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O Jesus histórico e o messianismo sofredor

Flávio Emílio Aguiar Lemos1


Teologia – Professor Fernando Sabra2

Resumo

A pesquisa buscou compreender se a ideia messiânica denominada de “Messianismo


sofredor”, possivelmente, teve relação com o Jesus histórico. A hipótese levantada ocupou-se
de investigar se no tempo de Jesus existiria alguma ligação entre o Galileu histórico e um
conceito de messianismo caracterizado por ideias de sofrimento e morte. Para tal, analisou-se
a compreensão das diferenças entre a Galileia e Judeia, a influência do Templo de Jerusalém,
assim como a existência de tradições orais na Galileia e a forte identidade nazarena de Jesus.

Palavras-chave: Jesus Histórico, Galiléia, Messianismo, Judaísmo, Tradição oral.

Abstract

The research sought to understand if the messianic idea called the “suffering
messianism” could be linked to the historical Jesus. The hypothesis developed investigated if
in the time of Jesus, there was proximity between the historical Galilean and the idea of a
messianism with characteristics of suffering and death. To arrive at this result, were analyzed
the differences between Galilee and the Judea, the influence of the Jerusalem’s Temple, the
existence of oral traditions in the Galilee and the concrete identity of Jesus' Nazarene.

Keywords: Historical Jesus, Galilee, Messianism, Judaism, oral tradition.

1
LEMOS, F. E. A. Graduando do curso de História licenciatura na Universidade Católica Dom Bosco – Av.
Tamandaré, 6.000 - Jardim Seminário - Campo Grande / MS - CEP 79117-900. Email: flavioeal@bol.com.br;
flavioeal@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8884748180500148
2
Trabalho de conclusão de curso apresentado na disciplina TCC II como parte dos requisitos necessários à
colação de grau no curso de Teologia - Formação Ministerial (2016), do Seminário Teológico Batista Sul-Mato-
Grossense. Rua José Antonio, 1941 • Centro - 79.010-190 • Campo Grande – MS.
sob a orientação do professor Mestre Fernando Glória Caminada Sabra.
2

INTRODUÇÃO
A pesquisa sobre o Jesus histórico tem apresentado grandes avanços dentro do
contexto acadêmico histórico e teológico. Novos estudos são apresentados constantemente e
grandes revistas surgem para se estabelecer nesse campo específico, um exemplo, a Revista
Jesus historico, organizada e administrada pela Universidade federal do Rio de Janeiro3. Os
temas levantados, propostas sugeridas, assim como as várias personalidades de Jesus já
lançadas, aumentam o número de debates em relação ao homem de Nazaré da Galiléia. Dentre
as tantas pesquisas que cercam esta personagem, a busca pela historicidade das ideias
messiânicas vinculadas à sua pessoa em todo o novo testamento com certeza se encontram
nesse meio. No novo testamento encontramos Jesus como possuidor de diversas faces
messiânicas, algumas muito conhecidas, propagadas em canções e disseminadas
popularmente, ex: “Filho de Daví”. A ideia messiânica que focaremos neste trabalho é a
comumente denominada de “Messianismo sofredor”. O ideal de um messias que sofre, como
visto em várias partes da obra bíblica neotestamentária, vem sendo foco de muitos trabalhos,
alguns, inclusive, afirmam que sua existência é fruto dos escritos cristãos e nada possui de
fundamentação judaica. A sua possível relação, ou não, com o Jesus histórico é o motivo
principal desta empreitada. A hipótese levantada é buscar compreender se no tempo de Jesus,
possivelmente, existiria alguma ligação entre o Galileu histórico e um conceito de
messianismo caracterizado por ideias de sofrimento e morte. O trabalho fará uso do método
de pesquisa bibliográfico4 e analisará diversas obras em relação aos movimentos messiânicos
na Palestina do primeiro século, arqueologia e história da Galiléia, influência do Templo de
Jerusalém, e claro, o estudo do Jesus Histórico.

3
Revista Jesus histórico. Disponível em:http://www.revistajesushistorico.ifcs.ufrj.br/ Acesso em:18 de
Out.2016.
4
“A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por
meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho científico
inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o
assunto. Existem, porém, pesquisas científicas que se baseiam unicamente na pesquisa bibliográfica, procurando
referências teóricas publicadas com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios sobre o
problema a respeito do qual se procura a resposta.” - FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica.
Fortaleza: UEC, 2002. Apostila. In: Métodos de pesquisa / [organizado por] Tatiana Engel Gerhardt e Denise
Tolfo Silveira ; coordenado pela Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e pelo Curso de Graduação
Tecnológica – Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. – Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2009, p.37.
3

DESENVOLVIMENTO

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESQUISA DO JESUS HISTÓRICO E A QUESTÃO


DO MESSIANISMO SOFREDOR

A pesquisa do Jesus histórico pode ser bem definida como o estudo que busca
reconstruir, até o limite historicamente provavel, a pessoa de Jesus. Para os leitores mais
acostumados com o ambiente religioso das igrejas, ou centros de recuperação, pode soar um
pouco diferente a pessoa de Jesus ser dividida em duas. Mas, esta separação é importante para
compreendermos melhor o que ésta pesquisa pretende.
De um lado temos o Jesus da fé, da crença, da religiao cristã e suas diversas vertentes.
Do outro, temos o que pretende ser o Jesus da história, por assim dizer, fazendo uso da
expressão de John P. Meier, “refiro-me ao Jesus que podemos “resgatar” e examinar
utilizando os instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica” (MEIER, 1993, p.35). O
campo de pesquisa acadêmica do Jesus histórico pretende clarear o ambiente histórico e social
de Jesus, assim como as suas possíveis atitudes e praticas historicamentes plausíveis.
Conforme as pesquisas históricas vão caminhando para dentro do mundo
contemporâneo de Jesus e mais proximo da sua realidade, mais claramente podemos propor
interpretações confiáveis para as suas práticas e palavras que encontramos nas páginas do
novo testamento. Dessa forma, o estudo do Galileu não pretende comprovar o Jesus da fé, não
tem esse objetivo. Se seus milagres e curas ocorreram ou não, ou se foram apenas situações
mal interpretadas e compreendidas, não são estes o cerne do questionamento. A abordagem
pela visão histórica de Jesus pretende apenas buscar uma base mais concreta, firmada na
ciência histórica, e dessa forma, proporcionar um melhor campo de fontes confiáveis para o
desenvolvimento teológico, que faz muito uso dos atos e palavras eternizadas nos textos do
novo testamento para suas interpretações.
Todavia, é de grande importância clarear-mos um pouco mais essa questão da
pesquisa da pessoa de Jesus, e para tal, faz-se necessário um exemplo eternizado por John P.
Meier em seu clássico livro Um Judeu Marginal5.
Meier diz no capítulo primeiro de seu livro que “O Jesus histórico não é o Jesus real.
O Jesus real não é o Jesus histórico (1993, p.31)”. Ele diz que, é de grande importância
destacar esta diferença para que o entendimento desta questão não se torne um diálogo
complicado e prolongado que siga um caminho longo na “procura do Jesus histórico”.

5
MEIER, John P. Um judeu marginal. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
4

Para ele o significado de se estudar o “Jesus real”, ou qualquer que seja a personagem
histórica “real”, é enganoso e deve ser distinguido com cuidado, principalmente se tratando de
pesquisa histórica. Tudo isto porque, obviamente, “Mesmo hoje em dia, apesar de todos os
documentos oficiais, das fitas dos noticiarios da TV e das biografias existentes, não se poderia
conhecer a realidade total...” nem mesmo de pessoas atuais, contemporâneas, (ele usa como
exemplo Richard Nixon e Ronald Reagan), por se tratar de uma empreitada definida em
termos muito amplos e abrangentes (MEIER, 1993, p.31).
Meier continua o seu raciocínio elencando que, por se tratar de figuras públicas
modernas, o profissional, seja ele historiador ou biógrafo, pode, em geral, montar um quadro
“razoavelmente completo”. Ainda fazendo o uso do exemplo do ex-presidente Richard Nixon,
Meier diz que, mesmo com uma montanha de dados empíricos que os arquivos públicos,
registros militares, telejornais, apurações eleitorais, entrevistas coletivas, inqueritos
parlamentares e as bibliotecas da presidência pudessem fornecer, interpretar os fatos seria
uma tarefa monumental, mas pelo menos os fatos estariam aí. Porém, a “realidade total” de
Richard Nixon continuaria a escapar mesmo dos olhos mais detalistas. Mas ainda sim,
poderíamos aprimorar um retrato e registro “razoavelmente completo” do Richard Nixon
“real”. “O real e o histórico não coincidem, mas se sobrepõem em grande parte.” (MEIER,
1993, p.32).
No entanto, a exemplo desta vasta quantidade de registro que podemos ter do ex-
presidente Richard Nixon, o registro “razoavelmente” completo do Jesus “real” esta,
irremediavalmente, perdida para nós hoje. O “Jesus real”, mesmo no sentido de um registro
razoavelmente completo de palavras e atos públicos, como de Richard Nixon, é desconhecido
e desconhecível. Desta forma, chegamos à mensagem principal desta introdução, o Jesus
histórico não é o Jesus real, nem a melhor forma de se chegar à ele. Não se pode alcançar o
Jesus real, e jamais se poderá. Não porque ele não tenha existido, mas sim porque as fontes e
informações que chegaram até nós, não registratam e nunca procuraram registrar todos, ou
mesmo a maioria, dos atos do ministério público de Jesus (MEIER, 1993, p.33).
Quanto mais nos voltamos para o passado, mais complicado fica o trabalho de
pesquisa de determinadas personagens históricas. Quanto mais distante para trás caminhamos,
mais escassas vão ficando as fontes.
Tendo compreendido isto, fica então a questão do Jesus histórico. “Por Jesus da
história, refiro-me ao Jesus que podemos “resgatar” e examinar utilizando os instrumentos
científicos da moderna pesquisa histórica.”(MEIER, 1993, p.35). O Jesus historico, pode
então, nos proporcionar, segundo o autor, fragmentos do indivíduo “real”, e nada mais.
5

Podemos nos aproximar daquele Galileu até certo ponto. Mas jamais descobriremos e
encontraremos o Jesus real. Com base no que possuímos podemos nos aproximar até
determinada distancia de Jesus, e enxerga-lo de determinada forma, mas este,
independentemente da distancia, jamais será o Jesus real. O que fez na infância, na
adolescencia, juventude e vida adulta até a sua morte, em sua totalidade, nunca será
descoberto. A maioria dos seus discípulos o conheceu parcialmente, em um determinado
momento da sua vida, mas jamais completamente a ponto de terem visto o Jesus real.
Em relação ao messianismo sofredor nossa pequena consideração gira em torno de um
diferente problema atual da pesquisa. Para a tradição cristã é muito forte a ideia de que Jesus
foi o Messias, o Cristo tão aguardado e do qual o antigo testamento havia predido nos seus
textos. Em conversas e debates Jesus é frequentemente declarado como aquele que devia de
ser enviado ao povo judeu e pelo qual foi rejeitado como tal. Grande parte deste pensamento é
devido ao equivocado ensino de que no tempo de Jesus existiria apenas uma ideia messiânica.
E mais, de que o antigo testamento realmente tivesse guardado profecias que, em um
determinado momento, seriam concluídas em/por uma pessoa. Todavia, pesquisas
demonstraram que no período, principalmente, do primeiro seculo, o contexto de Jesus de
Nazaré era um vasto e complicado quadro de esperanças messiânicas, fazendo emergir desta
situal social em toda a Palestina um forte desejo de restauração política e religiosa.
O nosso foco em relação a essas ideias de esperanças messiânicas é buscar
compreender se no tempo de Jesus a ideia de um messias que sofre e morre era possível, ou se
todas estas caracterísitcas, fortemente encontradas no novo testamento na vida e sofrimento de
Jesus, tiveram sido frutos do grupo de cristãos posteriores à condenação, assim como afirmam
vários autores, como, por exemplo, Bart Ehrman6:

Anteriormente ao cristianismo nenhum judeu pensava que o Messias deveria ser


crucificado. O messias devia ser um grande guerreiro, um grande rei ou um grande
juiz. Tinha que ser uma figura de grandeza e poder, não alguém esmagado como um
mosquito pelos inimigos.

Seguindo o mesmo raciocínio, sobre a ideia de um messianismo sofredor, Nicholas T.


Wright, diz: “[...] o messianismo no judaísmo, tal como era, nunca imaginou alguém fazendo
as coisas que Jesus fez, muito menos sofrendo o destino que ele sofreu” (WRIGHT, 2013,
p.764).
6
CRAIG, William Lane; EHRMAN, Bart D. Is there historical evidence for the resurrection of Jesus? A Debate
between William Lane Craig and Bart D. Ehrman. March 28, 2006. In: LIMA JUNIOR, Francisco Chagas
Vieira. “Que Efraim coloque o sinal…” Messianismo catastrófico e as origens do cristianismo. Revista
Orácula. v. 5, n. 9 (2009), p.37.
6

Após essa breve introdução, caminharemos seguindo a lógica de uma hipótese. Mas o
que seria uma hipótese? Nada mais do que a simples possibilidade de um olhar. No caso desta
pesquisa, a possibilidade de um olhar diferente sobre o messianismo sofredor de Jesus.
7

1ª PARTE – QUEM FOI JESUS DE NAZARÉ?

Jesus foi um judeu-galileu natural do povoado de Nazaré, na Galiléia. Jesus tem o seu
nascimento marcado pela vivência de Herodes, O grande. Segundo o evangelho de Mateus 2:1
e Lucas 1:5; 2:1, quando do nascimento de Jesus, Herodes, O grande, ainda era vivo. Dado
que Herodes morreu entre os meses de Março e Abril do ano 750 depois da fundação de
Roma, não podemos ir mais além do ano 4 a.C. (PUIG, 2010, p.160). Interessante o fato de
que, Jesus, seguindo esta nomenclatura “a.C – Antes de Cristo”, teria nascido antes dele
mesmo. Segundo Puig, esta curiosa anomalia cronológica - Jesus nascendo antes da era cristã
– deve-se ao erro de Dionísio, o Pequeno7, no século VI. Diz ele que, quando Dionísio quis
fixar o início da era cristã, situou-o no ano 754 depois da fundação de Roma e não no ano
750, ano da morte de Herodes, ou seja, quatro anos, ou mais tarde ainda, da data proposta
(PUIG, 2010, p.160).
O nome “Jesus” deriva do latim Jesus, que por sua vez, provém da forma grega Iesous.
A forma hebraica ou aramaica é Yeshua, e no dialeto galileu do aramaico, que é a língua
materna de Jesus, o nome pronuncia-se Yeshú (PUIG, 2010, p.147). Seu nome era tão comum
no primeiro século que era preciso acrescentar alguma expressão descritiva após o nome,
como João, filho da Conceição, ou João, o pernambucano, neste caso, Jesus, de Nazaré, ou
Jesus, O Cristo (MEIER, 1992, p.206). Flávio Josefo menciona cerca de vinte homens
chamados “Josué/Jesuá ou Jesus” (o grego usa a mesma forma Iesous para ambos). Não
menos que dez viviam no tempo de Jesus de Nazaré (MEIER, 1992, p.206).

Lugar de nascimento: Nazaré era uma aldeia relativamente pequena situada numa
ampla cordilheira entre a bacia do Bet Netopha ao norte e a Grande Planície ao sul 8. Era uma
localidade pequena, de economia totalmente agrícola, com uma população, no começo do
primeiro século, em torno de 500 pessoas9. Pode soar estranho o fato da pesquisa do Jesus

7
Monge, nascido na Cítia Menor, hoje a região de Dobruja, Romênia, que propôs o denominado Calendário
Cristão para por fim à desordem dos diversos sistemas de contagem cronológica então empregada. Foi
convidado pelo papa (523-526) João I (470-526) para compilar a tabela para as futuras datas da Páscoa. Naquele
tempo a data era calculada com base no Calendário juliano e a contagem era feita a partir do inicio do reino do
Imperador romano Diocleciano um feroz perseguidor dos cristãos. Por causa disso o monge procurou não
continuar reverenciando a memória do terrível perseguidor e, assim, propôs uma contagem dos anos a partir
nascimento de Jesus Cristo, e apresentou o seu Liber de Paschate (525) e introduziu a contagem Antes de Cristo
e Depois de Cristo. – Dionísio Exíguo, o Menor, o Pequeno ou ainda o Humilde. Disponível em
http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/DionisiM.html Acesso em: 18 de Nov.2016.
8
Horsley, Richard. Arqueologia, história e sociedade na Galileia, p.101.
9
Da silva, Sydnei Farias. Autoconsciência messiânica de Jesus. Escola Superior de Teologia. Dissertação de
Mestrado. São Leopoldo, 2006, p.55.
8

histórico defini-lo como sendo natural de Nazaré, quando os evangelhos de Mateus e Lucas o
colocam como nascendo em Belém. Para tanto, precisamos fazer uma pequena abertura nessa
pesquisa para podermos entender melhor essa questão do nascimento de Jesus.
Toda essa situação pode ser compreendida ao se analisar historicamente as narrativas
da infância de Jesus dos evangelhos de Mateus e Lucas. Para qualquer leitor dos textos do
Novo Testamento é visível que existem atritos entre os relatos de Mateus e Lucas relativos à
infância de Jesus. Segundo Meier (1992, p.211) esses atritos são relativos às viagens de José e
Maria nas duas narrativas da Infância de Mateus e Lucas. No evangelho de Mateus o primeiro
nome de lugar que aparece em sua narrativa propriamente dita é Belém da Judéia (2:1). Como
não há outra indicação de mudança de lugar, o leitor é levado a crer que a “anunciação a José”
(1:18-25) também ocorreu em Belém. Para o autor do evangelho, Belém é o lar permanente de
José, tanto assim que precisa fazer um esforço para explicar como Jesus foi fixar residência
em Nazaré e, por isso, era chamado “o Nazareno” (MEIER, 1992, p.212).
O autor de Mateus dá uma longa volta para chegar a Nazaré, saindo de Belém: fuga
para o Egito (Mt 2:16-18), que não tem lugar no enredo de Lucas, saída de Jesus de Belém,
retorno do Egito, e por fim, José teme retornar para à Judéia (portanto, a Belém), pois
Arquelau, filho de Herodes, estava reinando no lugar do tirano morto. Curiosamente, a
solução encontrada por José para fugir do perigo representado por um governante que era o
filho de Herodes, o Grande, é ir para Galiléia, governada por Herodes Antipas, futuro
assassino de João Batista e também filho de Herodes, o Grande (MEIER, 1992, p.212). No
mínimo curioso.
Já o evangelho de Lucas apresenta um padrão bem diferente. Quando Maria recebe a
anunciação, tanto ela quanto José se encontram em Nazaré da Galiléia (1:26-27). A
justificativa de Lucas para a saída de Nazaré é um suposto censo geral decretado por César
Augusto quando Quirino era governador da Síria (Lc 2:1), todavia, segundo Meier, este censo
não possui documentação em qualquer outra fonte antiga. Quirino somente se tornou
governador da Síria em 6 d.C., realizando um censo da Judéia, mas não da Galiléia (MEIER,
1992, p.213).
Entretanto, de acordo com Meier, toda esta situação do local do nascimento é
problemática. Esta afirmação de Mateus e Lucas de que Jesus teria nascido em Belém
aparecem apenas nesses dois únicos capítulos desses evangelhos. Em outras partes dos
próprios Mateus e Lucas, Jesus é simplesmente Jesus de Nazaré, ou o Nazareno (MEIER,
1992, p.214).
9

Seria interessante se pudéssemos observar essa afirmação de nascimento em Belém


em outras partes dos evangelhos. Entretanto, o que ocorre é o inverso. No evangelho de João,
por exemplo, a linha de interpretação do quarto evangelho insiste, desde o capítulo 1, que
Jesus veio de Nazaré (1:45-56). Segundo Meier, a insistência de João em Nazaré como local
das origens terrenas de Jesus, retorna com força teológica na sua Narrativa da Paixão (18:5,7;
19:19) (MEIER, 1992, p.215). Interessante notarmos que em vários trechos João demonstra
querer apresentar Jesus como sendo da Galiléia, mesmo que isso pudesse parecer estranho
para aqueles que partilhavam dos ideais messiânicos-davidicos, de que o Messias deveria
nascer na cidade de Belém segundo Miqueias 5:1.

Outros diziam: Este é o Messias; mas diziam outros: Porventura o Messias virá da
Galiléia?
Não diz a Escritura que o Messias descenderá de Davi e da aldeia de Belém, de onde
veio Davi? (João 7:41, 42)

Meier acredita que estes versículos de João 7:41 seja no mínimo ambíguo e de valor
duvidoso. Todavia, “Mesmo que o nascimento de Jesus em Belém não possa ser totalmente
excluído, temos que aceitar o fato de que, na opinião predominante nos Evangelhos e nos
Atos, Jesus veio de Nazaré e, exceto pelos capítulos 1-2 de Mateus e Lucas, somente de
Nazaré” (MEIER, 1992, p.216). E conclui, dizendo:

Os caminhos um tanto sinuosos e suspeitos que Mateus e Lucas percorrem para


conciliar a tradição dominante de Nazaré com a tradição especial de Belém das suas
narrativas da Infância talvez indiquem que o nascimento de Jesus em Belém deva
ser compreendido não como fato histórico, mas como um teologúmeno, ou seja, um
princípio teológico [...] (MEIER, 1992, p.216).

Sob essa hipótese, também Theissen/Merz, dizem:

Jesus nasceu em Nazaré. A transferência do lugar de nascimento para Belém é um


resultado de fantasia e imaginação religiosas: como o Messias deveria nascer em
Belém de acordo com as Escrituras, o nascimento de Jesus é transposto para lá
(THEISSEN/MERZ, 2002, p.186 apud DA SILVA, 2006, p.54).

Ministério: Quando iniciou seu ministério, Jesus devia estar na primeira metade da
casa dos trinta, e na segunda metade, quando do seu término (MEIER, 1993, p.376). Se
pudermos colocar Jesus como possuindo seu ministério em algum contexto social exato, este
contexto sem sombra de duvidas seria o de aldeias, vilas e pequenas cidades. Jesus inicia seu
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ministério por volta de 27 ou 28 d.C. Segundo Puig (2010, p.205) “As fontes históricas não
estão de acordo ou calam-se perante a questão da duração da atividade pública de Jesus, desde
que sai de Nazaré e vai ao encontro de João Batista até a ultima vez que sobe a Jerusalém,
onde morre.”
Se levarmos em consideração somente os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas,
compreenderemos que houve apenas uma única subida de Jesus à Jerusalém por ocasião da
festa da Páscoa, momento este da sua crucificação. Sendo assim, o ministério público de Jesus
teria durado um ano apenas (PUIG, 2010, p.205). Em contrapartida, se levarmos em
consideração o evangelho de João, este menciona três festas da Páscoa que Jesus haveria de
ter celebrado em Jerusalém (2:13; 6:4; 11:55). Isso nos leva a crer que a atividade publica de
Jesus se prolongou durante um período de dois a três anos (PUIG, 2010, p.205).
Porém, para além da duração do seu ministério, caracteristicamente o movimento de
Jesus demonstra ter sido fortemente itinerante. Se o caso do nascimento de Jesus em Nazaré
aparenta ser mais verossímil do que em Belém, a região de seu ministério, não resta dúvida, é
a Galiléia. A origem do movimento religioso que mais tarde será chamado de cristianismo
esta em um pequeno grupo de homens e mulheres no qual Jesus de Nazaré desempenhou
papel central (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p.124).
Esse grupo se mantem domiciliado primeiro na Galiléia em algum momento dos anos
20 do século I. Jesus de Nazaré, sociologicamente, fazia parte do grupo marginal tanto em
relação ao governo de Herodes Antipas na Galiléia, quanto à liderança religiosa do Templo de
Jerusalém. Ele foi herdeiro de uma situação social que durava há vários séculos e que fez dos
moradores das pequenas aldeias escravos do sistema tributarista, quer de Herodes (Magno e
Antipas), quer do Templo no período asmoneu (DA SILVA, 2006, p72).
Segundo Stegemann; Stegemann, (2004, p.230), o seguimento de Jesus estava restrito
primeiramente à Galiléia, de modo especial à margem norte do Lago Genesaré
(Cafarnaum/Betsaida). Ali residia a maioria dos discípulos e das discípulas. Seu seguimento
tinha uma relação crítica com o estrato superior ou com os ricos. A imagem das relações do
seguimento mais antigo de Jesus com a elite da sociedade judaica se caracteriza pela crítica à
riqueza e pelo conflito de Jesus com o estrato governamental de Jerusalém.
Para eles, seguindo o modelo de estratificação social das sociedades antigas, fica claro
que a esmagadora maioria dos membros do seguimento de Jesus é oriunda do estrato inferior
rural, por mais que alguns seguidores pudessem ser de uma classe um pouco melhor
(ex:Levi/Mateus). Outro dado interessante apresentado por Stegemann; Stegemann, (2004), é
que os discípulos de Jesus são chamados de pobres absolutos (ptochoí) e descritos desta
11

maneira (fome e choro): Lc 6:20ss. A amarga pobreza dos membros do seguimento de Jesus
transparece igualmente numa história de conflito em torno do sábado (Mc 2:23ss). Nela, Jesus
defende um grupo de adeptos que colhia espigas contra a acusação de transgredir o sábado,
apontando para a situação de necessidade material (2004, p.233).
É inegável que se veja no ministério de Jesus uma particular atenção para com os
pobres e com a situação social desregulada de toda a Palestina. Entretanto, para além da
questão social, o que mais se nota é uma ácida crítica de Jesus para com aqueles que são
propagadores de tais problemas e não se compadecem com tal situação.
A proclamação do Reino de Deus é especial para o ministério de Jesus neste ponto.
Ele retoma uma palavra-chave preparada pela tradição bíblica, mas que ocorre apenas
ocasionalmente. Trata-se de um símbolo especialmente atualizado em situações de crise. Jesus
não enxergava o juízo de Deus já se realizando, mas o domínio de Deus chegando, e isso, não
por acaso, em pessoas que estão em necessidade. O reino de Deus é anunciado de maneira
incondicional, sobretudo, aos absolutamente pobres e necessitados (Lc 6:20), bem como às
crianças (órfãs) (Mc 9:33-37; 10:14) (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p.236).

Condenação e morte: Em conexão com uma peregrinação de seu movimento para


Jerusalém, Jesus sofre o destino de um bandido social ou revoltoso, ou seja, um salteador. Os
motivos que resultaram na sua condenação não podem ser explicados claramente. Há muitas
respostas para a mesma pergunta. Se a atuação de Jesus em Jerusalém esteve realmente
vincula a uma ação simbólica de purificação no perímetro do templo (Mc 11:15), que teve
uma certa repercussão sobre as massas, tal confusão se torna perfeitamente plausível
(STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p.243). Entretanto, as características do movimento
de Jesus, socialmente falando, fizeram não somente que ele fosse visto negativamente como
um líder revoltoso, mas também, positivamente, aos olhares populares, como um mestre, uma
pessoa que exortava, instruía, dava normas de conduta, embora falasse de uma maneira
diferente de outros mestres (STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p.295). E isto poderia
resultar em conflitos com as lideranças religiosas da época.
Puig (2010) nos diz que os debates entre Jesus e outros rabinos da sua época versava
sobre uma questão essencial: a autoridade do seu ensinamento. Afinal, os ensinamentos,
doutrinas e principalmente as curas de Jesus se baseavam em que? Jesus falava com uma
autoridade própria e não se baseava nas opiniões dos mestres anteriores ou contemporâneos
dele. Não tentava justificar as suas atitudes e palavras recorrendo a autoridade de outros
mestres. Jesus é, portanto, um rabino atípico e singular segundo Puig (2010, p.299). Dessa
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forma, em Marcos 12:28-34, um rabino manifesta o seu acordo com Jesus sobre o que é
nuclear na Lei: amar a Deus e ao próximo. Jesus, então lhe diz: “Não estas longe do Reino de
Deus”. Porém, esta relação com doutores da Lei nem sempre foi fácil. Por vezes Jesus
ultrapassou os limites daquilo que é tolerável dentro dos parâmetros habituais da religião
judaica. Quando então em Cafarnaum, lhes apresentam um paralitico, e Jesus o diz: “Seus
pecados estão perdoados” (Mc 2:5), isto soa como blasfêmia e uma transgressão grave para os
doutores da Lei que presenciam o ato (PUIG, 2010, p.299).
Dessa forma, de todas as possíveis acusações contra Jesus, que desaguáram na sua
condenação por Pôncio Pilatos, nenhuma demonstra ter a autonomia de justificar, por si
mesma, a condenação. Todavia, Da Silva (2006), nos transmite a seguinte reflexão:

Jesus é um líder que indica mudanças por meio de uma espiritualidade que poderia
sobreviver sem a mediação do Templo e da Capital. Ele é um pregador itinerante do
interior que perdoa pecados sem exigir os sacrifícios do Templo, que reinterpreta o
sentido da lei, priorizando a pessoa humana sobre os códigos e seus intérpretes. (DA
SILVA, 2006, p.77).

Jesus era Galileu, e isso quer dizer que ele pertence a um segmento diferenciado e
discriminado do povo judeu (DA SILVA, 2006, p.57). O evangelho de Marcos mostra
claramente Jesus movendo-se em um cenário Galileu. É de lá que ele vem para ser batizado
(Mc 1:9), depois da prisão de João, Jesus volta para a Galiléia (Mc 1:14), pois João esta preso
na cidade mais importante da Galiléia, onde está o palácio real de Herodes. Os primeiros
discípulos são convocados na Galiléia (Mc 1:16). A fama de Jesus se espalha na Galiléia (Mc
1:28). Ou seja, a Galiléia é o contexto social onde irá ocorrer o ministério e as ações de Jesus.
Jesus exerceu todo o seu ministério e foi crucificado quando Pôncio Pilatos era
governador da Judéia (26-36 d.C). Quanto ao dia da morte de Jesus, podemos considerar uma
sexta feira, o dia da “preparação, isto é, a véspera do sábado” (Mc 15:42). Segundo Puig,
(2010), a dificuldade de harmonizar os dados que tanto o evangelho de João como os
evangelhos sinóticos nos dão, parecem nos levar à um jogo de cara ou coroa. Porém,

Em suma, avaliando todos os dados em jogo, inclinamo-nos para a cronologia


proposta pelo evangelho segundo São João, mais consistente e coerente que a dos
evangelhos sinóticos. É muito provável que a morte de Jesus se situe na sexta-feira,
dia 7 de Abril do ano 30 d.C., segundo o calendário cristão, ou no dia quatorze de
Nisã, véspera de Páscoa do ano 3790 desde a criação do mundo, segundo o
calendário oficial judeu (PUIG, 2010, p.211).
13

Independente da data exata da morte, fato é que Jesus foi morto como um Galileu que
representou perigo para o Império e para o sistema político e religioso do Templo, pelo menos
na ótica das autoridades judaicas. A organização popular ao redor de um pregador, sem a
chancela do Templo, com ideias tão estranhas, foi vista do mesmo modo como sempre são
vistas as ações de populares por aqueles que estão vinculados ao poder: com desconfiança e
hostilidade (DA SILVA, 2006, p.77). Jesus era um líder popular, feitor de atos
extraordinários, crítico do sistema religioso vigente, proclamador de um reino de Deus para os
mais humildes, e principalmente, Galileu.

És tu também da Galiléia? Examina, e verás que da Galiléia nenhum profeta surgiu


- João 7:52
14

2ª PARTE – É JESUS, DE NAZARÉ, DA GALILÉIA.

Nessa parte do trabalho iremos olhar com um pouco mais atenção para o local da
infância, juventude e amadurecimento de Jesus, buscando encontrar apontamentos para
fundamentar uma tentativa de compreensão do messianismo sofredor característico do
Galileu. Se Jesus passou grande parte de sua vida na região da Galiléia, muito provavelmente
a região, direta ou indiretamente, detêm sua parcela de influência para com o característico
ministério, palavras e atitudes de Jesus de Nazaré.
A grande ligação que se desenvolve entre Jesus e a região da Galileia, local de grande
importancia para o seu ministério, e ambiente ao qual ele passa grande parte da sua vida, são
significativas para nossa compreensão de sua personalidade e missão.
A Galiléia (grego: galilaia, hebraico: galíl, haggalíl, provavelmente “círculo”,
“distrito”), era uma região ao norte da Palestina, tendo a area superior ou norte com
caracaterística acidentada e montanhosa, sendo uma continuação da cordilheira do Líbano. A
parte do sul é formada por campos com suaves colinas as quais se elevam a uma altura de 457
metros e são frequentemente interrompidas por planícies (MACKENZIE, 1983, p.371).
Richard A. Horsley, no prefácio do seu livro Arqueologia, História e Sociedade na
Galiléia (2000), faz um interessante comentário sobre a importância de se estudar esta região:

Há vinte e cino anos [...] os arqueólogos Eric Meyers e Jim Strange [...]
concentravam suas pesquisas sobre a Galiléia e, inclusive, sobre aldeias localizadas
na alta Galileia. Na época ninguem mais entre os arqueólogos e os estudiosos de
textos compreendia por que a Galiléia poderia ser tão importante. [...] Foi há cerca
de dez anos, através de estudos minuciosos com Burton Mack, que cheguei à
conclusão de que teria sido perfeitamente possível haver diferenças regionais
significativas entre a Galiléia e a Judeia, e também diferenças de classe entre as
pessoas comuns (galileus e judeus) e a elite herodiana e sumo sacerdotal em
Jerusalém (HORSLEY, 2000, p 5).

Para Horsley, durante muito tempo, tanto a arqueologia, como os estudos textuais
proveniêntes da região da Palestina antiga, de forma muito simplista, interpretaram as
informações sobre a Galileia de acordo com o paradigma padrão de “judaísmo”, “palestina
judaica” ou “eretz Israel”, mantendo a forma pelo qual eram anteriormente entendidas as
informações oriundas da Galiléia ou sobre a Galiléia. Sendo assim, segundo ele, mesmo
textos e artefatos que eram procedentes da Galileia foram simplesmente assimilados como
15

evidências para um “judaísmo” essencial (2000, p.13). A crítica do autor era de que muitos
detalhes que eram característicos da Galileia, ou que apontavam para esta região, eram
ignorados ou interpretados sem se dar o devido valor ao contexto geográfico e social da
própria região da galiléia. Grande parte destas interpretações foi oriunda da maneira de se
enxergar o judaísmo como sendo singular, quando, na verdade, o mais correto seria falarmos
de judaísmos, no plural.
Para ele, mesmo com a descoberta de grandes diferenças entre as regiões dentro da
Galiléia, achados procedentes desta região ainda eram agrupados com dados de outros lugares
para depois serem estudados e verificados por tópicos (HORSLEY, 2000, p.14). Mesmo após
o crescimento e a observação de consideraveis diferenças entre as regiões, e no geral, entre a
Galiléia e outras partes da região da Palestina do primeiro século, “a Galiléia ainda estava
incluída na categoria “judaísmo”, segundo o paradigma padrão” (HORSLEY, 2000, p.14).
Dessa forma, nem a Arqueologia, nem os estudos textuais se deram conta de que o
emaranhado de informações provenientes da Galileia poderiam formar um quadro específico e
distindo desta região.
A Galiléia mantinha certas caracteristicas que a diferenciavam das demais regiões da
Palestina, principalmente da região da Judeia, onde se encontrava Jerusalém. Possuia uma
população diferente, que demonstravam habitos diferentes em relação aos judeus de outras
partes. Por muito tempo se imaginou que Jesus teria tido problemas em Jerusalém com a elite
religiosa simplesmente por culpa de sua fala crítica e controversa para os padrões religiosos
da época. Podemos observar três aspectos relativos a religiosidade na galileia, apresentadas
por Da Silva (2006), citando Theissen/Merz (2002).

A primeira em relação à devoção ao Templo, manifestada ate mesmo na hostilidade


para com ele. A segunda observação feita por eles é em relação à terra, que eles
consideram propriedade propriedade de Deus e concessão ao seu povo, e abominam
qualquer intervenção romana nesse direito divino. Finalmente há que ser assinalada
a atitude da população da Galiléia em relação a Torá, que era de fidelidade. “A
halacá farisaica (que tinha expressões mais estritas e mais liberais) dificilmente
predominavam na Galiléia no tempo de Jesus” (THEISSEN/MERZ, 2002, p.199
apud DA SILVA, 2006, p.71).

Entretanto, graças às pesquisas feitas nos ultimos anos, muito mais informações foram
buscadas que resultaram em uma visão de um cenário muito mais crítico para justificar essa
certa indiferença para com a pessoa de Jesus no território de Judá.
Um exemplo destas diferenças pode ser compreendido no uso constante da língua
nativa na região da galiléia. Horsley, em relação ao uso da língua nativa, afirma que por culpa
16

de alguns pressupostos (errôneos), afirmava-se que somente a alta cultura exigiria de seus
adeptos uma lealdade linguistica, vinculando-os muitas vezes a certos interesses religiosos e
ou políticos. Dessa forma, imaginava-se que a dicotomia seguia o modo simplista de “padrão
judaico versus helenístico, língua e cultura bíblica em contraste com a língua e a cultura
grega” (2000, p.152,153). Se uma língua também pode ser considerada como transmissora de
cultura, o aramaico, quando muito, era relegado a um meio de comunicação que não exigia
nenhuma lealdade do falante.
Porém, segundo Horsley:

[...] a resistência popular ao domínio de Roma e a seus dependentes precedeu o


aparecimento da resistência no nível literário, pelo menos na Galiléia. Essa
resistência popular, além disso, parece ter fincado suas raízes em tradições culturais
israelitas e em outras tradições galilaicas. E, dado o concenso de que o aramaico era
a principal língua falada na Galileia, então essas tradições eram transmitidas em
aramaico e também em hebraico (HORSLEY, 2000, p.153).

O autor também faz referência ao mundo literario rabínico antigo e diz que ele nos
lembra frequentemente sobre as diferenças regionais entre galileus e judeus. Segundo
Horsley, dado que a Galiléia passou do domínio do estado-templo só bem no fim do século II
a.C., pode nao ser surpresa que os galileus eram acusados de “ignorância” com relação às
ofertas elevadas e “às coisas oferecidas aos sacerdotes ”. Também nos diz que “Com relação a
diversas questões, como casamento, medidas, posse de terras e observância do sábado e das
festas, os costumes e práticas na Galiléia eram diferentes dos da Judéia” (2000, p.153).
Outro detalhe interessante apresentado por Horsley é a existência de antiquíssimas
práticas e apegos religiosos nativos locais que persistiam na Galiléia. Diferentemente da
Judéia, que havia sido dominada pelo Templo e pelos sumo sacerdotes em Jerusalém durante
séculos, a Galiléia, ele ressalta, foi governada por uma série de regimes imperiais e nunca
desenvolveu um lugar sagrado central (2000, p.153).
Aqui cabe um exemplo para reforçar a nossa compreensão sobre a possível influência,
ou não, do templo de Jerusalém sobre judeus que viviam fora da Judeia. Afinal, o Templo de
Jerusalém e a sua classe religiosa tinham autoridade sobre todos os judeus? Vejamos a
situação de dois templos muito importantes para os judeus de uma época anterior e
contemporânea de Jesus.
Francis Schmidt, em seu livro, O pensamento do Templo – De Jerusalem a Qumran,
nos apresenta dados interessantes para observarmos a importância que os judeus tinham sobre
o templo de Jerusalém, na capital da Judeia.
17

O primeiro relato interessante é a historia do templo de Elefantina, no Egito. Os judeus


da guarnição dos reis do Alto Egito, certa vez, sofreram ataques dos sacerdotes egípcios do
deus Khnum, resultando na destruição do templo de Yahô (maneira que nomeavam Deus). O
ataque resultou na destruição total do templo. Impossibilitando dessa forma o oferecimento de
holocaustos ao Senhor do céu.
Este ocorrido se situa no ano 14 do reinado de Dario II, em 410 a.C. Schmidt (1998,
p.106) afirma que, quando do ocorrido, os sacerdotes de Elefantina escreveram a Yahohana,
sumo sacerdote da época, do Templo de Jerusalém, e aos notáveis da Judéia para lhes pedir
assistência. Sua carta, no entanto, ficou sem resposta.
Três anos depois, em 407, vendo seu santuário ainda em ruinas, os chefes da colônia
judaica escrevem novamente duas novas petições, enviando uma para o governador da Judéia,
outra para os samaritanos, Dalayah e Shelemyah, filhos de Sanbalat I. Quando o mensageiro
retorna, traz consigo uma mensagem comum dos governadores da Judeia e de Samaria,
anunciando uma ajuda conjunta com a administração egípcia para a reconstrução do templo,
“que a casa-altar do Deus do céu seja reconstruída como era antes” (Schmidt, 1998, p.107).
Assim como era anteriormente, o templo poderá servir de local para adoração ao Deus do céu.
Porém, um detalhe soa interessante, o silêncio do Sumo sacerdote de Jerusalém sobre o
ocorrido. Seria ele desfavorável a reconstrução do templo de Elefantina? Schmidt afima que a
resposta favorável do governador da Judeia e dos samaritanos é significativa do fato de que a
centralização do culto em Jerusalém, desejada pelo sacerdócio dessa cidade, ainda estava
muito longe de se impor universalmente (SCHMIDT, 1998, p.107).
O segundo caso foi o templo de Leontópolis. Após quase dois séculos e meio depois
do problema que vimos acima. No Egito, outro santuário judaico deveria ser erguido nestas
terras. Por volta de 165 a.C., Onias IV, filho do sumo sacerdote Onias III, recebeu de
Ptolomeu VI Filometor um terrítório em Leontópolis com o nome de Heliópolis, no Baixo
Egito. Este templo foi fundado em forma de torre. Detalhe interessante, em Leontópolis, os
sacrifícios só foram interrompidos em 73 d.C. quando o imperador Vespasiano o destruiu
(SCHMIDT, 1998, p.108). Durante todo o ministério de Jesus não era somente o templo de
Jerusalém que recebia os sacrifícios.
São muito interessantes todos esses dados se levarmos em coonsideração a visão
comum atual de uma suposta centralidade do templo de Jerusalém. Soma-se a essa
informação, segundo Horsley, que diversas referências literárias indicam um forte apego local
(galileu) ou mesmo regional ao monte Tabor. Ele cita Deuteronômios 33:19 como uma
referência textual que apresenta os escribas de Zabulon e de Issacar reunindo-se no monte
18

para “oferecer os sacrifícios de justiça”, além de ser o lugar onde Débora e Barac haviam
convocado essas tribos para a batalha contra os reis cananeus (Jz 4,6) (2000, p. 153). Podemos
compreender que o Templo de Jerusalém, ao contrário do que muitas vezes é disseminado,
não detinha tanta influência religiosa sobre outras regiões, e a sua autoridade para com outros
locais não era concreta, principalmente para os Galileus.
Porém, para além da aproximação ou não com o Templo sagrado de Jerusalém, existia
uma forte tradição cultural israelita na Galileia. Um fator muito interessante para a identidade
galilaica. Horsley afirma que:

Uma vez que tenhamos consciência das diferenças regionais e de classe entre os
galileus e os círculos governantes e escribas em Jerusalém, incluindo a diferença
entre a forma escrita e a forma oral das tradições culturais que constituíam um
aspecto dessas diferenças, porém, as tradições israelitas não podem mais ser
discutidas simplesmente em termos de “escritura” ou “lei” (HORSLEY, 2000,
p.154).

O autor vai lançar mão da distinção que costumeiramente os antropólogos fazem uso
para distinguir a “grande tradição” e as “pequenas tradições”. Ele explica que, uma sociedade
pode desenvolver tradições culturais em dois níveis: as tradições da origem e da prática
costumeira continuam como uma tradição popular cultivada oralmente nas aldeias, enquanto
os especialistas codificam essas mesmas tradições numa forma padronizada e centralizada
como uma tradição oficial, que é cultivada oralmente, mas talvez, também reduzida à forma
escrita. Estas seriam as tradições que surgem no meio do povo. Dentro da cultura brasileira,
podemos usar o seguinte exemplo para clarear um pouco mais: Um modo antigo de preparo
da feijoada poderia ser transmitido de mãe para filhos e netos, suponhamos, desde os períodos
coloniais. Sem escrita, apenas como tradição familiar, de geração em geração, de modo oral.
Entretanto, a mesma feijoada poderia ter sido aprendida pelas classes altas, letradas, e então,
organizada em livros de receitas, com temperos e métodos de preparos padronizados. Talvez,
com o passar dos anos, teríamos acesso somente a feijoada da classe alta, por culpa, muitas
vezes, dos livros que serviram como registro e sobreviveram ao tempo. Todavia, jamais
poderíamos subjulgar a forma de preparo aprendida de forma oral, através da tradição, ou
simplesmente negarmos que elas um dia existiram, somente porque aqueles que viviam nos
meios ao qual o prato foi desenvolvido eram iletrados.
Seguindo o exemplo desta distinção entre tradição oficial e tradição popular, a
compreensão desta realidade dentro da cultura galilaica pode nos ajudar a explicar a situação
desta região. Segundo Horsley, com frequência tem sido apontado em estudos, sobre a
19

literariedade e da oralidade, que as lembranças das tradições de um povo são muito mais
fortes entre as culturas orais do que entre as sociedades altamente letradas (2000, p.192, nota
de rodapé). Em relação ao messianismo, como vamos ver a seguir, Scardelai também deduz
que na Judéia ocupada do primeiro século a crença messiânica não estava ainda estabelecida,
mas em pleno desenvolvimento “por meio de tradições orais populares” (Scardelai, 1998,
p.36). Se expandirmos essa realidade para a Galiléia, isso pode nos apontar para um mundo
completamente inexplorado. Se a cultura, crença e modo de vida poderiam ser transmitidos de
forma oral, nos basear em escritos e literatura para justificarmos a existência, ou não, de um
modo de pensar e entender, pode nos gerar uma compreensão errônea do passado, e neste
trabalho, em uma errônea compreensão do messianismo de Jesus.
Mas então, o que seria transmitido por essa forte corrente traditiva oral nos territórios
da Galiléia? Para Horsley (2000, p.154), embora alguns habitantes das aldeias galilaicas
possam não ter sido de ascendência israelita, a maioria dos galileus deve ter sido descendente
das tribos israelitas do norte. Sob esta informação, um dado interessante seria o próprio
significado do nome de Jesus de Nazaré e de seus irmãos, no contexto da Galiléia do século I.
Segundo Meier, não seria por acaso que, tanto ele, como toda a sua família possuissem
nomes que rememoram os patriarcas, o êxodo do Egito e a chegada à terra prometida: seu pai
era José, nome de um dos doze filhos de Jacó/Israel e progenitor de duas das doze tribos,
através de Efraim e Manassés; sua mãe Maria, Míriam em hebraico, nome da irmã de Moisés;
seus quatro irmãos, Tiago (James), José, Simão e Judas homenageavam o patriarca que gerou
dos doze filhos/tribos de Israel (Tiago/James=Jacó) e depois três dos doze filhos (Josef=José,
Simão=Simeão e Judas=Judá) (MEIER, 1992, p.207).
Horsley também diz, “embora vivendo sob uma série de governantes imperiais
estrangeiros, tradições israelitas, como as do êxodo/páscoa, aliança mosaica (incluindo a
observância do sábado), circuncisão e histórias de Elias, teriam sido cultivadas nas
comunidades camponesas da Galiléia” (HORSLEY, 2000, p.154). Enfim, quando os
asmoneus incorporam a Galiléia à jurisdição do estado-templo de Jerusalém, os galileus já
estavam vivendo de acordo com as tradições e costumes que nasciam da mesma herança
israelita das “leis dos judeus” que constituíam o código oficial desenvolvido em Jerusalém.
Horsley, fazendo referência a herança israelita como tradição popular cultivada nas
aldeias da Galileia, nos apresenta um ponto interessante a ser analisado. Segundo o autor, a
importância das tradições israelitas nos evangelhos sinóticos, especialmente nos ditos
sinópticos da fonte Q e em Marcos é uma forte referência da força traditiva da cultura
galilaica. Jesus aparece como um profeta como Moisés e Elias (Mc 4-9), Jesus proclama e
20

institui a renovação de Israel (Lc/Q 13:28-29; 22:28-30), revigora o ensinamento da aliança


mosaica (Lc/Q 6:20-49) e principalmente, articula profecias contra o Templo e o sumo
sacerdócio, à semelhança dos profetas israelitas anteriores (Lc/Q 3:34-35; Mc 12:1-9; 13:1)
(2000, p.155).
Como visto anteriormente, a ligação com o Templo de Jerusalém não era unanime
para todos os judeus de várias partes da região palestinense e fora. O povo Galileu não era
vinculado, como se pensava, ao Templo de Jerusalém, tendo nunca desenvolvido um lugar
sagrado central. Todas estas informações nos são essencias para a compreensão da
característica messiânica de Jesus dentro de um parametro não muito trabalhado
anteriormente, o das diferenças entre os galileus e os judeus.
Até certo ponto se imaginava que o judaismo encontrado em Jerusalém, capital da
Judeia, transmitidos e interpretados pelos grupos religiosos da capital, simbolizava e
representava, também, a forma como as palavras e a própria religião judaica era
compreendida em outras partes da Palestina do século I, inclusive a região da Galiléia.
Conforme observamos, existiam grandes diferenças entre a cultura judaíta (natural da Judeia)
e as demais culturas judaicas vizinhas, principalmente a galilaica. Culturas estas visíveis na
forma de pensar a crença, na importância dada ao Templo e nas histórias populares
transmitidas de forma oral.
Essas possíveis diferenças não eram (e não são) consideradas em muitas análises feitas
em relação à pessoa de Jesus. Costumeiramente se interpreta as falas e práticas de Jesus a
partir da visão de um Judaismo apenas, no singular. Como se o fato deste ter nascido e sido
criado na Galiléia não surtir diferença alguma para interpretar a sua possível visão judaica
oriunda dos arraiais galileus. Seguindo essa lógica, Horsley (2000, p. 157), diz que, como a
Galiléia foi o local onde o movimento de Jesus começou e no qual os círculos rabínicos se
estabeleceram, grande parte da importância histórica da Galileia advém do fato dela ser o
contexto desses movimentos que resultaram em religiões históricas mundiais. E prossegue,
dizendo: “pode-se conjecturar que os habitantes da Galileia nos tempos do segundo templo
recente, em sua grande maioria, eram descendentes dos israelitas, embora indicações sejam
certamente indiretas. Jesus e os primeiros integrantes do seu movimento, naturais de aldeias
como Nazaré, Caná, Cafarnaum e Corazim, deviam ter suas raízes profundamente firmes nas
tradições israelitas” (2000, p. 162).
Essa parte do trabalho nos serviu para analisar as possíveis diferenças entre Galileus e
Judeus no tempo de Jesus. A obervancia da forma como compreendiam a religião, a adoração
21

no Templo, a obediência da Lei e ao modo como transmitiam suas histórias religiosas, nos
garante uma melhor visão da realidade contextual de Jesus.
É dentro desses meios culturais, sociais e econômicos, particulares de cada região da
antiga Palestina, que emergirá as mais variadas faces messiânicas do primeiro século.
Precisamos entender o que era a crença no Messias, o Cristo, o ungido. Existia uma unica
crença em um libertador, líder, profeta ou sacerdote, que em um determinado momento
surgiría para libertar o povo, ou seria melhor falarmos em crenças, no plural?
22

3ª PARTE – MAS VÓS, QUEM DIZEM QUE EU SOU? – Mt 16:15

3.1 - TERMINOLOGIA: MESSIAS

O conceito Messias remete ao verbo hebraico masah, que significa, em sua acepção
original, “passar sobre, untar”. O verbo designa o procedimento de derramar e passar o óleo;
indica a unção nos contextos religiosos e teológicos10. Segundo, Fabry; Scholtissek, (2008,
p.23), no Antigo Testamento, ungiam-se os escudos para a batalha, os pães ázimos, estelas e,
no âmbito cultural mais estrito, a “tenda do encontro” com seu espaço interno sagrado, o altar,
a bacia e outros utensílios sagrados (Ex. 40). Foram ungidos Aarão e o seus sacerdotes (Ex
28ss), mas, sobretudo, os reis: Saul (1Sm 10:1; 24:7), Daví (1Sm 16:12s), Salomão (1Rs
1:34ss), Hazael (1Rs 19:15), Joás (2Rs11:2) e Joacaz (2Rs 23:30)(2008, p.23).

O significado da unção supunha, no Antigo Testamento, “comunicar ao personagem


certas qualidades sobre-humanas e elevá-lo acima dos outros” 11
. Podemos compreender que
no Antigo Testamento o termo Messias indica um ritual de unção atestado para reis, sumos
sacerdotes e profetas. O termo aparece como adjetivo para Kôhen, “sacerdote”, e o designa
como ungido (por exemplo, Lv 4:3.5.16; 6:5). O particípio nominal “o ungido” se conecta,
quase que exclusivamente, a Javé como “ungido de Javé” (1Sm 24:7) ou designa o rei, o
sumo sacerdote (Dn 9:26), um profeta (1Sm 2:10.35) (FABRY e SCHOLTISSEK, 2008,
p.24). Em geral, a palavra messias durante os tempos antigos era indistintamente aplicada a
qualquer pessoa que fosse ungida com óleo (SCARDELAI, 1998, p.21).

Esta relação exclusiva, de acordo com Fabry e Scholtissek, entre o ungido e Javé, logo
causou a acumulação de noções da aliança com privilegiada legitimidade (a aliança de Davi;
2Sm 23:1.5). Essa relação privilegiada com Deus tornou-se paradigma da concepção do tipo
de um homem eleito por Deus e a essência do ser-homem, em geral, até a concepção da noção
da semelhança a Deus (2008, p.25). Estas pessoas, em função muitas vezes relativa à
mediação que exerciam, gozavam de proteção e autoridade concedidas por Deus, que as
colocava em condição humana especial, resguardadas para essa função. Todos os registros
para figuras ungidas não se referem a redentores futuros, mas a pessoas históricas
(SCHMIDT, p.295).

10
FABRY, Heinz-Josef; SCHOLTISSEK, Klaus. O Messias. São Paulo: Loyola, 2008, p.23.
11
SICRE, José Luís. Profetismo em Israel, p.450. In: DA SILVA, Sydnei Farias. Autoconsciência messiânica de
Jesus. Escola Superior de Teologia. São Leopoldo, 2006, p.11.
23

Sydnei Farias da Silva nos diz que a ideia de um rei herdeiro de Deus que governa o
seu povo está presente em muitas passagens do Antigo Testamento, principalmente nos
salmos:

Eu, porém, constituí o meu Rei sobre meu santo monte Sião. Proclamarei o decreto
do SENHOR: Ele me disse: Tu és meu filho, eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei
as nações por herança e as extremidades da terra por tua possessão. (Sl 2:6-8) (DA
SILVA, 2006, p.11).

Devido aos reinos vizinhos possuirem líderes que os representavam, nas guerras e
batalhas, surgiu no meio do povo de Israel, graças ao processo de sedentarização, o forte
apelo popular para a escolha de um representante aos moldes dos povos vizinhos. Esse
momento pode ser observado no primeiro livro de Samuel, capítulo oito. “A teocracia direta
cedeu lugar à teocracia representativa. Em vez de Deus reinar diretamente, é o seu
representante quem reina. Assim, a ideologia real, típica do antigo regime, em Israel toma
forma de um processo de mediação entre Deus e o povo por meio do rei que é tido como um
represente de Javé. Por este motivo o rei deve ser ungido (I Sm 10:1-8)” (DA SILVA, 2006,
p.12).

Davi é o primeiro rei a ser ungido na perspectiva de uma aliança eterna (2Sm 23:1-
5) e é declarado “filho de Deus”. Desenvolveu-se, assim, em Israel a concepção de
que a monarquia era uma concessão divina não somente para a pessoa de Daví, mas
era extensiva à sua dinastia (DA SILVA, 2006, p.12).

Entretanto, para além das suas origens etimológicas e culturais no antigo testamento, a
designação “Messias”, relacionada originalmente com um fenômeno, como vimos no Antigo
Testamento (o de ungir um rei, lider ou profeta), desprendeu-se no decorrer da história quase
completamente de sua origem etimológica e designa geralmente um salvador com qualidade
humana e ao mesmo tempo divina e transcendental (FABRY e SCHOLTISSEK, 2008, p.13).
Em outras palavras, o termo surge possuindo um determinado significado, todavia, através de
processos históricos específicos vai ganhando outras interpretações, chegando ao primeiro
século como uma ideia de líder, libertador, rei, profeta ou sacerdote, todos futuros, com
caracteristicas diferenciadas aos demais.
Dessa forma, podemos compreender que o termo “Messias” surge como uma simples
atitude de ungir líderes, reis e profetas. Conforme novas situações ocorreram, como a
insatisfação com a monarquia, o surgimento dos profetas como porta-vozes do povo e dos
menos favorecidos, o exílio e o pós-exílio, o povo e a classe religiosa buscaram novas
24

interpretações para as questões futuras de todo o Israel. Com o retorno do exílio, grande parte
do povo, agora possuindo suas caracteristicas próprias, culturas e costumes, separados entre
Sul e Norte, irão desenvolver ideias messiânicas para expressarem seus anceios futuros em
relação à vida de opressão que viviam, hora pelas mãos dos estrangeiros, hora pelas mãos dos
próprios governantes. Com o passar dos anos, a opressão e a exploração por parte dos
dominadores não cessaram, sendo natural que a forte esperança de intervenção divina ainda
fosse esperada por muitos dos remascentes de Israel (Galiléia) e Judá no primeiro século.
Donizete Scardelai, em seu livro Movimentos messiânicos no tempo de Jesus, diz:

O desejo de restauração política e religiosa de Israel exigia medidas urgentes. Um


vasto e complicado quadro de esperanças messiânicas emerge desta situação social
em Israel logo após a Guerra dos Macabeus (165 a.C.)(SCARDELAI, 1998, p.5).

Os movimentos messiânicos podem ser caracterizados como uma “clara reação de


grupos marginalizados e dominados, desejosos de libertação; ansiosos por uma transformação
de sua realidade de sofrimento. A carência, e a superação dessa, como sendo o “ponto”
gerador de tais movimentos” (GOMES, 2011, p.51). É logo após a Guerra macabaica que
emergirá em Israel um período longo e duradouro de expectativas messiânicas, chegando ao
primeiro século da era comum, no contexto de Jesus. “Um número significativo de figuras e
líderes populares emerge desse cenário conturbado. Convulsões sociais agudas ganharam
forma a ponto de culminarem em confronto direto...” (SCARDELAI, 1998, p.6).

3.2 – O MESSIANISMO SOFREDOR DE JESUS


E lhes disse: “Está escrito que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos mortos no
terceiro dia...” Lucas 24:46.

Como observamos no decorrer deste trabalho, Jesus possuia um vínculo muito forte
com a região da Galiléia. Esse vínculo pouco foi observado nas leituras bíblicas em relação à
sua característica messiânica. Isso tudo, devido em grande parte, a ideia de um suposto
judaismo uniforme e singular. Algo que, em relação a Galiléia e Judeia, como vimos, não
existia.
Como afirma Scardelai, a sociedade judaica sempre teve uma profunda ligação com a
ideia monarquica. O pensamento de que através da monarquia a sociedade poderia alcançar o
25

meio mais eficiente para estabilidade social, política e nacional, transformou essa ideia em
coluna sobre a qual a religião e as doutrinas judaicas se desenvolveram (SCARDELAI, 1998,
p.32).
[...] logo no início do Segundo Templo a sociedade teocrática israelita já demostrava
indícios da enorme relevância que os anseios por uma dinastia davídica passaria a
exercer na cultura judaica (SCARDELAI, 1998, p.32).

Entretanto, resta a questão, qual sociedade judaica? É nítido que a comunidade judaica
da Judeia, pelo menos a classe dominante, e a elite religiosa, sempre objetivaram uma
monarquia. E essa incessante ideia de retorno monarquico, possivelmente, influenciou a ideia
de um Messias-rei da linhagem de Daví. Nada mais natural.
Porém, seguindo o argumento de Horsley, acreditar que o povo do Norte, portanto,
Galileia, compartilhava também de tal sonho monarquico, pode parecer querer ignorar,
exatamente, o que vimos na parte anterior deste trabalho: a identidade cultural local. Segundo
ele:

Historiadores e arqueólogos bíblicos frequentemente escrevem em linguagem


ardente a respeito da “monarquia unida” centrada em Jerusalém, do seu arquiteto
Davi, protótipo do Messias, e do sabio Salomão, construtor do glorioso Templo,
como se isso tudo representasse todo Israel. Essa reconstrução caritativa se torna
então a base para o pressuposto de que os galileus no tempo de Jesus eram
inquestionavelmente leais a Jerusalém, a seu Templo e à sua Torá. A literatura
bíblica em si, porém, não deixa nenhuma ilusão a esse respeito (HORSLEY, 2000,
p.26).

Horsley usa tais palavras para rememorar fatos do passado histórico de ambos os
povos, do sul e do norte, que influenciaram e muito o pensamento Galileu. Quando as receitas
tributárias se mostraram insuficientes para pagar as madeiras e o conhecimento tecnologico de
Hiram, rei de Tiro, o rei Salomão simplesmente deu a Hiram “vinte cidades da região da
Galiléia”, juntamente com a população que as habitava, naturalmente. Não é de se admirar
então, afirma Horsley, que as dez tribos do norte de Israel se rebelassem contra a monarquia
davídica depois da morte de Salomão (HORSLEY, 2000, p.27). Todo esse trabalho forçado
tornou a situação destes povos semelhante à escravidão sob o faraó egípcio. Essa revolta
contra o domínio de Jerusalém foi o início de mais de oito séculos de divergências entre a
história da Galileia e a história da Judeia (HORSLEY, 2000, p.27). Se algum “judaísmo”
desenvolveu a ideia de um Messias-rei, com certeza não foi o judaismo do norte. Se
monarquia, neste contexto, trazia lembranças boas, com certeza não para os galileus.
26

Se olharmos para o antigo testamento o povo do sul tinha muito mais motivos para
acreditar que a monarquia poderia resolver os seus problemas. Situação muito diferente para o
povo do norte. No norte, não foram os reis que ficaram eternizados nos contos populares, mas
sim os profetas. Quem critica o rei, o Templo, e representa o povo são os profetas. Como
vimos na parte anterior, de acordo com Horsley (2000, p. 154), tradições israelitas teriam sido
cultivas nas comunidades camponesas da Galiléia e transmitidas de forma oral. Tradições
estas que envolviam histórias como a tradição mosaica e histórias de Elias. Curiosamente, no
monte da transfiguração, são Moisés e Elias que fazem companhia à Jesus (Mt 17:3). Elias, à
proposito, teve um ministério marcado pela oposição ao sistema monárquico que oprimia e/ou
facilitava a exploração do povo (VILLAC; SCARDELAI, 2007, p.79). Também em relação a
ideia monarquica, o próprio Jesus aparenta questionar a crença davídico-messianica em Mc
12:35-37.

Jesus, ensinando no templo, perguntou: Como dizem os escribas que o Cristo é filho
de Davi?
O próprio Davi falou, pelo Espírito Santo: Disse o Senhor ao meu senhor: Assenta-te
à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés.
O mesmo Davi chama-lhe Senhor; como, pois, é ele seu filho?

De qualquer forma, Jesus não aparenta estar preocupado a questão messiânica-


davídica. Não é seu interesse se assentar em um trono. Não faz parte de sua identidade
regional galilaica. Segundo Da Silva, (2006, p.121; 134):

Os escribas viviam longe do povo, perto somente das pessoas que podiam pagar por
seus serviços. Jesus ao contrário, vivia entre os pobres e provinha de uma família
pobre. Aos escribas não interessavam um Messías marginal. [...] Jesus se dirige aos
doentes, aos pobres, aos famintos e aos excluídos da possibilidade de comunhão
com Deus, não em virtude de uma lei que considera uns dignos e outros indignos,
uns incluídos e outros excluídos. Jesus anuncia uma nova relação com Deus que não
se fundamenta no direito, mas na obediência incondicional.

O messianismo de Jesus era muito mais popular, profético e social, além de muito
mais sacrificial e sofredor. E onde poderíamos encontrar semelhanças deste messianismo com
outras ideias? Donizete Scardelai (1998) nos fala sobre uma tradição messiânica, registrada
pelo judaísmo rabinico, no final do período do Segundo Templo, sobre um Messias, distinto
do “filho de Davi”, conhecido como Filho de José.
Lima Junior diz que esse messias também era chamado de “Messias ben Efraim”, ou
de “Filho de José” ou “Filho de Efraim”, e que este deveria morrer para salvar Israel (2009,
27

p.38). Segundo ele, o Talmude12 Babilônico, Sukka 52ª, que normalmente é concebido como
a primeira referência ao messias filho de José na literatura rabínica, diz o seguinte:

E a terra pranteará, família por família à parte. A família da casa de Davi à parte e
suas mulheres à parte (Zc 12:12). [...] Qual é a causa do luto? Rabi Dosa e os
rabinos diferem. Um diz: “É por causa do Messias ben José que foi assassinado”;
[...] por isso é que está escrito: “e eles olharão para mim. Quanto àquele que eles
transpassaram, eles o lamentarão como se fosse a lamentação de um filho único;
eles o chorarão como se chora um primogênito (Zc 12,10) [...] Nossos rabis nos
ensinaram: O Santo, Bendito seja Ele, dirá ao Messias filho de Davi (que ele possa
se revelar o mais breve possível em nossos dias!): “Peça-me qualquer coisa e eu lhe
darei (Salmos 2) [...] Mas quando ele perceber conta de que o Messias Filho de José
está morto, ele dirá: “Senhor do universo, peço de você somente o dom da vida. 13

Scardelai nos diz que, a crença no filho de José poderia sim ser derivação emergente
da leitura de Zacarias 12:10-12: “Olharão para mim, aquele a quem traspassaram, e chorarão
por ele como quem chora a perda de um filho único, e lamentarão amargamente por ele [...]”,
mas, de toda forma, não seria nenhum exagero, inclusive, insinuar que a doutrina do segundo
messias, “sofredor”, “guerreiro” e “precursor” do filho de Davi atraía certo grau de interesse
já no século I da era cristã. Os rabinos, todavia, enfatizavam a vinda iminente do messias
imolado o qual, ao ser morto em batalha, precederia o messias filho de Davi (Scardelai, 1995,
p.71). Porém, também de acordo com Scardelai, a descrição desta figura esta sujeita a um
quadro muito variado e amplo, e seria difícil precisar as premissas sobre as quais repousa a
doutrina das expectativas desse segundo messias, filho de José (1995, p.67).
Lima Junior (2009, p.39), complementa e diz que, a escrita do Talmude só começou
nos séculos posteriores ao cristianismo, portando, a crença no Messias filho de José poderia
muito bem ter sido uma criação judaica a partir de Jesus para poder, assim, competir com o
cristianismo.
Um pouco mais trabalhada e documentada é a crença em um messias sofredor,
semelhante ao Servo Sofredor de Isaias 53:3-5. Segundo as interpretações de Israel Knohl,

12
Aramaico: Talmûd, “doutrina”. Nome de uma coleção de literatura rabínica judaica. O núcleo da literatura
talmúdica é uma coleção de opiniões rabínicas chamada Mishná; esta coleção foi feita pelo rabino Judá ha-Nasi
em 200 d.C. (MCKENZIE, J. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983, p. 905).
13
MITCHELL, David C. Rabbi dosa and the rabbis differ: Messiah ben Joseph in the Babylonian. Talmud. In:
AVERY-PECK, Alan J. (ed.). The review of Rabbinic Judaism. Ancient, medieval and modern. Vol. 9. Leinden:
Koninklijke Brill, 2006, p.77,83. In: LIMA JUNIOR, Francisco Chagas Vieira. “Que Efraim coloque o sinal...”
Messianismo catastófrico e as origens do cristianismo. Revista Orácula, 2009, p.38, (tradução do autor).
28

essa figura pode ser encontrada nos Manuscritos do Mar Morto14, referente à comunidade de
Qunram. Knohl, no seu livro O Messias antes de Jesus (2001), afirma que em alguns hinos
encontrados entre os Manuscritos do Morto, há referências a um Messias anterior a Jesus que
se descrevia de forma semelhante ao “Servo sofredor” que “trazia uma nova era, uma era de
redenção e absolvição, na qual não haveria pecado nem culpa.” Ideias estas muito audaciosas
que o levaram à rejeição e excomunhão pelos sábios fariseus encabeçados pela autoridade
judaica da época (KNOHL, 2001, p.16).
Knohl afirma que muitos autores diziam que Jesus não tinha se identificado com
personalidades possivelmente messiânicas como o Servo sofredor de Isaias 53, porque afinal,
a possibilidade de um messias que sofre não era comum nos circulos judaicos (2001, p.37).

Foi desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de tristeza e familiarizado com


o sofrimento. Como alguém de quem os homens escondem o rosto, foi desprezado, e
nós não o tínhamos em estima. Certamente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e sobre si levou as nossas doenças, contudo nós o consideramos
castigado por Deus, por ele atingido e afligido. Mas ele foi transpassado por causa
das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniqüidades; o castigo
que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados.
(Isaías 53:3-5)

Entretanto, segundo ele, alguns hinos messiânicos de Qumran lançam duvidas sobre
estas conclusões. Um destes hinos apresenta o personagem principal afirmando a sua
condição divina. Ele afirma ser superior aos anjos e se descreve como tomando assento no
céu, rodeado por eles, ao mesmo tempo em que se autodescreve como “desprezado e rejeitado
pelos homens”.
Quem, como eu, supor[ou todas as] aflições? Quem se compara a mim [na
resist]ência ao mal? (KNOHL, 2001, p.38).

Para Knohl, ele se identifica como o “servo sofredor” de Isaías. Essa combinação, de
condição divina e sofrimento, não aparecem na história da ideia messiânica antes destes hinos
(KNOHL, 2001, p.37). Knohl traz no seu livro outro exemplo, um hino que se encontra dentro
do documento nomeado de “Pergaminho de Ação de Graças”. Esse hino esta escrito em
primeira pessoa e diz assim:

[Quem] foi desprezado como [eu? E quem] foi rejeitado [pelos homens] como eu?
[E quem] se compara a m[im na resistência] ao mal?

14
Também conhecidos como Manuscritos de Qumran. São textos que foram descobertos por dois pastores
beduínos, na primavera de 1947, em grutas próximas de uma encosta em que o Wadi Qumran se lança no mar
Morto (MCKENZIE, J. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983, p.761).
29

Quem é igual a mim dentre os anjos?


[Eu] sou o bem-amado do rei, um companheiro dos san[tos]. (KNOHL, 2001, p.28)

Os paralelos com a vida e sofrimento de Jesus não ficam por aí. Knohl também
apresenta outros textos, muitos deles com imensa semelhança com títulos outrora encontrados
nos evangelhos com relação a Jesus de Nazaré. Como por exemplo, o documento de Qumran,
4Q246, coluna 1, linhas 7-9, coluna 2, linha 1, escrito em aramaico e que representa as falas
de um vidente que se dirige a um rei. Após falar de um período de guerras, ele afirma,
contudo, que um novo rei surgiria posteriormente, e que todos os povos fariam paz com ele e
o serviriam. O texto diz:

Coluna 1

7 [Um outro-último rei surgirá e] ele [próprio] será grande sobre a terra.
8 [Os reis] farão [a paz com ele] e todos [o] servirão.
9 [ O filho do gran]de [Senhor], ele será chamado, e por seu nome será
cognominado.

Coluna 2

1 O filho de Deus ele será chamado e filho do Altíssimo o chamarão.


(KNOHL, 2001, p.98).

Lucas 1:32:
Ele será Grande, e será chamado Filho do Altíssimo.

Soma-se a esse exemplo, as informações apresentadas por Klaus Berger, em seu livro
Qumran e Jesus (1994). Berger nos diz que os textos de Qumran tornaram acessiveis um dado
interessante sobre os possíveis feitos do tempo messiânico. Ele afirma que já em Qumran e
não no Novo Testamento, acreditava-se que Deus, ou talvez o Messias, faria reviver os
mortos. Em Mateus 11:2, assim como em Lucas 7:22, é dito que estas seriam as obras de
Cristo. Resumidamente, ele assim as coloca para exemplificar melhor quais seriam estas
obras: os cegos recuperam a vista, os paraliticos andam, os leprosos são purificados, os surdos
ouvem, os mortos são ressuscitados e aos pobres é anunciado o Evangelho. Berger afirma que
esta lista de feitos provém de uma combinação de dois textos de Isaias (35:5-6) (cegos,
surgos, paralíticos, mudos) e Isaías 61:1 (pobres, aflitos e presos), em Isaias não se fala em
ressurreição de mortos (BERGER, 1994, p.89).
30

Ele apresenta os dados encontrados no manuscrito 4Q521 (fragmento 1, coluna 2), que
diz:
Céu e terra obedecerão ao seu Messias...(linhas 8-12) ele libertará os prisioneiros,
fará com que os cegos vejam e levantará os que foram derrubados. Então ele curará
os doentes e fará com que os mortos vivam e anunciará a boa-nova aos pobres. Ele
guiará os santos e os conduzirá como um pastor (BERGER, 1994, p.90).

Isto significa que os autores cristaos não foram os primeiros a ampliarem a sequencia
provinda de Isaías, e que, segundo esta expectativa, a ideia de que no tempo messiânico os
mortos voltariam a viver fixou-se em Qumran com a interpretação de Isaías. Berger diz que
estas tradições podem, provavelmente, terem sido transmitidas de forma oral (BERGER,
1994, p.90). Toda esta informação nos serve para compreender que a leitura messiânica de
Isaias 53, assim como, provavelmente também, a leitura de outros textos de maneiras
messiânicas, já era fruto de interpretações no período anterior a Jesus, e o detalhe, em
comunidades fora de Jerusalém ou dos círculos oficiais. Knohl diz que em vista destes fatos,
deveríamos considerar a possibilidade de a descrição de Jesus como uma combinação de
varias ideias messiânicas, como “filho do homem” e o “servo sofredor”, não ser uma invenção
posterior da igreja. Uma vez que os quatro manuscritos que contem os chamados hinos
messiânicos, podem ser atribuidos a um período entre 50 a.C. e o início da era cristã
(KNOHL, 2001, p.38).
Isto tudo nos possibilita enxergar um contexto muito diferente daquele que tinhamos.
Contexto este que apresentava uma realidade de interpretações rígidas, fechadas em nucleos
de sabios em volta do Templo apenas. Se na comunidade de Qumran interpretações como
estas foram desenvolvidas, é plausível buscar compreender se na Galileia do primeiro seculo
outras interpretaçoes semelhantes tambem ocorreram.
31

4ª PARTE – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos desenvolver uma visão diferenciada sobre a galileia e uma compreensão, da


possível relação, do messianismo sofredor com os resultados da pesquisa histórica de Jesus.
Sobre o Jesus histórico a pesquisa apresentou dados que o colocam dentro de um
contexto galileu e não judaíta. Sua mensagem crítica em relação a mediação do Templo e da
Capital Jerusalém, o apresentam como sendo um líder muito mais popular, reforçando, assim,
sua identidade galilaica. Por ser Galileu, possivelmente, o preconceito que sofreu, por parte da
elite religiosa de Jerusalém, se justifica.

Um judeu da área rural da Galileia que se apresentasse em Jerusalém durante as


grandes festas como um profeta possuidor de autoridade carismática, acima da lei e
do templo, poderia estar certo de despertar forte oposição das autoridades que
controlavam o templo, como dos doutos especialistas da lei, de qualquer facção.
Nesse sentido, Jesus desde o início se colocou à margem em face do sistema
estabelecido de Jerusalém.15

Sobre a Galileia demonstramos que os apontamentos feitos na primeira parte, sobre o


Jesus histórico, possuem respaldo, uma vez que o contexto social e religioso na Galileia era
diferente do contexto Judaico encontrado na capital Jerusalem, em Judá. A relação entre a
Galileia e a Judeia não era uma relação muito amigável, como se supunha. Essas diferenças
regionais desenvolveram na Galileia uma estrutura de pensamento diferente em relação ao
povo do Sul. A existencia de uma resistencia cultural, transmissão de histórias populares de
profetas do passado, demonstrou que a Galileia poderia sim ter desenvolvido uma rica cultura
que teria sido transmitida de maneira oral. A oralidade, alias, que era o meio usado para
transmitir tradições israelitas, como as do êxodo/páscoa, aliança mosaica, (HORSLEY, 2000,
p.154), podem aumentar as opções sobre o que/quais histórias eram transmitidas no norte de
Israel, na Galileia.
É partindo das considerações sobre a Galileia que apontamos para o Messianismo
sofredor. Demonstramos, nesta parte, porque Jesus, muito provavelmente, não teria se
vinculado a ideia messiânica-davidica, fazendo referencia a sua identidade israelita-galilaica
históricamente plausível. O messianismo de Jesus possuia características muito diferentes da
personalidade monarquica de um suposto messias-Rei. Sobre o messianismo sofredor,
apresentamos apontamentos de alguns autores sobre ideias messiânicas semelhantes que

15
MEIER, John P. Um Judeu marginal. V3. L.2, p.38. In: DA SILVA, Sydney Farias. Autoconsciência
messiânica de Jesus. Escola Superior de Teologia. Instituto ecumênico de pós-graduação em teologia. São
Leopoldo, Janeiro de 2006, p.56.
32

teriam sido desenvolvidas em um período anterior à Jesus. Se estas ideias foram


desenvolvidas em comunidades fora da chancela do Templo, podemos supor que Jesus,
estando na Galileia, poderia ter tido contato com essas ideias messiânicas de sofrimento, ou
ideias messiânicas com a chancela popular na galileia.
Uma vez que a tradição oral era existente na Galileia, e historias como a de Elias
circulavam pelas comunidades, leituras messiânicas populares de Isaias 53:3-5, sobre o
“Servo sofredor”, Zacarias 12:10-12 “Olharão para mim, aquele a quem traspassaram...”, e
Oséias 6:2 “Depois de dois dias ele nos reviverá; ao terceiro dia, ele nos ressuscitará...”,
poderiam, quem sabe, terem existido em meio as ricas tradições do norte. Toda esta questão,
no entanto, ainda necessita de mais pesquisas para sua comprovação. Porém, dependendo da
força que as histórias orais e tradições populares eram transmitidas na Galiléia, e
principalmente, o conteúdo dessas tradições, nos parece possível acreditar em tais suposisões.
Jesus pode ter sido fruto desses meios de tradições orais, compreendido a essência da
mensagem vetero-testamentária e se inspirado a reconhecer em si uma caracteristica
messiânica com uma identidade galilaica fundada em textos bíblicos específicos.
33

Referências Bibliográficas

DA SILVA, Sydney Farias. Autoconsciência messiânica de Jesus. 159 páginas. Dissertação


(Mestrado em teologia – Área de concentração: Bíblia). Escola Superior de Teologia - São
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MEIER, John P. Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico. Vol 1. Livro 1. Rio
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MEIER, John P. Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico. Vol 3. Livro 2. Rio
de Janeiro: Imago, 1992. In: DA SILVA, Sydney Farias. Autoconsciência messiânica de
Jesus. 159 páginas. Dissertação (Mestrado em teologia – Área de concentração: Bíblia).
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BERGER, Klaus. Qumran e Jesus. Uma verdade escondida?. Petrópolis/RJ: Vozes, 1994.

STEGEMANN, Ekkehard W; STEGEMANN, Wolfgang. História social do


protocristianismo. São Leopoldo, RS: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.

PUIG, Armando. Jesus – Uma Biografia. 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2010.

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Loyola, 1998.

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GOMES, Rita Maria. Jesus, O Messias inaudito. 120 páginas. Dissertação (Mestrado em
teologia – Área de concentração: Teologia Sistemática). Faculdade Jesuíta de Filosofia e
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