Você está na página 1de 153
—— Lletinen ) Saiide metal. * exgéaere Valeska Zanetlo Go akc eee ee ee ea ee Ou OR ees akc ye cee ts Seca Seen ee unt cer cn ete ae Pei Suna ee ec Ca eT eee ete UO na ae un arse eee eae etn eee tee Dee ce ter ae esr estat eae et Cee ea aC ON at tne a aa ee a eect eee Ce en aes Sree Gate Leon ec eee eae PO ea sos eee Ee at ene eae Se eae eee tat ee ean eee oat as if eee ee ae Puree Cates Valeska Zanello Se ae Ry a Ponte aene erry ee sia hMel) gias afetivas sdo utilizadas?". O presente livro fruto de 20 anos de exp eect Peer gi Metre ar Be eae a Cnn ec Tell eo PMC Men ean eel eo Cg eeeeeerd eee rece Meee ac nag eects Preeti yc ce ewer ad como, atualmente, homens e mulheres se subjetivam, sofrem e se expres sam de formas diferentes. Ji ” th) SAUDE MENTAL, GENERO E DISPOSITIVOS Culture e processos de subjetivagao Vateska Zanello SAUDE MENTAL, GENERO E DISPOSITIVOS Cultura e processos de subjetivagao ‘copsio na forte tara porns A ads ‘ctectincRE 9670 anal, vest 228 Exude mera gfon spss: cities proceso de sbthosso/ 2018 Wiehe ancl eed. habe: ps 2018 ip; 23 m5) chs ibe Son s7asers0260 Seen = Apes coon Me ee ; Curitiba - PR poe | Aves 2018 tne ehtepeecom ar tors appt, Teak Capping 2018 8 nase Deets e £8: save Coos App i, folissutupioaRcni tains so on res ak a ee, FICHATECHICA RDIORAL Axpate deA cabo OMIT OMTOMAL Andrés Batons nr USE Iride dh Sha- UFC Mi pres aU FOMORGAO Andro wets desis DIAGRARIAGRO. Anis el de rhe EMSKO Sans Famanas ai SeREncIRCOMEECIE_ ane Ante ‘ountncA De ranges Sana Mara emane cd ile LGENENcikADMENISTEATIN E90 Res CGOMUMICAGAD Conor aro Pirin Masten See LRARINSE EVENTOS ttre Stes | Cao nl ‘CoWMTE cNTIFICO DA COLEGKO MULTIDISCIPLINARIGADES EM SAUDE € HUMMANIDADES DIREEKO CRNA. Det Bouts Mica Congas (Una) CONSULTORES an Dt ead) een nae Ra Teas ace roe ssn Crain ox to fala 5) Konmomastincene on rte ware i in) tara teers amor rune) meee erode dees) ie srr Ga oe ‘A lmagem da capa deste lvro ndo fol escolhida aleatoriamente. Trata-se de um quadro ‘que pertenceu por multos anos @ meus avés maternos. Meu av6, que adorava objetos de ‘arte, omprou-o.em um mercado na itdla. Ele esteve pendurado, desde entdo, ora na sla ‘devisltas ora perto da mesa na qual a grande familia que eles tiveram se reunia para {fozer suas refelgbes. Esse quadro tem unva histéria cparentemente engragade, mas no fundo portadora de muitas revelagdes sobre a nossa cultura, eo espacoe os saberes das rmutheres. Mew avé era um homer muito corinhoso, mas, de fara italiana e bastante ‘eligieso, encamava, como quase todos 0s homens de sua época,o patriarca. Tdo dentro do prescrito, ndo fosse minha avé uma potencial revoluciondria nascida em uma {fozenda, no interior do Espirito Santo. Eles se casaram no teiceiro encontro que tiveram. ‘No prime, minha avs era nolva, mas desmanchou o noivado para ficar com 0 honvem ‘que, nas patavras deta, arrebatou sev coragdo, Seu enxoval de casamento jd estava quase ‘pronto, © exnoiva se chamava Alberto e em todos as roupas de cama e banka, minha ‘ave havia bordado A & M (Alberto e Maria). Com 0 guinada de destino que seu coragdo spainonado the dev, ndo teve divides en remendar o A em 0, transformando todo 0 ‘enxovat em 0 & M (Oswaldo, nome do meu avé, e Maria). Iss0 6 é uma parte da historia. ‘Minha ave aprendeu, assim como vérias ou a maior parte das mutheres de sua geragéo, ‘.contornar mal-estare, a se responsabilizar em evitar quatquer descontentarnento naquele que era seu parceiro amoroso. Voltando & histsria do quad. Em wma das viagens a rabatho do meu avé, meus ties, entdo adolescentes, pediram pora minha avs para que os dejeasse realizar uma festa dancante para os amigos, em caso, Meu avé era _um homem rigido, com valores moras sexistas e sua auséncia sera oportunidade de 0s flhos se divertirem de forma mais livre. Minha avd, come quase sempre, consent, € ‘2casa virou uma algazarra, Uma de minhas tas retirow ent o quadro da pared, para Segunda Brinkmann (2008), Freud foi reideseapest ™ Aspskoeraplas so ores de etaterapias. Ver Zanelo etal 038, SAUDEMGNL, Geno OSPOSINGS Cain prod abinie » Um exemplo, utilizado pelo autor, a partir da leitura de Ryle (fldsofo briténico), trata da diferenga entre um tique involuntario e uma piscadela conspiratéria a um amigo. Ou ainda, a imitac3o de uma piscadela conspi- ratéria com a intengo de enganar alguém. A descricao fenomenolégica “superficial” (de superficie) néo bastaria para diferenciar uma das demais. Confundi-las seria incorrer em um erro no qual o sentido especificamente simbélico, semidtico, humano, escaparia: é necessaria uma “descrigso densa’. © autor conclui: “Contrair as palpebras de propésito, quando existe um cédigo piblico no qual agir assim significa um sinal conspira- t6rio, épiscar. E tudo que hd a respeito: uma particula de comportamento, um sinal de cultura e —voilé- um gesto" (Geertz, 2008, p. 5). E necessério, portanto, descrever, conhecer as estruturas de significaco. Isso vale também para as expresses humanas consideradas ‘ou no como sintomas pela psiquiatria. “O que devemos indagar é qual & sua importancia: o que estd sendo transmitido com a sua ocorréncia e através de sua agéncia" (Geertz, 2008, p. 8). Como aponta Ryder, Bane Chentsova-Dutton| (20a1), hi um nimero finito de sintomas disponiveis para expressar 0 softimento ou a afligSo, legitimamente validados e re- conhecidos, passivels de serem "decodificados” e tratados em deter minada cultura. Essa expressio é, portanto, mediada, configurada pela/ nna cultura, ancorada no corpo vivido. Gone e Kirmayer (2020) apontam as seguintes caracteristicas para cultura: & social, & configurada, é historicamente reproduzida e é sim- bélica. A cultura compreende padres compartilhados de atividades, interagGes e interpretacdes, sendo a linguagem o principal sistema se- midtico mediador da reproduc cultural transgeracional. Outro aspecto a se destacar é que as culturas sdo investidas ¢ in- vestem certos grupos com poderes e autoridade de forma desigual (Gone & Kirmayer, 2020). As hierarquias S80 configuradas na historia daquele povo: (© poder ligado @ sistemas culturals especificos e comunidades deriva de uma historia de dominagio e contrate préprios, 2 qual deve continuar a exercer efeitos na forma de pensar mesmo depois que a maquinaria de dominagao tenhe sido desafiada ou ddesmantelada” (Gone & Kitmayet, 2010, p. 40) (0 desempoderamento, em certo grupo social, tem sido apontado por autores tais coma Good e Kleinman (2985) e Littlewood (2002) como um dos principais fatores relacionados ao que comumente denominamos 30 ‘usanaonae ; de transtornos mentais comuns (TMCs- depressao e ansiedade). Segundo. ‘os autores, a incidéncia desses quadros é bem maior (mundo afora) entre mulheres, individuos que ocupam status sociais derrelativa falta de podere ‘95 economicamente marginais. Seus comportamentos e sentimentos de- veriam assim ser compreendidos mais como respostas plausiveis, quando contextualizados, do que como sintomas psiqulStricos. Hé “dindmicas de protesto e de resistencia” (Kirmayer, 2007, p. 25). ‘Além disso, a prépria nogdo de “pessoa” € culturalmente varidvel. No ocidente, hé uma tendancia a compreender a pessoa de modo ind dvalista, nos limites de seu préprio corpo e com uma constancia identitaria ‘temporal. Em sociedades indigenas, aqui mesmo no Brasil, encontramos noses diferentes, mais coletivistas e fluidas (Viveiros de Castro, 1996; Vi vveiros de Castro, 2002; Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro, 1987). Esse tema foge a0 escopo deste livro. No entanto faz-se mister destacar que ‘essa concepco de pessoa, presente em cada cultura, ¢ imbutda de valores @ ideais prescritos socialmente e constantes em varias camadas, desde as mais explicitas (como leis etc), a05 rtuais e a0s valores invsibilisados'. Kitayama e Park (2007) apontam que, ao longo da histéria cons truida transgeracionalmente, séo selecionadas praticas culturais (tais como scripts) significados pUblicos em referéncia a certa visio privile- glada do que é/deve ser uma pessoa. Configuram-se assim tendéncias motivacionais nos sujeitos, infiuenciando substantivamente suas emogies, bem-estar e salide. Praticas e sentidos que sio congruentes com a visio predominante de self, valorizada em determinada cultura, tendema ser preservados e os que so conflitantes, eliminados, Um tera muito debatido nesse campo diz respeito ao valor da independéncia ou da interdependéncia na configuragio e afirmacao do self*. Ryder et al. (2022) sublinham o papel de intermediagdo que esses scripts culturais possuem. Eles tanto refletem as estruturas de sentido/ significado na mente quanto agem como guias priticos comporta- mentais no mundo: * Wandecon Fo eatctoo @parquieador rn Seca aeana, aoe et ro ant de rr pubicado) spentou que h tarbérnaseondniasafcanascem sradgbesaftarherdeas bases cue sosseem ura ogo coletusta de pessoa Segura dle, ao pede ser constatado nes tereros "Ese apna ee Tmundos dos teres presercaa nog clebvee plural de pessoa (S10). “Reutraameriara sera um tom exempa dopimeto caso, caraterzandc-ecome uma socisdade mals Individuals nterpelandoe wsorandoemogtes tes corm avtadiecd, relia, pode re orgtha) ‘pesto qos aponnset nepreventaram segundo, una sociedad tas cleats Fterplanco emO,S0e {Bisco canermasa,tersapendinn, harmon socal tacoma setimentor toro clph AOD He chao LOKPosNeS: Can ace eebht® ny (a) Seripts se referem a unidades organizadas de conhecimento que codificam e propagam significados/sentidos e praticas. Eles servem como mecanismos que permitern uma recuperagio automstica rapida @ 0 uso da informacio adquirida @ partir do ‘mundo enquanto canfiguram 0 modo como a informagio & per- » Ness ec, faze mister desacarom oxerpl cade palo proprio autor oontrle ds expe das ro ‘fet por grt dos bens. "He ert ato de um horam nao queter demestvar ses erento ‘30 significa que de ters sucesto.. Propestadument, ule um home no parrot po 30 {ocutarsentimentosé nai comuin ene os homers embora nase, Je forma enna, ura ragra ree ‘os homens ov desonbecio de rushers” (Ec, 2%, p- 308). Ekman desta que até receeernte, igrenes de esters ov angostserarsinl de raqoeza em ores ats em Tala Erm soedaes sx tae, patie, como ebrasiek ese sentido parece no terse ting, ‘SAQBE NEN CN OPOSTIOS kaa cre abn B ‘guagem e outros sistemas simbélicos tém uma funco puramente refe- rencial, sendo as emogdes experiéncias transculturais. J paraa perspectiva construtivista, préxima a que adotamos neste livro, as emogdes S80 configuradas nas interacdes socials e, portanto, dependem do contexto cultural, da linguagem e da construgao de signi- ficados. Leavitt (2996, p. 526), afirma qué (..) deveriamas ver as emogbes nem como sendo primariamente significado, nem como sensacGes psicobioldgicas, mas como expe- riéncias aprendias ¢ expressas no corpo.em interagSessociais stra -vés da mediagio de signos, verbais e ndo-verbais. Nés deveriamos vé-las como fundamentalmente socais, a0 invés de simplesmente de natureza individual; como expressos ordinariamente, 20 invés de inefdvels;e como culturase situacionais, Mas deveriamosigual- mente reconhecerna teoria 0 que todos nés assumimosem nossos cotidianos: que as emogées s30 sentidas na experiéneia corporal, somente coniecida, pensads ov avaliada. Para Leavitt (1996), 0 debate sobre as emogSes no caberia na di cotomia corpo e palavra, significado e psicobiologia, pois elas envolvem sentido e sensacao, mente € corpo, ¢ cultura e biologia. Um exemplo dado pelo autor é a experiéncia de um “remexido" no sistema digestivo, Como consige diferenciar que é ansiedade e nao apenas o resultado de um lanche infeliz que fiz agora hi pouco? O autor responde: “estar an- sioso é ter uma sensacao associada a um sentido/significado” (Leavitt, 1996, p. 525). A cultura cria assim experiéncias reconhecidas que en- volvem sentidofsignificado e sensac3o corporal. A linguagem usada no cotidiano ¢ extremamente esclarecedora e aponta para uma ponte entre dominio corporal eo conceitual”. Nessa perspectiva, a linguagem ¢ entendida no apenas como mera etiqueta sobre uma experiéncia universal, mas como proceso mediador, simbélico, que permite que certas experiéncias (corporais e mentais) venham a se configurar e ocorrer de determinada forma. © préprio corpo é compreendido, portanto, como sendo situado e socia- lizado, diferentemente de uma vis8o do corpo como 0 “iltimo nivel” bioldgico e universal, indiferente a cultura. O corpo, apesar de limitado, & pldstico. Os corpos existe em interago, mais do que entidades iso- As matioras eeicem aa ur papel fundamental ta como jb deserwoemos em nossa eve dots (Zane, 20078). ver também alot eseoncen S85) 4 uss nemo tadas. Nesse sentido, a base biolégica seriaresponsdvel ndo apenas pelas similaridades entre diferentes culturas, mas também o que tornaria pos- sivela enorme variedade de linguagens, culturas, padrdes soclais. Geertz (2008) pode ser aqui esclarecedor: Entre o padrao cultural, 0 corpo. o cérebro, fol criado um sistema de realimentagso (feedback) positiva, no qual cada um made- lava o pragresso do outro, um sistema no qual a interaglo entre (0 uso crescente de ferramentas, 2 mudanca:da anatomia da mo a representagSo expandida do polegar no cditex ¢ apenas umn dos exemplos mais gréficos. Submetendo-se a0 governo de pro- _gramas simbolicamente mediades para a produgao de artefatos, corganizando a vida social ov expressando emog5es, o homem determinou, embora inconscientemente, os estigios culminantes, do £eu préprio destino biolSgico, Literalmente, embora inadverti- damente, ele prépriose criou (..).As mudangas muito mais impor tantes e dramaticas foram as que tiveram lugar, evidentemente, fo sistema nervoso central. Esse foi o periodo em que o cérebro ‘humane (Homo Sapiens), principalmente sua parte anterior, alean- ou as pesadas proporgaes atuais(..). O que separa aparente- mente 05 verdadeiros homens dos protohomens no & a forma compérea total, mas a complexidade da organizagio nervosa, 0 periodo superposto de mudanga cultural e biolégica parece tar consistide numa intensa concentracio do desenvolvimento neu- ‘al (..). Grosso modo, iso sugere nd existr o que chamamos de rnatureza humana independente da cultura. Os homens sem cul- ture (.. seriam monstryosidades incontrolaveis, com multo pou- 05 instintos dteis, menos sentimentos reconheciveis e nenhum Intelecto (..)". Como nosso sistema nervoso central -eprincioal- mente a maldigso € gléria que © coroam, © néocortex- cresceu, ‘em sua maior parte, em interago com a cultura ele &incapaz de dirigir nosso comportamento ou organizer nossa experiéncia sem 2 orientagio fornecida por sisternas de simbolos significantes. (Geertz, 2008, p.35) Para ele, tantos as ideias, quanto “as préprias emogées séo, 0 homer, artefatos cuiturais" (Geertz, 2008, p. 59). Leavitt (1996), nesse mesmo sentido, afirma que as emogées no so, portanto, primaria- iis Wverdadeks casos psiudticos” por areditams te so uma infetedade do autor 0 uso ests presto cide, veto que nese captulo defendemneprtament Giemenepacantes passe de ‘are piquatizados produzem stoma: crporiseatosplresde sentido. S406 Me CERO EESPORTIOS Ca cen des 35 mente nem sentidos (meanings) nem sensagées (feelings)*, "mas experi- éncias aprendidas e expressadas no corpo, nas interages sociais através da mediaggo dos sistemas de signos, verbal e no-verbal'’(p. 526).Como aponta o autor, associagées afetivas, assim como semanticas, séo tanto coletivas come individuais; elas operam por meio de experiéncias comuns ou similares de membros de um grupo vivendo em circunst&ncias pare- cidas, mediante esteredtipos culturais da experiéncia, e a partir de ex- pectativas, memérias e fantasias partithadas. Nessa mesma perspectiva, Boiger e Mesquita (2026) ressaltam que as emogies sdo engajamentos em relagdes sociais que estao continua- mente em mudanga. Mais do que entidades internas, “separadas", trata- -se de processos em curso, dinamicos, interativos, e que so socialmente construidos. Ou seja, as ernosdes quase sempre ocorrem em interagdes sociais e relagies. Dessa feita, o contexto social constitvi, molda e define as emogGes, as quais retroalimentam as interagdes e as relagoes. Segundo 95 autores, é a avaliagio da situagao interacional/social vivida pela pessoa que organiza sua emocéo, ou seja, qual sentido esta possui. Pelos menos trés contextos precisam ser levados em consideragao na formagdo/configuragao das emogées (Boiger & Mesquita, 2022): as i ‘teragées momento a momento; as relagbes estabelecidas; e 05 contextos socioculturais. Os autores sublinham que a construgao social da emogao é uum processo iterativo e em curso “que se desdobra desde as interagées e relagdes, ederivam sua forma. sentido das ideias epraticas prevalentes do largo contexto cultural” (p. 222). Assim, “interagBes e relagdes sao sempre enquadradas pelas ideias, significados praticas prevalentes sobre o que & uma pessoa e como se relacionar com os outros, que também esté re- ferido a modelos culturais” (Boiger & Mesquita, 2022, p.225). ‘Como ja sublinhamos, em uma cultura sexista, o tornar-se pessoa 4 sempre estruturado pelo binarismo do tornar-se homem ou mulher. Como 0 género marca este enquadramento cultural, no qual as inte- fagBes ocorrem e so sempre gendradas? Ainda que essa nao seja, em ‘momento algum, a questao para os autores, eles mesmos apontam para respostas possivels: "Modelos culturais informam valores centrais, pro- pésitos, preocupagses fundamentals da pessoa e isso constitul o pano de fundo contra o qual as avaliacdes (dela pelos outros e por si mesma) interesante pontarapolsenadoterma seni": podeser no aspect connithe, coxparate de ego "lea 954) sublha qu as dos prenaras acepgbessao vides prs vaasculturas 36 rsa ie s80 formadas” (Boiger & Mesquita, 2022, p. 237). Se as qualidades das emogées derivam das interagées em que elas ocorrem, as quais séo elas mesmas significadas em um quadro/contexto cultural, e se as interagoes sio gendradas, faz-se necessario pensar se ha e quais seriam as emocGes interpeladas diferentemente em homens e mulheres. Em suma, que emogées so permitidas e legitimadas como sendo de mulheres e de homens? Como afirmam Kitayama e Park (2007), as tendéncias pessoais motivacionais s8o adquiridas mediante anos de so- cializagSo, as quais comegam muito cedo, desde os primeiros anos de vida, e s%0, em consequéncia, automatizadas, performadas e incorpo- radas. A cultura € técita e, portanto, altamente poderosa no proceso de configuragao da experiéncia emocional, dos processos psicolégicos ¢ mecanismos subjacentes a eles. No préximo capitulo vamos processos gendrados de subjetivago. SAODE REAL CERO EDSPOSINOS: Caeser etic a 4 } i i i | CAPITULO 2 . ESTUDOS DE GENERO, DISPOSITIVOS E CAMINHOS PRIVILEGIADOS DE SUBIETIVACAO Segundo Laqueur (2002), a ideia/teoria de uma diferenca sexval substantiva e bindria-oposta (homem/mulher) ner sempre existiv Desde Aristételes até o século XVIII houve a predominancia da teoria do sexo Unico. Segundo essa teoria, entre homens e mulheres haveria apenas uma diferenca de grav, sendo as mulheres consideradas como homens menores. Figs, 30-81. On the eft are the penisike female organs of genersion from Georg Bartsch, Kunsibuche (1575). On the tight the font of the wtnus i cic vay ea reves es canter, Figura 2- Exemplo de retratago dos éeglos genitals femininos, por Grorg Bartsch, em 3575 Percebe-se daramente ofoce sobre asemelnanga com opénis masculine. Reade de hpitjeelmgexrpbookMog:pot.com eiz0x. 02 o6 achive em, em 2exaon Acexplicacéo etiolégica estaria no nao desenvolvimento completo das mulheres por falta de calor durante a gestaco de uma menina. No entanto existiam relatos de estérias de meninas que, em certas situacdes de esforco fisico e transpiraco, transformavam-se em meninos. A des- ctiggo anatémica de homens e mulheres se esforgava em demonstrar a semelhanga dos drgaos sexuais, sendo que a grande diferenga seria a do saida desses érgaos para o exterior, nas mulheres. Nesse sentido, Laqueur (2001) aponta que o sexo no era uma categoria ontolégica, mas sociolégica, antes do século XVII. sexo “oposto” é um produto criado no final do século XVI, Para © autor, sé houve interesse em buscar evidéncia de dois sexos distintos, com diferengas anatémicas e fisiolégicas concretas em homens e mu- Iheres, quando essas diferencas se tornaram politicamente importantes: A historia da representagio das diferencas anatémicas entre mulheres e homens é independente das verdadeiras estruturas estes éegios (..). A ideotogia, nfo a exatidio da observagéo, determina como eles foram vistos e quai as diferengas importan- tes" (Laqueur, 2001, p. 22). A Gestalt pode nos ajudara entenderas ideias de Laqueur. Um dos processos mais importantes apontados por essa escola é a eleigao de urn foco, com a subsequente eleigso de um fundo, para que seja possivel a percepgio de um objeto. Abaixo um dos vérios exemplos para ilustrar es5e proceso, 0 vaso de Rubin: Figura 3~ "Vaso de Rubin’, do Gest {Retro de hipsinew google.com brsearhqniatoedenbintl2-aCsAVNG_enBRys2@R2Etbine ey arse aueus Dependendo de onde se foca o olhae, ser percebido um vaso ou duas faces. E impossivel perceber as duas coisas, ao mesmo tempo. O que Laqueur aponta, em sua pesquisa, & que, historicamente houve uma mudanga da eleicdo do foco de interesse das semelhancas entre 0s érgaos genitais masculinos e femininos (como pudemos ver na re- tratagSo feita em 1575), para suas diferencas. Essa mudanga se deu por motivos ideolégicos, em fungo de importantes transformagies sociais nesse momento. Como sabido, foi no século XVIIIXIX que ocorreu a consolidago do capitalismo (com a revolug3o industrial). Esse sistema trouxe profundas mudangas sociais, mas talvez umas das principais tenha sido a ideia da possibilidade de mobilidade social. Ou seja, no inicio do século XV, nascer em certa familia tinha um carter quase destinal, dai a repeti¢ao de oficios (ou a prépria servido) por varias geragdes. Havia uma separacdo social bem clara e delimitada, Porém, oadvento crescente do capitalismo trouxe o sonho da possibilidade de mobilidade social para todos, e nao para todas*. Trouxe também uma distingdo, histérica e cultural, entre o Embito publico e privado. Como Justificar que uma parte da populacao (feminina, branca) nao tivesse acesso a essa mobilidade? E ainda, como justificar que essa mesma parte ficasse dedicada aos trabalhos do agora ambito privado? Foi por meio da afirmaggo da diferenga fisica (colocada como foco) que as di- ferengas sociais puderam ser *naturalizadas’. Segundo Kehl (2007), com a consolidacdo do capitalismo, howve uma transformagéo social na qual se constituiu um lugar especifico para algumas mulheres: a familia nuclear e o lar burgués. Segundo @ autora, esse lugar é tributario “da criacdo de um padrao de femini- lidade que sobrevive ainda hoje, cuja principal fungao ¢...)é promover o ‘casamento, nao entre a mulher eo homem, mas entre as mulheres €0 lar" (p. 44). Para ela, 2 “funcdo da feminilidade, nos moldes modernos, foi a adequagio entre a mulher e 0 homem a partir da produgio de uma posicao feminina que sustentasse a virilidade do homem burgués” (Kehl, 2007, p. 44). Assim, aos ideais de submissio feminina, con- ‘trapunham-se os ideais de autonomia do sujeito moderno, apregoados schtsourcesuigfomBicum ens TSax Lago Wasa AbSn5aCMayixogab DingMBins2C_Busge_788- 'NndGsanHPcCeaaPGkngahabsa-Nved=0ahUxEwpagaMmip3eahWHFZAFHSCDSvOGOEROA, Gsimaye=uTSoeL_go Mem 27ooi037 ~ Nem garaescravosearescraoseses las e2es N30 erm conseradosnem como pesioas, humans, ‘masa. Ver Da aon ASE AN CRO LOPS: cater renee a pelos ares do capitalismo. Além disso, “aos ideais de domesticidade contrapunham-se o de liberdade; & ideia de uma vida predestinada ao casamento e a maternidade contrapunha-se a ideia, também mo- derna, de que cada sujeito deve escrever seu proprio destino, de acordo com sua prépria vontade” (Keht, 2007, p. 44). N3o foi & toa, portanto, a grande quantidade de mulheres burguesas adoecidas psiquicamente na era vitoriana. “Histeria”* foi o nome privilegiado dado a esse softi- mento, nese momento histérico. Nao se trata aqui de negar a diferenga corporal, mas de apontar que certas diferengas foram eleitas em determinado momento histérico para justificar desigualdades sociais. Além de provocar adoecimento em parte das mulheres, esse espaco restrito trouxe outros dois fatores im- portantes: de um lado, um maleestar que foi canalizado em movimentos sociais que fortaleceram, posteriormente, as lutas feministas (que ini- Amora proce ua oeitura da nage de “roca de rlheres" come garata da sagem obra “Esyturastlemantares ce pateesco deLdu-stais 882), apuntando queeste Lum coneeho poder ore ioeainn» opeessa da mer nostra cacao idee ston loge. No entry $3 Suoca de mulere® pata svn como ima necessdede para surginent Gack psza 2 um eescamart’,nito qe mara & ators fz tambo a relies dl ose Fre, cana 1 com lnureralinda een Liv-Stnus Mostra ansur comma o neta ro pode ser subovmide nels moras de cdasse eque dnecessieo pensar emma ecanoiapolicadossstomas seal Ness soto, ‘saa pefunca fren dn expeois oc doe homers «das ateres, spartan Gos 9 aie ‘eprodho do trabalho no expla porqueé a musher quem faz atabaho domestica em 2:3 ' Trtase, crarent, de yn categoria ple. Poti deve er aqu anteesca coro mn conjtto de ‘estratanernas destinads a ence Um sstema; assim como o conju de elas compromises tueados de acordo com 0 pode em vats dos guns hahlerarguas de poder pela Mile, 230). a4 usta sendo esse gendramento compreendido, de forma geral, como binério em oposicéo™. Como aponta Scott (1990, p. 73): "No podemos ver as diferengas sexuais a no ser como uma fungo de nosso conhecimento sobre 0 corpo, e esse conhecimento nao é puro, nao pode ser isolado de sua implicago num amplo espectro de contextos discursivos’. A categoria adotada, primeiramente, foi o de “mulheres”, justa- mente pata apontar a diversidade de experiéncias e localizacao de mu- theres que ndo se viam representadas na categoria "mulher", tais como as mulheres negras, indigenas, lésbicas, dentre outras (Pedro, 2023). A partirda década de go, a categoria “relacdes de género” passouaseram- plamente utilizada nos paises do hemisfério norte (Pedro, 2012). No en- tanto as novas categorias que foram surgindo nao fizeram desaparecer as anteriores (Pedro, 2023). Butler também contestou a nogio de “identidade de género", como algo estatico. Mais do que identidade fixa, trata-se de uma iden- tidade debilmente construida no tempo, uma “identidade instituida por uma repetigio estilizada de atos” (Butler, 1990, p. 297). Butler (2012) aponta, nesse sentido, o quanto o conceito de identidade é herdeiro de uma tradiéo metafisica ocidental marcada pela ideia de substncia. Se- gundo ela, 0 género ndo é de maneira alguma estivel, to pouco seria um Idcus operativo do qual procederiam os diferentes atos (como na teoria dos papéis de género™, da sequnda onda). Género deve ser en- 5 sey Fox Kalle (995) propa qua meso em cfs. is come abilogia, hi wm gee samesto do char pare o objeto de estado. Nesse serio, a prepa cassficagio “centea” do nature (enesmo planta) come machoTimes sla ma poo dessa perenne dos voles cts Oaks 0 ts rotbfones gondtodesdebave do fener Getiia? Tate de um questonarnerto com posabikdedes de importantes decdobramontos enterica. A utara ara asin gue as metafores de gine TUNGe- ‘ram como wnegens sodas lee mprtom exprcatane sci pra are teperenagitedaatreza 6, fazendo 0, resfcam ounatualzam cenzasepatics cleus Mart 2008 reaioy, nessa cS, ums anal venta see o qo os hos ce nog ersinam acerca do clepraautvo de herare Muth "5.0 ave a autora aponta sho os valores de geo presentes na alae” da afickcladeses cos, re santa necoi dos teros para a sari dos homens, heen una exalt do apaelo eprodutor razed, «uma lite da mentnagie fering come urn Manca da rusher ur bob que io des (ero) Valeapenaconfa "Segundo Pedro 201 2deia de ana refere-se aur centro coma unapedraqie tinge lego) coe onda so osmovirents crcuares que saem paca aperfria.O ceo seam 0 aes do hersfeno norte hperni ox ples do, tase de uma meters colon motivo ps qual sites do cone #0 pr: Pemoutaslenines.Ascsio dese teme excedeper ders scapa estes. No Bras temes apa Urisagse ant caagoras da segunda onas, um pouco da ice, menos da qua conside/ada 2 tra Piscoona gues cue cualfice a stra partir ds eolonizade)- Er eso bs tas potas 0 fem rises nepal constar ito 3009) “Money evar (.72 asin os deiner: “tude ail gue urs pesos dfs pareincrsos outros 0 2simmsmaaquanta e masculna,feruuna ov arbavleks (4) Aldentcade do gener sea a pera Praia do papel de ger, #0 papel de gerero, aerpordrcinpttice do denied de ginar, Acre cue ‘OBE HaIHL ENERO EDSFCSTHGS cares waceuntdenjenase 1s tendido como uma perfomance, a qual, via repeticao estilizada dos atos, vai a0s poucos se cristalizando, dando uma idela (equivocada) de subs- tancializagio. Essa repetigio ndo se dé livremente: ha scripts culturais, (como agit, pensar, sentir, se locomover etc. para ser considerado como “verdadeiramente” uma mulher ov um homem) que jé existe antes de nascermos e so mantidos por praticas sociais. Como nos aponta a pensadora, ha uma "estratégia de sobrevivéncia", a qual sugere existir uma situacao de coagao social, claramente punitiva, na qual esta perfor- mance se di. Assim, otomar-se mulher ovo tornar-se homem, em nossa sociedade binéria, seria “obrigar 0 corpo a conformar-se com uma ideia histérica de ‘mulher’ ou de ‘homem" (Butler, 390, p. 300). ‘Como so interpeladas essas performances e repassados/reafir- mados esses scripts? Como forma de microfisica de poder, no sentido do apenas de representar os valores de género, mas de crié-los e rea- firmé-los, temos as tecnologias de género (Lauretis, 1984). Segundo Lauretis (1984), 0 sujeito & constituide no género, mas ndo apenas pela diferenga sexual, e sim por meio de cédigos linguisticos¥ e represen- tages culturais. Partindo das contribuigées de Foucault, a autora su- blinha género como representagao e autorrepresentacao, produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, a midia, mas também as praticas da vida cotidiana, tais como brinquedos e brincadeiras, xinga- mentos (fenémeno social amplamente estudado por nés; ver Zanello, 2008; Zanelio & Gomes, 2010; Zanello, Bukowitz & Coelho, 20%1; Zanello & Romero, 2022; Batre, Zanello & Romero, 2025), musicas etc. As tec- nologias de género no s8o, portanto, apenas a representac3o desse sistema de diferencas, mas também a producdo delas™ Assim, o género seria "0 conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamentos e relagdes sociais” (Lauretis, 984, p. 208). O sistema génerojsexo teria como fungo constituir individuos concretos em homens e mulheres. Ser homem e ser mulher, nesse sentido, seria uma forma de assujeitamento. 0s principais exemplos de tecnologia de género, no mundo con- tempordneo, so as midias: o cinema (filmes), desenhos, propagandas, ‘sss ahordagem recehevsponiave quarto a wasiaasbalavaunasiposta complementaedad etre os ‘Sos, egg clando stamens dornagto mascioa Cachet, 005) * Aeggoente a conseugiosbjeva no gree a inguagem & fundamental esata ange gere(estus ioe) édesesiontar afeton Aconsruse do ginereocrt or meio das ils tenologas do gbnero lscursosinsttuionns ge bfeduzm,pemoven cman cera resrtagies nund as pps devaes"entes? 46 arse revistas. Para esclarecer a ideia de tecnolagia de género, darei aos (as) leitores(as) alguns exemplos banais, e apontarei quais performances podem ser interpeladas por intermédio deles. O primero exemplo trata-se de um sucesso de bilheteria da Disney (Monteiro & Zanello, 2015): A pequena sereia”. Ariel é uma serela curiosa e dvida pela vida. Nao se submete &s interdigdes patemas sobre que lu- gates ir e 0 que fazer/nio fazer. Em uma de suas exploragies, avista um homem e se apaixona por ele. Decide entao tomar forma de humana, para ter chances de seduzir seu objeto de amor. Para isso, negocia com a bruxa (Ursula), a qual pede em troca de retirar-ihe o rabo (e dar-Ihe pernas), avoz. ‘Ariel: "Mas sem minha voz... como posso?”. Ursula: "Terd sua aparéncia, seu belo roste... endo subestime a im- portincia da tinguagem do corpo (diz a vild enquanto move os quadris, rebolando-os]", ‘Além disso, os serezinhos que acompanham Ariel cantam para ela: °O homem abomina tagarela /Garota caladinha ele adora/ Se a mulher ficar falando/ O dia inteiro e fofocando/ O homem se zanga,/ diz adeus e vai embora,/ Nao! Néo vé querer jogar conversa fora/ Que os ‘homens fazem tudo pra evitar/ Sabe quem é mais querida?/ E a garota re- tralda/ € s6 as bem quietinhas vao casar” O primeiro ponto que se destaca nesse desenho é algo bem recor rente em quase todos os produtos culturais direcionados 8s mulheres: a idefa de que a coisa mais importante que pode hes acontecer na vida é& encontrar um homem e que ele é/deve ser o centro motivador organi- zador de sua vida. Ou seja, naturaliza-se a ideia de que o sonho de toda mulher é se casar. Trata-se, como diz Monique Wittig (ag92), de what goes without saying (0 que vai sem ser dito). A tecnologia de género, além de interpelar performances, constitui-se em uma pedagogia dos afetos, uma colonizagao afetiva ‘Além de ensinar 8s meninasa verdadeira *benc3o” pela qual devem buscar em suas vidas (0 amor por/de um homem), esse desenho mostra ‘também os sacrificios esperados para ser possivel obté-la: de todos, 0 que mais se destaca ¢ a afirmagao do silencio, como algo desejavel para Clements Musbers Ashman 8 pequenasereia. (Fede. Proto de Joh Musker «Howard Ach mane regio de Ron Cleese eb Wesker, 2583 soca, tao EOSPOSTHGS carne pec deajeso “a ft

Você também pode gostar