Você está na página 1de 24
O dever de obedecer ao direito na teoria de Hans Kelsen The duty to obey the law in the theory of Hans Kelsen Fernando José Armando Ribeiro’ Resumo A obrigagao politica ¢ aquela que surge no contexto de Estados de Direito e cujo ‘objeto consiste em estabelecer as relagdes enire 0 Estado e seus cidadaos, ¢ 0 dever de obedecer & lei, Considerando-se o fundamento consensual ¢ dial6gico {do Direito contemporaneo, estabelecido por um acordo racionsl sobre valores sociais determinados num dado momento histérco, e consubstanciados em um documento fundamental, 0 caréter imperativo das leis néo pode ser visto ‘Sendo como um dever prima facie. O problema de saber qual o fundamento dda obrigagao juridica (obrigagao prima facie) & um dos temas mais classicos debatidos na seara da Filosofia do Direlo e da Teoria Politica, Nao ha sequer uma escola de importancia no pensamento juridice-politico que sobre ele nao se tenha debrugado, O neoposivisme légico de Hans Kelsen parece ser, antes de tudo, uma tentaliva de resposta a esse problema, buscando resgatar, sob o mante de um rigoroso discurso cientiico, a autonomia do Direito na ordem do saber humano, e sua possivel compatibilidade com o paradigma da ciéncia de ‘seu tempo. Na busca por essa resposta, multas sdo as contribuigées que ele nos trouxe a reboque. Nosso estudo pretende analisar 0 fundamento da obrigagio politica em Hans Kelsen, partindo da andlise de seu pensamento a respeito da coergao. Ase poder constatar, com cristalina evidéncia,o rigor ea importancia de seu discurso cientfico, mas também os limites de sua abordagem, quando trazida a luz de outros pressupostos, possivels @ necessérios, na compreensio do fendmeno juridico Palavras-chave: Obrigagao politica, Dever. Lei, Kelsen. Coerco. Femande José Armando Robe: Doutor em Oteto (UFMG); Pés-douter peta Universidade da Calta ~ Berkeley (USA); Professor adjunto da Pontificia Universiade Caiétea do Minas Gras (PUC-Minas), Solo Horzorta~ Minas Gerais ~ Bras. Ema: fomandoarmandorbero@ gmal.com 76 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien Abstract The political obligation is the one that arises in the context of rule of law and whose object isto establish relations between the state and its citizens, and the duty to obey the law. However, considering the consensual and dalogical basis of ‘contemporary law, established by a rational agreement on certain social values in a given historical moment, and embodied in @ fundamental document, the imperative character of law cannot be regarded as more than a prima facie duly. The problem about the foundations of legal obligation (prima facie obligation) is one of the most traditional and debated on legal and poltcal philosophy, There's not even one single school in legal and political thought that has not reflected about this subject. The neo-logical postvism of Hans Kelsen seems to be, above all, an attempt to address this issue, seeking to recover, under the cloak of a rigorous scientific discourse, the autonomy of law in the order of human knowledge, in order to make it compatible with the paradigm of science of his time, Our study aims fo analyze the basis of political obligation according fo Hans Kelsen, based on his analysis about coercion, Then we will see, with sober evidence, the accuracy and importance of his scientific discourse, but in the other way the limits of his approach, when brought to light of different assumptions, possible and necessary in understanding the legal phenomenon. Keywords: Poltical obligation. Duty. Law. Kelsen. Coercion. Introdugao © problema da obediéncia a lel traz em seu bojo a questio da hierarquizagao e estratificagao de condutas impostas a sociedade pelo ordenamento estatal. As normas estatais deve-se seguir uma atitude que se manifeste em conformidade com o dever e a obrigagao imperativamente prescritos. Antes de tudo, é preciso estar ciente da dificuldade conceitual apresentada pela ideia de obrigagao, a qual se apresenta sempre destituida de clareza. Isso se deve a0 fato de que, tanto na linguagem filoséfica quanto na juridica, 6 comum a utilizagao indiscriminada das expressdes dever e obrigagao. Dever © obrigagéo sao, de fato, utiizados usualmente para estabelecer quais s40 as condutas as quais os homens se encontram Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 7 Fernand Jes Amande bee vinculados. Ademais, 0 uso indiscriminado das expresses se faz igualmente favorecido no Ambito juridico, visto que os Estados Modernos passam a instituir, indiscriminadamente, “deveres’ e “obrigagées" com 0 fim de gerar certas condutas, sendo também facultado aos individuos, em certas ocasi6es, modificé-los, transferi-los e extingui-los. Todavia, parece-nos que, diante da obra de autores como Herbert Lionel Adolphus Hart (1958;1994), John Rawls (2000) ou Rex Martin (1993), deve-se buscar manejar com mais cuidado 0s conceitos de dover obrigagao. As obrigagées nascem como consequéncia de atos voluntarios e necessitam, para sua génese, de especiais agdes individuais destinadas & sua criagao, fazendo com que, tanto no émbito da moral como do direito, uma conduta previamente opcional e relativa perca, a0 menos em principio, sua relatividade (como, p. ex., se dé com as promessas). As obrigagdes sao interpessoais, vale dizer, so requisices dirigidas a pessoas determinadas (os obrigados) por pessoas também determinadas (os titulares dos direitos), sendo seu contetido perfeitamente individualizado. Ademais, além de se correlacionarem com seu respectivo direito, as obrigagées néo se originam do carater ‘ou do contetido das agées obrigatérias, mas tao somente da particular forma pela qual as partes se relacionam Assim, cabe afirmar que as obrigagdes nascem como consequéncia de atos voluntarios, ¢, especialmente, de agées individuais, como uma promessa. As obrigagdes possuem carater interpessoal. Vale dizer, séo dirigidas a pessoas determinadas por pessoas também determinadas. Trazendo a ligdo imorredoura dos romanos, ha que observar que cada obrigagao se correlaciona com seu respectivo direito, como 0 verso © anverso da mesma moeda. No que tange aos deveres, faz-se mister assinalar que a palavra fever" é utiizada como referéncia a prescrigdes morais relacionadas a certos papéis e fungées que os individuos podem chegar a cumprir. Se alguns deveres (como, v.g., 0s “deveres institucionais”) surgem de um acordo de vontades criador (0 que resulta de sua “convengao constitutiva’), cabe assinalar que nem todo dever posicional tem sua 8 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien origem em um esquema proposicional de vontades. Tal 0 caso de uma mulher que adquire o papel de mae contra sua vontade (como pela gravidez indesejada etc.) ou 0 papel de um individu como filho — tendo em vista 0 fato de que 0 nascimento nao é, definitivamente, obra da sua vontade —, e que se vé abrangido por uma série de deveres para com determinadas pessoas (como seus pais), decorrentes tao somente de ‘seu papel de filho. A obrigagao politica é a obrigago que o individuo deve ao Estado e que o Estado deve ao individuo, a qual pressupde 0 compromisso de obediéncia a toda uma série de obrigagées ulteriores derivadas, sem que ‘seja necessariamente requerido um consenso prévio a cada caso. Pelo simples fato de pertencermos a um Estado, adquirimos uma obrigacao de obediéncia a suas leis, sendo que apenas em uma sociedade livre e aberta se pode, rigorosamente, falar de uma obrigagao politica, Como assevera Passerin D’Entreves (1976, p. 31-33), a liberdade & condi¢ao essencial da obrigagao politica. Temos, assim, a obrigagao politica, cujo objeto consiste em estabelecer as relagdes entre o Estado © seus cidadaos, © o dever de obedecer & lei, cuja esséncia reside em poder determinar quando e em que circunstancias deve uma pessoa atuar em conformidade com os comportamentos socialmente regrados. No que tange ao dever de obediéncia a lei, decorrente da obrigagao juridica estabelecida no seio de um Estado Constitucional Democréttico, pode-se certamente afirmar tratar-se de uma auténtico dever prima facie. Vale dizer, considerando-se o fundamento consensual © dialégico do Direito contemporaneo, estabelecide por um acordo racional sobre valores sociais determinados num dado momento histérico e consubstanciados em um documento fundamental, 0 carater imperative das leis nao pode ser visto sen&o como um dever prima facie. Isso porque, se por um lado, 0s vetores da seguranga e da ordem sociais exigem tal pressuposigdo, de outra parte, o vetor do justo (ainda que formal) — em um Estado Constitucional Democratico - impée a manutengao da perene possibilidade de sua contestagao face a outros Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 79 Fernand Jes Amande bee valores consagrados, tendo em vista que a concorréncia de valores & prépria do pluralismo caracteristico de tais Estados. © consentimento acerca dos valores fundamentais de uma sociedade, formalizados mediante o pacto constitucional, constitui, na verdade, omaioresforgo ja realizadonatentativa de ustificar amoralidade do acatamento a lei, baseando-o, essencialmente, na vontade racional dos individuos. Assim, 0 estar sob o “império do Direito” ndo pode ser considerado dbice a afirmagao da liberdade humana, desde que nao se perca de vista que as limitagdes 4 sua agao foram estabelecidas com a concorréncia de sua prépria vontade. Naturalmente, a justificagao juridica da obrigagao Juridica (dever de obedecer a lei) se verifica mediante a simples observancia de seu carter imperativo. Como diz Mata Machado (1995, p. 42), ‘mandando dara cada um o que Ihe é devido, a regra atribui alguma coisa a alguém: 6 seu carter atributivo. A regra de direito tem uma feigdo imperativo- atributiva’. Entretanto, 0 dever a que nos referimos © sobre o qual aduzimos nossos questionamentos é aquele de fundamentacao ético- normativa, vale dizer, 0 que estabelece qual o fundamento sltimo a justificar nosso comportamento frente a disposiges estatais. © problema de saber qual 0 fundamento da obrigagao juridica (cbrigagao prima facie) 6 um dos temas mais classicos ¢ debatidos na seara da Filosofia do Direito, Nao ha sequer uma escola de importancia no pensamento juridico-politico que sobre ele ndo se tenha debrugado. Seria, assim, indtil e além dos limites deste trabalho pretender uma enumerago de todas essas doutrinas, razo pela qual nos limitaremos a assinalar a perspectiva estabelecida, e brilhantemente sustentada — no sem polémica - por Hans Kelsen, em seu pensamento normativista, ‘© qual, como veremos, termina por ser uma teoria coercitivista do 1 A obrigagao juridica no pensamento de Hans Kelsen Para Kelsen (1984, p.57; 277; 310), 0 ordenamento juridico ndo pode ser cientificamente estudado como se fosse uma simples 80 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien justaposigéo de normas que regulam 0 comportamento humano; ele deve ser vislumbrado como um todo unitario e sistematico, pelo fato de todas elas possuirem o mesmo fundamento de validade. No “topo” do ordenamento, visto como um sistema dindmico, encontra-se a Constituigéo, norma superior a todas as demais normas postas e, na medida em que se vai progressivamente descendo, das ormas gerais para as individuais, percorrem-se graus normativos mais inferiores, até alcangar a “base” da piramide normativa, no qual ‘serd possivel encontrar normas individuais (sentengas, regulamentos administrativos e negécios juridicos). Imediatamente abaixo das normas individuals, encontram- se 0s atos de execugao, espontanea ou coercitiva e, mais acima da Constituigdio, inclusive da primeira Constituigao histérica, encontra- se, ja fora do ambito da pirémide normativa, a norma fundamental (Grundnorm), norma pressuposta e condiga0 légico-transcendental (KELSEN, 1984, p. 279) do trabalho cientifico do jurista (KELSEN, 1984, p. 22; 269 e passim).' Segundo Paulson (1991, p. 176-177)", a resposta dada por Kelsen sua propria questo transcendental ~ situada no Ambito da pretendida distingao entre sein e sollen, consequéncia direta de seu dualismo metodolégico — esta vinculada a sua referéncia a norma fundamental Segundo © seu ponto de vista (de Kelsen), a validade de uma norma juridica se estabelece a partir de uma referéncia 4 norma de nivel superior adequada, cuja propria validade se estabelece, sucessivamente, com Felaco & correspondente norma de nivel superior a ela, assim sucessivamente, até que se alcance a norma de nivel mais alto no sistema juridico, o nivel da constituigao Mais além do nivel constitucional, néo é possivel haver {Comparar com Carino (1988, . 31-50; 69-104 © Mcanda Afonso (1984, p. 281-242) + Esse autor ainda observa que ssa “idl inva" 6s norma fundamental esta num argument ‘laramonto itr, haja Veta que "so 0 problema 6 porque ae novmas do nivel mals alto 630, ‘alas eso simplesmente loge se assumo que sao valdas, estamos de nove dante da meso problema Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 at Fernand Jes Amande bee mais referénoias. Todavia, uma referéncia a um nivel mais alto de normas de Direito positive se exclui ex hypothesi E uma referéncia a algum tipo de fato esta impedida pela forte e firme distingao entre ser e dever-ser, como reflexo do dualismo metodolégico. Uma terceira via de referéncia, a da moral, esta também exclulda pela tese da separacdo. Como se esiabelece, entao, a validade das normas no nivel constitucional? A falta de qualquer outra referéncia, se assume a sua validade. E a assungao toma a forma da norma fundamental Todas e quaisquer normas contidas no esquema piramidal — & excego da norma fundamental e dos atos materiais de execugdo — 840, ao mesmo tempo, atos de aplicagéo das normas mais gerais ¢ superiores e atos de produgao das normas mais individuais e inferiores. Do ponto de vista da teoria pura, os atos de aplicagao constituem um dever juridico imposto aos “destinatarios” primérios e secundérios e os atos de produgao constituem atos de poder, originados do exercicio de uma autorizacdo dada pela propria ordem juridica (KELSEN, 1984, p. 325) © ponto de ligagao de todas essas normas reside, precisamente, ‘no conceito légico-formal de “fundamento de validade" (KELSEN, 1984, p. 297), segundo 0 qual a validade de uma norma, entendida como sua existéncia especifica, consiste em sua pertinéncia ao ordenamento juridico, em face de se ajustar aos seus critérios préprios de produgao normativa (principio de legitimidade) (KELSEN, 1984, p. 266; 269; 289- 290). Cada norma juridica, para que possa ser considerada como valida, deve ter sido produzida de acordo com os critérios formais € smonto de validade, sto 6, 2 resposla & questio de saber por que dover as normas festa orem jurdca sor cbsarvades o apleadas 6 9 nama Kndameral pressuposta, segundo ' ual devemos agi de narmonia com uma Consttugso sfetvamente posta, globalmente ‘tear ©, potato, de harmonia com a8 nomas eltvamentepostas de conformidade com esta Constitigdoe lobalmenteefeazes" Ct, ainda, Kelson (198, p. 37-3). 82 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien materiais previstos no proprio ordenamento, relativos a) ao sujeito ou ‘6rgao competente, b) ao procedimento e — em certa medida — c) ao contetido, todos estabelecidos pela norma imediatamente superior; @ assim, sucessivamente, percorre-se todo o ordenamento juridico, de grau em grau, numa escala ascendente, até se alcangar a norma fundamental (KELSEN, 1984, p, 324-326), E de se ressaltar, no entanto, que a determinagao da norma inferior pela norma superior nunca sera total, salvo determinadas proibigdes de natureza material; isto é, nunca sera de tal manelra que a norma inferior seja logicamente deduzida por completo a partir do contetido da norma superior, uma vez que existe sempre certa discricionariedade por parte do 6rgao aplicador da norma superior ao criar a inferior (KELSEN, 1984, p. 324-326) 1.1 A validade do sistema juridico A nota essencial de um sistema normativo dinamico é 0 fato de que a validade de uma norma juridica se fundamenta na validade de uma norma superior, sem relagdo com qualquer contetido (pois essa relagao com determinado contetido é a nota que caracteriza os sistemas estéticos), e que essa relagdo de fundamentagao-derivacdo possa retroagir até a norma fundamental A validade de uma norma num sistema dindmico, portanto, & determinada, especificamente, em fungao da competéncia do éraao, por vvezes, com relagao ao seu contetido e, por fim, de sua relagéo com a Grundnorm. No entanto, nao bastam apenas esses requisitos formais: um minimo de eficacia, como afirma Kelsen (1995, p. 63-64), também condigao para a validade de uma norma. Isto significa que as condigdes de validade de um fordenamento juridico como um todo e as de uma norma jurigica isolada so: para 0 ordenamento juridico como um todo, os atos mediante os quais so criadas as normas dosse ordenamento juridico om questo; para a norma isolada, 0 ato pelo qual ela 6 criada e, ademais, 0 fato Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 83 Fernange Jee Amand de que 0 ordenamento juridico como um todo © 2 norma isolada sejam, respectivamente, eficazes [..] A validade festa condicionada pela eficdcia no sentido de que um ordenamento juridico como um todo, tal como uma norma isolada, perde a sua validade se nao chega a ser, de forma geral, eficaz Numa perspectiva cada vez mais sintética, “uma ordem juridica 6 considerada valida quando as suas normas s40, numa consideragao global, eficazes, quer dizer, so de fato observadas e aplicadas” (KELSEN, 1984, p.298). Trata-se, aqui, do “principio de efetividade”, que parte do pressuposto segundo o qual um ordenamento juridico sera valido na medida em que for eficaz em sua totalidade, mesmo que, por vezes, uma de suas normas, em si considerada, ndo venha a ser observada ou aplicada num caso concreto. A validade global do ordenamento juridico ndo ¢ afetada pelo fato de que uma ou mais normas isoladas se demonstrem ineficazes, posto que a eficdcia de todo o ordenamento juridico é aferida em termos globais, isto é, do ordenamento juridico como um todo. No entanto, a eficdcia de todo o ordenamento é também condigao de validade de cada uma das normas que dele fazem parte. Isso significa que a validade de uma norma isoladamente considerada esté na dependéncia da validade de todo 0 ordenamento juridico e esta, por sua vez, depende, essencialmente, da validade da norma fundamental (KELSEN, 1984, p. 291-298). Assim posta a questdo, Mario Losano (1990, p. XIX), um dos grandes estudiosos da teoria pura, opde a seguinte critica: Uma ordenagao juridica, para Kelsen, & construlda por dgraus hierdrquicos, em que a validade do inferior &inferida cdo superior, num processo de delegagio de validade (ou seja, de ‘dever ser’) que desce da constituicéo a lei @ desta a sentenga. Depois de construir essa estrutura hierérquica para manter a distinedo entre o mundo do'ser’ e © do ‘dover ser’, a teoria pura do direito encontra-se diante de uma dificuldade: a coeréncia com seu pressuposto metodolégico de pureza 6 inconciidvel com a realidade juridica que ela quer descrever. Realmente, para que uma 84 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien norma juridica seja valida, ¢ preciso que ela também seja eficaz: ou seja, ndo basta o respetto a certas formalidades no estabelecimento da norma, mas é praciso que, de fato, a norma assim estabelecida seja também efetivamente aplicada. Kelsen ¢ obrigado a admit que ‘tanto uma ordenagéo juridica como um todo, quanto uma norma jurigica isolada perdem a validade quando deixam de ser eficazes’. Em outras palavras, para responder & questo fem tomo da qual constréi toda a sua doutrina (ou seja uals s4o os pressupostos formas para a validade de uma norma juridica), Hans Kelsen precisa renunciar a rigorosa separagdo entre mundo natural e mundo normativo, entre ‘ser’ ‘dever ser Kelsen (1984, p.299), no entanto, afirma que a eficdcia nao é uma conditio sine qua non, mas uma conditio per quam: a eficdcia global de um dado ordenamento juridico ¢ uma condigéo, mas ndo a razao da validade das normas que o integram;* a validade, assim, nao reside no fato de que 0 ordenamento, em sua totalidade, seja eficaz, mas na elaboracdo de uma norma de acordo com 0 processo Iégico-formal de produgéo, o que significaria, em termos conceituais, que essas normas devem ser obedecidas ou aplicadas. (KELSEN, 1938, p. 13; 1986, p. 37-38) © problema em torno da eficécia de uma norma juridica, na teoria pura do Direito, coexiste com a definigao de validade, entendida como ‘sua existéncia especifica no Ambito do Sollen e no tornar obrigatério um determinado comportamento humano (KELSEN, 1984, p. 29) As indagagées acerca de como conciliar 0 comportamento humano concreto ~ no mundo dos fatos -, tornado obrigatério, com a existéncia dedntica da norma sem comunicagao com a realidade — vem respondida por Kelsen através da diferenciagao entre as esferas, do ser (sein) e do dever ser (sollen): néo ha, necessariamente, © Comparar com Manda onso (1984, p. 256-257. Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 85 Fernand Jes Amande bee qualquer coincidéncia entre 0 comportamento prescrito por uma norma @ 0 comportamento efetivo que Ihe seja conforme, pois aquele nunca poderd ser teoricamente concebido como algo pertencente ao mundo do ser, mas ao ambito do dever ser (KELSEN, 1984, p. 48 et seq.; 109 et seq.; 1987, p. 12-13). Jé em 1925, quando elaborou sua Teoria geral do Estado, Kelsen (1938, p. 8-8) assim se pronunciava Uma regra(@ 0 que dela vamos dizer aplica-soigualmente bom @ prépria ordem normative) obsiga 08 indvisuos. a adotar corta conduta, a praticar certo alo @ a abster-se de outro. Mas mesmo que nos nao conformemos com a8 suas determinagdes — deixando de fazer 0 que deviamos ou fazendo aqulo de que deviamos abster-nos -, a regra nao deix, por iso, de subsistc certo quo, ont, dremos que 2 reg fol violada, mas sso, po forma alguma, significa que tha doixa do estar om vigor. A sua validage ndo fol aingida Ora, 6 procisamonto nessa valdade (Gettung) que consisto a existoncia das rogras. E uma ordem normatva pode sor valida mosmo quando @ realidado nao porfatamento conforma com la. Essa forma de encarar 0 comporlamento humano concreto, cuja obrigatoriedade indica meramente a presenca de um significado normativo, radica na diferenga conceltual entre a norma eo ato de vontade do qual ela representa o sentido, mais especificamente entre esse ato e 0 sentido de vontade que ele representa. Contudo, se a distingao entre a norma juridica e 0 ato de vontade € algo evidente e verificdvel empiricamente - pois a norma juridica adquire vigéncia somente apés a concluséo do proceso legislativo (conclusao do ato de vontade), ¢ assim permanece, ainda que “o ato de vontade de que ela constitui o sentido ja ndo exista” (KELSEN, © Esse 6 0 conceilo de “norma” a segunda edigdo da Reine Rechtslehre. “Norma 6 o sentido de um ato atavés do qual uma conduta 6 prescrta, prmida ou especialmente facutada, no Sentide de aduaicada 8 competéncia de alguém. Neste ponto impor salenar que @ nocma, tomo 0 sentido especiice de um ao inenceonal digit & conduta de outer, # qualquer coisa fe torent do ato de vontade co sentido ela consul” {KELSEN, 1968, 9.22), 86 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien 1984, p. 29) -, j4 6 mais dificil perceber a pretendida diferenca entre ‘© comportamento devido e 0 comportamento efetivo, em virtude de “certa medida’ de conformidade necessariamente existente entre comportamento indicado na norma e aquele que se realiza no mundo dos fatos (KELSEN, 1984, p. 30). Um problema essencial enfrentado por Kelsen (1986, p.36-37) acerca da eficdcia consiste, dessa forma, na determinagao da natureza dessa “certa medida de conformidade”, que permita estabelecer uma relacdo entre validade e eficdcia, sem infringir a distingao fundamental entre sein e sollen. Por eficdcia, Kelsen (1984, p. 29) entende o fato de que uma norma seja efetivamente observada ou aplicada.’ Assim entendida, trata-se de uma condigao de validade da norma juridica - ao lado de sua prépria formulagao -, de tal maneira que nao se pode considerar norma juridica valida uma norma que ndo seja aplicada nem observada durante algum tempo, pois, dessa forma, torna-se ineficaz. No entanto, a eficacia, da maneira como é concebida, ndo se identifica com a validade", posto que deve subsistir a possibilidade de um comportamento no conforme & norma Juridica para que no se cometa © erro metodolégico de se cair numa consideragao determinista, ou soja, daquilo que deve necessariamente acontecer segundo uma lei natural (KELSEN, 1984, p. 119; 1987, p.12-13). (COTARELLO, 1982, p.139- "Jd na bp0c8 de sua Algomeine Staatslonre, Kelson (1998, p. 15) avert que “a readade inbo pode ser a imagem pete da ordem no-malva, mas deve, no enlanto, ter um minim Ge sersehancas com o seu model deal. A relarao enze ames moverse, porant, ene dois Tmites,o que toma o problema mut mals complex: " *Observancia do Drsio 6a concuta aque corespande, como conduta oposta, aquela a que Igado 0 ato coercive da sangto. & antes da tudo a condita que evita a sangso, 0 cumprimento ‘6 dover juin consuiso avis da sangao" (KELSEN, 1968, p. 327). Poraua ver, "aplcagso {0 Diol , por consequint,eiagdo 60 uma norma infor com base numa norma superior ou ‘xecugdo de ato cooretvo esauldo por uma norma” {KELSEN, 1984, p25) Kelson, aqui, continua fl aos sous postulads da pureza motodeigica,expicados ogo no inicio a toora pura Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 87 Fernand Jes Amande bee 146). Conforme destaca Elza Maria Miranda Afonso (1984, p. 260), “a norma juridica sera valida se eficaz e nao porque eficaz. O fundamento de validade nao é a eficacia; é a norma fundamental que enuncia que se deve agir em conformidade Constituigo que é, de modo geral, eficaz". Uma passagem da Teoria geral das normas, finalmente, resume a esséncia das nogdes de Kelsen (1986, p. 4-5)" acerca das relagdes entre validade e eficacia No fato de que uma norma deve ser cumprida e, se ndo cumprida, deve ser aplicada, encontra-se sua validado, esta constitu sua especifica existéncia. Do efetivo cumprimento da norma - ou do sou nao cumprimento com a consequente aplicagao ~ disto deriva sua eficdcia, Valdade © eficdcia da norma precisam, claramento, néo ser confuncidas. Para ser existente — quer aizer, para valer—a norma tem de sor estabelecida por um ato de vontade. Nenhuma norma som um ato de vontade que a estabelega ou - como na mmaioria das vezes se formula esta proposi¢ao fundamental nnenhum imperativo sem um mandante, nenhuma ordem som um ordenador. Em artigo intitulado Por que a lei deve ser obedecida? Kelsen (1997, p. 251) propée a seguinte questao: Nao perguntamos se 0 Direito positive 8 valido ~ que o soja 6 pressuposto por uma teoria do Direito positvo, 6 uma caracterisioa essencial do Diteito positive. O Para uma vis gloal, ct: Miranda Afonso (1984, p. 255-261). Nesse sentido, também a ¢So e Travesson! Gomes, pare quem "Kelsen nfo negau que oxstncia do Uma ordom coeteva ‘ea (Um fato da ordem 6o. ser) & condi para que se pressuponna norma undament Kelton (2000, p. 176-177) nd pregou, portaio, a dispaidade absokla entre sere dever set Ese foo, a enstincia dessa ordom efeaz (um ser), ndo , enretant, como demonsrado, 0 fundemanto de valdads ca norma fundamenta. Ele (es fas) esta, no slogsma, abaio 4a norma fundamental ~ que & 0 fundamerto de valdade de uma determinada erdem ~ sendo, portant, condo para que possamos pressuporofundamento de valida dessa orden 88 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien significado subjetivo dos atos pelos quais so criadas as rnormas (Isto é, prescrigdes, comandos) do Direito positive 6, necessariamente, que essas prescrigSes devom ser obedecidas. Mas, novamente, por que seu significado subjetive @ considerado também como seu significado objetivo? Nemtodo ato cujo significado subjetive ¢umanorma 6, também, objetivamente, uma. Por exemplo, a ordem de Um ladréo para que vocé Ihe a8 a bolsa nao ¢ interpretada ‘como uma norma obrigatéria ou valida. Reformulada, entao, nossa pergunta é: por que interpretamos os atos pelo uals 6 crado 0 Direito positiva como tendo nao apenas 0 significado subjetivo, mas também o significado objetivo de rnormas obrigatérias? Apés apontar as respostas aduzidas pela teoria do direito natural = segundo a qual o motivo para a validade do Direito é sua concordancia com os principios imanentes & natureza, que so superiores ao direito positivo, feito pelo homem -, bem como pela teologia cristé - segundo a qual os homens devem obedecer ao Direito positive porque sua obediéncia 4 ordenada por Deus, sendo que, em ultima anélise, a obediéncia do homem é devida a Deus e nao ao Direito positive como tal -, Kelsen sustenta que tals posigdes nao so aceitavels por uma ciéncia do Direito positivo, posto que, “se a validade desse Direito, sua validade imanente, esta em questo, o motivo para ela ndo deve ser procurado em outra ordem, uma ordem superior”, ao contrario, deve-se ‘sempre supor que o Direito positive é uma ordem suprema, soberana (KELSEN, 1997, p, 256). Na teoria pura do Direito, um sistema normativo estatico se caracteriza pelo fato de que a validade das normas reside em seu conteido, derivado de uma norma superior, da mesma forma que um Particular pode ser racionalmente derivado do universal; num sistema dinamico, por sua vez, as normas que o integram ndo podem ser criadas mediante uma operagao intelectual a partir de uma norma basica e, por isso, devem ser derivadas de um ato de vontade (de um alo de poder e nao de um ato de conhecimento) dos individuos para tanto autorizados por uma norma de hierarquia mais alla — a auséncia dessa “validade Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 89 Fernand Jes Amande bee intrinseca” faz com que a norma superior jamais possa determinar inteiramente o contetido da norma inferior que a concretiza, mas apenas legitimar e tornar obrigatério (formalmente valido) o contetido do ato de vontade que a editou.”” Kelsen (1984, p. 299), dessa forma, pretende que a justificagao do fundamento de validade de uma norma juridica nao necessite submeter-se a uma instancia sobre-humana (metafisica), mas se baseie na validade de outra norma pré-existente. Esse é 0 sentido de ‘suas afirmagées segundo, as quais um dever ser s6 pode derivar de outro dever ser e que a eficdcia global de um ordenamento juridico é apenas uma condigo, mas nao a razo da validade das normas que 0 integram." Nesse aff de eliminar as consideragdes meta ou extrajuridicas para justificar 0 fundamento de validade de toda a ordem juridica, Kelsen ecorre & norma fundamental (Grundnorm) para consolidar a ideia de que 0 Direito é obrigatério ~ portanto, valido - em fungao dele proprio, tentando preservar, dessa forma, a autonomia do especificamente juridico em relagdo a faticidade do sein, e afastar o sollen de qualquer tipo de consideracdes éticas, quaisquer outros valores transcendentes a0 Direito positivo. Existem diferengas essenciais entre a doutrina da norma fundamental e a do dielto natural, tal come demonsttel no capitulo Theorie der Grundnorm und Naturrechtslehre de minha Reine Rechtsiehre. A diferenga fundamental 6 que 0 Contetide do ordenamento juridiea positive completamente Independente da norma fundamental, da qual pode ser dorivada apenas a validade objetiva das normas do ordenamento juridico positivo © nao 0 conteddo desse ® Uma norma, segundo o Kelsen pés-1960,& o sentido objetivo de um ato de vontade dingo Intenconaimente & condta de ourom: eendo assim, & algo quordo (pote) © nlo pensaco: & 6 rovanhocimonto dese alo de vontade por uma norma de hieraauia supsrer que forneco um Sontide cbetve a docisdo do drgao auteizade, medians a inerpretagao do seri subjaivo ddsse ato como seu sentido objet, CComparar com Miranda Afonso (1984, p,241-254(espp. 243-244), 90 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien ordenamento; enquanto que, de acordo com a doutrina do direito natural, um ordenamento positve é valido somente lenguanto seu conteddo corresponde ao do direito natural (KELSEN, 1995, p. 66) Ao considerar a norma fundamental um pressuposto “légico- transcendental” sob o ponto de vista teorético-gnoseolégico (KELSEN, 1995, p. 65), busca Kelsen fornecer resposta a questao do fundamento de validade (razo de obrigatoriedade) do ordenamento juridico como um todo e de suas normas isoladamente consideradas, qualificando-as no como normas postas (queridas), mas como normas pressupostas (pensada), ou Constituigéo em sentido l6gico-juridico™ Posto que, de acordo com minha teoria, @ norma fundamental se refere unicamente a um ordenamento coercitivo geralmente eficaz, © posto que a norma fundamental é adaptada a este ordenamento coercitivo @ 1ndo 0 ordenamento coercitivo a norma fundamental, énesse sentido que, na norma fundamental, a efetiva criagdo das normas mediante alos reais de vontade e a eficdcia destas normas se convertem na condigao da validade objetiva do ordenamento coercitivo. Portanto, a norma fundamental nao ‘garante’ a eficécia do ofdenamento juridico, Nao influ para que este resulte eficaz [..] © ordenamento coercive normative a que se refere a norma fundamental ¢ do qual la depende néo & idéntico a estes fatos. A eficdcia de um E milo conkoversa a problema Keleeniana acorca da exslcagio defniiva a nome fundamental aravés de “Flosota do als ob” (coma se"), de Vahinge. Em 1938, om carta cenderegada @ Renato Teves, Kelsen afmou que, para evar interpretagses erness, prefers Fenuneir a se inspar om Mac (principio da eanomia do ponsamenta) s em Vaihingor(oara 4a ego), optando por Far-s, "com roseras&flsofa transcendental neokantana:"A norma ‘underentalerponde & segunte questo qual opreesuogsio que permite ao svstenar £0 nfo Imports qual ato jrdco pode ser qualia come ta Isto @, defido como um ato servindo de base a estadelecmenta da norm, assim como a sua execucto. Esta quetio se Insere completamente no espa da logca tansconderta(KELSEN, 1997.72) No onan, adotaia posterorments a conduta oposta numa pastagom da Teoria geral das narmas,afmando que 3 ‘ora fundamertal & uma pura au vetdadera oedema sentdo da valingerana flosota do camo se [I (KELSEN, 1988, 9. 328-328. Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 a Fernand Jes Amande bee fordenamento normative é uma condigao de validade, no sua validade. (KELSEN, 1995, p. 67-68) Na qualidade de “norma pressuposta como valida’, ela funciona como o ponto de partida do processo de oriagao do Direito positive, de tal sorte que deve haver uma pressuposicao tacita, uma causa primeira, da qual depende ou se fundamenta a aceitagao do sentido subjetivo de um ato volitivo (no caso, a Constituigaio em sentido juridico-positivo) como seu sentido objetivo. (KELSEN, 1984, p. 267-285 e 1995, p. 76)" 2.0 coercitivismo na teoria de Kelsen A primeiras manifestagdes das teorias coercitivistas remontam a obra de Christian Thomasius, assim como a de Rudolf Ihering e, j4 no século XX, Hans Kelsen e Binder, os quais tomam 0 Direito enquanto coago, ordem de coacdo ou coacdo regulada. Jellinek (1954, passim), por sua vez, sustentava a teoria da “forga normativa dos fatos’, baseando- ‘se no fato de que a natureza humana tende a reproduzir mais facilmente 0 jd realizado do que o novo, olvidando, pois, o fato de que, ao lado do elemento conservador, ha também, imanente na natureza humana, um elemento inovador, um desejo latente de mudanga. Para os coercitivistas, 0 ordenamento normativo sé se coloca como juridico, isto 6, valido - no sentido de validez universal — quando se faz sustentar por uma maior forga material: econ6mica, financeira e, finalmente, policial e militar. E é justamente o Estado 0 detentor desse imperium, como poder de decisdo unilateral, 0 qual s6 velo a surgir na modemidade, fazendo frente as ordens de coordenagao das relages contratuais, tals como as vivenciadas pela sociedade feudal. Esse poder supremo do Estado traduziria 0 proprio conceito de soberania sob uma Jtica intema: poder exercido genericamente sobre a sociedade nacional. © Comparar com Mranda Afonso (1984, p, 252254). 92 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien Tem-se que o Estado deve primar sobre qualquer outra pessoa juridica, tanto as subordinadas—da ordem interna - como as superpostas — as autoridades internacionais — posto que, conquanto as instituigées internacionais possam ser tidas como superiores na hierarquia juridica, resultam, todavia, inferiores na hierarquia da forga. Isso se explica pelas inimeras deficiéncias do Direito internacional, no qual a formagéo de uma estrutura prévia, que realmente comporte o monopélio da forga, de forma similar a exercida pelos Estados, ainda se encontra no plano da elaboracao.* Como se pode depreender da analise feita acima, Kelsen foi um coercitivista, ou a perspectiva coercitivista se casa perfeitamente ao arquétipo estruturante de sua teoria do Direito, Na Teoria pura do Direito, sustenta que *o Direito é uma ordem de coergo e, como ordem de coergao, é — conforme o seu grau de evolucao — uma ordem de seguranca, quer dizer, uma ordem de paz” (KELSEN, 1986, p. 66). A importaincia da coergéo no normativismo kelseniano se vincula @ afirmagio de um dos postulados principals da sua teoria: separacdio rigida entre Direito e Moral. & que a coercitividade garante © fundamento da prépria aniljuridicidade, impedindo que esta busque qualquer referéncia que extrapole as proprias normas juridicas. Nao S40 referéncias a valores ou elementos transcendentes ao direito positivo que determinaréo uma conduta ilicita, mas simplesmente a estrutura normativa que prescreve um ato coativo como consequéncia imputada a essa conduta. Essa é, inclusive, uma das grandes contribuigbes do pensamento de Kelsen para a teoria juridica do século XX, possibilitando uma mudanga na compreensdo do préprio lugar a ser ocupado no Direito polo licito e pelo ilfcito, Como bem diz Mata-Machado (1957), “A possiidade de uma ardom intomacional que reguamente os comperamenios na sociedad Interaconal, mesiante a estplagao preva de condutas © © monopalo da fora, € um somho ‘anigo do persamento oeldentale que hole parece ganar, mas do que nunca, foros de ealdade fom vas de coneretzaclo, onde om vsia a esuturaj exisen Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 93 Fernand Jes Amande bee antes, considerava-se 0 antijuridico como negacao do direito. € ainda a signficacao dada pelo senso comum. Para Kelsen, esse é um ponto de vista juridico-politico. Em sua doutrina, 0 antijuridico ¢, a0 contréro, ‘condi¢ao especiica do Direlto’. De uma posicao extrassistematica, o conceito de antijuridico recebe posigao ‘intrassistematica’. (MATA- MACHADO, 1957, p. 214) Verifica-se, pois, no coercitivismo kelseniano, uma fungao que transcende, e muito, a simples busca da seguranga juridica. Ha, nele, uma superacéo de um dos elementos mais notdveis a caracterizar a ordem juridica até 0 século XIX: a pretensdo de ser ela uma ordo rationis, imbuida de uma racionalidade que Ihe assegurava supremacia axiolégica @ ponto de referéncia para a percepgao do bem e do mal. Em Kelsen (1986, p. 60), a0 contrario, fica clara a pretensao de que o Direito ‘seja, fundamentalmente, ‘um mecanismo coativo que nao corresponde, em sie por si, a nenhum valor politico ou ético”. O estatuto puramente normativo de toda coercitividade é abertamente sustentado em sua obra Teoria geral do Direito e do Estado, escrita j4 em sua fase de vida nos Estados Unidos da América, em Berkeley. Ali, ao enfrentar as objegdes sobre possiveis dimensdes metanormativas da coergo, destaca que: (© elemento coergao, essencial ao Direito, consiste nao na chamada compulsao psiquica, mas no fato de que atos especifices de coergio, considerados como sangées, so estabelecidos para casos também especificos pelas regras que formam a ordem Juridica. © elemento de coergao sé tem importéneia quando forma parte do contetido da norma Juridica, come ato estipulado por esta e nao como um processo na mente do individuo submetide A prépria norma, (KELSEN, 1995, p. 19-20) Assim 6 que Kelsen (1986, p.68-70) invertera a classica distingao entre normas primérias ou de conduta, destinadas aos cidadaos, e normas secundarias ou de sangao, dirigidas aos juizes, considerando estas como principais, uma vez que o essencial no Direito 6 sua coercitividade. A norma juridica se centra, fundamentalmente, nna definigao das condigSes de implementacao da sangao, o que leva 4 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien a que notaveis estudiosos vejam al uma auténtica redugdo do Direito & norma sancionadora. Como diz Amaldo Vasconcelos (2002, p. 80), “a norma secundaria, onde se possibilitam o dever juridico e a faculdade correlativa passa a importar tao somente na exata medida em que serve de pressuposto da norma priméria, essa sim, a auténtica norma juridica.” Perceba que a tessitura desse postulado tem relevancia, também, para a reafirmagao da separagao entre os planos do ser © do dever ser. E que a sustentagao da ilicitude como algo externo e contrario & normatividade terminava por criar 0 risco de comprometimento da validade por fatos externos ao Direito. Essa é a intengdo de Kelsen (1986, p. 169-170) quando diz que: © Iilcito aparece como um pressuposto (condigdo) @ nao como uma negagde do Dire; @, entao, mostra-se que @ licito no 6 um fato que esteja fora do Direito, mas 6 um fato que esta dentro do Direito e & por este determinado, que 0 Direito, pela sua prépria natureza, se refere precisa ¢ particularmente a ele Allicitude se instaura, pois, como condigao fundamental ao Direito, nao havendo de ser considerada apenas como sua negagao, como se houvesse um antijuridico jé fora da juridicidade. Ao fazé-lo, pretende-se, mais uma vez, libertar 0 4mbito de validade das normas de qualquer comprometimento com o mundo do ser, verificando-se que a validade restara sempre imaculada, mesmo diante de atos que aparentemente importem na sua negacao. Conclusao Kelsen é um verdadeiro divisor de dguas no pensamento juridico modemo. Suas contribuigdes, além de pungentes e inovadoras, vieram fortalecidas pelo rigor Iégico © pela capacidade analitica herdada de seus grandes mestres do Circulo de Viena. Teve ele também a fortuna de langar suas contribuigdes num momento histérico muito favordvel, para um mundo que ansiava por rigor, cientificidade e depuragao nos discursos de todos os ramos do saber humano. Como homem do seu Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 95 Fernand Jes Amande bee tempo, Kelsen teve de encontrar resposta para o verdadeiro dilema que se colocava aos juristas no inicio do século XX: seria possivel oferecer um estatuto de cientificidade ao Direito, ou ficaria ele consagrado como mero arcabougo técnico e instrumental a servigo do poder vigente? Se 0 Direito, na modemidade, passou a ser, por exceléncia, o direito positivo, poderiamos encontrar nele auténtico objeto para especulacées cientificas? Ou seriam estas eternamente reféns de concessdes metafisicas — que marcam, por exemplo, a tradigao jusnaturalista -, ou do condicionamento insuperavel do Direito & particularidade geogréfica @ temporal de sua produgao, carentes, portanto, de legitimo objeto de estudo. © neopositivismo Idgico de Hans Kelsen parece ser, antes de tudo, uma tentativa de resposta a esse dilema. Ele busca resgatar, sob 0 manto de um rigoroso discurso cientifico, a autonomia do Direito na ordem do saber humano, e sua possivel compatibilidade com 0 paradigma da ciéncia de seu tempo. Ao buscar essa resposta, sao muitas as contribuigdes que ele nos trouxe a reboque. Problemas antigos da Teoria do Direito, como a questao da ilicitude, puderam, entdo, encontrar caminho para uma mais coerente solugéo e uma melhor fundamentagao. Todavia, foi Kelsen refém de um problema que, na histéria do Direito, a tantos outros também atingiu: a radicalizagao de seus postulados e a consequente limitagéo dos horizontes de compreensdo de um fendmeno intrinsecamente complexo e multifério. A saida cientificista por ele encontrada termina por pecar em um excesso de abstracionismo, apartando o Direito nao apenas de outras ordens normativas e ramos do saber, mas da propria realidade da vida. Ao praticamente desconsiderar os importantes momentos da aplicagao € legitimagao da produgao normativa, 0 positivismo kelseneano termina por olvidar duas importantes e fundamentais dimensées do Direito, abrindo um perigoso caminho para que suas conclusdes seguissem, a passos largos, ao encontro de posigées tebricas e ideolégicas que deveriam ser-Ine refratérias. Nesse ponto, seu pensamento a respeito da coergao pode apresentar, com cristalina evidéncia, o rigor e a importancia de seu 96 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien discurso ¢ os limites de sua abordagem, quando trazida a luz de outros pressupostos, possiveis e necessérios, na compreensao do fenémeno juridico. Assim, diante do pressuposto da legitimidade democrattica que hoje permeia o discurso juridico, agrava-se, sobremaneira, a limitagao da abordagem kelseniana — ha muito jé denunciada — acerca do lugar da coercao na estrutura da norma juridica, bem como seu papel na edificagao do préprio dever de obediéncia ao Direito. Avertente critica s teorias coercitvistas ha muito vem apontando como grande fragilidade dessa escola o fato de suas concepgies apenas servirem para aclarar por que as normas sao validas, e ndo por que devem ser obedecidas, contentando-se em demonstrar que as normas devem ser obedecidas justamente por serem validas. A forca poderia produzir, talvez, um ter de obedecer (miissen), mas nunca um dever de obedecer (sollen). Tem-se, assim, que nao basta a forga para se Impor uma norma como valida. Jé Rousseau, em seu majestoso O contrato social, enfaticamente havia advertido: “o mais forte nao é jamais suficientemente forte para ser sempre o senor, se ndo transformar sua forga em Direito e a obediéncia em dever’ (ROUSSEAU, 1981, p. 20). Igualmente curiosa é a adverténcia atribuida a Talleyrand, que, ante a prepoténcia de Napoledo, Ihe teria afirmado: “com as baionetas, senhor, pode-se fazer tudo, menos uma coisa: sentar-se sobre elas’. E a diferenca entre 0 poder-forga e 0 verdadeiro poder, que se traduz em autoridade, investindo-se de superioridade moral e justificativa ética. O primeiro sustenta-se apenas através da ameaca e da violencia. A autoridade, ao contrério, baseia-se, primordialmente, no respeito livremente consentido. Essa é a ténica dos nossos dias, que, para além de Kelsen (e, por tantas vezes, contra Kelsen), mas nunca sem Kelsen, cabe a todos os juristas, conquistar. Referéncias CARRINO, Agostino. L’ordine delle norme: Stato dirito in Hans Kelsen. 3. ed. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992 Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 7 Fernange Jee Amand COTARELO, Juan Garcia. Ideologia y conocimiento: el formalismo juridico en Hans Kelsen. Revista de Politica Comparada, Madrid, n. 7, p. 117-146, 1982. GOMES, Alexandre Travessoni, © fundamento de vs Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. lade do di to: HART, Herbert L. A. Conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Fundagao Calouste Gulbenkian, 1994. HART, Herbert L. A. Positivism and the separation of law and morals. Harvard Law Review, Cambridge, MA, v. 71, p. 593-29, 1958. JELLINECK, Georg. Teoria general del Estado. Traducao de Femando de los Rios. Buenos Aires: Albatrés, 1954. KELSEN, Hans. Derecho y paz en las relaciones internacionales. Tradugao Florencio Acosta. México: Fondo de Cultura Econémica, 1986b. Problemas capitales de la teoria juridica del Estado. Tradugao Wenceslao Roces. México: Porrtia, 1987. © que 6 justica? Sao Paulo: Martins Fontes, 1997. . Teoria geral das normas, Tradugao José Florentino Duarte. Porto Alegre: Fabris, 1986a Teoria geral do direito e do Estado. 2. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1996. Teoria geral do Estado. Tradugao Femando de Miranda. Sao, Paulo: Académica; Saraiva, 1938, . Teoria pura do direito, Tradugao J. Baptista Machado. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1984. LOSANO, Mario G. Introdugdo & obra O problema da justica, de Hans Kelson. Sao Paulo: Martins Fontes, 1990. MARTIN, Rex. A system of rights. Oxford: Clarendon Press, 1993, 98 Ponsay, Farida «17, np. 7689, anu. 2012 0 ever de obedcer a0 dona tera de Hans Kien MATA-MACHADO, E. Godéi da. Di Forense, 1957. MATA-MACHADO, E. Godéi da. Elementos de teoria geral do dit 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. MIRANDA AFONSO, Elza Maria. © positivismo na epistemologia Juridica de Hans Kelsen. Belo Horizonte: FOUFMG, 1984. 10 @ coerce. Rio de Janeiro: ito. PASSERIN D'ENTREVES, A. Legitimidad y resistencia. Sistema, Barcelona, v. 13, p. 27-34, 1976. PAULSON, Stanley L. La altermativa kantiana de Kelsen: una critica Tradugao José Garcfa Ain. Doxa, Alicante, n. 9, p. 173-187, 1991 RAWLS, John. Uma teorfa da justiga. Sao Paulo: Martins Fontes, 2000. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. So Paulo: Hemus, 1981 VASCONCELOS, Amaldo, Teoria da norma juri Malheiros, 2002. ica. 5, ed, Sao Paulo: Recebido em: 01/03/2012 Aprovado em: 20/04/2012 Pansy Fort, 17, 0.1, 9.78.98, ann. 2012 99

Você também pode gostar