, ela não conduz, entretanto, à sua deformação.
Em linhas gerais, o percurso analisado se inicia na obra de Ferdinand de Saussure,
passa pelos trabalhos do Círculo Lingüístico de Praga e pela corrente funcionalista, lide-
rada por André Martinet, e estende-se ao surgimento da Sociolingüística Variacionista,
tocando de modo tangencial o panorama da Lingüística contemporânea.
A publicação do Cours de Linguistique Générale de Ferdinand de Saussure é o
marco do surgimento do Estruturalismo na Lingüística. Segundo Bourdieu (1983 [1972]),
a obra de Saussure define o próprio surgimento da Lingüística enquanto ciência, na me-
dida em que representa a passagem do modo fenomenológico do conhecimento, em que
o saber se atém às manifestações mais imediatas do seu objeto de estudo, ao modo obje-
tivista do conhecimento, em que o saber constrói o seu objeto a partir de suas relações
estruturais e estruturantes objetivas. Este momento se caracteriza fundamentalmente pela

22
assunção da concepção de língua como um sistema de relações estritamente lingüísticas
encerrado em sua lógica interna: uma estrutura où tout se tient.
Ao tentar apreender a dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico
através da sua concepção de língua, Saussure é obrigado a descartar a intervenção das
relações sócio-históricas no processo lingüístico, e condena ao ostracismo a questão da
mudança. Essa seria a principal característica do primeiro momento do percurso que pre-
tendo analisar. Esse momento, que constitui o objeto da 1ª Parte deste livro, define o
surgimento do modelo estruturalista na Lingüística. Nesta 1ª Parte, discuto alguns dos
aspectos centrais da teorização de Saussure: os fundamentos e limites da sua concepção
de língua como sistema e a sua fundamentação empírica, e o esforço teórico empreendido
por Saussure para demonstrar a oposição absoluta entre sistema e mudança.
A análise que constitui a 2ª Parte deste livro tem por objeto o desenvolvimento
do modelo inaugurado por Saussure através dos trabalhos do Círculo de Praga e do Fun-
cionalismo de André Martinet, que podem ser reunidos sob o rótulo geral de Estrutura-
lismo Funcionalista. Em Saussure, encontra-se apenas o contorno mais geral da teoria
estruturalista, sua obra é constituída basicamente por formulações e princípios gerais que
se encontram ainda num plano muito abstrato. Com o Estruturalismo Funcionalista, esses
princípios gerais serão aplicados à análise concreta dos fatos lingüísticos. Desse modo,
essa corrente caracteriza-se primeiramente pela tentativa de conferir maior concretitude
às representações teóricas do modelo, no que desempenha um papel crucial a associação
da noção de funcionalidade à concepção de língua como sistema.
Porém, os grandes avanços promovidos pelo Estruturalismo Funcionalista situam-
se, ironicamente, em um nível de estudo da língua que não era considerado por Saussure
como propriamente lingüístico: a fonologia. E o sistema fonológico acaba por constituir a
mais completa formalização analítica da concepção estruturalista de língua como sistema.
Mas, dentro do percurso que aqui se traça, não é esse o campo da pesquisa lin-
güística, em que o Estruturalismo Funcionalista desempenha o seu papel decisivo. Ani-
mados com os sucessos obtidos na análise fonológica sincrônica, os membros dessa cor-
rente teórica buscarão estender a aplicação do método estrutural ao terreno da história das
línguas, numa tentativa de superar a contradição estabelecida por Saussure entre mudança
e sistema. Essa tentativa marcaria de forma dramática os rumos do Estruturalismo na
Lingüística. Da extensão do método estrutural à história das línguas resulta o que se con-
vencionou chamar Estruturalismo Diacrônico, corrente que tentou explicar o desenvolvi-
mento histórico das línguas através da lógica do sistema lingüístico: era a mudança trazi-
da para o domínio do sistema. É nesse momento que a contradição entre mudança e sis-

23
tema atinge o seu ápice dentro do modelo teórico do Estruturalismo, determinando um
dos pontos da ruptura epistemológica com esse modelo na história da Lingüística.
A importância da contradição entre mudança e sistema para a crise do modelo es-
truturalista é atestada pelo fato de a Sociolingüística Variacionista, um dos programas de
pesquisa que sucederam o Estruturalismo, ter colocado a mudança e a variação lingüísti-
cas no centro de suas preocupações e orientado todo o seu programa teórico para a possi-
bilidade do estudo sistematizado dos processos de mudança em progresso refletidos nos
quadros da variação lingüística sincrônica.
Analisar em que medida a Sociolingüística supera a teorização estruturalista atra-
vés do seu tratamento da questão da mudança constitui um dos objetivos da 3ª Parte des-
te livro. Nesta 3ª Parte, em que procuro falar também dos avanços e limitações da teoria
sociolingüística e de como essa corrente se insere no panorama da Lingüística contempo-
rânea, não pretendo esgotar os temas tratados, busco antes levantar questões, sistematizar
os problemas e sugerir caminhos. Com esse espírito, falarei sobre como a teorização so-
ciolingüística preenche as lacunas observadas na explicação estrutural-funcionalista da
mudança, e das limitações desta que subsistem naquela. Destacarei, ainda, a importância
da consideração da inter-relação entre língua e sociedade na superação da abordagem es-
truturalista da mudança. E, finalmente, falarei da concepção de língua como um sistema
heterogêneo, que ocupa uma posição fundamental na constituição do modelo teórico da
Sociolingüística Variacionista.
Nas páginas finais deste livro, busco sintetizar as questões que esse percurso le-
vanta para a Lingüística contemporânea e falar sobre a importância dessas questões na
definição dos rumos atuais da ciência, de acordo com a visão que expressei no início des-
ta Introdução. E, retomando a visão da Lingüística como uma ciência que se define no
processo de construção do seu objeto, devo dizer que, no percurso que aqui se anuncia, o
enfrentamento das questões encontrará os seus momentos de maior dramaticidade quando
se explicita o que está de fato em jogo: a concepção do objeto de estudo da Lingüística.
Nenhuma história do desenvolvimento da teoria lingüística pode escapar a essa questão
crucial: como se define realmente a linguagem humana? Foi essa a questão que animou
Saussure, é essa a questão que está no centro de todos os momentos decisivos da história
da Lingüística. Se o estágio atual dessa ciência está fadado a ser um desses momentos, é
no enfrentamento dessa questão que ele encontrará o seu destino.

24
1ª Parte

A PRIMAZIA DO SISTEMA E O OSTRACISMO DA MUDANÇA

25
Nur die Bewegung ist wirklich,
nur die Ruhe ist wahrnehmbar
SCHUCHARDT

O ato inaugural da Lingüística Moderna é geralmente identificado à publicação,


em 1916, do Curso de Lingüística Geral, de Ferdinand de Saussure15 (doravante também
referido simplesmente por Curso16). Nessa obra, estão contidos os princípios da concep-
ção de língua como uma estrutura. A aplicação ulterior dessa concepção na análise efe-
tiva dos fatos lingüísticos e o conseqüente refinamento metodológico resultaram no que
se definiu como Estruturalismo17. Com o advento do Estruturalismo, a Lingüística passa
de um enfoque eminentemente histórico e atomístico para uma abordagem que aspira à
globalidade da língua enquanto estrutura. Essa globalidade, entretanto, não transcende o
horizonte fixado pelo sistema de relações objetivas estruturantes, sendo descartados os
fatos através dos quais se atualizam as relações da língua com a sociedade. Por outro la-
do, a abordagem estrutural proclama-se exclusivamente sincrônica: aplica-se somente a
um estado de língua, que se imagina estático e discreto; sendo a abordagem histórica, ou
diacrônica, secundária e suplementar, já que tem por base a comparação dos estados fi-

15
cf. M. Leroy (1982 [1971]: 93): “O Cours de linguistique générale teve, portanto, considerável repercus-
são e não é sem razão que se considera por vezes sua publicação como a certidão de nascimento da Lingüís-
tica moderna”; e R. Wells (1947: 1): “the Cours de linguistique générale is justly credited with providing ‘a
theoretic foundation to the newer trend of linguistics study’”.
16
Por Curso indico a tradução brasileira (cf. Saussure, 1973) da 5ª edição do Cours de linguistique généra-
le, de 1955 (doravante referida por Cours), da qual indico também o número da(s) página(s) corresponden-
te(s) à(s) das passagens citadas pela edição brasileira. Esta 5ª edição é uma simples reimpressão com pou-
cas correções de detalhe da 2ª edição, de 1922, que, por sua vez, difere da 1ª edição apenas pela sua pagina-
ção. (cf. Leroy, 1982 [1971]: 78 nota 1)
17
Para uma introdução à definição de ‘Lingüística Estrutural’ e as correntes do Estruturalismo, ver Lep-
schy, 1975 [1966]: 20-23.

26
xados ao longo do devir temporal. Com isso, a mudança lingüística, que até então ocu-
pava uma posição central entre as preocupações teóricas dos lingüistas, passa a uma posi-
ção secundária, sendo mesmo excluída por alguns centros de pesquisa.
Para além do que representou para a teoria lingüística (ou Lingüística Geral, co-
mo também é chamada), a publicação do Curso enseja também questões de natureza bio-
gráfica e filológica que remetem para história intrigante e apaixonada da vida e da obra
de Ferdinand de Saussure18. Após um início de carreira brilhante, Saussure encerra-se
num progressivo e silencioso isolamento. Só alguns poucos colegas sabem que esse silên-
cio é a expressão da angústia de Saussure diante dos problemas e lacunas que identifica
na Lingüística da época. Uma carta a Antoine Meillet exprime bem esse estado de espíri-
to:

Estou muito desgostoso com tudo isso e com a dificuldade que há, em geral, pa-
ra escrever dez linhas quando se tem senso comum em matéria de fatos de linguagem.
Preocupado sobretudo, há muito tempo, com a classificação lógica desses fatos, com a
classificação dos aspectos sob os quais os tratamos, vejo cada vez mais, também, a imen-
sidade do trabalho que seria necessário para mostrar ao lingüista o que ele faz, reduzindo
cada operação à sua categoria prevista; e, ao mesmo tempo, a grande insignificância de
tudo o que se pode fazer, finalmente, em Lingüística.
(...)
Sem cessar, a absoluta inépcia da terminologia corrente, a necessidade de refor-
má-la e de mostrar para isso que espécie de objeto é a língua em geral vem estragar
todo o meu prazer histórico, embora eu não tenha nenhum desejo mais caro do que não
precisar ocupar-me da língua em geral.
Isso, contra a minha vontade, acabará num livro, em que, sem entusiasmo nem
paixão, explicarei por que não há um só termo empregado em Lingüística ao qual eu atri-
bua um sentido qualquer. É só depois disso, confesso-o, que poderei retomar o meu traba-
lho no ponto em que o havia deixado. [negrito meu] (apud Benveniste, 1976 [1963]: 40-
41)

Porém a vontade, ou melhor dizendo, a falta dela sobrepôs-se à necessidade, e


Saussure não escreveu o livro que se impunha. Entretanto, nos últimos anos de sua vida, é
convidado a assumir a cadeira de Lingüística Geral na Universidade de Genebra. Nos
apontamentos dos alunos dos três cursos que ministrou nesta condição, em 1907, 1908-9
e 1910-11, e em algumas poucas notas pessoais, encontra-se o esboço da imensa tarefa
que Saussure, contra a sua vontade, se propunha realizar. A partir desses materiais, após

18
Não está entre os objetivos deste livro uma discussão detalhada destas questões, que serão abordadas
apenas à medida de sua pertinência para o raciocínio aqui desenvolvido. Entre os trabalhos que abordam de
forma mais profunda e completa a vida e a obra de Saussure, e a problemática filológica do Curso, pode-
mos citar: DE MAURO, 1972; CULLER, 1979; BENVENISTE, 1976 [1963]; GODEL, Robert. Les sour-
ces manuscrites du Cours de linguistique générale de Ferdinand de Saussure. Genève-Paris, Droz, 1957; e
SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique générale. Edition critique par Rudolf Engler. Wiesbaden,
Otto Harrassowitz, 1967, tome I. (As citações completas remetem a obras que não constam da bibliografia
que utilizei; constituem, pois, referências indiretas. As obras que são referidas pelo nome do autor e ano de
publicação, têm a sua referência completa na bibliografia deste livro.)

27
sua morte, em 1913, dois de seus colegas, Charles Bally e Albert Sechehaye, organizaram
e prepararam um volume que veio a público em 1916 com o título de Curso de Lingüísti-
ca Geral. A fortuna desta obra superaria a expectativa mais otimista de seus organizado-
res; com ela os rumos do estudo da língua são profundamente alterados, e Saussure se
torna o “Pai da Lingüística Moderna”.
Produzido desta maneira, o Curso de Lingüística Geral, desde o seu aparecimen-
to, abre um extenso e profícuo campo para o trabalho da crítica textual. Mas, curiosamen-
te, só a partir da década de 50, surgem trabalhos que, de forma sistematizada, problemati-
zam filologicamente esta obra. Põe-se assim a questão: por que somente cerca de quatro
décadas após a publicação do Curso tal questão é levantada?19 É significativo que isto
ocorra justamente no momento em que o modelo inaugurado por Saussure entra em sua
fase crepuscular. É precisamente no momento em que a “autoridade” do texto do Curso é
posta em causa que se busca dissociar o nome de Saussure do livro com o qual entrou de-
finitivamente para a história da Lingüística. Sabe-se hoje, por exemplo, que a famosa fra-
se final do Curso – “a Lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua considera-
da em si mesma e por si mesma.” (Curso: 271) [la linguistique a pour unique et véritable
objet la langue envisagée en elle-même et pour elle-même. (Cours: 317)]20 – não é de au-
toria de Saussure, mas dos organizadores do Curso21. O que tudo isso significa?
Em primeiro lugar é preciso deixar claro o que é óbvio: a problematização filoló-
gica do Curso suscita uma questão legítima do ponto de vista científico. Contudo, no de-
bate sobre a história da Lingüística, esse tipo de questão pode significar um expediente de
tergiversação. O Curso de Lingüística Geral introduz um modelo teórico que se reprodu-
ziu através de diversas correntes durante décadas22, período em que foi alvo de inúmeras
polêmicas, análises e exegeses. A posição que Saussure ocupa na história da Lingüística
não lhe é conferida por sua existência biográfica ou pelo conjunto das notas e apontamen-

19
cf. Lepschy, 1975 [1976]: 32-33
20
Itálico das edições.
21
cf. I. Iordan (1982 [1962]: 383 - nota 18).
22
cf., por exemplo, de Mauro (1972: IV): “On sait d'autre part combien la linguistique, la sémiologie, la
anthropologie de notre temps doivent à Saussure. Des concepts et des thèmes contenus dans le Cours de
linguistique générale ont étés utilisés au centre de différentes direction de recherche. Se réclament en effet
du Cours la sociolinguistique avec Meillet et Sommerfelt, la stylistique genevoise avec Bally, la linguisti-
que psychologique avec Sechehaye, les fonctionnalistes comme Frei et Martinet, les institutionalistes ita-
liens comme Devoto et Nencioni, les phonologues et structuralistes pragois comme Karcevskij, Troubetz-
koy et Jakobson, la linguistique mathématique avec Mandelbrot et Herdan, la sémantique avec Ullmann,
Prieto, Trier, Lyons, la psycholinguistique avec Bresson et Osgood, les historicistes comme Pagliaro et Co-
seriu; et encore Bloomfield (mais pas ses disciples), Hjelmslev et son école glossématique, Chomsky (plus
que ses partisans).”

28
tos dos seus cursos, mas pelo texto de 191623. Pode-se dizer que a existência de Saussure
para a história da Lingüística se inicia três anos após a sua morte24. Por tudo isso, o texto
de 1916 constitui um objeto de discussão, não apenas legítimo, mas crucial para a história
da Lingüística, num debate que passa ao largo dos problemas de autoria do texto, ou do
grau de fidelidade dos organizadores ao mestre. Mesmo que se provasse que Ferdinand
de Saussure e o Curso de Lingüística Geral não passassem de uma invenção borgiana de
Bally e Sechehaye, este livro e seu fictício autor não deixariam de constituir um dos prin-
cipais objetos do estudo da história da Lingüística.
Por outro lado, o fato de o Curso ser, num certo sentido, obra de criação coletiva
constitui, sim, uma metáfora do que concretamente se passa em ciência. Quando se atri-
bui a obra de um único autor uma ruptura, uma mudança de rumo, a adoção de um novo
modelo teórico numa determinada ciência, faz-se abstração. As alterações no que se defi-
niu como intersubjetividade não são tarefa de um único indivíduo, mas de muitos indiví-
duos que a executam ativa ou passivamente, seja através da aplicação, da exegese, da
análise, seja através da aceitação e divulgação de uma determinada obra básica. São tam-
bém essas obras básicas síntese dialética do que já se fez e partículas seminais do que se
fará. Ao nível da história, não passam de pontos de referência, marcos que se destacam
num continuum de atividade coletiva que constitui o fazer de uma ciência. No momento
atual, em que, na ausência de um modelo hegemônico, a Lingüística se interroga sobre
o(s) caminho(s) a seguir e busca em sua história as respostas que esta interrogação de-
manda, torna-se candente a discussão do texto de 1916 e de que maneiras essa contribui-
ção de Saussure se materializou no(s) percurso(s) da Lingüística desde então.
Mas, antes de tudo, cabe situar o pensamento saussuriano no contexto mais geral
da produção do conhecimento no seu tempo. A produção de Saussure está relacionada à
concepção positivista do conhecimento. Uma relação que imprime marcas nítidas na sua
fraseologia, e se manifesta em empréstimos e comparações feitas com outras ciências 25.
No entanto, tal relação não é suficiente para definir o pensamento saussuriano. Princi-
palmente porque a Lingüística já era positivista antes de Saussure. Apenas se tratava de

23
cf. J. Culler (1979: 10): “o Cours de linguistique générale, tal como foi criado por Bally e Sechehaye, é a
fonte da influência e da reputação de Saussure. Só a partir de 1967, quando Rudolf Engler começou a pu-
blicar as notas dos discípulos a partir das quais se elaborou o Cours, foi possível ir além do texto elabora-
do. Foi o Cours mesmo que influenciou sucessivas gerações de lingüistas.”
24
cf. Benveniste (1976 [1963]: 49): “Abarcando com o olhar esse meio século decorrido, podemos dizer
que Saussure cumpriu bem o seu destino. Além da sua vida terrena, as suas idéias brilham mais longe do
que ele teria podido imaginar, e esse destino póstumo se tornou como uma segunda vida, que se confunde
para sempre com a nossa.”
25
cf. A. Alonso (1959[1945]: 10): “Saussure, al fin buen positivista, quisera competir con las ciencias físi-
cas.”

29
um positivismo menos elaborado, mais imediato, que, por um lado, abrigava formulações
fortemente decalcadas das ciências naturais, de matiz positivista-naturalista; e, por outro,
atuando sobre um conjunto de fatos particulares (donde a sua definição como atomista),
se encerrava perigosamente em sua metodologia nomotética.
A intensa preocupação teórica de Saussure vai resultar num vigoroso modelo de
articulação do saber lingüístico num outro patamar, qualitativamente superior. A viragem
saussuriana na Lingüística representa – para usar as formulações de Bourdieu (1983
[1972]: 46) – a passagem de um momento em que o saber lingüístico “explicita a verdade
da experiência primeira do mundo social, isto é, [busca a] apreensão do mundo social
como mundo natural e evidente” para um outro momento em que esse saber “constrói re-
lações objetivas (...), que estruturam as práticas e representações práticas”. Por outro la-
do, Mikhail Bakhtin (1986 [1929]: 83), um dos mais fecundos e perspicazes críticos do
pensamento saussuriano, ao estabelecer um “traçado histórico” da orientação imprimida
por Saussure à Lingüística, filou-a ao racionalismo cartesiano do século XVIII. E justifica
essa filiação da seguinte maneira:

A idéia de uma língua convencional, arbitrária, é característica de toda a corrente racio-


nalista, bem como o paralelo estabelecido entre o código lingüístico e o código matemáti-
co. Ao espírito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é rela-
ção do signo com a realidade por ela refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a
relação de signo para signo, no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e
integrado. Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de
signos; este é considerado, assim como na lógica, independentemente por completo das
significações ideológicas que a ele se ligam. [itálicos do original ]

Mas, apesar de a Lingüística apresentar uma dimensão positivista antes e depois


de Saussure, e de as raízes do seu pensamento poderem ser fincadas no século XVIII, a
sua obra dá início a um novo período na história dessa ciência, na medida em que deter-
mina uma revisão de todo o seu aparato teórico-metodológico à luz da concepção de lín-
gua como sistema. Mesmo os conceitos e noções anteriores ao seu modelo foram adapta-
dos a essa nova articulação teórica. Quanto mais buscava responder às questões que se
colocava, mais Saussure avançava em relação ao fazer lingüístico do seu tempo, pois,
como bem observou Benveniste (1976 [1963]: 43), nessa altura “os lingüistas estavam
então absorvidos num grande esforço de investigação histórica, no emprego dos materiais
de comparação e na elaboração de repertórios etimológicos. Esses grandes empreendi-
mentos, afinal muito úteis, não deixavam lugar às preocupações teóricas”. E é uma ques-
tão teórica que vai estar no centro das preocupações de Saussure: a necessidade de mos-
trar que espécie de objeto é a língua em geral.

30
A posição do objeto de estudo é tão determinante que, em sua apreensão, toda a
Lingüística se articula. Ao imprimir uma estrutura à língua, Saussure promove toda a or-
ganização da Lingüística, deixando para trás o empirismo primário e mais imediato e es-
tabelecendo a primazia do conceito de sistema lingüístico.
O sistema lingüístico, para Saussure, é, entretanto, fundamentalmente um sistema
de signos, o que justifica inclusive a filiação da Lingüística a uma ciência geral dos sig-
nos, que ele denomina Semiologia. Segundo alguns estudiosos, a teoria do signo desem-
penha um papel fundamental na produção teórica de Saussure, sendo inclusive o estudo
dessa teoria a mais privilegiada perspectiva de exegese da sua obra 26. Toda a análise que
Saussure desenvolve sobre o signo lingüístico apoia-se na noção de arbitrariedade da re-
lação que une as suas partes constituintes: o significante e o significado. Esta idéia de
arbitrariedade do signo lingüístico produziu, contudo, uma extensa discussão dentro da
própria Lingüística Estrutural27.
A concepção de língua como sistema, ao apoiar-se decisivamente no signo lin-
güístico e na relação entre o significante e o significado, acabou por reduzir a sua base
empírica. Outros níveis de estudo da língua, que foram inclusive bastante explorados por
aqueles que vieram a aplicar os princípios do mestre de Genebra, particularmente a fono-
logia, não entram em linha de conta na formulação do texto do Curso, ou são mesmo re-
jeitados como não sendo propriamente lingüísticos. Essas exclusões devem ser compre-
endidas à luz da operação através da qual Saussure introduz a língua como o único obje-
to de estudo da Lingüística. Esta operação elementar seria, segundo Saussure, a condi-
ção sine qua non para o desenvolvimento dos estudos lingüísticos e para que a Lingüísti-
ca se estabelecesse como ciência autônoma. Para Saussure o universo da linguagem, de-
finida no Curso como o conjunto de manifestações imediatas do fenômeno lingüístico,
seria incognoscível, em função de seu caráter heterogêneo e plural. Em contrapartida, a
língua, dada a sua natureza unitária e homogênea, constituiria, para o lingüista, o seu ob-
jeto de estudo por excelência.
É também nesta operação elementar que se percebe com maior nitidez os traços
positivistas do pensamento saussuriano. Em primeiro lugar, pela conversão da língua,
uma construção teórica do lingüista, em coisa em si, em fato que se oferece objetivamen-
te ao lingüista. Esta noção positivista de objetividade apoia-se, por sua vez, numa con-
cepção excludente do processo do conhecimento. Uma concepção que exclui, implícita

26
Ver de Mauro, 1972: VIII e ss.; e Culler, 1979: 27 e ss.
27
Veja-se, por exemplo, a discussão que se desenrolou, a esse respeito, nas páginas da Acta Linguistica:
Benveniste, 1939; Sechehaye, Bally e Frei, 1941; Buyssens, 1941; Borgeaud, Brocker e Lohmann, 1943; e
Gardiner, 1945.

31
ou programaticamente, o sujeito do conhecimento – ou seja, todos os condicionamentos
sócio-culturais e ideológicos a que esse sujeito está submetido.
Um outro aspecto relevante do pensamento saussuriano é o seu modo dicotômico
de efetivação, que engendra as sua famosas antinomias28. Ocupa uma posição basilar no
quadro do pensamento saussuriano a dicotomia que opõe os conceitos de língua (fr. lan-
gue) e fala (fr. parole). Nesta oposição entre língua – o lado social da linguagem, sua par-
te essencial do ponto de vista lingüístico – e fala – manifestação individual da língua, que
deve ser superada no processo de constituição da teoria lingüística –, vislumbra-se uma
das dimensões do parentesco do pensamento saussuriano com o positivismo, através da
adoção do conceito de fato social, de Émile Durkheim. A língua como fato social é, para
Saussure, exterior ao indivíduo, e este a aceita passivamente. Em última instância, a cons-
tituição desse objeto ideal, a língua unitária e homogênea, opõe-se ao seu existir con-
creto, que se atualiza efetivamente nas relações sócio-culturais e ideológicas que a ativi-
dade lingüística engendra e no interior das quais ela se constitui. Um existir que não se
pode apreender fora da relação dialética que reúne o plano do indivíduo ao plano social.
Para dissociar a língua do seu existir concreto, é preciso separá-la também de sua
história, ignorando o processo ininterrupto de transformações que é inerente a sua consti-
tuição. A língua saussuriana é, assim, um objeto sincrônico. A Lingüística Sincrônica,
que se ocupa de um estado de língua, resulta de uma abstração através da qual a língua é
imobilizada fora do devir temporal. O modelo estruturalista apoia-se crucialmente nessa
abstração. A concepção estrutural transforma a língua real, essencialmente dinâmica, em
um objeto ideal, a língua estática (donde a definição da Lingüística Estática, de Saussu-
re), e o faz à maneira da Medusa mitológica, que, através de seu olhar fulminante, trans-
formava os homens em estátuas de pedra. Levando esse raciocínio às últimas conseqüên-
cias, Saussure exclui a questão da mudança do terreno próprio das investigações lin-
güísticas. E ao seu território de exílio denomina Lingüística Diacrônica.
Analisar todos os procedimentos através dos quais Saussure executa esta operação
de exclusão teórica da mudança lingüística põe em questão a concepção estrutural de lín-
gua por ele inaugurada. O próprio Saussure, com argúcia e intensidade, percebeu os ris-
cos e os desafios que a questão lhe colocava. Esses riscos e desafios definem o primeiro
momento do percurso que será aqui analisado; o momento da primazia do sistema e do
ostracismo da mudança.
CAPÍTULO I
28
Cf. A. Alonso (1959 [1945]: 10): “Con razón se ha llamado a Saussure el gran deslindador de antinomi-
as”; que acrescenta ainda, em nota: “En realidad, como conjunto y estilo mental, las antinomias de Saussure
procedem de Hegel a través del linguísta hegeliano VICTOR HENRY, Antinomies linguistiques.”

32
A CONCEPÇÃO DE LÍNGUA COMO SISTEMA EM
SAUSSURE: O SURGIMENTO DO MODELO

O pensamento saussuriano, sistematizado por dois de seus colegas no Curso de


Lingüística Geral, a pedra angular do Estruturalismo na Lingüística29, assenta-se sobre a
concepção axial de língua como um sistema de signos. Assim concebida, a língua se
constituiria no legítimo objeto de estudo da Lingüística. A importância que Saussure atri-
buía à construção desse objeto de estudo aparece já nas primeiras páginas do Curso. Ao
falar da “Escola Comparatista, que constitui o primeiro período da Lingüística indo-
européia”, Saussure, não obstante reconhecer-lhe “o mérito incontestável de abrir um
campo novo e fecundo”, afirma que essa escola “não chegou a constituir a verdadeira ci-
ência da Lingüística”, pois “jamais se preocupou em determinar a natureza de seu objeto
de estudo”. E, explicitando a natureza capital desse passo, argumenta que “sem essa ope-
ração elementar, uma ciência é incapaz de estabelecer um método para si própria”30.
A concepção de língua como “um sistema de signos que exprimem idéias”31, a um
só tempo, justifica e é justificada pelo programa teórico de Saussure. No plano externo,
relaciona a Lingüística a uma ciência mais geral, denominada Semiologia: “uma ciência
que estude a vida dos signos no seio da vida social”32. Mais do que isso, “a Lingüística
não é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão apli-
cáveis à Lingüística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no
conjunto dos fatos humanos”33. Mais além, afirma Saussure que só se poderia “assinalar à
Lingüística um lugar entre as ciências (...),porque a relacionamos com a Semiologia”34.
Essa passagem revela também uma outra idéia muito cara ao pensamento lingüís-
tico da primeira metade deste século: a necessidade de a Lingüística firmar-se como uma
ciência autônoma no quadro geral das ciências sociais; o que se daria na medida em que
ela estabelecesse o seu objeto próprio de estudo e constituísse o seu método particular de
análise:

29
cf. I. Jordan (1982 [1962]: 521): “o Cours de linguistique générale constitui, sem sombra de dúvida, o
ponto de partida da moderna Lingüística Estrutural.”
30
Curso: 10; Cours: 16.
31
Curso: 24; Cours: 33.
32
Curso: 24; Cours: 33. Em itálico no original.
33
Curso: 24; Cours: 33.
34
Curso: 24; Cours: 33-34.

33
Porque não é esta [a Lingüística] reconhecida como ciência autônoma, tendo, como qual-
quer outra, seu objeto próprio? É que rodamos em círculo; dum lado nada mais adequado
que a língua para fazer-nos compreender a natureza do problema semiológico; mas para
formulá-lo convenientemente, necessário se faz estudar a língua em si; ora até agora a
língua sempre foi abordada em função de outra coisa, sob outros pontos de vista. [grifo
meu] (Curso: pp. 24-25; Cours: 34)

Pode-se dizer que assim se expõe o axioma fundamental do Estruturalismo Lin-


güístico: a concepção de língua como um sistema que só pode e deve ser estudado a par-
tir de suas relações internas35.

Os limites lingüísticos do sistema

Apesar de ter orientado, direta ou indiretamente, todos os estudos que se fizeram


neste século com base na concepção de língua como sistema, essa concepção do objeto de
estudo da Lingüística se oferece no Curso de forma muito limitada, se considerada no
plano do que se veio a definir como os níveis de estudo da língua. Para Saussure, o sis-
tema lingüístico é quase que exclusivamente um sistema de signos, sendo essencial ape-
nas a relação que une o significado ao significante36. Assim, toda a estrutura sintática e
gramatical da língua ocupa uma posição secundária; e nem mesmo a fonologia, que se
tornou posteriormente o mais frutuoso dos campos de estudo do Estruturalismo Lingüísti-
co, é considerada por Saussure dentro de sua concepção de língua, sendo concebida ape-
nas como uma “fisiologia dos sons”37.
A concepção do fonema como unidade do sistema lingüístico, ou melhor, como a
menor das unidades do sistema lingüístico, sem valor significativo, mas possuidora de um
valor distintivo capital dentro da economia da língua, não se encontra no Curso. Essa
formulação, que ocupará uma posição de destaque dentro do modelo estruturalista, só vi-
rá à luz pouco mais de uma década depois. Saussure ainda se encontra preso a uma con-
cepção predominantemente fisiológica do fonema, que ele define como “a soma das im-
pressões acústicas e dos movimentos articulatórios da unidade ouvida e da unidade fala-
da” 38. Sem conceber o fonema como unidade de valor funcional dentro do sistema lin-
güístico, Saussure afirma: “o essencial da língua, (...), é estranho ao caráter fônico do sig-

35
“a língua é um sistema que conhece somente a sua ordem própria.” (Curso: 31; Cours: 43)
36
“a língua (...) constitui-se num sistema de signos onde, de essencial, só existe a união do sentido e da
imagem acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente psíquicas.” (Curso: 23; Cours: 32)
37
cf. Curso: 42; Cours: 55.
38
Curso: 51; Cours: 65.

34
no lingüístico”39, e prossegue: “a Fonologia, cumpre repetir, não passa de disciplina auxi-
liar e só se refere à fala (...) explicados todos os movimentos do aparelho vocal necessá-
rios para produzir cada impressão acústica, em nada se esclareceu o problema da lín-
gua”40. Esta formulação está de acordo com o fato de Saussure centrar o seu raciocínio no
processo de significação sediado no signo lingüístico41, a reunião de “um conceito a uma
imagem acústica”, depreendida no todo que constitui o vocábulo significante42. Com isso,
Saussure chega a afirmar: “porque as palavras da língua são para nós imagens acústicas,
cumpre evitar falar dos ‘fonemas’ de que se compõem. Esse termo, que significa uma
idéia de ação vocal, não pode convir senão à palavra falada” (Curso: 80; Cours: 98).43
A estrutura gramatical da língua figura no Curso numa situação semelhante à
da fonologia. Apesar de, em um momento, Saussure se referir à língua como “um sistema
gramatical”44, a estrutura gramatical não deixa de ocupar uma posição secundária, encon-
trando-se mesmo no Curso o seguinte comentário sobre a língua: “pode-se localizá-la na
porção determinada do circuito em que uma imagem auditiva vem associar-se a um con-
ceito”45. Contudo, Saussure se refere a “uma faculdade de associação e de coordenação
que se manifesta desde que não se trate mais de signos isolados”. Essa faculdade “que
desempenha o principal papel na organização da língua enquanto sistema” 46 é circunscrita
à formulação dicotômica das relações paradigmáticas e sintagmáticas, ou seja, às rela-
ções que o signo lingüístico estabeleceria nos eixos vertical e horizontal da estrutura da
língua47. Quanto à sintaxe, Saussure chega mesmo a afirmar que a frase “pertence à fala e

39
Curso: 14; Cours: 21.
40
Curso: 43; Cours: 56.
41
Para Saussure, o signo é a unidade de análise da Lingüística (cf. Curso: 79; Cours: 97-98).
42
Curso: 80; Cours: 98.
43
Sobre o tratamento dado por Saussure à relação entre fonética e fonologia que se definiu, a partir dos
trabalhos do Círculo Lingüístico de Praga, dentro do que se denominou a Moderna Fonologia, A. Se-
chehaye (1940: 4-5) afirma, com toda a autoridade que lhe cabe nesta questão, que: “Les linguistes de Pra-
gue sont venus debrouiller cet écheveau. De cette science de la physiologie des sons, que Saussure appelait
‘phonologie’ et que nous appelons couramment ‘phonétique’, ils ont séparé la phonologie proprement dite,
la grammaire des phonèmes, et ils ont ainsi constitué une discipline de linguistique statique dont ils ont
trouvé d'ailleurs tout les principes dans le pages maîtresses du Cours lui même”.
É nesse sentido também que Amado Alonso (1959 [1945]: 29) defende que “la nueva fonología,
aunque explicitamente negada en el Curso, está en él implícitamente postulada”.
Ainda sobre essa relação entre o texto do Curso e os princípios e categorias desenvolvidos pela
Moderna Fonologia a partir dos estudos do Círculo Lingüístico de Praga, R. Wells (1947: 2-7) apresenta
uma análise que vai nessa linha de raciocínio. Para ele, não se encontra em Saussure nada que se possa
identificar à Fonologia Moderna; nesse sentido, a maior contribuição que o Curso oferece a essa disciplina
é a sua concepção de sistema lingüístico, na qual a Moderna Fonologia Estruturalista vai se fundamentar
para desenvolver os seus conceitos de fonema e sistema fonológico.
44
Curso: 21; Cours: 30.
45
Curso: 22; Cours: 31.
46
Curso: 21; Cours: 29.
47
Curso: 142 e ss; Cours: 170 e ss.

35
não à língua”48; e, negando a existência de uma “sintaxe incorporal”, não reconhece a
possibilidade de um estudo sistemático dos mecanismos que regem a formação das frases
na língua, ou seja, os seus mecanismos sintáticos49.
De igual modo, o estudo da variação lingüística é excluído, a partir da concepção
de língua de Saussure. Se a Lingüística deveria centrar-se no estudo da língua enquanto
sistema, todos os fenômenos relativos à variação lingüística, por serem estranhos ao sis-
tema, deveriam ser banidos desse estudo50. Ao tratar “da extensão geográfica das línguas
e o fracionamento dialetal”51, o raciocínio do Curso, a esse respeito, é muito claro: “o fe-
nômeno geográfico está intimamente associado à existência de qualquer língua; entretan-
to, na realidade, ele não afeta o organismo interno do idioma” 52, e conclui: “pensamos
que o estudo dos fenômenos lingüísticos é muito frutuoso; mas é falso dizer que, sem
eles, não seria possível conhecer o organismo lingüístico interno”53.
Para melhor compreender de que maneira essas exclusões estão inseridas na eco-
nomia do pensamento saussuriano é preciso resgatar o percurso que conduz à construção
da língua como objeto de estudo da Lingüística. Com esta operação, Saussure passa de
um modo de conhecimento que se limita à apreensão das manifestações mais imediatas
da linguagem – o que Saussure chama “fenômenos lingüísticos”, que constituem a “maté-
ria da Lingüística” – para um modo do conhecimento mais mediatizado, um modo estru-
turante que se instala através da objetivação de um sistema de relações que se pretendem
representações objetivas dessas manifestações mais imediatas e concretas.

A construção da concepção de língua como um sistema de relações obje-


tivas

O ponto de partida para a construção da concepção saussuriana de língua é o que


Saussure denomina a matéria da Lingüística: “constituída principalmente por todas as
48
Curso: 144; Cours: 172.
49
Cf. Curso: 162; Cours: 191. Sobre essa questão, veja-se também: Culler, 1979: 71-72.
50
Curso: 29; Cours: 40.
51
Saussure não faz referência à variação sócio-cultural, o que pode ser visto como um reflexo da visão
predominante na época, em que esse tipo de variação não era problematizado sistematicamente dentro dos
estudos lingüísticos.
52
Curso: 30; Cours: 41.
53
Curso: 31; Cours: 42.

36
manifestações da linguagem humana”54. Contudo, é preciso deslindar a língua, enquanto
objeto de estudo, dessa matéria, porque, “se estudarmos a linguagem sob vários aspectos
ao mesmo tempo, o objeto da Lingüística nos aparecerá como um conglomerado confuso
de coisas heteróclitas, sem liame entre si”55. E mais uma vez, Saussure justifica a necessi-
dade dessa operação metodológica com a ameaça à autonomia da Lingüística enquanto
ciência, pois, quando não se cumpre esse imperativo, “abre-se a porta a várias ciências –
Psicologia, Antropologia, Gramática Normativa, Filologia etc –, que separamos clara-
mente da Lingüística, mas que, por culpa de um método incorreto, poderiam reivindicar a
linguagem como um dos seus objetos.”56
Portanto, para Saussure, a língua não se confunde com a linguagem, é, sim, uma
parte essencial e bem determinada dela. E essa parte deveria ser destacada do todo, já que
a linguagem é “multiforme e heteróclita (...) ao mesmo tempo física, fisiológica e psíqui-
ca, e pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social”. Para Saussure, a
linguagem, enquanto conjunto das manifestações do fenômeno lingüístico, “não se deixa
classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua
unidade”57. Desse modo, para apreender e representar a dimensão estrutural e estrutu-
rante do fenômeno lingüístico através da sua concepção de língua, Saussure define a
unicidade e a homogeneidade como características intrínsecas à língua58. Esta separação
entre língua e linguagem e o caráter homogêneo daquela são efetivados através da princi-
pal dicotomia do modelo teórico saussuriano (da qual todas as demais dicotomias depen-
dem ou a ela estão relacionadas), a que opõe língua (fr. langue) – o sistema lingüístico
objetivado – à fala (fr. parole) – a atividade lingüística concreta:

O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: uma, essencial, tem por objeto, a
língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unica-
mente psíquico; outra secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale
dizer, a fala, inclusive a fonação, que é psico-física. (Curso: 27; Cours: 37)

Fica clara aí a supremacia da língua sobre a fala, na medida em que “a atividade


de quem fala deve ser estudada num conjunto de disciplinas que somente por sua relação
com a língua têm lugar na Lingüística”59. Assim, na constituição do objeto de estudo da
Lingüística, elimina-se toda a prática efetivadora da linguagem, da qual a língua enquanto

54
Curso: 13; Cours: 20.
55
Curso: 16; Cours: 24.
56
Curso: 16; Cours: 24-25.
57
Curso: 17; Cours: 25.
58
Curso, 23; Cours: 32. Cf. também: “o conjunto global da linguagem é incognoscível, já que não é ho-
mogêneo” (Curso: 28; Cours: 38).
59
Curso: 27; Cours: 37.

37
sistema seria depreendida, e na qual esta mesma língua se realiza. Por outro lado, ao efe-
tivar, nestes termos, a separação entre a língua e fala (sendo esta eliminada na “matéria da
linguagem”), Saussure realiza – para utilizar as categorias de Bourdieu (1983 [1972]: 46-
60) – a passagem do modo de conhecimento fenomenológico, definidor da Lingüística
que o precede, para o modo objetivista que caracteriza a Lingüística enquanto ciência,
cuja constituição tem nesta operação o seu fato inaugural:

quando Saussure constitui a língua enquanto objeto autônomo e irredutível às


suas atualizações concretas, (...) ele realiza (...) a operação pela qual toda ciência objeti-
vista se constitui ao constituir um sistema de relações irredutíveis tanto às práticas dentro
das quais ele se realiza e se manifesta, quanto às intenções dos sujeitos e à consciência
que eles podem tomar de suas obrigações e de sua lógica. (Bourdieu, 1983 [1972]: 48)

E toda essa operação teórica de construção da língua como objeto de estudo, capi-
tal para que Saussure pudesse dar conta da dimensão estrutural e estruturante do fenôme-
no lingüístico, é levada a cabo à custa de um violento processo de simplificação de orien-
tação positivista, como bem observou de A. Alonso (1959 [1945]: 11, 27 e 28):

Saussure ve la complejidad del linguage (...) pero la rehuye como objeto de es-
tudio, y, en busca de uno deslindado e homogéneo, da con "la lengua", un autónomo sis-
tema de signos, separado de su uso e independiente de los individuos que lo usan.
Saussure rechaza muy hermosamente la concepción naturalista (Schleicher) de
la lengua como un organismo de vida autónoma y de crecimiento y evolución internos;
pero su positivismo le hizo suplantar esta concepción por otra mecanicista en la que la
lengua es un sistema igualmente autónomo, ajeno al habla, fuera del alcance de sus ha-
blantes, y que funciona gracias a un juego de asociaciones y correspondencias entre los
términos mismos, como con la mecánica sideral. El concebir tal autonomía del sistema
era un postulado de la orientación positivista, que se creía obligada a mondar del objeto
de la ciencia lo que fuera indeterminación, y, por consiguiente, todo lo que fuera espíritu
con su liberdad de iniciativa.
Fué la aspiración del positivismo al "pájaro en mano" la que empujó a la clara
inteligencia de un Saussure a simplificar su objeto de estudio, eliminando, por material
indócil, todas las complejidades que no se adecuaran a los métodos disponibles, toda ac-
ción irreductible a relaciones previsibles entre elementos previstos.

Ao realizar toda essa operação teórica de construção do objeto de estudo da Lin-


güística, Saussure vai promover a própria estruturação do saber lingüístico enquanto ci-
ência60, dentro das dimensões positivistas que dominavam a ciência do seu tempo e que
acabaram por se perpetuar no pensamento estruturalista.

A dicotomia língua e fala: língua como fato social exterior ao indivíduo

60
Cf. Bourdieu (1983 [1972]: 51): “Saussure constitui a Lingüística enquanto ciência construindo a língua
como objeto autônomo, distinto de suas atualizações na fala”.

38
Através da oposição entre língua e fala, Saussure situa o caráter social e essencial
da linguagem na língua; reservando à fala, o lado individual e secundário61. Com isto,
Saussure retoma e desenvolve a idéia de Whitney de que a língua é uma instituição soci-
al. Um dos aspectos fundamentais desse desenvolvimento é o da relação entre língua, ins-
tituição social, e indivíduo falante:

[A fala] é sempre individual e dela o indivíduo é sempre senhor, [enquanto a


língua] não está completa em nenhum e só na massa ela existe de modo completo (Cur-
so: 21; Cours: 30). Ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si
só, não pode nem criá-la nem modificá-la (Curso: 22; Cours: 31).
A língua não constitui uma função do falante: é o produto que o indivíduo regis-
tra passivamente (...). A fala é, ao contrário, um ato individual de vontade e inteligência,
no qual convém distinguir: 1º, as combinações pelas quais o falante realiza o código da
língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º, o mecanismo psico-físico
que lhe permite exteriorizar essas combinações." (Curso: 22; Cours: 30-31)

Nessa oposição que Saussure estabelece entre o caráter social da língua e o caráter
individual da fala, apesar de não haver nenhuma evidência explícita de uma relação de
influência, é notável a presença de ecos do discurso do sociólogo Émile Durkheim (1858-
1917); o que se traduz principalmente na definição de língua como fato social62. Segundo
Durkheim (1984: 1-2), os fatos sociais “têm vida independente” e existem “independen-
temente das consciências individuais”, porque o indivíduo ao nascer já os encontra cons-
tituídos e em pleno funcionamento, e porque esse funcionamento não é afetado pelo uso
que um indivíduo, tomado isoladamente faz dele. E Durkheim generaliza essas afirma-
ções para todos os indivíduos, da seguinte maneira: “tais afirmações podem ser estendi-
das a cada um dos membros de que é composta uma sociedade, tomados uns após outros.
Estamos, pois, diante de maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propri-
edade marcante de existir fora das consciências individuais.”
Analisando a concepção de fato social de Durkheim, Coseriu (1979 [1958]: 34)
concentra-se nas duas características do conceito dukheimiano que considera essenciais:

1) o ‘fato social’ seria ‘exterior’ ao indivíduo, ou seja, independente dos indiví-


duos;
2) o ‘fato social’ seria imposto ao indivíduo com caráter de obrigatoriedade.

61
Cf.: “com o separar a língua da fala, separa-se ao mesmo tempo: 1º, o que é social do que é individual;
2º, o que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental.” (Curso: 22; Cours: 30)
62
Cf. E. Coseriu (1979 [1958]: 33-34 e 38), que, a esse propósito, destaca em particular o trabalho de W.
Doroszewski e a observação de A. Meillet de que o conceito saussuriano de língua “corresponde exatamen-
te à definição de fato social dada por Durkheim” (Meillet, 1938: 72-73).
Coseriu (1979 [1958]: 37) chega a afirmar ainda que: “no campo da Lingüística, Saussure – apesar
de o nome de Durkheim não aparecer sequer uma vez no Curso – aceitou e seguiu até nos detalhes e na
fraseologia a doutrina durkheimiana de fato social”.

39
Sobre a primeira característica, Coseriu afirma:

de modo algum os fatos sociais existem agora e em qualquer momento independente-


mente de todos os indivíduos que integram a sociedade. A conclusão de Durkheim de
que o fato social existe “independentemente das consciências individuais” fundamenta-se
numa série de erros que se entremisturam no seu raciocínio. Em primeiro lugar,
Durkheim atribui validade permanente (ou atemporal) a uma comprovação vinculada a
um momento determinado: ao momento em que os indivíduos considerados ainda não
haviam nascido. Em segundo, estende a todos os indivíduos o que comprova a respeito de
um indivíduo. (...) Em terceiro lugar – e é o mais grave –, os indivíduos de Durkheim não
são os mesmos nas premissas e na conclusão. Durkheim faz comprovações a respeito de
indivíduos que não pertencem, ou não pertencem ainda, à sociedade considerada (os indi-
víduos que ao nascer encontram o fato social constituído) e pretende tirar delas uma con-
clusão válida para os indivíduos membros da mesma sociedade. Mas, para ser válida, a
conclusão deveria basear-se exclusivamente em comprovações feitas a respeito destes in-
divíduos. Que os fatos sociais são independentes daqueles que deles não participam e dos
não nascidos é um truísmo que não necessita ser demonstrado. O que ocorre, na realida-
de, não é que os fatos sociais sejam exteriores ao indivíduo, e sim que o indivíduo de
Durkheim é exterior à sociedade. [grifo do original ] (1979 [1958]: 35)

A segunda característica do fato social, que lhe atribui um “poder coercitivo”, é


rebatida por Coseriu da seguinte maneira:

Esta consideração, como se sabe, é a de que “o indivíduo por si só não pode mudar o fato
social”; mas ela não significa que o indivíduo “não muda” o fato social e, se é assim in-
terpretada, torna-se um paralogismo, pois implica atribuir valor absoluto a uma compro-
vação condicional. O que a consideração assinalada significa é apenas que o indivíduo
não muda o fato social se outros indivíduos não aceitam a mudança; e isso não ocorre
porque o fato social não depende nem do indivíduo considerado nem dos outros, mas, ao
contrário, porque depende tanto daquele quanto dos outros. [grifo do original ] (ibid.: 36)

Ao destacar os problemas suscitados pelo conceito de fato social de Durkheim e a


íntima relação existente entre esse conceito e o conceito de língua de Saussure, Coseriu
chama a atenção para os riscos inerentes à adoção da concepção saussuriana de língua
(ibid.: 39). Com efeito, os paralogismos observados no raciocínio de Durkheim acabam
por se refletir no conceito de língua de Saussure. Repetindo os passos de Durkheim, Sau-
ssure estabelece fronteiras absolutas entre o plano social e o individual. Nesse cenário,
circunscreve a fala – a atividade lingüística concreta63 – ao plano do indivíduo e a despre-
za; e põe a sua concepção abstrata de língua – a língua como sistema homogêneo e unitá-
rio – no plano do social, exterior aos indivíduos. E diz, mais uma vez como Durkheim,
que outro papel não cabe ao indivíduo, senão o de aceitar passivamente essa língua abs-

63
cf. E. Coseriu (1979a [1952]: 37): “A fala (parole) identifica-se evidentemente, para ele [Saussure], com
a atividade lingüística concreta, ou, pelo menos, com grande parte dela”.

40
trata, pois, por si só, o indivíduo não pode mudá-la64. Cabe retomar a argumentação de
Coseriu e dizer: o indivíduo não muda a língua se os outros indivíduos não assimilarem a
mudança. Não porque a língua independa dos indivíduos – o que Saussure também diz –,
mas porque a língua existe a partir das relações que por ela e nela se estabelecem entre os
indivíduos. Tomada a rigor, a afirmação de Saussure também é um truísmo, na medida
em que toda a atividade lingüística pressupõe a interação social; ou seja, o indivíduo, por
si só, não apenas não muda a língua, como nem sequer a pode adquirir, nem usar. Como
bem observou Coseriu, a linguagem repousa na interação entre o individual e o social,
que Saussure quis negar através de sua opção pelo sistema abstrato da língua65.
Numa crítica mais radical à concepção saussuriana de língua, Bourdieu identifica
nela a incapacidade de incorporar a prática lingüística em sua construção teórica como
uma das mais sensíveis deficiências do modelo teórico que Saussure inaugura:

Mas se nada manifesta melhor a insuficiência da teoria da prática que persegue o


Estruturalismo Lingüístico (...) do que sua impotência de integrar na teoria tudo o que se
refere à execução, como diz Saussure, resta que o princípio desta impotência reside na in-
capacidade de pensar a fala e, de modo mais geral, a prática de outra forma que não seja
enquanto execução. O objetivismo constrói uma teoria da prática (enquanto execução),
mas somente como um subproduto negativo ou, se assim podemos dizer, como um resí-
duo, imediatamente posto de lado, da construção dos sistemas de relações objetivas. É as-
sim que, querendo delimitar, no interior dos fatos da linguagem, o “terreno da língua” e
isolar “um objeto bem-definido”, “um objeto que possa ser estudado separadamente”, “de
natureza homogênea”, Saussure separa “a parte física da comunicação”, isto é, a fala co-
mo objeto pré-construído, próprio a obstaculizar a construção da língua e depois isola no
interior do “círculo da fala” o que ele denomina o “lado executivo”, quer dizer, a fala en-
quanto objeto construído definido pela atualização de um certo sentido numa combinação
particular de sons, que ele elimina, enfim, invocando que “a execução nunca é feita pela
massa”, mas é “sempre individual”. Assim, o mesmo conceito – o de fala – é desdobra-
do, pela construção teórica, num dado pré-construído e imediatamente observável, aquele
mesmo contra o qual se efetuou a operação de construção teórica, e um objeto construído,
produto negativo da operação que constitui a língua enquanto tal, ou melhor, que produz
os dois objetos, produzindo a relação de oposição na qual e pela qual se definem. [grifo
do original] (1983 [1972]: 53-54)

O estudo da linguagem não pode renegar a interação entre o social e o individual


que se realiza ao nível do ato de fala; e, mais do que isso, a concepção de língua que fun-

64
cf. a descrição do pensamento de Saussure a esse respeito, feita por Bakhtin (1986 [1929]: 78-9): “O in-
divíduo recebe da comunidade lingüística um sistema já constituído, e qualquer mudança no interior deste
sistema ultrapassa os limites de sua consciência individual. O ato individual de emissão de todo e qualquer
som só se torna ato lingüístico na medida em que se ligue a um sistema lingüístico imutável (num determi-
nado momento de sua história) e peremptório para o indivíduo.”
65
Cf. Coseriu (1979 [1958]: 33): “A língua não existe senão no falar dos indivíduos, e o falar é sempre fa-
lar uma língua. Todo o modo de ser da linguagem gira necessariamente neste círculo. O próprio Saussure o
percebeu com bastante clareza, mas quis sair do círculo e optou decididamente pela ‘língua’. Para sair do
círculo, Saussure recorreu a um conceito peculiar de língua, separando o ‘sistema’ do falar dos indivíduos e
colocando-o na sociedade ou na massa.”

41
damente esse estudo tem que comportar em si a dinamicidade dessa interação. A defini-
ção da fala como absolutamente individual é, como observou Bakhtin (1986 [1929]: 87),
o proton pseudos do Estruturalismo Lingüístico, pois, ao definir assim a fala e conse-
qüentemente isolá-la no estudo da língua, o Estruturalismo nada mais faz do que retirar a
língua, enquanto objeto de estudo construído, das suas relações com a sociedade.

A interação entre o social e o individual no processo de constituição da


língua

A concepção de língua como um sistema unitário, homogêneo e fechado em sua


lógica interna apóia-se decisivamente na idéia de que a língua se impõe de maneira ine-
xorável ao indivíduo. Assim sendo, o sistema estaria imune as intervenções das relações
sociais. Situa-se, pois, na dialética entre o social e o individual o ponto de superação da
rígida dicotomia saussuriana. Coloca-se, nesse sentido, uma visão distinta da relação en-
tre o indivíduo falante e a língua: longe de aceitar passivamente a estrutura da língua, o
indivíduo atua sobre essa estrutura, consoante a maneira como está inserido no contexto
social.
Em sua relação com a língua, o indivíduo desempenha um papel ativo, na medida
em que é obrigado a selecionar entre as várias possibilidades expressivas que a ele se ofe-
recem na estrutura da língua. Esta seleção opera em todos os níveis da língua, pois, em
cada um deles, se oferecem, para cada conteúdo representacional, diferentes possibilida-
des expressivas. Por outro lado, esta seleção é feita de acordo com o valor que o falante
atribui (de forma mais ou menos consciente) a cada uma das possibilidades expressivas, o
tipo de relação social que o une ao seu interlocutor e ao papel lingüístico que deseja de-
sempenhar especificamente nesta interação. A consideração dessa complexa rede de fato-
res na representação do ato lingüístico apresenta-se, portanto, como mais adequada, já
que lhe confere dinamicidade, e demonstra a indissociabilidade entre o individual e o so-
cial na atividade lingüística. 66
Mostra-se, assim, insatisfatória a visão da língua e dos fatos sociais como “exteri-
ores ao indivíduo”, pois não apenas a sua criação, como também a sua conservação ou
mudança, são determinadas pelas relações sociais que se estabelecem entre os indivíduos
na sociedade. Os fatos sociais devem, portanto, ser tomados em sua especificidade – par-

66
A consideração do papel desempenhado pelo indivíduo no processo de estruturação da língua constitui
um dos importantes pontos da ruptura implementada pelo modelo teórico da Sociolingüística Variacionista
em relação ao modelo estruturalista. Esta questão será abordada na 3 a Parte deste livro.

42
ticularmente a língua –, consoante a teia de relações que neles se estabelece; e analisados
em sua dinamicidade, numa relação dialética entre o social e o individual67.

Imprecisões do conceito de língua na dicotomia língua e fala

Um outro aspecto relevante da dicotomia língua e fala, é a polissemia que se ma-


nifesta no conceito de língua através das páginas do Curso. Podem-se depreender aí três
conceitos distintos68: o primeiro seria um prenúncio do conceito chomskiano de gramáti-
ca particular de uma língua69; o segundo se refere à língua como objeto histórico, cul-
turalmente determinado70; e no terceiro, a língua é vista como um sistema lingüístico,
conjunto de relações estruturantes e estruturadas de elementos funcionalmente pertinentes
que se depreendem da atividade lingüística concreta a partir de seu estudo sistemático71.
Na medida em que a Lingüística após Saussure adotou como um axioma a dicotomia lín-
gua e fala, essas imprecisões acabam por se reproduzir de várias maneiras no trabalho de
estudiosos de variadas orientações72. Com isso, apesar de muito utilizada, “a distinção
entre fala e língua torna-se bastante imprecisa” (Coseriu, 1979 [1952]: 20).

67
cf. Bourdieu (1983 [1972]: 52): “A construção saussuriana só se permite constituir as propriedades estru-
turais da mensagem enquanto tais, isto é, enquanto sistema, dando-se um emissor e um receptor impessoais
e intercambiáveis, quer dizer, quaisquer, fazendo abstração das propriedades funcionais que cada mensa-
gem deve à sua utilização numa certa interação social estruturada. Na verdade, sabe-se que as interações
simbólicas no interior de um grupo qualquer dependem não somente (...) da estrutura do grupo de interação
no qual elas se realizam, mas também das estruturas sociais nas quais se encontram inseridos os agentes da
interação (isto é, as estruturas das relações de classe).” [grifo do original]
68
cf. E. Coseriu (1979 [1952]: 38): “Na realidade, podem-se distinguir em Saussure, não um, mas três con-
ceitos de língua: a) acervo lingüístico; b) instituição social; c) sistema funcional.” [grifo do original]
69
A língua é “um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro” (Curso: 21; Cours: 30); “as
associações, ratificadas pelo consentimento coletivo e cujo conjunto constitui a língua, são realidades que
têm sua sede no cérebro” (Curso: 23; Cours: 32); “é o conjunto de hábitos lingüísticos que permitem a
uma pessoa compreender e fazer-se compreender” (Curso: 92; Cours: 112).
70
“A língua não é uma instituição social semelhante às outras em todos os pontos” (Curso: 17; Cours: 26).
“A língua (...) é, a cada momento, tarefa de toda a gente; difundida por uma massa e manejada por ela, é
algo de que todos os indivíduos se servem o dia inteiro. Nesse particular, não se pode estabelecer compara-
ção alguma entre ela e as outras instituições.” (Curso: 88; Cours: 107)
71
“Uma língua constitui um sistema (...) tal sistema é um mecanismo complexo; só se pode compreendê-lo
pela reflexão; mesmo aqueles que dele fazem uso cotidiano ignoram-no profundamente” (Curso: 87-88;
Cours: 107). Note-se, nesta citação, a oposição entre saber formalizado, que caracteriza este terceiro con-
ceito, e saber implícito, uma característica do primeiro conceito.
72
E. Coseriu (1979 [1952]: 18-36) apresenta uma detalhada análise sobre estas imprecisões e contradições
na utilização dos conceitos de língua e fala, da qual destacamos o seguinte parágrafo (grifos do original):
“Chega-se deste modo a atribuir distintas extensões, às vezes contraditórias, aos dois conceitos. A
fala é para alguns o impulso rumo à expressão (Sechehaye, Brøndal), para outros identifica-se com o ato
lingüístico (Jespersen, Gardiner) ou com a produção deste ato (Palmer, Bertoni); ou compreende todos os
atos lingüísticos individuais, sobretudo enquanto vitais, afetivo-volitivos (Bally), ou enquanto não sistemá-
ticos (Pentilla); ou é o aspecto material e psíquico desses mesmos atos; e para outros ainda é o mesmo que

43
Mas, se as imprecisões do texto do Curso devem ser referidas na avaliação das
divergências que se propagaram em torno dos conceitos de fala e língua a partir de 1916,
a maior motivação deste processo deve ser buscada no modo de constituição do conceito
de língua em sua principal acepção dentro do modelo saussuriano: a língua como sistema
lingüístico unitário e homogêneo. Com isto, resgata-se uma dimensão crucial da antino-
mia língua e fala: a oposição entre o concreto e o abstrato, ou seja, a oposição entre as
manifestações mais imediatas do objeto de estudo e a construção deste objeto enquanto
sua representação teórica73.

A (falta de) sustentação empírica do conceito de língua em Saussure: a


noção de estado de língua

É fato que a Lingüística, como qualquer outra ciência, não pode prescindir da abs-
tração como uma operação indispensável para a sua realização enquanto saber sistemático
e formalizado. Por isso, quando falamos em objeto de estudo de uma ciência, pensamos
menos na soma de manifestações imediatas, do que num conjunto articulado de apreen-
sões mediadas por determinações inerentes ao modo através do qual o sujeito apreende o
seu objeto de estudo. Ou seja, por objeto do conhecimento entendemos representação,
construção teórica, e não o objeto em si. Isto não significa, entretanto, conferir ao sujeito
do conhecimento uma reserva de arbítrio em termos absolutos. Estão sempre em julga-
mento, por um lado, os princípios teóricos que presidem a construção do objeto – consi-
derando-se o fato de eles convocarem ou não um conjunto satisfatório de determinações
que garantam ao objeto uma representação adequada –, e por outro, os procedimentos
práticos que demonstram a adequação da representação teórica às manifestações mais
imediatas do objeto, que são, em última instância o ponto de partida do processo cogniti-
vo. Tais procedimentos constituem a(s) metodologia(s) que dirige(m) os trabalhos de in-

acervo ou uso lingüístico individual (Jespersen), ou se identifica com o aspecto sempre novo e inédito dos
atos lingüísticos. A língua, por outro lado, é a condição que torna possível o falar, é o “produto” do falar
como tal, ou o mesmo “produto” considerado sistematicamente; é para alguns o acervo lingüístico indivi-
dual e para outros o chamado acervo lingüístico social; é o sistema abstrato que governa o falar, ou é o espi-
ritual da linguagem oposto ao material, o virtual oposto ao concreto; é soma, ou qualquer soma, de atos
lingüísticos (cf. Porzig, ou as “coleções de material” de que fala Gardiner), ou sistema de atos lingüísticos,
ou o sistema de normas e convenções que governa o falar, que se aplica aos atos lingüísticos concretos.
Portanto, língua e fala aparecem como conceitos de extensão variável; o que é língua numa concepção é
fala, ou no mínimo é, em parte, fala, noutras concepções e vice-versa; e em cada uma das concepções parti-
culares aparecem inevitáveis incoerências mais ou menos graves.” (pp. 34-35)
73
Cf. Coseriu, (1979 [1952]: 41): “de fato, a distinção fundamental de Saussure estabelece-se (...) entre
concreto e abstrato ou formal (ideal, funcional)”. [grifos do original]

44
vestigação científica. É através da consideração desses fatores que se pode conferir, ou
não, fundamentação empírica a uma determinada concepção em ciência.
Nesse sentido, pode-se dizer que a concepção de língua como um sistema homo-
gêneo e unitário, introduzida na Lingüística por Saussure e que está na base do Estrutura-
lismo Lingüístico, carece de fundamentação empírica, na medida em que esta concepção
se apoia em uma série de abstrações. Em primeiro lugar, a língua enquanto tal se localiza
na “massa”74 ou na “consciência coletiva”75. O problema aí está em definir essa “massa”,
essa “coletividade”. Se tomarmos como tal o conjunto de falantes de uma mesma língua,
incorremos num raciocínio tautológico, pois situamos a língua na massa e tomamos a
massa pela língua. O parâmetro da intercompreensão também se apresenta como contra-
ditório, pois não seria difícil encontrar uma série de exemplos de ausência de intercom-
preensão entre falantes que são considerados como pertencentes a uma mesma língua,
bem como uma série de situações de intercompreensão entre falantes do que são conside-
radas línguas distintas76. Em segundo lugar, a concepção de língua em Saussure apóia-se
em uma outra abstração: o estado de língua; o que acrescenta uma nova dimensão à con-
cepção saussuriana: a estaticidade. Esta dimensão é de tal modo importante, que está
presente inclusive na definição da Lingüística que Saussure inaugura: a Lingüística Está-
tica. Contudo, os limites de um estado de língua não são muito precisos:

Na prática, um estado de língua não é um ponto, mas um espaço de tempo, mais ou me-
nos longo, durante o qual a soma de modificações ocorridas é mínima. Pode ser de 10
anos, uma geração, um século e até mais. (Curso: 117; Cours: 142)

O próprio Saussure reconhece as imprecisões de sua formulação – “a noção de es-


tado de língua só pode ser senão aproximativa”, mas justifica-a como sendo um procedi-
mento usual em qualquer investigação científica:

Em Lingüística estática, como na maior parte das ciências, nenhuma demonstração é pos-
sível sem uma simplificação convencional dos dados. (Curso: 118; Cours: 143)

No entanto, é preciso identificar qual o móvel de tal “simplificação”:

Um estado absoluto se define pela ausência de [mudanças]77 e como, apesar de tudo, a


língua se transforma, por pouco que seja, estudar um estado de língua vem a ser pratica-

74
“só na massa ela [a língua] existe de modo completo.” (Curso, 21)
75
“A Lingüística sincrônica se ocupará das relações lógicas psicológicas que unem os termos coexistentes
e que formam sistema, tais como são percebidos pela consciência coletiva.” (Curso, 116) [grifo do origi-
nal]
76
Sobre a inconsistência de se tomar a inteligibilidade como um critério para a definição de língua, veja-se,
por exemplo, A. Ross (1942: 104-105), que define inclusive um “mutual intelligibility factor (M.I.F.)”; e R.
Wells (1947: 28-29). Mais recentemente a questão é tratada por Chambers & TRUDGILL (1980).
77
No texto francês, changements; na tradução brasileira, transformações.

45
mente, desdenhar as [mudanças] pouco importantes, do mesmo modo que os matemáticos
desprezam as quantidades infinitesimais em certas operações. (Curso: 118; Cours: 142)

Porém, menos que uma mera “simplificação dos dados”, esta operação constitui
um dos movimentos decisivos do raciocínio saussuriano: o movimento através do qual
Saussure exclui a mudança no processo de construção do seu objeto de estudo; eliminan-
do, conseqüentemente, todos os condicionamentos sociais e ideológicos na formalização
analítica da língua. O estabelecimento da noção de estado de língua – ou projeção sin-
crônica – constitui uma operação crucial na construção de língua como um sistema ho-
mogêneo e unitário, porque toda a dinamicidade inerente à relação entre língua e socie-
dade se efetiva através do tempo, na dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico,
através do binômio variação e mudança. A variação constitui a atualização a cada mo-
mento dos processos de mudanças possíveis na língua, enquanto que a mudança constitui
uma das resultantes dos processos de variação lingüística.
Uma representação adequada da língua deve abarcar esses dois planos: deve ex-
pressar a relação presente entre língua e sociedade, e perspectivá-la historicamente. O
conceito de estado de língua, ao contrário, retira a língua do fluxo do tempo, ou melhor
dizendo, retira da língua a sua dimensão histórica. Mais do que um ponto no processo
contínuo e dialético de constituição histórica da língua, o estado de língua constitui, para
Saussure, uma realidade própria e autônoma; sendo que a história de uma língua é vista
como uma sucessão de estados discretos e independentes entre si do ponto vista da análi-
se lingüística. Entre um estado e outro, por intervenções adventícias à lógica da língua,
ocorrem as mudanças, que por um lado não afetam o estado anterior, e por outro nada di-
zem a respeito da lógica que governa o estado subseqüente. Ou seja, a autonomia interna
do sistema lingüístico implica a sua independência perante a história.
Sobre esta base, Saussure propõe uma outra antinomia fundamental para o seu
modelo: a sincronia e a diacronia. Aquela diz respeito ao estudo de um estado de língua
considerado isoladamente, enquanto que esta, subsidiariamente, estuda a sucessão dos
diversos estados de língua e as mudanças lingüísticas, entendidas atomisticamente como
a substituição de um elemento por outro. Este conjunto de questões que envolvem a rela-
ção entre sistema e mudança no modelo saussuriano constitui o objeto do próximo capítu-
lo deste livro.

46
CAPÍTULO II

SINCRONIA E DIACRONIA: O OSTRACISMO DA MUDANÇA

Ao conceber a língua como um sistema homogêneo e unitário, Saussure não ape-


nas a separou de seu contexto social, como também se viu obrigado a retirar esse sistema
lingüístico do devir temporal. Em Saussure, o processo teórico de construção do objeto de
estudo da Lingüística foi orientado somente para a dimensão estrutural e estruturante da
linguagem. Isso impediu, por um lado, uma adequada consideração da determinação dos
fatores sociais sobre a língua; e, por outro, tornou tal esquema teórico incapaz de incorpo-
rar o fato fundamental da dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico: a mudança78.
Os processos de variação e heterogeneidade na língua estão relacionados aos pro-
cessos de mudança lingüística, na medida em que os processos de mudança passam ne-
cessariamente pelo processo de variação. Um modelo teórico que desprezava a variação e
a heterogeneidade e considerava seu único objeto de estudo a língua, vista como um sis-
tema homogêneo e unitário, seria incapaz de dar conta da questão da mudança. Dessa
forma, a concepção saussuriana de língua tornou-se excludente em relação à mudança
lingüística; enquanto aquela se fundamentava na idéia de uma funcionalidade intra-
estrutural do sistema homogêneo e unitário, esta implica necessariamente variação e hete-
rogeneidade79.
Após ter determinado uma primeira bifurcação que conduzia os estudos lingüísti-
cos por dois caminhos opostos, um no terreno da língua, outro no da fala, Saussure apre-
senta uma nova e irrefutável dicotomia, cujos caminhos não deixam de estar relacionados
com os da primeira80: o da sincronia, relacionado à língua – vista agora só em sua ordem
interna e simultânea, fora da cadeia temporal –, que seria o caminho próprio e legítimo da
Lingüística; e o caminho da diacronia, que tomaria os fatos da língua em seu devenir, ou
seja, trataria dos fatos relativos à mudança lingüística, vistos como particulares e aciden-
tais, e portanto, próprios da fala; este segundo caminho estaria fora dos principais interes-

78
A esse respeito, veja-se, por exemplo, Weinreich, Labov e Herzog (1968: 150-151).
79
cf. Weinreich, Labov e Herzog (1968: 100): “The facts of heteroneity have not so far jibed well with the
structural approach to language. We will see the seeds of this conflict in Saussure and its deepening in the
works of descriptivists struggling with the phenomena of change.”
80
cf. A. Alonso (1959 [1945]: 20): “El destino de la otra famosa antinomia, la de lengua e habla, está im-
plicado en el de diacronia y sincronia, como que la inconexión de éstas se basaba en la postulada incone-
xión de lengua e habla.”

47
ses da Lingüística. A maneira como Saussure exclui a mudança da sua concepção de lín-
gua como sistema fica bem clara na seguinte passagem:

A língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas


em sua solidariedade sincrônica. Como todas as alterações jamais são feitas no bloco do
sistema, e sim num ou noutro de seus elementos, só podem ser estudadas fora do sistema.
Sem dúvida, cada alteração tem sua repercussão no sistema; o fato inicial, porém, afetou
um ponto apenas; não há nenhuma relação interna com as conseqüências que se podem
derivar para o conjunto. Essa diferença de natureza entre termos sucessivos e termos coe-
xistentes, entre fatos parciais e fatos referentes ao sistema, impede de fazer de um e de
outros a matéria de uma única ciência. (Curso: 102-103; Cours: 124)

Situando a mudança fora da língua e considerando-a, conseqüentemente, como


particular e acidental, ou seja, não-sistêmica, o modelo saussuriano vai determinar uma
marginalização progressiva da questão da mudança de seus principais cenários teóricos81.
Quanto mais avançava a concepção saussuriana de língua, mais se aprofundava o ostra-
cismo da mudança lingüística, ao ponto de se considerar em um momento que a questão
da mudança não era legitimamente lingüística, tal foi a identificação entre o estudo lin-
güístico e o estudo da língua como estrutura homogênea e atemporal 82. Saussure afirmou:
“o sistema em si mesmo é imutável”83. Como conciliar essa concepção com o fato de as
línguas estarem em permanente processo de mudança; um processo por vezes tão cabal
que não raro conduz a transformações tão profundas no sistema lingüístico, ao ponto de
não se poder falar desse sistema, mas de outro, ou de outros, como é o caso do exemplo
histórico do latim, transformado num processo contínuo, incessante e diversificador no
conjunto das línguas românicas?84
A questão da mudança converteu-se, então, em um verdadeiro anátema no âmbito
da Lingüística saussuriana ortodoxa, uma ameaça permanente à sua concepção de língua.
O próprio Saussure tinha consciência disso85. Ao propor a primazia da língua nos estudos
lingüísticos, refere-se à ameaça das mudanças fônicas, “que exercem influência tão pro-
funda nos destinos da própria língua”. E pergunta: “teremos, de fato, o direito de preten-

81
cf. G. Lepschy (1975 [1966]: 18): “até hoje, a Lingüística Estrutural limitou-se, em grande parte, ao estu-
do sincrônico. Saussure pareceu negar a própria possibilidade de um estudo diacrônico estrutural, atribuin-
do as transformações lingüísticas aos ‘saltos’, às mudanças de elementos particulares. Em conseqüência
dessas mudanças, determinavam-se novos estados, novas estruturas lingüísticas, sem que a mudança, en-
quanto tal, fosse estruturalmente interpretável.”
82
Veja-se, sobre isso, Coseriu (1979 [1958]: 15-17).
83
Curso: 100; Cours: 121.
84
cf. Bakhtin (1986 [1929]: 79): “Entretanto, o sistema lingüístico, único e sincronicamente imutável,
transforma-se, evolui no processo de evolução histórica de uma determinada comunidade lingüística.”
85
cf. Weinreich, Labov e Herzog (1968: 98): “Ferdinand de Saussure, in laying the foundations of syn-
chronic study, was aware of the corresponding intractability of language change, and was apparently re-
signed to it.”

48
der que esta [a língua] exista independentemente de tais fenômenos? Sim,”86 responde o
Mestre de Genebra, e para sustentar tal afirmativa, constrói um edifício teórico assentado
no terreno movediço de paralelos questionáveis com outras ciências, erigido sobre a frágil
sustentação de raciocínios contraditórios e/ou empiricamente refutáveis, e arrematado
com o perecível acabamento de metáforas ricas em sua configuração, mas fugidias na sua
relação com o objeto estudado.

Um paralelo com as ciências econômicas

Pode-se compreender porque Saussure inicia o capítulo em que apresenta a distin-


ção entre a Lingüística estática e a Lingüística evolutiva, referindo-se às dificuldades
relativas à consideração do fator tempo nos estudos lingüísticos:

Poucos lingüistas percebem que a intervenção do fator tempo é de molde a criar, para a
Lingüística, dificuldades particulares, e que ela lhes coloca a ciência frente a duas rotas
absolutamente divergentes. (Curso: 94; Cours: 114)

Surge, assim, a necessidade de cindir a Lingüística em duas disciplinas distintas,


cada uma voltada para o seu eixo próprio:

1º o eixo das simultaneidades, concernente às relações entre as coisas coexistentes, de


onde toda a intervenção do tempo se exclui, 2º o eixo das sucessões, sobre o qual não se
pode considerar mais que uma coisa por vez, mas onde estão situadas todas as coisas do
primeiro eixo com suas respectivas transformações. [grifos do original] (Curso: 95;
Cours: 115)

Para justificar essa cisão, Saussure toma o exemplo das ciências econômicas, em
que “a dualidade de que falamos já se impõe imperiosamente”, visto que “a Economia
Política e a História Econômica constituem duas disciplinas claramente separadas no seio
de uma mesma ciência”. E, justificando a sua analogia, afirma:

as obras surgidas recentemente sobre essas matérias acentuam tal distinção. Procedendo
assim, obedecemos (...) a uma necessidade interior; pois bem, é uma necessidade bastante
semelhante a que nos obriga a dividir a Lingüística em duas partes, cada qual com seu
princípio próprio. (Curso: 94-95; Cours: 114-115)

Entretanto, a Economia, longe de aceitar passivamente uma clara divisão em duas


disciplinas assim distinguidas, se divide nitidamente em dois campos teóricos que se
opõem inclusive pela maneira antagônica, como encaram a “necessidade” de tal distin-

86
Curso: 26; Cours: 36.

49
ção, ou seja, como consideram a interferência do fator tempo na Economia Política e a
historicidade dessa disciplina. Como defensores da atemporalidade das categorias da
Economia Política estão os economistas da escola neoclássica, que há um século substi-
tuiu a Economia Política clássica como corrente hegemônica do pensamento econômico
(decerto são dessa lavra as recentes obras referidas por Saussure). Por outro lado, estão
aqueles que defendem a historicidade da Economia Política; são os economistas que se
inspiram em Karl Marx, autor entre outras obras da Crítica da Economia Política, em
cuja Introdução – que foi publicada pela primeira vez em 1903 – se encontra a mais ex-
tensa e sistemática exposição de Marx sobre o método dessa ciência. São também cha-
mados economistas radicais. Vejamos, a título de ilustração, a seguinte passagem de uma
crítica ao modelo dominante da Economia Política, por sua incapacidade em conduzir o
estudo dos processos de mudança tecnológica. O autor apresenta duas razões para essa
dificuldade:

A primeira razão prende-se ao caráter estático da teoria econômica dominante, a


neoclássica, cuja abordagem predominantemente atemporal, relativa a situações hipotéti-
cas de equilíbrio, é particularmente inadequada para lidar com processos de mudança.
Quando muito é capaz de focalizar duas posições distintas sob a ótica da estática compa-
rativa, onde o processo de transição é deixado de lado. Nesse quadro, não surpreende que
a mudança tecnológica tenha merecido quando muito referências secundárias [dentro des-
sa abordagem] (...). As abordagens que se centram no processo de mudança técnica, (...),
são marginais em relação àquele eixo teórico hegemônico. Entre essas destacam-se cla-
ramente as de Marx e Schumpeter, não por acaso as principais referências teóricas para a
recente retomada, no âmbito da reflexão crítica em Economia, da preocupação com a
mudança e progresso tecnológicos.
Em segundo lugar, merece registro o caráter até certo ponto interdisciplinar que
se exige de uma análise do processo de mudança tecnológica, não apenas quanto a seus
efeitos, que certamente desbordam para o social, o institucional e o cultural, mas em fun-
ção de seus determinantes, cujos aspectos específicos (...) os tornam irredutíveis à pura
racionalidade econômica. (Possas, 1989: 157)

A analogia proposta por Saussure acaba por se mostrar bastante profícua, não para
demonstrar a necessidade de uma abordagem atemporal, mas sim por evidenciar como
uma abordagem estática, atemporal, baseada em situações de equilíbrio hipotético (em
Economia) ou instável (em Lingüística, como veremos adiante) revela-se inadequada para
o tratamento da questão da mudança. Tal dificuldade deriva da maneira imprópria pela
qual essa abordagem se apropria do seu objeto de estudo e o representa: um sistema autô-
nomo que deve ser estudado através de suas relações internas:

Uma das diferenças mais marcantes entre os economistas neoclássicos e os economistas


radicais é que aqueles tendem a achar que os aspectos econômicos da sociedade podem
ser plenamente entendidos, independentemente de qualquer compreensão de Sociologia,
Psicologia ou Política. (...) ao passo que os economistas radicais reconhecem que, embora
os economistas se especializem no estudo dos aspectos econômicos da sociedade, em rea-

50
lidade os aspectos econômicos, psicológicos, sociológicos e políticos da sociedade estão
inter-relacionados. Nenhum aspecto da sociedade pode ser suficientemente percebido ou
entendido isoladamente do lugar que ocupa na totalidade orgânica da sociedade. (Hunt,
1987: 506)

Deve-se destacar nessa passagem as interfaces que o autor sugere entre a econo-
mia e a psicologia e a sociologia. Essas inter-relações da lingüística com a sociologia ou a
antropologia, por exemplo, que foram expressamente rejeitadas por Saussure em nome da
automia da Lingüística só veriam a se efetivar na década de 1960, com o surgimento de
escolas como a Etnolingüística e Sociologia da Linguagem. Assim, invertendo o conteú-
do da analogia proposta por Saussure, podemos observar que, assim como na Economia,
a representação do objeto de estudo da Lingüística como um sistema autônomo e dissoci-
ado das relações sociais e ideológicas nas quais este sistema se atualiza e funciona pode
representar um grande obstáculo para a análise mais ampla e adequada dos fatos relativos
à linguagem humana.

A autonomia do sistema sincrônico

Segundo Saussure, a língua poderia ser estudada fora da consideração do fator


tempo, já que sua estrutura constituiria um sistema de valores, em cuja lógica interna se
poderia encontrar toda a sua explicação87. Assim, a dicotomia entre sincronia e diacronia
se apóia no pressuposto de que, em cada estado momentâneo, a língua apresenta uma ló-
gica interna, que se explica a si mesma. Tal lógica é a lógica do seu funcionamento, de
suas relações funcionais. A esse propósito Saussure observa que:

A primeira coisa que surpreende quando se estudam os fatos da língua é que, para o indi-
víduo falante, a sucessão deles no tempo não existe: ele se acha diante de um estado.
Também o lingüista que queira compreender esse estado deve fazer tabula rasa de tudo
[o que o ]88 produziu e ignorar a diacronia. Ele só pode penetrar na consciência dos indi-
víduos que falam suprimindo o passado. A intervenção da história apenas lhe falsearia o
julgamento. (Curso: 97; Cours: 117)

Dessa forma, na medida em que o falante é capaz de utilizar a língua sem conhe-
cer coisa alguma acerca da sua história, o lingüista poderia estudá-la somente a partir de

87
“A língua constitui um sistema de valores puros que nada determina fora do estado momentâneo de seus
termos”. (Curso: 95; Cours: 116)
88
No texto francês, “de tout ce qui l'a produit”; no texto em português, “de tudo quanto produziu”.

51
sua funcionalidade sincrônica, desprezando o processo de sua constituição. Pode-se dizer
que esse princípio está na base do descritivismo estruturalista89.
Entretanto, apesar de a língua possuir uma organização estrutural que apresenta
uma lógica própria de funcionamento, essa organização estrutural é profundamente per-
meada por influxos da organização sócio-cultural da comunidade de fala, já que a funcio-
nalidade da língua constitui um produto cultural historicamente condicionado e deve ela
mesma responder às necessidades apresentadas pelo desenvolvimento sócio-cultural da
comunidade que a utiliza. Existe um movimento dialético na estrutura da língua entre a
sua organização interna (o seu modo estruturante) e sua relação externa com a estrutura
social. Assim, a lógica da estrutura (e da estruturação) da língua transcende a sua organi-
zação interna e se completa na relação com o contexto sócio-cultural, do qual a língua
não só é um produto, como também um dos elementos constituintes.
Através desse raciocínio, pode-se compreender por que muitas mudanças que se
perpetram na língua vão de encontro à lógica de sua organização interna; e, ao mesmo
tempo, por que, ocorrida uma alteração na lógica interna da língua, permanecem elemen-
tos e relações que só encontram a sua razão de ser na lógica pretérita, já extinta, mas que
são mantidos devido à força da tradição cultural ou à disposição das relações sociolin-
güísticas; de modo que a maioria das mudanças lingüísticas, não obstante a sua natureza
sistêmica, não se realiza completamente em todo o sistema. Por isso, a lógica do sistema
lingüístico nunca é cabal e exaustivamente coerente. Toda a Lingüística estruturalista, ao
encerrar-se na lógica interna do sistema, esteve às voltas com esse dilema: como explicar
o funcionamento da língua exclusivamente através de sua lógica interna se esta estava a
todo tempo ‘alterada’ e ‘deformada’ por sua relação com o social e com a história? Com
isso, paralelamente ao equilíbrio hipotético da Economia Política neoclássica, desenvol-
veram-se na Lingüística Estrutural noções como a do equilíbrio instável do sistema, e
uma série de noções afins90, que expressam a postura claudicante de um modelo teórico
que se apóia plenamente no equilíbrio interno do sistema, sem poder observar esse equi-
líbrio em sua plenitude; sendo que essa postura pode ser identificada já no próprio Saus-

89
Esse princípio é reproduzido, com muita fidelidade, por exemplo, por G. Lepschy (1975 [1966]: 18):
“deve-se reconhecer a validade, na Lingüística, como em outras disciplinas, destes dois tipos de considera-
ção: o estudo de como se passou de um estado lingüístico para outro, e o estudo de um estado lingüístico,
no seu funcionamento e na sua estrutura, prescindindo completamente do modo pelo qual se chegou a
esse funcionamento e a essa estrutura.” [o grifo é meu]
90
cf. G. Devoto (apud COSERIU, 1979a [1952]: 14): “A realidade da língua é movimento e, mesmo quan-
do considerada sincronicamente, fundamenta-se num equilíbrio instável”. E Coseriu: “a distinção de um
sistema mais ou menos estável constitui tão somente uma necessária abstração científica.” (1979a [1952]:
18); “o equilíbrio da língua não é estável, mas precário.” (1979 [1958]: 22).

52
sure, quando ele afirma: “Em nenhum momento um idioma possui um sistema perfeita-
mente fixo de unidades.” (Curso: 199; Cours: 234)
O método de análise de se fazer tabula rasa da história da língua e estudar o sis-
tema apenas por sua funcionalidade interna e sincrônica, colocando-se o lingüista no ní-
vel da consciência do falante, só encontraria a sua razão de ser se o sistema assim se ex-
plicasse inteiramente. Porém, como isso não se verifica, o lingüista, mesmo que se man-
tenha ao nível da consciência do falante, deveria discernir entre o que se explica pela fun-
cionalidade interna do sistema (o que é determinado apenas na dimensão estrutural e es-
truturante da linguagem) e o que permanece na língua devido à tradição ou é fruto dos
influxos da estrutura social sobre a estrutura lingüística (ou seja, o que é determinado na
dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico). Caso contrário, o lingüista se vê obri-
gado a realizar verdadeiros malabarismos de análise, em que formulações ad hoc só se
justificam pelo conhecimento que o lingüista tem da história da língua. Vejamos a esse
propósito a seguinte análise estrutural de Mattoso Câmara Jr. (1982 [1970]: 95) da flexão
de plural dos nomes portugueses terminados em -ão:

Caso aparentemente mais complexo é o dos nomes de singular em -ão, tônico ou


átono. O singular neutraliza 3 estruturas radicais distintas, ou antes, uma estrutura de te-
ma em -e e outra, que ora tem o tema em -e, ora tem o tema em -o. Nesta última, a forma
teórica coincide com a forma concreta singular e o plural se faz regularmente pelo acrés-
cimo de /S/ do plural: irmão : irmãos; órfão : órfãos.
Já a vogal do tema em -e se combina com uma estrutura terminada em -ã /aN/ e
outra terminada em -õ /oN/. A vogal do tema se incorpora como assilábica à sílaba de
travamento nasal e este passa a travar o tema: a) *pãe /paiN/ : pães; b) *leõe /leoiN/ :
leões.
Donde:
1) -ão : -ãos; 2a) *-ãe : -ães ; 2b) *-õe : -ões.
A estrutura 2b é a mais freqüente, ou antes, a estrutura geral, de sorte que a mai-
oria dos singulares em -ão, sendo teoricamente *-õe, forma o plural em -ões. As duas ou-
tras estruturas são tão reduzidas que se podem esgotar em pequenas listas.

A divisão tripartida do plural dos nomes em -ão em português, entretanto, se ex-


plica muito mais claramente se partirmos da flexão do nome em latim. As palavras portu-
guesas de singular em -ão que fazem o plural em -ões, do tipo leão : leões, são via de re-
gra oriundas das palavras latinas da 3ª declinação imparissilábica 91, cujas formas do acu-
sativo – caso lexicogênico do português – são leonem : leones. As palavras que fazem o
plural em -ães são da mesma maneira provenientes das formas da 3ª declinação latina pa-
rissilábica, donde pão : pães (< Ac. panem : panes). E as que fazem o plural em -ãos, da
2ª ou da 4ª declinações latinas, respectivamente irmão : irmãos (< Ac. germanum : ger-

91
Digo via de regra porque várias palavras da série portuguesa em -ão acusam em sua evolução uma mu-
dança de paradigma, em sua maioria em função desse grupo de plural em -ões, por ser o mais numeroso.

53
manos) e mão : mãos92. No português arcaico, a situação dessas palavras era, em linhas
gerais, a seguinte:
1) no singular, leon, pan (com apócope do -em latino) e mão (com síncope do -n-
com nasalização da vogal anterior);
2) no plural, leões, pães e mãos (tendo, em todas as formas, ocorrida apenas a sín-
cope do -n- intervocálico, com a nasalização da vogal anterior).
Na evolução do português, haverá uma identificação das formas do singular, em
função do ditongo /ãw/, e em detrimento das terminações arcaicas -an e -on. Assim, man-
tendo-se o lingüista somente ao nível da consciência do falante atual, da funcionalidade
sincrônica, ele é incapaz de prover o fato morfológico de uma explicação satisfatória, ou
seja é incapaz de explicar porque o falante faz o plural de leão em leões, ao passo que faz
o de pão em pães e, o de mão em mãos. Na análise de Câmara Jr., as formas teóricas pro-
postas para explicar o fato nada mais são do que informações históricas dissimuladas em
análise sincrônica. Coloca-se, portanto, em xeque o princípio saussuriano de que a sin-
cronia se explica a si própria. Mais ainda, também é posta em questão a idéia de que só a
sincronia gera o sistema; já que o processo de formação do plural dos nomes portugueses
em -ão é gerado diacronicamente. Nenhuma sincronia, tomada isoladamente pode expli-
cá-lo, pois, se ele não se enquadra nas regras da sincronia atual, tampouco se enquadrará
nas regras das sincronias pretéritas. Em latim temos sincronicamente a substituição da
marca de acusativo singular -m pela marca de acusativo plural -s, com o processo subsi-
diário de alternância da vogal temática, na 2ª declinação. No português antigo, temos,
também sincronicamente, o acréscimo simples da marca de plural -s para os nomes em -
ão, e o acréscimo de /ys/, formando ditongo nasal, para os nomes em /ã/ e /õ/93.
Incide, pois, na idéia da autonomia do sincrônico a primeira e principal crítica
que se pode perpetrar à proposição saussuriana de separar irremediavelmente história e
estrutura lingüística. Não obstante, outros pontos da fundamentação da divisão absoluta
entre sincronia e diacronia devem ser aqui analisados.

92
As palavras da 4ª declinação latina na passagem para o romance incorporam-se ao paradigma da 2ª decli-
nação.
93
Para efeito desta análise, não é necessário descer a certos detalhes polêmicos da evolução dessas formas,
como, por exemplo, se, no português antigo, pan e leon apresentam uma vogal final nasal ou uma vogal
oral com travamento nasal final. Assumi, portanto, que se trata de uma vogal nasal.

54
Alguns exemplos, outras críticas e uma metáfora

Saussure apresenta ainda alguns exemplos que, segundo ele, demonstram como “a
oposição entre os dois pontos de vista – sincrônico e diacrônico – é absoluta e não admite
compromissos”94. Em um desses exemplos – talvez o mais referido na literatura –, Saus-
sure aborda o processo de flexão de número em alemão, fazendo um paralelo com o in-
glês:

No antigo alto alemão, o plural de gast ‘hóspede’ foi inicialmente gasti; o de hant ‘mão’
foi hanti etc. Mais tarde esse -i produziu uma metafonia, isto é, teve por efeito mudar o a
em e na sílaba anterior: gasti > gesti, hanti > henti. Depois esse -i perdeu seu timbre,
donde gesti > geste, henti > hente etc. Em conseqüência têm-se hoje gast : gäste, hand :
hände e uma classe inteira de palavras apresenta a mesma diferença entre o singular e o
plural. Um fato semelhante se produziu no inglês: tinha-se a princípio fot ‘pé’, plural
*foti; (...); gos ‘pato’, plural gosi etc; depois, por via de uma primeira transformação fo-
nética, a metafonia, *foti se tornou *feti, e de uma segunda, a queda do -i final, *feti deu
fet; desde então fot tem por plural fet; (...); gos, ges (inglês moderno: foot, feet (...); goose,
geese). (Curso: 99; Cours: 120)

Considerando que, em cada sincronia, se encontra uma regra própria para a for-
mação de plural, Saussure conclui que “o fato de gasti ter dado gesti, geste (gäste) nada
tem a ver com o plural dos substantivos; (...). Por conseguinte, um fato diacrônico é um
acontecimento que tem sua razão de ser em si mesmo; as conseqüências sincrônicas par-
ticulares que dele podem derivar são-lhe totalmente estranhas”; e conclui ainda que “es-
ses fatos diacrônicos não tendem sequer a alterar o sistema. (...) o sistema nunca se modi-
fica diretamente; (...); apenas alguns elementos são alterados sem atenção à solidariedade
que os liga ao todo”95. “Assim”, como observou Bakhtin (1986 [1929]: 81), “entre a lógi-
ca da língua como sistema de formas e a lógica da sua evolução histórica, não há nenhum
vínculo, nada de comum. As duas esferas são regidas por leis completamente diferentes,
por fatores heterogêneos. O que torna a língua significante no quadro sincrônico é excluí-
do e inútil no quadro diacrônico. O presente da língua e sua história não se entendem en-
tre si”.
Porém, o exemplo do Curso pode ser interpretado de outra maneira. Na medida
em que uma mudança lingüística engendra no sistema uma nova regra de formação do
plural, como postular que as mudanças não alteram o sistema, ou que não afetam as re-
lações entre os seus termos? É certo que tal regra de formação de plural pode ser depre-
endida sincronicamente, mas essa operação teórica não nega o fato concreto de que este
elemento estrutural – essa regra de formação de plural – é produto do processo de consti-

94
Curso: 98; Cours: 119.
95
Curso: 100; Cours: 121.

55
tuição histórica da língua. Assim, ao invés de considerar os fatos relativos à mudança
como absolutamente distintos dos fatos da estrutura lingüística, pode-se considerar as
mudanças como encaixadas nessa estrutura: mudança e estrutura se determinam mutua-
mente.
Concebendo a mudança como encaixada no sistema lingüístico, a configuração
estrutural da língua constituiria um dos fatores a serem considerados no estudo dos pro-
cessos de mudança, como um dos fatores que determinariam as condições favoráveis, ou
restrições, a esses processos. No exemplo do Curso, pode-se observar então que, através
da idéia de encaixamento, a primeira mudança – a metafonia – implica a constituição de
um mecanismo suplementar de marcação do plural no sistema lingüístico. Já quanto à
segunda mudança, a existência de uma redundância no sistema (dois procedimentos mór-
ficos – a alternância da vogal do radical e o acréscimo da vogal final – com a mesma fi-
nalidade de marcar a forma do plural) constitui uma das condições estruturais e funcio-
nais favoráveis à sua implementação. No alemão, a redundância possibilitou o enfraque-
cimento da marca primitiva de plural, o que se deu com a perda do timbre do -i final. No
inglês, o processo foi ainda mais radical, ocorrendo mesmo a supressão da marca primiti-
va do plural, através da queda do -i, tornando-se a alternância da vogal do radical o único
processo mórfico de indicação da flexão de número nesses substantivos. Assim, a segun-
da crítica que se pode formular ao raciocínio saussuriano provém do fato de Saussure
pensar a mudança e o sistema como mutuamente excludentes.
O fato de os estudos de Lingüística histórica, antes e depois de Saussure, se con-
centrarem sobretudo no nível fônico favoreceram a formulação do problema nos termos
de sua rígida dicotomia entre o que é sincrônico (sistêmico, funcional) e o que é diacrôni-
co (não-sistêmico, acidental). Por excluir a fonologia do sistema lingüístico (cf. Capítulo
I deste livro), Saussure não encontrou dificuldades em banir as mudanças fonéticas do
sistema da língua. Não obstante, na medida em que obviamente as mudanças lingüísticas
não se limitam ao nível fônico, o próprio Saussure teve consciência das dificuldades com
que se deparava:

O caráter diacrônico da Fonética concorda muito bem com o princípio de que


nada do que seja fonético é significativo ou gramatical, no sentido lato do termo. (...). Se
a evolução de uma língua se reduzisse à dos sons, a oposição dos objetos próprios às duas
partes da Lingüística seria de pronto evidente; ver-se-ia claramente que diacrônico, eqüi-
vale a não-gramatical, assim como sincrônico a gramatical.
[Mas não haverá outros elementos além dos sons que se transformam com o
tempo?]96 As palavras mudam de significação, as categorias gramaticais evoluem; vêem-
se algumas desaparecer com as formas que serviam para exprimi-las (por exemplo, o dual

96
No texto francês, “Mais n'y-a-t-il que les sons qui se transforment avec le temps?”; na tradução brasileira
(claramente equivocada nesta passagem), “Mas não existirão sons que se transformem com o tempo?”

56
em latim). E se todos os fatos de sincronia associativa e sintagmática têm sua história,
como manter a distinção absoluta entre diacronia e sincronia? Isso se torna muito difícil
desde que se saia da Fonética pura. (Curso: 164; Cours: 194)
Se, pois, a fonética intervém as mais das vezes por um lado qualquer na evolu-
ção, ela não pode explicá-la inteiramente; uma vez eliminado o fator fonético, encontra-se
um resíduo que parece justificar a idéia “de uma história da gramática”; é nisso que reside
a verdadeira dificuldade; a distinção – que deve ser mantida – entre o diacrônico e o sin-
crônico exigiria explicações delicadas, incompatíveis com o quadro desse curso. (Curso:
166; Cours: 196-197)

Não se encontra, portanto, no legado de Saussure a solução para o problema, sen-


do que, no escopo dos rígidos termos do raciocínio saussuriano (talvez justificáveis ape-
nas no âmbito de sua exposição), não se encontraria decerto a sua solução. Por outro lado,
com o intuito de fortalecer a idéia dessa oposição entre sistema e mudança, Saussure,
apoiando-se na orientação eminentemente atomística dos estudos de Lingüística Histórica
que até então se faziam, vai afirmar que “os acontecimentos diacrônicos têm sempre um
caráter acidental e particular”97. Tomando inicialmente os fatos semânticos, a demonstra-
ção parece se desenvolver sem maiores dificuldades. Saussure apresenta o caso da pala-
vra francesa poutre ‘égua’, que “tomou o significado de ‘peça de madeira, viga’”, e ex-
plica que “isso se deveu a causas particulares e não depende de outras mudanças que se
puderam produzir ao mesmo tempo; não foi mais que um acidente entre todos os que a
história de uma língua registra”98.
Pretendendo explicar o caráter acidental e particular das mudanças de significado
através de um único exemplo, o texto do Curso nos oferece um exemplo do que, em Ló-
gica, se denomina falácia do acidente convertido ou falácia da generalização apressada.
No caso apresentado no Curso, uma lógica estrutural, sistêmica não é visível. Há, contu-
do, também nesse mesmo nível de análise uma série de outros casos que podem ser anali-
sados de uma outra maneira. Temos, por exemplo, os verbos ser, haver e ter, na história
do português. No latim, o verbo ESSE recobria a área de significação existencial, enquan-
to que a HABERE cabia a significação de posse. Já no português antigo, haver começa a
ser usado com o sentido de ‘existir’, penetrando na área do verbo português ser (< ESSE
). Na evolução do português, haver vai assumir definitivamente a significação existencial
deslocando o verbo ser. Por sua vez, haver é deslocado da área de significação de posse
pelo verbo ter. E, atualmente no português do Brasil, ter concorre com haver na área de
significação existencial. Fica, pois, patente a lógica sistêmica dessas mudanças de signifi-
cação, tanto que, fatos como esses vão fundamentar a concepção da E. Sapir de que as

97
Curso: 109; Cours: 131.
98
Curso: 109; Cours: 132.

57
mudanças, longe de serem acidentais e particulares, seguem uma deriva (drift) que pode
ser visualizada a partir do estudo da organização estrutural da língua99.
Se, na demonstração semântica, a fragilidade do raciocínio saussuriano pode ser
demonstrada, no nível morfossintático a sua argumentação é de fato incongruente. Adver-
tindo que, nesse nível, “a coisa não é tão clara à primeira vista”, Saussure apresenta o se-
guinte exemplo:

Em certa época, quase todas as formas do antigo caso sujeito desapareceram em francês;
não há nisso um conjunto de fatos que obedecem à mesma lei? Não, pois todos não pas-
sam de manifestações múltiplas de um só e mesmo fato isolado. Foi a noção particular de
caso sujeito que foi extinta e seu desaparecimento acarretou o de toda uma série de for-
mas. Para quem não veja senão o exterior da língua, o fenômeno único se perde na mul-
tidão das manifestações; mas o fenômeno mesmo é único em sua natureza profunda e
constitui um acontecimento histórico tão isolado em sua ordem quanto a transformação
semântica sofrida por poutre; só toma aparência de lei porque se realiza num sistema: é
a disposição rigorosa deste que cria a ilusão de que o fato diacrônico obedece as mesmas
condições que o sincrônico. [grifo meu] (Curso: 109; Cours: 132)

Ao considerar o fato em questão como particular, isolado e acidental, mas com


múltiplas manifestações, Saussure procura imputar-lhe uma natureza não sistêmica,
quando a multiplicidade de suas manifestações decorre precisamente de sua natureza sis-
têmica. Na passagem do latim ao francês, o sistema de flexão casual dos nomes foi redu-
zido de seis para dois casos morfológicos, no francês antigo. Na evolução do francês, es-
ses dois casos morfológicos são reduzidos a um, com o desaparecimento do caso sujeito
(derivadas das formas do antigo caso nominativo latino), predominando as formas oriun-
das do acusativo, fato que inscreve o francês entre as línguas da chamada România Oci-
dental. Tal fato, portanto, não só é sistêmico, como também reflete um tendência presente
na evolução da língua; num certo sentido, a deriva de Sapir acima referida. É evidente

99
Em Sapir, o conceito de deriva não é totalmente fundamentado em uma concepção estrutural da língua,
sistematicamente formalizada. Com isso, na formulação desse conceito, Sapir apoia-se, tanto em fatores
estruturais, como, por exemplo, a disposição da pauta pronominal (ação do paradigma), em seu estudo da
substituição de whom por who, quanto em fatores notadamente subjetivos, como a ‘relutância’, a ‘repug-
nância’ que certas seqüências sonoras provocariam no falante, devido a uma certa ‘motivação estética’ -
que, de resto, se justifica pela influência croceana, reconhecida pelo próprio Sapir (cf. Sapir, 1954: 148-171
e Prefácio do autor). Essas e outras imprecisões (o conceito de deriva, por exemplo, é aplicado a uma vasta
gama de fatos, desde profundas tendências evolutivas da língua até o que se pode definir como mudanças
em curso, ou mesmo como variação estável) provocaram muitas críticas; entre elas, a que atribuía à formu-
lação de Sapir um caráter um tanto quanto metafísico; e outras que questionavam o seu valor explicativo
(cf. Lightfood, 1981). Contudo, o conceito de deriva deve ser considerado como uma tentativa de explica-
ção para as profundas tendências que marcam a história das línguas, como a tendência ao desaparecimento
da flexão nominal – e depois, pronominal – que se estende do indo-europeu às línguas atuais deste grupo
lingüístico – fato que Saussure refere como “certas transformações mais ou menos comuns às diversas lín-
guas de uma família” (Curso:269; Cours: 314). Entretanto, deve-se ter consciência de que fatos como esse
ainda não lograram, entre as teorias da mudança lingüística, uma explicação satisfatória.

58
que as múltiplas manifestações do “fenômeno” decorrem, pois, do seu caráter sistêmi-
co.100
Portanto, a terceira crítica à concepção saussuriana da mudança lingüística loca-
liza-se na sua consideração dos fatos da mudança como particulares, isolados e aci-
dentais; ou seja, de natureza não sistêmica101.
Como se pode perceber, todos os pontos do pensamento saussuriano sobre a mu-
dança lingüística em que incidem as críticas aqui feitas decorrem do fosso que Saussure
interpõe entre o sistema e a mudança. Mas, como pudemos ver também, a organização
estrutural da língua e seu contínuo processo de mudança não estão em conflito. Em reali-
dade, é a concepção de língua como um sistema homogêneo e unitário, e por conseguinte
estático, que está em conflito com o caráter dinâmico e plural do fenômeno lingüístico em
sua dimensão sócio-histórica; ou, como observou Bakhtin (1986 [1929]: 104), “a reflexão
lingüística de caráter formal-sistemático é incompatível com uma abordagem histórica
viva da língua. Do ponto de vista do sistema, a história apresenta-se sempre como uma
série de destruições devidas ao acaso”. Desse modo, o afastamento da questão da mudan-
ça não deixou de constituir uma defesa necessária à manutenção da concepção do sistema
lingüístico homogêneo, e do próprio modelo teórico estruturalista, que nela se fundamen-
tava. Veja-se, a propósito, a famosa metáfora que o Curso apresenta para justificar a ne-
cessidade da distinção entre sincronia e diacronia:

Para demonstrar simultaneamente a autonomia e independência do sincrônico e do dia-


crônico, pode-se comparar a primeira com a projeção de um corpo sobre um plano. Com
efeito toda a projeção depende do corpo projetado e, contudo, dele difere, é uma coisa
à parte. Sem isso, não haveria toda uma ciência das projeções; bastaria considerar os
corpos em si mesmos. Em Lingüística, existe a mesma relação entre a realidade his-
tórica e um estado de língua, que é como a sua projeção num momento dado. Não é es-
tudando os corpos, isto é, os acontecimentos diacrônicos, que se conhecerão os estados
sincrônicos, do mesmo modo porque não se terá noção das projeções geométricas por ter-
se estudado, ainda que de muito perto, as diversas espécies de corpos. [grifos meus]
(Curso: 103; Cours: 124-125)

Através da imagem da projeção, Saussure resgata o caráter de construção teórica


da concepção de língua como sistema. Muitos já destacaram este caráter meramente me-
todológico da sua antinomia entre sincronia e diacronia102; donde esta defesa de Coseriu:

100
Note-se que a dificuldade de argumentação é tanta que o próprio Saussure se contradiz afirmando que a
mudança (“o fenômeno”) “se realiza [no] sistema”.
101
donde a seguinte questão de G. Lepschy (1975 [1966]: 29): “Trata-se de ver, como parece que podemos
compreender do Cours, se o estudo diacrônico é, necessariamente, limitado a fatos isolados individuais”.
102
cf., por exemplo, C. Bally (1937: 345): “F. de Saussure, dans son Cours de linguistique générale, a pos-
tulé deux méthodes différentes pour l'étude des évolution et pour celle des états de langue.”

59
Saussure não fez ontologia, mas metodologia; procurou distinguir a Lingüística sincrôni-
ca e a diacrônica, ou melhor, o ponto de vista sincrônico e o diacrônico na Lingüística.
Por isso, a distinção entre diacronia e sincronia não pertence a teoria da linguagem (ou da
língua), mas à teoria da Lingüística. [grifo do original] (1979 [1958]: 27)

Contudo, dentro dessa argumentação, qualquer abstração pode ser legitimada co-
mo um mero procedimento técnico-descritivo, o que se relaciona à idéia de uma metodo-
logia neutra e “objetiva”, descolada das concepções fundamentais e dos princípios teóri-
cos que norteiam a investigação. Tal concepção neopositivista não consegue apreender a
relação dialética entre o objeto do conhecimento e os procedimentos utilizados pelo in-
vestigador para se apropriar desse objeto, cuja síntese é a própria construção do objeto de
estudo como representação teórica, que assume assim – para usar a expressão marxiana –
a condição de concreto pensado.
Apoiando-se na crença de um objeto em si intangível, o discurso neopositivista
engendra um jogo em que é permitido ao investigador formular uma série de representa-
ções parciais ou deformadas do objeto de estudo. Esta abstração é justificada como uma
“exigência da investigação científica”, e legitimada apenas por sua “racionalidade” e coe-
rência interna. Porém, não se pode separar de maneira estanque a representação do objeto
do objeto representado, já que a metodologia da análise não está dissociada da concepção
do objeto que fundamenta esta análise. Diante disso, não se sustenta a divisão estanque
que Coseriu apresenta entre o plano da investigação e o plano do objeto investigado103.
A metodologia não pode ser avaliada apenas ao nível de sua lógica interna. Mais
do que um mero conjunto de procedimentos técnicos e neutros, a metodologia constitui o
modo pelo qual o investigador apreende o seu objeto de estudo, revelando assim o ponto-
de-vista da investigação, bem como as suas concepções axiais. Em todos esses níveis, a
metodologia deve ser avaliada e constituir objeto de discussão epistemológica. E destaco,
mais uma vez, o conjunto de determinações do modo de existir do objeto que cada meto-
dologia mobiliza na sua apreensão como um dos aspectos cruciais na avaliação das pro-
posições dos diversos programas de pesquisa.
Infelizmente, o procedimento de se encerrar no interior do seu edifício teórico,
como o único terreno plausível de discussão, em Lingüística, não é uma característica

103
cf. Coseriu (1979 [1958]: 17): “a antinomia sincronia/diacronia não pertence ao plano do objeto, e, sim,
ao plano da investigação”. Mais adiante, Coseriu, ao falar dos abismos que se teriam formado na Lingüísti-
ca saussuriana a partir das dicotomias língua/fala e sincronia/diacronia (p. 18), afirma: “na realidade, os
pretensos abismos não existem, ou melhor, surgiram da confusão entre o plano do objeto investigado e o
plano do processo investigante”. Porém, o que Coseriu não percebe é que essa confusão não é decorrente
apenas da incapacidade dos demais estudiosos saussurianos de compreender o que ele vislumbra com tanta
nitidez, e, sim, que a “confusão” existe e continuará existindo, porque essa separação entre o “plano do
objeto” e o “plano da Investigação”, que ele propõe com tanta clareza, é escolástica e, na prática, não exis-
te.

60
apenas do Estruturalismo. Ao não admitir uma discussão objetiva de suas concepções (is-
to é, uma discussão do ponto-de-vista de sua relação com o objeto), encerrando-se, exclu-
sivamente, no plano de sua construção interna, os diversos modelos teóricos da Lingüísti-
ca arrogam-se uma reserva de arbítrio que em nada contribui para o avanço da ciência,
apesar de lhes proporcionar as condições para um extraordinário refinamento formal.

Mudança fonética versus analogia

Um aspecto chama a atenção de quem vasculha o monumental edifício teórico


que vem à luz através do Curso: se Saussure marca profundamente a Lingüística deste
século, dotando-a de um rico e original modelo teórico, quanto à questão da mudança,
pode-se considerar irrelevante a sua contribuição. Não é suficiente dizer, como o faz
Mattoso Câmara Jr. (1975: 170), que “Saussure, em sua abordagem diacrônica, não vai
além dos princípios neogramáticos da lei fonética e da analogia”. A mudança lingüística
aparece no Curso alienada de alguns dos seus principais elementos. Basta observar a an-
tinomia que Saussure propõe entre a analogia e as mudanças fonéticas.
Assim como os neogramáticos, Saussure também vê as mudanças fonéticas como
o principal fator da evolução das línguas. Reproduzindo a concepção mecanicista daque-
les, Saussure conservará a visão das mudanças como fortuitas, involuntárias e, ao mesmo
tempo, regulares; como um conjunto de ações cegas que se perpetram de maneira ilimita-
da sobre a língua. Essas características aparentemente antitéticas ajustam-se perfeitamen-
te à concepção estrutural de língua proposta por Saussure, pois todas elas explicam-se
pelo caráter não-sistêmico das mudanças fonéticas:

O fenômeno fonético é, outrossim, ilimitado e incalculável no sentido de que afeta qual-


quer espécie de signo, sem fazer distinção entre um adjetivo, um substantivo etc., entre
um radical, um sufixo, uma desinência etc. Isso tem de ser assim a priori, pois se a gra-
mática interviesse, o fenômeno fonético se confundiria com o fato sincrônico, coisa radi-
calmente impossível. Isto é o que se pode chamar de caráter cego das evoluções de sons. (
Curso, 176; Cours: 209)

Se por um lado as mudanças fonéticas são fortuitas e involuntárias porque possu-


em uma lógica alheia à lógica do sistema, donde a sua imprevisibilidade; por outro lado,
elas também seriam cegas e ilimitadas porque igualmente não se submeteriam aos limites
ditados pelo sistema, donde a sua regularidade104. Contudo, confinar a mudança nesse ter-

104
Cf. Curso, 176; Cours, 209: “A mudança fonética atingiria assim todas as manifestações de um som na
língua, a despeito dos fatores gramaticais, ignorando as fronteiras internas do sistema.”

61
reno estranho ao da língua e levar aos últimos termos a distinção entre o sincrônico e o
diacrônico proporcionará algumas dificuldades ao tratamento de um determinado fator da
evolução lingüística: a analogia. Essa dificuldade decorre de sua natureza insofismável-
mente sistêmica105:

Es, pues, evidente que as formas analógicas suponem un especial manejo del sistema, se
deben siempre a reacomodaciones del sistema. Saussure llama a los neologismos fonéti-
cos cambios y a los analógicos creacciones; pero unos y otros son hechos de diacronia, y
los analógicos, ya tal como Saussure los comprendia, destruyem su principio propuesto:
sin possible escape, las creaciones analógicas son a la vez sincronia y diacronia. (Alonso,
1959 [1945]: 17)

A dualidade analogia e mudança fonética já estava presente na doutrina neogra-


mática. Nesse modelo, cabia à analogia a explicação das exceções à regularidade das mu-
danças fonéticas. Saussure retomou esses conceitos em suas linhas gerais, só que, “con-
forme seu estilo, os apresentou como antinomia irredutível”106. Para sustentar essa anti-
nomia, Saussure vai-se apoiar no artifício teórico de apresentar a analogia, não apenas
como um processo que se opõe à mudança fonética, mas, fundamentalmente, como um
processo sincrônico, excluído, portanto, do campo da mudança lingüística107. Saussure
parte do princípio de que “a analogia supõe um modelo e sua imitação regular” 108, na ana-
lise de um caso exemplar, a substituição do nominativo latino honos por honor:

A princípio se disse honos : honosem, depois por rotacismo do s, honos : honorem. O ra-
dical tinha, desde então, uma forma dupla; tal dualidade foi eliminada pela nova forma
honor, criada sobre o modelo de orator : oratorem etc., por um procedimento (...) que re-
duzimos desde já ao cálculo da quarta proporcional:
oratorem : orator = honorem : x
x = honor109
Ao lado do fato real, Saussure vai, então, encenar um drama:

Todo o fato analógico é um drama de três personagens: 1º o tipo transmitido, legítimo,


hereditário (por exemplo, honos); 2º o concorrente (honor); 3º uma personagem coletiva,
constituída pelas formas que criaram esse concorrente (honorem, orator, oratorem etc.).
Considera-se habitualmente honor como uma modificação, um “metaplasmo” de honos, é
desta última palavra que teria tirado a maior parte de sua substância. Ora, a única forma
que nada tem a ver com a geração de honor foi precisamente honos!
(...)
Honor e honos coexistiram durante certo tempo e era possível usar uma pela outra. Entre-
tanto, como repugna à língua manter dois significantes para uma só idéia, as mais das ve-

105
Vejam-se as seguintes afirmações do Curso: “a analogia é de ordem gramatical; ela supõe a consciência
e a compreensão de uma relação que une as formas entre si” (p. 191; Cours: 226),; “tudo é gramatical na
analogia” (p. 192; Cours: 226).
106
A. Alonso, 1959 [1945]: 17 - nota 1.
107
“a analogia (...) é inteiramente gramatical e sincrônica” (p. 193; Cours: 227-228).
108
Curso, 187; Cours: 221.
109
Curso: 187-188; Cours: 221-222.

62
zes a forma primitiva, menos regular, cai em desuso e desaparece. É esse resultado que
faz crer numa transformação: uma vez terminada a ação analógica, o estado antigo (honos
: honorem) e o novo (honor : honorem) estão, em aparência, na mesma oposição que a
que resulta da evolução dos sons. Todavia, no momento em que nasce honor, nada mu-
dou, pois não se substituiu nada: o desaparecimento de honos não é mais uma mudança,
de vez que se trata de um fenômeno independente do primeiro. (Curso, 189-90; Cours:
224-225)

Do drama saussuriano transparece uma grave confusão entre o determinante e o


processo em si. A analogia – ou seja, a pressão estrutural ou paradigmática – é o fator de-
terminante da mudança honos > honor. Foi através da ação analógica que os falantes cria-
ram honor ao par de honos, e foi igualmente devido à força da analogia que honor acabou
por prevalecer. Cabe então distinguir entre o fato lingüístico, que consiste na mudança
honos > honor, de um dos mecanismos lingüísticos (no caso, o determinante) intervenien-
tes no fato. Durante todo o seu raciocínio, Saussure confunde os termos dessa equação.
Enredado na teia por ele criada, procura – para atender a objetivos doutrinários – destacar
o fato analisado dos demais fatos de mudança, alegando que as formas honor e honos co-
existiram durante um certo período. Para infelicidade do seu argumento, os estudos feitos
nas últimas décadas têm demonstrado que qualquer processo de mudança (não apenas os
analógicos como pretendia Saussure) compreende a convivência, em variação na língua,
das formas arcaica e inovadora concorrentes. Pode-se dizer hoje que, também durante a
substituição de honosem por honorem – que Saussure reputa como um fato de mudança,
oposto a honos > honor –, as duas formas coexistiram durante algum período.
De qualquer das maneiras, a pretensão de Saussure é apenas uma: destacar a ana-
logia, um mecanismo lingüístico intimamente associado à natureza sistêmica da ativida-
de lingüística, da mudança, ou seja destituir a mudança de qualquer caráter sistêmico. É
com esse objetivo que ele constrói o seu raciocínio. É essa a moral do drama que ence-
nou. Mas, a artificialidade do expediente analítico de Saussure é tão flagrante que, no
próprio texto do Curso, encontramos passagens que lhe são opostas:

a analogia exerce uma ação sobre a língua. (...) ela reflete, de momento para momento, as
mudanças sobrevindas na economia da língua e as consagra por novas combinações. Ela
é a colaboradora eficaz de todas as forças que modificam sem cessar a arquitetura de um
idioma, e a esse título constitui um possante fator de evolução. (p. 199; Cours: 234-235)
De fato, a história de cada língua permite descobrir um formigueiro de fatos analógicos
acumulados uns sobre os outros, e, tomados em bloco, esses contínuos reajustes desem-
penham um papel considerável na evolução da língua, mais considerável, inclusive, que o
das mudanças de sons. (p.199; Cours: 235)

Ao tentar retirar a analogia do campo da mudança, Saussure opõe-se aos neogra-


máticos. Por outro lado, um dos maiores expoentes de uma outra vertente do Estrutura-
lismo, o Estruturalismo americano, Leonard Bloomfield (1941 [1933]: 404-424), opõe-se

63
a Saussure e mantém a analogia entre os processos de mudança, analisando-a dentro de
padrões estruturais, e considerando a regularidade das formas e a sua freqüência como
fatores determinantes em seu incremento:

Por um lado, classes de formas regulares crescem em detrimento de grupos menores, e,


por outro lado, formas irregulares de uma freqüência muito elevada resistem à inovação.
(id., ibid.: 409-410)

É curioso notar que, também em Saussure, encontramos uma analise da ação da


analogia em termos estruturais:

a conservação de uma forma pode dever-se a duas causas exatamente opostas: o isola-
mento completo ou o estreito enquadramento num sistema que, tendo permanecido intac-
to em suas partes essenciais, vem-lhe constantemente em socorro. É no domínio interme-
diário das formas insuficientemente sustentadas por sua vizinhança que a analogia inova-
dora pode manifestar seus efeitos. (Curso: 201; Cours: 237)

Não constitui uma incoerência o tratamento da analogia em termos estruturais.


Dentro do modelo saussuriano, a analogia faz parte da língua, do sistema. É exatamente
por lhe conferir tal caráter que Saussure a opõe à mudança. O objetivo de fundo é, pois, o
de negar qualquer caráter sistêmico à mudança, situando-a no terreno fugidio da fala.

Conclusão: a mudança na fronteira entre a fala e a língua

Segundo o modelo saussuriano, “tudo quanto seja diacrônico na língua não o é


senão pela fala. É na fala que se acha o germe de todas as [mudanças]: cada uma delas é
lançada a princípio por um certo número de indivíduos, antes de entrar no uso. O alemão
moderno diz: ich war, wir waren, enquanto o antigo alemão, do século XVI, ich was, wir
waren (...). Como se efetuou essa substituição de was por war? Algumas pessoas influen-
ciadas por waren criaram war por analogia; era um fato da fala; esta forma, freqüente-
mente repetida e aceita pela comunidade, tornou-se um fato de língua. Mas todas as ino-
vações da fala não têm o mesmo êxito e, enquanto permanecem individuais, não há por-
que levá-las em conta, pois o que estudamos é a língua; ela só entra em nosso campo de
observação no momento em que a coletividade as acolhe” (Curso, 115; Cours: 138)110.
Através desse modelo de representação da mudança, Saussure considerava que suas rígi-
das dicotomias entre a língua e a fala, e entre a sincronia e a diacronia ficavam preserva-
das:
110
Note-se que, mais uma vez, contraditoriamente Saussure trata a analogia como um dos fatores atuantes
num processo de mudança, chegando mesmo a definir a analogia como um fato de fala.

64
Um fato de evolução é sempre precedido de um fato, ou melhor, de uma multidão de fa-
tos similares na esfera da fala; isso em nada debilita a distinção estabelecida acima; esta
se acha inclusive confirmada, pois na história de toda inovação encontram-se sempre dois
momentos distintos: 1º aquele em que ela surge entre os indivíduos; 2º aquele em que se
tornou um fato de língua, exteriormente idêntico, mas adotado pela [coletividade]111.
(Curso: 115; Cours: 138-139)

Mas os problemas começam logo em se separar o “fato de fala” do “fato de lín-


gua”. Como já se viu no capítulo anterior, os conceitos da oposição entre língua e coleti-
vidade, por um lado, e fala e indivíduo, por outro, não são satisfatoriamente precisados
dentro do modelo saussuriano. Mais ainda, perguntas, do tipo: quando, como e por que
uma inovação da fala se torna um fato de língua, ficam sem resposta.
Tomemos, a esse respeito, o exemplo da concordância de número no sintagma
nominal (SN), no português do Brasil. A regra de marcação de plural no SN pode assumir
vários valores; num primeiro valor, todos os elementos do SN exibem marcas de plural;
num segundo, só o primeiro elemento exibe; num terceiro, só os dois primeiros elementos
(em casos de SN's com três ou mais elementos); etc. Ou seja, em falantes diferentes ou no
mesmo falante, ao lado de uma realização do tipo as crianças sãs, temos: as crianças sã e
as criança sã, etc112. A regra de formação de plural faz parte do sistema lingüístico do
português do Brasil, portanto coloca-se o problema do valor que essa regra possui ao ní-
vel do sistema, isto é, da língua. Adotando-se o modelo saussuriano, deveríamos eleger
um determinado valor como pertinente do ponto de vista lingüístico e considerar os de-
mais como fatos de fala e excluí-los do nosso campo de observação. Mas como o fazer,
se num mesmo falante se verifica a alternância de valores da regra, ou se mesmo um fa-
lante que adote um só valor ativamente apresenta os demais valores em seu conhecimento
passivo da língua, já que é perfeitamente capaz de decodificar mensagens formadas nos
demais valores da regra?113 Dessa forma, a representação de língua enquanto um sistema
unitário, homogêneo e independente do seu processo histórico de constituição entra em
conflito flagrante com o modo concreto de existir da língua, como observou Mikhail
Bakhtin, com uma impressionante clarividência, já no final da década de 20:

Os representantes dessa orientação acentuam constantemente que o sistema lin-


güístico constitui um fato objetivo externo à consciência individual e independente desta
– e isto representa uma de suas proposições fundamentais. E, no entanto, e só para a
consciência individual, e do ponto de vista dela, que a língua se apresenta como um sis-

111
No texto francês, collectivité; na tradução, comunidade.
112
Dentro dos objetivos dessa exposição, o problema é aqui apresentado de forma bem simplificada. Para
uma abordagem mais aprofundada da concordância nominal no português do Brasil, ver Scherre, 1988.
113
O caráter heterogêneo da competência lingüística, proposto pela Sociolingüística Variacionista (cf.
Weinreich, Labov e Herzog, 1968: 159), será tratado na 3ª Parte deste livro.

65
tema de normas rígidas e imutáveis. Na verdade, se fizermos abstração da consciência in-
dividual subjetiva e lançarmos sobre a língua um olhar verdadeiramente objetivo, um
olhar, digamos, oblíquo, ou melhor, de cima, não encontraremos nenhum indício de um
sistema de normas imutáveis. Pelo contrário, depararemos com a evolução ininterrupta
das normas da língua. (...) Para o observador que enfoca a língua de cima, o lapso de
tempo em cujos limites é possível construir um sistema sincrônico não passa de uma fic-
ção.
Assim, de um ponto de vista objetivo, o sistema sincrônico não corresponde a
nenhum momento efetivo do processo de evolução da língua. (...). O sistema sincrônico
da língua só existe do ponto de vista da consciência subjetiva do locutor de uma dada
comunidade lingüística num dado momento da história. Objetivamente, esse sistema não
existe em nenhum verdadeiro momento da história. [grifos do original] (1986 [1929]: 90-
1)

O sistema lingüístico saussuriano constitui uma representação teórica que buscou


apreender a dimensão estrutural e estruturante da linguagem e municiar a Lingüística com
um instrumental analítico que a tornasse capaz de enfrentar a questão do funcionamento
da língua. Contudo, tal representação colidiu de frente com a pluralidade, a heterogenei-
dade e a dinamicidade do modo concreto de existir da língua, ou seja, com as relações
que se estabelecem e constituem a dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico.
Nesse sentido, a questão da mudança lingüística, ou, mais precisamente, a contradição
entre mudança e sistema, desempenha um papel crucial na constituição do Estruturalismo
Lingüístico, bem como na sua superação; num dos mais significativos percursos da Lin-
güística no século XX. Não foi à-toa que Saussure desenvolveu todo o esforço teórico
para alijar a mudança do centro da investigação lingüística. Também não foi à-toa que um
dos mais profícuos desenvolvimentos do modelo saussuriano – levado a cabo pelos lin-
güistas do Circulo Lingüístico de Praga e por André Martinet e seus seguidores – se con-
centrou na superação da contradição entre sistema e mudança, ainda nos marcos do Estru-
turalismo.
Portanto, antes de conduzir à própria superação do modelo teórico do Estrutura-
lismo, a contradição entre mudança e sistema será um dos motores do desenvolvimento
interno desse modelo. A primeira parte deste livro, que aqui se conclui, foi dedicada ao
trabalho de Ferdinand de Saussure e constitui o primeiro momento do percurso da Lin-
güística que analisamos: o momento da constituição do modelo. Os trabalhos do Círculo
de Praga e do Estruturalismo Diacrônico, que desenvolvem o modelo proposto por Saus-
sure, constituem o objeto da 2ª Parte deste livro e são entendidos como o segundo mo-
mento do percurso; o momento em que podemos situar a mudança no domínio do sis-
tema.

66
2ª Parte

A MUDANÇA NO DOMÍNIO DO SISTEMA

67
Ocorre que a pergunta sobre a história é
essencialmente distinta da pergunta sobre a
estrutura de um objeto.
EUGENIO COSERIU

O desenvolvimento de uma ciência assume por vezes as feições de um curioso


exercício da ironia. A aplicação mais completa e profícua do modelo lingüístico construí-
do por Saussure ocorreu no nível de estudo da língua que Saussure excluíra do campo do
interesse propriamente lingüístico: a fonologia. Se, na primeira parte deste livro, anali-
sou-se a constituição dos princípios diretores e das concepções básicas do modelo teórico
que se viria a definir como o Estruturalismo Lingüístico, nesta segunda parte será anali-
sada a aplicação desse modelo: a mobilização desses princípios e concepções na análise
efetiva dos fatos lingüísticos. O objeto desse estudo será então constituído pelos trabalhos
do Círculo Lingüístico de Praga e pelos postulados da corrente teórica que pode ser
considerada como um desdobramento dessa Escola: o Funcionalismo, de André Marti-
net.
Apesar de ter constituído o modelo teórico que inaugura a Lingüística Moderna e
que impõe uma análise sistemática dos fatos lingüísticos, diametralmente oposta à análise
atomística e imediata até então vigente, Saussure nunca levou a cabo, num trabalho de
investigação, uma análise sistematizada dos materiais lingüísticos a partir dos parâmetros
teóricos por ele propostos. Os fatos lingüísticos são tomados apenas pontualmente para
efeito de exemplificação dos princípios gerais. Em outras palavras, Saussure não subme-
teu ao crivo da análise efetiva os princípios metodológicos, as concepções fundamentais

68
do modelo teórico que inaugurou. Esta tarefa foi criativamente executada pelos lingüistas
que se organizaram em torno do Círculo Lingüístico de Praga.
O Círculo Lingüístico de Praga surge em 1926, por iniciativa de Vilém Mathesius.
As figuras mais destacadas deste numeroso grupo de lingüistas – que reunia, além dos
lingüistas tchecos e eslovacos, lingüistas de várias outras nacionalidades – foram os rus-
sos Nicolai Trubetzkoy e Roman Jakobson; sendo este o redator do documento através do
qual o Círculo fez a sua primeira aparição pública, no Congresso Internacional dos Lin-
güistas realizado em Haia, em 1928. Esse documento, que teve uma grande repercussão
desde o seu lançamento, foi subscrito por Trubetzkoy e por outro lingüista russo, Serge
Karcevsky, que era professor em Genebra, onde tinha sido discípulo de Saussure e que
viria a se integrar ao Círculo trazendo consigo as idéias de seu mestre.
O documento de 1928, escrito num tom de manifesto literário, e que pode ser con-
siderado mesmo como o manifesto de lançamento do Círculo de Praga, foi depois ampli-
ado e redigido num tom mais moderado, com o título de Teses do Círculo de Praga114.
Essas teses integram o primeiro volume dos Travaux du Cercle Linguistique de Prague115,
publicados anualmente a partir de 1929 até 1939, e onde se encontram os principais traba-
lhos dessa Escola116. Os interesses dos membros do Círculo são muito variados e reco-
brem tanto a Lingüística quanto a Teoria Literária, como se pode ver pelo conteúdo das
Teses. Contudo a contribuição mais decisiva do Círculo para a Lingüística situa-se ao
nível da fonologia, sendo a sua obra de maior fôlego e a mais completa, em que pese não
ter sido concluída devido à morte de seu autor, os Princípios de Fonologia de Tru-
betzkoy, publicada pela primeira vez como o nono volume dos Travaux. Além da fonolo-
gia, a outra contribuição relevante do Círculo está na sua proposição de estender o méto-
do estrutural ao estudo histórico da língua, vindo a se constituir o chamado Estrutura-
lismo Diacrônico.
Uma outra característica relevante do trabalho do Círculo é a integração entre a
sua elaboração teórica e a sua aplicação à análise das línguas particulares; num primeiro
momento, das línguas eslavas. Partindo da concepção sistêmica de língua, os lingüistas de
Praga empreendem uma análise, que se pretende globalizante, de cada língua particular.
Essa pretensão à globalidade se traduz na conclamação de uma necessidade imperiosa: os
fatos lingüísticos não podem ser apreendidos isoladamente, devem ser compreendidos no
sistema lingüístico do qual fazem parte. Dessa forma, insurgem-se contra o “empirismo
rasteiro” da análise neogramática até então vigente. É a superação do modo de conheci-

114
Doravante, Teses ou TCLP1 (com algarismos arábicos).
115
Doravante TCLPI (com algarismos romanos).
116
As citações baseiam-se na tradução brasileira, organizada por Dionísio Toledo (cf. Toledo, 1978).

69
mento fenomenológico, que se contenta com uma apreensão mais imediata do seu objeto,
pelo modo objetivista, que constrói o seu objeto a partir das relações objetivas, estrutu-
rantes e estruturadas, que ele estabelece – nos termos propostos por Bourdieu (1983
[1972]). Essa passagem, que observamos no plano mais abstrato da formulação teórica
com Saussure, ganhará organicidade ao nível da análise lingüística, com os trabalhos do
Círculo e dos funcionalistas, liderados por Martinet.
A aplicação de um programa teórico à analise efetiva dos fatos não ocorre de ma-
neira incólume. Ela implica o enfrentamento dialético entre o sujeito cognoscitivo, com
sua pretensão à generalização do conhecimento formalizado, e a particularidade do objeto
do conhecimento em sua concretitude imediata. A síntese que deve se operar para que o
conhecimento se efetive implica a adequação dos princípios gerais do modelo e o seu
conseqüente desenvolvimento. Daí a definição de aplicação criativa à tarefa empreendida
pelo Círculo de Praga.
O desenvolvimento do modelo saussuriano pelos lingüistas do Círculo assenta
fundamentalmente numa noção que é acrescentada a concepção de língua de Saussure: a
noção de funcionalidade. Essa noção é crucial para a superação de algumas das contradi-
ções que o modelo saussuriano engendra, cuja superação faz com que a contribuição dos
lingüistas de Praga constitua uma nova etapa do desenvolvimento do Estruturalismo. Por
sua vez, ao superar as contradições dos termos propostos por Saussure, essa nova etapa
produz sínteses que dialeticamente já trazem em si os termos de novas contradições; ou
repõe a contradição, em essência a mesma, em uma nova dimensão do modelo teórico –
em alguns casos, no limiar deste modelo, fornecendo os elementos seminais da sua supe-
ração.
No âmbito da teoria lingüística, as duas principais contradições do modelo saussu-
riano, nas quais os trabalhos do Círculo se concentram, situam-se ao nível da fonologia e
da dimensão histórica da língua. No primeiro caso, supera-se a contradição entre a con-
cepção estrutural da língua e a sua matéria fônica. Na medida em que, através do conceito
funcional de fonema, pôde-se conceber o sistema fonológico, como a contraparte lin-
güística – funcional, formal e abstrata – da matéria fônica da língua. Assim, a fonologia
deixa de constituir uma disciplina auxiliar, como propunha Saussure, para fazer parte das
disciplinas de maior interesse para Lingüística.
Os termos da segunda contradição são a natureza sistêmica da língua e a sua di-
mensão histórica. Se para Saussure a história da língua nada dizia ao sistema lingüístico,
e vice-versa, para os lingüistas de Praga, a história da língua será a própria história do sis-
tema lingüístico; mais precisamente, a história do sistema fonológico da língua. Assim, a
história do sistema será vista nos termos da sua funcionalidade.

70
Como se pode ver, a noção de funcionalidade é capital para o desenvolvimento
do modelo estruturalista empreendido pelo Círculo. Antes de conceber o estudo lingüísti-
co como a dedução de um sistema, os lingüistas de Praga o concebem como a descrição e
a análise da estrutura que garante o funcionamento da língua, a expressão formalizada
desse funcionamento. Assim, para os lingüistas de Praga, estrutura e função são duas
noções indissociáveis, donde a denominação de sua concepção de língua como estrutu-
ral e funcional. Dessa forma, a concepção da estrutura lingüística torna-se mais com-
prometida com o modo de existir concreto da língua, com a seu funcionamento efetivo e
com a sua função social. Tal concepção terá importantes desdobramentos no estudo histó-
rico da língua. A grande contribuição da Escola de Praga nesse campo foi o desenvolvi-
mento de uma concepção estrutural para a diacronia, que também se situou fundamental-
mente no nível da fonologia. Com isso, o Círculo busca superar a contradição saussuriana
entre estrutura e história, e a questão da mudança volta ao campo de interesse da Lingüís-
tica.
Porém, toda a interpretação da mudança fica subordinada, nessa nova fase, à lógi-
ca do sistema funcional. Uma compreensão mais abrangente da história da língua, que
buscasse apreender a interação entre o processo de constituição da língua, o movimento
das relações sociais, os influxos ideológicos e as modificações culturais, é rechaçada,
sendo definida como “a mística das relações de causalidade entre sistemas heterogêneos”,
e o seu lugar é ocupado pela mística da causalidade interna do sistema homogêneo. Todas
as mudanças seriam explicadas pela funcionalidade interna desse sistema.
Numa versão extremada dessa combinação entre funcionalidade e história, surge a
concepção teleológica da história das línguas, com as suas mudanças terapêuticas. Se-
gundo essa concepção, as mudanças fonológicas ocorreriam para corrigir falhas localiza-
das no sistema, para aumentar a sua funcionalidade. Contudo essas mudanças “correti-
vas” geralmente desencadeariam uma seqüência de mudanças em cadeia que criariam
problemas de funcionalidade em outros pontos do sistema, o que, por sua vez, provocaria
novas mudanças, e assim por diante. Essa formulação evidentemente ad hoc visa a conci-
liar a concepção de mudanças terapêuticas com o fato inconteste de que as línguas estão
sempre mudando, ou seja: se as mudanças lingüísticas fossem de fato terapêuticas, por
que as línguas estariam sempre precisando de “uma nova terapia”?
Esses não são os únicos problemas que essa concepção engendra. Como explicar,
por exemplo, que, em uma determinada língua, ocorra uma “mudança terapêutica”, e, em
outra língua, que apresenta uma situação análoga, essa mudança não ocorra? Como expli-
car as mudanças que não se enquadram nesse esquema, i. é, que não apresentam origina-
riamente uma “motivação funcional”, antes, pelo contrário, vão de encontro à própria

71
“funcionalidade do sistema”? Todas essas questões atingem tanto a concepção teleológica
da mudança fonológica proposta por Jakobson e pelos membros do Círculo de Praga,
quanto a concepção da mudança desenvolvida por Martinet, que não focaliza as mudan-
ças fônicas por suas supostas finalidades, mas busca determinar as suas causas.
Em seu modelo de explicação das mudanças fônicas, Martinet não encerra as cau-
sas da mudança unicamente na funcionalidade e na estruturação interna do sistema fono-
lógico, ele busca articular esses fatores com os fatores acústico-articulatórios, envolvidos
na produção e percepção dos sons da língua, no que denominou de economia das mu-
danças fonéticas. Contudo, apesar de ter o mérito de transpor os limites da lógica interna
do sistema, o esquema de Martinet não consegue resolver os problemas já enfrentados
pelo esquema teleológico, com o agravante de tentar explicar os processos de mudança
através de fatores fisiológicos, o que entra claramente em contradição com o caráter dos
fatos na dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico. Disso resulta que a incursão
do Estruturalismo na diacronia, antes de firmar o método estrutural nesse plano da análise
lingüística, colocou em xeque a própria concepção de língua em que esse modelo teórico
se fundamentava.
Mas, o desenvolvimento das idéias de Saussure pela corrente estrutural-funciona-
lista não deve ser avaliado negativamente, antes pelo contrário. Seja na análise fonológi-
ca, seja na pesquisa diacrônica, esse desenvolvimento do Estruturalismo busca dar maior
organicidade e concretitude às formulações de Saussure. A incursão na diacronia foi um
desdobramento inexorável da necessidade de se tentar superar a contradição introduzida
por Saussure entre a apreensão do modo estruturante da linguagem e a dimensão sócio-
histórica do fenômeno lingüístico. Os membros do Estruturalismo Diacrônico não poderi-
am supor que o desenvolvimento dessa contradição entre mudança e sistema transcen-
deria os marcos do Estruturalismo e se desdobraria nos modelos que o sucederam.
Por tudo isso, pode-se dizer que os trabalhos do Círculo de Praga e dos funciona-
listas constituem um dos mais importantes desenvolvimentos do modelo teórico inaugu-
rado por Saussure na Lingüística. Neste desenvolvimento, a mudança não é mais posta à
parte, a mudança é integrada no domínio do sistema lingüístico. E, no domínio do siste-
ma, a questão da mudança provocará a crise dessa concepção de língua, determinando um
dos pontos da ruptura teórico-metodológica que se operou na Lingüística, no início da
década de 1960; uma ruptura cujos desdobramentos, em grande parte, definem o panora-
ma da Lingüística contemporânea. Portanto, nesta 2ª Parte, buscarei traçar o percurso do
Estruturalismo que conduz a esse ponto de ruptura e reunir elementos que possibilitem
uma melhor compreensão dos seus reflexos no desenvolvimento atual da Lingüística.

72
CAPÍTULO III

A LÍNGUA COMO UM SISTEMA FUNCIONAL:


UMA FISSURA NO MODELO

Uma tônica em todos os pronunciamentos dos membros do Círculo Lingüístico de


Praga é a defesa de uma concepção estrutural e globalizante do objeto de estudo da Lin-
güística117. Encampando decididamente a concepção axiomática de língua como um sis-
tema introduzida por Saussure, os lingüistas do Círculo travaram uma batalha sem tréguas
contra a análise atomista, proposta pela teoria neogramática, e até então vigente118. Em
oposição a esse modelo de análise, o Círculo propõe um outro que, em sua essência, se
traduz na célebre fórmula expressa nas Teses:

Não podemos compreender nenhum fato lingüístico sem levar em conta o sistema ao qual
ele pertence. (TCLP1, 82)

Por outro lado, superando Saussure, o Círculo vai associar à concepção estrutural
da língua uma noção que desempenhará um papel fundamental na orientação de seus tra-
balhos de análise: a noção de funcionalidade. Dessa associação resultará uma concepção
definida nas Teses como concepção da língua como sistema funcional119. Tal concep-
ção traz implicações tanto para a consideração da língua no seu plano externo de uso na
sociedade, quanto para a análise do funcionamento do sistema lingüístico em seu plano
interno. O plano externo remete ao papel que a língua desempenha na sociedade. Nesse
plano, a noção de funcionalidade é relacionada às funções de uso da língua.

117
cf., por ex., Jakobson (1978 [1936]: 73): “Esses investigadores [do Círculo Lingüístico de Praga] luta-
ram por isolar, no domínio da Ciência Literária, da Lingüística e da Teoria dos Signos, um conjunto de pro-
cedimentos conseqüente – estruturalista e totalizador (strukturalistische, ganzheitiliche).”
118
cf. J. Vachek (1978 [1972]: 30) e J. Fontaine (1978 [1974]: 35): “A atitude de conjunto [do Círculo de
Praga] é motivada pelo desejo de opor-se à doutrina dos neogramáticos, os quais continuam ocupando, na
época da redação do Manifesto de Praga, o primeiro plano da cena lingüística.”
119
Segundo J. Fontaine (1978 [1974]: 43), o austríaco Karl Bühler, professor em Viena e participante das
atividades do Círculo, “é o avalista filosófico do aspecto funcionalista do Estruturalismo praguense. No
pensamento de Saussure, a função não é reconhecida como uma força constitutiva da língua; seu lugar de
exercício situa-se fora da língua, de modo que jamais entra no campo da análise saussuriana. Ao contrário,
segundo Bühler, a função é essencial à linguagem ou à língua, caso se tome o termo em sentido amplo.”

73
As funções da língua

O estudo das funções da língua120, ou das modalidades de uso da língua constitui


uma das grandes preocupações da Escola de Praga; tanto que uma de suas teses (a tercei-
ra) é inteiramente dedicada ao tema: Problemas das investigações sobre as línguas de
diversas funções. A importância da consideração da função nos estudos lingüísticos é ex-
pressa logo em seu início:

O estudo de uma língua exige que se leve rigorosamente em conta a variedade das fun-
ções lingüísticas e dos seus modos de realização no caso considerado. Quando não se
atenta para essa variedade, a caracterização, tanto sincrônica quanto diacrônica, de uma
língua qualquer, torna-se necessariamente deformada e, até certo ponto, fictícia. (TCLP3,
88)

Essa concepção funcional da língua deve ser vista como uma tentativa de dar mais
concretitude à concepção “até certo ponto fictícia” de língua que emanava da teorização
de Saussure. Nesse sentido, a consideração das funções de uso da língua aponta para o
escrutínio das relações que a língua mantém com a sociedade:

Esse tipo de análise considera a língua como um instrumento que desempenha


um certo número de funções ou tarefas essenciais na comunidade que a utiliza. A mais
notável (e a mais óbvia) dessas tarefas é indubitavelmente a função comunicativa, que
supre a necessidade de comunicação mútua entre os indivíduos (Vachek, 1978 [1972]:
32).

O próprio modo de existir da língua é determinado pela sua finalidade; donde a


definição de língua como “um sistema de meios de expressão apropriados a um fim”121.
Desse modo, boa parte das mudanças lingüísticas poderiam ser explicadas a partir da fun-
ção comunicativa, ou, mais precisamente, pela função de representação. Nesta função, a
língua é usada para representar a realidade extralingüística conhecida pelo falante. Assim
sendo, as mudanças na língua seriam, em sua maioria, uma resposta às novas exigências
de expressão, decorrentes das alterações no universo cultural da comunidade lingüística,
das descobertas científicas e tecnológicas etc.

120
É comum a referência a essas funções como funções da linguagem, denominação que considero um
tanto inadequada, já que é pertinente falar de funções em termos de língua, entendida aqui como o sistema
ou código lingüístico utilizado pela comunidade. O termo linguagem se refere, ou ao fenômeno lingüístico
tomado em seu todo, no conjunto das suas manifestações (dentro da terminologia saussuriana – cf. Capítu-
lo I deste livro), ou à faculdade psíquica que permite a todo ser humano adquirir e utilizar uma língua natu-
ral (no âmbito da Gramática Gerativa); tanto num caso, quanto no outro, não é adequado se aplicar o es-
quema das funções. Nesse sentido, buscarei sempre usar a expressão funções da língua, não obstante utili-
zarei também, em alguns contextos, funções da linguagem, por ser essa a expressão mais consagrada na
literatura.
121
TCLP1, 82.

74
A função de representação é a função mais importante da língua, é a sua função
intelectiva. Todo o tratamento teórico dado à língua por Saussure assentava nessa função.
O predomínio dessa função na análise lingüística permitiu a configuração da língua como
um sistema definido em termos puramente racionais e lógicos, fundados unicamente no
princípio de obter a máxima eficácia comunicativa. Entretanto, os lingüistas de Praga ten-
taram fugir desse estreito círculo e levantaram questões que passaram ao largo das preo-
cupações do Mestre de Genebra, quais sejam:
(i) a língua é usada em outras funções além da função de representação;
(ii) ao lado das diversas funções, estão as diversas modalidades de uso da língua;
(iii) deve-se considerar também as dimensões identificadas em cada uso lingüísti-
co.
Encontra-se, na terceira tese, uma série de formulações relativas a essas questões.
É proposta uma distinção entre a linguagem interna, do pensamento, e a linguagem ex-
terna, i. é., a linguagem objetivada. Por outro lado, destaca-se a oposição entre a intelec-
tualidade e a afetividade das manifestações lingüísticas; donde a distinção entre lingua-
gem intelectual e linguagem emocional. Já em sua função social, se distingue uma fun-
ção poética e uma função de comunicação; nesta, por sua vez, a língua se desdobra nu-
ma linguagem prática e numa linguagem teórica ou de formulação; e assim por dian-
te122. Contudo, não se encontra nas Teses uma formulação de conjunto sobre o problema.
A primeira sistematização sobre esta questão foi dada posteriormente pelo filósofo Karl
Bühler123:

Partindo da distinção husserliana entre Ausdruk (expressão) e Bedeutung (significação),


Bühler propõe o que ele chama de axiomática da pesquisa lingüística, que assenta em
dois grandes princípios: o modelo-órganon (Organonmodel) da língua e a natureza signi-
ficativa da língua. Da verificação de que, no ato do discurso, se fala de algo para alguém
(...), Bühler deduz que todo enunciado mantém uma tríplice relação com o estado de coi-
sas do qual se fala, o sujeito falante e o sujeito interpelado (Fontaine, 1978 [1974]: 43).

Por conseguinte, a língua apresentaria basicamente três funções: a função de re-


presentação (Darstelllungsfunktion), já referida; a função expressiva ou de exterioriza-
ção psíquica (Ausdruks ou Kundgabefunktion) e a função de apelo (Apellfunction). Essas
duas últimas funções estariam relacionadas às finalidades emotivas da língua. A função
emotiva é centrada no emissor, que se individualiza ao expressar um conteúdo emotivo e
não intelectivo; este característico da função representativa, que é centrada no objeto. Em

122
Cf. TCLP3, 89 e ss.
123
Cf. Bühler, “Die Axiomatik der Sprachwissenchaft”, Kant-Studien, XXVIII, Berlin, 1933.

75
sua função apelativa, o uso da língua visa ao interlocutor, influenciando-o, geralmente,
pela transmissão de alguma avaliação emotiva.124
Também segundo esse modelo, a língua apresentaria modos particulares de estru-
turação consoante a função na qual fosse empregada. Isso teria uma grande implicação na
análise lingüística, porque o lingüista deveria dar conta em cada nível de estudo da língua
(fonológico, morfossintático, etc.), dessa variabilidade funcional. Por outro lado, essa
concepção funcional incorpora a dicotomia saussuriana entre língua e fala, garantindo o
estatuto lingüístico para o estudo de cada linguagem funcional:

Cada linguagem funcional tem seu sistema de convenções – a língua propriamente dita.
Por conseguinte, é um erro identificar uma linguagem funcional com a “língua” e uma
outra com a “fala” (segundo a terminologia de Saussure), a linguagem intelectual com a
“língua”, por exemplo, e a linguagem emocional com a “fala”. (TCLP3, 89)

Essa integração das funções lingüísticas no esquema teórico saussuriano, e não


uma mera superposição de categorias de análise, criou as condições potenciais para uma
grande abertura no estudo da língua em sua dimensão sócio-histórica. Contudo, a preva-
lência de princípios filosóficos dominantes na época e das concepções básicas do modelo
teórico estruturalista (entenda-se, a concepção de língua como um sistema homogêneo e
unitário) impediram que essa abertura fosse plenamente implementada.

Considerações sobre o programa de estudo da língua (poética) do Círcu-


lo de Praga

Não obstante terem se baseado muito no esquema de Bühler, os lingüistas do Cir-


culo relacionaram outras funções da língua em seus estudos. Uma das funções para a qual
mais se voltou a atenção dos membros do Círculo foi a função poética. O texto das Te-
ses, que dedica um espaço significativo a essa função, destaca a distinção entre função
poética e função de comunicação:

Em sua função social, a linguagem deve ser diferenciada segundo a relação que mantém
com a realidade extralingüística. Pode ter uma função de comunicação, isto é, estar diri-
gida para o significado, ou ter uma função poética, ou seja, estar dirigida para o próprio
signo. (TCLP3, 89)

124
Posteriormente, Jakobson (1988 [1960]) desenvolverá esse esquema ampliando para seis o número das
funções da língua. [O esquema de Jakobson é sumariamente apresentado num Apêndice a este Capítulo
III.]

76
Essa vocação para a Teoria Literária, ou, mais precisamente, para a fusão da Lin-
güística com a Teoria Literária, ou ainda para a utilização de técnicas lingüísticas no es-
tudo da linguagem literária, reflete, entre outras influências, uma forte ligação do Círculo
de Praga com a Escola Formalista Russa. Essa ligação chega a ser personalizada na fi-
gura de Roman Jakobson, que foi membro das duas escolas. Dessa forma, muitas das po-
sições do Círculo sobre o tema são nitidamente inspiradas nas propostas apresentadas pe-
los Formalistas Russos125.
No item da 3ª Tese destinado ao estudo da língua poética, os seus autores partem
da constatação de que “a língua poética foi durante muito tempo negligenciada pela Lin-
güística”. Ao lado disso, destacam a falta de “preparação suficiente em matéria de meto-
dologia lingüística” dos “historiadores da literatura que trataram de vez em quando desses
problemas”126. Em seguida, na proposição um programa de estudo da língua poética a
partir dos princípios e categorias da análise lingüística moderna, destacam primeiramente
a necessidade de se formular “princípios de descrição sincrônica da língua poética”,
atentando-se para a diferença existente entre esta e a língua da comunicação. Enquanto “a
linguagem poética tem tendências para sublinhar o valor autônomo do signo”, na lingua-
gem de comunicação ele desempenha “apenas um papel instrumental”; “os meios de ex-
pressão agrupados nos diversos planos, bem como as relações recíprocas existentes en-
tre estes, que tendem a tornar-se automáticas na linguagem de comunicação, inclinam-
se, ao contrário, na linguagem poética, à atualização”127.
Este programa de estudo desdobra-se também pelos diversos níveis de estudo lín-
gua, nomeadamente o fonológico. “O ponto de vista fonológico é o único que tem condi-
ções de descobrir os princípios das estruturas fônicas poéticas”128. Além disso o estudo
dessas estruturas fônicas fornece valiosos elementos para a análise de outros níveis do
sistema da linguagem poética, já que “o paralelismo das estruturas fônicas realizado pelo
ritmo do verso, pela rima etc., constitui um dos procedimentos mais eficazes para atuali-
zar os diversos planos lingüísticos. Uma confrontação artística das estruturas fônicas se-
melhantes faz sobressair as concordâncias e as diferenças das estruturas sintáticas, morfo-
lógicas e semânticas”129. Não obstante, propostas de análise específicas são enunciadas
para cada um dos níveis de estudo da linguagem poética.
A análise do programa de estudo da língua poética do Círculo de Praga e a sua
proposta de análise funcional da língua permitem-nos entrever um dos principais princí-

125
Vejam-se, a esse respeito: Mukarovsky e Jakobson (1978 [1935]); Sus (1978 [1968]); e Erlich (1954).
126
TCLP3, 92.
127
TCLP3, 92-93. Em itálico no original.
128
TCLP3, 93. Idem.
129
TCLP3, 94.

77
pios epistemológicos da Escola de Praga. Esse princípio refere-se à opção pelo estudo do
objeto em si, ou seja, da língua em si – o que se aplica ao estudo de qualquer uma de su-
as variedades (língua poética, língua de comunicação etc.) –, encerrando-se a análise na
lógica interna do sistema de relações, pelo qual a língua é estruturalmente formalizada e
objetivamente estruturada. Quanto ao estudo da história da língua poética, fundamentan-
do-se na teoria do signo e da natureza semiológica particular da língua poética enquanto
sistema, essa concepção é assim exposta:

A caracterização imanente da evolução da língua poética é muitas vezes substituída, na


História da Literatura, por um sucedâneo, sociológico ou psicológico, relativo à história
das idéias, vale dizer, por uma utilização de fatos heterogêneos ao fato estudado. Em lu-
gar da mística das relações de causalidade entre sistemas heterogêneos, deve-se estudar a
língua poética em si mesma.130 (TCLP3, 95-96)

Apesar do destaque feito para a natureza particular da língua poética, podemos di-
zer que a concepção de fundo que orienta o seu estudo é a mesma que orienta a análise
funcional da língua anteriormente exposta. É evidente a identidade entre a proposição do
Círculo de estudar a língua poética em si mesma e a proposição saussuriana de estudar
a língua em si mesma, que a análise funcional da língua do Círculo, em essência, repro-
duz. A permanência dessa concepção epistemológica sobre o modo de construção do ob-
jeto na teoria de Praga é crucial para definir o trabalho dessa Escola como um desenvol-
vimento interno do modelo estruturalista inaugurado por Ferdinand de Saussure, e não
defini-lo como um momento de ruptura e de instalação de um novo modelo, distinto do
modelo saussuriano.

A concretitude da concepção de língua como um sistema funcional

Se a concepção de língua a partir de suas funções de uso abre caminhos para uma
melhor apreensão dos fatos relativos à dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico,
esses caminhos são obstaculizados pela prevalência da concepção saussuriana de língua,
que permeia todo o esquema de funções da língua proposto por membros do Círculo. Ba-
sicamente a concepção saussuriana de língua como fato social se mantém, não obstante o
maior grau de formalização das formulações dos membros do Círculo. A língua continua
exterior ao indivíduo, pelo menos ao indivíduo historicamente determinado, de modo que
esse modelo revela também a sua incapacidade de apreender a prática lingüística.

130
Itálico do original.

78
O esquema das funções da língua, pelo qual se pretende dar conta dos indivíduos
e das situações de fala, mantém-se no plano formal abstrato. Nele, mais uma vez encon-
tramos um emissor impessoal que fala a um receptor também impessoal, numa situação
indeterminada do ponto de vista do contexto sócio-cultural. Escapa-lhe, portanto, o con-
junto de condicionamentos, que se atualiza tanto na condição do indivíduo falante quanto
na situação em que o ato de fala acontece. Ou seja, a linguagem emotiva, por exemplo,
vai variar consoante a condição de classe do emissor – ela não constitui uma modalidade
una –, da mesma forma a seleção das formas e a estruturação da língua usada em sua fun-
ção referencial, ou de representação, quando um falante narra um acontecimento aos seus
companheiros, serão distintas daquelas que ocorrerão quando ele faz uma exposição a um
superior hierárquico em seu trabalho. Não incorporando essas nuanças, o sistema lingüís-
tico continua sendo homogêneo e unitário, apesar de ter adquirido novas modalidades na
teoria estrutural e funcional da Escola de Praga. Portanto, a natureza social da língua, que
se atualiza na complexa rede de relações sociais e ideológicas que nela, e através dela, se
estabelecem, também continua ausente. A teoria de Praga, não obstante o seu refinamento
formal e metodológico, não consegue incorporar o jogo dialético entre a estrutura da lín-
gua e a estrutura social. A língua é explicada por uma lógica interna imanente, que lhe é
impingida pelo investigador, ou melhor, é, em parte, constituída pela projeção de uma
lógica racional sobre o objeto de estudo131.
Contudo, apesar de todas essas limitações, a concepção de língua como um siste-
ma funcional e o esquema das funções da língua não deixam de constituir um momento
importante, no desenvolvimento do Estruturalismo; um momento em que esse modelo
teórico busca conferir uma maior concretitude à representação do objeto de estudo da
Lingüística. Nas poucas vezes em que se buscou aplicar o esquema das funções da língua
à analise dos fatos lingüísticos, revelaram-se vários aspectos do modo de estruturação da
língua que escapavam ao modelo predominante de análise que se encerrava na função
representativa.

131
Por outro lado, as referências filosóficas desta análise racional imanentista, que em Saussure não são
explicitadas, deixam-se entrever nos pronunciamentos do Círculo de Praga (cf. Fontaine, 1978 [1974]: 41-
43): “Os membros do Círculo foram induzidos por Husserl a dedicar toda a sua atenção à lógica interna do
sistema, neste caso da língua.”

79
As funções da língua no estudo do seu nível fonológico

Apesar de figurar sempre com destaque nos programas do Círculo de Praga, a


idéia de que a estrutura lingüística deve ser estudada a partir das funções que a língua de-
sempenha na comunidade em que é falada está praticamente ausente no conjunto das aná-
lises levadas a cabo a partir das primeiras formulações do Círculo. Na esmagadora maio-
ria dos trabalhos, a língua é considerada apenas em sua função representativa, e a análise
da estrutura lingüística se orienta para parâmetros lógico-racionais fundamentados numa
representação do ato lingüístico em que esse é executado apenas para transmitir informa-
ção referencial. Uma das poucas tentativas de fugir a essa lógica é realizada por Tru-
betzkoy, que programaticamente esboça uma integração do esquema das funções da lín-
gua de Bühler no estudo do seu nível fônico.
Em realidade, Trubetzkoy não é um precursor nessa matéria, entre os membros do
Círculo. Antes dele Julius V. Laziczius132 já defendia que a fonologia não deveria se con-
finar ao estudo da língua em sua função representativa, mas deveria estudar também os
elementos fônicos que na língua caracterizam o seu uso nas funções expressivas e apela-
tivas. Trubetzkoy faz, assim, uma síntese programática sobre a matéria.
Trubetzkoy (1970 [1939]: 16-17) afirma que a visão de Bühler de que as caracte-
rísticas de todo ato lingüístico podem ser projetadas em três planos – expressivo, apelati-
vo e representativo – aplica-se também ao nível fônico da língua. Em vista disso, coloca
em questão se a fonologia deve estudar também os planos expressivo e apelativo, já que o
plano representativo pertence obviamente ao seu domínio. “A primeira vista,” argumenta,
“esses planos parecem situados exclusivamente no terreno do ato de fala e por conseguin-
te não suscitariam um estudo fonológico, mas somente um estudo fonético”. Entretanto,
prossegue Trubetzkoy, essa idéia se desfaz após um exame mais acurado dos fatos:

Entre as impressões fônicas nas quais nós reconhecemos a pessoa do sujeito falante e a
influência emocional que ele tem a intenção de exercer sobre o ouvinte, há aquelas que,
para serem exatamente compreendidas, devem ser relacionadas a normas determinadas,
estabelecidas na língua em questão. Essas normas são consideradas como valores lingüís-
ticos, elas pertencem à língua, e, por conseguinte, a fonologia deve se ocupar delas. (p.
17)

Assim, não são todas as particularidades fônicas expressivas e apelativas que de-
vem constituir o objeto da análise lingüística, só as particularidades que se apóiam numa
norma convencional dentro da coletividade, ou seja que façam parte da língua133. Por ou-

132
“Probleme der Phonologie”, Ungarische Jahrbucher, XV, 1935.
133
Nessa passagem, Trubetzkoy apóia-se no critério que fundamenta a divisão do estudo do nível fônico da
língua em duas disciplinas distintas: a fonética e a fonologia. A fonologia seria a disciplina que se ocuparia

80
tro lado, admitindo essas particularidades expressivas e apelativas como fatos de língua,
Trubetzkoy indica uma divisão da fonologia em duas novas subdivisões: a fonologia ex-
pressiva e a fonologia apelativa, que devem dar conta dos procedimentos fônicos atra-
vés das quais a língua desempenha essas funções. Tanto num caso, como no outro, essas
disciplinas devem ater-se aos procedimentos fonológicos, isto é, aos procedimentos ex-
pressivos e apelativos que “pertencem à face fônica da língua considerada como um sis-
tema convencional de signos” (p. 18). Só serão analisados os elementos socialmente con-
vencionalizados, as características fônicas de caráter meramente físico ou psicológico não
serão consideradas, mesmo que contribuam para identificar o sujeito falante ou provo-
quem algum efeito sobre o ouvinte134. Essa definição dos procedimentos socialmente con-
vencionalizados é crucial para a questão que nos interessa: de que maneira o estudo da
língua através das suas funções de uso abre caminhos para uma apreensão mais ade-
quada dos fatos relativos à dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico?
Ao falar de como a função expressiva da língua caracteriza o sujeito falante, Tru-
betzkoy desloca o entendimento dessa caracterização do plano dos ‘estados de alma’ (i.
é., um plano meramente psicológico e individual) para o plano de uma caracterização so-
cial desse falante dentro da comunidade de fala:

Sendo a língua antes de tudo uma instituição social, só são estabelecidos con-
vencionalmente os procedimentos fônicos que caracterizam os sujeitos falantes como per-
tencentes aos tipos humanos ou aos grupos determinados, que são essenciais para a per-
manência da comunidade lingüística em questão. Por esses procedimentos são indicados
por ex. a faixa etária, a classe social, ou ainda o sexo, o grau de cultura, ou enfim a pro-
veniência local do sujeito falante; todas particularidades essenciais para a estrutura inter-
na da comunidade lingüística, bem como para o conteúdo e a forma da conversação. Ao
contrário, a classificação dos homens em gordos e magros, em doentes ou saudáveis, em
calmos ou agitados, etc., é sem importância para a vida da comunidade lingüística, mani-
festando-se nos diferentes tipos de conversação; ela não determina, por conseguinte, ne-
nhuma característica lingüística (“glótica”, no sentido de Otto Jespersen) convencional:
se esses traços do sujeito falante podem ser percebidos pelo lado fônico de sua lingua-
gem, essa percepção é um ato psicológico exterior à língua. (p. 18-9)

O falante é, então, caracterizado em função dos fatores sociais que se manifestam


na atividade lingüística, tais como: sexo, idade, classe social, etc. Desse modo, o estudo
da fonologia expressiva implica que a estrutura da língua deve ser considerada em sua
interação com a estrutura da comunidade lingüística em que essa língua é falada. E mais

dos fatos fônicos relativos à língua (ou seja, ao sistema lingüístico), sendo a disciplina propriamente lin-
güística. A fonética, por ocupar-se dos fatos fônicos relativos à fala, seria uma disciplina subsidiária. [Essa
distinção entre fonética e fonologia será tratada no próximo capítulo deste livro.]
134
Assim, “à fonologia expressiva pertencem unicamente os procedimentos estabelecidos convencional-
mente e que caracterizam fonicamente um sujeito falante” (p. 18). Do mesmo modo, “os procedimentos
fonológicos de apelo devem ao seu turno ser cuidadosamente distinguidos das expressões naturais do sen-
timento, mesmo que essas sejam artificialmente dissimuladas” (p. 24).

81
ainda, a especificidade histórico-cultural dessa comunidade determinará os fatores que
devem ser considerados no estudo dos procedimentos fônicos expressivos que caracteri-
zam socialmente o falante:

Nas comunidades lingüísticas pouco ou não diferenciadas do ponto de vista so-


cial, esses [fatores] são sobretudo as diferenças de idade e de sexo, na pronúncia ou na
realização de certos sons da linguagem. No dialeto darkhat do mongol, a articulação de
todas as vogais posteriores e centrais é, na pronúncia das mulheres, ligeiramente anterio-
rizada, de modo que a u, o, a dos homens correspondem ú, ó, á das mulheres, e a ú, ó, á
dos homens correspondem ü, ö, ä das mulheres. Por outro lado, à aspirada x dos homens
corresponde na pronúncia feminina a oclusiva k.
Nas comunidades lingüísticas fortemente diferenciadas, essas distinções são
muito marcadas nas pronúncias que repousam sobre uma estrutura provincial, profissio-
nal ou cultural da sociedade. Elas não existem somente nas línguas da Índia, onde elas
são baseadas nas castas (em tamul, por ex. um mesmo e único fonema deve ser pronunci-
ado  ou  consoante a casta do sujeito falante), mas também nas outras partes do mundo.
A língua corrente de Viena soa na boca de um funcionário do ministério totalmente dife-
rente do que, na boca de um vendedor do comércio. (p. 19-21)

Em realidade, o que Trubetzkoy propõe em seu programa para a fonologia expres-


siva é um estudo das variantes fônicas da língua, socialmente condicionadas. A conside-
ração da ação determinante dos fatores sociais na atividade lingüística conduz Trubetzkoy
inadvertidamente ao terreno da variação lingüística, a tal ponto que, no ápice desse per-
curso, Trubetzkoy admite que essa variação atinge o plano da função representativa, ou
seja, atinge a própria estrutura lingüística em seu sistema fonológico, na medida em que
mesmo as oposições distintivas funcionais podem ser conservadas ou mantidas em função
das diferenças que se verificam na estrutura social:

Freqüentemente a pronúncia de um grupo de sujeitos falantes distingue-se da pronúncia


habitual pelo fato de que ela negligencia uma oposição fônica que distingue significações
(logo, de valor representativo), ou, ao contrário, ela apresenta uma determinada oposição
onde a pronúncia dos outros grupos de sujeitos falantes a ignora. Pense-se por ex. na con-
fusão típica dos habitantes de Marselha de  e , bem como de  e ; na distinção entre 
e  inacentuados, que na Rússia pré-revolucionária caracterizava a pronúncia da velha ge-
ração de sacerdotes, distinção particularmente sensível nas regiões centrais e meridionais
da Gran-Rússia onde as outras camadas sociais não distinguiam mais o  e o  inacentu-
ados, etc. (p. 23)

Mas, ao invés de buscar integrar essa variação em um sistema lingüístico hetero-


gêneo, Trubetzkoy, fundado na concepção hegemônica de língua como um sistema ho-
mogêneo, vai postular a existência de vários sistemas fonológicos homogêneos e invariá-
veis:

82
Do ponto de vista da função representativa, existem nesses casos vários sistemas fonoló-
gicos (ou fonéticos)135 dialetais, e, do ponto de vista expressivo, existem nesses casos vá-
rias formas expressivas dos mesmos sistemas. (p. 23)

E para dar conta, do que ele chamou de “diversas formas expressivas dos mesmos
sistemas”, propõe, para o que poderia ser analisado como variação estilística dentro do
sistema heterogêneo, algo que se aproxima da noção de alternância de código (code swit-
ching) que o Estruturalismo viria a desenvolver posteriormente também para dar conta da
variação na estrutura lingüística:

Todos os procedimentos fonológicos expressivos que, numa comunidade lin-


güística, servem para caracterizar um grupo determinado de sujeitos falantes formam um
sistema, e, em seu conjunto, podem ser considerados como o estilo expressivo do grupo
de sujeitos em questão. Um sujeito falante não tem necessidade de empregar sempre o
mesmo estilo expressivo: ele se serve tanto de um quanto de outro, conforme o conteúdo
da conversação, conforme a característica do ouvinte, e, em suma, conforme os usos em
vigor na comunidade lingüística de que ele faz parte. (p. 22)

É evidente que, apesar das limitações apontadas acima (todas decorrentes dos
ajustes necessários às concepções axiomáticas do Estruturalismo), as propostas de Tru-
betzkoy para a fonologia expressiva descortinam um campo bastante fértil para o questi-
onamento da concepção estruturalista de língua como um sistema homogêneo e unitário.
Sempre que o Estruturalismo buscou se aproximar da dimensão sócio-histórica do fenô-
meno lingüístico, fosse através da questão da mudança, fosse através de uma outra formu-
lação (como essa das funções de uso da língua), a sua concepção fundamental do objeto
de estudo da Lingüística, voltada exclusivamente para o modo estruturante da linguagem
esteve ameaçada.
Nesse sentido, é interessante notar como as questões, levantadas por Trubetzkoy
em suas observações sobre a fonologia expressiva, passarão ao largo das preocupações
estruturalistas (e do próprio Trubetzkoy), ao passo que se tornarão centrais para a pesqui-
sa lingüística orientada pelos pressupostos da Sociolingüística Variacionista, a partir da
década de 1960 (ou seja, quase 30 anos depois de terem sido levantadas) 136. Esse fato ex-
pressa bem como o modelo hegemônico, a partir das suas concepções fundamentais, atua
decisivamente na seleção das questões que são consideradas relevantes em cada etapa do
desenvolvimento da ciência. O Estruturalismo, que, no momento em que Trubetzkoy le-
vantava essas questões, se firmava como modelo hegemônico na Lingüística, com base
em sua concepção objetivista de língua como um sistema de relações exclusivamente lin-

135
Note-se como a distinção entre fonética e fonologia tão incisiva e claramente estabelecida pelo Estrutu-
ralismo claudica diante desse quadro. [Para mais detalhes sobre essa distinção entre fonética e fonologia,
veja-se o Capítulo IV, deste livro.]
136
Veja-se, a esse respeito, a 3ª Parte deste livro.

83
güísticas, orientará o interesse e os rumos das investigações para as questões relativas a
essa concepção, quais sejam: o estabelecimento dos limites e dos elementos que constitu-
em o sistema lingüístico (o que é feito, por ex., através da distinção entre os domínios da
fonética e da fonologia; e através da extensa discussão que se travou acerca dos critérios
de depreensão dos fonemas de uma língua), e das relações objetivas estruturais e estrutu-
rantes que se estabelecem nesse sistema lingüístico (como, por ex., as relações de oposi-
ção funcional entre os fonemas e a neutralização dessas relações em contextos lingüisti-
camente determinados)137. Desse modo, as questões levantadas por Trubetzkoy sobre a
fonologia expressiva, por não se enquadrarem na orientação hegemônica deste período,
simplesmente não figuram entre os problemas que serão abordados pelo Estruturalismo.138
Assim, pode-se entender, também, porque a formulação das funções da língua fi-
cou confinada a esquemas abstratos e textos programáticos, não sendo aplicada à análise
sistemática dos fatos lingüísticos que caracteriza esse segundo momento no desenvolvi-
mento do Estruturalismo. Mesmo esse esboço do que seria uma fonologia expressiva não
chega a se consumar enquanto tal. O próprio Trubetzkoy não percebe o campo que se
descortinava para análise lingüística a partir de suas observações, e subestima as suas ob-
servações afirmando que “o número de procedimentos expressivos e apelativos conven-
cionais é sempre menor que o dos procedimentos naturais” (p. 28-9). Esse diminuto peso
dos procedimentos convencionais no conjunto dos procedimentos fônicos de apelo e ex-
pressão é considerado, então, desproporcional diante da importância dos procedimentos
de representação determinados no sistema fonológico da língua. Por conseguinte, Tru-
betzkoy revê a sua proposta inicial, propondo que o estudo dos procedimentos expressi-
vos e de apelo fossem estudados por uma disciplina denominada fono-estilística (phonos-
tylistique), ficando a fonologia concentrada exclusivamente no “estudo da face fônica da
língua de valor representativo” (p. 29). Assim, a fonologia fica definitivamente confinada
à função representativa, e pôde definir como seu objeto de estudo um sistema fonológico
homogêneo e unitário, que é regido apenas por sua lógica funcional, cujos parâmetros são

137
As questões relativas à análise estruturalista do nível fônico da língua serão tratadas no próximo capítulo
deste livro.
138
Kuhn (1975 [1962]: 60) fala sobre essa orientação impingida à investigação científica pelo modelo teó-
rico hegemônico (ou paradigma em sua terminologia): “Uma comunidade científica, ao adquirir um para-
digma, adquire igualmente um critério para a escolha de problemas que, enquanto o paradigma for aceito,
poderemos considerar como dotados de uma solução possível. Numa larga medida, esses são os únicos pro-
blemas que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver. Outros pro-
blemas, mesmo muitos dos que eram anteriormente aceitos, passam a ser rejeitados como metafísicos ou
como sendo parte de outra disciplina. Podem ainda ser rejeitados como demasiado problemáticos para me-
recerem o dispêndio de tempo. Assim, um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade daqueles
problemas sociais relevantes que não são redutíveis à forma de quebra-cabeça, pois não podem ser enunci-
ados nos termos compatíveis com os instrumentos e conceitos proporcionados pelo paradigma.”

84
definidos somente pela função lingüística de prover informação referencial no ato de fala,
em detrimento de todas as outras funções que se observam na atividade lingüística. Com
efeito, tal delimitação foi decisiva para o “êxito” do modelo estruturalista nesse nível de
estudo da língua. O grande desenvolvimento do modelo estruturalista no âmbito da fono-
logia será objeto do próximo capítulo deste livro.

85
APÊNDICE AO III CAPÍTULO

O ESQUEMA DAS FUNÇÕES DA LINGUAGEM


DE ROMAN JAKOBSON

Os membros do Círculo de Praga, nas análises em que de uma forma mais explíci-
ta recorreram à noção de funções da linguagem, basearam-se em geral no esquema de três
funções desenvolvido por Karl Bühler, já comentado no corpo deste capítulo. Contudo,
no início da década de 60, Roman Jakobson (1988 [1960]) apresenta um novo modelo das
funções da linguagem, que mantém as três funções propostas por Bühler, acrescentando-
lhes três novas funções. Mantendo o princípio de que “a linguagem deve ser estudada em
toda a variedade de suas funções” (p. 122), Jakobson apóia o seu esquema no que ele
chama de “fatores constitutivos de todo processo lingüístico, de todo ato de comunicação
verbal”:

O REMETENTE envia uma MENSAGEM ao DESTINATÁRIO. Para ser efi-


caz, a mensagem requer um CONTEXTO a que se refere (ou “referente", em outra no-
menclatura algo ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou suscetível
de verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatá-
rio (ou, em outras palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); e, finalmen-
te, um CONTACTO, um canal físico e uma conexão psicológica entre o remetente e o
destinatário, que os capacite a ambos a entrarem e a permanecerem em comunicação. (p.
122-3)

Assim, Jakobson chega ao seguinte esquema para o processo de comunicação lin-


güística:

CONTEXTO
REMETENTE MENSAGEM DESTINATÁRIO
....................................................................
CONTACTO
CÓDIGO

As funções propostas por Jakobson estão diretamente ligadas a cada um dos seis
fatores, e o predomínio de cada uma função num determinado ato de comunicação decor-
reria do fator que estivesse sendo destacado no referido ato. A estrutura verbal da mensa-

86
gem transmitida será determinada, por sua vez, pela função predominante. Contudo, co-
mo adverte Jakobson:

Embora distingamos seis aspectos básicos da linguagem, dificilmente lograría-


mos encontrar mensagens verbais que preenchessem uma única função. A diversidade re-
side não no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hi-
erárquica de funções. A estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da fun-
ção predominante. (p. 123)

Cada um dos fatores acima referidos relaciona uma função específica. Uma orien-
tação para o CONTEXTO, para o conteúdo da mensagem, determina o predomínio da
função REFERENCIAL, aquela em que a língua é utilizada basicamente para transmitir
informação referencial. A função EMOTIVA está centrada no REMETENTE e “visa a
uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando. Ten-
de a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada” (p. 123-4).
Já a orientação para o DESTINATÁRIO constitui a função CONATIVA. Essa
função “encontra a sua expressão gramatical mais pura no vocativo e no imperativo, que
sintática, morfológica e amiúde até fonologicamente, se afastam das outras categorias
nominais e verbais” (p. 125).
As funções emotiva, conativa e referencial correspondem respectivamente às fun-
ções expressiva, apelativa e representativa, definidas pelo modelo de Bühler, “e aos três
ápices desse modelo: a primeira pessoa, o remetente; a segunda pessoa, o destinatário; e a
‘terceira pessoa’ propriamente dita, alguém ou algo de que se fala” (p. 125-6).
A partir dos demais fatores do processo de comunicação verbal, Jakobson destaca
as demais funções do seu esquema. O fato de que “há mensagens que servem fundamen-
talmente para prolongar, interromper a comunicação, para verificar se o canal funciona,
para atrair a atenção do interlocutor ou confirmar a sua atenção continuada” (p. 126) jus-
tificará a existência de uma função FÁTICA, nesses casos em que a comunicação se volta
para o contato.
Baseando-se na distinção feita na Lógica moderna entre dois níveis de linguagem,
a linguagem objeto (que se refere a um objeto exterior) e a metalinguagem (voltada pa-
ra a própria linguagem), Jakobson propõe uma função METALINGUÍSTICA, que não se
verifica apenas no uso de lógicos e lingüistas, mas nos usos cotidianos da língua sempre
que o código utilizado na comunicação entra em questão.
Finalmente, num ato de comunicação que está voltado para a própria mensagem,
isto é, para a forma pela qual o seu conteúdo é transmitido, predomina a função
POÉTICA. Assim como a função metalingüística não se restringe aos usos dos especialis-
tas, a função poética também não se situa exclusivamente na poesia:

87
A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função
dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais, ela funcio-
na como um constituinte acessório, subsidiário. (p. 128)

Assim, o sistema de funções da linguagem proposto por Jakobson pode ser apre-
sentado num esquema correspondente ao dos fatores constitutivos do processo de comu-
nicação lingüística da seguinte maneira:

REFERENCIAL
EMOTIVA POÉTICA CONATIVA
FÁTICA
METALINGÜÍSTICA

Com efeito, tal modelo constitui apenas um prolongamento do modelo de Bühler.


Os princípios básicos e limitações da concepção das funções da língua, definidos na dé-
cada de 30 e utilizados a partir de então nos trabalhos do Círculo são reproduzidos nessa
nova formalização, que veio à luz quase trinta anos depois da formulação original.

88
CAPÍTULO IV

A LÍNGUA EM SEU SISTEMA FONOLÓGICO:


A SUA MAIS COMPLETA TRADUÇÃO

O Círculo de Praga e a Moderna Fonologia

Com efeito, a maior contribuição do Círculo Lingüístico de Praga para a teoria


lingüística foi o estabelecimento da Fonologia como uma disciplina propriamente lin-
güística. Dos trabalhos do Círculo surgiram quase todos os conceitos e princípios básicos
da versão moderna do estudo do nível fônico da língua, o que ficou conhecido como a
Moderna Fonologia. O peso desta contribuição para o desenvolvimento do modelo es-
truturalista pode ser auferido pelo fato de que os seus princípios e categorias fundamen-
tais, enunciados por Saussure, alcançaram a sua atualização plena na análise efetiva dos
fatos lingüísticos, somente na fonologia139. Mais ainda, deve-se ao Círculo a própria dis-
tinção entre fonética e fonologia, assente na Lingüística Moderna. E, por fim, é exata-
mente na fonologia que a concepção monista da língua como um sistema homogêneo e
unitário em oposição à pluralidade heteróclita da linguagem (ou da fala), introduzida por
Saussure, se realiza de forma mais completa.
O conceito básico da fonologia é o fonema. Na fonologia moderna esse termo de-
signa basicamente “as propriedades fônicas concorrentes que se usam numa língua dada
para distinguir vocábulos de significação diversa” (Jakobson, 1967 [1932]: 11). Sendo
uma unidade da língua (i. é. do sistema homogêneo e unitário), o fonema constitui uma
invariante, a que correspondem os seus diversos valores de realização, já que, “na fala,
sons variados podem ser um mesmo e único fonema. (...). Esses sons se dizem variantes
de um dado fonema” (id. ibid.). Por outro lado, os fonemas também se organizam em um
sistema de relações funcionais opositivas, i. é. em um sistema fonológico, que, juntamen-
te com os sistema morfológico, sintático, lexical e semântico, constituem o sistema lin-
güístico como um todo140. Com base nessas formulações, é proposta, pelo Círculo de Pra-

139
Veja-se a este propósito, a seguinte afirmação de Jakobson (1967 [1939]): “Pode-se afirmar com van
Wijk que a fonologia é a primeira matéria bruta da Lingüística Estrutural, e assim cabe ao fonema como
conceito fonológico básico o papel de pedra de toque de todo o Estruturalismo”.
140
cf. Troubetzkoy (1970 [1939]: 3): “La langue consistant en règles ou normes, elle est par opposition à
l'acte de parole, un système, ou, pour mieux dire, un ensemble de plusieurs systèmes partiels. Les categori-

89
ga, a moderna distinção entre fonética e fonologia. E, mais uma vez, a noção de funcio-
nalidade desempenhará um papel crucial na formulação teórica do Círculo. Essa noção
será decisiva para que, diferentemente do que havia proposto Saussure, o fonema seja de-
finido como uma unidade da língua141.

Um lugar para o fonema na estrutura da língua

A questão do significado particular das unidades fônicas foi tratada com perspicá-
cia por Jakobson (1967 [1939]), que garantiu ao fonema um lugar próprio na estrutura
lingüística. Segundo Jakobson (p. 22), o fonema ocuparia um lugar especial no conjunto
dos signos lingüísticos quanto à sua significação. Todas as unidades lingüísticas possuem
uma significação positiva e constante, que, tanto pode ser lexical (ou real, na termino-
logia, que Jakobson toma de Fortunatov), i. é., possuir um conteúdo exterior à língua,
quanto pode ser gramatical (ou formal, também na terminologia de Fortunatov), ou seja,
ser interior à estrutura lingüística, indicando apenas uma relação que a língua estabelece
entre as suas unidades (cf. Jakobson, 1967 [1939]: 23-26). Já, o fonema, “ao contrário de
todos os outros valores lingüísticos, não possui em si uma significação positiva. (...) O
valor lingüístico do fonema (...) apenas está em mostrar que um morfema ou uma palavra,
em que ele aparece, se distingue de outro morfema ou outra palavra que coeteris paribus
contém em vez dele outro fonema” (p. 27-28). Portanto, enquanto “a distinção entre dois
morfemas corresponde a uma distinção determinada e constante na significação, [a dis-
tinção entre dois fonemas] corresponde única e exclusivamente ao fato de haver distinção
quanto à significação, sem que fique por isso determinado e seja constante o conteúdo
dessa distinção. Como já Tomás de Aquino percebera percucientemente, trata-se de sig-
nos arbitrários (significantia artificialiter), que são feitos ad significandum, mas isolados,
tomados em si mesmos, nada significam” (p. 29-30). Em outras palavras, o fonema pos-
suem um valor negativo quanto à significação; ou ainda:

A distinção fônica, determinada e constante, entre dois fonemas, corresponde simples-


mente a uma distinção significativa em potencial, e nunca a uma distinção significativa
determinada e constante. Para usar os termos de Husserl, o fonema é um ato de atribuição
de significação e jamais um ato de plenitude de significação. Ao contrário, a distinção en-

es grammaticales forment un système grammatical; les categories sémantiques constituent divers systèmes
sémantiques.”
141
Voltado para uma concepção racional e logicista da língua, compreendida como um sistema de signos,
Saussure excluiu os fonemas desse sistema, cujas unidades deveriam necessariamente apresentar um signi-
ficante e um significado substantivos, e definiu a fonologia como uma disciplina auxiliar fora do âmbito
propriamente lingüístico (cf. Capítulo I).

90
tre dois morfemas encerra duas distinções fixas e concretas, a saber – no plano do signifi-
cante a distinção entre duas formas externas, e no plano do significado a distinção entre
duas dadas significações. Ora, a distinção entre dois fonemas encerra uma só distinção fi-
xa e concreta, e isto no plano do significante (signans), enquanto no plano do significado
(signatum) há apenas a possibilidade de uma distinção ou, ainda, um número indetermi-
nado x de distinções concretas (p. 30-31)

Em português, por exemplo, o morfema de número -s, em oposição ao morfema


zero, indica sempre, para os nomes, uma distinção entre ‘mais de um’ e ‘um’, respecti-
vamente (ex.: cavalos:cavalo), ao passo que a oposição entre /b/ e /v/, no par bala:vala
apresenta um conteúdo de significação, já em bela:vela o conteúdo da distinção é outro, e
assim por diante. Em suma, em toda a estrutura lingüística, “só o fonema é um signo pu-
ramente distintivo e vazio. O único conteúdo do fonema, como elemento lingüístico e
portanto semiótico, é a sua oposição a todos os outros fonemas do sistema a que perten-
ce” (Jakobson, 1967 [1939]: 31). Nesse sentido, a concepção de língua como um sistema
funcional será o fator determinante para que o fonema alcance o seu estatuto lingüístico.
Orientando a noção de funcionalidade para o plano interno da língua, é proposto o princí-
pio de que os elementos constituintes desse sistema se definam pela função que nele de-
sempenham. Os fonemas, então, passam a ser considerados unidades do sistema lingüísti-
co, porque nele desempenham essa função distintiva fundamental. Cinde-se, então, a aná-
lise lingüística em dois planos; um, no qual as unidades se distinguem por seu valor signi-
ficativo, sendo o morfema a menor unidade de valor significativo da língua; e outro, no
qual as unidades lingüísticas são tomadas por seu valor distintivo, sendo o fonema a me-
nor unidade sem significação própria, mas possuidora de um valor distintivo capital para
o funcionamento do sistema lingüístico.
Essa concepção funcional do fonema será determinante para superar o psicolo-
gismo que rondava esse conceito desde a sua gênese e para incorporá-lo ao estudo da lín-
gua. Nesse sentido, “a fonologia é a parte da Lingüística que trata dos sons da fala em
referência às funções que eles exercem numa língua dada, ao passo que a fonética tem
como tarefa a investigação dos sons da fala, de um ponto de vista puramente fisiológico,
físico e psíquico-acústico” (Jakobson, 1967 [1932]: 11). 142
Com efeito, os conceitos de fonema e fonologia não foram criações do Círculo de
Praga. Na maioria dos pronunciamentos dos membros do Círculo sobre a origem desses

142
Note-se aqui que o fonema existe com referência a uma língua, ou é definido pelo sistema de oposições
que se estabelecem ao nível de uma língua particular. Dessa forma, um som A só pode ser considerado co-
mo a realização de um fonema de uma língua X se nela desempenhar uma função distintiva; numa língua Y,
em que não desempenha uma função distintiva, este som A não representa mais um fonema, e deixa de ser
fonologicamente pertinente. Assim, enquanto a fonética, que estuda os sons da linguagem independente da
função lingüística que eles desempenham, é nesse sentido mais “universal”, a fonologia, pelo menos em sua
fase inicial, estaria circunscrita ao estudo dos sistemas fônicos das línguas particulares.

91
conceitos, os nomes de Baudouin de Courtenay e do próprio Saussure figuram como os
precursores e principais referências143. Trubetzkoy (1970 [1939]: 4-5) cita Baudouin de
Courtenay e J. Wintler como os primeiros a destacar que “as oposições fônicas são em-
pregadas para diferenciar as palavras”; sendo Baudouin de Courtenay o primeiro estudio-
so a propor “duas fonéticas descritivas distintas”, consoante os objetivos de “estudar os
sons concretos”, ou como “fenômenos físicos”, ou como “sinais fônicos empregados com
fins de intercompreensão no interior de uma comunidade lingüística”. Contudo o conceito
de fonema de Baudouin de Courtenay, que orientaria toda a primeira fase dos estudos fô-
nicos (que se estende até a Primeira Grande Guerra), assentava sobre uma base eminen-
temente psicológica:

J. Baudouin de Courtenay definia o fonema como “o equivalente psicológico do som da


linguagem”. Essa definição era insustentável, pois ao mesmo fonema podem correspon-
der, como variantes, vários sons da linguagem, cada um desses sons da linguagem possui
um “equivalente psíquico” próprio – a saber as representações acústicas e motoras que a
ele correspondem. Por outro lado, essa definição supõe que o som da linguagem é em si
mesmo uma grandeza positivamente dada e concreta. Mas a realidade não é bem assim:
só é positivamente dada a corrente sonora contínua e concreta do ato de fala, e se nós ex-
traímos desse continuum diversos sons da linguagem, nós o fazemos precisamente porque
a secção em questão da corrente sonora “corresponde” a uma palavra que contém um fo-
nema determinado. O som da linguagem só pode ser definido por sua relação com o fo-
nema. Mas, se se parte do som da linguagem para definir o fonema, cai-se num círculo
vicioso. (Trubetzkoy, 1970 [1939]: 41)

O círculo vicioso a que alude Trubetzkoy se deve a ausência, na Lingüística da


época, de elementos teóricos que pudessem propiciar uma apreensão do fonema em ter-
mos estritamente lingüísticos. O recurso aos elementos psicológicos (que são, de fato,
inadequados e induzem à tautologia) é apenas uma conseqüência dessa lacuna. Só com o
advento da ruptura saussuriana, pôde-se abolir toda essa sorte de “apoios” de que se ser-
via a Lingüística na ausência de um modelo próprio e autônomo. Só com a assimilação
do modelo teórico saussuriano, fundamentado na concepção de língua como sistema ob-
jetivamente estruturado, a fonologia pode constituir os seus fundamentos próprios.
Reproduzindo a lógica do modelo saussuriano, de que todos os fatos da linguagem
devem ser considerandos em sua relação com a língua, a moderna fonologia define o fo-
nema pela função que este desempenha na língua, e constrói um sistema fonológico con-
cebido como a atualização do conjunto das relações que integram os fonemas na estrutura
lingüística. Dessa forma, incorporando os elementos introduzidos por Saussure, pôde-se
cumprir a tarefa imperiosa de desvencilhar a definição de fonema de qualquer elemento

143
cf. Jakobson, 1967 [1932] e 1967 [1939]; Trubetzkoy, 1970 [1939]; e Mathesius, 1978 [1931].

92
não-lingüístico e se lançar as bases da Moderna Fonologia144, essa nova disciplina que se
constituiu após a Primeira Grande Guerra (ou após a publicação do Cours de linguistique
générale, o que é, no caso, realmente determinante), em torno dos trabalhos do Círculo
Lingüístico de Praga145.
A partir desses conceitos básicos e tomando como ponto de apoio as propriedades
fônicas dos fonemas (i. é. as suas propriedades acústico-articulatórias) – no escopo da sua
pertinência para o funcionamento da língua –, os membros do Círculo desenvolveram um
instrumental analítico que lhes permitia formalizar o funcionamento fônico da língua,
através do seu sistema fonológico. Esse sistema de relações subjetivamente estruturado
passa, então, a determinar as relações e as práticas que se realizassem em sua referência.
Assim, num primeiro momento, foi feito um esforço combinado para dotar a disciplina de
um instrumental teórico que a capacitasse a proceder à análise descritivo-explicativa dos
diversos sistemas fonológicos das línguas particulares. Em seguida, ou mesmo em con-
comitância com essa fase, se almejaria, num patamar superior, a um sistema de relações
ainda mais geral, que fosse capaz de determinar não apenas a estruturação interna de uma
língua e as suas práticas, mas as de todas as línguas, através das relações subjetivamente
formalizadas, com referência a uma estruturação interna imanente a toda linguagem hu-
mana (cf. Jakobson, 1967 [1958]).

144
Já em 1912, L. V. Scerba, um dos discípulos de Baudouin de Courtenay, havia destacado a função dis-
tintiva do fonema, na seguinte definição: “la représentation phonique générale la plus courte qui, dans la
langue étudiée, possède la faculté de s'associer à des représentations de sens et de différencier des mots (...)
s'appelle phonème”. Mas, apesar de revelar esse aspecto distintivo crucial do fonema, essa definição ainda
se mantém “inteiramente no terreno da psicologia associativa”, pois não podia contar com todo aparato
teórico do modelo saussuriano, ainda por vir. Em 1928, N. F. Jakovlev (“Matematiceskaja formula postro-
jenija alfavita”, Kul'tura i pis'mennost' Vostoka, vol. I, 46) apresenta uma definição de fonema já livre de
qualquer elemento psicológico: “par phonème nous entendons toute particularité phonique qui se laisse
extraire de la chaine parlée comme étant l'élément le plus court servant à différencier des unités de signifi-
cation”. Em 1929, Jakobson (“Remarques sur l'évolution phonologique du russe”, TCLP II, 5) apresenta a
seguinte definição – “touts termes d'opposition phonologique non suscetibles d'être dissociés en sous-
oppositions phonologiques plus menues sont appelés phonèmes” –, que, com uma ligeira alteração – “...
non suscetibles d'être dissociéeen unités phonologiques plus petites et plus simples” –, foi adotada no Proje-
to de Terminologia Fonológica Estandartizada (TCLP IV, 311). (cf. Trubetzkoy, 1970 [1939]: 37 nota 1)
145
cf. Jakobson (1967 [1932]: 13): “A elaboração sistemática da fonologia só começou depois da Primeira
Guerra Mundial, quando: a) se estabeleceu o problema do sistema fonológico como um conjunto de leis
estruturais; b) se substituiu a noção psicológica dos elementos fonológicos (a chamada psico-fonética) por
uma orientação sociológica; c) se deu a à fonologia sincrônica o suplemento de uma fonologia histórica. O
Círculo Lingüístico de Praga, que organizou o Primeiro Congresso Fonológico Internacional (Praga, 1930),
tornou o centro de elaboração da fonologia moderna.”

93
Da Fonética à Fonologia: os trabalhos de Trubetzkoy e Jakobson

Dentre os membros do Círculo de Praga, os lingüistas russos Nicolas Trubetzkoy


e Roman Jakobson foram aqueles cujos trabalhos se destacaram como os mais relevantes
para o desenvolvimento da teoria da fonologia estrutural. O primeiro é o autor da obra
mais completa sobre o assunto, os Princípios de Fonologia (doravante referido também
por Princípios, ou pela sigla PP), publicado inicialmente em 1939, em alemão – Grun-
dzüge der Phonologie –, no sétimo volume dos Travaux du Cercle Linguistique de Pra-
gue146. Já a contribuição de Jakobson para o desenvolvimento e sistematização da teoria
fonológica compreende uma série bastante numerosa de artigos que se estende por déca-
das, desde o período em que participava ativamente do Círculo, até o período em que se
fixou nos EUA, quando as atividades conjuntas do Círculo já haviam se encerrado.
A obra de Trubetzkoy, os Princípios, apesar de sua carga de originalidade, não
constitui uma obra de ruptura, sendo melhor definida como uma obra de síntese. Mas,
como tal, não é uma mera acumulação de formulações anteriores; ao contrário, Tru-
betzkoy, toma a vasta produção anterior sobre o assunto (inclusive a sua e de outros
membros do Círculo), e a articula, introduzindo novas e originais formulações, elevando-
a a um outro patamar, como um conjunto teórico organizado.
Em sua teorização, Trubetzkoy obviamente não se apóia apenas em conceitos e
categorias fonológicas já existentes. Ele vai buscar também elementos na teoria lingüísti-
ca geral de Saussure, particularmente as suas dicotomias língua e fala, e significado e
significante. Os Princípios se iniciam, inclusive, com uma cuidadosa distinção entre lín-
gua e fala. Definindo esta como de natureza única e concreta e aquela como constante e
geral, Trubetzkoy, apesar de reconhecer que ambas constituem as faces inseparáveis de
um mesmo fenômeno – a linguagem –, afirma que o estudo de cada uma deve ser feito
em separado (cf. PP, 1). Em seguida, é feita uma referência ao princípio saussuriano de
que tudo o que pertence à linguagem possui duas faces: um significado e um significante.
Sobrepondo essa dicotomia à primeira (língua/fala), Trubetzkoy reconhecerá, quanto ao
significado, o sentido concreto de cada ato de fala, em oposição ao conjunto de regras
abstratas – “sintáticas, fraseológicas, morfológicas e lexicais” – da língua. Por outro lado,
“a face ‘significante’ de um ato de fala é uma corrente sonora concreta”; donde a pergun-
ta: “mas qual é a face ‘significante’ da língua?” A resposta, por analogia com o plano do
significado, é: “a face ‘significante’ da língua só pode consistir em regras através das
quais é ordenada a face fônica do ato de fala”. Por conseguinte, se a quantidade de repre-
146
Utilizei a versão francesa – Principes de Phonologie – , em tradução de J. Cantineau (cf. Trubetzkoy,
1970 [1939]).

94
sentações e idéias que podem ser exprimidas nos atos de fala é infinita ao passo que os
elementos e regras que regem o processo de significação da língua são de número finito,
o mesmo ocorre no plano do significante:

A mesma ligação entre língua e fala existe também no domínio do ‘significante’: os mo-
vimentos articulatórios e os sons deles resultantes que se encontram nos diferentes atos de
fala são de uma variedade infinita, mas as normas fônicas, que são os elementos da face
significante da língua, são em número limitado e finito. (PP, 2-3)

Trubetzkoy também lança mão da concepção saussuriana de língua como um sis-


tema de relações objetivas, atualizando no nível fônico o seu papel ordenador e estrutu-
rante das relações e das práticas lingüísticas:

A língua consiste em regras ou normas, ela é, por oposição ao ato de fala, um sistema
(...): a corrente fônica do ato de fala concreto é uma sucessão ininterrupta, sem ordem
aparente, de movimentos sonoros, que se imbricam uns aos outros. Ao contrário, as uni-
dades da face ‘significante’ da língua formam um sistema ordenado. O fato de que os di-
versos componentes ou momentos da corrente sonora realizada no ato de fala poderem
ser relacionados aos diferentes termos desse sistema introduz uma certa ordem na corren-
te sonora. (PP, 3)

A distinção dicotômica no objeto de estudo implica irremediavelmente uma divi-


são do estudo da linguagem em seu nível fônico também em duas disciplinas: a fonética
e a fonologia. A fonética é a disciplina que estuda os sons da fala, ou a face significante
da fala. Já à fonologia cabe o estudo dos sons, ou mais precisamente da face significante
da língua. A diferença entre as duas disciplinas não se atém ao objeto de estudo, ela diz
respeito também aos métodos empregados por cada uma:

A ciência dos sons da fala, já que lida com fenômenos físicos concretos, deve empregar
os métodos das ciências naturais; a ciência dos sons da língua deve ao contrário empregar
os métodos puramente lingüísticos, psicológicos ou sociológicos. (PP, 3)

A fonética deve empregar os métodos das ciências naturais, porque a sua tarefa se
circunscreve à análise da produção material dos sons, quer do seu lado articulatório (ou
“organogenético”), quer do seu lado acústico, perceptivo; donde a sua definição como “a
ciência da face material dos sons da linguagem humana” (PP, 10-11). Em outras pala-
vras, cabe-lhe apreender o objeto em sua manifestação mais imediata. A fonologia, ao
contrário, apreende o seu objeto de uma forma mais mediatizada, através do sistema de
relações objetivas que o estruturam. No nível fônico da língua, essas relações giram em
torno da função distintiva desempenhada pelos seus elementos:

O significante da língua consiste em uma quantidade de elementos, cuja essência reside


no fato de eles se distinguirem uns dos outros. (...). A fonologia deve pesquisar quais di-
ferenças fônicas estão ligadas, na língua estudada, às diferenças de significação; como os

95
elementos de diferenciação se comportam entre eles e, segundo quais regras, eles podem-
se combinar uns com os outros para formar palavras ou frases. É claro que esses objetivos
não podem ser cumpridos com os meios das ciências naturais. A fonologia deve, portan-
to, empregar os métodos que são utilizados para estudar o sistema gramatical de uma lín-
gua. (PP, 11-12)

Sendo a fonologia a disciplina propriamente lingüística – no sentido moderno, ou


saussuriano, do termo –, e a fonética uma disciplina auxiliar, subsidiária – relacionada a
uma fase pretérita do saber lingüístico –, pode-se também visualizar nitidamente, na dis-
tinção de Trubetzkoy entre fonética e fonologia, os parâmetros da passagem do modo do
conhecimento fenomenológico ao modo objetivista:

Ao lado da definição da fonética como ciência dos sons da fala, e da fonologia como ci-
ência dos sons da língua, poder-se-ia dar uma outra, segundo a qual a fonética seria um
estudo fenomenológico dos sons da linguagem, enquanto que a fonologia seria um estudo
da função lingüística desses mesmos sons. (...). Assim a fonética permanece sempre no
terreno do ato de fala, enquanto que a fonologia fica sempre sobre o terreno da língua.
(...) a fonologia se ocupa necessariamente da função lingüística dos sons da linguagem, a
fonética, pelo contrário, do lado fenomenológico desses sons, sem atentar para a sua fun-
ção. Esta diferença tem a sua causa no fato de que a língua, ao mesmo tempo que é uma
instituição social, é um mundo de relações, de funções e de valores, enquanto que a fala
é, ao contrário, um mundo de fenômenos empíricos. (PP, 12-13)

Jakobson (1967 [1939]) também destaca esse significado da passagem da fonética


à fonologia:

O corpo sonoro da língua aparece ao investigador de orientação naturalista como


uma porção de átomos incertos, ou motores ou acústicos, que ele penosamente mede, mas
de cujo objetivo e sentido ele nada procura saber (...). Tal caminho (...) levava a uma ci-
são absoluta entre o estudo dos sons vocais e a problemática lingüística (...).
A decepcionante concepção de uma multiplicidade caótica trouxe num movi-
mento antitético o princípio da unidade e da ordem. (...) A forma sonora de uma língua,
que até então fora mero assunto da Psicologia e da Fisiologia Sensorial, incorporou-se à
Lingüística, no verdadeiro sentido desta palavra, ou, em outros termos, pesquisou-se a
forma sonora no seu valor significativo e sobretudo na sua função de suporte de uma sig-
nificação. Focalizou-se afinal a portentosa questão do "porquê" dos sons vocais, isto é, a
sua imediata razão de ser. (p. 15-16)

Mas a instalação da Moderna Fonologia não deixa de apresentar também os seus


problemas. Ao tempo em que representa a superação de contradições preexistentes, é
também a fonte de novas contradições e desafios. Entre esses desafios, destaca-se a pró-
pria aplicação da dicotomia língua e fala em sua organização.
Vimos com Trubetzkoy que essa questão não apresenta maiores problemas, já que
à fonologia cabe o estudo dos sons da língua – sendo o seu objeto por excelência o fone-
ma invariante, unidade do sistema lingüístico fonológico –, enquanto que à fonética cabe
o estudo das diversas manifestações do fonema na fala, ou seja, das variantes através das

96
quais ele se realiza. Portanto, a fonologia é a ciência da língua, ao passo que a fonética é a
ciência da fala. Já para Jakobson (1967 [1939]), a questão não é tão simples assim, ou
pelo menos deve ser posta em outros termos:

É por certo fora de qualquer dúvida que o fonema, como os demais valores lin-
güísticos, se situa na estrutura lingüística; mas é preciso, não obstante, precaver-nos con-
tra a concepção muito generalizada, mas por demais simplista, que considera o fonema e
tudo que é fonológico como exclusivamente pertencente à estrutura lingüística ou à lan-
gue. (...)
O fonema, como todo instrumento de comunicação, é necessariamente um meio
de atuação coletivo. Seria, entretanto, um erro querer separar da atividade da fala o con-
ceito de fonema. É que a atividade da fala não se restringe ao que isola e individualiza,
mas tem em vista, antes de tudo, o intercâmbio lingüístico. (pp. 20-22)

Essa dissensão advém da maneira fugidia e inextricável pela qual os termos da an-
tinomia língua e fala são propostos e se perpetuam na teoria lingüística. Impressiona, ao
se observar a história da Lingüística, como categorias tão utilizadas e tão produtivas nun-
ca lograram ter os seus limites definitivos. Pode-se dizer que todas as acepções derivam
de uma linha mestra comum quase que intuitivamente. Mas, à medida em que os deline-
amentos se explicitam, as interpretações se multiplicam. Dessa forma, os conceitos e
formulações que derivam dessa dicotomia, ou nela se apóiam – como é o caso do próprio
conceito de fonema e da distinção entre fonética e fonologia – também padecem da mes-
ma sorte de “polissemia”. Buscando superar esse obstáculo conceitual, Jakobson recorre
às noções de forma (relacionada mais uma vez a noção de função) e substância para
precisar o seu conceito de fonema e por conseguinte o escopo da fonologia:

A usual classificação da fonologia como ciência da estrutura lingüística, em face


da fonética como ciência da atividade da fala, mostra-se assim insatisfatória. A fonologia
está para a fonética na relação de uma ciência da forma, ou, se quiserem, da função, para
uma ciência da substância vocal. A forma radica-se na estrutura lingüística, mas também
figura necessariamente no manuseio da fala, pois do contrário não haveria fala mas emis-
sões inarticuladas. Os sons vocais são evidentemente mera substância. Ao contrário, o fo-
nema (...) entra tipicamente no conceito de forma e função. (ibid.)

Entretanto, tal oposição entre forma e substância não resolve o problema da im-
precisão da dicotomia língua e fala. Ao contrário, aquela, de alguma maneira, é feita com
referência a esta. Estas imprecisões conceituais acabarão por se refletir no enfrentamento
concreto com os dados, e, diferentemente do que as afirmações citadas anteriormente fa-
zem crer, a passagem da fonética à fonologia não se fez sem problemas e de forma tão
nítida e inconteste. A esse respeito, Trubetzkoy, por exemplo, não vê problemas em afir-
mar que a fonologia “deve evidentemente empregar noções fonéticas” (como oclusiva,
fricativa, surda, sonora, etc.), e explica:

97
O início de toda descrição fonológica consiste em descobrir as oposições fônicas existen-
tes na língua em questão e (...) o inventário fonético da língua deve servir de ponto de
partida e fornecer os materiais. (PP, 15)

Mas adverte que “os estados mais avançados, mais elevados da descrição fonoló-
gica: o estudo do sistema e o das combinações, são totalmente independentes da fonética”
e que o uso dos elementos fonéticos na análise fonológica “deve se restringir ao que é ab-
solutamente indispensável” (ibid.). E, para Trubetzkoy, “distinguir nitidamente a fonolo-
gia da fonética é necessário em princípio e realizável na prática” (ibid.: 14). Contudo, o
próprio Trubetzkoy será acusado de fazer fonética pensando estar fazendo fonologia.
Em muitas ocasiões, é de fato difícil determinar onde a fonética acaba e a fonolo-
gia começa. A autonomia da fonologia diante da fonética – de que provém o seu estatuto
lingüístico, ou mais ainda, a sua condição de saber objetivista frente ao saber fenomeno-
lógico, meramente psico-naturalista – se fará dentro de limites e exigências vários. As-
sim, a discussão dessa passagem da fonética à fonologia em termos práticos, no nível da
análise concreta dos materiais lingüísticos, implicará a discussão do próprio caráter lin-
güístico da fonologia e do seu estatuto de objetividade.

Em busca do fonema e do sistema fonológico

O primeiro problema prático que se coloca para a fonologia é o de distinguir os


fonemas no contínuo sonoro de que se constituem todas as manifestações concretas da
língua. Esse problema se divide em dois: a distinção entre fonemas e variantes; e a dis-
tinção entre fonemas simples e grupos de fonemas. A simples definição do fonema já
constitui uma grande ferramenta para a solução dessas questões, contudo a prática apre-
sentará dificuldades que reivindicam uma metodologia específica para o seu enfrenta-
mento.
Em vista disso, Trubetzkoy (PP, 47-68) proporá uma série de regras através das
quais, ele crê poderem-se realizar as distinções acima referidas em termos fonológicos.
Para a solução do primeiro problema – a distinção entre fonemas e variantes –, Tru-
betzkoy (PP, 47-53) propõe quatro regras. Nesse caso, a função distintiva do fonema
desempenha um papel capital. Não havendo a alteração de sentido na substituição de um
som por outro numa palavra, o investigador está diante de duas variantes de um mesmo
fonema (1ª regra). Caso contrário, determina-se então dois fonemas distintos (2ª regra). A
dificuldade, então, fica por conta das variantes combinatórias de um mesmo fonema
que são definidas na terceira regra como “dois sons, parentes entre si do ponto de vista

98
acústico ou articulatório, [que] não se apresentam jamais no mesmo contexto fônico”
(PP, 50). No recurso à noção de parentesco acústico ou articulatório, evidencia-se um pe-
rigoso apoio na fonética. O exemplo que Trubetzkoy nos apresenta é o seguinte:

Em coreano, s e r não aparecem em final, enquanto que l só se apresenta justamente em


final; sendo l líquida e evidentemente mais aparentada ao r que ao s, l e r só podem ser
considerados nesta língua como variantes combinatórias de um fonema único. (PP, 51)

Ou seja, em última instância o critério decisivo para se determinar quais são as va-
riantes combinatórias é um critério fonético. É uma noção fonética (ser líquida) que de-
fine a relação entre l e r, e a exclusão de s dessa relação.
Para a solução do segundo problema, a distinção entre um fonema simples e um
grupo de fonemas, Trubetzkoy (PP, 57-63) propõe sete regras. Nesse caso o recurso à
fonética é bem mais evidente, o que não é gratuito: a distinção de um ou mais fonemas,
em um determinado segmento fônico, é, em alguns casos, uma tarefa bastante complexa.
As seis primeiras regras serviriam para determinar a existência de um único fonema; nes-
ses casos o grupo fônico teria um valor monofonemático. A última indicaria a existência
de um grupo de fonemas, i. é. fundamentaria uma interpretação polifonemática do grupo
fônico em questão. Segundo Martinet (1939: 100), as três primeiras regras indicam “res-
trições puramente fonéticas: só são suscetíveis de ser interpretados como realizações de
fonemas únicos os grupos cuja duração não exceda certos limites, que se comportem de
uma certa maneira frente a fronteira silábica, ou cujos elementos estejam em uma relação
fonética de tipo particular”. E prossegue:

Essas restrições não existem para nós: o grupo castelhano [ts] se realiza geral-
mente com o dobro da duração das outras consoantes da mesma língua, e isto não nos
impede de o considerar como um fonema único; a localização da fronteira silábica só po-
de nos interessar se ela é fonologicamente pertinente (...); quanto à natureza fônica dos
elementos do grupo, ela só nos interessa na medida em que nos permite determinar se es-
ses elementos são (ou não são) interpretados como variantes de fonemas já destacados.

Assim, Martinet (ibid.: 95) rejeita em seu conjunto a metodologia que Trubetzkoy
apresenta para resolver essa questão e propõe uma outra, fundada basicamente no método
da comutação, que ele assim define:

Dois sons sucessivos só representam com certeza dois fonemas distintos se am-
bos são comutáveis, isto é, se com a substituição de cada um deles por outro som se ob-
tém outra palavra.
E complementa (ibid.: 96):

É importante notar que a comutação é perfeitamente viável se ela se faz com zero: em
francês, a oposição tiers/tuèrent não basta para mostrar que [t] representa um fonema dis-

99
tinto de i, mas tiers/hiers, bem como tiers/pierre, mostra a independência fonológica mú-
tua de t e de i.

Aplicando o método da comutação no caso do grupo [d], do inglês (ex.: jam),


Martinet defende uma interpretação monofonemática, na medida em que só o segundo
som deste grupo é comutável147. Contudo, ao tratar, na mesma língua, do grupo [t], “cu-
jos componentes parecem ser perfeitamente comutáveis em todas as posições, como o
demonstram as oposições chip [tip]/ship [ip], chip/tip, hutch/hush, hutch/hut, etc.”
(ibid.: 99), Martinet defenderá uma interpretação igualmente monofonemática. Esta posi-
ção é por sua vez justificada pelo critério do paralelismo no inventário de fonemas:

Em inglês, um grande número de fonemas que se podem destacar com facilidade se


opõem uns aos outros, não aleatoriamente, mas como duas séries caracterizadas tanto pe-
la natureza dos elementos pertinentes de sua articulação, como por certas possibilidades
combinatórias: os fonemas de uma série são sempre caracterizados pela vibração da glote,
ao passo que os outros não conhecem jamais essa vibração; em certas condições morfoló-
gicas (...), os fonemas das duas séries se excluem mutuamente, de tal sorte que a surda s
só admite após ela a surda t, excluindo a sonora d, ao passo que a sonora z só admite d,
excluindo t, etc. Ora, [t] se distingue da realização do fonema [d] exatamente como s
se distingue de z, ou t de d. (...). Nessas condições, [t] aparece como a realização do par
surdo de um fonema sonoro d, e vem se juntar à lista dos fonemas do inglês. (ibid.)

Assim, apesar de seus dois constituintes serem comutáveis, o grupo [t] é inter-
pretado como um fonema único. Essa interpretação levanta dois problemas. Em primeiro
lugar, um critério estritamente lingüístico, a comutação, é sobrepujado por outro cuja ba-
se é essencialmente fonética (a oposição surda/sonora, i. é. com vibração da glote/sem
vibração da glote), sendo que mais uma vez a fonologia stricto sensu se mostra incapaz
de apresentar uma solução própria para o problema. Além disso, o problema ainda não
logrou uma solução objetiva, já que os critérios explicitados não o esgotam. Pode-se pôr
ainda a seguinte questão: por que se tomar o grupo [t] como um fonema único e não ao
contrário se definir o grupo [d] como dois fonemas?
Assim, mais uma vez a fonologia claudica entre soluções de base fonética e solu-
ções subjetivas. Nesse sentido, podemos concordar com Martinet (ibid.: 103): não basta
dar uma definição de fonema para que, em todos os casos concretos, se esteja apto a des-
tacá-lo imediatamente. Portanto, peca por excesso de otimismo a afirmação de Tru-
betzkoy de que, através das regras por ele formuladas, “se pode estabelecer o inventário
completo de todos os fonemas de uma língua dada” (PP, 68).
Contudo, acrescenta Trubetzkoy, “o inventário de fonemas de uma língua nada
mais é do que o corolário do sistema de oposições fonológicas” (PP, 69). Esta afirmação

147
O [] é comutável com [r], do que resulta a palavra inglesa dram; é igualmente comutável com o zero,
donde damn; mas não há comutação com o [d] de que resulte uma palavra possível em inglês.

100
é de crucial importância na definição do fonema. Assim, o fonema não apresenta um con-
teúdo próprio de per si, “a definição do conteúdo fonológico de um fonema pressupõe
que ele seja um termo do sistema de oposições fonológicas existentes na língua em ques-
tão” ou seja, “a definição do conteúdo de um fonema depende do lugar que ele ocupa no
sistema de fonemas de que se trata” (PP, 68-69). O sistema de relações que constitui a
língua objetivamente estruturada é que vai, então, ordenar a existência lingüística do fo-
nema, ou seja, será determinante para a sua definição:

Um fonema só possui um conteúdo fonológico definível porque o sistema de oposições


fonológicas apresenta uma estrutura, uma ordem determinadas. (PP, 69)

Através desta hipostasia do sistema rompe-se a dialética da relação entre os ele-


mentos e o conjunto, passando o sistema a produzir, quase que metafisicamente, os seus
elementos e as relações que o constituem. Dessa forma a definição do fonema e a estrutu-
ra fonológica da língua se entrelaçam num sistema fechado em sua lógica imanente, em
que nada determina fora de suas relações internas.
Para Trubetzkoy, a chave desse sistema residiria na organização das oposições fo-
nológicas. Pelo estudo das oposições se poderia explicar o sistema, já que “em fonologia
o papel principal pertence não ao fonema, mas às oposições distintivas” (PP, 69). Com
base nisso, Trubetzkoy propõe, como primeiro passo para a explicação do sistema fono-
lógico, um complexo esquema para a classificação das oposições fonológicas, que, como
afirma, é capaz de explicar qualquer sistema de oposições, não apenas as fonológicas
(PP, 94). Nesse esquema, as oposições são consideradas por três pontos de vista distintos,
que possibilitam classificá-las de três maneiras igualmente distintas:
(i) do ponto de vista das suas ligações com outras oposições do mesmo sistema:
são classificadas como bilaterais ou multilaterais; proporcionais ou isoladas.
(ii) do ponto de vista da ligação lógica existente entre os próprios termos da opo-
sição: são privativas, graduais ou eqüipolentes.
(iii) do ponto de vista da extensão de seu poder distintivo: são neutralizáveis ou
constantes. (cf. PP, 69-93)
Na apresentação desse esquema, podemos surpreender algumas das características
da maneira de operar do Estruturalismo. Observa-se em primeiro lugar a objetivação de
uma construção subjetiva: um esquema construído segundo parâmetros lógicos, racionais
(i. é., um esquema que reflete o modo de operar do intelecto do investigador148) é apresen-
tado como imanente à estruturação da língua. Assim as relações construídas subjetiva-

148
cf. a crítica de Zellig Harris (Review of Trubetzkoy's Grundzüge, Language LSA, XVII, 4.), que consi-
derou excessivamente cerebral o esquema proposto por Trubetzkoy.

101
mente são retiradas do plano da investigação e apresentadas como relações objetivas,
imanentes ao objeto de estudo:

A ordem obtida pela repartição dos fonemas em séries paralelas não existe somente sobre
o papel e não tem simplesmente um valor gráfico. Ela corresponde bem antes a uma rea-
lidade fonológica. (PP, 74)

Desse modo, a estruturação lógica e racional de uma representação teórica possí-


vel do objeto de estudo identifica-se à própria estruturação do objeto em si, e transita do
plano da representação para o plano da realidade. Mais ainda, essas relações passam a ser
objetivamente determinantes, i. é. passam a condicionar a estruturação do próprio objeto:

Os diferentes tipo de oposições condicionam a ordem interna ou a estrutura do inventário


de fonemas como sistema de oposições fonológicas. (PP, 73)

Note-se que o que inicialmente seria uma taxionomia das oposições, portanto um
produto teórico da análise descritiva, é objetivado como um dos componentes determi-
nantes do processo de estruturação do objeto, que, em princípio, teria precedência sobre a
análise. Um dos graves problemas desse processo de objetivação é a atribuição de uma
objetividade às soluções puramente teóricas. Dessa forma, Trubetzkoy define como opo-
sição bilateral aquela cuja “base de comparação (isto é o conjunto de particularidades que
os dois termos da oposição têm em comum) só é própria a esses dois termos e não apare-
cem em nenhum outro termo do mesmo sistema. Ao contrário, a base de comparação de
uma oposição multilateral não se limita exclusivamente aos dois termos da oposição em
questão, mas se estende também aos outros termos do mesmo sistema” (PP, 70). Tru-
betzkoy (ibid.) afirma ainda que essa distinção é “extremamente importante” e que se po-
de determinar de “uma maneira precisa e clara” se uma oposição é bilateral ou multilate-
ral – o que garante a sua objetividade. Contudo, o próprio exemplo dado por ele – a opo-
sição d-n, do francês, definida como bilateral – é contestado por Martinet que propõe pa-
ra este caso uma única oposição bilateral entre o arquifonema da oposição t-d e o fonema
n149. Uma outra decorrência desse trânsito contínuo do plano da representação para o pla-
no do objeto é a impropriedade no emprego de certas categorias. Trubetzkoy afirma que:

Quanto mais um sistema apresenta oposições bilaterais, homogêneas, proporcionais, pri-


vativas e neutralizáveis, mais ele é coerente. Ao contrário, quanto mais as oposições logi-
camente eqüipolentes, as oposições isoladas, as multilaterais, e as heterogêneas dominam
em um sistema, menos esse sistema é coerente. (PP, 88-89)

149
Bulletin de la Société de Linguistique de Paris, XLII, 2, p.27.

102
Pode-se perguntar o que significa nesses casos o termo coerente: Um sistema
mais coerente funciona melhor que um sistema menos coerente? Se não, por que ele mais
coerente do que o outro? É evidente que a categoria coerência se situa no plano da repre-
sentação, é decorrente de seu logicismo racionalista, não pertence ao objeto. Mais do que
isso, evidencia-se a contradição entre a lógica da representação e a lógica do objeto. Com
isso, o que está em questão, agora, é a própria adequação da representação do objeto de
estudo. Pode-se perguntar, assim, se uma representação que reduz o objeto a uma catego-
rização puramente lógica e racional é a mais adequada representação, já que o objeto em
questão, a língua, não se dobra a um esquema puramente lógico e racional150. Em outras
palavras, o que se diz aqui é: a língua e seu processo histórico de estruturação não são
regidos por um sistema lógico e racional, a sua apreensão mais adequada compreende a
interação de diversos fatores outros – históricos, sociais, ideológicos, etc. – que não os
“estritamente lingüísticos”.
Por outro lado, o esquema de apreensão e classificação proposto por Trubetzkoy e
os seus princípios, sendo puramente lógico-racionais, “não contêm nada de especifica-
mente fonológico”. Apenas orientam, ou melhor, indicam o modo de apreensão do obje-
to. “Assim, para que eles possam ser empregados com sucesso na análise de sistemas
concretos de oposições fonológicas, é preciso que eles sejam completados pelos princí-
pios de classificação especificamente fonológicos”. Prosseguindo, Trubetzkoy afirma que
“o que há de específico numa oposição fonológica é o fato de que essa oposição é uma
diferença fônica distintiva”. Esse fato é, ainda segundo Trubetzkoy, de fundamental im-
portância para o que ele chama de “sistema geral das oposições fonológicas” (PP, 94).
Nesse sentido, é preciso “estudar quais particularidades fônicas formam nas diferentes
línguas do mundo as oposições fonológicas distintivas” (PP, 95). Neste momento, Tru-
betzkoy faz uma afirmação que se pode considerar como definidora de todo o desenvol-
vimento da moderna fonologia. Ele propõe a fusão dos “conceitos lógicos” acima referi-
dos com “os conceitos acústicos e articulatórios, isto é os conceitos fonéticos” (PP, 95).
Trubetzkoy distribuirá as particularidades fônicas distintivas por três classes: vo-
cálicas, consonânticas e prosódicas, para em seguida classificá-las com base em suas ca-
racterísticas acústico-articulatórias, dentro do esquema racional do sistema de oposições
acima referido. Mas só as duas primeiras classes – as vocálicas e as consonânticas – são
decisivas, já que “não há nenhum fonema que consista exclusivamente de particularida-
des prosódicas” (PP, 96). Essa classificação põe em questão as noções de vogal e conso-

150
cf. a afirmação do próprio Trubetzkoy (PP, 95): “nous avons opéré avec des concepts purement logi-
ques.”

103
ante, que Trubetzkoy definirá em termos da articulação desses sons no aparelho fonador
da seguinte maneira:

A característica de uma consoante é o estabelecimento de um obstáculo e a superação


deste obstáculo, ao passo que a característica de uma vogal é a ausência de obstáculo ou
impedimento. (PP, 97-98)

A definição dessas noções fundamentais para a fonologia em termos articulatórios


revela mais uma vez uma perigosa dependência dessa disciplina em relação à fonética.
Uma tentativa de superar essa incômoda dependência seria a de tomar essas noções em
relação à estrutura da sílaba; sendo as vogais os fonemas que podem funcionar como cen-
tro de sílaba, e as consoantes os fonemas que, ao contrário, não aparecem no centro da
sílaba. Essa definição, porém, também apresenta os seus problemas, pois haveria fonemas
que seriam consonânticos ou vocálicos, a depender da língua em que se os observasse.
Tal é o caso da líquida, que pode funcionar como centro da sílaba em inglês (ex.: botle
/botl/), e nunca o faz em português, por exemplo. Além disso o conceito de sílaba tam-
bém tem uma base fonética; e, em alguns casos – como no caso do armênio –, é um con-
ceito puramente fonético (cf. PP, 201).
Uma solução mais audaciosa foi tentada por Louis Hjelmslev. Para ele as vogais
seriam os fonemas que pudessem sozinhos constituir uma palavra ou unidade significati-
va151. Essa definição foi depois ampliada para os fonemas capazes de constituir por si
mesmos um enunciado ou que no interior de uma sílaba admitissem as mesmas combina-
ções que esse fonema152. De uma forma ou de outra, tal solução é, contudo, insustentável,
como afirma o próprio Trubetzkoy:

Assim, segundo a definição de Louis Hjelmslev, de um lado, as breves alemãs u, ü, i, a, e


devem ser consideradas como consoantes, e de outro lado o s alemão e todos os fonemas
que participam das mesmas combinações (isto é, praticamente todas as consoantes) de-
vem ser consideradas como vogais. (PP, 97)

E Trubetzkoy (ibid.) fecha a questão da seguinte maneira:

“Vogal” e “consoante” são conceitos fônicos, isto é acústicos, e só podem ser definidos
como tais. Toda tentativa de descartar ou para evitar os conceitos acústicos-articulatórios
na definição das vogais e consoantes deve necessariamente malograr. [grifo do original]
Assim, Trubetzkoy vai constituir o programa teórico da moderna fonologia: a par-
tir das características acústico-articulatórias dos sons da linguagem, constrói-se um siste-
ma regido por parâmetros lógicos e racionais, ditados pelo investigador, e apresentado

151
“On the principles on phonematics”, Proceedings of the Second International Congress of Phonetic Sci-
ences, 1935, 52.
152
HJELMSLEV, L. “Accent, intonation, quantité”, Studi Baltic, VI, 1936-37, 27.

104
como sendo objetivamente o sistema fonológico unitário da língua investigada; um siste-
ma que se dobra apenas a sua lógica própria, imanente. Não obstante todo o desenvolvi-
mento formal por que passou esse modelo básico sintetizado por Trubetzkoy, a fonologia
sempre se definiu por esses dois pólos: de um lado, uma base excessivamente fonética
para a sua pretensão de disciplina autonomamente lingüística; e, de outro, o esquema
eminentemente racional e logicista, no qual se encerra toda a apreensão do objeto de es-
tudo.

A análise por traços distintivos: a objetividade da análise fonológica e o


seu estatuto lingüístico

Dos lingüistas do Círculo de Praga, foi Jakobson aquele que mais se dedicou ao
desenvolvimento formal do modelo de análise da fonologia. Um dos mais significativos
avanços nesse sentido foi a passagem de uma análise que se fundamenta no fonema e na
oposição distintiva para uma outra que elege como sua unidade primária os traços (ou
propriedades) distintivos dos fonemas.
Trubetzkoy ainda se encontrava preso à idéia consagrada nos primeiros congres-
sos de fonologia de que o fonema é uma unidade indecomponível153 e o toma juntamente
com o conceito oposição distintiva como a unidade básica do seu modelo de análise. Ja-
kobson (1967 [1939]: 41) questionou essa posição da seguinte maneira:

Tem-se considerado a diferenciação entre os fonemas, a sua oposição distintiva,


como o ponto de partida, o fundamento da doutrina fonemática. Tal diferenciação exige,
porém, da nossa percepção um esforço tremendo, uma vez que não está associada a uma
determinada diferenciação significativa. É de esperar assim que o número desses valores
elementares imotivados deva ser relativamente limitado.

E, tomando o exemplo do turco osmanli, que possui um sistema vocálico de oito


unidades (/o/ /a/ /ö/ /e/ /u/ /ï/ /y/ /i/), desenvolve a seguinte argumentação:

Esses fonemas formam entre si 28 distinções binárias. Se essas distinções fos-


sem realmente primárias e irredutíveis, e os fonemas propriamente ditos elementos se-
cundários, derivados, seria estranho assim se apresentarem os valores primários em nú-
mero muito maior do que os valores daí derivados. Achamo-nos, pois, diante de uma no-
va contradição evidente. É que a hipótese que acabamos de estabelecer é falsa: os fone-
mas /o/, /a/, /ö/, /e/ situam-se em face dos fonemas /u/, /ï/, /y/ [ou /ü/], /i/ como sons aber-
tos em face de sons fechados; os fonemas /o/, /u/, /a/, /ï/ em face dos fonemas /ö/, /y/, /e/,

153
“Les unités phonologiques qui, au point de vue de la langue en question, ne se laissent pas analyser en
unités phonologiques encore plus petites et successives, nous les appellerons des phonèmes.” (PP, 37) [itá-
lico do original]

105
/i/ como posteriores em face de anteriores; e os fonemas /o/, /u/, /ö/, /y/ em face dos fo-
nemas /a/, /ï/, /e/, /i/ como arredondados em face de não-arredondados.
As múltiplas diferenças vocálicas do turco osmanli, em número de 28, resolvem-
se, pois, em três oposições básicas: a da articulação aberta em face da fechada, a da arti-
culação posterior em face da anterior, e a da articulação arredondada em face da não-
arredondada. Por meio desses três pares de propriedades distintivas indecomponíveis é
que se constroem todos os oito fonemas vocálicos do turco osmanli. (ibid.: 42-43)

E conclui com a seguinte generalização:

De maneira geral, todos os fonemas de todas as línguas – quer vogais, quer con-
soantes – se resolvem fatalmente em qualidades distintivas irredutíveis e de larga ampli-
tude. Não são os fonemas, mas essas qualidades distintivas, que vêm a ser os elementos
primários de toda a fonologia léxica. (ibid.: 43)

Com essa substituição dos fonemas, definidos pelas oposições distintivas, pelas
qualidades distintivas, ou traços distintivos, como unidades básicas da análise fonológica,
Jakobson crê se superarem alguns dos problemas com que se debatia a fonologia. Um de-
les é o de enquadrar as unidades fonológicas em oposições que se ajustassem ao princípio
de que todo o termo de uma oposição evoca sempre e imediatamente o seu oposto154.
Com isso – afirma ainda Jakobson (1967 [1949]: 57) –, a fonologia se reconciliaria mais
uma vez com a doutrina saussuriana:

Só quando é trazida para o plano dos traços distintivos é que a análise lingüística
nos permite comprovar a asserção cardeal de Saussure, que considera as unidades fonê-
micas antes e acima de tudo “entités oppositives”.

Uma outra questão que Jakobson pensa poder superar através desse avanço formal
é a da identificação das unidades fonológicas por “meios estritamente lingüísticos”. Essa
questão, que é crucial para a pretensão da fonologia em afirmar a sua “autonomia lingüís-
tica” diante da fonética, foi exposta de maneira bem nítida por Hjelmslev, que apesar de
não participar do Círculo de Praga, teve uma atuação destacada nos debates fonológicos
durante a década de 30. Afirma Hjelmslev:

Se os fonemas são elementos lingüísticos, segue-se que não é possível definir correta-
mente um fonema a não ser por critérios lingüísticos, isto é, por meio de sua função na
língua. Nenhum critério extralingüístico pode ser relevante, seja ele físico ou fisiológico
ou psicológico.155

154
“As oposições entre as propriedades distintivas são, com efeito, oposições binárias lógicas, e cada mem-
bro de uma dessas oposições pressupõe necessariamente o membro oposto. Não há como pensar em abertu-
ra sem fechamento, em articulação posterior sem articulação anterior, em arredondamento labial sem falta
de arredondamento; e assim por diante.” (ibid.)
155
“On the identification of phonemic Entities”, Travaux du Cèrcle Linguistique de Copenhague, 1949, pp.
205-213.

106
Nesse sentido, Jakobson afirma que, muitas vezes, na análise fonológica, se “da-
va, da maneira mais óbvia, um salto paralógico, passando da análise lingüística pura para
a matéria sônica em seu estado bruto” (1967 [1949]: 54-5). Para ele, esta dificuldade es-
tava associada ao fato de a fonologia “tratar o fonema como unidade lingüística mínima
(não suscetível de divisão)” (ibid: 56). Com isso, não se podia proceder a uma caracteri-
zação dos fonemas seguindo-se uma metodologia lingüística. O investigador chegava até
o fonema através do método lingüístico da comutação, mas daí para adiante, passava-se
às características acústico-articulatórias sem a sustentação de uma metodologia eminen-
temente lingüística. Era preciso estender à caracterização dos fonemas a metodologia que
se havia empregado na sua delimitação dentro da estrutura lingüística. Para Jakobson, is-
so só seria possível através da decomposição dos fonemas nos traços distintivos de que
eles eram constituídos:

Ora, assim como os fonemas de uma língua dada formam um sistema de seqüências,
também por sua vez o sistema de fonemas é formado dos constituintes desses fonemas,
que são os traços distintivos. E a divisão dos fonemas em seus traços distintivos se faz
necessariamente pelo mesmo processo, já comprovado para a divisão dos morfemas em
fonemas. Estudando as comutações possíveis, obtemos, por exemplo, um “paradigma”
fonêmico /bu/ ‘boue’: /mu/ ‘mou’: /pu/ ‘pou’: /vu/ ‘vous’: /du/ ‘doux’: /gu/ ‘goût’, e as-
sim chegamos à conclusão que o fonema b em /bu/ se pode decompor em cinco elemen-
tos comutáveis: b/m, b/p, b/v, b/d, b/g. Confirmamos essa conclusão, examinando o
mesmo fonema em outros contextos. (...). Desse modo, tornam-se explícitos os traços dis-
tintivos que constituem os fonemas consonantais franceses: nasalidade vs. ausência de
ressonância nasal; emissão tensa vs. frouxa; emissão contínua vs. interrupta; emissão gra-
ve vs. aguda; saturação máxima vs. saturação mínima. (ibid.: 56-57)

Contudo, a decomposição dos fonemas por traços distintivos não evita a sua ca-
racterização por aspectos fonéticos. Jakobson argumenta que as característica acústico-
articulatórias dos fonemas não são tomadas como grandezas físicas, mas por seu valor
semiótico, já que, “dissociando o fonema em traços distintivos, isolamos os constituintes
lingüísticos últimos providos de valor semiótico”. A partir de seu valor semiótico, essas
características perderiam o seu caráter fisiológico e se integrariam no plano da cultura,
isto é da língua:

Tem de se admitir que a língua pertence sem menor dúvida ao domínio da cultu-
ra e que, portanto, um elemento mínimo provido de valor semiótico é uma manifestação
de cultura; por exemplo, o “papel funcional” representado pela oposição entre consoante
sonora e consoante surda em serbocroácio.
(...) a glote é capaz de produzir múltiplas cambiantes em matéria de sonoridade
consonântica, mas só a oposição “presença vs. ausência de sonoridade” é utilizada para
diferenciar significações vocabulares.
Como o material sônico de uma língua é matéria organizada e formada para ser-
vir de instrumento semiótico, não só a função significativa dos traços distintivos mas a
sua própria essência fônica é um artefato cultural. (ibid.: 59-60)

107
Da mesma sorte, a estruturação fônica em oposições dicotômicas que seria um
produto da consciência lingüística do falante também acentuaria essa clivagem entre a
natureza e a cultura, já que, “onde a natureza só oferece uma porção indefinida de varie-
dades contingentes, a intervenção da cultura faz surgir pares de termos opositivos. No
material sonoro em estado bruto não há oposições . É o pensamento humano, conscien-
te ou inconsciente, que extrai daí as oposições binárias para seu uso fonêmico” (ibid.:
60). E Jakobson faz inclusive uma comparação com música:

Da mesma sorte que a música impõe ao material sonoro uma escala graduada, também a
língua lhe impõe a escala dicotômica, que é simplesmente o corolário do papel puramente
diferencial desempenhado pelas entidades fonêmicas. (...), se se for medir o material so-
noro sem referência à regra dicotômica que a língua lhe impõe, a conclusão vai ser que
há desbordamento [ing. overlapping] de fonemas, da mesma sorte que um físico, com
seus instrumentos acústicos (...) é incapaz de explicar porquê, numa dada peça musical,
um Sol-bemol e um Lá representam dois valores diferentes. (ibid.: 61-62)

Mas a solução da análise por traços distintivos também se depara com algumas di-
ficuldades. Uma das mais imediatas é a de reduzir a oposições binárias as distinções das
consoantes pelo ponto de articulação; o que é admitido pelo próprio Jakobson (1967
[1939a]: 66). Em geral, as línguas apresentam uma série de pontos de articulação fonolo-
gicamente pertinentes que, por exemplo, no português, compreende as consoantes labiais,
as dento-alveolares, as palatais e as velares. Ao se pôr o problema, Jakobson (ibid.: 67-
74) consegue reduzir a classificação das consoantes pelo ponto de articulação a um es-
quema de oposições binárias. Porém, mais uma vez, o que se faz é montar dentro de pa-
râmetros lógicos um esquema racional fundamentado nas características acústico-
articulatórias dos fonemas como podemos observar na seguinte passagem:

(...) as velares e labiais recebem a qualidade que as caracteriza de um ressoador


bucal longo e indiviso; ao contrário, para as palatais e dentais, a língua divide a cavidade
bucal em duas curtas caixas de ressonância. Além disso, (...) a faringe se estreita para as
velares e as labiais, alargando-se ao contrário para as palatais e dentais correspondentes.
É, da mesma sorte, uma diferença específica que opõe as velares e as palatais,
figurando nestas últimas as chiantes, em face das labiais e das dentais. Se reunirmos as
primeiras sob o nome de posteriores e as segundas sob o de anteriores, podemos enunciar
a seguinte fórmula: o ponto de articulação, para as posteriores, é atrás e, para as anterio-
res, é antes da caixa de ressonância única ou da caixa de ressonância predominante.
(ibid.: 67-68)

Assim, tanto no modelo de análise fundamentado nos fonemas como no modelo


que se apóia nos traços distintivos, a base fonética em que se tem apoiado a fonologia é
indisfarçável. A análise por traços distintivos não passa, pois, de uma nova formalização
que se faz a partir das características acústico-articulatórias dos sons da linguagem. A
pretensão da fonologia de prescindir dessa base fonética nunca se consumou. Pode-se

108
mesmo perguntar se poderia ser diferente em face do objetivo a que sempre se propôs es-
ta disciplina: estudar os sons da língua a partir do modo em que se distinguem entre si, e
construir estruturas com base nisso. Pode-se perguntar ainda se, de fato, esse estudo é
muito lingüístico. Seria, para retomar a comparação de Jakobson, como se o estudo da
música se restringisse à construções de sistemas racionalmente estruturados a partir da
maneira como as notas e os acordes se distinguem entre si, ou de como essas notas e es-
ses acordes são executados nos diversos instrumentos. Esse quadro se torna ainda mais
grave se observamos que foi exatamente na fonologia que o Estruturalismo Lingüístico
mais se desenvolveu. A proposição de Trubetzkoy de que a fonologia deveria “empregar
os métodos que são utilizados para estudar o sistema gramatical de uma língua” (PP, 12)
não foi posta em prática. Ironicamente, ocorreu exatamente o contrário: para o estudo dos
demais níveis da língua, a Lingüística Estrutural se inspirou no modelo desenvolvido na
fonologia.

Sistema lingüístico ou sistema fonológico?

Mas todo o investimento do Estruturalismo na fonologia e a primazia dessa disci-


plina nos trabalhos dessa corrente da Lingüística não constituem um fato que se deve ao
acaso, ele possui uma razão mais profunda e tem um significado que nos permite elucidar
os desígnios mais íntimos do modelo teórico estruturalista. Através da fonologia, o Estru-
turalismo, no período que se estende grosso modo do final da década de 20 ao final da
década de 50, logrou uma hegemonia na ciência da linguagem em torno de suas concep-
ções fundamentais, quais sejam: a língua como princípio unificador e ordenador da lin-
guagem; a língua como um sistema de relações objetivas que só se dobra a sua ordem in-
terna imanente; a autonomia da análise lingüística; e a unidade da língua, constituída por
elementos e regras invariantes, em face da variação e diversidade da fala.
A passagem dos sons da linguagem aos sons da língua (os fonemas), que corres-
ponde a passagem do conhecimento fenomenológico ao conhecimento objetivista, é tam-
bém a passagem do caos da apreensão imediata à ordem de uma apreensão mediatizada
por sua referência à estrutura lingüística. Os sons da linguagem, tomados em bruto, cons-
tituem, como a própria linguagem – para recordar a expressão de Saussure – um conjunto
heteróclito que não se deixa apreender pelo observador, ou melhor, que conduz esse ob-
servador, que se mantém no nível de uma apreensão fisiológica-naturalista, ao labirinto
de suas infindáveis possibilidades de apreensão, já que, como observou Bloomfield
(1933: 76), a fala constitui um continuum em cuja delimitação as partes podem se multi-

109
plicar consoante a maior precisão do equipamento utilizado. A referência à estrutura da
língua, e por conseguinte a constituição do sistema fonológico possibilitam ao investiga-
dor não apenas delimitar o seu objeto de estudo, como ordená-lo, tornando-o, assim,
apreensível.
A grande importância da fonologia para o Estruturalismo está, pois, no fato de ter
sido a fonologia o único nível de estudo da língua em que a concepção de sistema homo-
gêneo e unitário se colocou, de forma tão transparente, como o princípio unificador e or-
denador do objeto de estudo, e por conseguinte da própria análise lingüística – a sistema-
ticidade do objeto determinou a sistematicidade da análise, para recordar a observação de
Tulio de Mauro (1972: IX). O fonema, unidade invariante, se sobrepõe à multiplicidade
de realizações de cada som da linguagem; mais ainda, tanto o fonema quanto todo o in-
ventário de fonemas de uma língua são determinados e se estruturam no conjunto de rela-
ções objetivas que se estabelecem no sistema fonológico da língua; desse modo, em seu
nível fônico, toda a atividade lingüística deve ser considerada em relação ao sistema fo-
nológico. O sistema fonológico é, portanto, a mais completa tradução, ao nível da análise
concreta dos fatos lingüísticos, da concepção axial da língua como um sistema homogê-
neo e unitário.
O Estruturalismo Lingüístico nunca logrou, no estudo de uma língua, formalizar,
com o mesmo nível de implicação, um sistema morfológico, sintático, lexical ou semânti-
co, que, juntamente com sistema fonológico, deveriam formar o sistema lingüístico em
seu conjunto. A complexidade da estruturação morfossintática e das relações de signifi-
cação não permitiram a redução que se operava no nível fonológico. O estudo dos sons da
linguagem, sendo o nível mais imediato de apreensão do objeto da Lingüística, não ape-
nas permitia – pelo menos, aparentemente – essa sorte de redução, determinada pelo pro-
jeto de formalizar um sistema unificador e ordenador de toda a atividade lingüística, co-
mo também conferia a esse projeto, dentro dos critérios de verificação então vigentes, o
seu estatuto de objetividade.

Objetividade e concretitude na Fonologia Estrutural

A noção de objetividade é crucial para a concepção da língua como sistema de re-


lações objetivas, e igualmente importante para a compreensão do Estruturalismo enquan-
to modo de conhecimento científico. A representação sistêmica, ou estrutural, da língua

110
não se apresenta como uma construção teórica possível, mas como uma manifestação do
objeto em si. A estrutura não é, portanto, uma construção do processo cognitivo, mas sim
parte do objeto, ou melhor o cerne desse objeto. A estrutura existe per se, no objeto, cabe
ao investigador tão somente desvelar essa estrutura156.
Assim, a lógica que preside a análise e a representação se converte na lógica in-
terna ao objeto, e toda a estruturação do objeto se dobra unicamente a essa lógica imanen-
te. Pode-se então inverter os termos da afirmação de Tulio de Mauro (1972: IX): não é a
sistematicidade do objeto que se impôs à análise, e sim a sistematicidade da análise que
se impôs ao objeto – através de um raciocínio evidentimente hipostático. Isso não implica
dizer que a linguagem não apresente uma dimensão sistêmica; o que se quer dizer aqui é
que a lógica da sistematicidade que o Estruturalismo atribuiu ao objeto em si é, na reali-
dade, a lógica que preside a sua análise: não se trata de uma lógica imanente à estrutura
lingüística, mas uma lógica imanente ao Estruturalismo Lingüístico. Por outro lado, qual-
quer consideração da língua que não seja imanentista – torna-se adventícia, ou não pro-
priamente lingüística, diante dessa absoluta identificação formal entre a representação do
objeto e o objeto da representação157.
Mas, como essa pretensão à objetividade do Estruturalismo Lingüístico pode
manter-se diante da comprovação de que não existe apenas uma única representação
possível da língua como um sistema de relações objetivas, mas várias, consoante os obje-
tivos e os parâmetros assumidos pelo investigador (i. é. a perspectiva adotada pelo lin-
güista)? Se a língua constitui um sistema homogêneo e unitário que unifica e ordena toda
a atividade lingüística, a representação desse sistema que se pretende objetiva também
deve ser única. Tal pretensão objetivista é seriamente abalada quando a representação do
sistema fonológico e a própria definição do inventário de fonemas de uma língua são
questionadas quanto à sua unicidade. É exatamente isso o que o lingüista chinês Yen Ren
Chao (1971 [1934]) faz. Para ele, “em uma língua dada, não há necessariamente uma úni-
ca solução para o problema da redução dos seus sons em elementos” (p. 54). Com isso,
Chao questiona a idéia, inerente às definições correntes de fonema, de que “é possível
enumerar exaustivamente o número total de fonemas de uma língua dada” (p. 40). Qual-
quer solução fonológica para uma língua dada é na realidade parcial e determinada pelo
ponto de vista do observador, o que é demonstrado pela pluralidade das soluções possí-

156
Cf. Hockett (1971 [1948]: 280): “Para o cientista, ‘estrutura lingüística’ remete a alguma coisa que exis-
te totalmente independente das atividades do analista: uma língua é o que é, se estudada e analisada pelo
lingüista, ou não.”
157
É interessante observar mais uma vez como o modelo teórico hegemônico exclui do campo de investiga-
ção da disciplina as questões que extrapolam os limites estabelecidos, a partir de sua concepção do objeto
de estudo (cf. Capítulo III).

111
veis, pois, “dados os sons de uma língua, há usualmente mais do que uma maneira de re-
duzi-los a um sistema de fonemas” (p. 38).
Para Chao (p. 46-50), os parâmetros que orientam a constituição do inventário de
fonemas são fundamentalmente relativos à economia interna do esquema utilizado na
análise, o que se traduz, por exemplo, na observação da simplicidade ou simetria da solu-
ção adotada. E “conforme nós enfatizamos este ou aquele motivo, nós podemos chegar a
um diferente sistema de organização dos elementos em fonemas” (id., ibid.: 46). Mesmo
a função distintiva dos fonemas – capital para a fonologia – é posta em causa por Chao,
quando ele afirma que “muitos sons de uma língua não são distintivos nem não-
distintivos per se, mas dependem do modo particular do nosso tratamento fonológico”
(ibid.: 51).
O artigo de Chao questiona de forma crucial o estatuto de objetividade que a fo-
nologia estrutural se arroga, inclusive diante do tratamento fonético dos sons. Um trata-
mento meramente fonético não é capaz de solucionar a questão da delimitação dos sons
na cadeia da fala, na medida em que, quanto mais sofisticados forem os aparelhos empre-
gados, maior será o número de distinções a serem consideradas. A fonologia estrutural,
por acreditar esgotar a questão através de sua referência ao sistema da língua, se coloca
como o tratamento mais objetivo da questão. Porém, essa passagem da fonética à fonolo-
gia estrutural constitui mais um avanço em termos da apreensão e da representação do
objeto de estudo, do que de um tratamento menos objetivo para um mais objetivo. Nesse
sentido podemos concordar com Chao, quando ele, ao falar sobre o problema da transcri-
ção dos sons, afirma: “não podemos dizer, (...), que a transcrição fonética é mais subjeti-
va e que a transcrição fonológica é a mais objetiva. Nós já vimos como as transcrições
fonológicas não são únicas, e nesta medida subjetivas”. (ibid.: 52)
Para entender melhor a questão, é preciso explicar como se dá a passagem da
apreensão fonética à apreensão fonológica. A fonética analisa os sons da linguagem atra-
vés de suas manifestações mais imediatas, isto é, através da maneira pela qual são articu-
lados no aparelho fonador, se propagam pelo ar e são percebidos pelo aparelho auditivo.
A primeira determinação que a fonologia sobrepõe a essa apreensão mais imediata é dada
pela função distintiva dos sons da linguagem; com isso, a apreensão das diferenças acús-
tico-articulatórias dos sons de uma língua é mediada pela consideração da função distin-
tiva exercida por esses sons na língua. Por outro lado, esses sons com valor distintivo es-
truturam-se em um sistema que existe por sua função de comunicação, o que, por sua vez,
implica novas determinações, ou mediações na apreensão do objeto, quais sejam: as rela-
ções entre esses sons e o modo pelo qual eles se combinam para formar as unidades co-
municativas. Portanto, a passagem da fonética à fonologia implica, não uma passagem de

112
uma apreensão menos objetiva para uma mais objetiva, mas a passagem de uma apreen-
são mais imediata e superficial, para uma apreensão mediatizada, profunda, e mais abran-
gente; o que, no nosso entender, se traduz pela expressão mais concreta.
Assim, a noção de objetividade entendida como identidade formal entre o objeto
da representação e a representação do objeto não se sustenta; em primeiro lugar, pela pre-
sença de fatores que interferem na apreensão do objeto e que, portanto, comprometem
essa pretensão objetivista158; em segundo lugar – e o que é o mais importante –, porque a
representação do objeto mobiliza uma série de concepções e formulações teóricas que
podem e devem ser discutidas como tais. Com base nessas concepções, o sujeito do co-
nhecimento não apenas seleciona as determinações, como também as integra em seu es-
quema de representação. É também através dessas concepções que essa abordagem se
define como um modo particular do conhecimento. Em outras palavras, as concepções
acerca do real e as concepções acerca do modo de sua formalização em termos cognitivos
estão dialeticamente relacionadas.

Em questão a unidade e a homogeneidade do sistema fonológico

Na representação do objeto de estudo do modelo fonológico do Estruturalismo,


atuam diversas categorias: o conceito de fonema e o seu valor distintivo dentro de uma
língua dada; a concepção de língua como um conjunto de relações opositivas e estrutu-
rantes; e a sua função (de comunicação) na sociedade. Na relação entre as concepções
acerca do objeto e as concepções acerca do próprio modo do conhecimento, destaca-se,
em primeiro lugar, a íntima ligação da concepção da língua como uma estrutura que se
rege por sua lógica interna, imanente, com a busca da análise fonológica em se afirmar
como uma análise “estritamente lingüística”.

158
Chao (ibid.: 53) também nos oferece um significativo exemplo desses fatores, ao tratar do conceito de
fonema típico: “[typical phonemes have been] defined as those groups of sounds which very often go to-
gether to form phonems in many of the major languages studied by phoneticians. This definition of course
makes the idea of a typical phoneme depend again on historical accident, the fact that most contemporary
phoneticians are speakers of the Germanic and Romance languages. Thus, for a broad transcription using
typical phonemes, a European would group [p] and [p`] under one typical phoneme, as against [b], while an
unsophisticated Chinese phonetician would most likely group [p] and [b] under one typical phoneme as
against [p`].”
Em Jakobson, Fant e Halle (1952: 10), temos um outro exemplo da interferência desses fatores,
por assim dizer, subjetivos: “Even as expert a linguist as the Frenchman Meillet perceived the Russian
sharpened /t/ as a sequence of /t/ and non-syllabic /i/ and not as a consonant with simultaneous superposed
sharpening (palatalization), for Meillet's judgment was based on his native French, which lacks the sharpen-
ing feature but possesses the non-syllabic /i/.”

113
A pretendida autonomia da fonologia frente à fonética traduz uma tentativa de
demonstrar a autonomia da estrutura fonológica frente à realidade acústico-articulatória.
E a tentativa de explicar a estruturação fonológica da língua exclusivamente pela lógica
interna do sistema traz subjacente a concepção de que o fato lingüístico é igualmente in-
dependente das relações que se estabelecem entre os indivíduos na atividade lingüística
concreta. E mais uma vez estão aí nitidamente presentes os princípios saussurianos: a
análise lingüística “supõe que eliminemos [da língua] tudo que lhe seja estranho ao orga-
nismo, ao seu sistema, numa palavra: tudo quanto se designa pelo termo ‘lingüística ex-
terna’”; e “a língua é um sistema que conhece apenas a sua ordem própria”159.
A afirmação da autonomia de uma ordem imanente à língua e o caráter homogê-
neo e unitário do sistema lingüístico estão intimamente ligados. A eliminação, através de
uma operação teórica, da heterogeneidade que caracteriza a fala (ou seja, da variação pre-
sente na atividade lingüística concreta) é a um só tempo condição e resultante da formali-
zação da língua como um sistema homogêneo e unitário. A consideração da heterogenei-
dade da fala a fortiori conduziria a uma análise que abrangesse os chamados fatores ex-
ternos. Desse modo, haveria que buscar fora do sistema as razões para a variação lingüís-
tica. Diante disso, a redução da realidade fônica a um único sistema fonológico invariante
é, por assim dizer, a clef de voute de toda a fonologia estrutural, pois a consideração da
variação lingüística extrapola o sistema fechado de relações estruturantes que caracteriza
a concepção estruturalista de língua como sistema e conduz a análise para a disposições
nas quais esse sistema de relações estruturantes se atualiza, o que romperia com os limites
impostos pela análise estruturalistas.
Entendendo o Estruturalismo como o modo objetivista do conhecimento, pode-se
pensar a superação desse modo do conhecimento em função de um modo do conhecimen-
to definido por Bourdieu (1983 [1972]) como praxiológico. Uma tal apreensão do objeto
de estudo integra, não apenas as relações objetivas em que a língua se estrutura, mas as
disposições estruturadas em que ocorre o seu processo de estruturação enquanto objeto
cultural e histórico. Ao conceber o estudo da linguagem como o estudo da língua, enten-
dida como um sistema fechado de relações que se pretendem objetivas, o objetivismo re-
duz o elenco das determinações consideradas àquelas relativas ao funcionamento e à ló-
gica imanente à língua como sistema. Fundamentado em uma concepção mais abrangente
e globalizante – uma concepção que podemos definir também como dialética –, o modo
praxiológico do conhecimento busca ampliar as determinações consideradas na apreensão
do objeto, estendendo o processo de estruturação da língua às relações que a língua man-

159
Curso: 29, 31.

114
tém com a estrutura social. Podemos, então, resgatar a formulação de Bourdieu (1983
[1972]:48) de que “o conhecimento praxiológico não anula as aquisições do conhecimen-
to objetivista, mas conserva-as e as ultrapassa, integrando o que esse conhecimento teve
que excluir para obtê-las”.
Porém, o conhecimento praxiológico não pode, e não deve, ser entendido como
uma mera continuidade do conhecimento objetivista, o resultado de uma progressão line-
ar. A passagem de um modo do conhecimento ao outro implica, não apenas uma mudan-
ça nas concepções fundamentais acerca do objeto de estudo, como também uma mudança
na atitude do sujeito do conhecimento, do modo de conceber o próprio processo cogniti-
vo. Em uma palavra, essa mudança implica ruptura160.
No capítulo seguinte, será focalizada a maturação das condições dessa ruptura no
desenvolvimento do Estruturalismo, analisando-se o modo como esse modelo teórico
tentou superar a contradição entre mudança e sistema estabelecida por Saussure.

160
Ainda cf. Bourdieu (ibid.): o conhecimento praxiológico “supõe uma ruptura com o modo de conheci-
mento objetivista, quer dizer, um questionamento das condições de possibilidade e, por aí, dos limites do
ponto de vista objetivo e objetivante que apreende as práticas de fora, enquanto fato acabado, em lugar de
construir seu princípio gerador situando-se no próprio movimento de sua efetivação.”

115
CAPÍTULO V

A MUDANÇA NO DOMÍNIO DO SISTEMA:


DESENVOLVIMENTO E CRISE DO MODELO

Quando surgem as primeiras proposições do Círculo de Praga de uma apreensão


estrutural da diacronia, o cenário da Lingüística européia estava dividido em dois cam-
pos: de uma parte, a Lingüística sincrônica, com a predominância da concepção estrutural
da língua como sistema; de outra parte, estava a Lingüística Histórica, que se fundamen-
tava ainda nas concepções fundamentais dos neogramáticos, depuradas de suas exacerba-
ções iniciais, as quais tinham sido alvo de contundentes ataques, na virada do século, em
particular, os oriundos da Geografia Lingüística. O primeiro campo era ocupado basica-
mente pela Escola de Genebra, formada por estudiosos que se podem definir como discí-
pulos diretos de Saussure. Esses, coerentes com os ensinamentos do seu mestre, defendi-
am, ou praticavam, com exclusividade, a análise sincrônica161. No outro campo, encontra-
vam-se os praticantes da já tradicional Lingüística Histórica, refratários às formulações
de Saussure (principalmente, à sua dicotomia sincronia e diacronia) e que continuavam
empregando os esquemas da filologia e da Geografia Lingüística pré-saussurianas, vol-
tando-se para a edição crítica dos textos antigos, para o estabelecimento de etimologias e
correspondências regulares, e para a definição do percurso das “leis fonéticas”, com base
nos testemunhos históricos, nos resultados dos estudos comparativos e nos materiais ob-
tidos na pesquisa dialetal, levada a cabo segundo a metodologia desenvolvida no início
do século XX162.
A meio do caminho, instalaram-se aqueles, de quem falaremos agora, que enten-
diam que a concepção estrutural da língua se aplicava tanto ao domínio da análise sincrô-

161
cf., nesse sentido, a seguinte afirmação de Martinet (1955: 16): “De fato, a maior parte dos ‘estruturalis-
tas’ se interessa muito pouco pela evolução lingüística: alguns, conscientemente ou não, aderem ao ponto
de vista saussuriano segundo o qual os métodos estruturais só podem aplicar-se à Lingüística estática já que
só há estrutura na sincronia”.
162
cf., ainda, as seguintes queixas de Martinet (ibid.: 14): “hoje ainda a maior parte daqueles que se ocupam
da evolução lingüística se interessam muito mais pelo estabelecimento de séries de correspondências regu-
lares que pela explicação causal das próprias mudanças. (...). Se nos contentamos simplesmente em estabe-
lecer ‘leis fonéticas’, nos encontramos diante de problemas que qualquer um pouco dotado e bem formado
pode resolver (...). Ao limitar nossas pretensões, somos portanto capazes de cumprir integralmente o nosso
programa. Como só operamos com fatos observáveis, a verificação é sempre possível, o que está em con-
formidade com o ideal científico. No essencial, este é o método praticado pelos neogramáticos, e continua
sendo o método de um bom número de lingüistas entre os melhor informados e os mais produtivos.”

116
nica, quanto ao domínio da análise diacrônica. Essa corrente da Lingüística, denominada
Estruturalismo Diacrônico, encontrará, no Texto das Teses do Círculo de Praga de 1929,
uma de suas primeiras e mais significativas manifestações:

A concepção da língua como sistema funcional deve ser levada também em consideração
no estudo dos estados lingüísticos passados, quer se trate de reconstruí-los, quer se trate
de constatar a sua evolução. (TCLP1: 82)

Destacando dentro da concepção estrutural da língua, a noção de funcionalidade,


os lingüistas do Círculo defendem a necessidade de se levar a análise estrutural ao domí-
nio da diacronia. Nesse sentido, o primeiro obstáculo a ser atacado era a concepção ato-
mística e mecanicista da mudança dos neogramáticos (em sua essência aceita por Saussu-
re, e até então hegemônica):

O estudo comparativo da evolução das línguas eslavas destrói paulatinamente a


idéia de um caráter fortuito e incidental da evolução convergente e divergente que se
manifestou na história dessas línguas. (...).
Oferecendo, de uma parte, materiais preciosos para a Lingüística e enriquecen-
do, de outra, a história das diferentes línguas eslavas em particular, o estudo comparativo
rejeita definitivamente o método estéril e fictício dos fatos isolados, revela as tendências
fundamentais do desenvolvimento de uma língua ou outra (...).
Nas ciências evolutivas, entre as quais figura também a Lingüística, observamos
que a concepção dos fatos produzidos arbitrariamente e ao acaso - ainda que se realizem
com uma regularidade absoluta - cede lugar à noção do encadeamento segundo as leis
dos fatos evolutivos (nomogênese). Por essa razão, verificamos também que, na explica-
ção das mudanças gramaticais e fonológicas, a teoria da evolução convergente relega a
um segundo plano a concepção da expansão mecânica e fortuita. [Os grifos são meus]
(TCLP1: 83-84)

As posições dos neogramáticos não eram os únicos obstáculos que os lingüistas


do Círculo tinham que enfrentar. No próprio campo do Estruturalismo, a posição até en-
tão existente lhes era também adversa. A Escola de Genebra, seguindo ortodoxamente as
posições de Saussure, não reconhecia o caráter sistêmico dos fatos da diacronia. E essa
Escola também é referida no texto das Teses:

Não poderíamos erguer barreiras intransponíveis entre os métodos sincrônico e diacrôni-


co, como o faz a Escola de Genebra. Se, em Lingüística sincrônica, os elementos do sis-
tema da língua são considerados do ponto de vista de suas funções, também as mudanças
sofridas pela língua não podem ser julgadas sem que se tenha em conta o sistema afetado
por tais mudanças. Seria um erro supor que as mudanças lingüísticas constituem apenas
ataques destrutivos que se produzem ao acaso e que são, do ponto de vista do sistema, he-
terogêneos. As transformações lingüísticas visam muitas vezes o sistema, sua estabiliza-
ção, sua reconstrução, etc. Assim, o estudo diacrônico não só não exclui as noções de sis-
tema e de função, como torna-se, ao contrário, incompleto, se não as toma em considera-
ção. (TCLP1: 82-83)

117
Portanto, a concepção da mudança lingüística proveniente de Praga constitui uma
novidade não apenas em relação às posições da Lingüística Histórica tradicional, como
também no próprio campo do Estruturalismo. As características gerais dessa formulação
podem ser apresentadas esquematicamente da seguinte maneira:
(i) A mudança lingüística não constitui um fato isolado e fortuito, regulado por fa-
tores mecânicos (como afirmavam os neogramáticos);
(ii) a mudanças atingem o sistema (formulação contrária à visão de Saussure, para
quem o sistema é imune às mudanças); são, portanto, fatos da estrutura lingüística e de-
vem ser explicados pela lógica do sistema funcional;
(iii) dentro dessa lógica, as mudanças são explicadas segundo a noção de funcio-
nalidade. Essa noção se refere, tanto à função do(s) elemento(s) do sistema lingüístico,
em que incide a mudança, quanto à função da língua na sociedade.
(iv) uma compreensão extremada da concepção funcional da mudança engendrará
a concepção teleológica da mudança. As mudanças se explicariam não apenas pela funci-
onalidade do sistema, mas pelos fins para os quais elas se realizam.
Deve-se destacar também que, na visão dos lingüistas de Praga ,a proposição de
uma extensão da análise estrutural aos fatos da diacronia não criaria contradições com a
análise sincrônica da língua, nem lhe traria qualquer implicação. Ao contrário, reafirmam
a prevalência do ponto de vista sincrônico em relação à língua no presente.

a melhor maneira de conhecer a essência e o caráter de uma língua é a análise sincrônica


dos fatos atuais. (TCLP1: 82)

Os lingüistas do Círculo, como se pode observar na citação acima, partiram da


idéia de que a língua sincrônica é a língua considerada num ponto da cadeia temporal. O
raciocínio é, então, bastante simples: se o estudo da língua em um dado momento consis-
te na descrição do seu sistema lingüístico, o estudo da história de uma língua consistirá
no estudo da história desse sistema, na descrição do seu comportamento através do tem-
po. Os fatos que aí se observam (isto é, as mudanças lingüísticas), tal como os fatos ob-
servados num único momento, explicam-se pela lógica interna do sistema funcional ao
qual pertencem.
Em linhas gerais, seria esse o arcabouço teórico do movimento, através do qual
uma vertente do Estruturalismo Lingüístico buscou transpor o fosso aberto pelas concep-
ções saussurianas entre sistema e mudança. Submeter o terreno da mudança – em princí-
pio refratário, ou mesmo adverso às concepções estruturalistas – aos esquemas da análise
estrutural poderia significar a remoção de uma pedra no caminho do desenvolvimento do
modelo – já que se tratava de uma dificuldade admitida pelo próprio Saussure. Contudo

118
alguns problemas epistemológicos e teóricos que a proposta do Estruturalismo Diacrôni-
co enceta acabaram por fazer da questão da mudança uma ameaça rediviva. Em primeiro
lugar, a visão de uma causalidade evolucionista na explicação histórica das línguas repre-
senta um retorno inaceitável às posições naturalistas, ou fisicistas, do século passado, na
medida em que postulam inadequadamente explicações dedutivo-nomológicas para fatos,
por excelência, históricos e culturais, rebaixando-os, com isso, ao nível dos universos in-
fra-biológicos, que são regidos pelas leis naturais e físicas163.
Por outro lado, a concepção teleológica, bem como a concepção funcionalista, da
mudança lingüística representam uma alteração do estatuto da concepção de sistema, que
deixa de ser um mero esquema explicativo (ou um cálculo não-interpretável, na termino-
logia de Lass, 1980), adquirindo um quê de organicidade. Com isso, através dessa hipós-
tase, o sistema passa não apenas a regular o funcionamento da língua, considerada num
determinado momento, mas a determinar todo o seu desenvolvimento histórico. Tal con-
cepção do sistema lingüístico e de sua história acabou por colocar o Estruturalismo Dia-
crônico diante de graves impasses teóricos e sérios problemas quanto a fundamentação
empírica de seus esquemas explanatórios.

Uma tese contraditória

Mantendo a tradição da Lingüística Histórica, as pesquisas históricas de orienta-


ção estruturalista concentraram-se também sobre as mudanças fônicas. Na esteira dessa
tradição, a fonologia histórica ou diacrônica – como se pode denominar o Estruturalismo
Diacrônico – sucede a teorização dos neogramáticos sobre as leis fonéticas. Contudo, di-
ferentemente do que ocorreu na análise sincrônica, na qual a distinção entre fonética e
fonologia foi de pronto estabelecida como ato inaugural do modelo estruturalista, no âm-
bito dos estudos históricos não se chegou a definir com precisão o que era fonético e o
que era fonológico. Pode-se perceber tal imprecisão mesmo entre os principais nomes do
Estruturalismo Diacrônico. Jakobson (1970 [1931]) opõe mudança fônica (fr. change-
ment phonique) a mutação fonológica (fr. mutation phonologique), sendo que esta se
manifesta no sistema, e aquela, não. Já Martinet (1955), em seu Tratado de Fonologia
Diacrônica, analisa o que ele chama mudanças fonéticas (fr. changements phonétiques),

163
Como bem observou E. Coseriu: “a própria idéia de ‘causalidade’ na chamada evolução idiomática é um
resíduo da velha concepção das línguas como ‘organismos naturais’, assim como o sonho positivista de
descobrir as supostas ‘leis’ da linguagem (ou das línguas) e de transformar a Lingüística numa ciência de
‘leis’ análoga às ciências físicas.” (1979 [1958]: 155)

119
referindo-se tanto às mudanças que alteram o sistema, quanto àquelas que não o atingem.
Por outro lado, Haudricourt e Juilland fazem apenas a distinção entre as mudanças “ditas
condicionadas”, que “não têm nenhuma ligação com o sistema” e “que a fonética tradici-
onal cuidadosamente analisou e largamente explicou” (1949: 6), das mudanças que atuam
sobre o sistema; estas se relacionariam a uma “causa final”, ao passo que àquelas se atri-
buiria uma “causa eficiente”. Entretanto, Coseriu (1979 [1958]: 156), referindo-se “ao
estranho emprego que os dois autores fazem dos termos ‘eficiente’ e ‘final’”, afirma:

cabe perguntar o que poderá ser essa ‘mudança fonética’ considerada distinta da
‘fonológica’. Com efeito se por ‘mudança fonética’ se entende ‘mudança fisiológica’ ou,
de modo geral, uma mudança motivada ‘naturalmente’, é necessário observar que não
existem nem podem existir ‘mudanças fonéticas’. Todas as mudanças fônicas são ‘fono-
lógicas’, pois também as mudanças que não modificam o ‘sistema’ (as oposições distinti-
vas) têm justificação sistemática, e não fisiológica.

A prevalência da designação neutra mudança fônica (fr. changement phonique)


seria um claro indício da falta de consenso, mesmo entre os estruturalistas, em distinguir,
no plano da diacronia, o que seria fonético do que fosse fonológico (e, portanto, propria-
mente lingüístico). Fica, assim, a seguinte questão: por que lingüistas que foram tão zelo-
sos em separar, na análise sincrônica, a fonologia da fonética (afirmando, inclusive, que,
sem tal distinção, não se poderia levar a cabo a análise estrutural do nível fônico da lín-
gua) não agiram da mesma maneira na investigação diacrônica? Na resposta a essa
questão, encontram-se elementos importantes para a compreensão dos riscos que análise
estruturalista enfrentaria no campo da diacronia.
A dificuldade para o estabelecimento de um plano fonológico abstrato e sistêmi-
co, distinto do plano concreto e heterogêneo da fala (isto é, fonético), no terreno da dia-
cronia decorre, portanto, do fato de a interação entre a prática lingüística (isto é, a fala) e
o modo de estruturação da língua (de onde emerge a idéia de sistema) se tornar evidente
quando se considera o processo de constituição da língua, ou seja, quando se analisa a
dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico.
Para isolar um sistema puro, encerrado em sua própria lógica, Saussure foi obri-
gado a eliminar a dimensão temporal do fenômeno lingüístico. A apreensão sistemática
da língua, para Saussure, implica necessariamente a não consideração do fator tempo,
pois ela é “concernente às relações entre coisas coexistentes, de onde toda intervenção do
tempo se exclui”. Para se falar de sistema, é preciso sair do eixo das sucessividades (i. é,
do eixo temporal no qual se situa a análise diacrônica), porque neste “não se pode consi-
derar mais do que uma coisa de vez”. A língua (e a Lingüística) sincrônica é estática,

120
“nada determina fora do estado momentâneo de seus termos” 164; daí a metáfora da Me-
dusa mitológica, que, com seu olhar, transformava os homens em estátuas de pedra, que
utilizei para descrever o Estruturalismo Lingüístico. Só que, quando o Estruturalismo, em
sua vertente diacrônica, estendeu o seu método para a diacronia, o olhar da Medusa en-
controu o escudo espelhado de Teseu e viu aí refletido o seu fim.
A rígida separação entre o plano sincrônico e o diacrônico não é uma excrescência
do pensamento saussuriano, contrária às suas outras formulações, como pensaram alguns
dos praticantes do Estruturalismo Diacrônico, que chegaram a defini-la como uma “tese
paradoxal e contrária a todos os demais ensinamentos do Mestre”165. Antes pelo contrá-
rio, ela estava perfeitamente integrada no todo. Na sua articulação com a dicotomia lín-
gua e fala, assentava a concepção fundamental do edifício teórico saussuriano: a língua
como sistema. Desfazendo-se os termos em que Saussure formula a dicotomia sincronia e
diacronia, o mesmo ocorre com a dicotomia língua e fala; comprometendo, uma vez mais
e, agora, de maneira irremediável a concepção sobre a qual assentava todo o Estrutura-
lismo Lingüístico.
A dicotomia língua e fala só se sustenta em sua conjunção com a dicotomia sin-
cronia e diacronia. Para se chegar à língua como sistema é preciso eliminar tanto a hete-
rogeneidade da atividade lingüística concreta (i. é., a variação), quanto a sua dinamicida-
de (i. é., a mudança), não sendo possível pôr de lado apenas uma dessas características,
porque elas são indissociáveis. Estender a análise estrutural à diacronia, significa dizer
que as mudanças atingem o sistema. Mas, como as mudanças são produzidas na fala (e
este é um fato que não se pode contestar), a separação saussuriana entre fala e a língua
(tão cara aos estruturalistas e fundamental para a manutenção do seu conceito de sistema
lingüístico) é igualmente anulada. É exatamente neste ponto que surgem os elementos
cruciais para uma nova concepção de língua: não mais um sistema homogêneo, unitário,
estático e encerrado em sua lógica interna, mas um sistema heterogêneo, plural, dinâmico
e determinado não apenas por suas relações estruturais internas, como também pelas rela-
ções que o unem à estrutura social. Portanto, pensando estarem removendo uma contradi-
ção do pensamento saussuriano, os lingüistas do Estruturalismo Diacrônico estavam na
verdade derrubando um dos pilares fundamentais do edifício teórico estruturalista, e de-
terminando o seu fim.
Haveria, então, de se condenar o Estruturalismo Diacrônico, e se proclamar um
retorno a Saussure? Não, pois o desenvolvimento proposto pelo Estruturalismo Diacrôni-
co não era apenas necessário, como também se constituía a maneira mais franca pela qual
164
Curso: 95.
165
Haudricourt e Juilland, 1949: 3.

121
se podia enfrentar, dentro dos limites do Estruturalismo, a contradição entre sistema e
mudança, introduzida já na gênese desse modelo. Desse modo, o Estruturalismo Diacrô-
nico constitui o último estágio possível do desenvolvimento do Estruturalismo. Construir
as bases para a superação do modelo inaugurado por Saussure define a contribuição deci-
siva do Estruturalismo Diacrônico no desenvolvimento da teoria lingüística no século
XX. E, para entender como tudo isso se passou, é preciso escrutinar as principais formu-
lações dessa Escola, ou seja, as principais características do que se denominou explica-
ção funcionalista da mudança.

Roman Jakobson: teleologia e taxionomia

Dentre os lingüistas do Círculo de Praga, foi Roman Jakobson o primeiro estudio-


so a tentar, desde uma perspectiva estruturalista, sistematizar um modelo explicativo para
os fatos da história das línguas. A primeira contribuição de Jakobson, as Remarques sur
l'évolution phonologique du russe166, consiste num trabalho de análise aplicada, no qual
Jakobson traça um esboço da história fonológica do russo. Contudo, esse primeiro traba-
lho não teve uma boa receptividade nem entre os que se colocavam dentro da mesma ori-
entação teórica geral. Talvez animado com a retumbância dos textos das Teses, Jakobson
tenha carregado na tonalidade teleológica de suas Remarques, o que levou Martinet
(1955: 46) a afirmar que “resultaram desse trabalho certas observações teóricas interes-
santes, entremeadas lamentavelmente com uma profissão de fé teleológica”.
A infelicidade dessa primeira tentativa pode explicar a pouca adesão à pesquisa
diacrônica estrutural, nessa fase167. Isso pode explicar também o recuo que caracteriza o
segundo escrito de Jakobson sobre o tema: os Prinzipien der Historischen Phonologie168.
Neste trabalho, Jakobson restringe-se basicamente a formular uma taxionomia das mu-
danças fônicas, secundarizando as suas pretensões explicativas169. Não obstante, o método
estruturalista não é posto de lado; ao contrário, é reafirmado em confronto claro com as
formulações dos neogramáticos:

166
TCLP II, Praga, 1928.
167
Martinet (1955: 46), que define o corpo fundamental do trabalho de Jakobson como “bastante confuso e
demasiadamente pessoal”, afirmaria que “o desenvolvimento e a popularidade da fonologia diacrônica se
viram prejudicados por esta tentativa prematura”.
168
TCLP IV, Praga, 1931. Utilizei uma versão ligeiramente revista, publicada na tradução francesa dos
Grundzüge der Phonologie, de Trubetzkoy (1970 [1949]).
169
Cf., ainda, Martinet (1955: 46): “uma exposição na qual praticamente atribuía à fonologia diacrônica
fins puramente descritivos.”

122
A fonologia opõe ao método isolante dos neogramáticos um método integral; cada fato
fonológico é tratado como um todo parcial que se articula com outros conjuntos parciais
de diversos graus superiores. Por isso, o primeiro princípio da fonologia histórica será:
toda modificação deve ser tratada em função do sistema no interior do qual ela se reali-
za. Uma mudança fônica só pode ser conhecida, elucidando-se seu papel no sistema da
língua. [grifos do original] (1970 [1931]: 316)

Fundamentando a sua taxionomia no método estruturalista, Jakobson parte de uma


divisão fundamental entre as mudanças que alteram o sistema (têm um papel fonológi-
co), e aquelas que não alteram o sistema (as mudanças extrafonológicas). As mudanças
extrafonológicas podem ser distribuídas por três grupos:
(i) as que simplesmente aumentam o número de variantes de um fonema;
(ii) as que, ao contrário, conduzem à fusão de variantes, através da generalização
de uma delas e;
(iii) aquelas em que “a variante fundamental de um fonema pode se modificar fo-
neticamente”, enquanto que “o sistema de fonemas permanece idêntico e a relação entre o
fonema dado e todos os outros não é modificada”. (ibidem: 317-18)
As mudanças fônicas que “se manifestam no sistema fonológico podem ser vistas
como um veículo de uma mutação fonológica ou de um feixe de mutações fonológicas”
(ibidem). O termo mutação tem aqui uma importante implicação teórica:

Nós empregamos o termo ‘mutação’ para sublinhar que as mudanças fonológicas proce-
dem por saltos. (ibidem)

Assim consideradas, as mudanças fonológicas são então divididas em duas cate-


gorias principais, com base nos tipos de processo que determinam dentro do sistema.
Tomando-se dois fonemas A e B sobre os quais atua uma determinada mudança, temos
uma situação de partida (A : B) e uma situação de chegada (A1 : B1) – o processo que
conduz de uma situação à outra não interessa dentro dessa visão das mudanças como mu-
tações. Na primeira categoria das mutações, só em uma das situações a relação entre os
sons é fonológica, enquanto que, na segunda categoria, tanto na situação de partida, quan-
to na de chegada, a relação entre os sons é fonológica. Na primeira categoria, consoante o
fato de a diferença fonológica se encontrar no início ou no término da mudança, definem-
se dois tipos de processo: a desfonologização, quando a mudança implica a perda de uma
distinção fonológica; e fonologização, quando o processo de mudança determina a for-
mação de uma nova diferença fonológica. Já na segunda categoria, não há perda nem ga-
nho de oposições distintivas, mas uma alteração nos termos, ou na posição dentro do sis-
tema, de uma determinada oposição distintiva, o que Jakobson denominou de refonologi-
zação. Portanto, ao contrário da fonologização e da desfonologização, a refonologização

123
não implica em nenhuma alteração no número de fonemas da língua (1970 [1931]: 319-
24).
Sobre essa taxionomia meramente descritiva, Jakobson só levanta questões que se
circunscrevem às relações lógico-racionais que o Estruturalismo estabeleceu, a partir de
Trubetzkoy, para as suas descrições dos sistemas fonológicos das línguas, quais sejam: os
fonemas que desapareceram, ou foram criados, fazem parte de uma correlação ou disjun-
ção? A mudança em questão faz parte de uma mudança mais geral nessas relações, ou
não? etc. Porém, apesar de ter elaborado esse esquema meramente descritivo, que, pelo
menos quanto à terminologia, esteve sempre presente nos trabalhos de análise diacrônica
que se fizeram durante décadas, não será a taxionomia o aspecto da teorização de Roman
Jakobson que, no âmbito da Lingüística Histórica, mais se destacará e mais será discuti-
do, e sim a sua tentativa de formular uma explicação para a questão da mudança através
da sua concepção teleológica da mudança lingüística.
Aplicada à evolução do sistema fonológico, essa concepção atribui às mudanças
fônicas uma finalidade, de modo que as mudanças podem ser então explicadas pela fun-
ção que desempenham na evolução do sistema:

Se uma ruptura do equilíbrio do sistema precede uma mutação dada, e o que re-
sulta dessa mutação é uma supressão do desequilíbrio, nós não temos nenhuma dificulda-
de em descobrir a função dessa mutação: sua finalidade é restabelecer o equilíbrio. Entre-
tanto, quando uma mudança restabelece o equilíbrio em um ponto do sistema, ela pode
romper o equilíbrio em outros pontos e, por conseguinte, provocar a necessidade de uma
nova mutação. Assim se produz freqüentemente toda uma cadeia de mutações estabiliza-
doras. (Jakobson, 1970 [1931]: 334)

Esse princípio teleológico, não obstante a sua má fortuna mesmo no campo do Es-
truturalismo, mostra-se profundamente revelador de toda a lógica operacional do Estrutu-
ralismo Diacrônico, inclusive a daqueles que em princípio o rejeitaram. Isso porque, na
base de todos os esquemas explicativos do Estruturalismo está o princípio de que a lógica
interna do sistema funcional constitui o principal fator a ser considerado no entendimento
da questão da mudança. Jakobson concentra mais a explicação da mudança na lógica de
um desenvolvimento interno do sistema fonológico, enquadrando o problema numa pers-
pectiva que podemos definir como exclusivamente funcionalista, na medida em que se
apóia apenas na função atribuída à mudança. Já Martinet e seus seguidores, que constituí-
ram a outra vertente do Estruturalismo Diacrônico, admitem que somente os fatores estru-
turais e funcionais não são suficientes para dar conta das causas da mudança fônica, e ar-
ticulam os fatores funcionais e estruturais com os fatores acústico-articulatórios. Com ba-
se nessas diferenças, pode-se denominar a linha de Jakobson a versão ortodoxa do Estru-

124
turalismo Diacrônico, e a linha de Martinet, a versão heterodoxa, entendendo-as como
duas versões de uma mesma concepção de fundo.
Poderia dizer ainda que existe também uma divergência de terminologia, enquan-
to Jakobson se concentra no que chama finalidade, Martinet busca dar conta da causali-
dade das mudanças fônicas, sendo que causa e fim, neste caso, se referem fundamental-
mente a uma mesma motivação para o fato observado. Contudo a atribuição de uma fina-
lidade às mudanças suscita um problema de Lógica: a confusão entre meta e o resultado
de um processo, isto é, a confusão entre os conceitos de ‘meta’ e facto terminus170.
Talvez se deva a essa ênfase teleológica, presente na fraseologia de Jakobson, a
razão maior para a grande resistência ao princípio de explicação da mudança por ele pro-
posto. Apesar de não se verificar nenhuma divergência profunda entre as duas vertentes
do Estruturalismo Diacrônico, estas acabaram por ficar aparentemente separadas: de um
lado, as formulações teleológicas de Jakobson; de outro, o modelo de Martinet voltado
para a explicação das causas das mudanças fônicas.

André Martinet: explicação e causalidade(s)

A corrente do Estruturalismo auto-intitulada funcionalista, liderada por André


Martinet, representa a outra vertente do Estruturalismo no campo das proposições expli-
cativas acerca da mudança lingüística. A resistência aos modelos explicativos na Lingüís-
tica, e em particular na Lingüística Histórica, era e sempre foi grande e pode ser situada,
na época, tanto no campo estruturalista, quanto fora dele, como observa o próprio Marti-
net (1955: 13-4):

A resistência mais tenaz à aplicação do ponto de vista funcional e estrutural ao estudo da


evolução lingüística virá, sem dúvida, menos daqueles que, por temperamento ou por
formação, acreditaram dever se mostrar reticentes ou mesmo hostis às doutrinas estrutu-
ralistas, que daqueles que, “estruturalistas” ou não, são inclinados por natureza a não se
arriscar para além da descrição dos fenômenos observáveis. Em geral, o epíteto de “des-
critivista” só se aplica aos lingüistas especializados na descrição sincrônica e estática.
Mas seria errado crer que somente, nas fileiras dos “estruturalistas”, se encontram aqueles
que vêem, na descrição dos fatos da língua observáveis, o fim único dos estudos lingüís-
ticos. Pode-se dizer que o ideal descritivista tem sido o ideal de várias gerações de lin-
güistas, se bem que poucos dentre esses descritivistas tenham de fato acreditado poder
negar, em princípio, aos demais o direito de sair do quadro estreito da descrição e arris-
car-se na explicação dos fatos.

170
Para uma discussão desse assunto, ver Woodfield, 1976 e Lass, 1980: 80-83.

125
Identificando as diversas matrizes dessa resistência, Martinet irá destacar a posi-
ção dos seguidores de Leonard Bloomfield, que, “ávidos de rigor formal”, rechaçam as
propostas explicativas com o receio de que “a Lingüística perca esse caráter de ciência
exata que tantos se têm esforçado para manter de pé” (ibidem: 15). E destacará também,
num momento anterior, a ação dos neogramáticos, cuja autoridade, “se não era suficiente
para impedir a eclosão e discussão de hipóteses causais, era o bastante para retardar o tra-
balho de observação que teria permitido a verificação dessas hipóteses, razão pela qual a
Lingüística explicativa quase que não existe como disciplina reconhecida” (ibidem: 15).
Desse modo, Martinet não apenas assume um modelo explicativo para a Lingüís-
tica Histórica, como também assenta esse modelo na possibilidade de determinar (pelo
menos em parte) as causas das mudanças fônicas. Entretanto, Martinet (ibidem: 35) não
atribui às mudanças uma causa única, e reconhece a impossibilidade de se apreender to-
das as causas da mudança lingüística:

Pode-se estar certo, desde o princípio, de que, na diacronia, não se conseguirá desemba-
raçar todos os fios do novelo da causalidade, ainda que seja apenas porque a causalidade
não tem começo nem fim. (ibid.: 33)

Entretanto, guardando uma posição fundamentalmente estruturalista, Martinet não


deixará de afirmar que “o sistema deve estar normalmente no centro das nossas preocu-
pações” (ibid.: 30). No âmbito do sistema lingüístico, Martinet procura equacionar, como
fatores propulsores da mudança lingüística, tanto os fatores relativos à estruturação e à
funcionalidade do sistema, quanto os fatores relativos à função externa do sistema como
meio primordial de comunicação na sociedade. Estes fatores propriamente lingüísticos se
articulariam com os fatores externos, que, no modelo de Martinet, se reduzem basicamen-
te aos fatores fisiológicos, referentes ao que ele denomina inércia e assimetria dos ór-
gãos da fala. Essa combinação dos fatores estruturais e funcionais com os fatores fisioló-
gicos mencionados permitem, segundo Martinet (ibid.: 44), “apresentar um quadro bas-
tante completo da causalidade de vastas mudanças, que, por si sós, autorizam a resolver
certas questões de detalhe e recolocar adequadamente certos problemas”.

Função, Estrutura e Economia

O modelo teórico para a explicação das mudanças fônicas de A. Martinet assenta


sobre três categorias básicas: função, estrutura e economia. A primeira remete às neces-
sidades da comunicação lingüística, que determinam a principal função da língua na soci-

126
edade. A segunda abarca o conjunto de pressões provenientes da estruturação interna (ló-
gico-racional) do sistema fonológico. E a terceira se refere ao jogo que reúne esses fato-
res lingüísticos (funcionais e estruturais) e os fatores fisiológicos, definidos pela consti-
tuição e o funcionamento dos órgãos da fala.
A tese fundamental à função no nível das mudanças fônicas é determinada pela
maior ou menor utilidade das oposições fonológicas no interior do sistema lingüístico. De
acordo com essa tese fundamental, a neutralização ou manutenção de uma oposição no
sistema fonológico da língua seria em larga medida definida por sua carga ou rendimen-
to funcional. O princípio gerador da noção de rendimento funcional seria o seguinte: em
princípio a homonímia representa um prejuízo para o funcionamento da língua como sis-
tema de comunicação, já que a situação ótima definida pela fórmula ‘um significante para
cada significado’; nesse sentido, a língua tenderia a evitar a formação de homônimos, e,
por conseguinte, quanto maior for o número dos pares de palavras que a fusão entre os
fonemas tornaria homônimas, menor será a probabilidade dessa fusão ocorrer. Portanto, a
noção de rendimento funcional apóia-se no número de pares mínimos em que uma deter-
minada oposição fonológica se manifesta na língua. Em português, por exemplo, o ren-
dimento funcional da oposição /p/:/g/ seria aferido pelo número de pares de palavras que,
à maneira de pato e gato, se distinguissem apenas pela substituição de um fonema por
outro. Dessa maneira, consoante o número de pares que se pudessem formar no inventá-
rio lexical da língua, o rendimento funcional da oposição poderia ser definido como ‘ele-
vado’, ‘médio’ ou ‘baixo’. Contudo, apesar de largamente utilizada por toda a Lingüística
Estrutural, a noção de rendimento funcional nunca logrou superar algumas dificuldades
operacionais, já admitidas pelo próprio Martinet (ibidem: 54-59).
Um primeiro problema seria o de identificar os pares mínimos em que a perda da
oposição de fato pudesse causar problemas para a comunicação, devendo-se excluir, por-
tanto, os pares de palavras que dificilmente ocorreriam no mesmo contexto, já que, nestes
casos, a homofonia não constitui propriamente um empecilho ao entendimento. Assim,
em português, o par louco:pouco, por exemplo, não deveria ser computado na mensura-
ção do rendimento funcional da oposição /l/:/p/, porque essas palavras dificilmente figu-
ram no mesmo contexto. O problema é que esse acrescentamento óbvio e necessário à
formulação inicial acaba por praticamente impedir a aplicação da noção de rendimento
funcional na análise lingüística, em bases razoavelmente objetivas, devido ao volume de
considerações de ordem semântica e sintática que seriam necessárias para se poder chegar
a uma aferição razoável do rendimento funcional de uma oposição na língua.
Um outro problema seria o da freqüência de uso das palavras envolvidas. Os pares
mínimos que relacionam palavras pouquíssimo usadas, como as palavras do vocabulário

127
erudito ou especializado, devem ter um peso diferenciado daqueles que reúnem palavras
do chamado vocabulário básico da língua (também chamado vocabulário fundamental),
usadas com alta freqüência na linguagem quotidiana. Esta é uma outra variável importan-
te dentro da lógica do que seria o rendimento funcional que também não é considerada,
em face das evidentes dificuldades operacionais.
Essas duas questões apresentam, por sua vez, uma série de desdobramentos, co-
mo, por exemplo, o da consideração do peso das oposições que figuram em elementos
que cumprem uma função morfossintática importante171. E todas essas dificuldades vão
se intensificando à medida em que nos vamos afastando da época atual em direção aos
estágios mais antigos das línguas, para os quais a possibilidade de verificação dessas va-
riáveis não se coloca172. Portanto, a noção de rendimento funcional esbarra no seguinte
dilema: posta em seus termos mais gerais e vagos (como tem sido feito), ela não sai do
plano do impressionismo, e como tal, não pode ser levada seriamente em linha de conta
na explicação da mudança; por outro lado, para adquirir objetividade, e conseqüentemen-
te valor explicativo, demanda um tal volume de quantificação que deixa de ser operacio-
nal. Por outro lado, a vacuidade da noção de rendimento funcional como categoria expli-
cativa da mudança é completada pelo fato de o modelo funcionalista não proporcionar a
possibilidade da verificação por contra-exemplo. Ou seja, o desaparecimento de uma
oposição pode ser “explicado” pelo baixo rendimento funcional desta, mas o contrário
não serve como contra-exemplo para se negar o valor heurístico dessa categoria explica-
tiva:

Dois fonemas vizinhos não tendem necessariamente a se confundir pela única


razão de que a sua oposição seja de um rendimento funcional praticamente nulo. (Marti-
net, 1955: 58)

Tal raciocínio não se sustenta em termos lógicos para um modelo explicativo que
visa a dar conta da causalidade dos fatos. Diante das imprecisões e dos problemas lógicos
que a noção de rendimento funcional enseja, pode se entender por que boa parte das ex-
plicações funcionalistas, acabou por reter apenas, sob a rubrica de função, o princípio de
evitar a homofonia; princípio este que se estende (e se intensifica) às marcas morfológi-
cas, ou aos chamado elementos morfo(fo)nológicos.
Dentro do modelo martinetiano, os fatores relativos à funcionalidade se articulam
com os fatores derivados da estrutura. Estes se definem pela posição que o fonema ocu-
pa no sistema fonológico, e pelas relações que aí mantém com os demais fonemas. A po-
171
Pensemos, por exemplo, na oposição /ë/:/e/ do francês que desempenha, em le:les um papel decisivo na
marcação de número nos SN's.
172
Como admite o próprio Martinet (1955: 57).

128
sição de um fonema compreende o que Martinet (1955: 47) chama de campo de disper-
são, constituído pelo conjunto das realizações possíveis do fonema. Esse campo de dis-
persão possui, entretanto, um centro de gravidade (ou ponto ótimo), que corresponde à
realização mais normal do fonema. Como todas as realizações possíveis dos fonemas de
uma língua não abarcam o conjunto de sons da linguagem, existe uma margem de segu-
rança entre os fonemas:

No quadro de uma comunidade lingüística homogênea, é provável que o campo


de dispersão normal de cada fonema, em um contexto determinado, não seja contíguo aos
seus vizinhos, mas que haja entre dois campos uma margem de segurança representada
por uma espécie de “no man's land”. (Martinet, 1955: 47-8)

Essa margem de segurança seria ocupada por sons que não são articulados pelos
falantes da língua. Em português, por exemplo, haveria uma “terra de ninguém”, entre os
campos de dispersão dos fonemas /t/ e /s/, onde se encontraria, entre outros, o som [].
Deve-se novamente sublinhar aqui que, nesse estágio do desenvolvimento do Es-
truturalismo, a hipóstase da concepção de língua como sistema. O sistema fonológico,
uma formalização analítica de relações no nível fônico da atividade lingüística, ganha or-
ganicidade, deixando de ser um mero sistema de representação teórica do objeto. Enquan-
to estrutura, o sistema passa a funcionar como um corpo, que possui existência objetiva.
Isso se torna muito claro na descrição de Martinet (1955: 48-54) das mudanças
fônicas. Uma alteração nas realizações de um fonema A, em particular do seu centro de
gravidade, pode fazer com que esse fonema A penetre no campo de dispersão de um outro
fonema C; disso resulta uma pressão de A sobre C, cuja conseqüência é o deslocamento
de C. Por outro lado, do deslocamento de A resulta uma casa vazia, cujo centro de gravi-
dade atrai um fonema vizinho B. E a conclusão de Martinet (1955: 49) é transparente:
“ocorre que B e C começam a se deslocar na mesma direção que A, de modo que a situa-
ção resultante é: B > A > C”. Desse modo, as mudanças fônicas são descritas por deslo-
camentos, pressões, atrações de centros de gravidade, da maneira como os astrônomos
descrevem os movimentos dos corpos no espaço. Vale destacar que, em nenhum momen-
to, Martinet se refere a esse tipo de descrição como uma metáfora ou qualquer coisa do
gênero. O mais notável nisso tudo é que essa descrição das mudanças fônicas como fe-
nômenos físicos que se operam no interior do sistema fonológico convive com a admis-
são por parte de Martinet de que, para uma mesma língua, o resultado da descrição de seu
sistema fonológico “pode variar de um fonólogo para outro”173. É curioso observar tam-
bém que, nesse modelo, a explicação do deslocamento de C como “uma conseqüência do

173
Cf. Martinet, 1955: 63 e 66, respectivamente.

129
deslocamento de A” convive pacificamente com a possibilidade de C não se deslocar,
ocorrendo uma fusão entre os dois fonemas. Tal raciocínio análogo ao utilizado para a
questão do rendimento funcional também não se sustenta dentro dos parâmetros lógicos
imprescindíveis para o que se apresenta como uma explicação causal174.
O modo como Martinet (ibidem: 69-88) explica as mudanças fônicas através da
configuração do sistema fonológico pode ser discutido, dentro dos limites dessa exposi-
ção, no tratamento de um caso concreto: o da oposição //:// em inglês175. Apesar de
servir para distinguir apenas uns poucos pares de palavras, essa oposição está protegida
contra a fusão, por pertencer ao que Martinet define como uma correlação importante
dentro do sistema fonológico do inglês:
f  s  t
v  z  d
Por outro lado, há o que Martinet (1955: 80) chama de “atração exercida pelo sis-
tema integrado”. Essa atração é explicada da seguinte maneira:

Suponhamos, por exemplo, a seguinte correlação:


f s 
v z 
e, de outra parte, um fonema /x/, que teoricamente não pertence à correlação, pois não
possui uma correspondente sonora, mas se comporta exatamente como /f/, /s/ e /s/. Há na
mesma língua um fonema /r/ vibrante, normalmente sonoro, que não é integrado, pois não
possui uma correspondente surda, que partiu à deriva, e cujo campo de dispersão compor-
ta realizações sem vibração. Virá um dia, talvez, em que este assumirá uma articulação
fricativa pós-velar [], que se converterá na correspondente sonora de /x/, que se integrará
à correlação que doravante será:
f s  x
v z  
e isso marcará o fim de seus deslocamentos erráticos. (id., ibid.: 79-80)

Dessa forma, quanto mais correlações um sistema possuir, mais ele será integra-
do (ou equilibrado, ou coerente, ou estável – esses termos aqui são sinônimos). Nesse
sentido, os sistemas fonológicos caminhariam sempre para o equilíbrio, que lhe proporci-
onaria uma situação ótima para o desempenho de função da língua de principal sistema
da comunicação social.
Porém, essa leitura do desenvolvimento do sistema fonológico levanta um pro-
blema crucial: como explicar o fato de que essa estabilidade sempre perseguida, nunca é
alcançada? Na medida em que as mudanças são vistas como funcionais, têm a função de
reparar desequilíbrios no sistema, e o próprio sistema exerce pressão na direção de uma
configuração mais equilibrada, dever-se-ia esperar que o sistema atingisse um ponto óti-

174
Tais parâmetros serão discutidos nas sessões seguintes deste capítulo.
175
Cf. Martinet, 1955: 78.

130
mo de equilíbrio, encerrando-se a possibilidade de novas mudanças. Porém, essa situação
nunca pode ser postulada, na medida em que todas as línguas vivas mudam continuamen-
te. Assim, o modelo funcionalista em suas várias versões, viu-se sempre obrigado a ex-
plicar por que o sistema fonológico nunca atinge essa situação de equilíbrio perfeito, ape-
sar de, em seu desenvolvimento, sempre caminhar nessa direção176.
Jakobson, ao depositar no sistema funcional toda a determinação das mudanças,
apresenta a formulação evidentemente ad hoc de que uma mudança fônica, ao promover
o equilíbrio num ponto do sistema, provocaria o desequilíbrio em outro ponto, determi-
nando assim um eterno círculo vicioso. Martinet, partidário da versão heterodoxa do mo-
delo, apresenta uma visão bastante distinta, na qual busca fora da lógica interna do siste-
ma funcional as razões que impedem o sistema fonológico de atingir a sua estabilidade
perfeita. Basicamente, ele apresenta três razões para isso. A primeira seria a pressão exer-
cida pelo surgimento de novas necessidades expressivas, que, agindo através da sintaxe,
do léxico, da morfologia, do ritmo, da entonação, etc., exerceriam um pressão sobre a or-
ganização do sistema fonológico, comprometendo o seu equilíbrio (cf. Martinet, 1955:
89). Uma segunda razão seria o contato entre línguas (ou entre dialetos distintos de uma
mesma língua), com as interferências que tal contato provoca, como, por exemplo, o em-
préstimo de um novo fonema, que fique isolado na estrutura fonológica da língua, provo-
cando a necessidade de novos ajustes estruturais, e assim por diante (ibidem: 89-90).
Mas a principal razão para o permanente desequilíbrio estrutural do sistema fono-
lógico, para Martinet, é reação dos órgãos da fala. Um sistema fonológico equilibrado,
com toda a simetria e sutilezas distintivas que isso implica, tende a sobrecarregar os ór-
gãos da fala, que possuem uma configuração assimétrica, e cuja tendência à inércia tem
que ser superada na produção dos sons. Essa ação dos fatores articulatórios pode ser vista
também de outro ângulo: pelo lado acústico-perceptivo do ato lingüístico. Distinções
muito sutis, inevitáveis em um sistema muito equilibrado, tenderiam a ser eliminadas,
devido ao esforço que exigem em sua percepção. Essa articulação das tendências estrutu-
rais do sistema fonológico com as tendências latentes no funcionamento do aparelho fo-
nador determina a terceira categoria explanatória do modelo martinetiano de explicação
da mudanças fônicas – a economia:

A evolução lingüística em geral pode ser concebida como sendo regida pela an-
tinomia permanente das necessidades comunicativas e expressivas do homem e de sua

176
cf. Martinet (1955: 88): “É aqui que se deveria esperar ver surgirem oposições ao método estrutural.
Como é possível que, após tantos milênios de prática ininterrupta da linguagem, os sistemas estejam ainda
carentes de integração estrutural? (...). Nós devemos certamente supor que a tendência à integração estrutu-
ral está constantemente operando. Mas como explicar que ela volte sempre? Por que os sistemas fonológi-
cos não haveriam de poder alcançar uma estabilidade perfeita?”

131
tendência a reduzir ao mínimo a sua atividade mental e física. No plano das palavras e
dos signos, cada comunidade lingüística encontra a cada instante um equilíbrio entre as
necessidades expressivas que demandam unidades mais numerosas, mais específicas e
proporcionalmente menos freqüentes, e a inércia que conduz a um número mais restrito
de unidades mais gerais e de emprego mais freqüente. A inércia é um elemento perma-
nente que se pode supor imutável, mas as necessidades comunicativas e expressivas são,
de uma época a outra, submetidas à variação, e a natureza do equilíbrio se modificará no
curso do tempo. Uma expansão não econômica é uma expansão que requer um esforço
maior do que aquele que a comunidade julga valer a pena em uma situação dada. Tal ex-
pansão será refutada. A inércia, quando se sente que é excessiva, isto é, prejudicial aos in-
teresses legítimos da comunidade, será severamente reprimida. O comportamento lingüís-
tico será então regulado pelo que Zipf chamou de “princípio do menor esforço”, expres-
são que nós preferimos substituir simplesmente pela palavra “economia”. (Martinet,
1955: 94)

A antinomia, que subjaz a toda evolução lingüística, reúne, por um lado, as neces-
sidades expressivas e comunicativas e, por outro, a tendência ao menor esforço. O prin-
cípio do menor esforço, por sua vez, está associado às limitações acústico-articulatórias
dos falantes, que são basicamente definidas pelo que Martinet chama de inércia e assi-
metria dos órgãos da fala.
A inércia atuaria no sentido de limitar as possibilidades de combinações seqüen-
ciais na cadeia da fala (ou seja, seqüências de sons de articulações muito distintas, ou
mesmo antagônicas, seriam evitadas ou interditadas em razão da tendência natural dos
órgãos de fala à inércia). Desse modo, a possibilidade de um grupo consonântico formado
por uma consoante sonora e uma surda tenderia a ser bloqueada; do mesmo modo, um
grupo de consoantes não-homorgânicas tenderia a se torna homorgânico, e o padrão silá-
bico CV seria privilegiado em detrimento do padrão CVC (ou CVCC), que obriga a uma
nova obstrução depois da emissão livre do elemento vocálico; e assim por diante.
Se a inércia diz mais respeito à sintagmática, as implicações da assimetria dos
órgãos da fala afetarão mais as relações paradigmáticas dentro do sistema fonológico.
Nesses casos entram em conflito a configuração estrutural do sistema fonológico e a con-
figuração fisiológica do aparelho fonador, o que poderia explicar porque sistemas fonoló-
gicos simétricos e equilibrados estão sujeitos a processos de mudanças fônicas177.
Apesar de estar razoavelmente bem acoplado dentro do modelo funcionalista de
explicação da mudança, esse princípio do menor esforço carrega em si vários problemas
lógicos. Como observa Lass (1980: 19-20), “desde que se supõe que normalmente a mu-
dança é no sentido do que é mais fácil, deve ter havido um tempo em que a língua em ge-
ral era ‘mais difícil’ do que é agora”. É muito pouco lógico pensar que as línguas come-

177
Essa questão da inércia e da assimetria dos órgãos da fala será retomada adiante, na avaliação do seu
valor explanatório.

132
çaram “mais difíceis” (i. é., constituídas por elementos que exigem um maior esforço ar-
ticulatório e perceptivo), para depois se tornarem “mais fáceis”.
Igualmente grave é o problema de definir o que é intrinsecamente “fácil” e “difí-
cil”, em termos lingüísticos. Para um falante do português, por exemplo, um sistema fo-
nológico em que a tonalidade é um traço pertinente se afigura difícil e oneroso em termos
articulatórios e perceptivos, mas, para um falante do jeje, no Togo, esse sistema é bastan-
te natural e não oferece nenhuma dificuldade. Tais questões põe em jogo noções como
‘otimização’ e ‘equilíbrio’ do sistema lingüístico, que estão na base da teorização funcio-
nalista da mudança lingüística. Assim sendo, essa teorização pode ser avaliada, tanto em
sua capacidade de explicar as mudanças particulares – o que será feito na seção seguinte
deste capítulo –, quanto em suas concepções de fundo – o que se fará em suas seções fi-
nais.

Avaliando o modelo estrutural-funcionalista na explicação das mudan-


ças lingüísticas particulares

Ao estender para o plano histórico a concepção de língua como sistema, o Estru-


turalismo Diacrônico busca, tanto responder ao problema teórico geral da mudança lin-
güística, quanto fornecer as explicações para as mudanças particulares. No segundo caso,
as mudanças particulares observadas podem ser explicadas, total ou parcialmente, em
função do sistema sobre o qual atuam. Assim, a verificação da capacidade do modelo
funcionalista em explicar as mudanças particulares tem implicações diretas para a discus-
são da adequação da representação teórica da língua como um sistema funcional.
Martinet, como vimos na seção anterior, apresenta como causas possíveis das mu-
danças fônicas:
(i) a função da língua como sistema de comunicação social, o que explica, entre
outras coisas, o princípio de evitar a homofonia, e a preservação das oposições fonológi-
cas de alto rendimento funcional;
(ii) a configuração estrutural do sistema fonológico, que exerce pressões no curso
das mudanças que afetam os seus fonemas; e
(iii) os diversos fatores de natureza acústica e articulatória que Martinet agrupa no
que definiu como economia, o que explica, por exemplo, a preferência por estruturas con-
sideradas ‘ótimas’ (como as sílabas abertas), por grupos consonânticos homorgânicos,
etc.

133
A colocação do problema da explicação da mudança lingüística nos termos de
uma relação de causalidade tem uma série de implicações, do ponto vista epistemológico.
Qualquer explicação causal deve atender a determinados requisitos, que estão formaliza-
dos no chamado “esquema ‘Hempel-Oppenheim’ ou ‘nomológico-dedutivo’, que caracte-
riza as ciências físicas (ou uma particular visão delas)” (Lass, 1980: 9). Dentro desse es-
quema, uma explicação bem formada deve excluir qualquer outra possibilidade de expli-
cação do fato particular considerado, e apresentar conexões causais empiricamente moti-
vadas, o que implica que tal explicação deve ser capaz de predizer os casos particulares
de mudança e pode ser negada por contra-exemplos (cf. Lass, 1980: 9-24). Qualquer ex-
plicação que pretende dar conta das causas de um determinado evento não se sustenta, do
ponto de vista lógico, se não cumpre tais requisitos. Isso traz sérias complicações para o
modelo funcionalista de explicação das mudanças fônicas particulares.
Tomemos inicialmente a função da língua como sistema de comunicação social,
como um dos fatores que explicam a causa das mudanças fônicas. Como foi demonstrado
anteriormente, o princípio de evitar a homofonia ou da preservação dos contrastes é uma
decorrência desse fator. Tal princípio seria ainda mais acentuado se a oposição desempe-
nhasse um papel morfológico na língua. Lass (1980: 66-70) analisa algumas aplicações
desse princípio, dentro da literatura da explicação funcionalista da mudança178:

Em grego, houve uma bem-conhecida mudança morfologicamente condicionada, por


meio da qual o /s/ intervocálico foi apagado em todos os contextos exceto em algumas
formas verbais do futuro (...). Campbell afirma: “tivesse sido o s do futuro removido ..., o
‘futuro’ e o ‘presente’ teriam se tornado idênticos para a maioria das formas; a remoção
desse s pela mudança fônica regular teria destruído a forma e por conseguinte a função do
morfema de ‘futuro’. Conseqüentemente, a mudança foi prevenida para preservar a dis-
tinção”. (p. 67)

Sobre esse tipo de explicação, Lass argumenta que:

Se uma explicação como a de Campbell (...) fosse aceita como explanatória, de-
veria ser o caso de que fenômenos análogos fossem predizíveis. Em outras palavras, não
deveria haver sincretismos ‘disfuncionais’ provocados por mudanças fônicas; ou, se ocor-
ressem, deveriam então ser remediados.
Se se quer argumentar por princípios funcionais, então é necessário ter no míni-
mo alguma coisa a dizer sobre os casos, em que a ‘disfunção’ provocada por uma mudan-
ça fônica regular não é remediada (uma vez que todos nós sabemos que casos como esse
são excessivamente comuns);179 e isso leva usualmente a estratégias ad hoc (invocando
princípios novos ou ‘concorrentes’). Um exemplo é (...) a perda do -n final em estoniano.

178
Lass discute aí os seguintes trabalhos: Campbell, A, “Constraints on sound change”, in Dahlsted, K-H,
The Nordic languages and modern linguistics, 2, Estocolmo: Almqvist & Wiksell International, 1975;
Kiparsky, P., “Phonological change”, tese de PhD não publicada, Cambridge, Mass.: MIT, 1965; Anttila,
R., An introduction to historical and comparative linguistics, Nova York: Macmillan, 1972.
179
Lass apresenta, em nota de pé-de-página, alguns exemplos desse caso, no latim, no gótico, no antigo alto
germânico, etc.

134
Sumariamente, em estoniano do sul todos os -n se perderam, mas em estoniano do norte o
-n que marca a primeira pessoa do singular nos verbos foi mantido, enquanto que o resto
se perdeu. (...).
(...). A resposta de Campbell a isso é a de que é o caso de dois dialetos que dão
diferentes prioridades a diferentes funções: “o dialeto do norte deu mais atenção aos fato-
res paradigmáticos, preservando a distinção entre o imperativo e a 1ª pessoa das formas
verbais [que teria sido perdida se todos os -n se perdessem], enquanto que o dialeto do sul
deu mais liberdade aos fatores fonotáticos, donde a perda do -n final ter produzido uma
estrutura silábica mais ótima”.
O problema com argumentos como esse é que você não pode perder. O que
Campbell parece estar dizendo é que as ‘condições paradigmáticas’ são importantes exce-
to onde alguma coisa a mais ocorre. Para mim, a virtual invulnerabilidade dos argumen-
tos funcionais como esse milita fortemente contra a sua aceitabilidade. E, de qualquer
maneira, salvar o estoniano do sul com um princípio tão frágil como o da ‘estrutura silá-
bica ótima’ simplesmente não funciona, considerando-se fatos gerais sobre o estoniano,
como a sua tolerância a configurações /VCC/ e mesmo /VCCC/ (com consoantes ‘ultra-
longas’). (p. 69-70)

O problema da explicação funcionalista da mudança é exatamente o de conviver


com as situações em que a lógica funcional e estrutural não atua. Esse problema é ainda
mais acentuado, quando:
(i) na versão mais radical da concepção estrutural-funcionalista, todo o funciona-
mento e desenvolvimento histórico da língua deve ser subordinado à lógica funcional do
sistema; e
(ii) mesmo em suas versões mais heterodoxas, o modelo funcional põe o problema
da explicação das mudança particulares em termos causais, o que implica um esquema
explicativo bastante restritivo.
De uma maneira ou de outra, o modelo estrutural-funcionalista tenta enquadrar os
fatos dentro da lógica da racionalidade subjacente a esse modelo. A dificuldade surge,
então, quando os fatos não se encaixam dentro da lógica proposta. É o que fica claro, por
exemplo, em um interessante estudo de R. D. King180 sobre a aplicação da noção de ren-
dimento funcional na explicação das mudanças. A partir da teorização de Martinet, King
formula três hipóteses, que são testadas em um razoavelmente extenso corpus de dados.
Vou destacar aqui duas dessas hipóteses (pp. 834 e ss):
(i) “Hipótese do ponto fraco”: ceteris paribus “a mudança fônica se iniciará mais
provavelmente pelas oposições de baixo rendimento funcional” ou “um fonema com bai-
xa freqüência de ocorrência é mais provavelmente afetado por alguma mudança do que
um fonema de alta freqüência.”
(ii) “Hipótese da menor resistência”: ceteris paribus, em face de uma tendência de
um fonema x se fundir com y ou z, a fusão ocorrerá com aquele que forma com x uma
oposição de menor rendimento funcional.
180
“Functional load and sound change”, Language, 43, 1967, pp. 831-52. [apud Lass, 1980]

135
Em uma série de mudanças fônicas em dialetos do germânico, em que são aplica-
das essas hipóteses, os resultados obtidos foram os seguintes: para a hipótese (i), oito ca-
sos que a comprovam contra 13 casos que a contradizem; para a hipótese (ii), quatro ca-
sos a favor, e cinco contra. Esses estudos que demonstram a fragilidade da explicação
funcional da mudança acabam por colocar em discussão a própria adequação da represen-
tação da língua como um sistema funcional, em face do enquadramento teórico forjado
pelo Estruturalismo Diacrônico. E, qualquer que seja o plano para que se dirige a explica-
ção funcionalista, a situação não será diferente. É o que podemos ver, quando considera-
mos também os fatores que Martinet agrupa sob as categorias estrutura e economia.
Um dos princípios básicos do Estruturalismo Diacrônico é o de que a configura-
ção estrutural do sistema fonológico atua no sentido de restringir ou implementar as mu-
danças fônicas, consoante a sua necessidade de manter ou restabelecer o seu equilíbrio
interno; sendo que, em linhas gerais o equilíbrio interno do sistema seria proporcional à
simetria de sua configuração interna. O exemplo que Martinet utilizado para confirmar
esse raciocínio é o da oposição //:// do inglês, apresentado anteriormente. Contudo,
para que se possa afirmar que um tipo de configuração estrutural é a causa da não imple-
mentação de uma determinada mudança, é preciso que, em uma situação análoga, as coi-
sas se processem da mesma maneira. Consideremos, então, a evolução do que seria o sis-
tema fonológico do galego, que, no início do século XIV, poderia, em linhas gerais, ser
esquematizado da seguinte maneira:
p t k
b d g
f ‘s ts  t
 ‘z dz  (<d)
m n 
l 

r
Destacarei o que pode ser chamado a correlação das constritivas. A não ser pela
ligeira assimetria entre a bilabial sonora // e a linguo-dental surda /f/, este seria o con-
junto mais coerente. Isso deveria, segundo a teoria de Martinet, tornar esse conjunto o
mais resistente às mudanças fônicas. Contudo, já no século XIII, verifica-se a desafricati-
zação da africada palatal sonora /d/, o que deixa a sua correspondente surda de certa
forma isolada. Porém, ainda há um núcleo perfeitamente simétrico:
‘s ts 
‘z dz 

136
Essa correlação das constritivas deveria então opor uma resistência às mudanças
pelo menos tão elevada quanto a das consoantes oclusivas (/p b t d k g/), e muito mais
elevada que a resistência que poderiam opor as consoantes nasais e líquidas. Entretanto, é
exatamente nessa correlação das constritivas que se opera a mudança que vai determinar
“uma das diferenças estruturais mais profundas entre o galego e o português” (Maia,
1986: 915), e extinguir a própria correlação. Trata-se do ensurdecimento das constritivas
sonoras, que atingiu tanto apical /‘z/, quanto a africada dorsal /dz/ e a palatal //. A essa
violenta mudança acrescente-se ainda a desafricatização do /ts/. O resultado de todo esse
processo de mudança, que nega totalmente o postulado martinetiano, é então o seguinte:
‘s s  t
No sistema fonológico do português contemporâneo, observa-se outro fato que
contradiz a possibilidade de uma relação de causalidade entre a estrutura fonológica e as
mudanças fônicas. O sistema fonológico do português do Brasil pode ser esquematizado
como se segue:
p t k
b d g
f s  x
v z 
m n 
l 

A consoante constritiva velar /x/, representa aí o resultado de uma mudança que


se operou sobre a vibrante múltipla /r/. Essa mudança, em parte se enquadra dentro da
teoria de Martinet, em parte a nega. Confirma-a, como uma atração exercida pela correla-
ção das constritivas – a mais integrada – sobre os demais fonemas. Nega-a, na medida em
que desfez uma ordem / r/, criando uma ‘zona de desequilíbrio’ no sistema, com a vi-
brante // ficando isolada. Numa situação muito semelhante, Martinet prevê o desloca-
mento da vibrante simples // para preencher a ‘casa vazia’, criada pela fonologização da
constritiva velar. Contudo, apesar de a fonologização do /x/ estar praticamente concluída
no português do Brasil, não há nenhum indício de constritivização da vibrante simples.
Por outro lado, tentar preencher essas inevitáveis lacunas de uma explicação da
mudança lingüística circunscrita exclusivamente à funcionalidade e à estruturação do sis-
tema lingüístico com noções derivadas de aspectos acústico-articulatórios levanta sérios
problemas acerca da validade explicativa dessas noções. O princípio básico desse racio-
cínio é de que as línguas em sua evolução buscam manter a sua capacidade comunicativa

137
reduzindo os esforços acústico-articulatórios, o que é definido como otimização. Isso
conduz naturalmente à idéia de estruturas ótimas, ou seja aquelas que, preenchem as
necessidades comunicativas exigindo um menor esforço acústico-articulatório. O proble-
ma então é justamente definir objetivamente quais seriam os processos de otimização e as
estruturas ótimas.
Tais noções, como demonstrou Lass (1980: 15-44), só podem ser definidas em
termos analíticos, e não explicativos. Não há motivação empírica suficiente para se poder
afirmar que um determinado processo histórico constitui um processo de otimização, ou
que uma determinada estrutura é ótima. Normalmente a definição de uma estrutura como
ótima é feita com base na distribuição verificada nas línguas conhecidas. Se uma estrutu-
ra é comum a todas as línguas, enquanto outra não é, ou se uma estrutura é mais geral do
que outra, as primeiras são definidas como ótimas, e qualquer processo de mudança das
últimas para as primeiras é definido como um processo de otimização. É o que se faz por
exemplo com o padrão silábico. Na medida em que todas as línguas conhecidas apresen-
tam sílabas do tipo CV, enquanto que muitas não possuem o padrão CVC (ou CVCC),
CV é definido como o padrão silábico ótimo (cf. Jakobson & Halle, 1956: 37), e a passa-
gem de CVC (ou CVCC) a CV, na história das línguas, é “explicada” como um processo
de otimização. E mais ainda, afirma-se que, em boa medida, a evolução das línguas pode
ser explicada por essa sempre presente tendência à otimização. Só que esse raciocínio não
se sustenta em termos lógicos:

O mero fato de todas as línguas apresentarem um tipo particular de sílaba (se isso é ver-
dade) é tomado como tendo implicações históricas. Mas isso é seriamente um non sequi-
tur: tal distribuição ‘universal’ não quer dizer coisa alguma em termos históricos ou de
desenvolvimento. O salto da presença universal para ‘preferência’ em termos de desen-
volvimento (i.é. fazendo de uma mera distribuição uma meta) não encontra respaldo no
tipo usual de argumentação. Apenas porque todas as línguas apresentam algo não signifi-
ca que o incremento disso automaticamente constitua uma ‘otimização’. (Lass, 1980: 34)

Por outro lado, se admitíssemos que a passagem de CV a CVC na história das lín-
guas, como “o apagamento das consoantes finais ou o desenvolvimento das então chama-
das vogais eufônicas do dravidiano” (id., ibid.), se explicasse por essa tendência universal
à otimização, não haveria como explicar as línguas cujas histórias “não apenas ‘falham
em otimizar’ por incremento de sílabas CV, como são temperadas com mudanças que
efetivamente minimizam CV – mesmo dentro de uma família que no geral tende a maxi-
mizar isso. Aqui eu estou pensando no Toda, que adotou a estratégia ‘contra-dravidiana’
de apagar as vogais finais em palavras dissílabas e as vogais nos afixos e preposições,
tanto que não apenas terminou com CVC onde línguas cognatas têm CVCV (originais ou

138
derivadas), como também com CVCC, CVCCC, etc. Exemplos similares podem ser mul-
tiplicados quase que indefinidamente: a perda de certas vogais átonas finais em germâni-
co (IA dg, NA dagr, AGA tag < *dagaz, etc.), a perda do -e final átono no inglês médio
(throat < IM rote, etc.), (...), várias perdas de desinências de caso em indo-europeu, e
fatos similares. Para não mencionar a produção de grupos consonânticos por epêntese: a
inserção de consoante em ambientes nasais em inglês (thunder < IA unor, etc.)” (Lass,
1980: 34-35).
Os exemplos acima, arrolados por Lass, poderiam ser acrescidos do caso do por-
tuguês contemporâneo. O curioso aí é que duas variantes nacionais da mesma língua, o
português do Brasil e o português europeu, apresentam tendências opostas. Enquanto o
PB apresenta uma tendência pró CV ( cantar > cantá, advogado > adivogado, etc.), ob-
serva-se o contrário no PE (passe >pass, tristemente > tristment, etc.). Isso para não falar
da perda de certas vogais átonas finais – geralmente após as consoantes líquidas – na pas-
sagem do latim ao português (mar < lat. ac. marem), ou dentro da própria história do por-
tuguês, verificando-se aí tendências antagônicas concorrentes (port. arc. quere > port.
mod. quer; port. arc. val > port. mod. vale).
Como se pode ver, as dificuldades que emanavam da análise das mudanças a par-
tir de um esquema funcional e estrutural deixavam o Estruturalismo Diacrônico numa si-
tuação bastante delicada. A articulação dos fatores funcionais e estruturais com os fatores
acústico-articulatórios constitui um esforço para superar essas dificuldades. Contudo essa
alternativa fisicista dos funcionalistas heterodoxos também não consegue atingir a meta
de preencher todos os requisitos lógicos de um modelo explicativo-causal.
Tomemos, por exemplo, a explicação de Haudricourt e Juilland (1949: 100-113)
para a palatalização do /u/ no sistema vocálico do galo-romance, que se origina no siste-
ma vocálico do latim vulgar; um sistema simétrico e bastante equilibrado, que, portanto,
seria em princípio refratário à mudança. Segundo esses autores, a palatalização seria de-
terminada “por uma condição constante, a assimetria essencialmente anatômica dos ór-
gãos de fala, de um lado, e por uma condição imediata, o grande número de graus de
abertura do sistema de outro” (p. 111). Assim, a palatalização (ou anteriorização) do /u/
se explicaria pela pressão decorrente do menor espaço articulatório reservado aos fone-
mas vocálicos posteriores, que tornariam difícil a manutenção de um sistema com quatro
graus de abertura, como se pode ver no esquema abaixo:
Lat. Vulgar (mudanças) Galo-romance
i u /u/>/ü/ i ü u
e o /o/>/u/ e
   

139
a a
Ora, se aceitarmos uma explicação desse tipo para o galo-romance, deveríamos
então explicar a conservação no romance galego-português do sistema primitivo do latim
vulgar, dizendo que os habitantes do noroeste da Península Ibérica possuíam um aparelho
fonador maior do que o dos habitantes da antiga Gália181. Essa redução ao absurdo mostra
a absoluta fragilidade do argumento funcionalista-fisicista.

As implicações da explicação teleológico-funcionalista da mudança para


a concepção da língua como um sistema funcional

A discussão anterior sobre a sustentação empírica das explicação das mudanças


particulares autoriza-nos a passar para a discussão dos princípios fundamentais da expli-
cação da mudança lingüística, no Estruturalismo Diacrônico. Cumpre destacar nesse
momento a afinidade essencial que existe entre a chamada explicação teleológica de Ja-
kobson e a explicação causal de Martinet, que definem as vertentes ortodoxa e a hete-
rodoxa dessa Escola. Tanto a corrente teleológica quanto a funcionalista causal buscam
explicar a mudança pela funcionalidade do sistema lingüístico; só que, enquanto a visão
teleológica busca explicar as mudanças exclusivamente pela lógica funcional interna ao
sistema lingüístico homogêneo e unitário, para Martinet esse fator é restringido pela limi-
tações fisiológicas. Contudo, no núcleo de ambas as concepções, está a lógica do funcio-
namento do sistema homogêneo e unitário. Martinet apenas apresenta uma condição de
aplicação dessa lógica, em nenhum momento ele a revê. Com base nessa identidade es-
sencial, reunirei essas duas correntes do Estruturalismo Diacrônico e discutirei a seguir os
princípios básicos dessa concepção teleológico-funcionalista da mudança e as suas impli-
cações para a concepção estruturalista de língua como um sistema homogêneo e unitário.
O princípio teleológico está presente na produção do saber desde Aristóteles, que
propugnava por um telos imanente à natureza que lhe conduziria a ela, enquanto natureza,
a realizar a virtude e a perfeição. Assim, de uma maneira ou de outra, pode-se surpreen-
der na história da produção do conhecimento a transferência de esquemas e propósitos da
racionalidade sobrepondo-se a lógica própria (ou a não-lógica) do objeto que se pretende
apreender. O princípio da identidade desempenha igualmente um papel decisivo em legi-
timar como naturais juízos e propósitos que se esteiam numa dada racionalidade, e não no

181
O fato de os habitantes dos Açores e de algumas localidades do sul de Portugal também palatalizarem o
/u/, aduzido por esses autores, não anula o fato fundamental de, na norma mais geral do português europeu
e no português do Brasil, a palatalização não ter ocorrido.

140
estado de coisas observados. O positivismo, por exemplo, apoiando-se numa suposta
identidade nomotética entre o mundo natural e o mundo social, enquadrava os fatos soci-
ais em categorias tais, como ‘estado de equilíbrio’ e ‘ações restauradoras’, que se justifi-
cavam menos pelo estado de coisas no mundo social observado, do que pela racionalida-
de do observador, ou pelas disposições dessa racionalidade no próprio mundo social. Por-
tanto, categorias como ‘equilíbrio’ e ‘função’, e o seu móvel teleológico, dizem mais res-
peito à racionalidade que as produz do que ao objeto ao qual se aplicam num processo de
hipóstase.
Em termos lingüísticos, o problema reside em encontrar evidências empíricas para
a definição de um estado de língua como ‘equilibrado’ ou ‘desequilibrado’, ou de uma
mudança lingüística como ‘funcional’ ou ‘disfuncional’. O problema lógico dessas cate-
gorias é o de que não existe “evidência para elas que seja independente de suas alegadas
manifestações” (Woodfield, 1976: 7). A única evidência que a explicação teleológica-
funcionalista apresenta para atribuir uma função a uma dada mudança é o próprio resulta-
do dessa mudança. E, como observa Lass (1980: 80), esse raciocínio corresponde, em
termos lógicos, à falácia post hoc, ergo propter hoc. Se uma mudança cumpre a função
de restaurar o equilíbrio do sistema, a sua não ocorrência implicaria a permanência do
estado de desequilíbrio do sistema. Considerando-se que a situação de equilíbrio é deter-
minada pelas funções que a língua cumpre na sociedade, uma situação de desequilíbrio
prolongada (pela ausência de uma mudança que fosse, de fato, reparadora) deveria pro-
vocar algum tipo de ‘falha lingüística’ na comunidade afetada. Como não se conhece ne-
nhum caso de alguma comunidade que tenha experimentado ‘falhas lingüísticas’ dessa
natureza (isto é, funcionalmente induzidas), todo o raciocínio teleológico-funcionalista se
torna vazio.
Por outro lado, militando também contra esse tipo de explicação está o fato evi-
dente de que todas as línguas vivas estão em processo permanente de mudança:

Se fosse verdade que a mudança lingüística é geralmente funcional, então seria verdade
que (como alguns lingüistas de Praga pensam) a história da língua é uma história ‘adapta-
tiva’. E – desde que, até onde eu sei, as língua mudam continuamente – isto significaria
que a língua nunca está ‘adaptada’ ou ‘ajustada’, mas está continuamente tentando atingir
esse estado (e nunca consegue realizá-lo totalmente). Isso se manteria em bases (a priori)
puramente metafísicas (...) não se apresentou até agora qualquer base racional para tal te-
oria: nunca se identificou independentemente estigmas de línguas não-ajustadas, exceto, é
claro, post (e ad) hoc: ‘elas não mudariam se elas fossem adaptadas’. Seriamente, isso é
inaceitável. A implicação disso seria a de que o alto germânico antigo evoluiu para o alto
germânico médio, porque não se adaptava mais as necessidades de seus falantes, e o
mesmo para o latim vulgar e os romances, etc. (Lass, 1980: 85)

141
Além disso, o eterno movimento de ajuste e desajuste da língua, circunscrito ex-
clusivamente ao âmbito da funcionalidade interna do sistema lingüístico, conduz natu-
ralmente à crença em um deus perverso, e operoso, que labutasse continuamente para im-
pedir a realização da tendência, normal e constante da língua em atingir o seu equilíbrio.
Em última instância, o que está em jogo aqui não é apenas a explicação teleológi-
co-funcionalista da mudança, mas a própria concepção de língua como um sistema funci-
onal em que assenta essa explicação, porque o que invalida esse tipo de explicação é a
vacuidade da noção de equilíbrio/desequilíbrio do sistema, que determina a função atribu-
ída à mudança. A noção de equilíbrio do sistema não é, como já vimos, exclusiva da aná-
lise diacrônica, ela está, pelo menos de forma implícita, igualmente presente na descrição
sincrônica. Toda descrição sincrônica autônoma assenta na idéia de que o sistema em ca-
da momento se encontra numa situação de equilíbrio instável que permite à língua de-
sempenhar as suas funções dentro da comunidade de fala. Desse modo toda a estrutura
lingüística, bem como as mudanças que a ela sobrevenham, devem ser analisadas a partir
da lógica decorrente desse equilíbrio funcional. Mas se a idéia desse equilíbrio, ou a su-
posta tendência para esse equilíbrio, revelam-se inócuas para a explicação das mudanças
que se operam no sistema lingüístico, a própria concepção de língua que se fundamentava
na idéia desse equilíbrio funcional está comprometida.

O vôo de Ícaro, ou o papel da questão da mudança na superação da


concepção estruturalista de língua como sistema

Ao entregar ao seu filho Ícaro o par de asas que fabricara, Dédalo, que havia fixa-
do as plumas à armação com cera, advertiu-o para que não voasse muito alto. Durante o
vôo, em que escapavam do labirinto, Ícaro, fascinado com a sensação de conquista do
infinito, começou a galgar as alturas, não dando ouvido aos apelos do pai. Da aproxima-
ção demasiado perigosa do sol resultou derretimento da cera que sustinha o seu engenho
alado, e a queda fatal nas águas do mar. Ao construir a sua concepção estrutural da lín-
gua, Saussure advertiu os seus seguidores de que ela não se aplicava ao domínio da dia-
cronia, e os alertou dos riscos que provinham da consideração do fator tempo na análise
lingüística. Fascinados, como Ícaro, com os êxitos iniciais de seu vôo estrutural, os mem-
bros do Estruturalismo Diacrônico se aproximaram fatidicamente do sol da história e as-
sim acabaram por desfazer a estrutura do engenho que sustinha o seu vôo. Analisar, por-
tanto, o desfazer desse engenho em face do calor da verificação empírica oferece lições

142
preciosas acerca das exigências que se colocam para a Lingüística na tarefa de construir o
seu objeto de estudo.
Ao aplicar o seu método de análise aos fatos da dimensão histórica das línguas, o
Estruturalismo não apenas revelou a sua incapacidade em explicar esses fatos, como tam-
bém a inadequação da concepção que fundamentava o seu método. A natureza empírica
dos fatos que se devem considerar quando se olha para a história de uma língua impõe
um nível de exigência de verificação que as concepções do Estruturalismo não poderiam
suportar. Ao tratar da mudança lingüística, o Estruturalismo Diacrônico tentou encerrá-la
na lógica interna do sistema lingüístico autônomo, ou seja, nas relações ‘objetivas estru-
turantes’, quando, por sua própria natureza, a questão da mudança exigia a consideração
das disposições em que essas relações objetivas se estruturam. Tal exigência determinava,
portanto, a necessidade de uma ruptura com o modo do conhecimento objetivista (no ca-
so, com o modelo teórico estruturalista); de conceber não apenas a mudança, mas a pró-
pria língua, como o resultado de um conjunto muito mais amplo de determinações; não
apenas estruturais e fisiológicas, mas também sociais, históricas e ideológicas. Assim, a
questão da mudança não apenas determinou o fim da concepção estruturalista de língua,
como também determinou os caminhos para a constituição de uma nova concepção do
objeto de estudo, que fundamentasse toda a análise lingüística.
A teorização necessária para se cobrir as lacunas deixadas pela explicação estrutu-
ralista da mudança passaria necessariamente pela superação da concepção estruturalista
do objeto de estudo, determinando uma ruptura teórico-metodológica em relação a esse
modelo teórico no seio da ciência lingüística. A maior prova disso está no fato de que,
exatamente através do estudo da mudança, a Sociolingüística Variacionista lançará, na
década de 1960, os fundamentos empíricos, não apenas de uma nova teoria da mudança,
mas de uma nova teoria da língua182. As linhas gerais desse movimento teórico constitui-
rão o objeto da 3ª Parte deste livro.

182
Cf. Labov, 1982: 21: “The strategy of Weinreich, Labov, Herzog (1968) is to contribute to the general
theory of language by way of a theory of language change.”

143
3ª Parte

O SISTEMA NO DOMÍNIO DA MUDANÇA

144
As mudanças não podem ser consideradas na sincronia, e es-
ta é realmente uma contradictio in adiecto, pois equivale a
querer comprovar “o movimento no imóvel”.
COSERIU

Nas duas primeiras partes deste livro, procurei descrever um dos percursos atra-
vés do qual o Estruturalismo se constituiu, durante a primeira metade deste século, no
modelo teórico hegemônico na Lingüística. Todo esse percurso gira em torno da concep-
ção de língua como o objeto de estudo da Lingüística desenvolvida pelo Estruturalismo;
concepção esta que articula todo o seu aparato teórico-metodológico. É, portanto, através
da superação dessa concepção que se pode descrever o ocaso do Estruturalismo e com-
preender as vertentes formadoras do panorama atual da ciência da linguagem.
O surgimento do Estruturalismo e a elaboração de sua concepção do objeto de es-
tudo se identificam com a figura de Ferdinand de Saussure. Através da formulação de sua
concepção de língua, Saussure conseguiu responder a questão crucial que se colocava pa-
ra a Lingüística naquele momento: produzir uma concepção de língua globalizante que
pudesse orientar todos os estudos que dela se fizessem. Essa perfeita articulação teórica
entre a maneira de conceber a língua como objeto de estudo e o modo de apreendê-la
através da análise lingüística possibilitaram ao Estruturalismo alcançar a posição de he-
gemonia no cenário da ciência lingüística.
Sendo o desenvolvimento de uma ciência determinado pelas questões através das
quais essa ciência problematiza a apreensão do seu objeto de estudo (e, a fortiori as ques-
tões através das quais ela constrói o seu objeto), pode-se dizer que a grande questão que
marca o desenvolvimento estruturalista da Lingüística é a de como a língua funciona.
Desde um ponto de vista estrutural, a análise lingüística se concentra na identificação das
unidades funcionais da língua e no estabelecimento das relações objetivas que lhe garan-

145
tem o funcionamento enquanto um sistema organizado e autônomo. Esse funcionamento
interno da língua deve ser sempre articulado com o seu funcionamento externo dentro da
sociedade, como um sistema provedor de informação representacional.
Por outro lado, incorporando um pouco da visão de Hyme (1974) do desenvolvi-
mento da Lingüística como uma sucessão de cinosuras, pode-se dizer também que o de-
senvolvimento de uma ciência é marcado por idas e vindas, em que o seu foco de atenção
se desloca de umas questões para outras, na passagem de um modelo teórico a outro.
Dessa forma, a grande contribuição de Saussure para a Lingüística deste século está na
redescoberta da dimensão estrutural e estruturante da linguagem; no grau de complexida-
de e formalização com que ele enfatiza essa dimensão do fenômeno lingüístico, a tal pon-
to que consegue articular todo um modelo teórico voltado apenas para a análise do seu
funcionamento nessa dimensão.
Tal maneira de conceber o fenômeno lingüístico levanta uma questão empírica
crucial: onde situar essa dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico?
Saussure procurou responder a questão, tentando garantir, não apenas a sustentação empí-
rica para a sua concepção de língua, bem como a sua coerência interna. O caminho que
adotou foi o de promover recortes sobre a “matéria da Lingüística” através de suas famo-
sas dicotomias, até deslindar o seu objeto de estudo. O primeiro passo foi descartar a ati-
vidade lingüística concreta, através da dicotomia língua e fala. Num segundo momento,
foi preciso retirar o produto desse primeiro recorte da ação do tempo, o que Saussure fez
com a dicotomia entre diacronia e sincronia. Através da interação dessas duas dicoto-
mias, consegue, então, isolar o objeto de estudo da Lingüística: a língua, concebida como
um sistema homogêneo, unitário e autônomo, constituído por unidades invariáveis e
estruturado por relações exclusivamente sincrônicas entre seus elementos constituintes. A
língua, assim concebida, situa-se no plano imponderável de alguma coisa como uma
“consciência coletiva” e está imune ao devir histórico.
A localização do foco da atenção do Estruturalismo na dimensão estrutural e fun-
cional do fenômeno lingüístico veio em detrimento da consideração de sua dimensão his-
tórica, focalizada com exclusividade pela, até então vigente, tendência historicista, lide-
rada pelos neogramáticos. Esta seleção de aspectos do objeto de estudo a serem conside-
rados – ou de questões a serem formuladas sobre esse objeto de estudo – deve ser anali-
sada em função da concepção axiomática que o Estruturalismo definiu para a Lingüística,
e dos limites que está concepção estabeleceu183. Definindo como objeto de estudo a lín-

183
Como observou Labov (1982: 21): “A general theory is constructed from answers to general questions
about the object of interest; these questions in turn depend upon an accepted definition of the object, usual-
ly cast in structural-functional terms.”

146
gua, concebida como um sistema homogêneo, unitário e autônomo, e a sua principal tare-
fa a de descrever a sua estruturação e o seu funcionamento internos, o modelo teórico es-
truturalista não podia incorporar como objetos de sua reflexão sistemática nem a prática
lingüística concreta, nem o processo sócio-histórico de constituição da língua. Bania-se,
desse modo, todas as questões relativas ao caráter social e histórico da língua dos princi-
pais cenários teóricos da ciência de linguagem.
Saussure estava consciente da ameaça que a questão da mudança representava pa-
ra a sua teorização, dada a impossibilidade de acomodar os fatos da mudança em sua re-
presentação da língua. Como bem observou Labov (1982: 22-23):

A existência de mudança lingüística dentro de uma comunidade de fala cria sérios pro-
blemas para aqueles que trabalham com a expectativa de uma estrutura homogênea. Se a
língua X está em processo de mudança, há em princípio não uma resposta à questão
“Como a língua X funciona?”. Ela funciona de várias e diferentes maneiras. O primeiro
passo na construção de uma teoria geral desse tipo não é então unicamente determinado.
Como Weinreich, Labov e Herzog (1968) destacaram, há uma contradição implícita entre
a visão estruturalista de língua e os fatos da mudança: a proporção em que a Lingüística
se tornava mais impressionada com o caráter sistemático da estrutura da língua, tornava-
se mais difícil conceber a mudança dentro do sistema.

Desse modo, a contradição teórica entre sistema e mudança engendrada pelo Es-
truturalismo na Lingüística se define como a principal contradição desse modelo. A rígida
oposição entre sistema e mudança nos termos estabelecidos por Saussure, em sua dicoto-
mia entre o sincrônico e o diacrônico, longe de ser gratuita ou incongruente, se constituía
em uma das vigas fundamentais para a sustentação do edifício teórico por ele concebido.
O segundo momento do percurso que aqui se analisou foi constituído pelo desen-
volvimento da teoria lingüística de Saussure promovido pelos trabalhos do Círculo Lin-
güístico de Praga e pela auto-intitulada tendência funcionalista do Estruturalismo Lin-
güístico capitaneada por André Martinet. A base teórica desse desenvolvimento pode ser
expressa pela articulação da concepção estrutural de língua com a noção de funcionalida-
de. Tal noção de funcionalidade aplica-se tanto à estruturação interna do sistema lingüís-
tico, quanto à funções que esse sistema desempenha na sociedade. A língua passa a ser
vista então como um sistema funcional. Essa tendência funcionalista184 constitui uma no-
va etapa no desenvolvimento do Estruturalismo basicamente por duas razões:
(i) formalizou um modelo de análise que permitiu a aplicação dos princípios teó-
ricos gerais de Saussure à análise concreta dos fatos lingüísticos; e

184
Utilizo a expressão tendência funcionalista, ou estrutural-funcionalista, para me referir ao Círculo de
Praga, e a Martinet e seus seguidores, tomando-os em conjunto.

147
(ii) buscou superar a contradição estabelecida por Saussure entre sistema e mu-
dança, com o objetivo de dar maior concretitude a apreensão e representação do objeto de
estudo da Lingüística.
Nesses dois planos a aplicação da noção de funcionalidade à concepção Saussuri-
ana de língua desempenhou um papel decisivo. Relativamente a (i), ela permitiu a inte-
gração do nível fônico da língua – que fora excluído por Saussure – no campo dos estu-
dos lingüísticos. Disso resultou a poderosa teoria fonológica estrutural que marcou pro-
fundamente os estudos lingüísticos nas décadas de 1930, 40 e 50. Com efeito, a fonologia
tornou-se o nível de estudo da língua em que o Estruturalismo logrou os seus maiores êxi-
tos. A aplicação do método estrutural à morfologia, à semântica e principalmente à sinta-
xe mostrou-se bem menos profícua. E o sistema fonológico consagrou-se como a mais
completa formalização analítica da concepção de língua como sistema.
Animados com os sucessos alcançados pelo método estrutural na análise sincrôni-
ca, os membros da tendência funcionalista decidiram estender os domínios da análise es-
trutural ao plano da diacronia, atravessando a fronteira que Saussure proclamara intrans-
ponível. Alguns chegaram a afirmar que a oposição absoluta que o Mestre de Genebra
estabelecera entre o sincrônico e o diacrônico era incongruente e injustificável; e todos
questionavam por que o método estrutural que servia tão bem aos propósitos de estudar o
funcionamento da língua em um dado momento não poderia servir para explicar o pro-
cesso de constituição da língua. Surge, assim, o Estruturalismo Diacrônico. Nessa ver-
tente do modelo estruturalista, a história da língua é vista como a história do sistema lin-
güístico, concebida com a sucessão de sistemas discretos e independentes – perfazendo
cada um uma sincronia –, que corresponderiam ao que Saussure chamou de estados de
língua.
A passagem de um sistema a outro seria explicada, tanto pelo funcionamento in-
terno do sistema fonológico (sua configuração estrutural e as pressões estruturais dela
provenientes; seu estado de equilíbrio geral, com especial destaque para os pontos de de-
sequilíbrio; etc.), quanto por sua funcionalidade externa como sistema de comunicação
social (a necessidade de manter as oposições distintivas relevantes, as pressões exercidas
pelo surgimento de novas necessidades comunicativas, etc.) articulada com os limites im-
postos pela configuração fisiológica do aparelho fonador (i. é, a inércia e assimetria dos
órgãos da fala), reunidos no conceito martinetiano de economia.
Contudo, os desafios impostos pela empresa de explicar o desenvolvimento histó-
rico de uma língua – com especial destaque para o grau de exigência empírica que tal
empresa exige – só vieram a demonstrar as limitações do método estrutural e confirmar a
assertiva de Saussure sobre a impossibilidade da sua utilização no estudo da dimensão

148
histórica do fenômeno lingüístico. As limitações da chamada explicação estrutural-
funcionalista para a história das línguas e a sua falta de fundamentação empírica acaba-
ram por pôr em xeque tanto esse esquema explanatório quanto a concepção teórica do
objeto de estudo que o fundamentava.
O Estruturalismo Diacrônico hipotecou a análise estruturalista do funcionamento
sincrônico da língua como garantia da explicação estrutural-funcionalista da mudança
lingüística. Desse modo, o insucesso dos seus esquemas explicativos no plano diacrônico
comprometeu também o seu esquema de análise no plano da sincronia, e, mais ainda, co-
locou em questão a própria concepção do objeto de estudo, na qual esse modelo se fun-
damentava. A busca por soluções para as incongruências, paradoxos e lacunas produzidos
pela abordagem estrutural-funcionalista da mudança se converteu em um terreno privile-
giado para a revisão (ou mesmo, superação) da concepção estruturalista de língua, crian-
do as condições para uma ruptura epistemológica em relação ao aparato teórico-
metodológico de todo o Estruturalismo.
Algumas das limitações da abordagem estrutural-funcionalista foram notadas já
nos estudos dessa vertente teórica. A incapacidade de circunscrever a explicação da mu-
dança à lógica do funcionamento interno do sistema lingüístico, por exemplo, foi desta-
cada pelo próprio Martinet (1955: 54):

Não nos cansaremos de repetir que ninguém jamais pretendeu que os fatores fo-
nológicos internos sejam os únicos, nem mesmo que sejam necessariamente os mais deci-
sivos.

Assim, já no seio do Estruturalismo Diacrônico se observava que, para se dar con-


ta da questão da mudança, era necessário abarcar os chamados fatores externos ao siste-
ma lingüístico. Conseqüentemente, era necessário ampliar a visão de língua com a qual se
operava. Mas o ponto de vista estrutural-funcionalista, na prática, só permitia ver a mu-
dança como uma função do sistema. A mudança deveria ser sistemática e absoluta. Em
outras palavras, se uma mudança afeta um fonema em um determinado contexto, ela deve
atingir todas as realizações desse fonema nesse contexto, com a mesma direção e intensi-
dade. Ou, como disse Martinet (1955: 27):

Em todo caso, é claro que, se nas descrições sincrônicas podemos repartir a


grande maioria dos sons usados numa língua em um número definido de fonemas, isso se
deve a que, em regra geral, todas as realizações de um determinado fonema, em um de-
terminado contexto, mudam no mesmo sentido e com o mesmo ritmo.

Porém, a ordem lógica deste raciocínio pode ser invertida, e a sua conclusão pode
ser tomada como premissa. A descrição do sistema fonológico de um determinado estado

149
de língua dentro de uma lógica sistemática unitária não é uma resultante da comprovação
de um processo sistêmico e unitário de constituição histórica da língua; em realidade, a
afirmação de que a mudança se processava de uma forma sistemática absoluta é uma con-
seqüência da adesão de Martinet à visão sistemática de língua do Estruturalismo. E esta
passagem ganha especial importância na medida em que revela nitidamente a interdepen-
dência entre a concepção de língua do Estruturalismo e a sua maneira de abordar a ques-
tão da mudança.
Estudos posteriores – Wang (1969 e 1973) e Labov (1981) – demonstraram que
pelo menos uma parte das mudanças fônicas não são lexicalmente abruptas (i. é., não
atingem simultaneamente todas as palavras que possuem o fonema no contexto em que se
opera a mudança), como afirmaram os neogramáticos e como o reafirmaram os estrutura-
listas, que viam a mudança fonológica como sistemática185. Wang (1969) demonstrou
que a mudança fônica muitas vezes atinge progressivamente o conjunto dos itens lexicais
que potencialmente podem sofrer essa mudança e verificou a presença de forças concor-
rentes que atuam na implementação das mudança fonológica. A interação dessas forças
concorrentes, que Wang formalizou através de regras específicas, determina não apenas a
direção da mudança, como também pode interromper o seu processo de implementação,
do que resultam os chamados resíduos das mudanças fonológicas. Isso coloca um sério
problema para visão estrutural em sua abordagem diacrônica.
Fundamentado em sua visão de língua como um sistema homogêneo e unitário, o
Estruturalismo só pôde admitir uma lógica atuando ao nível do sistema; por conseguinte a
mudança fonológica devia ser regida por uma lógica única e operar sistematicamente. A
demonstração de que a mudança fonológica não é regida por uma única lógica sistemáti-
ca, mas por “várias lógicas concorrentes” não apenas demonstra a incapacidade de a
abordagem estrutural apreender adequadamente os processos de mudança lingüística,
como também atinge a sua concepção de língua. Se o sistema lingüístico é realmente uni-
tário e homogêneo, como explicar que várias lógicas concorrentes atuem no seu interi-
or? Ou, como explicar que ele opera de várias maneiras?
Por outro lado, no programa do Estruturalismo Diacrônico, a análise sincrônica da
língua deveria permanecer intacta. Desse modo, o processo histórico de constituição de
uma língua deveria ser visto como uma sucessão de sistemas lingüísticos homogêneos e
unitários, ou seja de estados sincrônicos, ligados por períodos de mudança. A artificiali-
dade de tal visão é reconhecida pelo próprio Martinet (1955: 34):

185
E. Coseriu (1979 [1958]) chega mesmo a comparar uma mudança fonológica à mudança de um tipo nu-
ma máquina de escrever para ilustrar esse seu caráter sistemático.

150
Convém insistir sobre o caráter necessariamente parcial das explicações apresen-
tadas em fonologia diacrônica. Se (...) existe, em todo sistema fonológico em todos os
instantes de sua história, zonas em que mudanças estão em preparação ou em processo, se
a evolução fônica não procede por vagas entre dois períodos de estabilidade, toda tentati-
va de limitar o exame diacrônico a um certo lapso de tempo terá necessariamente um ca-
ráter artificial.

Ao invés de demonstrar a necessidade de estender a consideração sistemática da


língua à mudança e à história, emergia a necessidade de trazer a mudança e a história para
a consideração sistemática da língua:

De fato, é provável que a maior parte dos sistemas fonológicos observáveis apresentem
indícios de desequilíbrio devido à existência de tais variações que se desenvolvem pro-
gressivamente. (id., ibid.: 25)

Ao invés de se estender o conceito de sistema utilizado na sincronia ao estudo da


mudança, o que se via era a necessidade de se considerar a mudança através da observa-
ção sistemática da variação na análise sincrônica; donde a necessidade de situar a varia-
ção no plano do sistema lingüístico, integrando a variação na representação da língua. E
como essa “variação inerente cria sérios problemas para aqueles que abordam essa ques-
tão básica [da representação da língua] com a expectativa de encontrar uma estrutura ho-
mogênea”186, os dias do sistema lingüístico unitário, homogêneo, formado por unidades e
regras invariáveis estavam contados.
Assim, a questão da mudança passa a desempenhar um papel crucial na supera-
ção da concepção de língua e de todo o aparato teórico metodológico do Estruturalismo.
As seguintes considerações de Labov (1982: 19-20) deixam bem claro por que o campo
da mudança era o terreno privilegiado para que a Sociolingüística desenvolvesse um novo
aparato teórico-metodológico, baseado em uma maneira diferente de representar a língua
como objeto de estudo:

Por que então Weinreich, Labov e Herzog (1968) propuseram princípios especificamente
como fundamentos para a teoria da mudança Lingüística? A primeira razão é tática. A
demanda por homogeneidade, e a conseqüente retração ao idioleto são movimentos razo-
áveis como primeiros passos de uma descrição lingüística. Mas, no estudo da mudança
lingüística, é totalmente diferente. É possível estudar mudanças concluídas, como uma
série de substituições discretas de elementos em sistemas homogêneos. Mas ninguém ja-
mais perdeu de vista o fato de que a mudança é o processo de substituição, não o resulta-
do desse processo. Quando nós estudamos esse processo diretamente, nós somos confron-
tados imediatamente com o caráter heterogêneo do sistema lingüístico. Mudança implica
variação; mudança é variação. [grifos do original]

Assim, os estudos práticos e a elaboração de uma teoria geral da mudança lingüís-


tica, iniciados pela Sociolingüística, na década de 60, constituíam uma estratégia através
186
Labov, 1982: 22.

151
da qual essa corrente teórica buscava desenvolver uma nova concepção do objeto de es-
tudo da Lingüística. Isso é também declarado de maneira explícita por Labov (1982, 21):

A estratégia de Weinreich, Labov e Herzog (1968) é contribuir para a teoria ge-


ral da linguagem através de uma teoria da mudança lingüística.

A afirmação de uma nova maneira de conceber o objeto de estudo ocupa uma po-
sição central no processo de ruptura epistemológica através do qual um modelo teórico
sucede a outro na disputa pela hegemonia que caracteriza o desenvolvimento histórico de
uma ciência. Isso transforma a Sociolingüística Variacionista num dos candidatos a suce-
der o Estruturalismo como modelo hegemônico no estágio atual da ciência lingüística,
cuja gênese é definida pelo acirramento da contradição entre mudança e sistema no seio
do Estruturalismo. A importância dessa contradição pode ser atestada pelo surgimento,
não apenas da Sociolingüística, mas de um conjunto de escolas que se concentraram na
tarefa de desenvolver um modelo que fosse capaz de dar conta de maneira satisfatória da
dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico, isto é, dos fatos relativos à variação e
à mudança lingüística e à interação entre língua e sociedade187.
Se o surgimento da Sociolingüística representa de fato uma ruptura epistemológi-
ca, se esse modelo altera a orientação teórica até então vigente ou representa uma conti-
nuação do que se vinha fazendo, e como todo esse processo se insere na configuração do
estágio atual da Lingüística são questões que serão abordadas nesta 3ª Parte, que finaliza
este livro. No Capítulo VI, buscarei traçar, em linhas gerais, o surgimento da teoria da
Sociolingüística Variacionista. No Capítulo VII, apresentarei um quadro geral dos avan-
ços e limitações do tratamento sociolingüístico da questão da mudança em relação às la-
cunas e paradoxos já identificados no esquema explanatório estrutural-funcionalista, e
buscarei analisar em que medida esses avanços e limitações definem a posição da Socio-
lingüística no panorama atual da Lingüística.

187
As duas correntes ou programas de pesquisa que, além da Sociolingüística, se colocam nesta situação
são a Etnografia da Fala e a Sociologia da Linguagem, lideradas respectivamente Dell Hymes e Joshua
Fishman (cf. Tarallo, 1990: 196-7). Hymes destaca a importância da diversidade que caracteriza a dimensão
sócio-histórica do fenômeno lingüístico dentro do seu programa de pesquisa ao afirmar que “we start from
the speech community conceived as an organization of diversity; we require concepts and methods that
enable us to deal with that diversity, that organization”. Fishman (1972: 45), de outra parte, enfatiza a in-
teração entre língua e sociedade: “The Sociology of Language examines the interaction between these two
aspects of human behavior: use of language and the social organization of behavior (...) the sociology of
language focuses upon the entire gamut of topics related to the social organization of language behavior,
including not only language use per se but also language attitudes, overt behavior toward language and to-
ward language users”.
Dentro dos limites estabelecidos para este livro, só serão analisadas as formulações da Sociolin-
güística Variacionista em sua relação com os problemas que emergiram da crise do Estruturalismo Lingüís-
tico.

152
153
CAPÍTULO VI

A SISTEMATICIDADE DA MUDANÇA:
DO ESTRUTRALISMO À SOCIOLINGÜÍSTICA

O estudo da mudança em progresso

A Sociolingüística Variacionista surge durante a década de 1960, fundamental-


mente a partir dos estudos de William Labov sobre mudanças em progresso no inglês da
ilha de Martha's Vineyard (1963) e da cidade de Nova York (1966), levados a cabo sob a
orientação de Uriel Weinreich. Apesar de esse modelo apresentar discordâncias com os
mais importantes princípios teóricos que presidiam o estudo da mudança até então, po-
dem-se identificar alguns dos seus precursores através das referências feitas pelo próprio
Labov. Assim, Antoine Meillet é aquele que já na década de 20 pensava a explicação da
mudança através da consideração do contexto social (cf. Labov, 1972 [1970]: 185). O
próprio Martinet também é referido como um daqueles que “haviam consistentemente
erodido” a rígida dicotomia saussuriana entre análise sincrônica e diacrônica, através de
suas análises estruturais de mudanças ocorridas no passado188 (cf. Labov, 1972: xix-xx).
Mas é a investigação de Gauchat (1905) da comunidade francófona suíça de Charmey
que é considerada o “protótipo” da abordagem sociolingüística da mudança (cf. Labov,
1972 [1963]: 22-3).
O trabalho de Gauchat se destaca por ser o primeiro estudo que tomou como obje-
to a mudança lingüística em progresso. Gauchat analisou a variação em seis traços fo-
nológicos na comunidade de fala, e, observando a diferenciação através de três faixas etá-
rias, inferiu a existência de mudanças em progresso nos traços fonológicos estudados.
Essas inferências foram largamente confirmadas por Hermann que, em 1929, analisou
quatro dos seis traços apontados por Gauchat, na mesma comunidade189.
Essa filiação dos estudos de Labov aos estudos de Gauchat revelam claramente
um propósito da análise sociolingüística: rever a idéia até então predominante de que a
mudança lingüística não podia ser estudada diretamente, e sim somente após estar conclu-

188
O que mais uma vez comprova a tese de que o Estruturalismo Diacrônico abre os caminhos para o mo-
delo sociolingüístico.
189
cf. Labov (1972 [1963]).

154
ída190. O recurso utilizado por Labov para superar esse obstáculo foi o de procurar entre-
ver a mudança em progresso na variação observada na língua num determinado momen-
to, o que ele definiu como o estudo da mudança no tempo aparente. Assim, o estudo da
mudança na análise sincrônica abria os caminhos para a definitiva superação da dicoto-
mia saussuriana entre sincronia e diacronia.
Contudo, para confirmar a relação entre variação e mudança como o caminho pri-
vilegiado para se estudar o processo da mudança lingüística, era preciso superar também
a idéia de que a variação era em larga medida livre, i. é., não-condicionada191. Era preciso
considerar a variação como parte integrante do sistema lingüístico para que ela constituís-
se objeto da análise lingüística sistemática; rompendo, assim, com a visão estruturalista
de que o sistema lingüístico seria o domínio da invariância. A tarefa de determinar a sis-
tematicidade da variação levantava a necessidade de se considerar os chamados fatores
externos na análise lingüística, pois o que era, no plano estritamente lingüístico, aleatório
tornava-se sistemático quando correlacionado com os fatores sociais e estilísticos. Em seu
estudo da centralização dos ditongos (ay) e (aw) em Martha's Vineyard, Labov (1972
[1963]: 9) afirmava:

[mesmo] quando a tendência à centralização é mapeada nos hábitos de muitos


falantes, e a influência dos contextos fonéticos, prosódicos e estilísticos é considerada,
permanece uma larga área de variação. Ao invés de chamar isso variação “livre” ou “es-
porádica”, e abandonar o campo de pesquisa, nós avançaremos ainda mais sobre o assun-
to, usando toda chave disponível para descobrir o padrão que governa a distribuição dos
ditongos centralizados.

As chaves para descobrir os padrões que governavam a variação na estrutura lin-


güística foram encontradas na estratificação social e na avaliação social das variantes lin-
güísticas, tanto no estudo de Martha's Vineyard quanto no estudo de Nova York:

Em nossos estudos das comunidades de fala de Martha’s Vineyard e da cidade de Nova


York, relações regulares foram encontradas onde estudos anteriores mostravam oscilação
caótica e variação livre massiva. Essas descobertas nos capacitaram a estabelecer um nú-
mero de padrões sociolingüísticos concernentes às relações de variação estilística, estrati-
ficação por classes sociais e avaliação subjetiva. (Labov, 1972 [1965]: 160)

Desse modo, abriam-se também os caminhos para superar a visão estruturalista de


que a análise lingüística se circunscrevia aos limites das relações internas ao sistema lin-
190
Falando das barreiras que se colocavam na tradição lingüística à sua maneira de conceber a mudança,
Labov (1972: xix-xx) destaca, além da rígida dicotomia saussuriana entre sincronia e diacronia, a impossi-
bilidade levantada por Bloomfield e Hockett de se observar diretamente a mudança lingüística: “Bloomfield
defended the regularity of sound change against the irregular evidence of the present by declaring
(1933:364) that any fluctuations we might observe would only be cases of dialect borrowing. Next Hockett
observed that while sound change was too slow to be observed, structural change was too fast (1958:457).”
191
Cf. Labov, 1972: xx.

155
güístico. A teoria sociolingüística, apesar de reconhecer que observar o encaixamento da
mudança na estrutura lingüística é o primeiro passo para entender o mecanismo da mu-
dança, afirma que, apenas a consideração desse fatores estruturais internos não é suficien-
te para construir uma explicação da mudança:

A contribuição das forças estruturais, internas para a difusão efetiva da mudança


lingüística, como formalizado por Martinet (1955), deve ser naturalmente a primeira pre-
ocupação para qualquer lingüista que esteja investigando esses processos de propagação e
regularização. Contudo, uma explicação das pressões estruturais dificilmente pode contar
toda a história. Nem todas as mudanças são altamente estruturadas, e nenhuma mudança
acontece num vácuo social. Mesmo a mais sistemática mudança em cadeia ocorre com
uma especificidade de tempo e lugar que demanda uma explicação. (Labov, 1972 [1963]:
2)

Assim, o modelo sociolingüístico de explicação da mudança rompe com os limi-


tes impostos pela concepção estruturalista, “expandindo a visão do encaixamento estrutu-
ral delineada por Martinet (1955)”192. Todo esse percurso configura o que Bourdieu (1983
[1972]: 47) definiu como a passagem do modo objetivista do conhecimento ao seu modo
praxiológico, através da qual, na apreensão do objeto de estudo, o “sistema de relações
objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói” é integrado “nas relações
dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e
que tendem a reproduzi-las”193.

Uma teoria sociolingüística da mudança (e da língua) e seus “funda-


mentos empíricos”

O percurso trilhado por Labov, em seus estudos da mudança em progresso, con-


duzia-o necessariamente para uma nova teoria da mudança, que seria posteriormente
formalizada no texto programático da Sociolingüística, o Empirical Foundations for a
Theory of Language Change194, escrito entre 1966 e 1968, por Uriel Weinreich, William
Labov e Marvin Herzog. Além dos estudos de Labov sobre Martha’s Vineyard e Nova
York, formam a base empírica dessa teorização os estudos de Herzog sobre a dialectolo-
gia do iídiche no norte da Polônia, e o trabalho de Weinreich no Language and Culture
Atlas of Ashkenazic Jewry.

192
Labov, 1980: 252.
193
Cf. Labov (1980: 252): “parece claro que qualquer explicação do curso flutuante da mudança fônica
deve envolver as flutuações contínuas que ocorrem na estrutura da sociedade em que a língua é usada.”
194
Doravante referido por EFTLC, ou Weinreich, Labov e Herzog (1968).

156
Como o seu título deixa bem claro, esse texto pretende apresentar uma teorização
sobre a mudança lingüística, apoiada por uma sólida fundamentação empírica. Tal preo-
cupação justifica-se pelas pretensões que o texto deixa transparecer de, no plano da teoria
geral do campo, introduzir uma nova concepção da mudança lingüística e da própria lín-
gua. No campo da metateoria195, revela-se também uma articulação dessa nova concepção
com formulações acerca dos métodos e procedimentos científicos que a conformam (i. é.,
com juízos sobre o valor das explicações em lingüística), visando à obtenção de uma
concordância intersubjetiva (intersubjective agreement), ou seja a aceitação dessa nova
maneira de conceber o objeto de estudo no âmbito da Lingüística 196. As pretensões teóri-
co-epistemológicas do EFTLC são, portanto, bem claras: desenvolver, a partir da questão
da mudança, um novo modelo teórico, através do qual se possa formular uma nova orien-
tação para a pesquisa lingüística.
Esse processo de formação de um novo modelo teórico hegemônico articula res-
postas a uma questão específica com a concepção geral do objeto de estudo. A partida é
dada pelas respostas que o novo modelo produz sobre uma questão crucial (no caso, a
questão da mudança), o que não era possível dentro do modelo anterior. Essas respostas
conduzem a uma nova concepção do objeto de estudo com suficiente fundamentação em-
pírica para se afirmar no seio da comunidade científica (i. é., alcançar a concordância in-
tersubjetiva). Para realizar esse propósito, o EFTLC deveria não apenas formular propos-
tas suficientemente fundamentadas empiricamente, mas igualmente demonstrar que essas
propostas modificavam significativamente as posições que até então norteavam a pesqui-
sa lingüística:

Os princípios formulados por Weinreich, Labov e Herzog (1968) foram apoia-


dos pela referência a um corpo considerável de evidências; fundamentos empíricos são
necessariamente empíricos. Eles eram igualmente apoiados por uma crítica detalhada das
posições opostas que haviam tido uma forte influência sobre a pesquisa lingüística por
mais de um século, embora elas não possuíssem tais bases empíricas. (Labov, 1982: 19)

Nessa sua avaliação do EFTLC, feita quatorze anos após a sua publicação, Labov
destaca os dois mais importantes princípios teóricos aos quais o EFTLC se opôs: a visão
de que “a comunidade de fala é normalmente homogênea” e definição do idioleto como o

195
Para essa distinção entre teoria geral do campo e metateoria, veja-se Lass (1980: 50-51).
196
cf. EFTLC, 187: “The aims of this paper are to put forward certain proposals concerning the empirical
foundations of theory of change. We have presented some empirical findings which such a theory must
account for, and conclusions drawn from these findings as to the minimal complexity of linguistic structure
involved; we are very much concerned with the methods for relating the theory of change to empirical evi-
dence in ways that will lead to intersubjective agreement.”

157
objeto próprio da descrição lingüística (1982: 19)197. A refutação desses dois princípios
enforma a afirmação de um novo objeto da análise lingüística: a (gramática da) comu-
nidade de fala, que substitui assim a língua, objeto da análise estruturalista198. Contrari-
amente à língua homogênea e unitária do Estruturalismo, a (gramática da) comunidade de
fala apresenta como característica essencial a heterogeneidade:

A condição normal da comunidade de fala é a da heterogeneidade: podemos esperar en-


contrar uma larga gama de variantes, estilos, dialetos e linguagens usados por seus mem-
bros. Mais ainda, esta heterogeneidade é parte integrante da economia lingüística da co-
munidade, necessária para satisfazer as demandas lingüísticas da vida quotidiana. (id.,
ibid.: 17)

Tal concepção de heterogeneidade se distingue, por seu turno, da visão de varia-


ção livre, na medida em que pode ser correlacionada com fatores internos e externos à
estrutura lingüística:

O termo heterogeneidade estruturada enfatiza outro aspecto desse fenômeno que o dis-
tingue mais ainda da variação livre. A ocorrência das variantes em questão é freqüente-
mente correlacionada com traços do contexto interno (...) e igualmente com característi-
cas externas ao falante: estilo contextual, estatuto e mobilidade social, etnia, sexo e idade.
(id., ibid.: 18)

E toda a análise (socio)lingüística passa, então, a se orientar para essa variação


sistemática inerente ao objeto de estudo, concebido como uma heterogeneidade estrutura-
da:

As técnicas da descrição lingüística devem ser adequadas para lidar com o caráter hetero-
gêneo desse objeto, e muitos métodos desenvolvidos na pesquisa sociolingüística têm si-
do, portanto, destinados à descrição da variação. (id., ibid.)

Uma outra grande diferença quanto ao modo de conceber o objeto de estudo entre
a Sociolingüística e o Estruturalismo pode ser definida como o resgate da historicidade. O
objeto de estudo da Lingüística deixa de ser um sistema autônomo e sem história, para se
tornar um produto do processo histórico de constituição da língua. Com essa nova con-
cepção, aspectos fisiológicos ou princípios universais são secundarizados ou postos de
lado em função do modo histórico de apreender a língua:

197
Embora a contraposição com a concepção de língua homogênea e unitária do Estruturalismo seja nítida,
deve-se registrar também a contraposição da Sociolingüística ao modelo teórico gerativista, surgido um
pouco antes, em 1957, e também candidato a suceder o Estruturalismo. Tal contraposição, explícita no
EFTLC (p. 125), é normal em um cenário de disputa de hegemonia, como é o caso da situação que emer-
giu na Lingüística a partir do ocaso do Estruturalismo.
198
“O objeto da descrição lingüística é a gramática da comunidade de fala: o sistema de comunicação usado
na interação social.” (Labov, 1982: 18)

158
(...) a doutrina histórica defende que as coisas não são idênticas: explicações ba-
seadas em princípios universais da natureza humana ou a relativamente constante fisiolo-
gia dos seres humanos não são suficientes para explicar eventos históricos. Isso implica
que as condições iniciais e os ambientes contextuais de um conjunto de mudanças lin-
güísticas são significativamente diferentes de um outro conjunto.
(...) Pode haver universais da mudança lingüística, independentes das condições
históricas. Muitas teorias da mudança lingüística são inteiramente devotadas à sua busca.
Mas nós veremos que, se tais generalizações a-históricas existem, elas são raras. Isso, por
si só, pode explicar os sucessos limitados dos recentes esforços em utilizar técnicas for-
mais para desenvolver teorias gerais da mudança lingüística. (Labov, 1982: 20-21)

A teorização histórica proposta pelo EFTLC exigia uma nova formalização analí-
tica da língua que refletisse o seu caráter histórico e se ajustasse ao principal artefato cul-
tural da humanidade. Era preciso integrar o conjunto das relações sociais, culturais e
ideológicas nas quais a língua se atualiza nessa representação. E, para dar conta da hete-
rogeneidade e pluralidade dessa realidade sócio-cultural, a língua devia ser formalizada,
não como um sistema homogêneo e unitário, mas como um sistema heterogêneo e plural.
A própria funcionalidade desse sistema devia ser concebida em função da heterogeneida-
de e pluralidade social e cultural da comunidade que dele se utiliza:

A chave para uma concepção racional da mudança lingüística – em realidade, da própria


língua – é a possibilidade de descrever ordenadamente a diferenciação em uma língua que
serve a uma comunidade. Nós defenderemos que o comando nativo das estruturas hetero-
gêneas não é matéria de multidialectalismo ou de “mero” desempenho, mas é parte da
competência lingüística unilíngüe. Um dos corolários da nossa abordagem é que, em uma
língua que serve a uma comunidade complexa (i. é. real), é a ausência da heterogeneidade
estruturada que seria disfuncional. (Weinreich, Labov e Herzog, 1968: 101)

Weinreich, Labov e Herzog enfatizaram bastante a capacidade do falante em lidar


com essa heterogeneidade do sistema sem comprometer a eficácia da comunicação lin-
güística. Esse ajuste da competência lingüística do falante à heterogeneidade da língua é
apontado então como um fato empírico importante na sustentação da concepção de língua
da Sociolingüística:

O fundamental dessa nova proposta se insere num entendimento novo da estru-


tura lingüística. A especulação lingüística a partir de uma visão de estrutura lingüística
como homogênea pelos estruturalistas e gerativistas é considerada ineficaz por não ser
compatível com a realidade; para os chamados sociolingüistas americanos, a estrutura é
intrinsecamente heterogênea, e heterogeneidade e estrutura não são incompatíveis, ao
contrário, são necessárias para o funcionamento real de qualquer língua. Prova-se isso pe-
la capacidade e competência do indivíduo em codificar e decodificar essa heterogeneida-
de. A partir dessa visão de estrutura lingüística, os autores propõem que as variáveis con-
textuais, estilísticas, etárias, sociais se insiram nas regras de competência e não sejam
consideradas como fenômeno de desempenho. (Mattos e Silva, 1980/81: 96-7)

Essa capacidade de o falante lidar com a heterogeneidade lingüística levanta uma


outra questão que diferencia a abordagem sociolingüística da abordagem estruturalista.

159
Para Saussure, e para todo o Estruturalismo, o falante tem um papel passivo diante da lín-
gua, a organização estrutural do sistema lingüístico é concebida independentemente da
ação do falante, da prática lingüística ou das disposições estruturadas nas quais essa prá-
tica se efetiva. No modelo da Sociolingüística, a situação é bem diferente, o que se ofere-
ce ao falante não é um sistema homogêneo, unitário e imutável, que se impõe de forma
irredutível, mas um sistema heterogêneo sobre o qual o falante atua de acordo com as
disposições estruturadas em que a prática lingüística se atualiza.
Desse modo, o falante, numa determinada circunstância, seleciona, de forma mais
ou menos consciente, uma dentre as variantes concorrentes na estrutura lingüística. E a
opção do falante pode variar conforme a situação a que esteja exposto, pois a sua escolha
é determinada, por exemplo, pela intenção do falante de facilitar a sua aceitação em um
determinado ambiente ou segmento social, ou pode resultar também da aceitação ou ne-
gação de um padrão lingüístico imposto institucionalmente, ou característico de um outro
grupo social:

Na medida em que os sistemas lingüísticos mudam, eles oferecem aos seus falantes uma
larga gama de possibilidades de auto-identificação na interação com os demais e na nego-
ciação das diferenças sociais. Três recentes estudos empíricos focalizam as funções da
variação lingüística na interação social. (...). Hindle (1980) mapeou a realização de vogais
na Filadélfia por uma única falante, cuja fala foi gravada ao longo de um dia de trabalho
numa agência de viagens, depois no jantar com a família em casa e finalmente com com
as amigas num jogo de bridge. Com base num esquema de doze mudanças em progresso
na comunidade da Filadélfia, Hindle foi capaz de mostrar como a falante alternava o seu
uso das variáveis de acordo com o contexto, o sexo do ouvinte e a significância social da
variável. Em geral, as formas mais conservadoras eram usadas no local de trabalho e as
mais inovadoras na interação com as amigas no jogo de bridge. O ambiente do jantar em
família ocupava uma posição intermediária. (Labov, 1982: 81)

Toda essa nova forma de conceber a relação entre a língua e o falante, ou melhor,
de integrar a prática lingüística na teorização sobre a língua, está intimamente ligada a
dois planos distintos do produto teórico: a formalização da língua como um sistema hete-
rogêneo e variável e a visão de uma competência lingüística igualmente heterogênea. En-
tretanto, o quebra-cabeças dialético da relação entre o plano do indivíduo e o da coletivi-
dade ressurge, agora, em um novo patamar, através da seguinte questão: o sistema lin-
güístico heterogêneo é uma representação da língua da comunidade de fala ou da com-
petência lingüística do falante individual? Ou seja, onde, em termos empíricos, se deve
situar o objeto da Sociolingüística, nos padrões de fala observados na coletividade, ou
na competência lingüística do indivíduo? As respostas divergentes que essa questão tem
suscitado no seio da Sociolingüística podem ser interpretadas como reflexos das novas
contradições que esse modelo enceta no plano da teoria geral do campo, e, que, com efei-

160
to, desafiam esse modelo, que se candidata a orientar o desenvolvimento da pesquisa lin-
güística contemporânea199.

Os cinco problemas da mudança lingüística

Na equação proposta pela Sociolingüística Variacionista para resolver essa ques-


tão crucial da mudança lingüística, destacam-se os seus hoje já clássicos cinco problemas,
que foram reunidos em sua totalidade e sistematizados pela primeira vez por Weinreich,
Labov e Herzog (1968)200, com as seguintes denominações: o problema das restrições
(constraints problem), o problema da transição (transition problem), o problema do
encaixamento (embedding problem), o problema da avaliação (evaluation problem), e
o problema da implementação (actuation problem). Através da consideração desses
cinco problemas, é possível não apenas reconhecer os pontos em que a explicação socio-
lingüística da mudança supera a explicação estrutural-funcionalista, como também as ca-
racterísticas desta que se perpetuam naquela. Pode-se igualmente observar algumas das
contradições e limitações que já despontam no modelo teórico da Sociolingüística. Nesse
sentido, vale destacar, por exemplo, a colocação do problema da mudança em termos
causais, que permanece na abordagem sociolingüística201. Esse tipo de compreensão do
que seja explicar a mudança lingüística tem se constituído em uma das principais dificul-
dades para o desenvolvimento de uma teoria Sociolingüística da mudança202.
Por outro lado, mantendo a tradição na Lingüística Histórica, os estudos sociolin-
güísticos, em grande parte, vão se concentrar no plano da fonologia. Em sua primeira fa-
se, as análises produzidas por esse modelo tratarão com exclusividade de mudanças fôni-
cas203 e a própria extensão da metodologia Sociolingüística a outros níveis de estudo não
se deu de forma pacífica, suscitando, inclusive, polêmica a adequação do conceito socio-
lingüístico de variável no plano da sintaxe204; entretanto, já foram realizadas pesquisas

199
Essa questão será tratada no próximo capítulo deste livro.
200
Labov (1972 [1965]) já havia sistematizado três desses problemas.
201
cf. EFTLC, 127; e ainda Labov, 1982: 23: “For a dynamic phenomenon like language change, the pri-
mary question is one of cause rather an function, not ‘How does it work?’ but rather ‘Why did it happen?’
or more precisely, ‘Why did it happen in this particular way?’”
202
Veja-se, a esse respeito, Romaine, 1982: 269-282.
203
Inclusive, os dois primeiros estudos que marcam o início do modelo da Sociolingüística – Labov, 1963 e
1966 – situam-se nesse nível de estudo da língua.
204
Veja-se, a esse respeito, Lavandera (1978), Labov (1978) e Romaine (1982: 31-37).

161
importantes nesse nível de estudo da língua205. Em vista disso, em sua grande maioria, as
afirmações que se farão a seguir baseiam-se fundamentalmente em análises de mudanças
fônicas.
Em sua primeira formulação, o problema das restrições remete à questão de de-
finir quais as condições que favorecem ou restringem as mudanças, e, por conseguinte,
qual o conjunto das mudanças lingüísticas possíveis. As respostas a essas questões con-
duzem a uma tipologia das mudanças, associada a uma relação de tendências predomi-
nantes nos processos de mudança206. Por outro lado, essa questão conduz novamente a
teoria da mudança à idéia de que as mudanças seguem princípios gerais, ou mesmo uni-
versais, como, por exemplo, todas as mudanças conduzem a simplificação e a generali-
zação de regras da gramática (cf. Labov, 1982: 26-7). Tal modo de encarar a questão
pode conduzir a perigosos equívocos e desvios, incompatíveis com a orientação histórica
da abordagem da mudança207. Tais equívocos são reconhecidos pelo próprio Labov
(1982:60), que não hesita em retificar as suas afirmações anteriores:

A busca por uma restrição estritamente “universal” é, portanto, uma busca por
uma faculdade da linguagem isolada, que não está encaixada na matriz mais ampla da es-
trutura lingüística e social. Nada do que nós descobrimos até agora sobre a linguagem su-
gere a existência de tais estruturas totalmente isoladas.
Parece-me, portanto, que a formulação do “problema das restrições” em Wein-
reich, Labov e Herzog (1968) e em 2.1. estava equivocada, e que o problema das restri-
ções deveria ser fundido com o problema do encaixamento. [grifo do original ]

Assim, a busca formal por tipos e restrições universais embutida no problema das
restrições acaba por se confundir com a concepção psíquico-biológica do objeto de estu-
do da Lingüística. Não é sem razão, portanto, que o problema das restrições, que é des-
cartado por Labov, em seu balanço de 1982, venha a se constituir no principal problema
enfrentado pelos estudos diacrônicos realizados pela Gramática Gerativa208.
O problema da transição coloca para a teoria da mudança a necessidade de defi-
nir e analisar o percurso através do qual cada mudança se realiza. Assim, quanto mais
acurada for a resposta ao problema da transição, maior será compreensão dos lingüistas

205
Podem ser citados, por exemplo: Weiner & Labov (1977), Sankoff & Laberge (1978), Omena (1978),
Schiffrin (1981), Naro (1981), Guy (1981), Romaine (1982), Lira (1982), Emmerich (1984), Braga (1986) e
Scherre (1988).
206
cf. EFTLC, 183-4: “One such general constraint appears to apply to areas where a two-phoneme system
is in contact with a merged one-phoneme system: we argue that except under certain special conditions, the
direction of change will be in favor of the one-phoneme system.”
207
E esses equívocos tornam-se ainda mais graves quando associados a um outro: a colocação do problema
da mudança em termos causais. Veja-se, por exemplo, essa passagem de Labov (1982:27): “It would also
advanced our understanding of the causes of the change, since each constraint demands an explanation, and
that explanation will usually bear on the cause of the change.”
208
Veja-se a esse respeito, por exemplo, Lightfoot (1979).

162
sobre o processo através do qual a mudança lingüística acontece. Por outro lado, o pro-
blema da transição levanta uma questão fundamental: a mudança se processa por está-
gios discretos ou através de um continuum ? Como observa Labov (1982: 27):

Se nossa visão dos estágios históricos focaliza estados discretos, o problema é como pas-
sar de um estado a outro; em uma perspectiva mais dinâmica, a questão é traçar o cami-
nho do desenvolvimento lingüístico através de um espaço fonológico ou gramatical mul-
tidimensional.

Essa concepção mais dinâmica do problema da transição se constituirá em um dos


pontos cruciais para a superação da concepção estrutural da mudança lingüística e da
própria concepção estruturalista de língua. Através do equacionamento do problema da
transição através de um continuum ininterrupto de variação e mudança, a Sociolingüística
se contrapõe frontalmente à concepção de estado de língua de Saussure, que se mantém
no Estruturalismo Diacrônico através da visão da história da língua como uma sucessão
de sistemas homogêneos e unitários (que corresponderiam aos estados de língua) entre-
meada de períodos de instabilidade e mudança. Por outro lado, em uma visão mais abran-
gente da pesquisa lingüística, na qual os fatos que interessam ao lingüista não se circuns-
crevem ao sistema interno da língua, o problema da transição levanta a aliciante questão
de estabelecer o percurso da mudança lingüística na estrutura social209.
O problema do encaixamento apóia-se em grande parte na máxima do Estrutura-
lismo Diacrônico de que uma mudança lingüística só poderá ser compreendida conside-
rando-se a sua inserção no sistema lingüístico que ela afeta. O próprio EFTLC (p. 185)
declara, então, que “há pouca discordância entre os lingüistas sobre a necessidade de a
mudança investigada ser vista como encaixada no sistema lingüístico como um todo”. O
problema é resolver as questões relativas à “natureza e extensão desse encaixamento”. As
questões sobre a natureza do encaixamento referem-se ao modo de conceber a mudança
dentro da estrutura lingüística, e, conseqüentemente, ao modo de conceber a própria es-
trutura lingüística. Já as questões sobre a extensão do encaixamento revolvem os limites
da análise lingüística: ela deve ser confinada ao plano das relações internas ao sistema
lingüístico, ou o encaixamento deve ser estendido ao plano da interação desse sistema
com a estrutura social da comunidade de fala? Na resposta a essa questão, situam-se as
grandes diferenças e os importantes avanços da concepção sociolingüística da mudança
em relação à concepção estrutural-funcionalista.
O tratamento sociolingüístico determinará o desmembramento do problema do
encaixamento em dois ramos complementares: o encaixamento na estrutura lingüística
209
A importância do tratamento sociolingüístico do problema da transição para a superação da concepção
estrutural da mudança será tratada com mais detalhe no próximo capítulo deste livro.

163
e o encaixamento na estrutura social. Relativamente ao encaixamento na estrutura lin-
güística, os pontos mais importantes, destacados pelo EFTLC, podem ser esquematica-
mente apresentados da seguinte maneira:
(i) o sistema lingüístico em que a mudança deve ser encaixada não se situa no in-
divíduo (i. é. no idioleto), e sim na comunidade de fala;
(ii) esse sistema caracteriza-se por sua heterogeneidade estruturada, e é funcio-
nalmente diferenciado dentro da comunidade de fala;
(iii) as variáveis intrínsecas a esse sistema definem-se pela covariação com ele-
mentos lingüísticos e extra-lingüísticos;
(iv) o processo de mudança lingüística raramente é um movimento de um sistema
inteiro a outro, e sim o movimento de um conjunto limitado de variáveis de um sistema
que altera gradualmente seus valores modais de um pólo a outro;
(v) não obstante, as variantes de cada variável podem ser contínuas ou discretas
(as variáveis, contudo, mantêm uma gama contínua de valores que refletem as freqüên-
cias observadas na atividade lingüística concreta);
(vi) a variação inerente à estrutura lingüística deve ser vista como parte integrante
da competência lingüística dos membros da comunidade (o que pode levantar problemas
teóricos, relativamente ao que é dito em (i), como já foi salientado anteriormente).
É o encaixamento na estrutura social que representa um dos mais importantes
avanços do modelo sociolingüístico. O reconhecimento de que uma análise estritamente
lingüística é incapaz de dar conta do processo de mudança, e a iniciativa de explicar a
variação inerente ao sistema lingüístico através da covariação com os fatores sociais con-
duz a uma visão mais abrangente e adequada do processo histórico de constituição da lín-
gua e da própria língua enquanto objeto de estudo da Lingüística. Da importância dessa
nova orientação para a pesquisa lingüística decorrem tarefas imensas e desafiadoras. Em
primeiro lugar, a explicação dos fatos lingüísticos passa a exigir uma massa muito maior
de dados. Em segundo lugar, esse tipo de análise exige uma compreensão mais atilada da
rede de relações sociais nas quais a atividade lingüística se atualiza. E, em terceiro lugar,
a tarefa mais difícil: precisar em que medida e em que grau de intensidade se dá a covari-
ação entre as diferenças nos padrões sócio-culturais e ideológicos e a variabilidade obser-
vada no processo de estruturação da língua.
Apesar dos grandes avanços alcançados pela Sociolingüística Variacionista no es-
crutínio desses problemas (principalmente, no que se refere ao instrumental metodológico
utilizado no tratamento dos dados), alguns desvios teórico-epistemológicos têm oblitera-
do o seu avanço nesse campo. Na raiz desses desvios, está a colocação do problema do
encaixamento em função do estabelecimento das causas da mudança lingüística:

164
As fases interna e externa da questão conduzem diretamente ao estudo das cau-
sas e efeitos da mudança: o estudo do problema do encaixamento é a área em que foram
feitos os maiores progressos no entendimento das causas e efeitos da mudança. (Labov,
1982: 28)

Não obstante o otimismo demonstrado por Labov, pode-se dizer que a colocação
do problema do encaixamento da mudança, quer lingüístico, quer sociolingüístico, em
termos causais tem menos contribuído do que prejudicado o entendimento da questão.
Alguns dos problemas teórico-metodológicos que decorrem dessa abordagem causalista
podem ser, assim, esquematicamente apresentados210:
(i) A identificação entre explicação e predição, própria dos modelos causais, tem
levado a uma confusão entre sistema lingüístico da comunidade de fala e competência do
falante individual, na tentativa descabida de alguns sociolingüistas de fazer predições so-
bre a produção lingüística do falante individual;
(ii) o empiricismo decorrente dessa visão causalista tem bloqueado o desenvolvi-
mento de análises qualitativas da interação entre a estrutura lingüística e a estrutura soci-
al;
(iii) mesmo entre as análises já produzidas, a colocação do problema em termos
causais tem prejudicado análises bastante refinadas e profícuas da interação e a estrutura-
ção da língua e a rede de relações sociais211.
Em seu balanço de 1982, Labov (p. 28) afirma que:

Análises quantitativas recentes de contextos internos e externos – lingüísticos e


sociais – têm enfatizado a sua relativa independência e necessidade de se dividir o pro-
blema do encaixamento em duas partes distintas.

Essa afirmação pode dar azo a duas interpretações diferentes. Por um lado, ela
pode ser interpretada como um procedimento meramente técnico-metodológico para a
organização dos dados. Por outro lado, num plano teórico mais geral, ela pode ser inter-
pretada como uma capitulação diante da questão mais fascinante e mais desafiadora do
problema do encaixamento: em que medida, e como, se dá a correlação entre o processo
de estruturação da língua e o conjunto das relações sócio-históricas na comunidade de
fala. Essa afirmação pode ser interpretada também como um reflexo da incapacidade da
Sociolingüística Variacionista em gestar uma teoria da estrutura lingüística dentro dessa
perspectiva. Portanto, como se pode perceber, o problema do encaixamento, ao tempo em

210
Essa questão será tratada com mais detalhe no próximo capítulo deste livro.
211
Um bom exemplo para isso é o estudo de Milroy e Margrain (1978) sobre a comunidade lingüística de
Belfast (cf. Romaine, 1982: 270-1).

165
que constitui o mais importante e produtivo campo de trabalho da Sociolingüística, é
aquele em que esse modelo encontra as suas maiores dificuldades e desafios.
O problema da avaliação levanta uma importante discussão acerca do papel do
indivíduo frente à mudança e frente à própria língua. O tratamento que a Sociolingüística
vem dando a essa questão conduz a uma revisão do princípio saussuriano de que o indiví-
duo aceita o processo de estruturação da língua passivamente. Deixando de lado o truís-
mo de que o indivíduo por si só não pode modificar a língua, ou alterar o curso dessa mo-
dificação, pode-se dizer que o processo histórico de estruturação das línguas passa de
forma decisiva pelo plano das reações individuais conscientes em relação à mudança lin-
güística. E mais, tal reação subjetiva dos falantes pode alterar o curso de uma mudança,
ou mesmo fazer retroagir tal processo.
A chave para esse tipo de análise foi dada pelo EFTLC através da comprovação
de que, não apenas os elementos distintivos e funcionais atingiam o nível da consciência
dos falantes, os elementos variáveis da estrutura lingüística também são percebidos nesse
nível de consciência. Além disso, cada um dos valores de um determinado elemento vari-
ável, i. é., as suas variantes, são avaliados socialmente, adquirindo uma significação soci-
al que atua abertamente no nível da consciência do falante. A questão é então determinar
em que medida essa avaliação subjetiva pode interferir no processo de mudança.
Dada a importância dessa avaliação subjetiva, uma série de pesquisas sociolin-
güísticas foram realizadas dedicando a essa questão uma atenção especial. Foram aplica-
dos testes específicos para medir essa avaliação e determinar empiricamente a maneira
pela qual ela participa do processo de mudança. Labov (1982: 80) comenta esses estudos
e esquematiza os resultados obtidos:

O comportamento dos membros da comunidade de fala em relação à mudança


lingüística é razoavelmente simples e direto, e há um nível extraordinário de convergên-
cia nos estudos empíricos. Nós podemos sumarizar a situação em algumas generaliza-
ções:
Os estágios iniciais da mudança estão abaixo do nível da consciência social.
Ninguém na comunidade se refere à mudança, e é difícil tomar consciência dela. (...) às
vezes ela só é descoberta, num primeiro momento, por análises instrumentais.
Nos estágios posteriores da mudança, desvios estilísticos começam a aparecer,
bem como a estratificação social. Testes de reação subjetiva revelam a avaliação social
(...).
Nos estágios finais da mudança, há um reconhecimento social aberto, e os este-
reótipos podem aparecer. Com extraordinária consistência, essas reações são negativas. A
correção é sempre na direção da forma mais conservadora, e os estereótipos são associa-
dos com atributos sociais negativos. Parece que, sempre que as pessoas tomam consciên-
cia de qualquer mudança sistemática na língua, elas a rejeitam.

Encarando o problema da avaliação de um ponto de vista totalmente distinto em


termos teóricos e metodológicos, Labov (1982: 29 e 80-1) levanta a questão de como os

166
lingüistas avaliam a mudança. Considerando-se a força, no seio da Lingüística, da visão
estrutural e funcional da língua como um sistema determinado quase que exclusivamente
por sua função representacional, a questão crucial que se colocaria então para os lingüis-
tas seria explicar como esse sistema provedor de informação representacional muda sem
comprometer o seu funcionamento enquanto tal. Em linhas gerais, o caminho que a Soci-
olingüística aponta para a superação desse impasse é o de primeiramente encarar a língua
como um sistema que desempenha uma série de outras funções dentro da comunidade
(principalmente as funções sociais e ideológicas, nas quais, por exemplo, na interação
lingüística, o falante se identifica socialmente e identifica o seu interlocutor). Em segun-
do lugar, a Sociolingüística propõe também uma quebra na identificação entre homoge-
neidade e funcionalidade. Baseando-se no fato de que a competência lingüística do falan-
te é multidialetal, incorpora-se a heterogeneidade como parte integrante da estrutura e do
funcionamento normal de uma língua212.
O modelo teórico da Sociolingüística Variacionista tem dado um destaque todo
especial ao problema da implementação da mudança lingüística213. Esse destaque deve
ser tributado ao fato de esse modelo manter o enquadramento da questão da mudança nos
termos de sua(s) causalidade(s), já observado no enquadramento estrutural-funcionalista.
De uma forma bem simples, o problema da implementação pode ser apresentado através
da seguinte questão: Por que uma dada mudança ocorreu em um momento e em um lugar
determinados, e não em outro momento e/ou em outro lugar? Desse modo, o problema da
implementação levanta menos uma discussão teórica do que uma discussão epistemológi-
ca, pois suscita a necessidade de se definir o que significa explicar alguma coisa em
Lingüística. Contudo, essa discussão não pode ser dissociada da questão teórica funda-
mental da Lingüística, qual seja, a de como conceber o seu objeto de estudo. O modelo
da Sociolingüística concebe o objeto da Lingüística como uma organização complexa de
mecanismos de causa e efeito, que envolve fatores sociais e lingüísticos. Assim sendo,
esse modelo identifica a explicação da mudança lingüística à descrição dos seus meca-
nismos de implementação214, ou seja, à descrição dos mecanismos de causa e efeito que
constituem o processo da mudança. Tal concepção entra evidentemente em conflito com
a visão do objeto da Lingüística como um fenômeno sócio-histórico e cultural, ao qual
essa visão de complexo de mecanismos de causa e efeito não se ajusta.

212
Essa questão também será retomada no próximo capítulo.
213
“This actuation problem can be regarded as the very heart of the matter” (EFTLC, 102); e “this is well-
know to be the most difficult of all problems” (Labov, 1982: 29).
214
cf. Romaine (1982: 252): “Labov has claimed that there is no distinction to be made between the analy-
sis of the mechanism of a change and its explanation, i.e. he maintains that if we describe the five dimen-
sions given above, then we have ‘explained’ change.”

167
Buscando resolver a contradição, poder-se-ia pensar em conceber o objeto de es-
tudo da Lingüística como um conjunto complexo de relações de determinação, constitu-
ído pela interação entre o processo de estruturação da língua e a realidade sócio-histórica
em que esse processo se integra, numa relação de reciprocidade: ao tempo em que a es-
truturação da língua é uma resultante do processo histórico e social, ela é também um dos
fatores intervenientes nesse processo. Esse e outros impasses, com os quais se depara a
teoria sociolingüística serão objeto do próximo capítulo deste livro.

168
CAPÍTULO VII

A LÍNGUA COMO SISTEMA HETEROGÊNEO:


AS LIMITAÇÕES DA SUPERAÇÃO DO MODELO

Através do equacionamento da questão da mudança em seus cinco problemas, a


Sociolingüística Variacionista conseguiu superar algumas das principais lacunas e para-
doxos do modelo estrutural-funcionalista e lançar as bases para uma nova concepção do
objeto de estudo da Lingüística, dada a importância estratégica que a solução da questão
da mudança adquiriu naquele ponto crítico do desenvolvimento do modelo estruturalista.
Neste capítulo, falarei sobre as lacunas e paradoxos superados pela Sociolingüística e de
como esse modelo desenvolve a sua concepção de língua como um sistema heterogêneo e
integrado na estrutura social, a partir do qual define o seu programa de pesquisa e o seu
perfil enquanto modelo teórico. Nessa discussão, buscarei falar também sobre as limita-
ções e os avanços que o surgimento desse modelo determina no desenvolvimento da teo-
ria da linguagem, e sobre como ele se insere no estágio atual da história da Lingüística.

O paradoxo da história da estrutura frente à estrutura sem história

Um dos problemas decorrentes do surgimento do Estruturalismo Diacrônico é o


de explicar a manutenção da análise sincrônica a-histórica. Na medida em que, na análise
diacrônica, se havia demonstrado que a oposição absoluta, proposta por Saussure, entre a
dimensão estrutural da língua e sua dimensão histórica não se sustentava, por que susten-
tá-la no plano da análise sincrônica? De outro modo: se o estudo da história de uma lín-
gua é o estudo do desenvolvimento da estrutura dessa língua – i. é., de sua organização
estrutural e funcional –, como sustentar que a história dessa estrutura nada tem a dizer
na explicação da organização estrutural e funcional da língua no presente? A maneira
que o Estruturalismo Diacrônico encontrou para contornar a questão foi conceber a histó-
ria da língua como uma sucessão de estados discretos intercalados por períodos de transi-
ção, sendo que cada estado discreto constituiria um sistema autônomo em termos estrutu-
rais e funcionais; sendo, portanto, este o objeto próprio da análise sincrônica.
A análise diacrônica, por sua vez, deveria circunscrever-se a comparação dos es-
tados sincrônicos, buscando explicar por que um estado havia se convertido em seu su-

169
cessor, desprezando o período de transição entre um e outro, por ser irrelevante (cf. Jako-
bson, 1931), ou mesmo por não ser possível observar essa transição (cf. Bloomfield,
1933, e Hockett, 1958). O problema que se coloca, então, é o de separar esses estados
sincrônicos autônomos do processo de transição que os entremeia.
No plano fonológico, a questão seria: como separar os sistemas fonológicos autô-
nomos da variação fonética, ou sub-fonológica, que caracteriza o desenvolvimento histó-
rico desse sistema? Esse problema crucial para a superação da visão estruturalista é ata-
cado diretamente pela teoria sociolingüística através da sua formulação do problema da
transição:

A aplicação direta da quantificação fonológica ao continuum da mudança lingüística logo


traz à tona um quebra-cabeças dialético: como mudanças graduais, não-distintivas subi-
tamente promovem um salto para uma nova categoria distintiva? (EFTLC: 129)

Segundo a visão estruturalista, o processo da mudança fônica é caracterizado por


um período de transição de variação sub-fonológica tão lenta e contínua que não pode ser
diretamente observada; essa transição desemboca num processo de reestruturação fonoló-
gica, por sua vez tão abrupto que também não é observável215. Como destaca o EFTLC
(p. 129), tal visão não pode almejar algum tipo de sustentação empírica, na medida em
que se fundamenta em fatos que não podem ser observados. Por outro lado, a inadequa-
ção desse tipo de visão pode ser demonstrada, considerando-se o leque de identificações
que ela mobiliza.
A antinomia estruturalista entre variação fonética e distinção fonológica implica
em se assumir que a primeira é infinitesimal, flutuante, irregular e inconsciente, en-
quanto que a segunda é discreta, estável, regular e consciente (cf. EFTLC, 130). Con-
tudo, como o próprio EFTLC se encarrega de demonstrar, tal identificação é igualmente
falsa, na medida em que a transição fonética se pode processar por etapas discretas, pode
apresentar uma distribuição regular de suas variantes, e, o mais importante, a variação
fonética funcionalmente não-distintiva é por vezes mais percebida, ao nível da consciên-
cia social, do que a distinção entre elementos que comportam funções distintivas216:

Somos obrigados a arrolar evidências empíricas que negam a identificação entre o que é,
em termos analíticos, distintivo com o que é, historicamente, discreto e psicologicamente
consciente. Assim, a ampla substituição subfonêmica da vibrante lingual [r] pela vibrante
uvular [R] em muitas línguas européias deve ter ocorrido através de estágios discretos;
além disso, a distribuição das duas variantes não é de maneira alguma instável, como a
sua falta de valor distintivo poderia fazer supor. Quanto ao nível de consciência, desco-
brimos que, em muitas partes dos Estados Unidos, os falantes são extremamente sensíveis

215
Veja-se, a esse respeito, Labov (1972 [1965]: 163-5) e Lass (1980: 94-5).
216
cf.: “”

170
às variantes subfonêmicas de // e // e prontamente estigmatizam os usos não-padrão
dos outros. Da mesma forma, a elevação subfonêmica das vogais de off , lost etc em Nova
York é objeto de apurada sensibilidade e está sujeita a comentários explícitos e correção
em estilos formais. Ao contrário, a significativa mudança no repertório dos fonemas que
resulta desse processo – a perda da distinção entre sure/shore, lure/lore etc – não é notada
e não parece suscitar avaliação social (Labov, 1965 e 1966). Diante de tamanha ausência
de consciência social da coalescência de fonemas ilustrada pela fusão massiva de
cot/caught, hock/hawk etc ao longo de amplas regiões dos Estados Unidos, somos força-
dos a concluir que não há correlação entre percepção social e valor estrutural. [grifos
acrescidos] (EFTLC, 131-32)

Enquanto o modelo estruturalista assume que a percepção do falante só alcança as


unidades funcionalmente distintivas, considerando exclusivamente a função representaci-
onal (o que sustenta a organização estrutural da língua como um sistema unitário, homo-
gêneo, constituído por unidades invariantes), no enquadramento teórico da Sociolingüís-
tica, a estrutura da língua não abarca apenas a função representacional, incorporando
também os outros elementos variáveis que são percebidos ao nível da consciência do fa-
lante, pois comportam uma determinada função na atividade lingüística (refletem uma
escolha estilística, identificam socialmente o falante, etc.):

Uma grave fragilidade nos fundamentos empíricos de várias teorias da mudança lingüísti-
ca consideradas aqui radica na sua visão da função cognitiva como a determinante básica
do comportamento lingüístico. A concepção de que a percepção era somente determinada
por unidades contrastivas (i.é, morfologicamente distintivas) nunca esteve fundamentada
em uma sólida fundamentação empírica, mas em um grande número de observações não
controladas (i.é, impressionísticas) de casos em que a percepção se restringia a categorias
fonêmicas. Um corpo crescente de evidências provenientes de estudos sociolingüísticos
controlados indicam que a percepção é de fato controlada pela estrutura lingüística; mas é
uma estrutura que inclui não apenas as unidades definidas pela função contrastiva, mas
também as unidades definidas por seu valor estilístico e pelo seu poder de identificação
do falante em um subgrupo específico da comunidade. (EFTLC, 132)

Retomando a questão do processo de transição da mudança, a solução apresentada


pelo EFTLC é:

assumir que a variação existe como (...) um elemento estrutural, correlacionado com ou-
tros fatores lingüísticos e não-lingüísticos, e que o movimento constante de elementos de
uma classe categorial para outra é parte da estrutura subjacente. Então a mudança ocorre-
ria quando uma variável se movesse de uma posição dentro de um dado fonema, para
uma posição além das fronteiras fonológicas, para uma posição dentro de um segundo
fonema, e tal variável seria estritamente definida pela covariação com outros traços. (p.
130)

Desse modo, o desenvolvimento histórico de uma língua deixa de poder ser repre-
sentado pela sucessão de sistemas discretos, unitários, homogêneos e autônomos, e passa
a ser concebido como o contínuo processo de variação e mudança dentro do sistema hete-
rogêneo inserido no contexto sócio-histórico e cultural da comunidade de fala. Supera-se

171
assim, a dicotomia sincronia e diacronia, no sentido que esta havia adquirido no Estrutu-
ralismo, pois a análise sincrônica da língua fora do devir histórico não encontra mais fun-
damentação empírica. Em todo momento em que se considere a língua, inclusive na aná-
lise da língua no presente, o sistema lingüístico deve ser concebido como um sistema de
regras e unidades variáveis, como a atualização do contínuo processo de variação e mu-
dança que se opera ao nível da estrutura lingüística.217
Por outro lado, dentro dessa visão mais ampla do problema da transição que
abrange a trajetória da mudança tanto na estrutura lingüística quanto na estrutura social,
levanta-se um novo problema para a visão estrutural-funcionalista da mudança que está
relacionado ao modo pelo qual a mudança se propaga na comunidade de fala. Dentro da
visão estrutural-funcionalista, a mudança é vista como uma função da organização estru-
tural e da lógica funcional do sistema lingüístico; desse modo, a mudança deveria atingir
a comunidade de fala como um todo, ao mesmo tempo. Se a mudança é exclusivamente
uma função do sistema lingüístico, como ela pode atingir de maneira diferenciada os
membros da comunidade Lingüística, se todos usam o mesmo sistema? Os estudos empí-
ricos da Sociolingüística sobre o processo de propagação da mudança levantaram essa
questão que, de fato, extrapola os limites do esquema estrutural-funcionalista. Esse es-
quema, por se basear fundamentalmente na lógica interna do sistema lingüístico, é inca-
paz de explicar ou mesmo apreender o fato de a mudança não atingir de forma sistemática
toda a comunidade de fala ao mesmo tempo, e sim gradualmente, percorrendo uma com-
plexa e sinuosa trajetória dentro da estrutura social218.
Mais do que isso, os estudos sociolingüísticos demonstraram que a mudança é em
grande parte determinada pelas relações sócio-políticas e ideológicas que se estabelecem
dentro da comunidade de fala (relações de prestígio e poder, posição social e orientação
cultural do falante, etc.). Todos esses estudos demonstraram que a mudança não é apenas
uma função do sistema lingüístico, mas uma função da interação da estruturação interna
da língua com o processo social em que ela se realiza; sendo que, em muitos casos, os
fatores funcionais e estruturais internos podem ser totalmente sobrepujados pela força das
disposições sociais219. Portanto, qualquer estudo que pretenda explicar um processo de

217
cf., por exemplo, Hock (1986: 656): “In effect, then, the concept of variable rules eliminates the distinc-
tion between diachronic and synchronic linguistics, at least in principle.”
218
cf. Lass (1980: 96): “the ideal argument for functionalism would be a situation where a change hit all
members of the community at once. Now as far as we know there is no evidence that this ever happens or
ever has: changes start SOMEWHERE, and they travel through communities, at varying rates of speed,
etc.”
219
cf. Labov (1982: 74): “No matter functional explanations we give, we must locate other causes that are
strong enough to move in a direction contrary to representational needs and occasionally override them
altogether.”

172
mudança deverá considerar tanto o encaixamento da mudança na estrutura lingüística,
quanto na estrutura social.

A mudança lingüística no contexto social

A questão levantada ao final da seção anterior pode ser vista como um dos pontos
cruciais da ruptura teórico-metodológica que a Sociolingüística promove em relação ao
Estruturalismo. A análise sistemática do caráter social da mudança (e da própria língua)
conduz a uma revisão significativa tanto do modo de apreensão dos fatos lingüísticos
quanto do enquadramento teórico que norteia a análise desses fatos. Tal conflagração
com o Estruturalismo não raro produziu críticas abertas aos procedimentos metodológi-
cos e teóricos desse modelo:

Uma visão acurada da mudança histórica torna-nos crescentemente céticos em


relação ao valor de limitações sobre os tipos de dados que podem ser considerados; como,
por exemplo, que o lingüista explique os eventos lingüísticos somente através de outros
eventos lingüísticos. Seria esperado que a aplicação da Lingüística Estrutural aos proble-
mas diacrônicos levasse a um enriquecimento dos dados, e não ao seu empobrecimento.
(Labov, 1972 [1963]: 3)

Não se pode mais seriamente defender que o lingüista deve limitar suas explica-
ções da mudança às influências mútuas dos elementos lingüísticos, definidos pela função
cognitiva. Nem se pode argumentar em qualquer sentido sério que o sistema lingüístico
em mudança é autônomo. (...) não é possível concluir uma análise das relações estruturais
dentro de um sistema lingüístico, sem considerar as relações externas. (Labov, 1972
[1965]: 181-2)

Porém, apesar de romper com os limites impostos pela análise estruturalista (ou
objetivista, na definição de Bourdieu), abrindo caminho para uma compreensão mais am-
pla e adequada do fenômeno lingüístico (uma compreensão praxiológica, ainda na termi-
nologia de Bourdieu), a Sociolingüística não nega as contribuições estruturalistas prove-
nientes da apreensão do objeto de estudo mediatizada pelas suas relações estruturais e
estruturantes, objetivas. Esse novo modelo teórico busca apenas inserir essas contribui-
ções numa visão mais globalizante do objeto de estudo, integrando as relações estruturais
no contexto sócio-histórico em que elas se realizam:

É evidente que os tipos de reajustes estruturais considerados aqui requerem uma teoria
lingüística que preserve a geometria do espaço fonológico. As relações estruturais encon-
tradas aqui são impressionantemente paralelas às estabelecidas por Moulton (1962) em
seu estudo da covariação das vogais médias e baixas nos dialetos alemães da Suíça. As
técnicas, as áreas, as sociedades estudadas são totalmente diferentes, e a coincidência de
resultados fornece uma forte evidência empírica para a visão funcional da estrutura fono-
lógica proposta por Martinet (1955). Entretanto, os equilíbrios puramente internos proje-

173
tados por Martinet não fornecem uma teoria coerente do mecanismo da mudança fônica.
No esquema esboçado aqui, eles são apenas parte de um processo mais amplo, encaixado
na estrutura sociolingüística da comunidade. (Labov, 1972 [1965]: 181)

Assim, o princípio estruturalista de que uma mudança só pode ser compreendida


considerando-se o sistema lingüístico em que ela se processa, integra-se no princípio so-
ciolingüístico de que “não se pode entender o desenvolvimento de uma mudança lingüís-
tica fora da vida social da comunidade em que ela ocorre” (Labov, 1972 [1963]: 3). Nes-
se novo patamar, a análise lingüística se orienta, não mais por uma concepção de língua
como um sistema autônomo – ou um sistema unitário que se impõe a todos os membros
da comunidade indistintamente –, mas como um sistema socialmente determinado: um
sistema heterogêneo, cuja variação estrutural está relacionada às alterações dos padrões
culturais e ideológicos:

Os procedimentos da Lingüística descritiva se fundamentam na concepção de língua co-


mo um conjunto estruturado de normas sociais. Foi útil no passado considerar essas nor-
mas como invariantes, e compartilhadas por todos os membros da comunidade de fala.
Entretanto, estudos mais acurados do contexto social em que a língua é usada mostram
que muitos elementos da estrutura lingüística estão envolvidos numa variação sistemática
que reflete tanto mudanças temporais quanto processos sociais extralingüísticos. (Labov,
1972 [1968]: 110-1)

Por outro lado, a busca de fundamentação empírica para essas proposições faz
com que a Sociolingüística procure situar precisamente, no desenvolvimento da mudança
lingüística dentro da estrutura social, o ponto em que se verifica essa covariação sistemá-
tica entre as variáveis lingüísticas e os fatores sociais. Esse ponto seria então, não o do
surgimento da mudança, mas o da sua propagação na comunidade de fala. E a regularida-
de dessa co-variação sistemática com os fatores sociais se refletiria na regularidade dos
resultados dos processos de mudança. É, portanto, no processo de propagação da mudan-
ça na comunidade de fala que se pode enfrentar o problema do encaixamento da mudança
na estrutura social:

O problema de explicar a mudança lingüística parece se resolver em três pro-


blemas separados: a origem das variações lingüísticas; a difusão e propagação das mu-
danças lingüísticas; e a regularidade da mudança lingüística. O modelo que subjaz essa
divisão tripartida requer como ponto de partida uma variação em uma ou várias palavras
na fala de um ou dois indivíduos. (...). A maior parte dessas variações ocorre apenas uma
vez, e se extinguem tão rapidamente quanto sugiram. Contudo, uma pequena recorrência,
e, em um segundo estágio, elas podem ser mais ou menos largamente imitadas, podem di-
fundir-se até o ponto em que as novas formas estão em contraste com as mais velhas ao
longo de uma extensa fronteira. Finalmente, em algum estágio posterior, uma ou outra
das duas formas normalmente triunfa, e a regularidade se impõe. (Labov, 1972 [1963]: 1-
2)

174
No primeiro estágio, onde a mudança lingüística se origina, nós podemos obser-
var alguns efeitos colaterais de processos articulatórios que não têm significado lingüísti-
co: nenhuma significância socialmente determinada é relacionada a eles, seja na diferen-
ciação de morfemas, seja na função expressiva. Só quando um significado social é assina-
lado a tais variações é que elas serão imitadas e começam a desempenhar um papel na
língua. A regularidade deve ser então encontrada no resultado final do processo (...), e
não no início. (id., ibid.: 23)

Contudo, o enquadramento do problema do encaixamento em termos causais no


desenvolvimento teórico da Sociolingüística Variacionista conduz esse modelo a dois
graves equívocos:
(i) a abordagem empiricista dos fatos lingüísticos;
(ii) os desvios em relação à concepção do objeto de estudo.
O empiricismo caracteriza-se pelo predomínio das análises quantitativas da mu-
dança lingüística em detrimento de interpretações qualitativas, que se fundamentem numa
compreensão mais refinada do processo sócio-histórico, e da própria interação entre este
e o processo lingüístico. Quanto à concepção do objeto de estudo da Sociolingüística, ve-
rifica-se igualmente uma confusão entre língua enquanto objeto histórico e cultural e
competência lingüística do falante individual.

Questões teóricas e epistemológicas acerca do objeto de estudo da Socio-


lingüística

No primeiro estudo da mudança em seu contexto social feito por Labov, em 1963,
na comunidade da ilha de Martha’s Vineyard, foi analisado o processo de centralização
dos ditongos (ay) e (aw). Nesse estudo, Labov procura enquadrar esse processo lingüísti-
co no contexto sócio-cultural da ilha, visando a estabelecer empiricamente a covariação
sistemática entre os padrões lingüísticos e sociais.
O quadro sócio-econômico de Martha’s Vineyard pode ser definido sumariamente
da seguinte maneira: o declínio das atividades econômicas tradicionais é acompanhado
pelo crescimento do turismo na ilha. Esse processo determina uma grande alteração do
seu panorama sócio-econômico, com a invasão dos padrões culturais do continente. Tudo
isso despertou duas atitudes distintas entre os habitantes da ilha: de um lado estavam
aqueles que reagiam contra a invasão dos turistas vindos do continente, buscando preser-
var a sua identidade cultural ilhéu; de outro, aqueles que se enquadravam no processo só-
cio-econômico em curso provocado pelo crescimento do turismo na ilha, buscando a sua
integração social e cultural dentro dos padrões provenientes do continente. Essa atitude,

175
que Labov chamou de orientação cultural e que podemos definir como ideológica, será
determinante no processo de centralização de (ay) e (aw), na comunidade lingüística da
Ilha (cf. Labov, 1972 [1963]: 28).
A centralização dos ditongos tornou-se, segundo a interpretação de Labov, uma
marca da identidade cultural da ilha. Os habitantes que ideologicamente resistiam à perda
da sua identidade cultural foram os que apresentaram os índices mais elevados de centra-
lização, enquanto aqueles habitantes que não compartilhavam esse sentimento de resis-
tência cultural e pensavam mesmo em deixar a ilha apresentavam os índices mais baixos.
Mais ainda, esse fator se superpõe e permeia todos os outros fatores sociais considerados:
faixa etária, ocupação (pescadores, agricultores e outros), grupo étnico (anglo-saxões,
portugueses e índios), e distribuição geográfica. Assim, o processo de centralização con-
jugaria os fatores referentes à estrutura lingüística, encaixados na matriz social que se
constituiu em torno da atitude dos habitantes da ilha (cf. Labov, 1972 [1963]: 38-9).
Não obstante toda a fundamentação empírica desse estudo, pode-se dizer que o re-
sultado final que conjuga o processo de centralização à variável orientação cultural é
fruto da interpretação de seu autor, e não um reflexo imediato de uma quantificação sub-
jetivamente neutra. Isso configura um dos pontos mais positivos dessa investigação pio-
neira. Através da variável orientação cultural, o estudo conseguiu integrar o processo da
mudança lingüística em curso no cerne do processo social – ou seja, no plano da disputa
ideológica, em que se expressam de forma mais dramática as relações de classe. Com is-
so, passou-se do plano da análise quantitativa para o patamar superior da interpretação
qualitativa, ou, na visão de Lass (1980), o plano em que o estudioso consegue iluminar o
fato, através de uma narrativa exemplar, que é esclarecedora, na medida em que impõe
uma ordem onde antes havia o caos das impressões fragmentárias. Uma análise desse ti-
po, que permite uma compreensão globalizante da interação entre o processo lingüístico e
o processo social, é, portanto, muito mais esclarecedora do que uma que apresentasse re-
sultados do tipo: ‘os fazendeiros centralizam mais que os pescadores’, ‘os homens mais
que as mulheres’, etc. Quanto mais esclarecedor for o estudo de um processo particular
de mudança (como é o caso do estudo de Martha's Vineyard), mais esse processo será
individualizado e particularizado, já que se trata de uma representação adequada de um
processo histórico e cultural, o que extrapola as generalizações derivadas do indutivismo
empiricista que infelizmente tem marcado as preocupações da Sociolingüística Variacio-
nista.
O problema com esse tipo de generalização empiricista é que, por um lado, ela
tem como ponto de partida resultados empíricos que esclarecem muito pouco sobre a mu-
dança em questão (quando não integrados na matriz de uma interpretação globalizante do

176
processo social em que esta mudança se insere); por outro lado, o ponto de chegada des-
sas generalizações – i. é. o somatório de resultados empíricos imediatos – também em
nada auxilia a compreensão do processo da mudança em geral, já que o processo da mu-
dança é historicamente determinado; e, por conseguinte, não é o resultado da ação de um
conjunto de fatores que atuam isoladamente, mas de um processo de interação extrema-
mente complexo, para o qual qualquer quantificação será sempre uma aproximação. Por-
tanto, as únicas generalizações possíveis, neste caso, não se referem ao que foi apreendi-
do, mas a como se deu a apreensão. São, por assim dizer, quase que generalizações de
método. Já as generalizações do tipo das mencionadas acima, não têm, a meu ver, maior
valor heurístico. Pode-se, então, dizer que a importância do estudo de Martha’s Vineyard
não se deve apenas ao fato de ter sido o primeiro estudo produzido pelo modelo da Socio-
lingüística Variacionista, mas principalmente pelo modo através do qual ele apreendeu a
interação da mudança lingüística com o processo social.
No estudo que se seguiu ao de Martha’s Vineyard, Labov (1966) analisou mudan-
ças fônicas em progresso na comunidade lingüística da cidade de Nova Iorque. Esse estu-
do, que, segundo Labov, seria uma ampliação do estudo de 1963, com um maior refina-
mento das técnicas aplicadas, têm por objetos:
(i) a adoção do (r) pós-vocálico, como uma marca de prestígio; e
(ii) o desenvolvimento de sete variáveis do sistema vocálico.
Após esse estudo, que em grande parte forneceu a base empírica do EFTLC, fo-
ram feitos uma série de outros estudos em grandes centros urbanos que seguiam a mesma
orientação teórico-metodológica. Nesse período, registra-se um desenvolvimento signifi-
cativo do instrumental teórico e técnico-metodológico na pesquisa sociolingüística220.
Partindo da visão estabelecida pelo EFTLC (p. 187-8) de que as mudanças lin-
güísticas se iniciam em um ponto específico da estrutura social e se expandem progressi-
vamente até atingirem os limites da comunidade de fala, Labov (1982: 79) define, então,
como objeto principal da teorização do problema do encaixamento, o processo através do
qual a mudança se propaga pela estrutura social. Por outro lado, o tratamento simultâneo
do problema da avaliação – dos juízos sociais da mudança –, abre espaço para uma con-
sideração dos reflexos do processo social no plano das disposições ideológicas. Uma das
questões centrais no estudo do desenvolvimento da mudança na estrutura social seria,
portanto, saber qual a direção que a mudança toma nesse processo. Durante muito tempo,
pensou-se que a mudança se desenvolveria de baixo para cima na escala social; é o que
faz pensar, por exemplo, a lei do menor esforço e a teoria dos substratos. Por outro lado,

220
Veja-se, a esse respeito, Labov (1982: 32-4).

177
a idéia de que a mudança poderia se propagar através da imitação221 conduz a uma posi-
ção diametralmente oposta: a mudança partiria das classes mais altas de maior prestígio
social em direção às classes mais baixas. Contudo, segundo Labov (1982: 77), nenhum
desses dois padrões foi encontrado na maioria dos estudos sociolingüísticos de mudança
em progresso em centros urbanos, feitos até então:

A mudança lingüística em progresso foi associada a um padrão curvilinear, e o ponto de


origem em um grupo social intermediário.

Um estudo do Project on Linguistic Change and Variation in Philadelphia (1972-


1978) atacou diretamente essa questão, buscando estabelecer qual seria o perfil dos gru-
pos inovadores nos processos de mudança em curso. Os resultados desse estudo foram
sumariados por Labov (1982: 77-8) da seguinte maneira:

a) As mudanças lingüísticas originam-se em um grupo social intermediário – as


seções mais elevadas da classe operária ou as mais baixas da classe média.
b) Dentro desses grupos, os inovadores são usualmente as pessoas de mais alto
status local, que desempenham um papel central nos negócios da comunidade.
c) Os estudos de redes de comunicação mostram que os inovadores possuem a
mais alta densidade de interação social, e a mais alta proporção de contatos fora da vizi-
nhança local.
d) Na maioria das mudanças lingüísticas, as mulheres estão à frente dos homens,
na proporção de uma geração.
e) Novos grupos étnicos que entram na comunidade de fala só participam nas
mudanças lingüísticas em progresso quando eles começam a adquirir privilégios e direi-
tos locais, em termos de trabalho, moradia e acesso à estrutura social.

Generalizações desse tipo que têm caracterizado os estudos realizados pelo mode-
lo da Sociolingüística expressam de maneira bem nítida a orientação empiricistas desses
estudos. Contrariamente, penso que não se pode transferir mecanicamente a ação de um
determinado fator social sobre uma mudança em curso numa determinada realidade social
para um outro processo de mudança lingüística que se desenrola em uma outra realidade
social. Generalizações do tipo ‘as mulheres são mais inovadoras que os homens’ ou ‘as
mudanças lingüísticas se propagam a partir de um ponto intermediário na escala social’
têm, a meu ver, um valor heurístico bastante questionável, pois a ação de um determinado
fator social sobre um processo particular de mudança é determinada pela maneira especí-
fica através da qual esse fator se integra no conjunto complexo de interações que constitui
o processo social em que a mudança acontece.
Tomemos, como exemplo, o papel da mulher no processo de mudança. Esse papel
é determinado pelas disposições culturais e ideológicas que caracterizam as condições

221
cf. Bloomfield, 1933: 476.

178
específicas da inserção da mulher naquela sociedade, num determinado contexto históri-
co. Em um outro tipo de sociedade e em um outro contexto histórico, o papel da mulher
pode ser bastante distinto, como o admite o próprio Labov (1982: 78-9):

O princípio geral que emerge dos estudos na Europa, no Canadá, nos Estados
Unidos e na América Latina é o de que as mulheres são mais conservadoras em sua rea-
ção frente a variação estável e socialmente reconhecida. Mas essa generalização tem sido
revertida em estudos realizados em sociedades do Oriente Médio e do sul da Ásia (...). O
comportamento conservador das mulheres é, portanto, limitado pelas particularidades his-
tóricas e culturais das regiões envolvidas.
(...)
[Diferentemente do que ocorre nas sociedades urbanas ocidentais], parece que, onde a
mulher não desempenha um papel relevante na vida pública, as perspectivas culturais fa-
zem com que elas reajam menos fortemente diante das normas lingüísticas de prestígio.
(p. 78-9)

Portanto, o papel da mulher só pode de fato ser considerado dentro de cada reali-
dade sócio-cultural específica e para cada caso particular de mudança. Qualquer generali-
zação sobre o papel da mulher na mudança lingüística em geral é extremamente perigosa
para o entendimento da questão como processo histórico. E esse problema se torna parti-
cularmente dramático quando se pensa em transferir as descobertas feitas em estudos de
mudanças no presente, para o estudo de mudanças ocorridas no passado, ou seja em rea-
lidades sócio-históricas qualitativamente distintas222.
Com efeito, quando falamos de mudança lingüística, estamos falando de um pro-
cesso histórico e cultural223. O conjunto extremamente complexo e específico de intera-
ções que deve ser considerado na apreensão de cada processo desse conduz forçosamente
à sua individualização. Isso tem produzido uma profunda discussão acerca da possibili-
dade de se produzir esquemas explicativos sobre eventos como as mudanças lingüísticas,
ou o que significa explicar esses eventos. Porém, parece haver um razoável acordo em
Filosofia da Ciência sobre o fato de que, contrariamente a posição que tem sido recorren-
te nos estudos da Sociolingüística, os processos históricos e culturais não podem ser ex-
plicados em termos causais. Tal equívoco epistemológico tem provocado, na orientação
teórica da Sociolingüística Variacionista, uma série de desvios que temos denominado
empiricismo.
Um sério equívoco é o de buscar fazer com que os esquemas explicativos da mu-
dança lingüísticas sejam igualmente preditivos. Os estudos de processos históricos e cul-

222
veja-se, por exemplo, Labov 1972.
223
Esta posição que assumo aqui não significa que não se coloque hoje para a Lingüística a questão: a mu-
dança é somente um processo histórico e cultural? (i. é., é regida apenas pela lógica que caracteriza os pro-
cessos dessa natureza), o que conduz à questão: em que medida a mudança é processo histórico e cultural e
em que medida é um processo de outra natureza (natural, biológico, lógico, psicológico)?

179
turais só são preditivos, na melhor das hipóteses, num sentido muito restrito. Essa visão
se contrapõe frontalmente a visão que norteia os estudos como, por exemplo, os de Trud-
gill (1974) e Chambers & Trudgill (1980) que acreditam ter desenvolvido uma equação
que prediz a influência de um centro urbano sobre outro. Essa visão empiricista perde
completamente de vista o caráter histórico dos processos de que trata. O ritmo de um pro-
cesso histórico não pode ser seriamente previsto em uma equação. Alguém já pensou se-
riamente em formular uma equação para prever a influência de um centro urbano sobre
outro na difusão de padrões culturais, como, por exemplo, o das modas no vestuário?
Essa abordagem empiricista também pode ser atribuída à falta de um maior refi-
namento da instrumental teórico disponível aos estudos sociolingüísticos. O próprio La-
bov reconhece essa deficiência como um dos obstáculos a uma compreensão mais acura-
da do encaixamento da mudança lingüística na estrutura social e do processo de mudança
lingüística como um todo224. Mas, até que ponto um maior aprofundamento no estudo da
mudança lingüística como um processo sócio-histórico como o que assim se esboça não
se configuraria menos um estudo de Sociolingüística do que como um estudo de Sociolo-
gia da Linguagem? Uma questão como essa, que se coloca na definição dos rumos da So-
ciolingüística, passa pela definição dos limites da Lingüística e de sua identidade como
ciência; uma discussão que a fortiori passa também pela concepção do seu objeto de es-
tudo.
Os desvios referidos acima têm implicação direta sobre a concepção do objeto de
estudo desenvolvida pela Sociolingüística. A desconsideração de sua dimensão histórica e
cultural tem feito com que o sistema heterogêneo seja visto, não apenas como uma repre-
sentação da língua, mas também como uma representação do desempenho, ou mesmo da
competência do falante individual, ou seja, os padrões lingüísticos observados para a co-
munidade são tomados como parâmetros que regulam a produção do falante individual;
confundindo-se sistema lingüístico da comunidade com competência lingüística do
falante individual.
Dentro do modelo variacionista, a estrutura da língua seria constituída por unida-
des e regras variáveis, que, simultaneamente, seriam restringidas pelos contextos estrutu-
rais lingüísticos e estariam correlacionadas com os fatores sociais. O elemento da estrutu-
ra observado constituiria o que a terminologia variacionista designa por variável depen-
dente, enquanto que os fatores lingüísticos e sociais que atuam sobre esse elemento são

224
cf., Labov (1982: 83): “The linguistic facts are clear; the social explanation are vague. Most of our cur-
rent studies are based on the close observation of local neighborhoods and their boundaries. It seems that
sociolinguistic studies must leave the local neighborhoods and engage the larger social structure of the city
if further progress is to be made on the actuation problem.”

180
denominados variáveis independentes. Assim, a descrição do sistema lingüístico ou da
gramática passaria pelo estabelecimento das freqüências relativas dos valores de cada va-
riável dependente (i. é., de cada variável da gramática) em função das variáveis indepen-
dentes consideradas. A questão, então, é saber se essa gramática se situa no falante indi-
vidual ou na coletividade, ou, nas palavras de Romaine (1982: 243): “que nível de abs-
tração é relevante para a construção de uma gramática?”
Como observa Romaine (1982: 244), para Labov, “o local da língua é a comuni-
dade ou o grupo, e a fala de qualquer grupo social será menos variável que a fala de qual-
quer indivíduo. Assim, as regras variáveis são escritas para grupos, não para indivíduos;
porém, defende-se que há isomorfismo entre a gramática do indivíduo e a do grupo”.
Com efeito, esse isomorfismo é, na melhor das hipóteses, apenas parcial, na medida em
que cada indivíduo sempre apresentará desvios em relação à gramática do grupo; o que é
reconhecido pelo próprio Labov, quando esse alude à maior variabilidade do idioleto. E é
nessa diferença entre a gramática do indivíduo e a da comunidade que se situam as difi-
culdades da Sociolingüística Variacionista. A questão tem implicações no plano teórico e
no plano metodológico.
Alguns importantes membros da Sociolingüística têm tratado a questão como um
problema metodológico de insuficiência de dados. Reside aí a ilusão de que, se um es-
quema probabilístico pudesse integrar todos os fatores intervenientes no evento a ser ex-
plicado, esse esquema alcançaria o estatuto de um esquema nomotético-dedutivo. Essa
ilusão é, certamente, motivada pela pretensão de se chegar às causas da mudança e da va-
riação, e assim se determinar (ou predizer) o comportamento do indivíduo falante. Con-
tudo, tais ilusões acerca das possibilidades dos esquemas probabilísticos passam por uma
incompreensão do caráter desses esquemas e não se sustentam em termos lógicos. Há um
razoável acordo na Filosofia da Ciência de que os esquemas probabilísticos fazem predi-
ções sobre agregados e não sobre eventos particulares. Desse modo, pode-se dizer que a
Sociolingüística está metodologicamente equipada para fazer afirmações sobre os padrões
observados na coletividade, e não para fazer predições acerca da produção lingüística de
um indivíduo particular. Mesmo no plano coletivo dos processos históricos e culturais, o
valor explanatório dos esquemas probabilísticos é controverso entre os teóricos do conhe-
cimento, dado o caráter em certa medida contingencial desses processos.
E, se falar de determinações no plano coletivo dos processos históricos e culturais
é ainda questionável, tal pretensão, no plano do comportamento social e cultural do indi-
víduo, dificilmente se sustenta, já que este comportamento é muito mais contingencial.
Não se trata, inclusive, de uma diferença de quantidade, mas de uma diferença qualitativa
entre o comportamento lingüístico do indivíduo e o comportamento da coletividade, e,

181
conseqüentemente, entre as suas respectivas representações possíveis – a gramática do
indivíduo e a da comunidade:

Como afirma Labov (1966: 6) uma gramática não é apenas uma coleção de idioletos. Nós
não podemos, portanto, descrever as propriedades do conjunto como uma função aditiva
das propriedades de suas partes. Existem, em outras palavras, certas propriedades emer-
gentes do grupo que o tornam coerente enquanto grupo. Tais propriedades emergentes
devem ser compreendidas como características que não são propriedades dos indivíduos
dos quais elas são uma coleção. Essas características precisam ser explicadas pela refe-
rência à estrutura como um todo, e não apenas aos componentes que integram a estrutura
(cf. Harré, 1976: 140-6). (Romaine, 1982: 245)

Isso nos conduz diretamente à questão: o sistema heterogêneo, ou a gramática


das regras variáveis, é uma representação do quê? Em outras palavras, a questão é situar
empiricamente a concepção do objeto de estudo da Sociolingüística. Todo o desenvolvi-
mento teórico desse modelo nos levaria a crer que o seu objeto de estudo teria por refe-
rência empírica a língua como produto histórico e cultural de uma dada coletividade.
Contudo, alguns dos seus integrantes têm buscado apresentar a gramática de regras variá-
veis como uma representação das habilidades e processos mentais, ou ainda de mecanis-
mos cerebrais do homem; em uma palavra: como a representação da competência lingüís-
tica do falante individual225. Nesse ponto, o objeto da Sociolingüística confina com o ob-
jeto de estudo de outra grande vertente da Lingüística contemporânea: a Gramática Ge-
rativa, liderada por Noam Chomsky (cf., entre outros, 1981). Há aí, a meu ver, uma con-
fusão entre língua e linguagem; sendo aquela um objeto histórico e cultural que se cons-
titui a partir da interação social entre os membros de uma determinada coletividade, e esta
a faculdade mental que determina as capacidades lingüísticas do ser humano, portanto,
um objeto de natureza psicológica, ou mesmo biológica, onde, segundo o modelo teórico
gerativista se situa a dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico. Desse
modo, pode-se dizer que a língua é por excelência o objeto da Sociolingüística e a lin-
guagem o objeto da Gramática Gerativa.
Pondo de lado, por enquanto, as motivações dos membros da Sociolingüística pa-
ra confundir uma coisa e outra, é importante deixar claro porque é a língua e não a lin-
guagem o objeto da Sociolingüística. A língua enquanto objeto histórico e cultural cor-
responde ao comportamento lingüístico de uma dada coletividade, aos padrões lingüísti-
cos que se observam dentro dessa coletividade; padrões esses que são variáveis, donde a
sua adequada representação como um sistema heterogêneo. Em certa medida, pode-se
dizer que esses padrões lingüísticos são similares aos demais padrões culturais que se ob-
servam no comportamento dos membros da comunidade (ou seja, padrões coletivos que

225
Veja-se, a esse respeito, Romaine (1982: 247-251) e Kay e Mc Daniel (1977: 1-7).

182
podem ser depreendidos indutivamente a partir da observação de comportamentos indivi-
duais). A diferença é que os padrões lingüísticos não são apenas determinados pelas for-
ças atuantes na estrutura social, mas também pelas forças da estrutura lingüística. Desse
modo, os padrões lingüísticos são descritos, e explicados (na medida em que objetos des-
sa natureza podem ser explicados), em termos de uma gramática de regras variáveis que
operam com probabilidades associadas a fatores sociais e restrições hierarquizadas da es-
trutura lingüística.
Pode-se dizer que a competência lingüística individual se ajusta a esses padrões
variáveis, ou mesmo que uma descrição da competência lingüística deve dar conta dos
mecanismos que capacitam o falante a lidar com essa variabilidade, mas dizer que a com-
petência lingüística do falante individual pode ser descrita nesses termos é, pelo menos,
ter uma visão bastante redutora do que seja isso. A competência lingüística, ou seja o sa-
ber falar uma língua, não se resume a regras variáveis, probabilidades e restrições hierar-
quizadas:

‘Saber’ inglês, por exemplo, não pode ser equiparado com saber as probabilidades ou hie-
rarquias de efeito de diferentes contextos associados com regras na gramática. Nós po-
demos formular leis estatísticas sobre a probabilidade de ocorrências em uma língua e
mesmo assim não sermos capazes de entender qualquer coisa que seja dita. Eu não me
acho capaz de acreditar que o conhecimento de uma língua pode ser separado do papel
que ele desempenha na compreensão. Eu não estou afirmando que Labov negue a exis-
tência desse tipo de (ou parte da) competência, mas simplesmente que não há qualquer
coisa no conceito de regra variável que nos capacite a dizer coisas interessantes sobre es-
se aspecto da competência. (Romaine, 1982: 251)

Em outras palavras, a descrição da competência lingüística do falante individual


(se isso for possível) remete-nos de volta a questão como funciona uma língua? (ou como
funcionam as línguas?), ou ao cerne da dimensão estrutural e estruturante do fenômeno
lingüístico. A Gramática Gerativa, que vem se dedicando integralmente a essa questão há
meais de quarenta anos, afirma que uma representação teórica dessa dimensão do fenô-
meno lingüístico deve dar conta do conjunto processos mentais e mecanismos cerebrais
que permitem a qualquer ser humano se tornar falante de uma língua. Ou seja, a represen-
tação da competência lingüística de um falante individual passa por uma formalização
analítica da faculdade humana da linguagem, que a Gramática Gerativa chama de Gra-
mática Universal226. Desse modo, a competência lingüística individual situa-se empiri-
camente numa faculdade da mente humana, não em padrões lingüísticos coletivos.
A descrição dos padrões lingüísticos de uma comunidade através de um sistema
heterogêneo de regras e unidades variáveis tem se mostrado uma representação teórica e

226
Veja-se, entre outros: Chomsky (1981 e 1995).

183
empiricamente adequada da língua, ou seja, como uma concepção capaz de dar conta da
questões que se referem a dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico. Contudo, a
extensão dessa representação à competência lingüística do falante individual constitui
uma confusão teórica entre a dimensão histórica e a dimensão estrutural do fenômeno
lingüístico, do que resulta a confusão entre a representação de padrões objetivos de com-
portamento lingüístico, indutivamente depreendidos no plano dos processos sócio-
culturais, com a formalização de processos cerebrais e estruturas mentais que se depreen-
dem dedutivamente do plano psíquico-biológico do fenômeno lingüístico, o que é “meto-
dologicamente inadmissível”:

Descrever os usos de falantes/grupos em termos de leis probabilísticas denominadas re-


gras variáveis é uma coisa; mas projetar essas regras na competência dos falantes indivi-
duais de uma língua, e então supor que os falantes ou suas capacidades mentais são de al-
guma maneira restringidos por elas é, em minha opinião, metodologicamente inadmissí-
vel. (Romaine, 1982: 251)

A motivação da identificação da gramática da comunidade com a gramática do


indivíduo pode ser vista como uma decorrência da necessidade da teoria sociolingüística
dar conta dos reflexos da dimensão estrutural do fenômeno lingüístico em sua dimensão
histórica, ou da interação entre ambas. Segundo a teoria sociolingüística, os padrões lin-
güísticos da comunidade são também restringidos pelas forças estruturais. Isso levanta a
seguinte questão: de que maneira ou em que medida os fatores da dimensão estrutural do
fenômeno lingüístico determinam os padrões observados em sua dimensão histórica e
social? De um outro ângulo: quais são os limites da variação lingüística? As estruturas
da faculdade da linguagem impõem algum limite a variação que resulta da interação so-
cial em que se desenrola a atividade lingüística concreta? As respostas a essas questões
passam necessariamente por uma teoria da dimensão estrutural e estruturante do fenôme-
no lingüístico, ou simplesmente de uma teoria da (faculdade da) linguagem. A questão
que se coloca então é: pode-se dar conta dos fatores estruturais na abordagem da língua
como um objeto histórico e cultural? Ou ainda: é possível uma teoria da estrutura dentro
de uma perspectiva sociolingüística?
Poder-se-ia, então, perguntar se uma abordagem mais adequada da mudança lin-
güística conduz irremediavelmente à impossibilidade de se aprender a natureza sistêmica
da língua. A resposta afirmativa a essa questão acabaria por confirmar a afirmação de
Saussure acerca da oposição irredutível entre mudança e sistema. A capacidade da Soci-
olingüística em integrar dentro da sua perspectiva de análise uma teoria da estrutura (ou a
incapacidade da Sociolingüística em gestar uma teoria da estrutura a partir de sua pers-

184
pectiva de análise) remete-nos à maneira pela qual esse modelo teórico desenvolveu a sua
formalização analítica da estrutura lingüística.

A concepção de língua como um sistema heterogêneo

A concepção de língua como um sistema heterogêneo constitui o momento crucial


da ruptura epistemológica que a Sociolingüística opera em relação ao modelo estruturalis-
ta. Ao integrar, na concepção de língua como sistema heterogêneo, estrutura e mudança, a
Sociolingüística busca construir uma representação teórica do fenômeno lingüístico que
articule as suas dimensões estrutural e histórica. Na possibilidade de dar conta dessas du-
as dimensões antagônicas e fundamentais do fenômeno lingüístico através da sua concep-
ção de língua, apoiam-se as pretensões da Sociolingüística de suceder o Estruturalismo,
como modelo teórico condutor da pesquisa lingüística.
O princípio teórico básico da concepção do objeto de estudo proposta pela Socio-
lingüística era o de quebrar a identificação entre estruturalidade e homogeneidade,
até então vigente227. Dentro da visão estruturalista, para que a língua pudesse desempe-
nhar as suas funções na sociedade, ela deveria organizar-se como um sistema de forma
unitária e homogênea. Desse modo, a variabilidade e a mudança eram associadas aos pro-
cessos que ameaçavam a funcionalidade da língua228. Tal maneira de ver a mudança cria
um paradoxo para a teoria do sistema homogêneo: como a língua funciona se ela está
permanentemente em processo de mudança?229 Na solução desse paradoxo, repousa a
possibilidade de se integrar a mudança e a variabilidade como objetos da análise lingüís-
tica sistemática. Em primeiro lugar, é preciso rever a idéia de um caráter disfuncional da
mudança lingüística, o que passa pela consideração mais ampla das funções que a língua
desempenha na sociedade, que na análise estrutural se restringiam em termos práticos à
função comunicativa230. Através dessa visão mais ampla, pode-se integrar mudança e va-
riabilidade na análise do funcionamento da língua numa comunidade heterogênea e plu-

227
cf. EFTLC (p. 151): “the solution to the fundamental question lies in direction to breaking down the
identification of structuredness with homogeneity. We have proposed, instead, that a reasonable account of
change will depend upon the possibility of describing orderly differentiation within language.”
228
cf. Labov (1982: 23-4): “Given the structural-functional concept of language, it must follow that a lan-
guage in process of change will not carry out its functions as successfully as a stable language. If some
members of the community have different systems for encoding and decoding than others, their out put will
not be as readily and symmetrically decoded by the others.”
229
cf. EFTLC (p. 150): “if a language must be structured in order to function efficiently, how does it func-
tion as a structure changes?”
230
Veja-se, a esse respeito, Labov 1982: 25-6.

185
ral; e, desse modo, também inserir mudança e variabilidade no processo de organização
estrutural da língua:

Os princípios empíricos da heterogeneidade normal e da comunidade de fala


permitem-nos transformar a questão primária de modo a resolver o paradoxo implícito na
busca do idioleto. As respostas a questão “Como a língua X funciona?” incluirão a habi-
lidade dos falantes em lidar com os elementos heterogêneos da estrutura lingüística. (La-
bov, 1982: 22)

Os princípios empíricos do EFTLC permitem-nos resolver a oposição paradoxal


entre estrutura e mudança. A mudança lingüística não é vista como exterior ao sistema,
mas parte integrante do seu caráter normalmente heterogêneo. A visão negativa da mu-
dança não é aceita sem questão. Os EFTLC chamaram a atenção para o fato de que nin-
guém apresentou ainda evidências de efeitos negativos da reduzida sistematicidade no
curso da mudança. O caráter funcional ou disfuncional da mudança lingüística deve ser
visto como uma questão empírica. (id., ibid.: 24)

Para demonstrar, então, como a heterogeneidade se insere no processo de estrutu-


ração da língua, ou mesmo que faz parte da competência lingüística do falante individual,
Weinreich, Labov e Herzog (doravante WLH) partem da situação extrema do contato
entre línguas e dialetos diferentes. Uma situação como essa, de contato entre sistemas
lingüísticos diferenciados, coloca inevitavelmente o problema da transferência de formas
ou regras de um falante de um sistema para um falante do outro sistema. Rejeitando “o
mecanismo mais simples, que foi proposto por [Hermann] Paul, em que a transferência
ocorre entre dois idioletos homogêneos isolados” (EFTLC, 155), WLH vão propor um
outro esquema que lhes parece mais ajustado aos fatos:

A transferência ocorre quando o falante A aprende a forma ou regra usada por B, e esta
regra então coexiste na competência lingüística de A ao lado da regra ou forma anterior.
A mudança então ocorre dentro do complexo repertório lingüístico de A: um tipo é o gra-
dual desfavorecimento da forma original em favor da nova, até que aquela assume o esta-
tuto de “arcaica” ou “obsoleta”. (p. 156)

Esse esquema deve ser ainda refinado no sentido de integrar o processo de ajuste
lingüístico que é inerente ao processo de transferência:

Quando o falante A aprende a regra q, de B, não se deve esperado que ele a apreenda per-
feitamente. Influenciado por seu próprio sistema, P, e sem toda a gama de experiência de
B que apóia o sistema de B, Q, A adquire uma regra q' de algum modo diferente – uma
regra fonológica com traços alterados, uma regra lexical com prerrogativas diferentes de
distribuição, ou uma regra gramatical com algumas condições especiais perdidas. Assim,
nessa transferência inicial, um segundo tipo de mudança já ocorreu. Mas, a mudança mais
profunda e sistemática deve ser esperada após A ter adquirido a regra de B. Dentro do
único repertório disponível para A (que contém p em P e q'), nós podemos antecipar uma
acomodação de p e q' – normalmente uma assimilação de q' aos traços característicos de
p, de modo que a eventual inserção de uma q'' modificada é possível. (EFTLC, 156-7)

186
Por outro lado, os processos de mudança que ocorrem na fala de indivíduos bilín-
gües ou bidialetais não podem ser explicados somente através dos fatores estruturais lin-
güísticos, deve-se levar em conta também as condições sociais em que se dá o contato
lingüístico, ou seja deve-se considerar também os fatores sociais, como Weinreich (1953:
4) já havia observado anteriormente em sua reflexão sobre o tema:

A extensão, direção e natureza da interferência de uma língua sobre outra


podem ser explicadas ainda mais em termos do comportamento lingüístico
dos indivíduos bilíngües, que, por sua vez, é condicionado pelas relações
sociais na comunidade em que eles vivem.

Porém, o passo mais significativo nesse desenvolvimento teórico se dá quando


WLH propõem que esse esquema observado no contato entre sistemas diferentes, que se
verifica entre dialetos geográficos, deve ser aplicado também à situação interna de um
único sistema dentro de uma mesma comunidade de fala:

Nós encontramos também, na maioria das comunidades de fala, distintas formas


da mesma língua que coexistem aproximadamente na mesma proporção em todas as sub-
regiões geográficas da comunidade. Esse é o caso em áreas urbanas tais como Nova
York, Londres ou Paris, mas também em comunidades rurais, tais como Hemnes, Nor-
way, ou Martha’s Vineyard, Massachusetts. Essas formas coexistentes podem ser conhe-
cidas como “estilos”, mas também como “padrões”, “gírias”, “jargões”, “níveis culturais”
ou “variedades funcionais”. Nos termos do modelo de sistema lingüístico diferenciado
que nós estamos desenvolvendo, tais formas compartilham as seguintes propriedades:
(1) Elas oferecem meios alternativos de dizer “a mesma coisa”: isto é, para cada
ocorrência em A, existe uma ocorrência correspondente em B que fornece a mesma in-
formação referencial e não pode ser diferenciada exceto em termos da significância social
que marca o uso de B contra A.
(2) Elas estão conjuntamente disponíveis a todos os membros (adultos) da co-
munidade de fala. Alguns falantes podem ser incapazes de produzir ocorrências em A e B
com igual competência por causa de alguma restrição em seu conhecimento pessoal, prá-
ticas, ou prerrogativas apropriadas à sua condição social, mas todos os falantes geralmen-
te têm a habilidade de interpretar ocorrências em A e B e entender a significância da esco-
lha de A ou B por algum outro falante. (EFTLC, 159)

Essa alternância de formas ou regras que estão disponíveis a todos os membros de


uma comunidade de fala não é, por assim dizer, uma descoberta da Sociolingüística; ela
já é referida dentro da literatura estruturalista (cf. Jakobson 1931 e Bloomfield 1927, por
exemplo), sendo denominada alternância de estilo (style switching) ou alternância de
código (code switching). A diferença está na maneira de conceber essa alternância, intro-
duzida pela Sociolingüística. Dentro do modelo estruturalista, essa alternância se dá entre
níveis internamente coerentes e independentes entre si, ao passo que, na Sociolingüística,
esses níveis estão integrados em um mesmo sistema heterogêneo. Assim sendo, o reco-
nhecimento da existência de níveis diferentes no processo de estruturação da língua não é

187
per se uma ameaça à concepção de sistema lingüístico homogêneo, desde que esses dife-
rentes níveis possam ser concebidos como formando sistemas específicos, internamente
coerentes, que componham, em seu conjunto, o sistema geral da comunidade, dito um
diassistema. O lingüista poderia, então, isolar, no conjunto dos sistemas disponíveis na
comunidade, um sistema homogêneo e unitário, e analisá-lo isoladamente. A mudança e a
variabilidade seriam vistas como processos aleatórios, contingenciais de empréstimo, ou
interferência entre um sistema e outro.
Essa visão isolante da análise lingüística será, contudo, negada por WLH, que
consideram que tal representação da língua não se ajusta à realidade da atividade lingüís-
tica concreta. A “consistência” da representação do sistema lingüístico disponível a uma
comunidade de fala como um conjunto de sistemas homogêneos e internamente coerentes
entraria claramente em conflito com a realidade lingüística de tal comunidade, na medida
em que tal representação não seria capaz de incorporar as “inconsistências” que caracteri-
zam essa realidade:

Tais inconsistências seriam interpretáveis dentro de um modelo mais adequado de língua


diferenciada, aplicado à comunidade de fala como um todo, que inclui elementos variá-
veis dentro do próprio sistema. (EFTLC, 166)

Para tanto, é preciso delimitar bem as fronteiras entre o que seria a alternância de
código e a variação dentro de um mesmo sistema. A alternância de código implica a
estrita co-ocorrência entre elementos ou regras pertencentes a sistemas distintos e inde-
pendentes entre si:

Um código ou sistema é concebido como um complexo de regras ou categorias inter-


relacionadas que não podem ser misturadas aleatoriamente com as regras e categorias de
um outro sistema ou código. Assim, por exemplo, poder-se-ia normalmente dizer em cri-
oulo jamaicano im tired a tired ou em inglês padrão he's tired, that's all, mas não he's ti-
red a tired. (EFTLC, 166-7)

Entretanto, dentro do sistema de uma mesma comunidade de fala, a situação é


bem diferente, porque o grau de interação entre regras e elementos concorrentes é sensi-
velmente mais elevado, o que torna muito difícil a manutenção do esquema de alternância
de código nesse caso, pois “o analista é obrigado a defender que os falantes podem alter-
nar códigos no meio de uma sentença, uma oração ou um sintagma, não apenas uma, mas
várias vezes. Por exemplo, é dito que na fala das crianças negras das cidades do Norte, a
cópula não aparece no presente, como em You a swine! Ainda que, para todos os falantes,
a cópula is apareça nesta posição. Não é incomum encontrar em muitas interações agita-
das entre colegas, ocorrências tais como Make believe this is a team and this a team!
Afirmar que esse e centenas de outros exemplos como esse são casos de alternância de

188
código seria um artifício da teoria, e não uma conclusão exigida pelos dados” (EFTLC,
167). E a posição que WLH defendem diante da questão é apresentada de forma cristali-
na:

Para dar conta de tal variação, é necessário introduzir outro conceito no sentido da hete-
rogeneidade ordenada que nós estamos defendendo aqui: a variável lingüística – um ele-
mento variável integrado no sistema e controlado por uma única regra. (id., ibid.)

Se o reconhecimento da variabilidade existente dentro do sistema lingüístico só


vai ocupar uma posição central na análise dos fatos da língua a partir das formulações da
Sociolingüística Variacionista, a observação da variabilidade no interior do sistema lin-
güístico deve ser identificada já no interior do modelo estruturalista, só que numa posição
que se pode definir como periférica231. Como é destacado no próprio texto do EFTLC, a
presença da variabilidade no sistema lingüístico já é destacada nos primeiros passos do
Estruturalismo, na obra de Mathesius. Mathesius define essa variabilidade sistemática
através do seu conceito de potencialidade. Segundo ele, a potencialidade é um fenômeno
simultaneamente sincrônico e diacrônico, o que se aproxima da representação de língua
da Sociolingüística, como um continuum de variação e mudança. Essa visão de Mathesius
não deixou de ter desdobramentos entre os continuadores dos trabalhos do Círculo de
Praga, como Neustupny, Skalicka e Vachek (cf. EFTLC, 168-9).
Porém, fica uma questão: por que essa visão da variabilidade sistemática esteve
ausente na grande maioria das análises realizadas pelo Estruturalismo? A resposta é
simples: nem Mathesius, nem seus continuadores foram capazes de mostrar como “se dá
a integração de sua noção de ‘potencialidade’ na descrição sistemática da língua”, “não
apresentaram suas visões com uma precisão adequada à complexidade dos dados lingüís-
ticos, nem desenvolveram métodos empíricos para o trabalho na comunidade de fala que
lhes permitissem investigar os processos de mudança contínua de maneira convincente.
(...) não é o bastante destacar a existência ou a importância da variabilidade: é necessário
lidar com os fatos da variabilidade com precisão suficiente para nos permitir incorporá-
los em nossas análises da estrutura Lingüística” (EFTLC, 168 e 169).
Portanto, não foi apenas com a concepção de língua como um sistema heterogê-
neo que a Sociolingüística promoveu a sua ruptura epistemológica com o Estruturalismo,
foi preciso que esse modelo produzisse todo um aparato metodológico que se articulasse
com essa concepção de língua. É com esse arcabouço teórico-metodológico que a Socio-
lingüística vai, a partir da década de 60, reorientar em grande parte da pesquisa lingüísti-
231
Isso demonstra, mais uma vez, que os modelos teóricos que se situam no desenvolvimento histórico de
uma ciência não podem ser vistos como blocos monolíticos; posições divergentes que se situam numa posi-
ção periférica, mas no interior do modelo, são índices expressivos de suas contradições latentes.

189
ca, colocando-se como um modelo alternativo na disputa pela hegemonia no seio da ciên-
cia da linguagem.

Uma teoria para a estrutura da língua: as limitações da Sociolingüística

A concepção de língua como um sistema heterogêneo tem importantes implica-


ções para a análise da estrutura lingüística, na medida em que coloca a variação no cen-
tro da análise do processo de estruturação da língua. Para entender de que maneira a So-
ciolingüística formalizou os seus esquemas de análise, é fundamental conhecer o conceito
de variável lingüística, que ocupa nesse esquema teórico uma posição capital:

A variável lingüística deve ser definida sob condições estritas, se ela deve ser considerada
como parte da estrutura; de outro modo, dever-se-ia simplesmente abrir a porta para uma
ampla gama de regras que “freqüentemente”, “ocasionalmente”, ou “às vezes” se apli-
cam. (EFTLC, 169)

A sistematicidade da variável lingüística está intimamente associada à distinção


que deve ser feita entre covariação e co-ocorrência estrita:

A evidência quantitativa para covariação entre a variável em questão e algum outro ele-
mento lingüístico ou extralingüístico fornece a condição necessária para admitir tal uni-
dade estrutural. A covariação pode ser oposta à co-ocorrência estrita, ou a co-ocorrência
pode ser concebida como o caso limite da covariação. A comprovação de relações de co-
ocorrência estrita pode de fato emergir de uma investigação quantitativa que fornece
comprovação de covariação. (EFTLC, 169)

Nesse sentido, qualquer variável lingüística pode ser formalizada através de regras
que apresentam a seguinte forma:

(1) A → g[B] / X [ /Z]Y


(2) g[B] = f(C,D,E...)
(EFTLC, 170)

Nessa fórmula, g[B] é a variável lingüística – também referida como (B) –, B é


um dos valores da variável A, que faz parte do sistema lingüístico analisado; X[ /Z]Y
constituiria uma representação do contexto lingüístico em que a variação ocorre; e C, D e
E são as outras variáveis lingüísticas e extralingüísticas, que explicam A, e são ditas in-
dependentes, em oposição a esta que se define como dependente das demais. Desse mo-
do, o valor ou a freqüência da variante B no espectro da variável A é uma função de C, D
e E.

190
Aplicando-se esse modelo à pronúncia do r final ou pre-consonantal na comuni-
dade lingüística de Nova York, obtém-se:

(3) /r/ → g[r] / __ {$, #}


(4) g[r] = f(estilo, classe, idade)
(EFTLC, 170)

Assim, a freqüência da pronúncia do r no contexto __{$, #} é uma função das va-


riáveis estilo, classe e idade. Tal formalização permite integrar na análise tanto as regras
categóricas quanto as variáveis, bem como os casos de co-ocorrência estrita e a correla-
ção entre os fatores lingüísticos e sociais:

A regra categórica usual tem o valor de g igual a 1. Quando sistemas inteiros de variáveis
covariam juntos, o valor da função de controle g é idêntico para cada regra que diferencia
os sistemas. O valor de g também pode ser idiossincrático para uma variável particular,
mas relacionado a outras variáveis de uma maneira mais ou menos regular. O sistema he-
terogêneo é então visto como um conjunto de subsistemas que se alternam de acordo com
um conjunto de regras de co-ocorrência, enquanto que, dentro de cada um desses subsis-
temas, nós podemos encontrar variáveis individuais que covariam, mas não co-ocorrem
em termos estritos. Cada uma dessas variáveis será em última instância definida pelas
funções de variáveis lingüísticas e extralingüísticas independentes, mas essas funções não
precisam ser independentes umas das outras. Ao contrário, pode-se normalmente esperar
encontrar uma covariação íntima entre as variáveis lingüísticas. (EFTLC, 170)

Por outro lado, essa formalização da análise lingüística que permite integrar o fato
lingüístico investigado no quadro mais amplo do contexto social não nega, mas antes
busca incorporar o instrumental teórico da análise estruturalista. WLH estavam atentos às
exigências desse modelo e não se furtaram a incorporar, na sua teorização, noções tipi-
camente estruturalistas como equilíbrio do sistema, colocando inclusive as suas obser-
vações empíricas em defesa desses postulados:

Os lingüistas naturalmente suspeitam de qualquer explicação de mudança que deixe de


mostrar a influência do contexto estrutural sobre o elemento em questão: é razoável as-
sumir que esse elemento está encaixado na matriz lingüística que muda com ele. Mais
ainda, nós podemos defender que fatores externos têm menos efeito sobre o elemento que
é membro de um sistema em equilíbrio do que sobre elementos isolados. Estudos deta-
lhados de covariação íntima entre variáveis lingüísticas em processo de mudança forne-
cem as mais persuasivas evidências empíricas de tais efeitos sistemáticos, embora expli-
cações de mudanças concluídas não deixem de ter também o seu valor a esse respeito.
(EFTLC, 172)

Essa característica da teoria da Sociolingüística Variacionista é fundamental para


o entendimento dos limites de sua ruptura com a teoria estruturalista. Ela coloca mesmo
em questão se é possível falar a rigor de uma ruptura, no sentido de uma mudança de qua-
lidade ao nível da teorização sobre a estrutura da língua. Em outras palavras, parece que,
para a Sociolingüística Variacionista, a teoria estruturalista do sistema é válida dentro dos

191
seus limites, apenas ela não é suficiente para explicar totalmente os fatos lingüísticos, em
particular a mudança. Desse modo, apenas alguns pequenos ajustes devem ser feitos para
que esse instrumental teórico seja utilizado dentro de uma perspectiva mais ampla. E,
sendo a teoria estruturalista, no fundamental, válida, ela deve ser mantida em suas linhas
gerais. Assim, noções como o equilíbrio do sistema permanecem válidas.
O problema é que noções como essa estavam integradas numa concepção mais
ampla do objeto de estudo da Lingüística e eram objetos de legítimos questionamentos
que se faziam a elas e a própria concepção geral que as fundamentava. Como alterar a
concepção geral e manter as suas noções particulares intactas? Essa me parece ser uma
das mais importantes contradições do modelo da Sociolingüística Variacionista. É tam-
bém através dessa contradição que se poderia explicar por que a Sociolingüística Variaci-
onista não representa um salto de qualidade em relação ao modelo estruturalista, uma
ruptura radical no desenvolvimento da teoria lingüística.
Não se defende aqui que uma mudança de qualidade no percurso de uma ciência
implica pôr de lado (ou “jogar no lixo da história”) todo o conhecimento acumulado até
então. Um novo modelo teórico que se pretende hegemônico deve ser capaz de assimilar
todas as conquistas teóricas e metodológicas que o precederam. Contudo, se se pensa o
desenvolvimento de uma ciência dialeticamente, não se pode pensar que um novo modelo
teórico que se coloca como uma alternativa a um modelo anterior represente apenas um
acrescentamento ao que já existia anteriormente. Pode-se definir, a esse respeito, duas
visões antagônicas: uma que vê a história da ciência como um desenvolvimento linear em
que cada novo modelo acrescenta um novo módulo a edificação já existente; e uma outra
que vê a história da ciência marcada decisivamente por momentos de ruptura, em que, a
partir de respostas divergentes às questões que problematizam a apreensão do objeto des-
sa ciência, ergue-se um novo modelo que se opõe ao modelo então vigente. O surgimento
desse novo modelo opera uma mudança na própria compreensão do objeto de estudo da
ciência; mudança esta que se articula dialeticamente com as respostas às questões parci-
ais, já que a nova concepção geral é, a um só tempo, o resultado necessário das respostas
parciais e a condição suficiente para que essas respostas atinjam a sua forma definitiva,
dentro do novo modelo. Essa mudança na concepção do objeto de estudo situa-se no cer-
ne do fazer da ciência. Desse modo, não se pode pensar apenas em um acréscimo ao que
já existe. Se não se deixa de lado todo o aparato teórico-metodológico anterior, todo esse
aparato deve ser revisto à luz da nova concepção fundamental.
A preservação de grande parte do aparato teórico estruturalista, sem a necessária
revisão que a nova concepção de língua como um sistema heterogêneo exigiria, vem se
somar às contradições identificadas na própria concepção do objeto de estudo da Socio-

192
lingüística e aos problemas epistemológicos já identificados, de modo que a ruptura que
esse modelo propõe em relação ao Estruturalismo se caracteriza como uma ruptura clau-
dicante, ou parcial. Pode-se situar aí a chave para uma definição da posição da Sociolin-
güística no cenário da Lingüística contemporânea – a sua incapacidade de se colocar co-
mo modelo unificador da ciência.
A manutenção de noções e conceitos estruturalistas paradoxais, ou que não se sus-
tentam em termos lógicos, como o equilíbrio do sistema, não coloca problemas para a
Sociolingüística, apenas no plano mais geral da articulação do modelo, ela se manifesta
em problemas na análise concreta dos fatos lingüísticos. Como vimos anteriormente, na
formalização analítica da Sociolingüística, há espaço para regras categóricas, ou seja in-
variáveis; isso levanta a seguinte questão: como se explicam essas regras invariáveis?
Ou: qual a relação entre as regras variáveis e invariáveis? Há intercâmbio entre elas?
Ou ainda, de um outro ângulo, a questão: O sistema lingüístico inteiro está sujeito a vari-
ação ou há limites para a variabilidade? E nesse caso: há um território próprio na estru-
tura da língua para a invariabilidade? Qual a sua extensão? A Sociolingüística se mos-
trou muito profícua em termos teóricos e metodológicos no estudo da variação, mas mui-
to pouco produziu sobre essa admitida invariância232.
Além disso, mesmo no campo da variação, defende-se que esta é determinada pe-
la interação de fatores lingüísticos e sociais; isso traz a necessidade de uma teoria da es-
trutura lingüística para explicar a atuação dos fatores internos. Essa demanda por uma
teorização sobre o processo estritamente lingüístico de estruturação da língua tem encon-
trado na Sociolingüística Variacionista soluções cambiantes. Além do instrumental teóri-
co do Estruturalismo incorporado acriticamente; há algumas poucas tentativas de concili-
ar as técnicas da análise quantitativa da variação com a teoria gerativa da estrutura lin-
güística, que tem em Labov (1969) a sua primeira e mais referida expressão. Tais tentati-
vas esbarram na incompatibilidade da concepção gerativa de gramática e o tratamento
variacionista dos fatos lingüísticos, declarada pelo próprio Chomsky233 e por membros da
Sociolingüística (cf. Kay e McDaniel, 1977: 1-7). Desse modo, grande parte dos estudos
sociolingüísticos tem buscado nas diversas versões de funcionalismo, surgidas a partir da

232
F. Tarallo (1990: 219) identifica em Labov (1989) uma abertura para a invariância dentro do pensamen-
to sociolingüístico. Apesar do (talvez excessivo) otimismo de Tarallo, Labov não deixa de reconhecer, no
referido texto (p. 26), “that the processing of phonological elements shows a considerable degree of inde-
pendence of contextual controls”, o que abre caminho para uma visão “of a language faculty somewhat
constrained by its structure and more mechanical in its operation” (id., ibid.: 01)
233
cf. Chomsky (1966:36): “No sense has ever been given to the notion of ‘probabilities’ or continuum type
scales (...) in the domain of grammatical description; and every concrete proposal that has been made has
been shown to lead to absurdity. Perhaps the time has come for linguists who insist on the importance of
such notions to face this simple fact.”

193
década de 60, um suporte teórico para o tratamento dos fatos da estrutura lingüística234,
embora o próprio Labov (1987) tenha reconhecido as limitações da argumentação funcio-
nalista.
Tudo isso revela fundamentalmente uma incapacidade da Sociolingüística em ges-
tar uma teoria própria da estrutura a partir de sua abordagem do objeto de estudo, ou de
integrar criticamente as teorias já existentes a partir dessa perspectiva. Em última instân-
cia, a questão é produzir uma teoria satisfatória para a dimensão estrutural e estruturante
do fenômeno lingüístico, a partir da adequada concepção de língua como um objeto só-
cio-histórico. Contudo, a resposta à questão estrutural pode ser dada não apenas dentro
dessa abordagem sócio-histórica; ou mesmo, como pensa a teoria gerativa, a abordagem
privilegiada da dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico não é históri-
co-social, mas psíquico-biológica. O certo é que a resposta a essa questão está no centro
das definições que orientaram os rumos da Lingüística contemporânea. Ou seja, no centro
nervoso da Lingüística hoje ainda se encontra a questão que Saussure colocou para a Lin-
güística Moderna: a organização da ciência da linguagem a partir da possibilidade da
apreensão sistemática da dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico. Na
maneira como os modelos que se opõem no cenário teórico atual têm respondido a essa
questão encontra-se a chave para a compreensão da situação da Lingüística hoje, e dos
seus desdobramentos.

234
veja-se, por ex.: Poplack (1979, 1980 e 1981), Guy (1980 e 1981), Lefebvre (1981), Hochberg (1982 e
1986) e Scherre (1988).

194
Palavras Finais

SISTEMA, MUDANÇA E LINGUAGEM

195
Os caminhos atuais da Lingüística

Não é exagerado dizer que o interesse pela história da Lingüística tem, nos últi-
mos anos, experimentado um crescimento razoável. Pode-se ainda dizer que se trata de
um interesse empenhado, e não de um olhar despretensioso. É um olhar que carrega um
pouco da ansiedade de quem procura um meio de obter soluções para problemas atuais:

Sempre que a Lingüística apresenta dificuldades de direcionamento, quando várias ques-


tões se confrontam e parecem irreconciliáveis, procura-se aconselhamento na história da
disciplina. (Schilieben-Lange, 1989: 01)

A Lingüística, então, volta-se para a sua história, à maneira daquele que volta para
saldar um compromisso. Essa idéia de uma prestação de contas inadiável com o passado
conduz-nos ao significado mais revelador do movimento atual em direção à história da
disciplina, e traz mais luz à compreensão da situação da Lingüística contemporânea, pois
essa busca de respostas no passado pode ser vista, então, como um reflexo de uma etapa
ainda não concluída no desenvolvimento da Lingüística.
O desenvolvimento recente da Lingüística colocou algumas tarefas que ainda não
foram totalmente realizadas, e o cumprimento dessas tarefas é condição necessária para a
conclusão do processo de transição da ciência da linguagem que se iniciou há algumas
décadas, a partir da ruptura com o modelo estruturalista, hegemônico na Lingüística até
meados de 1950; ruptura esta determinada pelo surgimento de dois dos principais mode-
los teóricos da Lingüística contemporânea: a Gramática Gerativa e a Sociolingüística, que

196
se insurgiram contra matizes diferenciadas do Estruturalismo. O surgimento desses dois
modelos – no final da década de 1950 e no início da década de 1960, respectivamente –
inaugura um processo de ruptura epistemológica, cuja implementação determinaria a su-
peração cabal do modelo anterior em função da ascensão do novo modelo hegemônico.
Se tomamos como plausível a idéia de que existem progressos ao longo da histó-
ria da ciência, “não podemos deixar de reconhecer que há limiares ou points of no re-
turn que marcam o progresso dentro da história da Lingüística” (Schlieben-Lange, 1989:
16). Dentro de uma concepção dialética de história da ciência em que esses limiares se
definem através de processos de ruptura epistemológica, pode-se supor que o processo de
ruptura em questão coloca tarefas para os modelos teóricos que se apresentaram para res-
ponder ao desafio lançado pela crise do Estruturalismo, criando assim as condições ne-
cessárias para a implementação de um novo ciclo de desenvolvimento da Lingüística. Es-
se desafio consiste em responder às questões que o modelo estruturalista não conseguiu
responder e que se tornaram relevantes para a Lingüística, ao ponto de determinar o ocaso
desse modelo235. Uma resposta satisfatória a essas questões – i. é., que atenda aos critérios
de avaliação de esquemas explicativos atualmente vigentes na Lingüística (e historica-
mente determinados, o que coloca também em discussão esses próprios critérios) – con-
duziria à conclusão desse processo de transição, determinando um novo limiar ou point
of no return na história da Lingüística. A partir desse ponto ocorreria uma nova expansão
do conhecimento, a partir das premissas teórico-metodológicas estabelecidas pelo novo
modelo.
Dentro da perspectiva da história interna da ciência, aqui adotada, interessa des-
crever essa etapa atual do desenvolvimento da Lingüística em termos das questões com as
quais se problematiza a apreensão do seu objeto de estudo. A meu ver, essas questões po-
dem ser, agora, sumariamente expostas da seguinte maneira:

235
Essa associação entre a incapacidade do Estruturalismo em responder a determinadas questões e a rele-
vância que essas questões adquiriram dentro da Lingüística deve ser vista em duas perspectivas distintas de
abordagem da história dessa ciência: a interna e a externa. Desde uma perspectiva interna, a argumentação
em torno das questões que norteiam a construção do objeto de estudo da Lingüística pode revestir determi-
nadas questões de uma importância tal que a incapacidade de respondê-las pode desencadear a crise do mo-
delo em que se desenvolve essa argumentação. Externamente, a seleção das questões relevantes para uma
ciência em cada momento se insere, de uma forma mediatizada, na disputa político-ideológica que se trava
no contexto socio-histórico em que essa ciência se desenvolve (cf. Introdução).

197
(i) organizar um modelo teórico-metodológico a partir da apreensão estrutural e
estruturante do fenômeno lingüístico; dimensão esta que singulariza o fenômeno lingüís-
tico dentre os fatos da cultura humana;
(ii) situar empiricamente essa dimensão estrutural do fenômeno lingüístico.
Considero que (ii) é condição para (i).
O ponto de referência que adoto na formulação dessas questões, e no seu encade-
amento, é Saussure. Não obstante, admito que consoante o desenvolvimento particular do
Estruturalismo, que se considere (estou pensando particularmente no Estruturalismo ame-
ricano, ou bloomfieldiano), essas questões vão se apresentar de uma forma própria, e, em
alguma maneira, dentro de uma formulação diferente da que aqui se expõe.
De certo que as respostas a essas questões dentro dos modelos teóricos da Lin-
güística contemporânea (e eu penso aqui especificamente na Gramática Gerativa) serão
determinadas pela formulação específica que essas questões adquiriram ao longo do de-
senvolvimento particular do Estruturalismo a que se esses modelos se relacionam, e de
como elas se afiguram no seu ponto de ruptura. Portanto, uma análise mais precisa da in-
serção da Gramática Gerativa no desenvolvimento da Lingüística, e da sua situação no
panorama atual dessa ciência, exigiria uma consideração acurada do desenvolvimento do
Estruturalismo americano, o que não é tratado neste livro. Contudo, penso que a simplifi-
cação a que procederei nesta passagem, relacionando a Gramática Gerativa a uma formu-
lação de matiz saussuriana não é suficiente para comprometer esta exposição pelas se-
guintes razões:
(i) penso que no fundamental as questões acima formuladas se colocam para toda
a Lingüística contemporânea, e não apenas para aqueles que se ligam diretamente a uma
tradição saussuriana;
(ii) mesmo que não se possa demonstrar uma relação direta entre o Estruturalismo
americano e Saussure, é difícil negar qualquer relação indireta, ou melhor, implícita;

Com essa advertência passarei a uma breve consideração de como a Gramática


Gerativa responde às questões acima formuladas.

A alternativa gerativista

198
A Gramática Gerativa respondeu a questão (ii) de uma maneira radicalmente
distinta das formulações produzidas no âmbito do Estruturalismo. Para Chomsky e seus
seguidores, a dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico situa-se crucial-
mente fora do que pode ser referido por qualquer interpretação da definição saussuriana
de língua como fato social. Isso implica dizer que ela não deve ser prioritariamente bus-
cada, nem na língua como objeto histórico e cultural, nem como um sistema que se de-
preende indutivamente a partir das constâncias observadas em uma quantidade represen-
tativa de atos de fala concretos (nesse sentido, um sistema de padrões objetivos, em certa
medida análogos aos demais padrões da cultura), e nem mesmo como saber objetivado e
transmitido no convívio social (que o falante aceita passivamente, na fórmula do Estru-
turalismo de inspiração durkheimiana, ou como uma folha em branco, conforme o Estru-
turalismo de inspiração behaviorista). Segundo o Gerativismo, a dimensão estrutural e
estruturante do fenômeno lingüístico situa-se fora de sua dimensão sócio-cultural, e sim
em sua dimensão individual psíquico-biológica. Ela se situa na faculdade humana da
linguagem; uma faculdade inata, transmitida geneticamente e comum a todos os seres da
espécie humana236.
A partir dessa concepção axial do objeto de estudo da Lingüística, o gerativismo
constrói todo o seu aparato teórico-metodológico. Desse modo, a principal tarefa da Lin-
güística seria formalizar analiticamente os processos mentais e estruturas cerebrais que
constituiriam a faculdade da linguagem, o que se denominou gramática universal, ou a
feição assumida por esses processos e estruturas, no processo de aquisição de uma língua
específica, o que se denominou de gramática particular de uma língua. Mesmo nesse
segundo caso, não se trata de um saber objetivado, de padrões objetivos que podem ser
observados socialmente. A gramática de um falante refere-se à competência lingüística
desse falante, ao seu conhecimento internalizado, um saber implícito237. Coerente com
esse princípio, o gerativismo elegerá como seu objeto de estudo a chamada língua inter-

236
Para além dos manuais disponíveis, uma visão dos fundamentos teóricos da Gramática Gerativa deve ser
colhida diretamente nos textos que representam momentos cruciais no desenvolvimento e na síntese do
pensamento de Noam Chomsky (sobretudo, 1981, 1988 e 1995).
237
O conceito de conhecimento implícito refere-se ao fato de o falante em sua atividade lingüística acionar
estruturas das quais ele não possui um conhecimento formalizado. Trata-se, portanto, de um saber intuitivo,
que permite, por exemplo, ao falante de uma língua distinguir uma frase aceitável, dentro dessa língua, de
outra inaceitável, sem que ele possa explicar os parâmetros formais que fundamentaram esse “juízo de
gramaticalidade”.

199
na, em oposição à língua externa, que se depreende a partir da coleção de atos de fala
concretos. Ainda coerentes com os seus princípios teóricos, os gerativistas rejeitaram pe-
remptoriamente o raciocínio indutivista até então vigente, defendendo a tese de que o
saber da Lingüística se deve desenvolver dedutivamente, sobre a base empírica do que
eles definiram como intuição do falante nativo238.
Não obstante, o Gerativismo, bem como os seus aliados, tem buscado prover a sua
concepção da faculdade inata da linguagem com uma razoável fundamentação empírica.
Aduzem principalmente o fato de a criança no processo de aquisição da língua materna
operar com processos mentais extraordinariamente complexos, sem que haja nessa idade
um desenvolvimento correspondente em outras áreas da atividade intelectual. A partir do
início da década de 1980 (cf. Bickerton, 1981), o alto grau de estruturação das línguas
crioulas, em comparação com o baixo grau de estruturação das línguas pidgins, das quais
as línguas crioulas se originam, tem sido apresentado como um fato empírico que corro-
bora a existência de estruturas mentais inatas – que Bickerton (1984 e 1988) chama de
Bioprograma da Linguagem – que atuariam na aquisição das línguas pidgins como lín-
guas maternas, o que determinaria a sua conversão em línguas crioulas.
Não obstante a alta produtividade dos esquemas analíticos desenvolvidos pelo Ge-
rativismo e da força que esse modelo possui atualmente na Lingüística, alguns obstáculos
metodológicos e principalmente teóricos têm impedido que ele leve a termo o processo de
transição, ou transformação, que se opera atualmente na Lingüística, determinando um
novo limiar para a pesquisa. O principal problema metodológico do Gerativismo está na
aferição de suas hipóteses de análise, através dos juízos de gramaticalidade. Desenvol-
ve-se nos espaços do fazer lingüístico não hegemonizados por esse modelo uma resistên-
cia muito grande à possibilidade de se operacionalizar esses juízos de gramaticalidade na
pesquisa, devido ao seu alto grau de subjetividade.
Obviamente, tanto a gramática universal quanto a gramática particular, propostas
pelo Gerativismo, devem ser constituídas ex-hipotesis por regras e unidades invariáveis.
Como essas gramáticas são formalizações de um conhecimento internalizado e das estru-
turas mentais e processos cerebrais que determinam esse conhecimento, as hipóteses so-

238
A intuição do falante nativo se traduz fundamentalmente, na análise gerativista, através dos juízos de
gramaticalidade referidos na nota anterior.

200
bre essas gramáticas só podem ser testadas em face desse conhecimento e estruturas – e
não de padrões sociais objetivos a que elas não se referem –, ou seja, elas só podem ser
testadas no plano da competência lingüística do falante, ou da sua língua interna. Assim,
para os gerativistas, os principais critérios de aferição de hipóteses analíticas são os juízos
de gramaticalidade ditados pela intuição do falante nativo. O problema é que esses juízos
de gramaticalidade são extremamente variáveis entre os falantes de uma mesma língua,
ou em um mesmo falante. A questão metodológica que se põe, então, é: como filtrar essa
variabilidade para se chegar ao domínio da invariância da gramática universal, isto é da
dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico? Nesse ponto, o problema
metodológico se transforma em um problema teórico: como integrar a variabilidade ine-
rente à manifestação concreta do fenômeno lingüístico na concepção de objeto de estudo
que o Gerativismo propõe à Lingüística?
A variabilidade presente nos juízos de gramaticalidade se deve a uma única razão:
tais juízos não refletem apenas as estruturas mentais e processos cerebrais que constituem
a faculdade da linguagem, eles refletem também e inexoravelmente os padrões lingüísti-
cos determinados pelo processo histórico e social de constituição da língua que cada indi-
víduo fala, ou seja, da língua, enquanto objeto cultural. Esses padrões determinados no
processo sócio-histórico de constituição das línguas atuam em alguma medida sobre as
estruturas da faculdade da linguagem, donde a variabilidade verificada em qualquer ma-
nifestação do fenômeno lingüístico, quer seja ela “interna” ou “externa”. A grande ques-
tão teórico-metodológica que se coloca para o Gerativismo é deslindar no conjunto das
manifestações lingüísticas o que é determinado pela faculdade da linguagem – ou seja,
relativo à dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico, portanto pertencen-
te ao plano da invariância –, e o que é determinado pelo processo de constituição da lín-
gua – ou seja, relativo à dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico, portanto situ-
ado fundamentalmente no plano da variação e da mudança.
Num exercício de liberdade especulativa, pode-se pensar que se um indivíduo pu-
desse desenvolver uma língua, fora do convívio social, exclusivamente através das facul-
dades inatas que lhe são atribuídas, essa língua expressaria as estruturas básicas da lin-
guagem, donde a história do faraó que queria descobrir “a língua original da humanida-

201
de”239. Como essa hipótese obviamente só se coloca no universo do fantástico, não se po-
de postular a existência de qualquer manifestação do fenômeno lingüístico que reflita
apenas as estruturas originais da faculdade da linguagem; ou seja aquelas que são unica-
mente determinadas em termos psíquicos e biológicos, sendo totalmente imunes às inter-
ferências de ordem sócio-histórica. Qualquer que seja o ponto em que se aborde o fenô-
meno lingüístico, se encontrarão estruturas que resultam da interação dos processos cere-
brais e estruturas mentais da faculdade da linguagem com as interferências contingenciais
que se verificam no processo histórico de constituição da língua.
Desse modo, o recurso metodológico à “língua interna” como uma forma de isolar
a dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico da sua dimensão sócio-
histórica não se sustenta dentro uma argumentação aceitável em termos lógicos. Ou seja,
não se definiu ainda uma metodologia consistente para se determinar que a forma de uma
dada regra da “gramática interna do falante” representa um elemento da gramática uni-
versal, i. é., da faculdade da linguagem, ou é o resultado contingencial de um processo
histórico particular. Desse impasse teórico-metodológico resulta da incapacidade atual de
a Gramática Gerativa integrar, de forma heuristicamente produtiva, em sua concepção do
objeto de estudo, a dimensão histórico e social de fenômeno lingüístico. Assim, às ques-
tões que se colocam no estágio atual do desenvolvimento da Lingüística, formuladas aci-
ma em (i) e (ii), deve ser acrescentada uma terceira condição:
(iii) qualquer desenvolvimento no sentido de (i) e (ii) não pode abstrair o fato de
que todas as resultantes do processo lingüístico integram-se em sua dimensão sócio cul-
tural e histórica, no que se convencionou chamar de língua, entendida como o resultado
da interação entre a força estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico (a lingua-
gem) e as forças atuantes na vida social, fora da qual o fenômeno lingüístico não existe.
Essa terceira condição pode ainda ser simplificada e apresentada em seu desdo-
bramento prático:

239
cf. Bickerton (1983: 108): “The ancient Greek historian Herodoto records the story of Psamtik I, phar-
aoh of Egypt in the seventh century B.C., who set out to discover the original language of humanity. On
royal decree two infants were taken away form their parents and put in the care of a mute shepherd, who
was instructed to raise the children in isolation from other people. The shepherd was to take note of the first
word uttered by the children; “uncorrupted” by the language of the forefathers, Psamtik reasoned, they
would begin to speak in the pure tongue from which all others languages were derived. The first intelligible
sound the children made was “bekos”, which meant ‘bread’ in the ancient language Phrygian. Therefore,
Psamtik maintained, the original language of humanity is Phrygian.”

202
(iii-a) qualquer desenvolvimento no sentido de (i) e (ii) deve dar conta da variabi-
lidade inerente a todas as manifestações do fenômeno lingüístico.
Portanto, podemos dizer que o principal obstáculo que o modelo gerativista en-
frenta em sua ascensão à condição de modelo hegemônico da Lingüística é a sua incapa-
cidade de articular teoricamente as dimensões estrutural e sócio-histórica do fenômeno
lingüístico, ou, nos termos definidos ao longo deste texto: a superação da contradição en-
tre sistema e mudança que transcende o Estruturalismo e ressurge, num outro patamar,
no interior do modelo gerativista, marcando também o seu desenvolvimento.

A situação da Sociolingüística

Ao longo do percurso da Lingüística que analisamos, destacamos, desde o surgi-


mento do Estruturalismo até o surgimento da Sociolingüística, a importância da tensão
entre a busca da estruturalidade no fenômeno lingüístico e a variação e mudança presen-
tes no seu existir concreto. Pode-se mesmo tributar ao surgimento da Sociolingüística,
que ocorre exatamente em torno da questão da variação e da mudança, o fato de a condi-
ção (iii) ter se tornado irrefutável para qualquer um que encare seriamente o desenvolvi-
mento teórico da Lingüística contemporânea. Considerando-se, então, a situação da Soci-
olingüística no cenário da Lingüística contemporânea, põe-se a seguinte questão: como a
Sociolingüística se coloca frente as questões e tarefas que desafiam a Lingüística con-
temporânea, acima referidas? Ou ainda: o que impede esse modelo, cujo surgimento po-
de ser explicado pelo desenvolvimento da contradição entre mudança e sistema no inte-
rior do Estruturalismo, de levar a cabo o processo de transição em curso, determinando
um novo limiar na história da Lingüística? Além do que já foi dito no Capítulo VII, po-
de-se buscar mais esclarecimento sobre essas questões retomando, em linhas gerais, o
percurso da história da Lingüística que busquei analisar.
Em seu projeto de organizar a Lingüística em torno da apreensão sistematizada da
dimensão estrutural do fenômeno lingüístico – ou seja, para realizar (i) –, Saussure res-
ponde a questão (ii) definindo a língua como um fato social. Isso gerou uma contradição
insolúvel dentro dos marcos do Estruturalismo, já que, para representar analiticamente a
dimensão estrutural do fenômeno lingüístico, a língua era formalizada como um sistema

203
homogêneo, unitário e invariante, o que nega totalmente o existir concreto da língua co-
mo fato social, que, assim concebida, constitui a expressão da dimensão sócio-histórica
do fenômeno lingüístico, terreno, por excelência da variação e da mudança.
Essa contradição entre as dimensões estrutural e sócio-histórica do fenômeno lin-
güístico – ou seja, entre sistema e mudança – atinge o seu zênite, dentro do Estrutura-
lismo, com o aparecimento do Estruturalismo Diacrônico. Neste ponto da crise do Estru-
turalismo, emerge o modelo da Sociolingüística, que, a partir da questão da mudança, de-
senvolve uma nova concepção de língua, como sistema heterogêneo. Ou seja, a Sociolin-
güística não se põe, no seu surgimento, a questão posta em (ii): situar empiricamente a
dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico. A tarefa que constitui o mó-
vel desse modelo é a de construir uma representação adequada de língua, ou seja, produ-
zir uma formalização analítica para a dimensão sócio-histórica do fenômeno lingüístico.
Há, portanto, uma distinção clara entre essa posição axial da Sociolingüística e a atitude
da Gramática Gerativa que atacou diretamente a questão (ii), através de sua concepção de
linguagem, e a partir dessa concepção articulou todo o seu aparato teórico-metodológico,
enfrentando assim a questão (i).

Pode-se, desse modo, trazer mais luz ao entendimento das limitações do modelo
sociolingüístico, da sua incapacidade de promover um salto de qualidade em relação ao
Estruturalismo no desenvolvimento histórico da Lingüística. Esse entendimento deve ser
buscado na incapacidade de a Sociolingüística incorporar, na sua representação do objeto
de estudo, a dimensão estrutural e estruturante do fenômeno lingüístico, embora esse mo-
delo tenha contribuído de forma decisiva para uma apreensão mais adequada da língua
em sua dimensão sócio-histórica. A questão que se coloca, então, para a Sociolingüística
é desenvolver, ou incorporar criticamente, uma teoria que dê conta da sistematicidade da
linguagem, a partir de sua acertada concepção de língua, para o que já dispõe de um so-
fisticado material de verificação empírica.

Palavras finais

De tudo o que foi dito pode-se concluir que: a tensão entre sistema e mudança –
isto é, entre as dimensões estrutural e sócio-histórica do fenômeno lingüístico –, que este-
ve na base da ascensão, hegemonia e ocaso do modelo estruturalista, ressurge em seu

204
pleno vigor, marcando de forma significativa o desenvolvimento da Lingüística contem-
porânea. Se a compreensão dessa tensão pôde, de alguma maneira, iluminar o percurso
estruturalista, é razoável supor que ela pode trazer também alguma luz para a solução das
questões que hoje se põem para a Lingüística, razão pela qual este texto, que aqui se vai
encerrando, pode pretender algum significado.
Desse modo, sugere-se que a superação da crise passa pela elaboração de uma sín-
tese teórica que possa administrar essa tensão inerente ao fenômeno lingüístico, através
de uma concepção do objeto de estudo que, articulando essas dimensões antagônicas,
proporcione as bases de um modelo teórico-metodológico impulsionador e unificador da
pesquisa lingüística. Assim, coloca-se hoje para a Lingüística a mesma tarefa que deter-
minou o silêncio angustiado de Saussure e o animou em sua busca fundamental: definir
de forma heuristicamente produtiva o seu objeto de estudo. E aqueles que assim vêem a
Lingüística atual podem partilhar do sentimento que Saussure experimentou ao tomar
consciência de que, não obstante a produtividade de seus esquemas analíticos e do seu
refinamento metodológico, a Lingüística ainda olha o seu objeto de estudo com uma in-
cômoda sensação de ignorância e perplexidade.

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