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ARTIGO ARTICLE 2103

Cuidado, “cavalo batizado” e crítica da conduta


profissional pelo paciente-cidadão hospitalizado
no Nordeste brasileiro

Patients’ complaints of verbal abuse by


health professionals during hospital care in
Northeast Brazil

Marilyn K. Nations 1,2


Annatália Meneses de Amorim Gomes 3

Abstract Introdução

1 Programa de Pós-
The current anthropological study focuses on A relação terapêutica exige competência em cui-
Graduação em Saúde
Coletiva, Universidade de the assessment by patients/citizens concerning dar pelo profissional e, simultaneamente, a au-
Fortaleza, Fortaleza, Brasil. the conduct of health professionals in a public tonomia e o “empoderamento” do paciente 1,2.
2 Harvard Medical School,
general hospital in Fortaleza, Ceará State, Bra- As habilidades relacionais fortificam o vínculo
Harvard University,
Boston, U.S.A. zil. From January to July 2005 we tracked 13 key entre ambos e a co-responsabilidade. A prática
3 Núcleo de Humanização na informants during hospitalization and ana- clínica, entretanto, é atravessada pela precária
Atenção e Gestão em Saúde,
lyzed their narratives of the experience. Accord- estrutura, gestão centralizadora, difícil acesso,
Secretaria da Saúde do
Estado do Ceará, Fortaleza, ing to our observations, patients develop defi- desorganização, tecnicismo e poder hegemônico
Brasil. nite opinions of the caregivers’ gestures and ex- da Biomedicina 3.
pressions during the entire process. In the health A mudança na conduta profissional está pau-
Correspondência
M. K. Nations professionals, patients appreciate the human tada na inclusão da subjetividade e das raízes so-
Departament of Social ability to express affect, to talk, and to include cioculturais do paciente 4. Isso porque o médico
Medicine, Harvard Medical
School, Harvard University,
them in clinical decisions, above and beyond the trata a patologia da doença, enquanto o paciente
641 Huntington Avenue, professionals’ technical skills. Patients criticize sofre a experiência de adoecer, expressa em for-
Boston, Massachusetts, aloof, cold, and rude attitudes by health pro- mas específicas de pensar e agir 4.
U.S.A 02115.
Marilyn_Nations@hms.
fessionals, whom patients compare metaphori- A formação acadêmica, todavia, não prepara
harvard.edu cally to “human quadrupeds”. They recommend o profissional para escutar os significados e sen-
an affective, empathetic, and ethical approach tidos do paciente, comprometendo a qualidade
and clinical communications backed by straight do cuidado 5,6. É preciso uma “tecnologia da in-
talk, friendly conversation, and respect for daily teração humana” que permita a visão política da
customs related to life in Northeast Brazil. We cidadania 7, o pensamento problematizador 8 e a
contend that this legitimate and critical voice ética do cuidado 9. Maior eqüidade de poder na
of the patient/citizen provides valuable clues for relação clínica exige integrar diferentes conheci-
transforming professional conduct, rehabilitat- mentos, respeitar a singularidade do paciente e
ing patients’ morale, and building a humane promover o protagonismo 10,11, tornando o tra-
hospital within a context of social inequalities. balho vivo e criativo 2.
Objetivamos analisar a relação do cuidado
Physician-Patient Relations; Humanization of sob a óptica do paciente internado em hospital
Assistance; Delivery of Health Care público, identificando as competências julgadas
indispensáveis na conduta do profissional.

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Métodos vação-participante. Ocorriam de forma flexível,


com algumas situações favorecendo uma técnica
De janeiro a julho de 2005, esta pesquisa antro- ou a outra. Foram guiadas, mas não limitadas,
pológica foi realizada num hospital geral público, por questões norteadoras: (1) conte-me como
selecionado aleatoriamente entre as duas insti- está sendo a sua permanência no hospital; (2)
tuições existentes em Fortaleza (população de descreva como foi para você ficar internado; (3)
2,2 milhões de habitantes), Ceará, no Nordeste descreva algum evento que o fez se sentir me-
brasileiro, contexto marcado pela crescente desi- lhor no hospital; (4) relembrando desde a chega-
gualdade econômica e segregação social; de 1991 da no hospital, conte-me o que poderia ser feito
a 2000, o distanciamento entre os 10% mais ricos para tornar a sua convivência mais humana; (5)
e os 40% mais pobres aumentou de 13,3% para tem algo mais a dizer sobre a sua passagem pelo
18,7% 12. hospital? Essas entrevistas prolongaram-se du-
Participaram 13 pacientes, quatro homens e rante toda a internação; a freqüência da coleta
sete mulheres entre 16 e 93 anos, selecionados foi determinada pelo princípio de saturação 15.
aleatoriamente: (1) identificação na chegada; Com o aparecimento de novidades – aquilo que o
(2) escolha do primeiro na fila do atendimento; paciente destacava – os intervalos entre as entre-
(3) inclusão de pelo menos um de cada setor vistas encurtavam. Em momentos oportunos, os
(Clínica Médico-Cirúrgica, Gineco-Obstétrica, pacientes foram incentivados a narrarem livre-
Neonatologia e Emergência); (4) tomada de ca- mente a própria versão dos acontecimentos no
sos diversificados. Foram excluídos pacientes instante em que ocorriam. Essa coleta prospec-
com transtorno psíquico e < 16 anos. A maioria tiva, na presença das pesquisadoras, principia-
(61,5%) é casada; 23,1% são solteiros; e 15,4%, se- va com uma frase ou pergunta desencadeadora:
parados. Na periferia de Fortaleza, reside grande “conte-me o que está acontecendo”, “como você
parte (84,6%), com 15,4% em outros municípios está se sentindo agora?”, situando o paciente em
do Estado. Quase a metade (46,3%) é analfabeta contato com seus sentidos. Com o aumento da
ou não completou o primeiro grau; 7,7% termi- confiança nas pesquisadoras, as narrativas acon-
naram o primeiro grau; e 46,1% estão cursando teciam espontaneamente. Finalmente, a obser-
ou concluíram o segundo grau. A maior parte vação-participante foi utilizada para mergulhar
(53,8%) é inativa economicamente. Mais de dois na realidade hospitalar, experienciando os acon-
terços (77%) foram internados pela primeira vez; tecimentos junto com o paciente. As entrevistas
e 23%, por 2 a 5 vezes. e narrativas foram gravadas e transcritas, produ-
Para situar os pacientes no seu universo de zindo um texto numeroso de 331 páginas, espaço
significação 13 e captar a experiência vivida da simples.
internação, criamos uma combinação de técni- Os dados foram analisados segundo a Análise
cas que nomeamos “O Percurso do Paciente”. Du- de Conteúdo 16. Após leituras repetidas das trans-
rante os primeiros três meses, utilizamos a ob- crições, emergiram 225 unidades de significação,
servação livre. Subseqüentemente, os pacientes agrupadas e codificadas em cinco temáticas, das
foram acompanhados desde a entrada até a alta quais, três – competência humana, participação
hospitalar. A periodicidade do acompanhamen- do paciente e competência técnica –, relevantes
to, de 7 horas a 60 dias, dependeu da permanên- à relação terapêutica, foram consideradas; 138
cia no hospital. O menor tempo seguido (7 horas) apreciações dos 13 pacientes sobre a competên-
foi uma biopsia uterina na clínica ginecológica. cia profissional foram identificadas. As outras
Percursos que duraram < 7 dias foram: um parto duas temáticas, estrutura/funcionamento dos
normal (dois dias), uma cirurgia estética vaginal serviços e imagem hospitalar, foram excluídas
(três dias), uma retirada de nódulo no dedo do pé desta análise. A interpretação transcorreu à luz
(três dias), uma cirurgia da tireóide (cinco dias) da antropologia interpretativa.
e uma pré-eclâmpsia (cinco dias). Durante du- O sigilo e o anonimato dos informantes foi
as semanas, acompanhamos um paciente com garantido; e o Termo de Consentimento Livre e
dores ósseas na clínica reumatológica (dez dias), Esclarecido, assinado, de acordo com Resolução
um parto de alto risco na Casa da Gestante (12 nº. 196/96 do CNS/Ministério da Saúde, Brasil.
dias) e uma cirurgia bariátrica (14 dias). Por > 1
mês, seguimos um paciente com leishmaniose
cutânea (30 dias), um parto prematuro no Projeto Resultados
Mãe Canguru (39 dias) e uma biopsia pulmonar
(45 dias). Durante dois meses, foi acompanhada O que importa
uma histerectomia.
Entrevistas etnográficas foram mescladas A habilidade do profissional de saúde mais re-
com narrativas 14 de momentos vividos e obser- levante na óptica do paciente internado é a

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CRÍTICA DA CONDUTA PROFISSIONAL PELO PACIENTE HOSPITALIZADO 2105

competência humana, referida em 60,2% das lhando segredos e ternura igual a um amigo do
138 apreciações. Saber cuidar da pessoa, não so- peito, amigo verdadeiro. A liga que os une é o
mente da doença, é crucial. Competência em ser amor.
afetivo, hábil em conversar e incluir o paciente Observamos, contudo, poucos gestos de cari-
na tomada de decisão constituem requisitos fun- nho – beijo no rosto, toquezinho nas costas e bar-
damentais. Embora menos freqüente (39,8%), riga, cafuné, dar as mãos etc., com uma exceção.
também é importante a competência técnica em Após dois anos à espera da cirurgia para reduzir
realizar procedimentos (Tabela 1). Apesar da di- o estômago, Mário, 42 anos, ficou alegre, pois seu
versificação dos casos, as fragilidades relacionais médico festejou junto o fim do sofrimento pela
desveladas se aplicam a todos os 13 casos acom- obesidade.
panhados. Estabelecer um elo afetivo exige um cuidado
genuíno: “ele é delicado, atencioso, cuidadoso e
Competência humana em ser afetivo cauteloso”. Trata o paciente com “educação, com-
preensão e respeito, deixa à vontade”. O profissio-
O paciente destaca como o cerne do cuidado nal robotizado é percebido: “é fechado, calado,
humanizado a relação com o profissional (27,5% desligado (...) só trabalha por obrigação (...) só o
das apreciações). Avalia pelo grau de proximi- ser profissional, sem sentimentos”. Um motorista
dade que o cuidador estabelece, ou não, com de ambulância reclama da autoridade medonha
o assistido. Julga um trato distante e frio como dos atendentes: “é preciso que esse pessoal gos-
desligamento afetivo. Saber aproximar-se e inte- te deles mesmos para dar amor ao outro. A gente
ragir delicadamente é a habilidade mais referida, quase sempre é humilhado!” O olhar acolhedor do
diferenciando um profissional humano de outro profissional é decisivo. Sem ele, o procedimento
“bravo, ignorante, ruim (...) que não é bondoso, é julgado inadequado: “o exame não prestou (...)
não tem coração ou até um cavalo batizado” – nem olhou para minha cara!”
pessoa bruta que dá coice em quem se aproxima; A liga carinhosa é mais forte entre os com-
a única diferença do animal cavalo é ser batizado panheiros da enfermaria, que rapidamente se
na igreja quando o é. Essa conduta desumani- tornam amigos do peito, repartindo objetos,
zada choca-se com a expectativa de ser tratado cuidados, conselhos e afetos. Observamos cenas
como gente. Pacientes esperam uma ligação cari- fraternas no cotidiano hospitalar: um visitante
nhosa, empática e honrada. penteando o cabelo de um paciente idoso, e dois
homens debilitados, em camas próximas, acari-
• Ligação carinhosa ciando um ao outro.

No encontro clínico, é valorizada a troca afetiva. • Elo de empatia


Um laço de amizade entre o profissional e o pa-
ciente é tão importante quanto elos com amigos Para o paciente, é essencial aflorar elos de empa-
na vida cotidiana. No círculo de amizade, o outro tia. Acontece quando o profissional percebe “a
não é alguém estranho, invejoso ou maldoso, mas necessidade da gente na própria pele”, demonstra
aquele em quem você pode confiar, comparti- compaixão e preocupa-se com o bem-estar do

Tabela 1

Freqüência de competências do profissional da saúde valorizadas pelo paciente no hospital público. Fortaleza, Ceará, Brasil,
2006. (N = 138 apreciações de 13 pacientes).

Competência do profissional da saúde n %

Humana
Atitudes e habilidades de ser afetivo com o paciente 38 27,5
Atitudes e habilidades de conversar com o paciente 28 20,2
Atitudes e habilidades de incluir o paciente em decisões clínicas 17 12,3
Subtotal 83 60,2
Técnica
Atitudes e habilidades de realizar procedimentos clínicos 55 39,8
Total de apreciações 138 100,0

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paciente. O Sr. Mano, 93 anos, internado há 35 Competência humana em conversar


dias para tratar sua ferida braba (leishmaniose
cutânea), criou laços empáticos com o médico Em segundo lugar (20,2% das apreciações), o pa-
que cuidadosamente trocou seu curativo: “Fi- ciente valoriza o profissional que conversa com
quei amigo dele, como se fosse de casa (...) É gente ele e sua rede social. É priorizada uma comuni-
boa!”. cação informal: uma “fala esclarecedora, conver-
A dificuldade de sentir o sofrimento do pa- sa amiga, conversa aberta, conversa jogada fora e
ciente inibe uma relação solidária. É desatenção, conversa sincera”.
descortesia e descaso não ver a pessoa no pacien-
te, como Júlia, 16 anos, após seu parto normal. A • Fala esclarecedora
enfermeira a deixou desprovida de absorventes e
calcinhas. A jovem mãe capengava pelo corredor, O paciente espera ser informado, minimizando
sua bata aberta atrás, expondo um lençol dobra- o medo do estranho mundo hospitalar. Sente-se
do que ela segurava entre as pernas (para conter uma barata tonta, perambulando pelos corredo-
o sangue), enquanto carregava o seu bebê. res, desorientada em busca de um esconderijo
seguro. Revela a importância das orientações,
• Ligação que “honra” como relata uma gestante de alto risco: “eu ima-
ginava chegar aqui (...) ter um profissional para
Embora pacientes destaquem que o cuidador conversar antes de entrar na sala de cirurgia, ex-
competente respeita a dignidade humana, pre- plicar tudo para mim [tenha calma (...) não vai
dominaram exemplos de familiares e não pro- doer (...) é um cortezinho (...) é uma coisa]”. Essa
fissionais. Por ser um filho de Deus, acreditam fala esclarecedora não se limita à patologia, mas
merecer um trato digno de gente! Portanto, engloba diversos assuntos: o nome do médico, o
têm a expectativa da eqüidade, não distinção efeito da anestesia, local da capela e as chances
de classe social, cor, raça, etnia ou credo reli- de curar-se.
gioso. O profissional não pode “querer ser mais Não basta transmitir a informação, é preci-
do que a gente (...) diante de Deus todos somos so esclarecer o sentido das palavras para que a
iguais!” Se essa dignidade é nutrida, o cuidador gente entenda. O uso do jargão técnico dificulta
é admirado. o entendimento. Sr. Cláudio, 76 anos, aguarda-
Gestos que afirmam a singularidade do pa- va angustiado, há dias, pela confirmação de um
ciente o valorizam como ser humano: cobrir a tumor maligno: “examina, mas não explica (...)
gestante com um lençol, respeitar os horários de porque o médico disse uma coisa ‘medicinal’ (...)
sono e facilitar visitas. Atitudes honradas respei- a gente não entende essas coisas, né? Só eles que
tam as crenças religiosas, incentivando a leitura entendem tudo”.
bíblica, reza do terço, visitas de pastores etc. A informação deveria ser transmitida livre-
O desrespeito é sentido quando o profis- mente, não guardada, negada ou encoberta.
sional desmoraliza, rebaixa, esnoba e o ignora: Observamos, no entanto, na emergência obsté-
“você fala, mas ele não responde (...) é como se a trica, uma jovem em trabalho de parto, há mais
gente não existisse”. Sente-se inferiorizado pelo de oito horas, sem saber se seria transferida e
policial armado que revista seus pertences. Des- para onde. O marido foi impedido de acompa-
preza-o quando a faxineira retira as pulseiras de nhá-la pelo segurança, que o retirou à força.
identificação dos bebês afixadas pelas mães na Ninguém informou o seu destino. Conseguir in-
imagem de Nossa Senhora na entrada da UTI formação da central, uma sala de vidro, fechada
neonatal, pedindo a salvação dos seus recém- e climatizada, é possível somente através de um
nascidos. microfone.
A conduta desqualificadora leva o paciente a Todos os profissionais deveriam prestar infor-
uma percepção pejorativa de si mesmo, “eu não mações. O leigo não distingue quem sabe o quê;
era nada ali dentro (...) a única coisa que impor- ele procura dicas para navegar dentro da insti-
tava era o prontuário”. Compara-se a algo sujo ou tuição. Vimos duas filhas apelando por notícias
objeto sem vida. Amélia, 25 anos, gestante com sobre a morte inesperada da mãe de 52 anos. De
pré-eclâmpsia, sentiu-se “como se fosse um pano acordo com a rotina do óbito, a assistente social é
de chão, pisada por todo mundo” quando a en- encarregada de dar a má notícia do falecimento,
fermeira confiscou sua carteira de identidade e não a equipe que lhe operou da tireóide. Aquele
negou o contato com a família. Outra se compara profissional que não informa é desqualificado
a um pedaço de carne: “corta a gente (...) bota como quem não sabe de nada.
aquela carne ali, leva pra acolá e pronto. Parece A falta de informação provoca insegurança.
um açougue!” A única saída é entregar-se nas mãos de Deus:
“Ele é quem sabe”. Mário, no aguardo dos exames

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para sua cirurgia, desabafa: “foi a ansiedade desse responsabilizar-se pelo outro. Elvira, 50 anos,
exame, a espera (...). A gente bota muita coisa na indigna-se com o atendimento médico: “ele é
cabeça, se sente perdido”. O desespero por infor- muito fechado, fica calado (...) só examina e vai
mação levou outra a implorar clareza: “apelo que embora. Disse assim: tá aqui seu exame, passe nu-
deixem tudo mais claro (...) têm muitas mulheres ma farmácia e pegue seu remédio, aí volte em dois
mal informadas!” meses!”

• Conversa amiga • Conversa “jogada fora”

Na conversa amiga, o profissional chama o pa- Pacientes valorizam uma conversação agradável,
ciente pelo nome, demonstra interesse, conhece despretensiosa, bem-humorada e sem objetivo
o seu problema e escuta o que ele tem a dizer. definido. A conversa jogada fora é um bate-papo
Estabelece uma interação humana com os sujei- descontraído, além do discurso técnico, monóto-
tos: “Como você está? O que está acontecendo?” no e sério, trazendo um ar de leveza à situação de
Evita a impessoalidade, cumprimentos formais dor e sofrimento. Esse papo legal acontece num
e perguntas dirigidas que induzem respostas au- clima de informalidade, como entre amigos de
tomáticas, pois sequer propiciam o diálogo: “Tá bar. Antes, durante e depois dos procedimentos,
tudo bem? Dormiu bem? Já se alimentou?” ajuda a relaxar, distrair e esquecer o momento
Tal como ocorre entre amigos, essa fala in- doloroso. São falas da política, da novela, do jogo
centiva, encoraja e dá segurança. Maria, 55 anos, de futebol, da chuva no interior, dos filhos e histó-
ressalta sua conversa amiga com a médica du- rias de vida. Em momentos tensos, o profissional
rante um exame invasivo: “fique calma, tudo vai competente alivia a preocupação, rindo, brincan-
dar certo, não se preocupe, farei bem rápido, deva- do e soltando piadas. Sônia nunca se esqueceu
gar, com cuidado (...). Ei, olhe para mim, vai pas- quando o seu bebê nasceu, e o obstetra brincou:
sar, eu sei que está doendo, mas vai passar”. Outra “é um garotão (...). Estou vendo os sacos balançan-
se sentiu segura, quando uma enfermeira pegou do!” E continuou cantando uma música carnava-
a sua mão no centro cirúrgico e exclamou: “olha, lesca: “balança o saco de confete e serpentina!”
tá tudo bem, Deus está com você, e nós estamos
entre os amigos”. • Conversa sincera
A fala hostil ou brutal, que reprova, ironiza e
agride, inibe a conversa amiga. Enquanto sofre O caráter ético na comunicação é de suma im-
dores do parto, uma enfermeira censura a ges- portância, pois o bom cuidador é “igual a um
tante sarcasticamente: “aqui não tem nenhuma padre que tem discrição”. Fala com sinceridade:
criança, não! (...) Você não é marinheiro de pri- “diz diretamente o diagnóstico para o paciente”.
meira viagem, não!” O profissional gritou com A omissão de informação provoca desconfiança.
o Sr. Mano, 93 anos: “você é muito frouxo, não Se o discurso do profissional é indefinido, efusi-
prestava para ser mulher, não!”. Tais expressões vo ou contraditório, o paciente suspeita que es-
produzem sentidos de rejeição, reforçando desi- tá sendo intencionalmente enrolado. Elvira, 50
gualdades na relação. anos, internada para uma biopsia uterina, sente-
se traída pela ginecologista, que não revelou a
• Conversa de “peito aberto” verdade, enganando as mulheres. A médica não
indica a cirurgia e a deixa angustiada: “por mais
O profissional competente conversa abertamen- que a médica quisesse me explicar o porquê de não
te, sem amarrar-se em assunto predefinido, dei- ter feito logo a cirurgia, eu não entendi (...) por que
xando todos à vontade: “aquilo que a gente vê foi tirando aos poucos?” Devido à superlotação e
e sente pode falar, ajuda 100% na recuperação”. espera de oito horas para se internar, outra pa-
Aproxima-se do paciente com o peito aberto, dis- ciente narrou sua descrença: “dizem que o leito
ponível a escutar, sem julgar o mérito ou impor está ocupado, que tá limpando, tá arrumando (...)
seu pensamento: “não rebate o que a gente diz e só iludindo a gente!”
não dá sua opinião”. É uma fala acolhedora, que
estimula o paciente a contar sua história de vida, Competência humana em incluir o paciente
pois “basta uma palavra, e a gente se sente moti-
vada!” Incluir o paciente nas decisões clínicas é uma
Na fala fechada, ao contrário, o profissional habilidade valorizada, embora com pouca fre-
fica de cara amarrada, rígida e tensa, sem abertu- qüência (12,3% das apreciações). Participar ple-
ra para dialogar. Há longo silêncio ou expressão namente, questionar procedimentos terapêuti-
monossilábica: vire, cuspa, tome, te vira, comu- cos, recusar cuidados e ter próximo os familiares
nicando a indisponibilidade para interagir ou são direitos admirados. É preciso o consentimen-

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to do paciente para realizar o protocolo e não • Fazer delicado


executá-lo contra a sua vontade. O obstetra de-
veria explicar o “que a gestante precisa fazer para O toque suave no corpo e cuidados que minimi-
facilitar o parto e a participação no nascimento”. zam a dor são apreciados. O profissional educado
O paciente desconfia do profissional ao sen- age com delicadeza, gentileza e cortesia em todos
tir-se excluído. Embora o Sr. Cláudio, 67 anos, os momentos: realizar exames, trocar curativos,
internado para uma biopsia pulmonar, não pu- aplicar injeção e entregar a bandeja de alimen-
desse opinar sobre o seu tratamento, vigiava a en- tação.
fermeira e o número de tubos de soro infundidos. Toda ação com bravura, rancor e violência
Uma diabética, 60 anos, não foi consultada sobre é reprovada como maus-tratos em represália ao
a amputação do dedo do pé; amedrontada, pro- paciente. Aline foi agredida pelo obstetra no exa-
curou outro cirurgião com quem decidisse junto. me pré-parto: “eu via o rancor na cara dele. Só por
que eu me encolhi (deu uma dor de contração) na
Competência técnica em realizar hora que ele botou o aparelho para escutar o co-
procedimentos clínicos ração do bebê. Então, ele disse: - Eu não vou mais
fazer esse exame, não! Mulher, você não deixa eu
Embora o paciente valorize a capacitação téc- ajudar, agora agüente as conseqüências!” Exem-
nica do profissional (39,8% das apreciações), o plos de trato bruto são explicitados: aplicar in-
faz atrás da competência humana (60,2% das jeção com força, servir comida com raiva e fazer
apreciações). As habilidades técnicas não são so- tricotomia brusca. Uma senhora reclama que o
mente mecanicistas, pois consistem em aspec- maqueiro a conduzia pelos corredores com mo-
tos subjetivos do fazer profissional. É insuficiente vimentos violentos, fazendo-a sentir-se despro-
suprir as necessidades cotidianas do paciente: tegida “apesar de estar sendo levada por aquele
dar banho, servir comida, trocar curativo, mudar homem tão forte (...) poderia ser mais delicado!”
a posição na cama ou aplicar a injeção na hora
certa. Ele aprecia como tais procedimentos são • Fazer sem prejuízo
feitos e o impacto no seu bem-estar. Ser presta-
tivo, realizar tarefas com gentileza e delicadeza, O agir habilidoso é aquele que não causa danos
sem causar danos, é a marca de um profissional e resguarda a segurança. Todo o esforço para
tecnicamente proficiente. cumprir o protocolo científico é insuficiente se o
paciente for prejudicado na intervenção. A enfer-
• Ser prestativo meira aplica uma injeção com a medicação pres-
crita, agulha descartável, no local indicado, mas,
Ser prestativo implica ter interesse e disponibi- se deixar uma marca roxa no braço, é julgada co-
lidade para cuidar. Essa prontidão para agir é mo despreparada. O dano é tatuado como prova
crucial nas emergências e situações estressantes. do prejuízo no corpo e na memória: o edema, a
O profissional “prestativo é sempre pertinho (...) cicatriz, a marca, a dor e o inchaço. Edna, 21 anos,
ajudando quando a pessoa necessita (...) com sua critica a habilidade técnica do anestesista pelo
atenção voltada para todos”. Ele acompanha, de número de furadas na aplicação da anestesia: “ai,
instante em instante, o paciente, o centro das su- eu não sei (...) não entendo a anestesia (...) mas
as atenções, independentemente do tipo ou grau será que ele precisava me perfurar três vezes?”
de enfermidade. Quem é prestativo toca o pa- O aprendiz, ou estudante, sem prática clínica,
ciente, é pontual e olha nos olhos: “verifica sinais prejudica mais facilmente. Faz medo quando alu-
de pressão, temperatura, pulso, olha o soro (...) nos em treinamento atuam no serviço. Suzana,
acompanha a gente (...) fica ao lado no momento 52 anos, espantou-se ao descobrir seu cirurgião
do parto (...) faz os procedimentos na hora certa aprendiz, pois já tinha sido agulhada por estu-
(...) dá apoio quando alguém chora”. dantes, 16 vezes, numa biopsia de tireóide.
Esse profissional prestativo foi raro nas nar- Para defender-se contra os danos, o paciente
rativas. Ouvimos queixas do funcionário ausente, vigia o profissional, ficando de olho nos mínimos
indiferente e desligado. Ausentar-se emocional- detalhes, sobretudo quando há risco de vida.
mente, estar nem aí para o paciente é visto com Cláudio, 67 anos, queria um espelho no centro
desgosto. Uma enfermeira na sala de pré-parto cirúrgico para acompanhar sua operação. Amé-
ignora a gestante: “não liga (...) fica na dela (...) lia, professora, 25 anos, desejava ver o rosto do
não se aproxima para ajudar, conversa em rodi- seu recém-nascido com medo de alguém trocar
nhas enquanto precisamos de cuidados (...) passa o bebê. Um informante denunciou “os maus-tra-
de um lado pro outro sem dar atenção”. Um técni- tos” hospitalares, mostrando-nos um congelador
co de radiografia desatencioso assiste à televisão com corpos de recém-nascidos mortos, embru-
enquanto realiza o exame. lhados e congelados no velório.

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CRÍTICA DA CONDUTA PROFISSIONAL PELO PACIENTE HOSPITALIZADO 2109

Discussão que tirou os pedidos de salvação da imagem de


Nossa Senhora. Ainda, vale a pena ressaltar que
A experiência vivida de internação no hospital o paciente elogia e reconhece, pelo nome, quem
público, em Fortaleza, Ceará, é marcada pelo so- lhe cuida bem. Portanto, a conduta de um pro-
frimento humano e fragilidades relacionais com fissional zeloso faz a diferença na experiência da
o profissional; reflete no cuidar a pobreza e a hospitalização do seu paciente.
desigualdade social predominante no Nordeste A viva voz do paciente é uma racionalidade
brasileiro. Para que ocorra essa violência insti- leiga, uma crítica, uma confluência de problemas
tucional, não parecem relevantes as diferentes coletivos. Sua avaliação consegue ir além de estar
patologias, os serviços consultados, os proce- “satisfeito” como numa Escala de Satisfação do
dimentos requeridos ou o tempo de estada no Usuário 24,25. Ele é capaz de identificar a violência
hospital. Todos os pacientes acompanhados, em institucional sofrida na internação, interpretar
momento de vulnerabilidade, são isolados, im- os contatos, distinguir a qualidade dos cuidados,
pedidos de entrar com seus pertences e afasta- definir uma relação competente, desenvolver
dos do seu cotidiano e referenciais – casa, família, parâmetros para julgar quem cuida, prestigiar
amigos, trabalho e padrões culturais. São subme- o profissional humano, reagir indignado contra
tidos à imposição autoritária de normas, regras os maus-tratos, buscar, em outros pacientes, sua
e poder hegemônico, como em outros hospitais fortaleza e mais.
públicos do Brasil 3,17. Indiscutivelmente a competência humana do
Além da doença, o paciente é discriminado profissional é mais valorizada do que seu know-
pelo estigma; é “coisificado” 18 ou reduzido à con- how técnico. Não basta fazer uma ação meca-
dição de objeto: pano de chão, pedaço de carne nicamente correta, é necessário zelar a pessoa,
e barata tonta. Chauí 19 (p. 336) nos lembra que executar com delicadeza, sem causar danos. São
pessoas tratadas como coisas produzem violên- essas as tecnologias leves que Merhy 2,26 refere,
cia: “o exercício da força física e da coação psíquica pois o profissional deveria ser um operador do
para obrigar alguém a fazer alguma coisa contrá- cuidado que gerencia multiprofissionais, acolhe,
ria a si, aos seus interesses e desejos, ao seu corpo e responsabiliza-se e cria vínculos.
à sua consciência, causando-lhe danos profundos Boff 10 corrobora a falta de competência
e irreparáveis”. Portanto, pensar a conduta pro- humana do profissional. Carente de “cuidados
fissional é considerar a discriminação, estigma e essenciais” 9 (p.128), ele age tecnicamente, mas
violência estrutural 20 que desmoralizam. não Sabe Cuidar. O fundamental é a convivên-
Constatamos, como outros 1,5, que há uma cia, sujeito a sujeito: “intimidade, senti-las den-
assimetria na relação, parte de uma complexa tro, acolhê-las, respeitá-las, dar-lhes sossego e re-
rede de representações conflituosas com dispa- pouso” 9 (p. 95). Nosso paciente, portanto, não
ridades de classe, status, escolaridade, condições deixa dúvidas de como o profissional se tornaria
de vida etc. Quando o profissional, o cavalo ba- um operador do cuidado: mudar radicalmente
tizado, maltrata – soltando grosserias, falando sua conduta, adquirindo competência em tro-
brutalmente ou tratando de modo ignorante –, car afetos, conversar com pessoas e envolvê-lo
o paciente é impotente para denunciá-lo aberta- nos cuidados. Começa com a inserção do senti-
mente. Protesta com a arma dos enfraquecidos 21: mento no gesto e na fala clínica. Ele espera que o
uma crítica subjacente à hospitalização. Apre- costume nordestino de “receber bem o visitante,
cia em pormenores essa relação, “investigando oferecer um cafezinho e trocar abraços e beijos”
minuciosamente os menores gestos, interpreta as se repita no hospital, com um trato igualmen-
expressões mais sutis, avalia inclusive a distância te carinhoso: troca de amor, meiguice, cafuné,
que o separa do profissional” 22 (p. 40). Apesar olho no olho e palavra de conforto. É preciso criar
de não declarar publicamente, o paciente realiza sintonia, empatia e vínculo, compartilhando sua
um julgamento ético de valor da conduta profis- dor e alegria.
sional, conforma a sua perspectiva do correto e O mundo é feito a partir dos laços afetivos,
do incorreto 19, dentro do mundo local moral 23. sendo o sentimento a dinâmica básica do cui-
A maioria das narrativas revelam histórias de dado 9. Maturana 27 (p. 23) compreende que a
descaso profissional: o segurança que impediu emoção e o amor são os grandes referenciais do
um marido de acompanhar o parto da esposa; o agir humano; “o amor é fundante do social”, e a
assistente que colocou a gestante em trabalho de doença surge da sua negação. Imaginamos, en-
parto numa maca no banheiro; a enfermeira que tão, que, sem afetividade entre o profissional e o
deixou uma mãe sangrando após o parto sem ab- paciente, é enfraquecida a potência terapêutica
sorventes e calcinhas; o aprendiz que furou um da relação.
paciente 16 vezes; a equipe que não informou O paciente destaca a falta de um cuidado éti-
as duas filhas sobre a morte da mãe e a faxineira co que honre sua dignidade humana, tratando-o

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como se fosse gente! Deseja uma conduta que dade e capital de poder no jogo intersubjetivo ins-
integre a alteridade e o respeito. Portanto, é pre- titucional” 34 (p. 28). Pouco adianta criar caixas
ciso cultivar, no profissional, uma atitude de ge- de sugestões e ouvidorias se não for ampliado
nerosidade humana, que respeite a diversidade o direito de cidadania. Concordamos com Des-
cultural de cada povo, sem estigmatizar ou dis- landes 35 na idéia que é prioridade o Estatuto de
criminar, estabelecendo uma relação terapêutica Pessoa e de Sujeito, pois valoriza e reconhece a
justa, equilibrada e madura 2,28. pessoa como um indivíduo, com um ethos, uma
O paciente recrimina a linguagem técnica, cultura e um sujeito biográfico, singular e único.
objetiva, proposital e centrada na doença, que so-
mente transmite informação. Requer conversar,
“dar voltas com o outro (...) uma forma inclusiva e Reflexões finais
extensiva de diálogo (...) um fluir na convivência,
no entrelaçamento do linguagear e do emocio- A abordagem antropológica facilitou enxergar o
nar” 29 (p. 80). Propõe uma comunicação que protagonismo do paciente e demonstrar a sua
abarque códigos culturais do cotidiano nordes- valiosa crítica ou etnoavaliação da hospitaliza-
tino: fala esclarecedora e uma conversa amiga, ção. A pesquisa exigiu criar elos afetivos com os
de peito e aberta e jogada fora. Exige uma conver- informantes, acompanhá-los de perto, durante
sa sincera, honesta e ética, independentemente todo o seu percurso no hospital, e penetrar o seu
da gravidade da notícia, seja um diagnóstico de mundo moral local para que superassem o medo
câncer, a morte da mãe ou de seu bebê. Protes- de reclamar do serviço. Somente com essa apro-
ta contra o médico que engana as mulheres, re- ximação e confiança, conseguimos descobrir a
cepcionista que enrola a gente e enfermeira que riqueza oculta da sua vivência. Assim, amplia-se
ilude. Teixeira 30 (p. 593) sugere um acolhimento o olhar clínico para enxergar a pessoa no pacien-
dialogado: “o reconhecimento do outro como le- te, seus sentimentos, significados e julgamento
gítimo outro; de cada um como insuficiente e o ético de valor. Portanto, desvelar essa apreciação
sentido de uma situação fabricada pelo conjunto leiga é indispensável para humanizar o cuidado e
dos saberes presentes”, fazendo emergir uma con- garantir a cidadania.
vergência das diversidades. Descobrimos a viva voz, não do “paciente”
Embora < 15% dos informantes balizem a sua oprimido pelo poder institucional, mas do pa-
inclusão nas decisões terapêuticas, eles perma- ciente-cidadão observador, reflexivo e crítico, ca-
necem indignados. Por trás da gentil saudação, paz de avaliar minuciosamente o menor gesto e
“o que você manda hoje, doutor?”, encontramos interpretar a expressão mais sutil do profissional,
um crítico do serviço público, um paciente-ci- seja do cavalo batizado, seja do coração bondoso.
dadão. Ele valoriza o profissional que sabe com- É essa a voz legítima, comprometida com a de-
partilhar o poder de decidir, e respeita sua au- fesa da vida, que poderá revolucionar a conduta
tonomia; que sabe não só cuidar, mas também profissional, remoralizar o paciente e humanizar
“empoderar” 31. o cuidado.
O discurso profissional predomina no hos- É necessário refletir, todavia, sobre a pos-
pital que investigamos. Insistir em falar pelo pa- sibilidade de mudar as condutas profissionais
ciente, decidindo o que precisa ser feito sozinho, inseridas em estruturas de iniqüidade. Há ain-
é um abuso de poder 32. Está longe de um com- da, a necessidade de incorporar, na formação,
partilhamento dialógico, em que o paciente é su- além dos conhecimentos técnico-instrumentais,
jeito, não apenas como “coadjuvante da decisão outras formas de saber: significados e sentidos
do como fazer, mas deve participar ativamente da realidade do paciente-cidadão, sua cultura,
também das escolhas do que fazer” 33 (p. 696). emoções e condições de vida. Edificar uma no-
É nesse palco de contradições, entretanto, que va relação terapêutica, não de dominação, mas
emerge a crítica leiga da internação, a etnoavalia- de respeito, afeto e vínculo, é um grande desa-
ção, provocando mudanças institucionais. fio, entre muitos, para uma conduta profissional
Não basta saber o grau de “satisfação” do pa- solidária e uma gestão ética a fim de construir o
ciente; é preciso “propiciar sua maior legitimi- hospital humano.

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CRÍTICA DA CONDUTA PROFISSIONAL PELO PACIENTE HOSPITALIZADO 2111

Resumo Colaboradores

Trata-se de pesquisa antropológica com o objetivo O trabalho de campo, a redação e revisão final foram
de revelar a apreciação do paciente-cidadão sobre a realizados por ambas as autoras.
conduta profissional num hospital geral público, em
Fortaleza, Ceará, Brasil. De janeiro a julho de 2005, foi
acompanhado o percurso de 13 informantes-chaves Agradecimentos
durante a hospitalização, e sua narrativa da experi-
ência, analisada. Constata-se que o paciente avalia os Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
gestos e expressões dos cuidadores durante todo o per- tífico e Tecnológico (projeto nº. 403744/2004-0: Hospi-
curso. Valoriza mais, no profissional, a competência tal Humano: Etno-avaliação Centrada no Paciente e seus
humana de ser afetivo, de conversar e incluí-lo em de- Sentidos, Significados e Experiências Vivida), Hospital
cisões clínicas, do que sua habilidade técnica. Critica Humano e da Fundação Cearense de Apoio ao Desen-
a atitude distante, fria e bruta, metaforicamente com- volvimento Científico e Tecnológico.
parada a um cavalo batizado. Sugere uma ação pro-
fissional afetiva, empática e ética e uma comunicação
clínica respaldada na fala, na conversa e no costume
da vida cotidiana nordestina. Argumenta-se que essa
voz legítima e crítica do paciente-cidadão oferece va-
liosas pistas para transformar a conduta profissional,
remoralizar o paciente e construir o hospital humano
no contexto de desigualdades sociais.

Relações Médico-Paciente; Humanização da Assistên-


cia; Assistência à Saúde

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Recebido em 29/Set/2006
Versão final reapresentada em 26/Fev/2007
Aprovado em 19/Mar/2007

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