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Os Três Círculos da Existência | 2

Os Três Círculos da Existência


por Kurt Almqvist, em colaboração de Stephen Lambert e traduzido por San.

O índio vermelho das planícies e florestas norte-americanas


representava sua tribo como um círculo, “o aro da nação”1. Entre os índios
das planícies – pois é destes que falaremos principalmente – o “aro” era
repetidamente tornado visível na forma dada ao acampamento: os tipis
(isto é, as tendas cônicas) eram colocados em círculos concêntricos em
torno do tipi ritual, no centro do qual o fogo sagrado, transmitido de
acampamento em acampamento, queimava incessantemente. Já o “aro da
nação” é uma imagem de um círculo do horizonte, que por sua vez é o
traço e o suporte na Terra da abóbada celeste2. Isso significa que a
unidade da tribo é uma projeção no plano terrestre da Unidade universal.
Note-se, além disso, que o círculo do horizonte une os quatro pontos
cardeais, simbolizando o fato de que essa sagrada Quaternidade
transcende a multiplicidade do mundo humano. Os dois pares de pontos
cardeais voltados um para o outro não implicam qualquer oposição, pois
os dois elementos de cada par se completam em uma polaridade que é
uma expressão direta da Unidade principal3.
No entanto, quando projetadas na matéria coagulada do mundo
formal, essas polaridades principais tornam-se verdadeiras oposições. O
eixo “vertical” da cruz cósmica, que une a pureza do Norte com a
plenitude e a vida do Sul, é o “camimho do bem”, do qual é vermelho; já

1
Consulte “Black Elk Speaks” (Morrow, Nova Iorque, 1932; nova edição, Pocket Books, 1973) e “The
Sacred Pipe, Black Elk’s Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux” (Norman, University of
Oklahoma Press, 1967, edição da Penguin Books, 1971). A introdução de Frithjof Schuon para a
edição francesa de “The Sacred Pipe” serviu como ponto de partida para o presente artigo. A
maior parte desta introdução está contida em um capítulo intitulado “The Sacred Pipe of the Red
Indians" em "Language of the Self” (Ganesh & Co., Índia, 1959) pelo mesmo autor.
2
“Se você subir em uma colina alta e olhar ao redor, verá o céu tocando a terra em todos os
lados, e dentro deste cercado sagrado, as pessoas vivem. Portanto, os círculos que fizemos [em
nossos rituais] representam o círculo que Tirawa Atius fez para o local de habitação de todas as
pessoas” (de um sacerdote Pawnee, falado durante os rituais de Hako, conforme citado por
Hartley Burr Alexander, “The World’s Rim, Great Mysteries of the North American Indians”. Univ. of
Nebraska Press, Lincoln, 1953, p. 131).
3
“Os pontos cardeais representam as quatro Manifestações divinas essenciais [correspondentes
aos Arcanjos das religiões semíticas]” (Frithjof Schuon, “Language of the Self”, p. 211): e de acordo
com Black Elk, esses “quatro espíritos são apenas um, afinal” (Black Elk Speaks, p. 2)
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pelo contrário, o eixo “horizontal” que “vai de onde vivem os seres do


trovão”, ou seja, o Ocidente, “para onde o sol brilha continuamente”, o
Oriente, é um “caminho temível, um caminho de problemas e de guerra”
(Black Elk Speaks, p. 24), do qual é negro4. Assim, quando Hehaka Sapa
(Black Elk) descreve a existência de seu povo após a catástrofe da “quebra
do aro da nação”, ele diz: “Eles estavam viajando pela estrada negra, cada
um por si com suas próprias regras” (Ibid., p. 183); Pois “a vida daquelas
pessoas estava no aro, e o que são essas pequenas vidas se a essência
daquelas vidas se foi?” (Ibid., p. 182).
As regras sociais, cuja ausência Black Elk lamenta, eram antigamente
determinadas por normas cósmicas: o “aro da nação”, como dissemos, era
uma imagem no plano humano do horizonte circular, que continha o
mundo empírico do índio e que, consequentemente, era uma imagem total
do Universo. Black Elk indica a relação hierárquica entre os dois círculos
dizendo que “o círculo dos quatro quartos nutria… o aro sagrado da nação.
O Oriente deu paz e luz, o Sul deu calor, o Oeste deu chuva, e o Norte com
seu vento frio e forte deu força e resistência” (Ibid, p. 164). Portanto,
quando o círculo da nação foi quebrado, a causa imediata dessa
calamidade foi a destruição — ou pelo menos uma certa “perturbação” —
do “círculo dos quatro quartos”; e a quase demolição do universo visível
que cercava o modo de vida dos nômades índios vermelhos simbolizava
essa crise cósmica. Essa demolição foi causada pelos invasores brancos,
que tomaram posse à força de suas terras e quase exterminaram o mais
importante dos “seres” de quatro patas, os rebanhos de búfalos. Na
verdade, como resultado desse saque duplo, os índios foram finalmente
isolados do tipo de vida que havia sido5 o seu modo de “preencher” o
círculo do horizonte, isto é, de realizar as possibilidades contidas no
Universo. O extermínio do búfalo é particularmente significativo neste
aspecto, uma vez que esse animal, pela variedade de usos que tinha para
os índios, era ele próprio um símbolo do Universo.

4
Se a estrada Norte-Sul é o “bom caminho”, é porque no plano horizontal considerado em sua
totalidade, ela representa a “estrada vertical” do Céu de forma mais direta do que a estrada
Leste-Oeste, de acordo com o simbolismo hiperbóreo.
5
Isso nem sempre foi verdade, uma vez que os índios das Planícies e das Florestas eram
originalmente apenas semi-nômades; mas isso foi de qualquer forma muito antes da chegada dos
Brancos.
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Agora, na grande visão de Hehaka Sapa — à qual ele dedicou toda a


sua vida interpretando e compartilhando com seu povo em vista de sua
salvação — existe uma correspondência que relaciona a catástrofe dos
índios, não apenas com o ataque ao mundo visível que envolve sua
existência, mas também, simbolicamente, com o fim apocalíptico de seu
protótipo: o mundo inteiro. Há uma passagem (Black Elk Speaks, p. 30 e
seguintes) na qual Black Elk vê seu povo escalando quatro colinas, uma
após a outra. Esses graus representam as etapas na dissolução da “nação”
e, também, simbolizam de maneira impressionante as quatro eras da
humanidade. Após a subida da primeira colina, o povo “acampou no círculo
sagrado como antigamente, e no centro estava a árvore sagrada, e a terra
ao nosso redor ainda estava toda verde”. Antes de subir na segunda colina,

As pessoas transformaram-se em alces e bisões, em todos os


seres de quatro patas e até mesmo em aves, todos caminhando de
maneira sagrada pela boa estrada vermelha juntos. E eu mesmo era
uma águia manchada pairando acima deles6. Mas assim que paramos
para acampar no final desse percurso, todos os animais em marcha
ficaram inquietos e com medo de que não fossem mais o que
costumavam ser, e começaram a reclamar chamando seus líderes. E
quando eles acamparam no final desse percurso, olhei para baixo e
vi que folhas estavam caindo da árvore sagrada...
Então o povo desmontou acampamento novamente e viu a
estrada negra diante deles em direção ao lugar onde o sol se põe... E
enquanto subiam o terceiro percurso, todos os animais e aves que
eram o povo corriam para cá e para lá, pois cada um parecia ter sua
própria pequena visão que seguia e suas próprias regras; e por todo
o universo, eu conseguia ouvir os ventos em guerra, como bestas
selvagens lutando.
E quando alcançamos o cume do terceiro percurso e
acampamos, o círculo da nação estava quebrado como um anel de
fumaça que se espalha e se dispersa, e a árvore sagrada parecia estar

6
A transformação das pessoas em animais, que deve durar durante a ascensão da segunda e
terceira colinas, simboliza a extensão do drama cósmico a domínios sutis que não o da alma
humana. Soa acima deste mundo de transformação a Águia do Espírito com quem o visionário se
identifica.
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morrendo e todas as suas aves haviam desaparecido. E quando olhei


para a frente, vi que o quarto percurso seria terrível.
Desse modo, quando o povo estava se preparando para
começar o quarto percurso, a Voz7 falou como se estivesse
chorando, e disse: “Olhe lá, olhe para a sua nação!” E quando olhei
para baixo, as pessoas haviam voltado todas a ser humanas, e
estavam magras, seus rostos afiados, pois estavam famintas. Seus
pôneis eram apenas pele e ossos, e a árvore sagrada tinha
desaparecido.

Após afirmar que “o círculo dos quatro quadrantes nutria... o aro


sagrado da nação”, Hehaka Sapa observa (Black Elk Speaks, p. 164) que “esse
conhecimento nos veio do mundo exterior8 com a nossa religião”. Por meio
dessas palavras, ele entende implicitamente que o conhecimento em
questão — que em si é cosmológico — é apenas uma aplicação de
princípios puramente metafísicos. Assim, por exemplo, se “o Poder do
mundo sempre opera em círculos”, como diz Black Elk (Ibid.), isso ocorre
porque, metafisicamente falando, o Grande Espírito em si é um Círculo:
“Wakan Tanka, como o círculo, não tem fim” (The Sacred Pipe, p. 192).
Agora, se toda criatura é feita à imagem do “Círculo” primordial, isso
significa que este último está misteriosamente presente nela como sua
Fonte e Fim ontológicos, por um lado, e como sua Essência
supra-ontológica, por outro, através da qual a criatura participa da
Realidade absoluta e infinita. O atributo de “Avô”, particularmente usado
ao designar o aspecto mencionado de Wakan Tanka, possui o caráter
“apofático” que deveria ter, uma vez que um avô não exerce uma função
paternal em relação aos seus netos, pelo menos não diretamente: é o pai,
propriamente dito, que reflete o Princípio ontológico. O aspecto “avô” é a
própria “alma” da Divindade Indígena. Na verdade, quando Black Elk se
refere a isso, ele quase sempre menciona ambos os atributos, “Pai” e “Avô”,
ou apenas este último. Em pelo menos um trecho, ele indica a distinção

7
Esta é a “grande Voz... do Sul” (Ibid., p. 30), a direção para onde os mortos vão e de onde a vida
vem, além da nova vida ansiosamente esperada para o povo e para o mundo. Nesse aspecto,
simbolizando a Fonte de toda a Vida, a direção do Sul é “o caminho que leva ao lugar para o qual
sempre nos voltamos” (The Sacred Pipe, p. 20).
8
Frithjof Schuon específica “do Mundo transcendente ou universal” (Language of the Self, p. 219).
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entre os dois aspectos de Wakan Tanka de maneira clara (The Sacred Pipe,
p. 49): “Meu Avô, Wakan Tanka. Você é tudo. E meu Pai, Wakan Tanka,
todas as coisas pertencem a você!” Ou seja, no último caso, a dualidade
Criador-criação ainda não é superada; este é o ponto de vista dos seres e
das coisas que recebem toda a sua luz e vida do Sol; no primeiro caso, pelo
contrário, o indígena se identifica com a Luz indivisa da “Esfera” celestial9.
Há uma aparente contradição no fato de que as seis Potências do
Universo — que em si mesmas pertencem à ordem ontológica — são
representadas na visão de Black Elk como tantos “Avôs”. Contudo, isso é
explicado pelo caráter “polissintético” da Divindade indígena, uma
perspectiva na qual os dois Aspectos Divinos, bem como o Espírito
Universal, o cume supra-formal da criação, são colocados no mesmo
“eixo”. De acordo com essa perspectiva, tudo no Universo participa de
maneira direta na natureza do “Avô” Wakan Tanka.
Benjamin Black Elk, filho do sábio com quem tivemos ocasião de nos
encontrar, chamava a isso de “Presença”10 no homem, esse foco de
virtualidades espirituais ilimitadas, o “tipi do coração”. Essa expressão de
um indígena de nosso tempo é de grande importância, pois sugere quais
possibilidades ainda permanecem, apesar de tudo, para os índios
contemporâneos realizarem o “conhecimento dos Círculos” em seu
aspecto essencial. Pois esse “tipi” pode ser assimilado ao tipi ritual situado
no centro do acampamento: assim como a periferia desse tipi central era
concêntrica ao acampamento (que simbolizava o “aro sagrado da nação”) e,
portanto, com o grande círculo dos Quatro Quartos, da mesma forma, a
vida interior do homem é normalmente um reflexo do Universo
macrocósmico, bem como, até certo ponto, da coletividade religiosa que
corresponde a ele no plano da vida social11. O tipi ritual e, mais
especialmente, o fogo nunca extinto que arde no seu centro, forma, no
ponto onde as seis direções se encontram, uma “sétima” direção, que na

9
“Nosso Avô, Wakan-Tanka. Você é tudo e, ainda assim, acima de tudo! Você é o primeiro. Você
sempre foi... Você é a verdade. Os povos bípedes que colocam sua boca neste cachimbo se
tornarão a própria verdade” (The Sacred Pipe, p. 13).
10
Por “Presença”, o autor está se referindo à imanência do grande “Círculo”, o supremo protótipo
do cosmos, em todas as criaturas, como explicado dois parágrafos acima [Nota do tradutor].
11
No ritual de purificação dos Sioux, o principal oficiante chora: “Oh, Wakan Tanka, olhe para
mim! Eu sou o povo. Ao me oferecer a você, ofereço todo o povo como um só, para que possam
viver! Desejamos viver novamente! Ajude-nos!” (The Sacred Pipe, p. 38).
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realidade é uma “não-direção”, na medida em que sintetiza a diversidade


das outras direções. Analogamente, o coração de um homem
espiritualmente concentrado é uma síntese de todo o Universo12 e, a
fortiori, do gênio de seu povo; e o “fogo” que ele abriga é uma resposta
perpétua ao chamado do Grande Espírito. Agora, se o coração do homem é
tudo isso, é porque neste mundo inferior ele simboliza o próprio Protótipo
de todos os “círculos”, o de Wakan Tanka. Esse supremo “Círculo” é
representado na visão de Hehaka Sapa pelo “Tipi feito de nuvens dos Seis
Grandes Avôs”. Assim, o “tipi do coração” é a imagem perfeita desse Tipi
celestial.

Esse “Reino de Deus dentro de vós” é um Templo que ninguém pode


profanar de fora nem sequer se aproximar, e, portanto, os Brancos, apesar
de repetidas tentativas, não conseguiram privar os índios inteiramente de
sua vida mística. Na verdade, sabe-se que a elite entre eles conseguiu
preservar a essência de sua religião da catástrofe geral ao distingui-la —
na medida em que foi necessário — do seu suporte substantivo, o lado
social e “material” da tradição. Além disso, o “círculo das quatro direções”
em sua manifestação como o mundo visível do Homem Vermelho,
evidentemente, não foi completamente destruído, pois,
independentemente da maneira particular como os índios o viam, a
Natureza como tal ainda existe. Dado o papel predominante que a
Natureza desempenha na contemplação desses povos, sua renovação
rítmica está intimamente ligada à perpetuação de sua religião em sua
essência, apesar de tudo. Nesse aspecto, citemos (Language of the Self, p.
222, nota de rodapé) as seguintes palavras ditas a Joseph Epes Brown por
um “guardião do Calumet”:

Embora tenhamos sido esmagados pelo homem branco de


todas as maneiras possíveis, ainda temos muitos motivos para
agradecer ao Grande Espírito, pois mesmo neste período de
escuridão, Seu trabalho na Natureza permanece inalterado e é um
lembrete contínuo da Presença Divina.
12
E torna-se assim um receptáculo para a Presença divina de acordo com o santo ditado (hadith
qudsi) do Profeta Maomé: “Céu e Terra não podem me conter, mas o coração do crente me
contém”.
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Independentemente da maneira particularmente trágica com a qual


a tradição dos índios vermelhos têm sucumbido, pelo menos em seus
aspectos exteriores, pode-se dizer que o trabalho de “interiorização”
realizado por sua elite é exatamente o mesmo que deve ser realizado,
nesta última fase da “era das trevas”, por qualquer pessoa que deseje salvar
sua alma: uma concentração na “única coisa necessária”, uma
concentração que implica, a fortiori, uma submissão consciente à Lei
religiosa, a Lei do “aro sagrado da nação”.
Consequentemente, pode-se dizer que no coração de todo homem
espiritualmente concentrado, a restauração universal é “prefigurada”, uma
restauração que, ao final da grande visão de Black Elk, é simbolizada pela
renovação de seu povo. Quando isso ocorreu por intermédio do visionário,
ele foi levado ao “mais alto de todos os montes”, de onde viu “todo o aro do
mundo”13. Black Elk continua: “E quando eu estava lá, vi mais do que posso
contar e entendi mais do que vi; pois estava vendo de maneira sagrada a
forma de todas as coisas no espírito, e a forma das formas, como elas
devem viver juntas como um único ser” (Black Elk Speaks, p. 36). Graças ao
seu caráter universal, a restauração na qual Black Elk está aqui idealmente
presente implica a de todas as formas tradicionais: estas são
representadas como um número indefinido de círculos, dos quais o da
nação de Black Elk é apenas um. A Essência comum de todos os círculos é
ao mesmo tempo o Círculo Infinito de Luz e a Árvore da Vida que cresce
em seu centro e que é nutrida por Ela: “E vi que o aro sagrado do meu
povo era um entre muitos aros que formavam um círculo, amplo como a
luz do dia e como a luz das estrelas, e no centro crescia uma poderosa
árvore florida para abrigar todas as crianças de uma mãe e um pai. E vi que
era sagrado.”

13
John G. Neihardt, que registrou a história de Black Elk, aqui acrescenta a seguinte nota de
rodapé: “Black Elk disse que a montanha em que ele estava em sua visão era o Pico Harney nas
Black Hills. ‘Mas qualquer lugar é o centro do mundo’, acrescentou”. Este comentário do sábio
indígena vermelho é indiretamente uma maneira de comparar a montanha ao coração do
homem, que é sempre subjetivamente o centro potencial do mundo. Consequentemente, “a mais
alta de todas as montanhas” pode ser dita como símbolo do máximo de realização espiritual do
qual o coração do homem é capaz. Quanto à analogia entre o coração e a montanha — e entre o
coração e a caverna, que, de fato, é o “coração” da montanha — veja René Guénon, “The Heart
and the Cave” e “The Mountain and the Cave”, Studies in Comparative Religion, Inverno e
Primavera, 1971.

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