Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
G562 A globalização das luzes [recurso eletrônico] / Luiz Carlos Villalta, Álvaro de Araujo Antunes,
Marie-Noëlle Ciccia (organizadores). – Niterói : Eduff, 2022. – 4.529 kb. ; ePUB.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5831-151-5
BISAC HIS037050 HISTORY / Modern / 18th Century
1. História Moderna – século XVIII. 2. Iluminismo. 3. Luzes luso-brasileiras. I. Título. II. Villalta, Luiz
Carlos. III. Antunes, Álvaro de Araujo. IV. Ciccia, Marie-Noëlle.
CDD 909.7
Les auteurs sont responsables du choix et de la présentation des contenus de cette publication et des opinions qui y sont exprimées,
lesquelles ne sont pas nécessairement conformes à celles de l’UNESCO et n’engagent pas l’Organisation.
[Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos conteúdos desta publicação e pelas opiniões que
nela se encontram expressas, as quais não são necessariamente conformes às da UNESCO e não comprometem
a organização.]
Sumário
P refácio 7
Introdução 11
O leitor encontrará nas páginas introdutórias desta edição uma ótima síntese
da dinâmica institucional e historiográfica da qual ela resultou, bem como dos di-
versificados e ricos conteúdos trabalhados pelos autores que a compõem. Trata-se
de um dos resultados obtidos junto à Cátedra UNESCO-UFMG intitulada “Ter-
ritorialidades e Humanidades: a Globalização das Luzes”, ela mesma derivada do
diálogo há muito mantido por colegas brasileiros e franceses, em especial por Luiz
Carlos Villata, Álvaro de Araujo Antunes, Franck Salaün, Marie-Noëlle Ciccia e
Jean-Pierre Schandeler. Não valeria a pena, assim, repetir neste pequeno prefácio
as palavras esclarecedoras que serão lidas logo adiante. Frente ao honroso convite
que recebi para apresentar este livro, considerei pertinente retomar algo do contexto
histórico em que sua elaboração se deu. Meu objetivo não é, de forma alguma, o de
estabelecer relações superficiais entre o período das Luzes e certos fenômenos atuais,
nem o de avaliar em que medida estes últimos devem ou não ser compreendidos em
termos de apropriação de tradições iluministas ou anti-iluministas. O que desejo,
seja este um bom ou mau caminho, é não deixar escapar o fato de que, no geral,
as reflexões contidas em A Globalização das Luzes foram elaboradas em meio a uma
aflição que somente aumentaria nos anos de sua organização editorial.
8 A globalização das luzes
A grande maioria dos capítulos que constituem o livro foi apresentada e dis-
cutida num colóquio internacional organizado pelos referidos professores e realizado
na cidade de Ouro Preto (Minas Gerais) em 23 e 24 de abril de 2018. Na ocasião,
havia grande perplexidade em relação às mudanças pelas quais o Brasil passava.
O golpe representado pela abertura de falacioso processo de impeachment contra a
presidente Dilma Rousseff em 2 de dezembro de 2015 consistira num dos momentos
mais deprimentes de um conjunto de acontecimentos que poriam fim à chamada
Nova República, cuja democracia jamais se livrara dos filtros oligárquicos voltados
à contenção de formas efetivas de democratização. Mas, àquela altura, chamava
também a atenção a preocupante presença nas ruas de manifestantes de caráter
fascista, apoiados tanto por uma suposta “nova direita”, aliás bastante fascinada
pelo delírio autoritário, quanto pelos velhos herdeiros dos porões da ditadura de
1964-1985. Estávamos em plena campanha eleitoral, num cenário complexo e
atordoante. Nos meses seguintes, assistiríamos à eleição de um presidente fascista,
cuja atuação em seus quatro anos de mandato, parte deles marcada pelo avanço
assustador do coronavírus, visou à destruição das estruturas do Estado brasileiro
e à organização de um movimento autoritário de massas armado e disposto a
aterrorizar a sociedade.
Não cabe aqui, evidentemente, reconstituir os fatos e delinear os personagens
infames que conduziram o país à delicada situação em que se encontra, apesar
de as eleições de 2022 terem impedido, pelo menos por ora, que tomássemos um
caminho sem volta. Gostaria apenas de chamar a atenção para três aspectos. O
primeiro diz respeito à surpreendente dimensão assumida pela propagação de
notícias e informações falsas, voltadas não apenas à detração do adversário trans-
formado em inimigo, mas também, e fundamentalmente, à implosão da capacidade
das pessoas de ancorar-se em opiniões minimamente fundamentadas. Theodor
Adorno discutiu essa questão para um contexto diverso – o dos Estados Unidos
logo após o fim da Segunda Guerra Mundial – em obra que, a despeito de certos
problemas metodológicos, segue sendo referência fundamental.1 Adorno, em suas
análises sobre a personalidade autoritária, salientou, entre outros pontos, o papel
1 ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. Trad. São Paulo: Ed. Unesp, 2019.
Prefácio 9
2 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
CALLIGARIS, Contardo. O grupo e o mal. Estudos sobre perversão social. Trad. São Paulo: Fósforo, 2022.
3 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. São Paulo: Boitempo, 2014. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão
do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. São Paulo: Boitempo, 2016. KHEL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2011. SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento
psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
4 SAID, Edward W. Representações do intelectual. As palestras de Reith de 1993. Trad. Lisboa: Colibri, 2000, p. 70.
10 A globalização das luzes
5 TEITELBAUN, Benjamin R. Guerra pela eternidade. O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Trad. Campinas
(SP): Ed. Unicamp, 2020.
Introdução
Luiz Carlos Villalta, Álvaro de Araujo Antunes e Marie-Noëlle Ciccia
1 KANT, Emmanuel. Vers la paix perpétuelle. Que signifie s’orienter dans la pensée? Qu’est-ce que les Lumières? Et autres textes. Traduction par
Françoise Proust et Jean-François Poirier. Paris: Flamarion, 2006, p. 43-44.
2 DIDEROT, Denis. Encyclopédie, ou,Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers: par une Société de Gens de lettres. Neufchastel:
Samuel Faulce, 1765, v. 13, p. 773.
3 Ibidem.
Introdução 13
brir e conquistar parcelas do saber. Tal força só é compreendida em ação, como
algo que se forma na medida em que se conforma e que deve ser repartido com os
semelhantes. A ideia de razão dos pensadores das Luzes tem um caráter individual
e, ao mesmo tempo, possui uma dimensão social. Não reconhece outra autoridade
que não a si mesma e comporta um duplo trabalho: primeiramente, separar os
fatos, as informações dadas pelos sentidos e as crenças encontradas nas fontes da
Revelação, da tradição e da autoridade; depois, juntar, envolvendo a construção de
uma nova estrutura, avaliada como verdadeira.4 Portanto, a razão dos ilustrados
nada tem de inato ou de apriorístico. Segundo Todorov, a razão é valorizada como
instrumento de conhecimento, não como móvel das condutas humanas; ela se opõe
à fé, mas não às paixões. Isto se coaduna com uma visão inteira de homem – tal
como ele é, não como deveria ser. Essa visão de homem conjuga corpo e espírito,
razão e paixão, sensualidade e meditação.5
Os progressos da razão são muito importantes para se compreender as
Luzes em Portugal e no Brasil, seja em sua vertente reformista e católica, aquela
ligada à Coroa e aos pensadores que inspiraram suas iniciativas e/ou que foram
por ela patrocinados, seja em sua vertente “libertina”, de Luzes mais radicais,
cujo desenvolvimento é indissociável do próprio reformismo, mas que bebe de
repertórios, posturas e elementos mais antigos do que as próprias Luzes.6 Assim,
se o reformismo ilustrado oficial busca conciliar fé e razão, fazendo um esforço no
sentido de racionalizar a compreensão e as manifestações religiosas, os libertinos
não só afrontam a religião e, sobretudo, seus ministros, como, por vezes, a ordem
social, quando não a própria monarquia.7 Com isso, alargam a racionalização do
mundo para muito além do permitido e idealizado pelas autoridades reformistas
ilustradas, sendo, por isso, perseguidos por elas.
Os textos deste livro foram dispostos numa ordem que conjugou o movimen-
to que vai do geral ao particular e, ainda, das Luzes às suas apropriações. Dessa
4 CASSIRER, Ernst. Filosofia de la ilustración. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 28 -29; e BLANCO MARTÍNEZ,
Rogelio. La ilustración en España y en Europa. Madrid: Endymion, 1999, p. 60-70.
5 TODOROV, Tzvetan. L’esprit des lumières. Paris: Robert Laffont, 2006, p. 13-14.
6 VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016, p. 15-16; e VILLALTA,
Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 502.
7 Idem, 2016, p. 44-63.
14 A globalização das luzes
Para tanto, Almeida Santos centra-se na formação que se queria oferecer aos jo-
vens portugueses que, adultos, iriam servir à monarquia, sintonizando-os com os
novos tempos e com o pilar do reformismo, isto é, o regalismo. O autor identifica
a observação e a experiência, bases da investigação científica, como elementos
centrais da epistemologia advogada, vindo a serem incorporadas ao propósito de
ter no ensino universitário o espaço formador de quadros para a monarquia. Por
fim, o capítulo volta-se para os “textos sãos”, que estariam em consonância com
as novas bases epistemológicas aludidas acima e que seriam usados mormente nos
estudos menores.
Na continuidade, elegendo também a educação como campo de análise, há o
capítulo “Educação, livros e luzes: reformas ilustradas e os manuais de catecismo”,
de Thais Nívia de Lima e Fonseca, que se volta para as reformas educacionais
ilustradas portuguesas em seus entrecruzamentos com os catecismos e manuais
de civilidade. Para tanto, numa primeira parte a historiadora focaliza os textos
legais que nortearam as reformas educacionais, destacando os princípios que os
embasaram e, num segundo momento, examina os catecismos e manuais de civi-
lidade aprovados pelos órgãos censórios portugueses da época (entre 1768 e 1777,
a Real Mesa Censória e, de 1777 a 1794, a Real Mesa da Comissão Geral para a
Censura de Livros). Thais Fonseca, desse modo, identifica, em congruência com
as presenças das tópicas do “atraso” e da educação como uma das formas de sua
superação, expressões e palavras-chaves como “progressos”, “ciências”, “conheci-
mento”, “razão”, “bem comum” e “liberdade”. Em seguida, confronta-as com os
conteúdos de catecismos e manuais de civilidade publicados em Portugal, traduções
de textos estrangeiros ou obras originalmente lusitanas, entre 1774 e 1787. Por fim,
detém-se no exame do manuscrito O Cathecismo Português, ou Princípios de Filosophia de
Moral e Política para Instrução da Mocidade, de autoria não identificada.
Finalizando o segundo eixo, estão os textos de Luciano Mendes de Faria
Filho, “Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia con-
trarrevolucionária no alvorecer do Império”, e de Christianni Cardoso Morais,
“Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São
João del-Rei”. Luciano Mendes, em seu texto, na contramão de uma certa pers-
pectiva bastante consagrada na História da Educação, defende que a expansão
da escolarização verificada no Brasil do século XIX, muito mais do que exprimir
Introdução 17
R eferências bibliográficas
DIDEROT, Denis. Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers: par
une Société de Gens de lettres. Neufchastel: Samuel Faulce, 1765, v. 13.
KANT, Emmanuel. Vers la paix perpétuelle. Que signifie s’orienter dans la pensée? Qu’est-ce que les
Lumières? Et autres textes. Traduction par Françoise Proust et Jean-François Poirier. Paris:
Flamarion, 2006.
VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura
e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
______. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016.
Prolegômenos ao estudo da
Globalização das Luzes
Franck Salaün1
3 Sobre esse último ponto, ver, principalmente, CONRAD, Sebastian. Enlightenment in global history: a historiographical criti-
que. The American Historical Review, v. 117, n. 4, p. 999-1027, oct. 2012 ; e LILTI, Antoine. L’impossible histoire globale: parcours de la
« civilization ». In: LILTI, Antoine et al. (dir.). L’expérience historiographique. Paris: EHESS, 2016, p. 181-199.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 25
4 Sobre este assunto, ver SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire:
CIEDS, 2018.
5 Sobre a história do emprego metafórico do termo "Luzes" para designar a corrente intelectual e cultural que se manifestou em meados
do século XVIII, ver, sobretudo, ROGER, Jacques. La lumière et les lumières. Cahiers de l’Association Internationale des Études Françaises,
v. 20, p. 167-177, 1968; MORTIER, Roland. Lumière et Lumières, histoire d’une image et d’une idée. In: MORTIER, Roland. Clartés
et ombres du siècle des Lumières: études sur le 18e siècle littéraire. Genève: Droz, 1969, p. 13-59; BECKER, Karin Elisabeth. Licht – [L]
lumière[s] – siècle des lumières: von der Lichtmetapher zum Epochenbegritf der Aufklärung in Frankreich. Köln: Universität zu Köln, 1994;
LÜSEBRINK, Hans-Jürgen. Lumières et ténèbres dans le discours philosophique et historiographique du XVIIIe siècle: l’exemple
de l’Histoire des deux Indes. In: SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire:
CIEDS, 2018, p. 53-60; VENTURINO, Diego. L’historiographie révolutionnaire française et les Lumières, de Paul Buchez à Albert
Sorel: suivi d’un appendice sur la genèse de l’expression « siècle des Lumières » (XVIIIe-XXe siècles). In: RICUPERATI, Giuseppe
(dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 21-83; SALAÜN, Franck. Les Lumières: une introduction. Paris:
PUF, 2011; e SALAÜN, Franck. L’objet « Lumières » : problèmes et perspectives. In: SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre
(dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018a, p. 9-23.
6 Sobre este tema, ver CLARK, Jonathan C. The Enlightenment: catégories, traductions, et objets sociaux. Lumières, n. 17-18, p.
19-39, 2011; e a resposta de FULDA, Daniel. Les Lumières ont-elles ttoma?: quelques réflexions de théorie de l’histoire et d’histoire
des concepts à l’occasion de la critique par Jonathan C. Clark de nos concepts d’époque. Lumières, n. 20, p. 151-163, 2012.
26 A globalização das luzes
7 DARNTON, Robert. George Washington’s false teeth. The New York Review of Books, n. 27, p. 34-38 , mars 1997. Eu cito a tradução
francesa de Jean-François Baillon: DARNTON, Robert. Le dentier de George Washington. In: DARNTON, Robert. Pour les Lumières:
défense, illustration, méthode. Pessac: Presses Universitaires de l’Université de Bordeaux, 2002, p. 9-29.
8 DARNTON, 2002, p. 12. O tradutor francês opta pela expressão « Lumières primitives » (Luzes primitivas), mas o termo « pré-
-Lumières » (Pré-Luzes) seria mais exato.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 27
1750, que ele estende à frente, interessando-se, em particular, nos textos do barão
de Holbach, aparecidos por volta de 1770.
Afetado por uma espécie de monomania, ele explica não só este movimento,
mas também a Revolução Francesa, pela mesma causa: a penetração duradoura
e profunda das ideias de Spinoza entre os pensadores dos séculos XVII e XVIII.
Com isso, desta maneira, ele estende sua periodização por cerca de um século e
meio, ou até mais no seu último trabalho, que é três a quatro vezes mais do que
no caso anterior. Reunindo as “Luzes precoces” (early Enlightenment) e as “Luzes
tardias” (late Enlightenment), obtém-se perto de dois séculos, o que é evidentemente
muito. Como podemos ver, o desafio é tanto historiográfico como filosófico, o que
não torna a nossa tarefa mais fácil.
Ora, no século XVIII, os pensadores, as ideias e as práticas, que nós associa-
mos hoje em dia a este período, não eram ainda nomeados “as Luzes”. Falava-se,
então, de “filósofos”, de “enciclopedistas” ou da “filosofia”. Conhece-se certamente
uma ocorrência do sintagma “as Luzes”, sob a pena de Karl Friedrich Reinhard,
no Moniteur Universel de 8 de janeiro de 1792, a propósito precisamente da tradução
do termo Aufklärung em francês, mas isso foi excepcional. A expressão se impôs
posteriormente, primeiro nas obras de filosofia, depois, após a Segunda Guerra
Mundial, entre os historiadores que a adotaram para designar um período.9 Nas
obras de filosofia, esta denominação avançou por contaminação a partir do alemão,
notadamente por meio das traduções do artigo de Kant “Was ist Aufklärung?”
(O que é o esclarecimento?), depois da Phénoménologie de l’esprit [Fenomenologia do
Espírito] de Hegel, cujo capítulo VI consagra um importante desenvolvimento ao
“Aufklärung” (Esclarecimento). Essa relativa novidade e o afastamento entre as
tradições filosóficas explica, sem dúvida, que Jean Hyppolite, autor da primeira
tradução francesa (1939-1941), tenha traduzido o termo no subtítulo (Aufklärung
ou « Les Lumières »),10 mantendo a palavra alemã no texto.11 Escolhas similares
12 Sobre essas traduções, ver, respectivamente, ROSSO, Claudio. Inventing “Illuminismo” (and “Enlightenment”): the emergence
of a word and of a concept. In: RICUPERATI, Giuseppe (dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 123-132;
e SCHMIDT, James. Inventing the Enlightenment: anti-jacobins, british hegelians, and the Oxford English Dictionary. Journal of the
History of Ideas, v. 64, n. 3, p. 421-443, 2003.
13 STERNHELL, Zeev. Les Anti-Lumières: une tradition du 18e siècle à la guerre froide. Édition revue et augmentée. Paris: Gallimard,
2010. Ver também: MASSEAU, Didier. Les ennemis des philosophes: l’antiphilosophie au temps des Lumières. Paris: Albin Michel, 2000; e
McMAHON, Darrin M. Enemies of the Enlightenment: the French Counter-Enlightenment and the making of modernity. Oxford: Oxford
University Press, 2001.
14 DIDEROT, Denis, Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, recueilli des meilleurs auteurs et particulierement des
dictionnaires anglois de Chambers, d'Harris, de Dyche, &c. Par une société de gens de lettres. Mis en ordre & publié par M. Diderot ; & quant
à la partie mathématique, par M. D'Alembert, de l'Académie Royale des Sciences de Paris & de l'Académie Royale de Berlin. […] Dix
volumes in-folio, dont deux de planches en taille-douce, proposés par souscription. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1751.
15 Sobre a importância desse momento, ver SALAÜN, Franck. Diderot et D’Alembert ont-ils inventé les Lumières? Recherches sur
Diderot et sur l’Encyclopédie, v. 52, p. 181-194, 2017.
16 DIDEROT, Denis. Encyclopédie. In: DIDEROT, Denis; ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des métiers, t. VI. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1755, p. 642.
17 Sobre essa subida e força, ver, sobretudo, BINOCHE, Bertrand; LEMAITRE, Alain Jacques (dir.). L’opinion publique dans l’Europe
des Lumières: stratégies et concepts. Paris: Armand Colin, 2013.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 29
Alguns anos mais tarde, esse período será apresentado por alguns como
um verdadeiro ponto de virada.18 Em seu Essai sur les éléments de philosophie [Ensaio
sobre os elementos de filosofia], publicado em 1759, D’Alembert propõe um balanço
particularmente revelador:
Se considerarmos, ainda que rapidamente, com olhos atentos, o meio do século em
que vivemos, os acontecimentos que nos agitam, ou pelo menos que nos ocupam,
os nossos costumes, as nossas obras e, até mesmo, as nossas conversas, é difícil
não notar que, em vários aspectos, se deu uma mudança muito notável nas nossas
ideias; uma mudança que, pela sua rapidez, parece prometer-nos uma outra ainda
maior. É, portanto, o tempo de determinar o objeto, a natureza e os limites dessa
revolução, sobre a qual a nossa posteridade conhecerá, melhor do que nós, os
inconvenientes e as vantagens.19
18 Ver, principalmente, ALEMBERT, Jean le Rond d’. Éloge de Monsieur le Président de Montesquieu. In: DIDEROT, Denis;
ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, t. VIII. Paris: Briasson; David;
Le Breton; Durand, 1757. Por seu turno, Malesherbes, que argumenta a favor da "liberdade de escrever" e de publicar, nota, em 1788:
« Nous sommes dans un moment où la nation invoque les lumières de tous les citoyens sur les objets qui l’intéressent » [Nós estamos
em um momento em que a nação invoca as luzes de todos os cidadãos sobre os objetos que a interessam]. CHARTIER, Roger (éd.).
Mémoire sur la liberté de la presse. Paris: Imprimerie Nationale, 1994, p. 291.
19 Texto original em francês: « Pour peu qu’on considère avec des yeux attentifs le milieu du siècle où nous vivons, les événements qui
nous agitent, ou du moins qui nous occupent, nos mœurs, nos ouvrages, et jusqu’à nos entretiens ; il est difficile de ne pas apercevoir qu’il
s’est fait à plusieurs égards un changement bien remarquable dans nos idées ; changement qui par sa rapidité semble nous en promettre
un plus grand encore. C’est au temps à fixer l’objet, la nature et les limites de cette révolution, dont notre postérité connaîtra mieux
que nous les inconvénients et les avantages. » ALEMBERT, Jean le Rond d’. Essai sur les éléments de philosophie. In: ALEMBERT,
Jean le Rond d’. Mélanges de littérature, d’histoire et de philosophie. Nouvelle édition, revue, corrigée et augmentée très considérablement par
l’auteur. Amsterdam: Z. Chatelain et fils, 1773, t. IV, p. 3.
30 A globalização das luzes
20 Sobre a recepção, as traduções e o significado dessa obra fundamental, ver, principalmente, PANDOLFI, Jean. Beccaria traduit
par Morellet. Dix-huitième siècle, v. 9, p. 291-316, 1977; ABBRUGIATI, Raymond. Écriture et réécriture de Dei delitti e delle pene: le
cas Beccaria. Cahiers d’Études Romanes, n. 20, p. 33-42, 2009; AUDEGEAN, Philippe et al. (dir.). Le bonheur du plus grand nombre: Beccaria
et les Lumières. Lyon: ENS, 2017; e AUDEGEAN, Philippe; DELIA, Luigi (dir.). Le Moment Beccaria: naissance du droit pénal (1764-
1810). Oxford: Voltaire Foundation, 2018.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 31
21 Sobre a emergência desta reivindicação, ver, em particular, CHENG, Anne. Chine des Lumières et Lumières chinoises. Rue
Descartes, v. 84, n. 1, p. 4-10, 2015.
22 FRÄNGSMYR, Tore. Was there an Enlightenment in Sweden ?. In: FRÄNGSMYR, Tore. Les Relations culturelles et scientifiques
entre la France et la Suède au siècle des Lumières. Paris: [s.n.], 1993; e FRÄNGSMYR, Tore. À la recherche des Lumières: une perspective sué-
doise. Traduction de Jean-François et Marianne Battail. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 1999.
23 PORTER, Roy. The Enlightenment in England. In: PORTER, Roy; TEICH Mikuláš (dir.). The Enlightenment in national context.
Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 1-18.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 33
and the Creation of the Modern World [Luzes: a Grã-Bretanha e a Criação do Mundo
Moderno], e nos Estados Unidos sob o título, mais cativante, The Creation of the Modern
World: The Untold Story of the British Enlightenment [A Criação do Mundo Moderno:
A História Não-Contada das Luzes Britânicas].24
O caso da Escócia é também marcante. Como explica Nicholas Phillipson,
a reivindicação de Luzes Escocesas é muito recente. Considerando-se a difusão
do termo, ela data dos anos 1960.25 A partir daí, as obras sobre o assunto se mul-
tiplicaram. Doravante, os historiadores têm a tendência a preferir as expressões
“escola escocesa”, “Luzes na Escócia”, ou ainda “representantes escoceses das
Luzes”, “Scottish Enlightenment”, isto é, “Luzes escocesas”. Como na Inglaterra
e, em resposta ao desafio, não sem ironia, alguns autores procuram atribuir ou
conceder à Escócia o primeiro lugar na formação do mundo moderno. Esse é o
caso de Arthur Herman, num livro best-seller, intitulado How the Scots Invented the
Modern World: The True Story of How Western Europe’s Poorest Nation Created Our World &
Everything in It [Como os Escoceses inventaram o Mundo Moderno: A Verdadeira
História de como a mais pobre nação da Europa Ocidental criou nosso Mundo &
Tudo mais] (2001), reimpresso no ano seguinte com o título The Scottish Enlightenment.
The Scots’ Invention of The Modern World [As Luzes Escocesas: A Invenção Escocesa
do Mundo Moderno] (2002).26 Encontramos este fascínio pela modernidade, que
talvez tenha pouco a ver com as questões levantadas pelos pensadores do Século
das Luzes. Observa-se também certa tendência editorial a aproveitar-se da sedução
dos termos “Luzes” e “modernidade”. É verdade que Henry Steele Commager
abriu as hostilidades, um pouco mais cedo, com The Empire of Reason: How Europe
Imagined and America Realized the Enlightenment [O Império da Razão: Como a Europa
imaginou e a América percebeu as Luzes] (1978).27
24 PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and the creation of the modern world. London: Penguin Books, 2000a; e PORTER, Roy.
The creation of the modern world: the untold story of the British Enlightenment. New York: W.W. Norton & Co., 2000b.
25 PHILLIPSON, Nicholas. « Scottish Enlightenment ». In: CANNON, John (ed.). A dictionary of British History. 3. ed. Oxford: Oxford
University Press, 2015.
26 HERMAN, Arthur. How the scots invented the modern world: the true story of how western Europe’s poorest nation created our world
& everything in it. New York: Crown Publishing Group, 2001; e HERMAN, Arthur. The scottish Enlightenment: the scots’ invention of
the modern world. London: Fourth Estate, 2002.
27 COMMAGER, Henry Steele. The empire of reason: how Europe imagined and America realized the Enlightenment. London:
Weidenfeld & Nicolson, 1978 apud CLARK, op. cit., p. 35.
34 A globalização das luzes
28 BUIJNSTERS, Piet J. Les Lumières hollandaises. Studies on Voltaire and the Eighteenth Century, v. 87, p. 197-215, 1972. Ver também
BOTS, Hans; DE VET, Jan. Les Provinces-Unies et les Lumières. Dix-Huitième Siècle, v. 10, p. 101-122, 1978.
29 Texto original em inglês: “That there is as yet non major work in any language dealing with the Enlightenment in the Dutch
Republic suggests not only how ambitious, but how ambiguous, any such undertaking might be”. Tradução em francês pelo autor:
« Le fait qu’il n’existe pas encore, en quelque langue que ce soit, d’étude de référence sur les Lumières dans la République néerlandaise
indique non seulement la difficulté d’une telle entreprise mais aussi son extrême ambiguïté ». SCHAMA, Simon. The Enlightenment
in the Netherlands. In: PORTER, Roy; TEICH Mikuláš (dir.). The Enlightenment in national context. Cambridge: Cambridge University
Press, 1981, p. 263.
30 MIJNHARDT, Wijnand W. The construction of silence: religious and political radicalism in dutch history, 1650-present. In: RI-
CUPERATI, Giuseppe (dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 85-110.
31 MIJNHARDT, Wijnand W. De nederlandse verlichting: een terreinverkenning. In: MIJNHARDT, Wijnand W. (ed.). Figuren en
figuraties: acht opstellen aangeboden aan J.C. Boogman. Groningen: Wolters-Noordhoff, 1979, p. 1-25; e MIJNHARDT, Wijnand W.
De nederlandse verlichting. In: GRIJZENHOUT, Frans (dir.). Voor vaderland en vrijheid: de revolutie van de patriotten. Amsterdam: De
Bataafsche Leeuw, 1987, p. 53-97.
32 Na tradução em francês feita pelo autor: « Le chant du cygne des Lumières néerlandaises ».
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 35
33 FRANCO, José Eduardo. O Marquês de Pombal e a Invenção do Brasil: reformas coloniais iluministas e a protogênese da nação
brasileira. Cadernos IHU Ideias, v. 13, n. 220, p. 3-30, 2015.
34 Ver FURTADO, Junia Ferreira; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Raynal and the defence of the Portuguese colonization of Brazil:
diplomacy and the Memoirs of the Visconde de Balsemão. Análise Social, v. 54, n. 230, p. 4-33, 2019; e o estudo de Marco Antônio
Silveira neste volume. Para uma abordagem mais ampla, ver LÜSEBRINK, Hans-Jürgen; TIETZ, Manfred (dir.). Lectures de Raynal:
l’histoire des deux Indes en Europe et en Amérique au 18e siècle. Oxford: Voltaire Foundation, 1991.
35 Ver a recente síntese de HAMNETT, Brian. The Enlightenment in Iberia and Ibero-America. Cardiff: University of Wales Press, 2017.
36 Sobre esse assunto, ver a obra clássica de MAXWELL, Kenneth. Conflicts and conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808. New
York: Routledge, 2004. Ver também a síntese recente de VILLALTA, Luiz Carlos. Les appropriations des Lumières par les conspi-
rateurs du Minas Gerais et de Bahia: textes, auteurs et débats au Brésil à la fin du 18 e siècle. In: SALAÜN, Franck; SCHANDELER,
Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018, p. 145-155.
36 A globalização das luzes
Descolonizar as Luzes
37 CHACON, Vamireh. Étudiants brésiliens à Montpellier et Révolution française. Annales Historiques de la Révolution Française, n.
282, p. 485-492, 1990. Para uma abordagem mais ampla, ver NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; NEVES, Guilherme Pereira
das. Indépendance au Brésil et Lumières au Portugal: politique et culture dans l’espace luso-brésilien (1792-1823). Annales Historiques de
la Révolution Française, n. 365, p. 31-53, 2011.
38 VILLALTA, op. cit. (em particular p. 147-151).
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 37
39 KHOSROKHAVAR, Farad; MOTTAGHI, Mohsen. Les intellectuels iraniens et les Lumières. Conférence tenue à MSH-Sud,
Montpellier en 29 sept. 2017.
40 SKOULARIKI, Athena. The “Enlightenment deficit”: genealogy and transformation of cultural explanations for the greek
“backwardness”. In: AVLAMI, Chryssanthi; SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). De l’Europe ottomane aux nations
balkaniques: les Lumières en question. Actes du colloque d’Athènes. Athènes, 23-25 mai 2018.
41 Sobre esta distinção, ver SALAÜN, Franck. Temps fort et processus: deux approches des Lumières. In: KARP, Sergueï (dir.). Qu’est-
-ce que les Lumières?: nouvelles réponses à l’ancienne question. Moscou: Naouka, 2018b, p. 9-19. (Le Siècle des Lumières, v. 6).
38 A globalização das luzes
século XVIII até os nossos dias.42 A questão que se coloca, hoje, talvez não seja
tanto libertar-nos de uma ideologia das Luzes, mas de descolonizar o projeto ilu-
minista, para lhe devolver a sua própria dinâmica – inclusive tornando visíveis suas
contradições históricas – em face das múltiplas tentativas de instrumentalização.
R eferências bibliográficas
ABBRUGIATI, Raymond. Écriture et réécriture de Dei delitti e delle pene: le cas Beccaria.
Cahiers d’Études Romanes, n. 20, p. 33-42, 2009.
ALEMBERT, Jean le Rond d’. Éloge de Monsieur le Président de Montesquieu. In: DID-
EROT, Denis; ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des métiers, t. VIII. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1757.
______. Essai sur les éléments de philosophie. In: ALEMBERT, Jean le Rond d’. Mélanges
de littérature, d’histoire et de philosophie. Nouvelle édition, revue, corrigée et augmentée très
considérablement par l’auteur. Amsterdam: Z. Chatelain et fils, 1773, t. IV.
AUDEGEAN, Philippe; DELIA, Luigi (dir.). Le Moment Beccaria: naissance du droit pénal
(1764-1810). Oxford: Voltaire Foundation, 2018.
AUDEGEAN, Philippe et al. (dir.). Le bonheur du plus grand nombre: Beccaria et les Lumières.
Lyon: ENS, 2017.
BECKER, Karin Elisabeth. Licht – [L]lumière[s] – siècle des lumières: von der Lichtmetapher
zum Epochenbegritf der Aufklärung in Frankreich. Köln: Universität zu Köln, 1994.
BINOCHE, Bertrand; LEMAITRE, Alain Jacques (dir.). L’opinion publique dans l’Europe
des Lumières: stratégies et concepts. Paris: Armand Colin, 2013.
BOTS, Hans; DE VET, Jan. Les Provinces-Unies et les Lumières. Dix-Huitième Siècle, v.
10, p. 101-122, 1978.
BUIJNSTERS, Piet J. Les Lumières hollandaises. Studies on Voltaire and the Eighteenth Century,
v. 87, p. 197-215, 1972.
42 Este é o objetivo do programa internacional Enquête sur la globalisation des Lumières lançado em 2015. Disponível em: https://global18 .
org.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 39
CHARTIER, Roger (éd.). Mémoire sur la liberté de la presse. Paris: Imprimerie Nationale, 1994.
CHENG, Anne. Chine des Lumières et Lumières chinoises. Rue Descartes, v. 84, n. 1, p.
4-10, 2015.
COMMAGER, Henry Steele. The empire of reason: how Europe imagined and America
realized the Enlightenment. London: Weidenfeld & Nicolson, 1978.
DARNTON, Robert. George Washington’s false teeth. The New York Review of Books, n.
27, p. 34-38, mars 1997.
______. Le dentier de George Washington. In: DARNTON, Robert. Pour les Lumières:
défense, illustration, méthode. Pessac: Presses Universitaires de l’Université de Bordeaux,
2002, p. 9-29.
_ _____. Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, recueilli des
meilleurs auteurs et particulierement des dictionnaires anglois de Chambers, d’Harris, de Dyche, &c.
Par une société de gens de lettres. Mis en ordre & publié par M. Diderot ; & quant à la
partie mathématique, par M. D’Alembert, de l’Académie Royale des Sciences de Paris
& de l’Académie Royale de Berlin. […] Dix volumes in-folio, dont deux de planches en
taille-douce, proposés par souscription. Paris: Briasson; David; Le breton; Durand, 1751.
_ _____. À la recherche des Lumières: une perspective suédoise. Traduction de Jean-François
et Marianne Battail. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 1999.
40 A globalização das luzes
FULDA, Daniel. Les Lumières ont-elles ttoma?: quelques réflexions de théorie de l’histoire
et d’histoire des concepts à l’occasion de la critique par Jonathan C. Clark de nos concepts
d’époque. Lumières, n. 20, p. 151-163, 2012.
FURTADO, Junia Ferreira; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Raynal and the defence of
the Portuguese colonization of Brazil: diplomacy and the Memoirs of the Visconde de
Balsemão. Análise Social, v. 54, n. 230, p. 4-33, 2019.
HERMAN, Arthur. How the scots invented the modern world: the true story of how western
Europe’s poorest nation created our world & everything in it. New York: Crown Publishing
Group, 2001.
______. The scottish Enlightenment: the scots’ invention of the modern world. London:
Fourth Estate, 2002.
LÜSEBRINK, Hans-Jürgen; TIETZ, Manfred (dir.). Lectures de Raynal: l’histoire des deux
Indes en Europe et en Amérique au 18e siècle. Oxford: Voltaire Foundation, 1991.
MASSEAU, Didier. Les ennemis des philosophes: l’antiphilosophie au temps des Lumières.
Paris: Albin Michel, 2000.
MAXWELL, Kenneth. Conflicts and conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808. New
York: Routledge, 2004.
______. The construction of silence: religious and political radicalism in dutch history,
1650-present. In: RICUPERATI, Giuseppe (dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin:
Arno Spitz, 2002, p. 85-110.
MORTIER, Roland. Lumière et Lumières, histoire d’une image et d’une idée. In: MOR-
TIER, Roland. Clartés et ombres du siècle des Lumières: études sur le 18e siècle littéraire.
Genève: Droz, 1969, p. 13-59.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; NEVES, Guilherme Pereira das. Indépendance
au Brésil et Lumières au Portugal: politique et culture dans l’espace luso-brésilien (1792-
1823). Annales Historiques de la Révolution Française, n. 365, p. 31-53, 2011.
PANDOLFI, Jean. Beccaria traduit par Morellet. Dix-huitième siècle, v. 9, p. 291-316, 1977.
PORTER, Roy. The Enlightenment in England. In: PORTER, Roy; TEICH Mikuláš (dir.).
The Enlightenment in national context. Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 1-18.
______. Enlightenment: Britain and the creation of the modern world. London: Penguin
Books, 2000a.
______. The creation of the modern world: the untold story of the British Enlightenment. New
York: W.W. Norton & Co., 2000b.
ROGER, Jacques. La lumière et les lumières. Cahiers de l’Association Internationale des Études
Françaises, v. 20, p. 167-177, 1968.
______. Diderot et D’Alembert ont-ils inventé les Lumières? Recherches sur Diderot et sur
l’Encyclopédie, v. 52, p. 181-194, 2017.
42 A globalização das luzes
______. Temps fort et processus: deux approches des Lumières. In: KARP, Sergueï (dir.).
Qu’est-ce que les Lumières?: nouvelles réponses à l’ancienne question. Moscou: Naouka, 2018b,
p. 9-19. (Le Siècle des Lumières, v. 6).
SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières.
Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018.
SCHAMA, Simon. The Enlightenment in the Netherlands. In: PORTER, Roy; TEICH
Mikuláš (dir.). The Enlightenment in national context. Cambridge: Cambridge University Press,
1981, p. 54-71.
STERNHELL, Zeev. Les Anti-Lumières: une tradition du 18e siècle à la guerre froide.
Édition revue et augmentée. Paris: Gallimard, 2010.
VILLALTA, Luiz Carlos. Les appropriations des Lumières par les conspirateurs du Minas
Gerais et de Bahia: textes, auteurs et débats au Brésil à la fin du 18e siècle. In: SALAÜN,
Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-
-Voltaire: CIEDS, 2018, p. 145-155.
Os anti-iluministas contra
Condorcet durante a Revolução:
como um espelho de nossa época?1
Jean-Pierre Schandeler
1 Tradução para o português feita por Luiz Carlos Villalta e revisada por Marie-Noëlle Ciccia.
2 Sobre esse assunto, cf. GODECHOT, Jacques. La contre-révolution (1789-1804). Paris: PUF, 1984; MARTIN, Jean-Clément. Contre-
-Révolution, révolution et nation en France, 1789-1799. Paris: Seuil, 1998; MASSEAU, Didier. Les ennemis des philosophes: l’antiphilosophie au
siècle des Lumières. Paris: Albin Michel, 2000; STERNHELL, Zeev. Les Anti-Lumières du XVIIIe à la Guerre froide. Paris: Fayard, 2006;
e MASSEAU, Didier (dir.). Dictionnaire des anti-Lumières et des antiphilosophes: France 1715-1815. Comité editorial: Laurent Loty, Patrick
Brasart et Jean-Noël Pascal. Paris: Champion, 2017. 2 vols.
44 A globalização das luzes
Os contrarrevolucionários e Condorcet
3 Em 1785, seu Discours préliminaire de l’Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix se abre
com as seguintes palavras: “Um grande homem [Turgot], […] estava persuadido de que as verdades das ciências morais e políticas
são suscetíveis de ter o mesmo grau de certeza que aquelas que formam o sistema das ciências físicas e, até mesmo, dos ramos dessas
ciências que, como a astronomia, parecem aproximar-se da certeza matemática. Esta opinião lhe era cara, porque ela conduz à espe-
rança consoladora de que a espécie humana fará necessariamente progressos na direção da felicidade e da perfeição, como ela fizera
quanto ao conhecimento da verdade”. CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Essai sur l’application de l’analyse
à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix. Édite par Olivier de Bernon. Paris: Fayard, 1986, p. 9. Cf. CONDORCET, Jean
Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Discours de réception à l’Académie française. In: BAKER, Keith Michael (éd.). Condorcet’s
notes for a revised edition of his reception speech to the Académie française. Studies on Voltaire, v. 169, 1977, p. 19. Ver, no mesmo
discurso, a nota F, 45; esta ideia é recorrente num grande número das obras dele a partir dos anos 1780. Cf. RASHED, Roshdi (ed.).
Condorcet. Mathématique et société. Paris: Hermann, 1974.
4 CONDORCET, 1986. Ver, igualmente, CRÉPEL, Pierre. Condorcet, la théorie des probabilités et les calculs financiers. In: RA-
SHED, Roshdi (éd.). Sciences à l’époque de la Révolution française: recherches historiques. Paris: Blanchard, 198 8 , p. 267-325; BRIAN, Éric.
La puissance ambiguë de l’œuvre scientifique de Condorcet: une question d’histoire intellectuelle. Mélanges de l’École Française de Rome,
t. 108, n. 2, p. 505-516, 1996; e ARROW, Kenneth J. Social choice and individual values. New York: John Wiley and Sons, 1951 (para uma
tradução francesa, cf. ARROW, Kenneth J. Choix collectifs et préférences individuelles. Paris: Calmann-Lévy, 1974).
5 Ver DELSAUX, Hélène. Condorcet journaliste (1790-1794). Paris: Champion, 1931.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 45
Esta última obra iria tornar-se alvo dos contrarrevolucionários, pois lhes
permitiria estabelecer um elo entre a filosofia das Luzes (universalismo, tolerância,
liberdade de pensar, crítica da religião, papel primordial da razão) e a Revolução,
que pôs fim à monarquia. A obra se apresenta como uma narrativa do progresso
realizado pelo espírito humano em todos os domínios do saber, contra as resistências
da superstição e dos charlatões.
O conceito de perfectibilidade indefinida revela as perspectivas incomensu-
ráveis em termos de criatividade, de invenção, de evolução de concepções morais e
dos costumes. O futuro é descrito como um horizonte largamente aberto: “Tudo nos
diz que nós nos aproximamos da época de uma das grandes revoluções da espécie
humana [...] O estado atual das Luzes nos garante que ela será feliz”.6
Sobre o período considerado, nenhuma interpretação de Condorcet rivaliza
com aquelas que lhe dão os contrarrevolucionários. O filósofo certamente não
aparece como o único representante das Luzes. Mas seu pensamento, que se desen-
volveu nos domínios-chaves para a concepção de uma sociedade, seu engajamento
nos eventos revolucionários, a sua sorte pessoal, tudo isso coloca em evidência os
elos entre as Luzes e a Revolução, elos que são, eles mesmos, considerados pelos
contrarrevolucionários como os frutos do fanatismo filosófico.
6 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Tableau historique des progrès de l’esprit humain. In: SCHAN-
DELER, Jean-Pierre; CRÉPEL, Pierre (eds.). Projets, prospectus, fragments, notes (1772-1795). Paris: INED, 2004, p. 243, n. 128. Sobre a
questão do otimismo ou do meliorismo, ver LOTY, Laurent. Condorcet contre l’optimisme: de la combinatoire historique au méliorisme
politique. In: CREPEL, Pierre; GILAIN, Christian (dir.). Condorcet, mathématicien, économiste, philosophe, homme politique. Paris: Minerve,
1989, p. 288-296.
46 A globalização das luzes
uma religião… As regras normativas não podem, por consequência, ser deduzidas
de leis positivas:
Não é no conhecimento positivo das leis estabelecidas pelos homens que se deve
procurar conhecer o que convém adotar, mas exclusivamente na razão pura.7
Nós queremos uma constituição cujos princípios sejam unicamente fundados sobre
os direitos naturais do homem, anteriores às instituições sociais. Nós chamamos
esses direitos naturais porque eles derivam da natureza do homem, ou seja, porque
a partir do momento em que existe um ser sensível capaz de raciocinar e de ter
ideias morais, resulta, como uma consequência evidente, que se ele deve gozar
desses direitos, que não se pode deles ser privado sem injustiça. 8
Essa posição não repousa sobre uma rejeição completa e definitiva da his-
tória, uma vez que o estudo de leis dos diversos povos em diferentes épocas é útil
“para dar à razão apoio da observação e da experiência, [...] para lhe ensinar a
prever o que pode ou que deve acontecer”.9 Condorcet considera a história mais
como um recurso teórico. A título de exemplo, no que concerne à possibilidade de
fundar uma teoria da arte social, o período grego é edificante na medida em que
ele oferece ilustração teórica de um impasse. A análise das instituições e das leis
gregas permite, com efeito, compreender como, querendo anular os efeitos negati-
vos de um mal, contrabalançando-os com outros efeitos, os gregos se privaram de
desenvolver um saber sobre a sociedade: 10
7 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Essai sur la constitution et les fonctions des assemblées provinciales
(1788). In: O’CONNOR, A. Condorcet; ARAGO, François (éds.). OEuvres de Condorcet. Paris: F. Didot, 1847a, t. 8, p. 496.
8 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Lettres d’un bourgeois de New-Haven à un citoyen de Virginie
sur l’inutilité de partager le pouvoir législatif entre plusieurs corps (1787). In: O’CONNOR, A. Condorcet; ARAGO, François (éds.).
OEuvres de Condorcet. Paris: F. Didot, 1847b, t. 9, p. 14.
9 Idem, 1847a, t. 8, p. 496.
10 Condorcet escreve: “Na política como na filosofia dos Gregos, acha-se um princípio geral que oferece somente um bem pequeno
número de exceções. Deve-se procurar menos nas leis para fazer desaparecer as causas de um mal que destruir os efeitos opondo essas
causas umas às outras, deve-se querer, das instituições, tirar partido dos preconceitos, dos vícios, mais que dissipá-los ou reprimi-los;
deve-se ocupar mais frequentemente dos meios de desnaturalizar o homem, de dar-lhe sentimentos artificiais que de aperfeiçoar, pu-
rificar as inclinações e os sentimentos que ele recebeu da natureza ; erros produzidos pelo erro mais geral de observar, como o homem
da natureza, aquele que o estado atual da sociedade lhes oferecia, em outros termos, o homem corrompido pelos preconceitos, pelos
interesses e paixões factícias e pelos hábitos sociais”. No original francês: “Dans la politique comme dans la philosophie des Grecs on
trouve un principe général qui n’offre qu’un très petit nombre d’exceptions. C’est de chercher moins dans les lois à faire disparaître les
causes d’un mal qu’à en détruire les effets opposant ces causes l’une à l’autre, c’est de vouloir dans les institutions tirer parti des préjugés,
des vices, plutôt que de les dissiper, ou les réprimer, c’est de s’occuper plus souvent des moyens de dénaturer l’homme, de lui donner
des sentiments factices que de perfectionner, d’épurer les inclinations et les sentiments qu’il a reçus de la nature ; erreurs produites par
l’erreur plus générale de regarder comme l’homme de la nature, celui que l’état actuel de la société leur offrait, c’est-à-dire l’homme
corrompu par les préjugés, par les intérêts des passions factices, et par [les] habitudes sociales”. CONDORCET, 2004, p. 290-291. Ele
não apenas evoca a Grécia Antiga e Roma, mas igualmente a Idade Média, a Inglaterra, a Itália etc. Condorcet já havia teorizado
sobre o recurso à história em o Discours préliminaire de l’Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des
voix; cf. CONDORCET, 1986, p. 10-12.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 47
feito para desenvolver o espírito de acordo com uma hipótese ideal e que deve ser
dirigida ao homem, nos espaços imaginários onde ele vive.15
Democracia política
15 Texto em francês: “La Constitution de 1795, tout comme ses aînées, est faite pour l’homme. Or, il n’y a point d’homme dans le monde.
J’ai vu, dans ma vie, des Français, des Italiens, des Russes, etc...; je sais même, grâce à Montesquieu, qu’on peut être Persan: mais quant à
l’homme, je déclare ne l’avoir rencontré de ma vie; [...] une constitution qui est faite pour toutes les nations, n’est faite pour aucune: c’est
une pure abstraction, une œuvre scolastique faite pour exercer l’esprit d’après une hypothèse idéale, et qu’il faut adresser à l’homme,
dans les espaces imaginaires où il habite”. MAISTRE, Joseph de. Considérations sur la France. 2. ed. London, 1797, p. 101-102.
16 BONALD, Louis de. Observations sur un ouvrage posthume de M. de Condorcet. In: BONALD, Louis de. Théorie du pouvoir
politique et religieux dans la société civile. [S.l.]: Constance, 1796, t. 2, p. 482-520.
50 A globalização das luzes
natureza que os elementos de que ele é formado e que o germe de que ele é o
desenvolvimento.
Bonald conclui que o homem se deprava e se “desconstitui” a si mesmo que-
rendo constituir a sociedade e que a sociedade constitui o homem constituindo-se
a si mesma.17 As consequências de uma tal concepção têm uma tradução política
que Bonald exprime em sua crítica do Esquisse [Esboço]:
Não devemos esquecer de sublinhar que o filósofo, supondo que os que terão neces-
sidade de ser instruídos não se deixarão conduzir, e que os outros, que terão necessidade de ser
governados, não se abandonarão a seus governantes com uma cega confiança, estabelece,
em princípio, na sociedade, a revolta contra a autoridade, seja religiosa, seja política,
o direito de julgar seus senhores e de desobedecer a seus chefes; e, com isso, ele
constitui a anarquia, seja nas opiniões, seja nas ações exteriores.18
Moral e perfectibilidade
17 A leitura bonaldiana do Esquisse [Esboço] é das mais fundamentais, pois, inscrevendo-se num vazio teórico deixado pelos ideólogos,
ela restitui toda sua espessura à obra. Para ele, o Esquisse [Esboço] é exemplar, exemplar porque revela a natureza radical do confronto
entre duas concepções: “Se eu tivesse defendido a religião e a monarquia, estas duas bases da felicidade da raça humana, com tanto
talento como M. de Condorcet emprega na sua luta, talvez se pudesse com alguma razão, lendo o seu trabalho e o meu, dizer que o
caso está suficientemente instruído, e que está num estado a ser julgado”. No original em francês: “Si j’eusse défendu la religion et la
monarchie, ces deux bases du bonheur de l’espèce humaine, avec autant de talent que M. de Condorcet en emploie à les combattre, on
pourrait avec quelque raison peut-être, en lisant son ouvrage et le mien, dire que l’affaire est suffisamment instruite, et qu’elle est en
état d’être jugée”. BONALD, op. cit., p. 485.
18 No original, em francês: “Il ne faut pas oublier de remarquer que le philosophe, en supposant que les uns qui auront besoin d’être
instruits ne se laisseront pas conduire, et que les autres, qui auront besoin d’être gouvernés, ne s’abandonneront pas à leurs gouvernants avec une
aveugle confiance, établit en principe, dans la société, la révolte contre l’autorité soit religieuse, soit politique, le droit de juger ses maîtres,
et de désobéir à ses chefs; et par là il constitue l’anarchie, soit dans les opinions, soit dans les actions extérieures”. Ibidem, p. 467.
19 MALTHUS, Thomas Robert. An essay on the principle of population: as it affects the future improvement of society, with remarks on
the speculations of M. Godwin, M. Condorcet, and other writers. London: J. Johnson, 1798. 2 vols.
52 A globalização das luzes
20 Um fragmento do texto (“a igualdade de fato, o objetivo final da arte social”) serve de epígrafe ao Manifeste des Égaux [Manifesto
dos Iguais] (1796), de Gracchus Babeuf, publicado em 1828 por Buonarroti. Jean Reynaud, na l’Encyclopédie nouvelle [Enciclopédia
Nova], retoma as proposições programáticas do último capítulo do l’Esquisse [Esboço]. Um pouco mais tarde, Jean Jaurès, fundador do
jornal L’Humanité [A Humanidade], verá nele um dos predecessores do socialismo: “Entre os meios múltiplos de reduzir a desigualdade
que Condorcet indica, ele insiste no vasto sistema de seguridade universal e social. A mutualidade, não estreita, não fragmentária,
não superficial, mas estendida a todos os indivíduos contra os riscos, inclusive aquele que resulta na ausência de capital, portanto, a
mutualidade mais próxima disso que nós chamamos hoje de socialismo, eis o que entrevê, o que propõe o grande espírito de Con-
dorcet”. No original francês: “Parmi les moyens multiples de réduire l’inégalité qu’indique Condorcet, il insiste sur un vaste système
d’assurance universelle et sociale. La mutualité, non pas étroite, non pas fragmentaire, non pas superficielle, mais étendue à tous les
individus contre tous les risques, y compris celui qui résulte de l’absence de capital, donc la mutualité la plus voisine possible de ce que
nous appelons aujourd’hui socialisme, voilà ce qu’entrevoit, ce que propose le grand esprit de Condorcet”. JAURÈS, Jean. Histoire
socialiste de la révolution française (1901-1908). Édition revue et annotée par Albert Soboul. Paris: Éditions Sociales, 1969, t. 6, p. 474.
21 MALTHUS, op. cit., p. 11.
22 No original francês: “s’ils ont des obligations à l’égard des êtres qui ne sont pas encore, elles ne consistent pas à leur donner l’existence
mais le bonheur”. CONDORCET, 2004, p. 445.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 53
23 No original francês: “ceux des individus, des réunions spontanées dans le cas d’une formation libre et primitive, ou d’une séparation
devenue nécessaire”. Ibidem, p. 446.
24 No original francês: “Effets sur l’état moral et politique de l’espèce humaine de quelques découvertes physiques, comme du moyen
de produire avec une certaine probabilité des enfants mâles ou femelles, à son choix, de produire des enfants sans l’union de la mère
avec aucun homme, etc., ce qui peut en résulter pour ou contre le perfectionnement continu de l’espèce”. Ibidem, p. 923-937.
25 Na versão em francês: “espèce de concubinage ou un mélange des sexes exempt de toute gêne”. MALTHUS, op. cit., p. 12-13.
26 Ibidem, p. 17.
27 CONDORCET, 1986.
54 A globalização das luzes
não possa ser sustentada; e não temos mais o direito de negar que a lua entrará em
contato com a terra, do que afirmar o próximo nascer do sol.28
Com isso, o filósofo das Luzes é acusado de se apoiar sobre uma escolástica
que acomoda a realidade a um sistema de pensamento.
A radicalidade das leituras dos anti-ilustrados contribui para reconhecer, no
pensamento de Condorcet, sua profundidade e sua importância filosófica e política.
A partir daí, cada revolução terá o seu Burke ou Louis de Bonald para denunciar
os perigos da filosofia do Iluminismo através das teses do filósofo.29
28 Na versão em francês: “La constance des lois de la nature et du rapport des effets aux causes est le fondement de toutes les
connaissances humaines. Si, sans aucun indice préalable de changement, nous pouvons affirmer qu’un changement aura lieu, il n’est
aucune proposition que l’on ne puisse soutenir ; et nous n’avons pas plus droit de nier que la lune va se mettre en contact avec la terre,
que d’affirmer le prochain lever de soleil”. MALTHUS, op. cit., p. 14-15.
29 Para fazer aparecer a relação de causalidade entre a Filosofia das Luzes e a Revolução (no caso, a de 1848), Saint-Beuve analisa
os fundamentos filosóficos da ação política de Condorcert. À maneira de Bonald, ele opõe, de um lado, o espírito orgânico que remete
para uma ordem de pensamento positiva, apoiando-se sobre a realidade dos fatos e cuja finalidade é somente conter o progresso na
ordem, e, de outro lado, “o espírito de sistema” fundado sobre um conjunto de ideias consideradas na sua coerência mais do que em sua
verdade. Depois da Comuna de Paris (1817), sua filosofia da história foi condenada por Edme Caro, titular da cátedra de filosofia geral
na Sorbonne. Todo o começo de seu artigo, que versa sobre o progresso social, mostra retomar as concepções de Condorcet. Ele até faz
uma comparação da filosofia com Schopenhauer. Mas quando Caro deixa o mundo das ideias e volta à história concreta, Condorcet
torna-se imediatamente o modelo dos comunardes: “[O (Esboço) é] o evangelho de toda uma escola que inspira ainda e que se pode
chamar pelo nome de que ela se glorifica ela mesma, a escola revolucionária, quero dizer aquela que proclama a Revolução como
uma instituição permanente [...]. Ela refez, ela refaz todos os dias, o livro de Condorcet, ajuntado-lhe um capítulo sobre a revolução
[...]. Suas disciplinas repetem a lição do mestre acrescentando-lhe alguns pontos de vista novos, algumas percepções recentes tiradas
das ciências positivas [...] Eles tomaram ao mestre não apenas o gosto da hipérbole e da declamação, sua intolerância, sua prodigiosa
desinteligência da história, mas também sua doutrina filosófica: o desenvolvimento ilimitado do progresso no tempo e na natureza
do homem”. No original em francês: “[L’Esquisse est] l’évangile de toute une école qui s’en inspire encore et que l’on peut bien appeler
du nom dont elle se glorifie elle-même, l’école révolutionnaire, j’entends celle qui proclame la Révolution comme une institution en
permanence […]. Elle a refait, elle refait tous les jours le livre de Condorcet, en y ajoutant un chapitre sur la révolution […]. Ses disciples
répètent la leçon du maître en y ajoutant quelques vues nouvelles, quelques aperçus récents tirés des sciences positives […]. Ils ont pris au
maître non seulement le goût de l’hyperbole et de la déclamation, son intolérance, sa prodigieuse inintelligence de l’histoire, mais aussi
sa doctrine philosophique: le développement illimité du progrès dans le temps et dans la nature de l’homme”. CARO, Edme. Le progrès
social. Revue des Deux Mondes, 15 oct. 1873, p. 757-758.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 55
30 SCHANDELER Jean-Pierre. Les interprétations de Condorcet: symboles et concepts (1794-1894). Oxford: Voltaire Foundation, 2000.
31 SCHANDELER, Jean-Pierre. La construction des Lumières par l’édition et la traduction. In: SALAÜN, Franck; SCHANDE-
LER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018, p. 25-33; e SCHANDELER, Jean-Pierre.
Contemporary forms of Enlightenment mobilization: an attempt at definition. Revue de Synthèse, t. 142, n. 3-4, p. 581-622, 2021.
56 A globalização das luzes
da oposição a toda forma de tirania. Num tempo mais longo, ele permite situar
no centro do debate a questão do progresso geral da humanidade, mesmo se cer-
tos aspectos deste progresso (longevidade, perfectibilidade indefinida, evolução
da moral inerente às questões de sexo e de reprodução, definição de uma ciência
moral como instrumento desse progresso) não recolhem unanimidade. Condorcet
terminará, nos anos 1890, por povoar a memória coletiva republicana e se tornará
uma das figuras incontornáveis do seu discurso das origens.
E o espelho contemporâneo?
progressos científicos e técnicos. Eles são sustentados pelo retorno, no debate pú-
blico, de uma moral religiosa que se encarna de maneiras diferentes na Europa,
nos Estados Unidos ou na América do Sul.
A tudo isso se conjuga a manipulação da linguagem política que se refere
ao que remete ao pesadelo orwelliano32 e que é a marca dos períodos de fortes ten-
sões. Já sob a Revolução Francesa, a expressão “contrarrevolucionário” permitia
designar os revolucionários que não partilhavam das ideias vitoriosas do momento
(alternadamente, o girondino, o proprietário, o financista, o acadêmico). As dita-
duras do século usaram esse estratagema para se manter. Mas perto de nós, o caos
semântico permite justificar o caos ideológico graças ao qual, por exemplo, um
regime nacionalista “ forte ” quase consegue fazer-se passar por uma democracia.
De tais manipulações linguísticas e ideológicas nascem os termos fantasmagóricos
como “mundialismo”, “casta”, “sistema”, “elites”, que alguns conjuram com uma
mística do “povo”, sem hesitar em recolocar em causa a legitimidade democrática.
É contra esta estratégia do caos semântica que lutava precisamente Con-
dorcet, quando ele desejava desenvolver uma linguagem do político e da ciência
social, que seria equidistante da expressão erudita e da linguagem comum, de tal
maneira que ela não criaria qualquer ambiguidade e seria compreendida por to-
dos. 33 Um dos exemplos que se pode recuperar é a definição que ele propõe para
o termo “revolucionário”:
De Revolução nós fizemos revolucionário, e este termo, no seu sentido geral, exprime
tudo o que pertence a uma revolução. Mas se criou para a nossa, para aquela que, de
um dos Estados desde muito submetido ao despotismo, fez, em poucos anos, a única
república onde a liberdade alguma vez teve como base uma completa igualdade
32 ORWELL, George. Nineteen eighty-four. London: Secker & Warburg, 1949. “La guerre c’est la paix” ; “La Liberté c’est l’esclavage” ;
“l’ignorance c’est la force”. Tradução nossa: “A guerra é a paz”; “A liberdade é a escravidão”; “a ignorância é a força”.
33 Sobre a relação entre linguagem e democracia, ver LOTY, Laurent; PIGUET, Marie-France. Histoire des mots et histoire des
sciences de l’homme: héritage séculaire et nouvelles perspectives. Revue de Synthèse, v. 128 , n. 1-2, p. 233-238 , 2007; DROIXHE, Daniel.
Condorcet: la démocratie linguistique malgré tout. In: GROSSE, Sybille; NEIS, Cordula (eds.). Langue et politique en France à l’époque des
Lumières. Frankfurt am Main: Domus Editoria Europaea, 2008; e SCHANDELER, Jean-Pierre. La langue des sciences sociales dans
le Tableau historique de Condorcet. Revue de Synthèse, t. 133, n. 3, p. 345-367, 2012.
58 A globalização das luzes
R eferências bibliográficas
ARROW, Kenneth J. Social choice and individual values. New York: John Wiley and Sons, 1951.
BURKE, Edmund. Reflections on the revolution in France and on the proceedings in certain societies
in London relative to that event. London, 1790.
______. Réflexions sur la révolution de France, et sur les procédés de certaines sociétés a Londres relatifs
a cet événement. Paris, 1791.
34 No original em francês: “De Révolution nous avons fait révolutionnaire, et ce mot, dans son sens général, exprime tout ce qui
appartient à une révolution. Mais on l’a créé pour la nôtre, pour celle qui, d’un des états soumis depuis longtemps au despotisme, a fait,
en peu d’années, la seule république où la liberté ait jamais eu pour base une entière égalité des droits. Ainsi, le mot révolutionnaire ne
s’applique qu’aux révolutions qui ont la liberté pour objet”. CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Sur le sens
du mot Révolutionnaire. In: CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de; SIEYÈS, Emmanuel-Joseph; DUHAMEL,
Jules Michel. Journal d'instruction sociale par les citoyens Condorcet, Sieyes et Duhamel, 1793. Paris: EDHIS, 1981.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 59
______. Réflexions sur la Révolution de France: suivi d’un choix de textes de Burke sur la
Révolution. Traduction de Pierre Andler; presentation de Philippe Raynaud; annotations
d’Alfred Fierro et Georges Liébert. Paris: Hachette, 1989.
CARO, Edme. Le progrès social. Revue des Deux Mondes, 15 oct. 1873.
CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Essai sur la constitution et
les fonctions des assemblées provinciales (1788). In: O’CONNOR, A. Condorcet; ARAGO,
François (éds.). OEuvres de Condorcet. Paris: F. Didot, 1847a.
______. Sur le sens du mot Révolutionnaire. In: CONDORCET, Jean Antoine Nicolas
de Caritat, Marquês de; SIEYÈS, Emmanuel-Joseph; DUHAMEL, Jules Michel. Journal
d’instruction sociale par les citoyens Condorcet, Sieyes et Duhamel, 1793. Paris: EDHIS, 1981.
______. Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix.
Édite par Olivier de Bernon. Paris: Fayard, 1986.
______. Tableau historique des progrès de l’esprit humain. In: SCHANDELER, Jean-
Pierre; CRÉPEL, Pierre (eds.). Projets, prospectus, fragments, notes (1772-1795). Paris: INED,
2004.
CRÉPEL, Pierre. Condorcet, la théorie des probabilités et les calculs financiers. In:
RASHED, Roshdi (éd.). Sciences à l’époque de la Révolution française: recherches historiques.
Paris: Blanchard, 1988, p. 267-325.
JAURÈS, Jean. Histoire socialiste de la révolution française (1901-1908). Édition revue et annotée
par Albert Soboul. Paris: Éditions Sociales, 1969.
LOTY, Laurent; PIGUET, Marie-France. Histoire des mots et histoire des sciences de
l’homme: héritage séculaire et nouvelles perspectives. Revue de Synthèse, v. 128, n. 1-2, p.
233-238, 2007.
MASSEAU, Didier. Les ennemis des philosophes: l’antiphilosophie au siècle des Lumières.
Paris: Albin Michel, 2000.
______. (dir.). Dictionnaire des anti-Lumières et des antiphilosophes: France 1715-1815. Comité
editorial: Laurent Loty, Patrick Brasart et Jean-Noël Pascal. Paris: Champion, 2017. 2 vols.
MALTHUS, Thomas Robert. An essay on the principle of population: as it affects the future
improvement of society, with remarks on the speculations of M. Godwin, M. Condorcet,
and other writers. London: J. Johnson, 1798. 2 vols.
______. La langue des sciences sociales dans le Tableau historique de Condorcet. Revue de
Synthèse, t. 133, n. 3, p. 345-367, 2012.
______. La construction des Lumières par l’édition et la traduction. In: SALAÜN, Franck;
SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire:
CIEDS, 2018.
STERNHELL, Zeev. Les Anti-Lumières du XVIIIe à la Guerre froide. Paris: Fayard, 2006.
Expansionismo maçônico e a cultura
das Luzes no mundo luso -brasileiro
Alexandre Mansur Barata
1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa, maço 38, doc. 411. A transcrição deste sumário foi publi-
cada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, precedida por um estudo crítico de David Higgs. Cf. HIGGS, David. O Santo
Ofício da Inquisição de Lisboa e a “Luciferina Assembleia” do Rio de Janeiro na década de 1790. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 162, n. 412, p. 239-384, jul./set. 2001.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 63
2 HARLAND-JACOBS, Jessica. Builders of Empire: freemasons and British imperialism, 1717-1927. Chapel Hill: The University of
North Caroline Press, 2007.
64 A globalização das luzes
3 HARLAND-JACOBS, Jessica. Fraternidad global: masonería, imperios y globalización. Revista de Estudios Historicos de la Masoneria
Latinamericana y Caribeña, n. esp., p. 69-88, 2013.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 65
Cunha, que, além de reproduzir os termos gerais da Bula Papal, exortava a todos,
sob pena de excomunhão, que denunciassem, num prazo de 30 dias, pessoas co-
nhecidas por serem “Pedreiros Livres” ou maçons.4 Tudo leva a crer que as duas
lojas citadas cessaram suas atividades após as publicações da Bula Papal e do
Edital de Fé.
A inclusão do pertencimento maçônico no rol dos crimes sob a alçada in-
quisitorial produziu seus primeiros efeitos concretos entre os anos de 1742 e 1744,
quando foram presos e processados quatro maçons.5 Três deles – John Coustos,6
Alexandre-Jacques Mouton e João Tomás Bruslé – saíram em auto de fé público
em 21 de junho de 1744. Além das penitências espirituais, Coustos foi mandado
para as galés do rei por quatro anos. Mouton e Bruslé foram degredados para fora
do Patriarcado de Lisboa por cinco anos. Por sua vez, o quarto processado – João
Baptista Richard –, em função de sua conversão ao catolicismo, foi absolvido ad
cautelam da excomunhão em que teria incorrido.7
As perseguições da década de 1740, embora não tenham impedido a conti-
nuidade do funcionamento de lojas maçônicas em Portugal, acabaram por desace-
lerar o ritmo de sua expansão. Dessa forma, foi apenas no início da década de 1790
que o associativismo maçônico ganhou maior dinamismo com o funcionamento
de lojas em Lisboa, Coimbra e Funchal.
Em 1794, por exemplo, Antônio Bandeira Monteiro denunciou à Mesa
da Inquisição de Coimbra vários estudantes daquela universidade pelo fato de
possuírem livros considerados proibidos, de fazerem proposições heréticas e de
serem maçons.8 Disse aos inquisidores que, em conversas com Patrício Morfi, ficou
sabendo que em Coimbra existia um grande número de maçons, que se reuniam
à noite nos bosques e durante o dia na loja do chapeleiro Rosa.
Também disse que em Lisboa a bordo de Navios Ingleses estes sectários tinham
uma espécie de templo no qual tinham um altar e nele as Pessoas da SS. Trindade,
4 Este Edital de Fé (28/09/1738) encontra-se reproduzido em MARQUES, A. H. de Oliveira. História da Maçonaria em Portugal: das
origens ao triunfo. Lisboa: Presença, 1990, v. 1, p. 29-30.
5 ANTT. Inquisição de Lisboa, processos 10115, 257, 10683, 4867.
6 Cf. COUSTOS, John. The sufferings of John Coustos. London: W. Strahan, 1746.
7 DIAS, Graça; DIAS, Jose Sebastiao da Silva. Os primórdios da maçonaria em Portugal. 2. ed. Lisboa: INIC, 1986, v. 2, t. 2, p. 711-712.
8 ANTT. Inquisição de Coimbra, Promotor – Caderno 118 / 2 ª Série, Livro 410.
66 A globalização das luzes
no teto o sol pintado com algumas figuras de Geometria e me parece disse também
que tinham uma régua, uma trolha, e um compasso, e que os que queriam entrar
para a dita seita que estavam da parte de fora com um lenço nos olhos e que lhe
perguntavam depois dele ter tocada uma campainha o que queria, e ele respondia
“quero ver luz” […]. 9
Finalmente acho-me neste continente, e bem contra minha vontade. Até aqui bem
tenho passado, porque a bordo achei amigos que me procuraram um tratamento
como passageiro o mais atendido. Na Ilha das Cobras, em que me acho, tenho sido
assaz distinguido pelo Governador e seu filho, que dá toda a liberdade. A sua casa é
o meu quartel: em toda a parte acho homens honrados :. . Na Índia espero também
encontrá-los no pouco tempo que espero ali demorar-me; [...].15
[...] tendo feito tenção de girar pelos portos da Ásia, entregue ao negócio e tendo
ouvido dizer, que ali havia muitos Pedreiros Livres, e que estes prestavam entre
si mútuo auxilio, se tinha lembrado ser um deles em atenção aos seus interesses;
porém não se tendo verificado então o seu destino, também se não verificou a sua
recepção; e só passados seis anos, tempo em que ouviu falar com mais calor nesta
Sociedade, se resolveu a entrar nela por ímpeto de mera curiosidade; não tendo
já em vista o primeiro fim, porque já não formava tenção de sair desta Corte.16
Assim, a paixão precisava ser vigiada e educada. Se assim não fosse, a paixão
acarretaria a ruína moral. Com seus rituais e cerimônias, trajes e símbolos, com a
valorização do vínculo baseado no compartilhamento de um segredo, nas práticas
do juramento, da discrição e do autocontrole, a maçonaria, de modo singular, se
compararmos com outras formas associativas modernas, forneceu, ao longo dos
séculos XVIII e XIX, um espaço de experiência para a internalização dessas novas
regras de conduta moral. Como ressalta Iara Lis Schiavinatto, seria, então, a partir
do “governo de si” que a “felicidade geral” seria alcançada. Experimentava-se uma
lógica que ia do indivíduo à sociedade e vice-versa.23
Essa percepção da maçonaria permaneceu ao longo do século XIX. Em
1839, o jornal Archivos Maçônicos, editado por Francisco Gê Acaiaba Montezuma,
publicou o discurso de um maçom francês chamado Desanlis. A publicação inten-
cionava reforçar junto ao público brasileiro a associação essencial entre maçonaria
e educação:
O estudo, meu amigo, não tem nada deste falso prestígio; tudo nele é felicidade,
e felicidade sincera, sem pesares, sem remorsos: ele compensa exuberantemente
das fadigas que causa; cada hora, cada instante tem o seu salário; ele paga sempre
em boa moeda. [...] Entreguemo-nos ao estudo das letras, das ciências e das artes,
porque nos instruem e servem ao progresso social. [...] Entreguemo-nos ao estudo
de nós mesmos, sobretudo, a fim de estarmos incessantemente acautelados contra
nossas fraquezas e os nossos erros, e de sermos sempre tolerantes, sempre sinceros,
sempre humanos, sempre justos.24
22 FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Circulação e apropriação de concepções educativas: pensamento ilustrado e manuais peda-
gógicos no mundo luso-americano colonial (séculos XVIII-XIX). Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 32, n. 3, p. 167-185, set. 2016.
23 SCHIAVINATTO, Iara Lis. Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos homens e de si (c. 1780-1830). In: MALERBA,
Jurandir (org.). A Independência Brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
24 Apud AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Maçonaria, anti-racismo e cidadania: uma história de lutas e debates transnacionais. São
Paulo: Annablume, 2010.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 73
Mas a ação educativa maçônica não se reduzia ao mundo fechado das lojas.
No caso do Brasil, após o protagonismo político e da repressão vivenciada nos
tempos que se seguiram à Independência, a maçonaria se reorganizou no início
da década de 1830. Os maçons e a maçonaria passaram a vivenciar uma situação
de quase total visibilidade. Muitos maçons passaram a ocupar importantes cargos
públicos. As perseguições que marcaram o início da década de 1820 haviam cessado.
Os locais das reuniões maçônicas eram conhecidos e importantes figuras políticas
assumiam publicamente fazer parte de alguma loja maçônica.
Todavia, essa maior visibilidade da sociabilidade maçônica foi acompanha-
da, do ponto de vista organizacional, por uma miríade de divisões e disputas de
poder, bem como por um processo de nacionalização, com lojas maçônicas funcio-
nando em todas as províncias do Brasil e com uma expressiva capacidade de recru-
tamento de novos filiados. Se, entre 1861 e 1865, funcionavam aproximadamente
180 lojas maçônicas, este número cresceu para 244, de 1885 a 1890, e alcançou
um total de 615, entre os anos de 1901 e 1905. Características que diferenciavam
a sociabilidade maçônica das demais formas associativas existentes no Brasil.
25 ÁLVAREZ LÁZARO, Pedro. Educación esotérica de la masonería española decimonónica. Historia de la Educación, Salamanca,
v. 9, n. 9, 1990.
74 A globalização das luzes
26 RIBEIRO, Luaê Carregari Carneiro. Uma América em São Paulo: a Maçonaria e o Partido Republicano Paulista (1868 -1889). 2011.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 75
28 CANDIÁ, Milena. Projetos e realizações culturais e pedagógicas maçônicas. 2013. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2013.
29 BOLETIM DO GRANDE ORIENTE DO BRAZIL. Rio de Janeiro, v. 25, n. 8-10, out./dez. 1900.
30 PERNAMBUCO, Belisário. A Maçonaria e o proletariado: comemoração do 1º de maio. Rio de Janeiro: Typ. da Papelaria Ribeiro,
1903, p. 8.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 77
31 Ibidem, p. 22.
32 Ibidem, p. 15.
33 BOLETIM DO GRANDE ORIENTE DO BRAZIL. Rio de Janeiro, maio 1872, p. 182.
78 A globalização das luzes
tenho tentado demonstrar, não pode ser reduzido aos limites temporais da chamada
“Questão Religiosa”. A citação nos ajuda a dimensionar esse projeto:
Já por diversas vezes temos procurado despertar entre nós o interesse por esse gênero
de instrução fecunda, agradável e gratuita. De novo lembramos principalmente aos
bons maçons a inauguração das conferências públicas. [...] Lembremo-nos que a
instrução ampla e gratuita, por qualquer forma dada ao povo, será a base sólida da
maçonaria. [...] Lembremo-nos ainda que a maçonaria é uma vasta escola da mais
pura filosofia. A instrução é o seu principal desideratum. Nos templos abramos os
livros da verdade, pois importa muito que sejamos instruídos. No mundo profano
abramos escolas, instituamos conferências francas para o povo; daí virá o grandioso
futuro compensar as fadigas do presente.34
Considerações finais
34 BOLETIM DO GRANDE ORIENTE UNIDO E SUPREMO CONSELHO DO BRAZIL. Rio de Janeiro, abr./jul. 1874, p.
515-516.
35 BEAUREPAIRE, Pierre-Yves. Sociabilidad y francmasonería: propuestas para una historia de las prácticas sociales y culturales
en el Siglo de las Luces. Revista de Estudios Historicos de la Masoneria Latinamericana y Caribeña, v. 5, n. 1, p. 1-13, 2013.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 79
maçônica foi muito mais complexa que essa imagem cristalizada, primeiramente,
pelas autoridades repressivas e, depois, pela própria historiografia. Ter em conta
que existiram muitas maçonarias talvez nos permita compreender as tonalidades
das Luzes no mundo luso-brasileiro.
R eferências bibliográficas
CANDIÁ, Milena. Projetos e realizações culturais e pedagógicas maçônicas. 2013. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
DIAS, Graça; DIAS, Jose Sebastiao da Silva. Os primórdios da maçonaria em Portugal. 2. ed.
Lisboa: INIC, 1986.
RIBEIRO, Luaê Carregari Carneiro. Uma América em São Paulo: a Maçonaria e o Partido
Republicano Paulista (1868-1889). 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 2011.
1 GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York; London: W. W. Norton, 1996, v. 1.
2 CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: EdUnicamp, 1997.
3 HAZARD, Paul. La pensée européenne au XVIIIe siècle: de Montesquieu à Lessing. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1979.
4 BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. La ilustración en Europa y en España. Madrid: Endymion, 1999, p. 16-25.
5 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion: the myths of modernity. Manchester; New York: Manchester University
Press, 2003.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 83
6 VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo. Tradução de Modesto Florenzano. Bauru: EDUSC, 2003.
7 OUTRAM, Dorinda. The Enlightenment: new approaches to European history. Cambridge: Cambridge University Press, 1995,
p. 1-13.
8 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Tradução de José
Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 18.
84 A globalização das luzes
9 MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 72-73.
10 Uma síntese sobre o assunto pode ser lida em CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português?: a reforma da Universidade
de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008.
11 Discuto esse desenvolvimento da historiografia sobre as Luzes no mundo luso-brasileiro no primeiro capítulo da minha tese.
ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Entre o “ímpeto secularizador” e a “sã teologia”: tolerância religiosa, secularização e Ilustração católica no
mundo luso (séculos XVIII-XIX). 2019. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019,
p. 26-67.
12 TODOROV, Tzetan. O espírito das Luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarrolla, 2008, p. 10.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 85
Não se trata, é claro, de projetar nos sujeitos que viveram entre a segunda
metade do século XVIII e as primeiras décadas do XIX soluções para problemas
que eles sequer vislumbraram ou deveriam vislumbrar. Nem mesmo ousaria aqui
reivindicar uma circunscrição nacional ou nacionalista, brasileira ou portuguesa,
e muito menos lusófona, para as Luzes. Pelo contrário, proponho, sim, partir
de algumas conclusões e apontamentos feitos sobre a Ilustração no mundo luso-
-brasileiro, sempre à luz dessas novas abordagens historiográficas, para levantar
algumas reflexões sobre questões do presente. Não, efetivamente, para buscar
soluções ou uma historia magistra vitae, mas fazer um movimento em direção ao
passado como meio de construir chaves críticas que nos auxiliem a pensar qual é
o nosso lugar na modernidade.
O I luminismo católico
José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, entre 1750 e 1777. Na sua tese,
Miller defende que o ministro de d. José I, influenciado pelas Luzes e auxiliado
por um corpo de pensadores ilustrados católicos, muitos dos quais eclesiásticos,
desenvolveu e colocou em prática uma nova agenda política, elaborada em cima
de um corpo doutrinário inédito. Miller descreveu tal agenda como um tipo de
regalismo, que afirmava poderes régios em diversos pontos de conflito de jurisdição
civil e eclesiástica, em conexões com doutrinas tais como o episcopalismo, o galica-
nismo e o jansenismo. Assim, no Portugal pombalino, articularam-se tentativas de
avanço e centralização dos poderes civis com tendências que visavam a “ilustrar”
o catolicismo, criando um campo bem amplo de conflitos, próprios do contexto
católico na Ilustração.
Ulrich L. Lehner, por sua vez, define o Iluminismo católico como fenômeno
multifacetado, que tomou os intelectuais católicos, de meados do século XVIII até o
início do século XIX, e combinou várias vertentes de pensamento e uma variedade
de projetos, que foram implementados com intuito de reformar o catolicismo, de
maneira que dialogasse com a cultura contemporânea. Tal diálogo envolvia uma
nova aproximação hermenêutica do pensamento católico com o Concílio de Trento,
o que passava por algumas querelas, tais como entre jansenistas e regalistas, mas que
também trazia consigo releituras e conciliação de alguns valores, tidos por globais,
do processo do Iluminismo europeu, nas vertentes do pensamento católico, visando
“renovar” e “reformar” as sociedades como um todo.15
Na historiografia portuguesa, o livro de Cabral de Moncada sobre Verney16 é
um marco importante para uma abordagem historiográfica na qual o catolicismo é
entendido como realidade que atravessou os desenvolvimentos do Iluminismo luso.
O livro coloca diversas questões e problemas que orientavam embates presentes
naquele contexto. Embora na abordagem de Moncada o catolicismo seja tomado
como especificidade daquelas Luzes não secularizadas, ela deixa patente que o
mundo católico português teve seus próprios desenvolvimentos do pensamento
17 HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Oficina da Inconfidência, Ouro Preto, v. 4, n. 3, p. 11-47,
dez. 2004; e HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Via Atlântica, v. 1, n. 1, p. 40-53, 1997.
88 A globalização das luzes
18 SANTOS, Cândido dos. Matrizes do Iluminismo Católico da época pombalina. In: SILVA, Francisco Ribeiro da et al. (orgs.). Estudos
em homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, v. 3, p. 949-956.
19 MELO, Francisco de Pina de Sá e de. Triumpho da religião: poema epico-polemico que a’ Santidade do Papa Benedito XIV dedica
Francisco de Pina e de Melo, moço fidalgo da Casa de Sua Magestade, e Academico da Academia Real de Historia Portugueza.
Coimbra: Na Officina de Antonio Simoens Ferreyra, Impressor da Universidade, 1756.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 89
católica. Ao longo dos livros, o Peregrino duela com filósofos e figuras-chave de várias
religiões instituídas, como o hebraísmo (Livro VII), o maometismo (Livro VI), o
luteranismo e o calvinismo (Livro VIII). Faz o mesmo contra tendências religioso-
-filosóficas identificadas com o pensamento iluminista, como o ateísmo (Livro I),
o deísmo (Livros III) e a libertinagem (Livros IV e V). Ao fim, o Peregrino se vê
diante da própria alegoria antropomorfizada da verdade, configurando sua vitória.
Assim, o Triumpho é uma narrativa em que o catolicismo só pode se impor
aos demais sistemas com o uso da razão. Além disso, ainda que de forma sutil, há
um relativo reconhecimento de alguns pontos válidos nos demais sistemas, o que
reforça que somente com o uso das Luzes e da razão, e não com a reafirmação
mecânica de dogmas e tradições, o catolicismo poderia triunfar, mostrando-se mais
sólido diante da própria razão natural. Esse tipo de entendimento do catolicismo
era ponto-chave da agenda que visava superar um presumido atraso português
diante das nações “civilizadas”, o que talvez seja a marca mais substantiva desse
processo modernizador específico.
longa duração. Não é objetivo fazer isso aqui, mas sim salientar sua presença nas
mentalidades lusas da Ilustração, orientando projetos e ações de diversas figuras.
Nas ações e na documentação sobre o marquês de Pombal, a tópica do atraso,
que teria seguido a uma decadência, aparece de maneira marcante. Um exemplo
está em uma carta datada de 2 de fevereiro de 1777, terceira de um conjunto de
17 atribuídas ao ministro, originalmente escritas em inglês, organizadas e publi-
cadas em 1822. Nela, Pombal apresentava uma série de lamentos sobre Portugal,
a começar pela agricultura que, para o ministro, “antes não só fornecia trigo para
o seu próprio consumo, mas igualmente supria a alguns outros países”. Mas isso
teria mudado depois do tratado celebrado com a Inglaterra em 1703, “obrigando
aquela potência a tomar os vinhos de Portugal em troca de suas fazendas de lã”.
Isso gerou pobreza em Portugal que, segundo Pombal, ficara repleto de campos
férteis, dos quais se “daria [alg]um produto na mão de um Povo industrioso”,
completando que:
Não se deve alegar, que há uma natural falta no gênio dos Povos Meridionais.
Os anais de Portugal contradizem esta opinião; os Tirios e Cartagineses dão um
exemplo do contrário, e devemos procurar a causa mais depressa na natureza do
governo, do que atribuí-las ao defeito do clima.24
24 POMBAL, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de. Cartas e outras obras selectas do Marquez de Pombal, Ministro e Secretario
D’Estado D’El Rei D, Joze I com epítome da vida deste Ministro e ornado do seu retrato. Lisboa: Typ. De Desiderio Marques Leão, 1822, t. 2.
Digitalizado por Harvard University, 2009, p. 178 (grifos nossos). Disponível em: https://catalog.hathitrust.org/Record/009721362.
Acesso em: 02 maio 2018.
92 A globalização das luzes
Para recuperar tal espírito, Pombal toma o “exemplo da Holanda, cujo clima
não sendo favorável às artes”, pela sua pequena população e território reduzido,
não impediu que aquele país prosperasse, sendo “tão mudado pela indústria, que a
abundância veio suceder à geral carestia” de recursos. Conclui Pombal que “uma
nação pobre em si mesma, em outro tempo tributária às mais”, como era a Holan-
da, “achava-se agora em estado tal que as outras contribuem para o aumento de
sua prosperidade e riqueza”.25 Pombal, então, defendia que a posição periférica de
uma nação ou seu atraso podiam ser revertidos com um bom governo, a despeito
de limitações externas.
No diagnóstico sobre Portugal prestes a ser posto sob o reinado de d. José I,
feito pelo diplomata d. Luís da Cunha, no seu Testamento Político (1749), há alguns
pontos similares aos que aparecem nas cartas do marquês de Pombal – a quem o
diplomata, no mesmo Testamento, indica como ministro. No texto, Cunha faz lamentos
sobre o estado da economia, cultura e posição geopolítica de Portugal. O diplomata
atribui tal estado lamentável do seu país, dentre outros fatores, a quatro sangrias
que ceifariam as potencialidades do reino. A Inquisição era uma dessas sangrias,
pois provocara o despovoamento de Portugal, devido às perseguições religiosas e
à consequente destruição das manufaturas e do comércio, por criar barreiras para
o trato com nações de outras religiões. Havia outras sangrias, como o excesso de
frades vivendo em terras férteis entregues à Igreja e às ordens religiosas. D. Luís da
Cunha afirmava que, além desses religiosos não produzirem nada pelo trabalho,
eram sustentados por impostos dos súditos e, ainda, seu celibato ajudava a manter o
reino despovoado. Também criticava os tratados comerciais portugueses, sobretudo
o de 1703, além de ressaltar os prejuízos e o isolamento produzidos pela intolerância
contra judeus e pela separação entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ao longo de
todo o texto, d. Luís da Cunha usava como metáfora que aludia ao monarca a figura
do médico, que deveria cuidar de um corpo doente que, por sua vez, era o reino
de Portugal. Esse mesmo reino de Portugal, apesar de representado como corpo
adoecido, era repleto de capacidades intrínsecas. No argumento do diplomata luso,
essas qualidades lhe eram reprimidas ou tolhidas pela irracionalidade com a qual
25 Ibidem, p. 180-181.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 93
fora cuidado. Assim, Cunha argumentava no Testamento Político que o novo rei, sendo
ele ilustrado e diligente, além de aconselhado por quem também o fosse, poderia
alterar a situação de doença do corpo.26
Já Verney, em carta intitulada Diagnóstico cultural da vida intelectual dos Portu-
gueses, escrita em Roma e datada de 1 de janeiro de 1753, em resposta a outra que
o Barbadinho teria recebido, em 8 de junho de 1752, de um remetente desconhe-
cido, demonstra preocupação com o estado da cultura em Portugal, além de um
certo desdém diante da incultura de seus conterrâneos. Na carta, ao reclamar da
censura, feita por “algum jesuitinha da mão furada que se mete a falar no que não
entende”,27 contra uma obra sua,28 além de argumentar que o censor não entendeu
o que disse no livro, Verney reforça que os portugueses estariam tão isolados da
cultura letrada, não lendo mais do que aquilo que havia de mais vulgar entre os
autores estrangeiros, que eles sequer teriam a noção de sua rusticidade, tornando-se
um povo ensimesmado na sua própria ignorância.29
Apesar dessa tópica do atraso luso estar mais disseminada entre vários pen-
sadores portugueses de meados do século XVIII, ela nunca esteve restrita a uma
alta cultura letrada, tendo recepções noutras camadas sociais. Voltarei a esse ponto.
Naquele contexto, era disseminada uma percepção de que uma realidade
marcada por mau governo, instituições decrépitas, excessos de privilégios e de terras
a grupos que pouco ou nada produziam, além de um isolamento que só gerava uma
espécie de ignorância arrogante e orgulhosa, marcavam o estado das coisas no país.
Junto a isso, vinha toda a sorte de mazelas, fazendo que o país ficasse entregue à
26 CUNHA, Luís da. Testamento político, ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José antes do seu governo. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1976.
27 VERNEY, Luís Antônio. Cartas italianas. Prefácio, traduçâo e notas de Ana Lúcia Curado e Manuel Curado. Lisboa: Silabo,
2008, p. 39-40.
28 No caso, o Aloysii Antonii Verneii equitis Torquati archidiaconis Eborensis Apparatus ad philosophiam et theologiam ad usum Lusitanorum
adolescentium libri sex, escrita por Verney em latim, sem jamais ter sido publicada em português. A obra teve um parecer favorável do
Fr. Joannes De Luca Venetus, e nela há uma dedicatória ao rei d. José I. O nome de Verney, como autor, aparece em latim: Aloysius
Antonius Verneius. De acordo com Eduardo Teixeira de Carvalho Junior, trata-se de uma obra cuja proposta é apresentar a melhor
forma de se fazer filosofia, para que os adolescentes portugueses pudessem usá-la com facilidade, como “um aparato”. Ver CARVALHO
JUNIOR, Eduardo Teixeira de. O método de Verney e o Iluminismo em Portugal. 2015. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2015, p. 43.
29 Ibidem, p. 46-47.
94 A globalização das luzes
própria sorte, composto por uma elite não educada para fazer algo útil ao todo30 e
por um povo letárgico, que tampouco poderia corrigir esse destino.
Como mudar? Através de reformas vindas “de cima”.
30 Um diagnóstico próximo a esse pode ser encontrado na obra de Antônio Nunes Ribeiro Sanches, quando propôs uma série de
reformas importantes na educação portuguesa, especialmente das elites. SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação
da mocidade. Nova edição revista e prefaciada pelo dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1922. E-book. Sobre a
disseminação da ideia da educação como meio de promover mudanças profundas nas mentalidades e estruturas sociais portuguesas,
cf. ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
31 Reinhart Koselleck explica esse “acelerar o presente” a partir das categorias históricas “espaço de experiência” e “horizonte
de expectativa”. A primeira categoria denota, grosso modo, o espaço de ação individual e coletivo, ao passo que a segunda remete à
percepção de um futuro possível, produto dessa ação humana, e que não repete o presente, articulando-se aos ideais de progresso, nos
projetos reformistas e nas utopias que marcaram o vocabulário político das Luzes. Segundo o autor, essa aceleração do presente como
percepção do tempo histórico marca a gênese da modernidade. KOSELLECK, Reinhart. Futuro e passado: contribuição à semântica
dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006, p.
305-328.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 95
32 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama e a poética do encômio. São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1999, p. 67-130.
33 ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês
de Pombal e a universidade. 2. ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p. 15-48.
34 HANSEN, 2004, p. 15-16.
35 MONCADA, op. cit., p. 65-74 e 93-95.
36 Essa ideia aparece em carta de Verney sobre os jesuítas. Nela, Verney defendia que bons princípios, úteis para a liberdade e
para o progresso das ciências e letras em Portugal, necessários para a reforma completa das mentalidades e para a extirpação dos
preconceitos nacionais, teriam lugar apenas com uma boa educação do príncipe, segundo o ideário moderno, cercando-o ainda de
uma elite ilustrada, com o afastamento dos aduladores. Nestes últimos, o Barbadinho incluía os jesuítas, com seu “espírito de sedição,
obscurantismo e despotismo”. VERNEY, op. cit., p. 83-84.
96 A globalização das luzes
evocou-se, de maneira inédita até então, o caráter régio do Santo Ofício português,
em detrimento do eclesiástico; dialogou-se com debates iluministas sobre o direito,
ao praticamente banir o uso da tortura e dos autos de fé públicos, impedindo ainda
processos baseados em testemunhas únicas – exceto nos crimes de solicitação – e
aumentando os meios de defesa dos réus, com destaque para o fim do segredo
processual. Além disso, o regimento redefiniu o delito de bruxaria, a ponto de
tratá-lo, na maioria das vezes, como mera superstição. Em casos excepcionais,
alguém convicto da efetividade da bruxaria seria condenado a receber instrução,
sendo tomado por ignorante, ou à internação, por entender-se a crença na bruxaria
como produto de loucura.37
A criação da Real Mesa Censória, em 1768, como um tribunal régio de
censura, mesmo com a composição majoritariamente de clérigos, também significou
uma reforma dos órgãos censores segundo os propósitos do Reformismo Ilustrado.
Com ela, orientava-se o controle da leitura e da circulação de livros em função das
mudanças pretendidas, que visavam conciliar a preservação da ordem monárquica,
da religião e moral católicas segundo valores do Iluminismo católico, rejeitando
tendências materialistas e irreligiosas de outras correntes iluministas, juntamente
com o fanatismo, a ignorância e as superstições atribuídas a formas desreguladas
de devoção católica.38
O antijesuitismo, marcado em publicações como a Relação Abreviada39 e o
Compêndio histórico da Universidade de Coimbra40 e que norteou grande parte da reforma
da Universidade de Coimbra, de 1772, aponta para um aspecto do dirigismo que
37 ROCHA, Igor Tadeu Camilo. O Regimento Inquisitorial de 1774: modernização e dirigismo cultural nos tribunais de fé no
reformismo pombalino. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, v. 30, n. 2, 2017.
38 Sobre a censura no Reformismo Ilustrado, ver VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas,
censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015 (especialmente p. 171-323); e ABREU, Márcia. O controle à publicação de
livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da censura. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 4, n. 4., p. 1-12, out./dez.
2007.
39 RELAÇAÕ Abreviada da Republica que os religiosos jesuítas das Provincias de Portugal, e Hespanha, estabeleceraõ nos Dominios
Ultramarinos das duas Monarchias, e da Guerra, que nelles tem movido, e sustentado contra os Exercitos Hespanhoes, e Portuguezes.
Formada pelos regidos das Secretarias dos dous respectivos Principes Comissarios, e Plenipotenciarios; e por outros Documentos
authenticos. [S.l.: s.n.], 1757.
40 POMBAL, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de. (1771). Compêndio histórico da Universidade de Coimbra no tempo da invasão
dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas sciencias, nos professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos estatutos por
eles fabricados. Edição coordenada, fixação do texto e introdução por José Eduardo Franco e Sara Marques Pereira, prefácios de José
Esteves Pereira e Manuel Ferreira Patrício. Porto: Campo das Letras, 2008.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 97
41 ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instrucción católica y convencimiento racional de los heterodoxos y libertinos, compuesta sobre un sermón pa-
negírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Cuenca: Fernando de la Madrid, 1804, p. 225. Digitalizado por Complutense University
Library of Madrid. Disponível em: https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/BibliographicResource_1000126614905.
html?q=libertino. Acesso em: 02 maio 2021.
42 Ibidem, p. 222.
43 NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra: a perseguição de Antônio de
Morais e Silva. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990, p. 357-371.
44 RAMOS, Luís A. de Oliveira. A irreligião filosófica na província vista do Santo Ofício nos fins do século XVIII: uma tentativa
de exemplificação. Revista da Faculdade de Letras, Porto, 2ª série, v. 5, p. 173-188, 1988.
45 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa: salvação no mundo atlântico ibérico. Tradução de Denise Bottman.
São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 99
mas com raízes que remontam a meados do século XVIII e às difundidas teses da
suposta conspiração maçônica, os libertinos povoavam o imaginário político coevo
como os responsáveis por conspirar contra a religião e a monarquia, a partir das
universidades (no caso luso, especialmente a Universidade de Coimbra), lojas ma-
çônicas, academias literárias e científicas, além de outros espaços de sociabilidade
mais livre e menos controlada por autoridades.46
Mas “libertino” remete a significados que surgiram em séculos anteriores
às Luzes, embora ressignificados por elas. É o que mostra Jean-Pierre Cavaillé,
analisando os conceitos “libertino” e “libertinismo” na literatura escocesa no
século XVII. Para ele, há uma sequência diacrônica no processo de construção
desse arquétipo entre os séculos XVI e XVIII, na qual se sucedem, sem exclusões
mútuas, a caracterização do “libertino espiritual”, estigmatizado por Calvino em
panfleto publicado em 1545, e do “libertino erudito”, na figura do “filósofo céti-
co” e do “espírito forte”, além do “libertino de costumes” ou hedonista, tocante à
liberdade em matéria moral e sexual.47
Já Tulio Gregory, analisando a figura do “libertino erudito” do século XVII,
sintetiza a construção do “libertinismo” nos círculos letrados da Europa ocidental a
partir de cinco características comuns: a) uma erudição que recupera e faz uso da
Antiguidade clássica, além das tradições do Humanismo renascentista, buscando
reconciliar cristianismo e paganismo greco-romano; b) destacado ceticismo, que
rejeita o dogmatismo e encontra no exercício crítico da razão sua própria função,
natural da condição humana e sintetizado no ideal da libertas philosophandi (grosso
modo, a liberdade de pensar); c) o relativismo radical, fortalecido pela experiên-
cia da diversidade, que nega valores universais e reduz normas éticas e práticas
religiosas às suas origens históricas, no sentido de terem sido criadas pelo homem;
d) um entendimento elitista a respeito da posse da cultura letrada, da sabedoria e
do conhecimento detido pelos “espíritos fortes” (que, portanto, não é comunicável
nem ao homem comum iletrado, nem aos letrados escravizados pelos dogmas,
46 Sobre a tese da conspiração maçônica e como ela existia no imaginário político luso-brasileiro entre os séculos XVIII e XIX, ver
MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. O caçador de pedreiros-livres: José Anastácio Lopes Cardoso e sua ação contra a maçonaria
luso-brasílica (1799-1804). Revista de História, n. 176, 2017.
47 CAVAILLÉ, Jean-Pierre. Libertine and libertinism: polemic uses of the terms in sixteenth-and seventeenth-century English and
Scottish literature. The Journal for Early Modern Cultural Studies, v. 12, n. 2, 2012, p. 13-17.
100 A globalização das luzes
48 GREGORY, Tullio. “Libertinisme érudit” in seventh-century France and Italy: the critique of ethics and religion. British Journal
for the History of Philosophy, v. 6, n. 3, 1998, p. 329.
49 SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portuguesa recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente
emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Tipographia Lacerdina, 1813, p. 221.
50 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PRO-
MOTOR. Livro 319, fls. 137-143.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 101
51 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Antônio de Morais, proc. 2015.
52 LEMOS, Francisco de. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1980.
53 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria, proc. 6239, fls. 3-3v.
102 A globalização das luzes
54 Ibidem.
55 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO
PROMOTOR. Livro 319, fls. 24-25.
56 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Apresentação de Gonçalo Garcia, proc. 13638.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 103
O meio militar era outro ambiente em que havia vários casos de libertinos,
como se vê na denúncia de José Adorlo “Bráu” – possível corruptela de um nome
estrangeiro – contra Alberto “Albak” – mesmo caso –, militar agregado ao regi-
mento da praça de São Sebastião, na vila de Setúbal. O denunciante disse que,
numa conversa sobre o seu próprio pai, que também servira ao Exército, teria dito
ao denunciado que ele nascera protestante e morrera católico. A isso, Albak teria
respondido que o pai do denunciante “obrara mal em mudar de lei, pois em todas
havia salvação”, acrescentando, na mesma conversa, que “no Concílio Tridentino,
faltaram somente dois votos para se negar que havia Espírito Santo”.57
Isso remete a um ponto importante: os próprios libertinos, muitos deles fora
do que se poderia chamar de elite letrada, também, muitas vezes, entendiam seus
conterrâneos como atrasados. Tal situação indica que a tópica do atraso também
era compartilhada fora dos círculos letrados. O médico José Vieira Couto,58 por
exemplo, se referia como “patranha portuguesa” ao tratar de algumas devoções
populares, de dogmas eclesiásticos e de tradições católicas. Já o estudante de
medicina “brasileiro” José Antônio da Silva dizia que a Inquisição era “asneira”,
declarava ódio aos frades por eles falarem “apenas de infernos e mais infernos” ou
adjetivava como inútil a política da rainha d. Maria I, que realizava procissões,
em vez de tomar medidas úteis aos súditos.59
Eram comuns, ademais, falas heréticas sobre a liberdade sexual, em que
se observam claramente as dúvidas analisadas por Ronaldo Vainfas, em sua obra
clássica sobre a sexualidade na colônia,60 e formulações críticas marcadas pela
ideia iluminista de natureza ou pela leitura crítica da Bíblia. Um exemplo disso
é o estudante José Antônio da Silva, citado anteriormente, que defenderia que a
masturbação não era um pecado contra o 6º preceito, o qual se referia somente
ao adultério.
Chamo a atenção, ainda, ao extenso processo de Jerônimo Francisco Lobo,
iniciado após ele se apresentar ao inquisidor Antônio Veríssimo de Larre, em 1778,
61 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo. fls, 20-20v.
62 Ibidem, fl. 28. Este livro é atribuído a Gervaise de Latouche. Foi publicado em 1741, trazendo uma narrativa semelhante a memórias
autobiográficas, em que se conta uma série de desventuras de natureza sexual do protagonista, Saturnin, em meio ao clero regular
e dentro de um convento. Sobre sua circulação no Brasil e em Portugal, ver GALVES, Charlote; ABREU, Márcia. A circulação
clandestina de romances e o mistério do “anônimo brasileiro”. Remate de Males, v. 27, n. 1, p. 109-125, jan./jun. 2007.
63 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo, fl. 23.
64 ROCHA, 2019, p. 312-433.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 105
65 ROCHA, Igor Tadeu Camilo. “Não se fazem mais excomunhões que prestem nos dias de hoje”: libertinos, Reformismo Ilustrado
e a defesa da tolerância religiosa no mundo luso-brasileiro (1750-1803). Almanack, n. 14, p. 196-240, 2016.
66 Sobre a trajetória como naturalista de José Vieira Couto, sua biblioteca e sociabilidades no contexto da Inconfidência Mineira, cf.
FURTADO, Júnia Ferreira. Sedição, heresia e rebelião nos trópicos: a biblioteca do naturalista José Vieira Couto. In: DUTRA, Eliana
de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política, Brasil, Europa e
Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 69-86. Sobre o José Vieira Couto libertino, ver VILLALTA, Luiz
Carlos. Leituras libertinas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 48, n. 1, p. 78-97, jan./dez. 2012.
67 Para uma análise sobre o processo de Cipriano Barata na Inquisição, ver VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle
da difusão de ideias em Portugal no ocaso do Antigo Regime. blogue de História Lusófona, mar. 2011. Disponível em: http://www2.iict.
pt/?idc=102&idi=16996. Acesso em: 02 maio 2021. A respeito do mesmo Cipriano Barata como periodista e político, ver TASCA,
Alexandre Bellini. Enredamentos: o constituir nacional entre Portugal e Brasil nas Cortes de Lisboa (1820-1822). 2016. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.
68 HIGGS, David. O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro na década de 1790. Revista
do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 162, n. 412, p. 239-384, jul./set. 2001.
106 A globalização das luzes
para esse passado através das fontes, fazendo as devidas e metódicas aproximações,
mas nos é impossível vivê-lo.
Feita a ressalva, a proposta deste ensaio poderá ser apresentada de manei-
ra mais clara. Assim, sem qualquer pretensão de esgotar um assunto tão amplo
e complexo, a ideia neste texto é a de enunciar algumas indagações gerais sobre
como podemos revisitar as Luzes lusófonas, sempre com todos os cuidados neces-
sários, para pensarmos alguns aspectos da nossa realidade presente. Não se trata,
no caso, de procurar alguma maneira de inscrever a Ilustração que fala português
em nossa biografia nacional, de forma linear, à maneira das diversas abordagens
nacionalistas feitas sobre tal contexto em diversos países europeus, como apontam
diversas críticas advindas da renovação historiográfica recente sobre as Luzes.
Aqui, proponho olhar de maneira dialógica para o período ao qual nos dedicamos,
pensando nos diversos contrapontos críticos que ele pode nos trazer para o debate
e para pensarmos nas diversas questões que nos importam e nos conectam com
nosso passado. Em síntese, trata-se de dialogar com esse Iluminismo luso para
pensarmos nas bases e nos descaminhos da modernidade vista a partir do mundo
luso-brasileiro.
Um primeiro ponto que indago é sobre a pertinência ou não de tentarmos
olhar o Reformismo ilustrado, sobretudo o pombalismo, como paradigma que
brasileiros e portugueses possuem de modernidade. Não de maneira consciente, em
torno de projetos políticos, mas talvez como uma base tão profunda que nem sequer
a problematizamos. Digo, sobretudo, quanto às ideias complementares, que estamos
atrasados em relação à “civilização” ou ao “primeiro mundo”. Tenho aqui uma
hipótese, que só poderia ser confirmada com pesquisas mais aprofundadas sobre
o tema, que é a de que seríamos marcados profundamente por uma permanente
noção de que estamos “para trás” e que precisamos, para mudar isso, acelerarmos
as coisas no presente a fim de alcançarmos um patamar civilizatório que sempre
projetamos para fora. E este “fora” é bem delineado no mapa, pois está localizado
na Europa ocidental e mundo anglófono, sobretudo. E completo a hipótese de que
tal marca seria de longa duração, nos conectando, ainda que sob perspectivas bem
diversas, com uma representação do nosso lugar no mundo compartilhada e vivida
por figuras como d. Luís da Cunha e o marquês de Pombal.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 107
R eferências bibliográficas
ABREU, Márcia. O controle à publicação de livros nos séculos XVIII e XIX: uma
outra visão da censura. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 4, n. 4., p. 1-12,
out./dez. 2007.
ALBIÑAGA, Salvador. Notas sobre decadencia y arbitrismo. Estudis, v. 20, p. 9-28, 1994.
ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
______. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. In: ARAÚJO, Ana
Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a universidade. 2. ed. Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra, 2014, p. 15-48.
BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion: the myths of modernity. Manchester;
New York: Manchester University Press, 2003.
CAVAILLÉ, Jean-Pierre. Libertine and libertinism: polemic uses of the terms in six-
teenth-and seventeenth-century English and Scottish literature. The Journal for Early Modern
Cultural Studies, v. 12, n. 2, p. 12–36, 2012.
CUNHA, Luís da. Testamento político, ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei
D. José antes do seu governo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o
século XVIII. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
DUBET, Anne. Los arbitristas entre discurso y acción política. Tiempos Modernos, v. 4, n.
9, p. 1-14, 2003.
FURTADO, Júnia Ferreira. Sedição, heresia e rebelião nos trópicos: a biblioteca do na-
turalista José Vieira Couto. In: DUTRA, Eliana de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (orgs.).
110 A globalização das luzes
Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política, Brasil, Europa
e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 69-86.
GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York; London: W. W.
Norton, 1996.
GREGORY, Tullio. “Libertinisme érudit” in seventh-century France and Italy: the critique
of ethics and religion. British Journal for the History of Philosophy, v. 6, n. 3, p. 323–350, 1998.
HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Via Atlântica,
v. 1, n. 1, p. 40-53, 1997.
______. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Oficina da Inconfidência, Ouro
Preto, v. 4, n. 3, p. 11-47, dez. 2004.
LEMOS, Francisco de. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Universidade
de Coimbra, 1980.
MILLER, Samuel J. Portugal and Rome c. 1748-1830: an aspect of the Catholic Enlightenment.
Rome: Università Gregoriana, 1978. (Miscellanea Historiae Pontificiae, v. 44).
POMBAL, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de. (1771). Compêndio histórico da
Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas scien-
cias, nos professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos estatutos por eles
fabricados. Edição coordenada, fixação do texto e introdução por José Eduardo Franco e
Sara Marques Pereira, prefácios de José Esteves Pereira e Manuel Ferreira Patrício. Porto:
Campo das Letras, 2008.
______. Cartas e outras obras selectas do Marquez de Pombal, Ministro e Secretario D’Estado D’El
Rei D, Joze I com epítome da vida deste Ministro e ornado do seu retrato. Lisboa: Typ. De Desiderio
Marques Leão, 1822, t. 2. Digitalizado por Harvard University, 2009. Disponível em:
https://catalog.hathitrust.org/Record/009721362. Acesso em: 02 maio 2018.
ROCHA, Igor Tadeu Camilo. “Não se fazem mais excomunhões que prestem nos dias
de hoje”: libertinos, Reformismo Ilustrado e a defesa da tolerância religiosa no mundo
luso-brasileiro (1750-1803). Almanack, n. 14, p. 196-240, 2016.
ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.
SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Nova edição revista
e prefaciada pelo dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1922. E-book.
SANTOS, Cândido dos. Matrizes do Iluminismo Católico da época pombalina. In: SIL-
VA, Francisco Ribeiro da et al. (orgs.). Estudos em homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004.
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa: salvação no mundo atlântico
ibérico. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc,
2009.
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: Intelectuais Ilustrados e Estadistas luso-
-brasileiros no crepúsculo do Antigo Regime Português: 1750-1822. 2000. Tese (Doutorado
em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.
SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portuguesa recompilado dos vocabularios impres-
sos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE
MORAES SILVA. Lisboa: Tipographia Lacerdina, 1813.
TASCA, Alexandre Bellini. Enredamentos: o constituir nacional entre Portugal e Brasil nas
Cortes de Lisboa (1820-1822). 2016. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.
TODOROV, Tzetan. O espírito das Luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo:
Barcarrolla, 2008.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Campus, 1989.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 113
VERNEY, Luís Antônio. Cartas italianas. Prefácio, tradução e notas de Ana Lúcia Curado
e Manuel Curado. Lisboa: Silabo, 2008.
______. Leituras libertinas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 48, n. 1,
p. 78-97, jan./dez. 2012.
______. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instrucción católica y convencimiento racional de los heterodoxos
y libertinos, compuesta sobre un sermón panegírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Cuenca:
Fernando de la Madrid, 1804, p. 225. Digitalizado por Complutense University Library
of Madrid. Disponível em: https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/Biblio-
graphicResource_1000126614905.html?q=libertino. Acesso em: 02 maio 2021.
Livros de sã e útil erudição, que
encheram estes reinos de claríssimas
Luzes: a educação de jovens
portugueses no contexto da
Ilustração1
Antonio Cesar de Almeida Santos
1 Versão preliminar deste texto foi apresentada no II Colóquio Internacional Globalização das Luzes: Contestações e contrarrevoluções na França
e no mundo luso-brasileiro, realizado na cidade de Ouro Preto (MG), nos dias 23 e 24 de abril de 2018. Agradeço a Álvaro de Araújo
Antunes e a Luiz Carlos Villalta o convite. O texto apresenta resultados de pesquisa financiada com recursos do Edital de Apoio a
Projetos de Pesquisa MCTI/CNPQ/Universal 14/2014 (Projeto 444135/2014-6).
116 A globalização das luzes
2 Veja-se, por exemplo, CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva; Ed. Univer-
sidade de São Paulo, 1978 (originalmente publicado em 1952); ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos estudos
secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva; Editora da USP, 1978; CARRATO, José Ferreira. O iluminismo em Portugal e as reformas pomba-
linas do ensino. São Paulo: EdUSP, 1980; ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 2000a; BOTO, Carlota. A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à universidade.
Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010; e FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no
Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011.
3 Para uma visada do reinado de d. José e das ações de seu “valido”, o Marquês de Pombal, cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D.
José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. Sobre a trajetória de Carvalho e Melo, ver SERRÃO, Joaquim Veríssimo.
O Marquês de Pombal: o homem, o diplomata e o estadista. 2. ed. Lisboa: [s.n.], 1987. Sobre as reformas pombalinas, ver SANTOS,
Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p.
75-95, jan./jun. 2011.
4 MELO, Sebastião José de Carvalho e. Observações secretíssimas do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo,
na ocasião da inauguração da Estátua Equestre no dia 6 de junho de 1775, e entregues por ele mesmo oito dias depois ao senhor rei D.
José I. In: MELO, Sebastião José de Carvalho e. Memórias secretíssimas do Marquês de Pombal e outros escritos. Mem Martins: Publicações
Europa-América, S.d., p. 245.
5 FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais, 1772-1814. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 19.
Para o Rio de Janeiro, ver CARDOSO, Tereza M. R. Fachada Levy. As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática das
aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
117
Em seguida, depois de lançado o subsídio literário para tal fim, constatou-se sua
deficiente cobrança.6
Com pequenas variações, este foi o cenário geral da extensa colônia ame-
ricana, cujos jovens, para frequentar o ensino universitário, precisavam dirigir-se
ao reino.
Maria Beatriz Nizza da Silva, ao discutir “a cultura da Ilustração” na capi-
tania de Pernambuco, refere-se ao “desejo pombalino de vencer a ignorância das
populações”, expresso principalmente “pelas transformações do ensino, primeiro
naquilo que então se denominava Estudos Menores, e em seguida nos estudos uni-
versitários de Coimbra, reformados em 1772”.7 O “desejo pombalino de vencer a
ignorância”, no entanto, é apenas um dos aspectos que conformam o “parado-
xo” expresso por Kenneth Maxwell há algum tempo. Apropriando-se de uma
manifestação de António Ribeiro dos Santos, o historiador inglês indicou que o
marquês de Pombal “quis civilizar a nação e, ao mesmo tempo, escravizá-la. Quis
difundir a luz das ciências filosóficas e, ao mesmo tempo, elevar o poder real do
despotismo”, informando, entretanto, que esta situação teria sido “comum entre
os absolutistas europeus do século XVIII, mas que encontra talvez o seu exemplo
mais extremo em Portugal”.8
As mencionadas palavras de António Ribeiro dos Santos, tido como “um
dos colaboradores mais próximos de Pombal na área da reforma educacional e
eclesiástica”, teriam sido redigidas em “um período de autocrítica após a morte
de Pombal”,9 ocorrida em 1782. Elas constam de uma carta “sem destinatário” e
estão inseridas em um comentário mais amplo, conforme transcrição apresentada
por Luís Fernando de Carvalho Dias:
Este ministro [Pombal] quis um impossível político; quis civilizar a nação e ao
mesmo tempo fazê-la escrava; quis espalhar a luz das ciências filosóficas, e ao mesmo
tempo elevar o poder real ao despotismo; inculcou muito o estudo do direito natural
6 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Pernambuco e a cultura da ilustração. Recife: EdUFPE, 2013, p. 10.
7 Ibidem, p. 10 e 15.
8 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 2. O original inglês
(Pombal, paradox of the Enlightenment) foi publicado em 1995 pela Cambridge University Press. Para uma visão ampla sobre a propagação
das Luzes pela Europa, “incluindo a nação lusa de um Marquês de Pombal”, cf. IM HOF, Ulrich. A Europa no século das Luzes. Lisboa:
Presença, 1995.
9 MAXWELL, op. cit., p. 1-2.
118 A globalização das luzes
10 DIAS, Luís Fernando de Carvalho (ed.). Algumas cartas do Doutor António Ribeiro dos Santos aos seus contemporâneos. Revista
Portuguesa de História, Coimbra, v. 14, p. 413-519, 1975, p. 447 apud PEREIRA, José Esteves. Percursos de História das Ideias. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 134. O mesmo trecho está transcrito em texto de Ana Cristina Araújo, que utilizei para
cotejar e fazer uma pequena correção na citação. Cf. ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo.
In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000b, p. 14. Nota-se
alguma variação nas palavras do texto citado por Maxwell, possivelmente devido aos processos de tradução (do português para o inglês
e deste, novamente, para o português); todavia, deve-se destacar a diferença essencial na expressão “elevar o poder real do despotismo”,
em Maxwell, e “elevar o poder real ao despotismo”, em Pereira e em Araújo.
11 José Esteves Pereira parece utilizar o termo “pombalismo” no mesmo sentido atribuído a ele por seu “mestre”, José Sebastião da
Silva Dias, que o relaciona à cultura política que se desenvolveu em Portugal na segunda metade do século XVIII. Ver DIAS, José
Sebastião da Silva. Pombalismo e teoria política. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1982.
12 PEREIRA, op. cit., p. 134.
13 ARAÚJO, 2000b, p. 15-16.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
119
*
Aos olhos de um homem de negócios da época, “o Senhor Rei D. José foi o
Regenerador da Nação”. Dentre as diversas ações levadas a cabo naquele reinado,
Jacome Ratton, em suas Recordações, dedica algum espaço para tratar da “educação
pública”, informando que, após a “extinção dos jesuítas”,
[...] se criaram e distribuíram pelos bairros de Lisboa e terras do Reino, mestres
públicos de Primeiras Letras, Gramática, Retórica e Filosofia, debaixo da direção
14 COSTA, Mário Júlio de Almeida; MARCOS, Rui de Figueiredo. Reforma pombalina dos estudos jurídicos. In: ARAÚJO, Ana
Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 125.
15 Alvará de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula do Comércio. Cf. SILVA, António Delgado da. Collecção da
legislação portugueza desde a última Compilação das Ordenações: legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 655-660.
16 Alvará de 28 de junho de 1759, sobre a restauração dos estudos nestes reinos e seus domínios. Ibidem, p. 673-678.
17 Carta de Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. Ibidem, p. 773-792.
18 Lei de 06 de novembro de 1772, sobre as escolas menores e mestres. Cf. SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portugueza
desde a última Compilação das Ordenações: legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829, p. 612-615.
19 ESTATUTOS da Universidade de Coimbra compilados debaixo da imediata e suprema inspeção de el Rei D. José I. Lisboa:
Regia Officina Typografica, 1772. 3 vols.
120 A globalização das luzes
de um tribunal que o mesmo soberano criou, com o nome de Real Mesa Censória,
o qual foi encarregado não só da direção dos estudos públicos, mas também da
revisão dos livros.20
20 RATTON, Jacome. Recordações de Jacome Ratton sobre ocorrências do seu tempo em Portugal, de maio de 1747 a setembro de 1810. 4. ed. Lisboa:
Fenda, 2007, p. 172. Edição fac-similar da primeira edição publicada em Londres, em 1813. O relato de Jacome Ratton, como todo
aquele fundado em lembranças, traz diversas informações inexatas, condensando fatos que ocorreram em períodos de tempo distintos.
21 Ibidem, p. 202.
22 Ibidem, p. 174.
23 Ibidem, p. 175 e 178.
24 Ao tratar da criação do Colégio Real dos Nobres, Jacome Ratton observa “que o estabelecimento foi criado para 200 alunos; mas
também me persuado que nunca chegaram nem à metade, não obstante a módica pensão anual que devia pagar cada aluno”. Ibidem,
p. 173.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
121
Não obstante as loas tecidas por Pombal e, depois, por Ratton, a apreciação
sobre a efetividade e o alcance das reformas educacionais da segunda metade do
século XVIII português foram e continuam a ser objeto de alguma controvérsia,
especialmente quando a avaliação leva em conta o “espírito das Luzes”.27 Não
obstante reconhecer que “uma das abordagens mais seguras sobre a prática cul-
tural pombalina é certamente a vertente educativa”, José Esteves Pereira ressalva
que “a reforma educativa pombalina, efectiva, será lenta e não isenta de alguns
equívocos”.28 Ana Cristina Araújo, ao confrontar documentos e textos que ante-
cederam e que instituíram as reformas educacionais com as avaliações que foram
produzidas depois delas, entende que os resultados ficaram, “em muitos aspectos,
aquém da ambição e das expectativas” de diversos reformistas, como Luís António
29 ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 51-66.
30 Ibidem, p. 54.
31 VATEL, Emmerich de. O direito das gentes ou princípios da lei natural aplicada à condução e aos negócios nas nações e dos governantes. Ijuí:
Unijuí, 2008, p. 242. Vatel escreveu esse seu tratado em francês, o qual foi publicado pela primeira vez em 1758. Segundo Francesco
Mancuso, Vatel foi influenciado pelas ideias de Christian Wolff, e O direito das gentes inscreve-se “na gramática absolutista do discurso
sobre a soberania”. MANCUSO, Francesco. Introdução. In: VATEL, Emmerich de. O direito das gentes ou princípios da lei natural aplicada
à condução e aos negócios nas nações e dos governantes. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 19.
32 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para formar homens capazes de “discernimento e de percepção”: reformas educacionais
em Portugal (segunda metade do século XVIII). In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 13., 2012, Londrina-PR. Anais...
Londrina: ANPUH-PR, 2012, p. 392-403.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
123
si e para o Estado”.33 José Esteves Pereira, a propósito, afirma que “a visão política
pombalina compagina-se, aliás, adequadamente, com a promoção do vassalo útil,
sem prejuízo do cristão esclarecido. Esclarecido, justamente, em relação a tudo o
que perturbasse a sua meditação”.34
Mas, se os antigos Estatutos da Universidade de Coimbra35 já preconizavam
que, junto às ciências, fosse ensinada a “santa doutrina”, de modo a assegurar a
formação de súditos cristãos leais à monarquia,36 esse sujeito “virtuoso”, “útil” ao
Estado e a si próprio já não estaria sendo produzido desde antes dessas reformas?
O que diferencia, então, um momento do outro?
Em busca de respostas a tais questões, pode-se indicar, inicialmente, que,
desde o Alvará de 28 de junho de 1759 (que privou os jesuítas de suas escolas),
o foco declarado das reformas educacionais foi o método de ensinar, à medida
que se determinou a substituição daquele utilizado pelos padres da Companhia
de Jesus por outro, conforme ao “que se pratica atualmente pelas nações polidas
da Europa”.37 Aliás, em Portugal, desde pelo menos a primeira metade do século
XVIII, a metodologia de ensino empregada pelos jesuítas enfrentava críticas. Antes
da publicação da principal obra a confrontar o ensino promovido pelos jesuítas – o
Verdadeiro método de estudar –,38 Martinho de Mendonça de Pina e de Proença já havia
expressado suas reservas ao “sistema abstrato de Aristóteles, ou para melhor dizer
dos Escolásticos”; para ele, o “método Matemático” era mais adequado que “as
súmulas dialéticas, cujo fim parece que é uma pertinácia na disputa”.39
33 VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia: as ideias económicas no discurso da Ilustração portuguesa (1746-1820).
Lisboa: Colibri, 2002, p. 74 (destaques no original).
34 PEREIRA, op. cit., p. 139.
35 Segundo Mário Júlio de Almeida Costa, “[...] os Estatutos Filipinos de 1598, conhecidos por Sétimos Estatutos, depois revistos
e confirmados por Filipe II (1612) e de novo confirmados por D. João IV (1653), permaneceram em vigor até à reforma pombalina.
Recebem o nome de Estatutos Velhos, em contraposição aos chamados Estatutos Novos, de 1772”. COSTA, Mário Júlio de Almeida.
O Direito (cânones e leis). In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra;
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 825.
36 ESTATUTOS da Universidade de Coimbra confirmados por el Rei nosso Senhor Dom João o IV, no ano de 1653. Coimbra:
Oficina de Thomé Carvalho, Impressor da Universidade, 1654, p. 1.
37 Alvará de 28 de junho de 1759. SILVA, 1830, p. 675.
38 Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar para ser útil à República e à Igreja, proporcionado ao estilo e necessidade de Portugal
etc... Valensa: Oficina de Antonio Balle, 1746.
39 Cf. PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a educação de um menino nobre. Lisboa: Oficina de Joseph
Antonio da Silva, 1734, p. 334 e 319.
124 A globalização das luzes
40 Ver, entre outros, SANTANA, Francisco. A Aula de Comércio: uma escola burguesa em Lisboa. Ler História, n. 4, p. 19-30, 1985;
RODRIGUES, Lúcia; GOMES, Delfina; CRAIG, Russel. The Portuguese School of Commerce, 1759-1844: a reflection of the “En-
lightenment”. Accounting History, v. 9, n. 3, p. 53-71, 2004; e SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. A Aula de Comércio: “uma escola
política e magnífica para a formação de negociantes peritos e hábeis”. In: CONGRESSO LUSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO, 11., Porto. Anais... Porto: CITCEM, 2016.
41 CHAVES, Cláudia Maria das Graças. As aulas de comércio no Império luso-brasileiro: o ensino prático profissionalizante. In:
DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (orgs.). Temas setecentistas: governos e populações no Império português. Curitiba:
UFPR; Fundação Araucária, 2008, p. 267.
42 A criação e funcionamento de uma Aula do Comércio estava prevista no Capítulo XVI dos Estatutos da Junta do Comércio, criada
em 30 de setembro de 1755. Ver os Estatutos da Junta do Comércio, aprovados pelo Alvará de 16 de dezembro de 1756 em SILVA,
1830, p. 458-480.
43 RATTON, op. cit., p. 202-206.
44 Ibidem.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
125
e a sua escrituração, a qual devia ser realizada nos moldes ensinados na Aula do
Comércio. Os antigos “proprietários” daqueles ofícios da Real Fazenda, no Rio de
Janeiro, foram demitidos, recebendo os ordenados devidos, “pela metade”, como
forma de compensação.45
Os Estatutos da Aula do Comércio foram confirmados por d. José, em 19 de
maio de 1759. Naquele estabelecimento, seriam ensinados “os princípios necessários
a qualquer negociante perfeito”,46 com o objetivo de alcançar “a conservação e au-
mento do bem público dos meus vassalos e do comércio”.47 O curso teria a duração
de três anos48 e estava destinado, preferencialmente, para os filhos de “homens de
negócios”. Para ingressar, os jovens deveriam ter “catorze anos completos” e saber
“ler, escrever e contar”. Justificava-se a exigência de uma idade mínima com o
argumento de que os estudos não poderiam “suprir o defeito causado pela pouca
idade”.49
Os Estatutos do Colégio Real dos Nobres, criado em 1761 (estabelecimento
que só começou a funcionar em 1766), também explicitavam algumas exigências
de ingresso: “os que houverem de ser admitidos, no dito Colégio, saberão ler e es-
crever, não tendo menos de sete anos, nem mais de treze”.50 A idade mínima, neste
caso, além de estar relacionada à aptidão de leitura e escrita dos alunos, indica que
os jovens fidalgos, mais do que instrução, receberiam uma educação condizente
a suas posições. Enquanto os jovens que iriam frequentar a Aula do Comércio já
teriam recebido uma primeira educação escolar (dada a idade mínima de ingres-
so), na qual se incluíam os preceitos religiosos, os alunos do Colégio dos Nobres
ainda seriam instruídos nos preceitos de Deus “e da sua Igreja, não bastando que
45 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Códice 415–Livro de registro de cartas, ordens e mais papéis expedidos pela Secretaria de
Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos para o Estado do Brasil (1765-1769). Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
para o Conde da Cunha, 18 de março de 1767.
46 Ver os Estatutos da Aula de Comércio em SILVA, 1830, p. 656.
47 Alvará régio de 19 de maio de 1759. Ibidem, p. 655.
48 Ao contrário da Aula do Comércio, não havia uma indicação sobre a duração dos estudos realizados no Colégio dos Nobres.
Contudo, pode-se considerar que a permanência dos seus alunos seria equivalente àquela que Laerte Ramos de Carvalho descreve
para as escolas menores jesuíticas: “o curso de gramática e humanidades deveria durar de cinco a seis anos. Completada a iniciação
literária, passavam os estudantes para as classes de filosofia, que abrangiam três anos de estudos sobre lógica, física, metafísica, moral
e as matemáticas. Totalizavam esses estudos nove anos”. CARVALHO, op. cit., p. 113.
49 Estatutos da Aula de Comércio em SILVA, 1830, p. 657.
50 Lei de 07 de março de 1761. Ibidem, p. 778.
126 A globalização das luzes
51 Ibidem, p. 775.
52 Alvará régio de 19 de maio de 1759. Ibidem, p. 658.
53 Lei de 07 de março de 1761. Ibidem, p. 785-786.
54 Ibidem, p. 782.
55 Ibidem, p. 786.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
127
terem uma duração média superior a 7 anos.61 Não havia, portanto, nenhuma
disposição regulando a idade mínima (ou máxima) para ingresso na Universidade.
Fernando Taveira da Fonseca também informa que, durante “o longo pe-
ríodo de 1577 a 1772”, 72% dos alunos matriculados em Coimbra frequentaram
o curso de Direito Canônico; 15,3%, o de Direito Civil; 7,1%, o de Medicina; e,
5,6% cursaram Teologia.62 Se considerarmos que a opção pelas carreiras expressa
o valor social a elas atribuído, percebe-se um relativo desprezo pela formação em
Medicina, mesmo sendo um curso com duração média de seis anos;63 a faculdade
de Teologia, por seu turno, gozava de certa especificidade, pois era a opção quase
exclusiva de “membros das ordens religiosas”.64 Os cursos de Direito apareciam,
para os estudantes e suas famílias, como aqueles que ofereciam as melhores opor-
tunidades para carreiras profissionais e reconhecimento social. A alta porcentagem
de estudantes no curso de Direito Canônico pode ser explicada pela possibilidade
de o formado atuar também no Direito Civil, e o destaque recebido pelos cursos
de leis estaria relacionado ao reconhecimento que os “juristas letrados” foram
ganhando no ambiente social português, entre os séculos XVI e XIX.65
Se o estudante esperava obter emprego e reconhecimento social, o que
a monarquia portuguesa desejava daquele que concluía o ensino universitário?
Segundo os Estatutos de 1653, além da “honra, glória e serviço de Deus nosso
Senhor”, esperava-se que, na Universidade, fossem ensinadas e aprendidas as
“ciências necessárias para bom governo e conservação da República Cristã”,66 ou
seja, a Universidade seria a responsável pela formação dos indivíduos encarregados
dos negócios políticos e administrativos da monarquia, nos quais se incluíam as
questões religiosas. Neste aspecto, os Estatutos de 1772 registravam que
61 FONSECA, Fernando Taveira da. [Os corpos acadêmicos e os servidores da] Universidade de Coimbra. In: HISTÓRIA da
Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997a, p. 555.
62 Ibidem, p. 537-539. Além dos quatro cursos mencionados, a Universidade de Coimbra contava, ao menos desde 1653, com “uma
cadeira de Matemática”. Cf. ESTATUTOS..., 1654, p. 144.
63 FONSECA, Fernando Taveira da. A medicina. In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra:
Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997b, p. 835.
64 Idem, 1997a, p. 541.
65 HESPANHA, Antonio Manuel. Os modelos normativos; os paradigmas literários. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida
privada em Portugal: a Idade Moderna Coordenação de Nuno Gonçalo Monteiro. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 58-70.
66 ESTATUTOS..., 1654, p. 1.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
129
Esse interesse da Coroa na formação dos indivíduos que iriam atuar junto às
populações corresponde à avaliação que José Subtil faz sobre o ensino universitário
em geral, considerando-o responsável pela reprodução do poder dominante, na
medida em que os graduados na Universidade de Coimbra, no exercício de seus
ofícios, asseguravam a presença simbólica do soberano em diversos níveis e espaços
da administração régia.68 A propósito desta relação entre a instituição de ensino
e os interesses da Coroa, António de Oliveira salienta que “não admira, por isso,
que o poder régio, à medida que se foi fortalecendo, se impusesse à Universidade
como corporação, cerceando-lhe as liberdades colectivas”.69
Então, se mesmo antes da Reforma de 1772, a Universidade de Coimbra já
desempenhava o papel de formadora dos quadros administrativos, o que motivou
a reforma ocorrida no reinado de d. José? É possível admitir que a intenção teria
sido a de modificar uma situação em que, “por motivos metodológicos fundamen-
tais, a ‘ciência’ ministrada na Universidade nada tinha de investigativa e tudo de
argumentativa”?70 Enfim, a motivação da reforma teria sido a de transformar a
Universidade, para que ela oferecesse um ensino assentado na investigação e não
apenas na arte de argumentar?
Tendo em vista estas questões, já foi apontado que o método de ensino
recebeu grande atenção dos responsáveis pela elaboração dos documentos que
orientaram as reformas educacionais da segunda metade do século XVIII, em
Portugal,71 as quais contaram inclusive com as criações de novas instituições de
ensino, a Aula do Comércio e o Colégio Real dos Nobres. Os membros da Junta
72 COMPÊNDIO histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1972, p. 97-141.
73 ESTATUTOS..., 1654, 185-186.
74 ESTATUTOS..., 1772, livro terceiro [que contém os Cursos das Ciências Naturais e Filosóficas], p. 3.
75 Ibidem, livro primeiro, p. 22-23.
76 Ibidem, livro terceiro, p. 336-337.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
131
*
Para concluir este texto, entendo ser interessante e necessário apresentar
algumas considerações sobre os livros “de sã e útil erudição”, que foram saudados
pelo marquês de Pombal em seu discurso apologético sobre as reformas ocorridas
no reinado de d. José.80 Neste particular, Álvaro de Araújo Antunes nos lembra
que “os livros e as ideias que traziam se associavam e representavam um saber, um
poder intelectual, mas também um poder sobre intelectuais”.81 Disto decorre, então,
não ser um assunto fácil de abordar, mesmo porque, conforme apontado por Luiz
Carlos Villalta em estudo sobre a circulação de livros tidos como “libertinos”,82
em Portugal, na segunda metade do século XVIII, verifica-se um amálgama de
83 VILLALTA, Luiz Carlos. “Tereza Filósofa” e o frei censor: notas sobre a circulação cultural e as práticas de leitura em Portugal
(1748 -18 02). In: PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (séculos
XVI-XVIII). São Paulo: Annablume, 2006, p. 128.
84 Tereza Filósofa, cuja autoria é atribuída ao marquês d’Argens, é considerado um exemplo de livro “libertino”. O livro, publicado
em 1748, alcançou “cerca de quinze edições até 1785, tornando-se um clássico da literatura proibida, não escapando da interdição por
parte da censura portuguesa, determinada em 1758”. Idem, 2009, p. 530.
85 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado
em História) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 233 e 269-270.
86 Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Pombalina. Códice 456 – Coleção Josefina: Leis, decretos e alvarás (Tomo IV). Edital
da Real Mesa Censória, 24 de setembro de 1770.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
133
87 Ibidem.
88 DENIPOTI, Cláudio; FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. Censura e mercê: os pedidos de leitura e posse de livros proibidos em
Portugal no século XVIII. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 4, n. 2, 2011, p. 142.
89 O Título 10, do Regimento da Real Mesa Censória, publicado em 18 de maio de 1768, estabelecia as “regras que se devem observar
na censura dos livros enquanto se não formar um novo Index Expurgatório”, indicando os tipos de obras que deveriam ser proibidas de
circular. REGIMENTO da Real Mesa Censória. [Lisboa]: Impresso na Secretaria de Estado, 1768, p. 19-29. Exemplar microfilmado
[Biblioteca Nacional, Portugal, cota F. G. 616].
90 TAVARES, Rui. Lembrar, esquecer, censurar. Estudos Avançados, São Paulo, v. 13, n. 37, set. /dez. 1999, p. 128 e 138.
134 A globalização das luzes
neste caso, no lugar de “mutilar a obra”, o tradutor acrescentasse uma nota para
explicar a passagem tida como inconveniente.91
Na quantidade total dos textos examinados pela Real Mesa Censória,
indicada por Rui Tavares, incluem-se, como vimos, algumas traduções. Cláudio
Denipoti encontrou 61 pareceres sobre licenças para impressão de traduções,
no período de 1771-1777, e informa que “cerca de quatrocentas traduções foram
publicadas em Portugal”, durante a segunda metade do século XVIII, “compara-
das a apenas duzentas e sessenta e seis durante todo o século precedente”. Ainda
conforme Denipoti,
[...] o esforço pelas traduções, feito pelos diversos agentes da palavra impressa
eventualmente envolvidos (tradutores, editores e censores), pode mostrar aos histo-
riadores contemporâneos como uma identidade “ilustrada” estava em construção
ao redor das muitas traduções para o português, e como o contato – e interferência
– de ideias do Iluminismo (qualquer que seja sua definição) foram interpretadas
por aqueles agentes.92
91 Ibidem, p. 139-140.
92 DENIPOTI, Cláudio. A censura e as traduções portuguesas no século XVIII: a busca pela norma. Revista de Estudos de Cultura, n.
9, 2017a, p. 28 e 33. Para informar sobre a quantidade de traduções publicadas nos séculos XVII e XVIII, Denipoti usou informações
de RODRIGUES, Antonio. A. Gonçalves. A tradução em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 153. Ainda sobre
a presença de textos traduzidos em Portugal, na segunda metade do século XVIII, cf. DENIPOTI, Cláudio. Tradutores médicos e a
ideia de tradução em Portugal em fins do século XVIII: o caso dos livros de medicina. História, Ciências, Saúde, v. 24, n. 4, p. 913-931,
2017b.
93 ANTUNES, op. cit., p. 255.
94 MELO, op. cit., p. 246.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
135
qualquer nação culta”, como Portugal era naquele momento, poderia ser avaliado,
dentre outros fatores, pelo
[...] estado da filosofia ou das belas-letras, que servem de base a todas as ciências
e à multidão de prosas e de poesias que apareceram na mesa censória, compostas
nas línguas portuguesa, latina, grega, hebraica e arábica, com pureza de estilo e
elegância dos séculos dos Demóstenes, dos Homeros, dos Túlios, dos Virgílios e
dos Horácios, em Roma, e dos Teives, Andrades, Gouveias, Resendes, Barros,
Camões e Bernardes, em Portugal. Também fizeram ver demonstrativamente que
estes estudos preparatórios se não achavam mais florescentes ao tempo da invasão
dos jesuítas, do que hoje se acham.95
95 Ibidem.
96 Instruções para os professores de Gramática latina, grega, hebraica e de Retórica, em 28 de junho de 1759 em ANDRADE, op.
cit., p. 165-182.
97 SOUZA, Evergton Sales. Do destino das almas dos Índios. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula T. (orgs.). O
Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 509.
O texto traz “julho” em vez de junho.
136 A globalização das luzes
98 Alvará régio de 30 de setembro de 1770, regulando as aulas de latim e de primeiras letras. SILVA, 1829, p. 497-498.
99 Instruções para os professores de Gramática latina, grega, hebraica e de Retórica, em 28 de junho de 1759 em ANDRADE, op.
cit., p. 176.
100 MORAIS, Carlos. Artes de gramática para o ensino do grego em Portugal: Clenardo e João Jacinto de Magalhães (séculos XVI-
-XIX). Kléos – Revista de Filosofia Antiga, n. 19, 2015, p. 272.
101 Ibidem, p. 288 e 286.
102 CÍCERO. Os três livros de Cícero sobre as obrigações civis, traduzidos em língua portuguesa para uso do Real Colégio de Nobres. Lisboa: Oficina
de Miguel Manescal da Costa, 1766. Na dedicatória, Miguel Antonio Ciera informa que, no lugar de traduzir do latim, utilizou uma
versão italiana elaborada por Giácomo Facciolati, tomando-a como “a mais correta”.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
137
Instrução dos ofícios de Cícero”, informando que aqueles livros eram “para V. Sa.
aí formar alguns homens que sejam capazes de discernimento e de percepção”.103
No mesmo ano de 1766, veio a público o Discurso do bom e verdadeiro gosto na
filosofia, do padre António Soares, que dedicou sua obra ao conde de Oeiras, que
“soube comover os espíritos (ao parecer sujeitos quase como os corpos às leis da
inércia) para se aplicarem à verdadeira cultura das Letras”. Os três censores – do
Santo Ofício, do Ordinário e do Paço – saudaram o livro que, “pequeno no volu-
me”, é “obra muito útil para o público”; segundo o frei Sebastião de Santo António,
censor do Paço, o texto mostrava “a perfeição a que têm chegado as letras depois que
Vossa Majestade empunhou o cetro”. O censor do Santo Ofício, frei João Batista
de São Caetano, por sua vez, aproveitou a ocasião para criticar aqueles que “não
têm as luzes que lhes são necessárias para conhecerem a Filosofia” e que por isso
“fazem que os seus discípulos sacrifiquem à ignorância os anos mais preciosos da sua
vida”; ao final de sua censura, o frei João Batista reafirmou sua posição contrária
à maneira pela qual os recém-destituídos professores ensinavam:
enquanto, porém, alguma iluminada polícia literária não castiga e faz esquecer nos
cantos das aulas estes restos tenebrosos do barbarismo, sirvam-se Vossas Excelências
de acreditar, com a sua aprovação, um Discurso que faz conhecer a formosura da
verdadeira Filosofia.104
103 AHU. Códice 423 – Livro de registro de cartas expedidas pela Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos para
a capitania de São Paulo (1765-1769). Carta do Conde de Oeiras para o governador da capitania de São Paulo, Luís Antonio de Souza
Botelho Mourão, de 22 de julho de 1766.
104 SOARES, António. Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto na filosofia. Lisboa: Na Oficina de Miguel Rodrigues, 1766. O outro censor,
do Ordinário, foi frei Manuel do Cenáculo, que reconheceu ser o autor “verdadeiramente amigo de seus compatriotas”, exprimindo-se
“sem ofensa da fé e dos bons costumes”.
138 A globalização das luzes
“para assim dizer, pela experiência a patentear o que nos oculta”.105 Como vimos,
trata-se de um argumento semelhante ao que apareceu, anos depois, nos novos
Estatutos da Universidade de Coimbra, especificamente quando se tratou do curso
de Filosofia: para os elaboradores dos Estatutos não havia “outros meios de chegar
ao conhecimento da Natureza” que não fosse por intermédio da observação e da
experiência.106 Estes princípios também fazem parte da teoria política pombalina,
assentada na valorização de conhecimentos obtidos pela observação e experimen-
tação e, por que não dizer, por intermédio de livros de “sã e útil erudição”.
R eferências bibliográficas
ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos estudos secundários no Brasil.
São Paulo: Saraiva; Editora da USP, 1978.
______. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. In: ARAÚJO, Ana
Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade,
2000b, p. 7-40.
______. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
BOTO, Carlota. A dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras
letras à universidade. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010.
105 Ibidem, p. 59-60 (destaque nosso). Não deixa de ser interessante encontrar às páginas 61 e 62 uma explícita referência “ao matemático
judicioso e juntamente verdadeiro filósofo deste nosso século” Jean D’Alembert e ao Discurso preliminar da Enciclopédia, do qual o
padre António Soares transcreve um parágrafo que pode ser encontrado em PIMENTA, Pedro Paulo; SOUZA, Maria das Graças de
(orgs.). Diderot e D'Alembert. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios, v. 1: Discurso preliminar e outros textos.
São Paulo: EdUnesp, 2015, p. 75.
106 ESTATUTOS..., 1772, livro terceiro, p. 336-337.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
139
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo:
Saraiva; Ed. Universidade de São Paulo, 1978.
CÍCERO. Os três livros de Cícero sobre as obrigações civis, traduzidos em língua portuguesa para uso
do Real Colégio de Nobres. Lisboa: Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1766.
COSTA, Mário Júlio de Almeida. O Direito (cânones e leis). In: HISTÓRIA da Univer-
sidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação
Calouste Gulbenkian, 1997, p. 823-834.
COSTA, Mário Júlio de Almeida; MARCOS, Rui de Figueiredo. Reforma pombalina dos
estudos jurídicos. In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 97-125.
DIAS, José Sebastião da Silva. Pombalismo e teoria política. Lisboa: Centro de História da
Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1982.
DIAS, Luís Fernando de Carvalho (ed.). Algumas cartas do Doutor António Ribeiro dos
Santos aos seus contemporâneos. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v. 14, p. 413-519,
1975.
FONSECA, Fernando Taveira da. [Os corpos acadêmicos e os servidores da] Universi-
dade de Coimbra. In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771).
Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997a, p. 499-600.
______. A dimensão pedagógica da reforma de 1772: alguns aspectos. In: ARAÚJO, Ana
Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade,
2000, p. 43-68.
FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais, 1772-1814.
Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
MANCUSO, Francesco. Introdução. In: VATEL, Emmerich de. O direito das gentes ou
princípios da lei natural aplicada à condução e aos negócios nas nações e dos governantes. Ijuí: Unijuí,
2008, p. 17-67.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
PEREIRA, José Esteves. Percursos de História das Ideias. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2004.
PETTY, William; QUESNAY, François. Obras econômicas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
PIMENTA, Pedro Paulo; SOUZA, Maria das Graças de (orgs.). Diderot e D’Alembert.
Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios, v. 1: Discurso preliminar
e outros textos. São Paulo: EdUnesp, 2015.
RATTON, Jacome. Recordações de Jacome Ratton sobre ocorrências do seu tempo em Portugal, de
maio de 1747 a setembro de 1810. 4. ed. Lisboa: Fenda, 2007.
SANTANA, Francisco. A Aula de Comércio: uma escola burguesa em Lisboa. Ler História,
n. 4, p. 19-30, 1985.
______. A Aula de Comércio: “uma escola política e magnífica para a formação de ne-
gociantes peritos e hábeis”. In: CONGRESSO LUSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO, 11., Porto. Anais... Porto: CITCEM, 2016.
SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portugueza desde a última Compilação das
Ordenações: legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829.
______. Collecção da legislação portugueza desde a última Compilação das Ordenações: legislação
de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Pernambuco e a cultura da ilustração. Recife: EdUFPE, 2013.
SOARES, António. Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto na filosofia. Lisboa: Na Oficina de
Miguel Rodrigues, 1766.
SOUZA, Evergton Sales. Do destino das almas dos Índios. In: ALGRANTI, Leila Mezan;
MEGIANI, Ana Paula T. (orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura
letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 504-522.
TAVARES, Rui. Lembrar, esquecer, censurar. Estudos Avançados, São Paulo, v. 13, n. 37,
p. 125-154, set. /dez. 1999.
VATEL, Emmerich de. O direito das gentes ou princípios da lei natural aplicada à condução e aos
negócios nas nações e dos governantes. Ijuí: Unijuí, 2008.
VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar para ser útil à República e à Igreja, propor-
cionado ao estilo e necessidade de Portugal etc... Valensa: Oficina de Antonio Balle, 1746.
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na
América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo.
São Paulo, 1999.
______. “Tereza Filósofa” e o frei censor: notas sobre a circulação cultural e as práticas
de leitura em Portugal (1748-1802). In: PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil-Portugal: so-
ciedades, culturas e formas de governar no mundo português (séculos XVI-XVIII). São
Paulo: Annablume, 2006, p. 123-148.
A recepção das ideias ilustradas em Portugal e seus domínios tem sido inter-
pretada à luz das características próprias da sociedade e da cultura portuguesas,
e marcaria suas qualidades singulares. Algumas delas se destacam, conforme as
análises mais conhecidas sobre a questão: a) os limites impostos às apropriações
do pensamento ilustrado, definidos pela secularização de algumas estruturas do
Estado e de sua atuação, mas sem contudo avançar para processos de laicização;
b) o entrelaçamento das propostas de modernização pela realização de reformas
com a preservação dos fundamentos culturais da sociedade portuguesa, princi-
palmente influenciados pelo catolicismo; c) as tendências contrárias às liberdades
individuais e a manutenção de mecanismos de controle sobre o pensamento e sobre
os comportamentos.
Dentre outros processos, as reformas da educação promovidas durante o
reinado de d. José I (1750-1777), e em parte continuadas por seus sucessores d.
146 A globalização das luzes
4 MORRISSEY, Robert; ROE, Glenn (eds.). Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, etc., eds.
Denis Diderot and Jean le Rond d'Alembert. ARTFL Encyclopédie Project, Chicago, 2021. Disponível em: https://encyclopedie.uchicago.
edu/. Acesso em: 23 ago. 2022.
5 Sobre as reformas e seus impactos em Portugal e no Brasil, cf. ADÃO, Áurea. Estado absoluto e ensino das primeiras letras: as escolas
régias (1772-1794). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos
estudos secundários no Brasil (1769-1771). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Saraiva, 1978; BOTO, Carlota. Instrução
pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola. São Paulo: EdUNESP, 2017; CARDO-
SO, Tereza Maria Rolo Fachada Levy. As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de Janeiro
(1759-1834). Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002; CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas
da instrução pública. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Saraiva, 1978; FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Letras, ofícios e
bons costumes: civilidade, ordem e sociabilidades na América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2009; FONSECA, Thais Nívia de
Lima e. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais (1772-1814). Belo Horizonte: Autêntica, 2010; FRAGOSO, Myriam Xavier. O ensino
régio na Capitania de São Paulo (1759-1801). 1972. Tese (Doutorado em História da Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo,
1972; SILVA, Diana de Cássia. O processo de escolarização no Termo de Mariana (1772-1835). 2004. Dissertação (Mestrado em Educação)
– Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004; e SILVA, José Carlos de Araújo. As aulas régias na Capitania da Bahia
(1759-1827): pensamento, vida e trabalho de “nobres” professores. 2006. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2006.
6 Cf. BLUTEAU, op. cit.; e SILVA, 1789.
148 A globalização das luzes
para conhecer a verdade, qualquer que seja a luz que ela segue, e para qualquer
ordem de matéria a que ela se aplique”.7
Outro termo destacado é o bem comum, definido como o que é útil para a
existência e conservação de alguma coisa física ou moral, mas também como proveito
e utilidade.8 A utilidade, neste caso, dizia respeito à melhor preparação dos que, a
partir do Estado, serviriam aos interesses do bem comum, conforme os propósitos
modernizadores da administração pombalina.
Longe de uma concepção de educação agenciada pelo Estado e que im-
pusesse sua presença exclusiva na sociedade por meio da obrigatoriedade escolar
– algo que só ocorreria no século XIX –, as reformas pombalinas da educação
determinavam o controle estatal sobre a instrução pública e privada, mas permi-
tindo que as famílias usassem de “liberdade”, caso quisessem contratar mestres
para seus filhos. Liberdade é outro termo que tradicionalmente foi associado ao
pensamento ilustrado, mas que, nesse contexto, não indica, necessariamente, um
sentido libertador.9 Liberdade era formalmente definida como a “faculdade de
poder fazer impunemente, e sem ser responsável, tudo o que não é proibido pelas
Leis, sem haver quem arbitrariamente tome conhecimento disso”.10 A Lei de 1772
indicava as condições para o exercício dessa liberdade:
Que aos particulares, que puderem ter Mestres para seus filhos dentro das próprias
casas, como costuma suceder, seja permitido usarem da dita liberdade; pois que daí
não resultará prejuízo à Literatura, quando, como os mais, devem ser examinados,
antes de entrarem nos Estudos Maiores.11
13 ALVARÁ de Regulamento dos Estudos Menores, 28 jun. 1759, p. 675. O Governo dos Outros, S.d. (grifos nossos). Disponível em:
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=105&accao=ver&pagina=698. Acesso em: 23 ago. 2022.
14 CARTA de Lei ampliando a autoridade da Real Mesa Censória sobre o controle dos livros, 21 jun. 1787. O Governo dos Outros, S.d.
Disponível em: http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=109&id_normas=34294&accao=ver. Acesso em:
23 ago. 2022.
150 A globalização das luzes
menos a presença direta dos jesuítas no ensino, e para ordenar e controlar uma
nova estrutura, além de transferir, para o Estado e seus agentes, atribuições antes
exclusivas da Igreja e do clero. A existência do Padroado certamente facilitou esse
processo, e a Igreja, expurgada da Companhia de Jesus, participou subalternamente
da nova estrutura educacional criada pelo governo pombalino. É preciso lembrar,
contudo, que subalternamente não implicava a diminuição da importância daquela
instituição e da própria religião católica na sociedade luso-americana e mesmo nos
processos educativos.
Essa importância fica evidente nas determinações da Lei de 1772, segundo
a qual os mestres régios das primeiras letras deveriam dar especial atenção ao
estudo da língua portuguesa e, particularmente, às regras de civilidade, caras
ao pensamento educacional moderno desde o século XVI. Mas seriam também
responsáveis pelo ensino do catecismo cristão. Todos esses elementos eram objeto
dos exames a que os candidatos a uma cadeira régia eram submetidos.15 Uma vez
que também os mestres particulares deveriam se submeter a exames para obtenção
de licença para ensinar e que estes seriam realizados em conformidade com a lei,
então, o ensino do catecismo estaria, também, em suas mãos. E para isso estariam
à disposição inúmeros livros, os manuais de catecismo e de civilidade destinados à
instrução elementar e, evidentemente, submetidos ao controle dos órgãos censórios.
Nesses livros, identificamos muitos dos princípios norteadores dessas con-
cepções de educação conforme a recepção das ideias ilustradas em Portugal, e
não apenas naqueles de autores portugueses, mas também nas traduções de obras
estrangeiras, não raro adaptadas, sobretudo francesas.16 É o caso de Thesouro de
meninas ou Diálogos entre uma sabia aia e suas discípulas, traduzido em 1774, pelo padre
Joaquim Ignacio de Frias, da obra de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, publi-
cada em 1757.17 Interessa aqui o Prólogo do tradutor, no qual justifica a importância
da obra para o contexto português, na mesma linha de raciocínio que servia aos
argumentos das reformas da educação, isto é, inspirar-se nos exemplos das nações
civilizadas da Europa. Frias dizia claramente que “se em Londres e Paris se achou
utilidade” para aquela obra, não haveria de ser desmerecida em Lisboa, ainda
que sua tradução não fosse perfeita. Seria ela “útil para o bem do Estado”, uma
contribuição para a formação de “cidadãos ilustres”, trazendo para os meninos “os
mais sólidos princípios para viverem cristã e civilmente”, ensinando-os a “serem
cidadãos honrados, cristãos esclarecidos e perfeitos”.
A mesma preocupação está presente em outras traduções de obras francesas,
como a Escola dos bons costumes, ou refleçõens moraes e históricas, traduzida por d. João de
Nossa Senhora da Porta Siqueira, em 1786, da obra de Jean-Baptiste Blanchard.
No Prólogo, o tradutor, também um clérigo, considerava o ensino dos bons costu-
mes o nível mais fundamental de todo o processo educativo e, por isso, deveria ser
comum a todos os indivíduos, qualquer que fosse a sua qualidade ou condição. Os
bons costumes, segundo ele, seriam a “base dos Estados, a defesa dos Tronos, o
baluarte dos Reinos, e dos Impérios”, sendo a condição da formação dos “ilustres
cidadãos”, úteis “à sua Família, aos seus amigos, à sociedade, a si mesmos”. É in-
teressante observar a sincronia dessas últimas palavras com a definição de educação
no verbete correspondente da Encyclopédie:
As crianças que vêm ao mundo devem formar um dia a sociedade em que terão
que viver: sua educação é, portanto, o objeto mais interessante, 1º para eles mes-
mos, que a educação deve ser tal que seja útil a esta sociedade, da qual elas obtêm
sua estima, e que ali encontram seu bem-estar: 2º para suas famílias, que devem
satisfazer e decorar: 3º para o próprio Estado, que deve recolher os frutos da boa
educação que recebem os cidadãos que a compõem.18
19 ARAÚJO, Ana Cristina. Urbanidade e sociabilidade: notas acerca da “arte de bem viver” em Portugal no século XVIII. População
e Sociedade, Porto, v. 25, jun. 2016, p. 140.
20 METHODO de ser feliz, ou catecismo de moral, especialmente para uso da mocidade; compreendendo os deveres do homem,
e do cidadão, de qualquer religião, e de qualquer nação que seja. Versão do francez para o idioma vulgar. Por G.E.F. Coimbra: Real
Impressão da Universidade, 1787. Com licença da Real Mesa Censória, p. 145.
21 Ibidem, p. 144-145.
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 153
um dos que nos ocupa aqui. Como a maioria dos autores deste tipo de livro,
este também entendia a liberdade como uma faculdade humana, “pela qual a
alma pode, em certos casos, suspender as suas determinações, ou as suas ações;
ou também virá-las para a parte que lhe praz, sem mais nenhum motivo do
que a sua satisfação”.22 Embora seja necessário admitir a liberdade como uma
necessidade humana, ela não é, contudo, “fazer o que se quer”, e há um limite
para ela: o direito, que é a liberdade aprovada pela razão de fazer ou não algo,
e a moral, que disciplina essa liberdade.23
Essas obras francesas diferem sensivelmente dos manuais de catecismo
com viés mais propriamente religioso, que se limitavam ao ensino da doutri-
na e das regras de bom comportamento, estritamente do ponto de vista dos
princípios cristãos católicos. Nestes manuais, a ignorância não é geralmente
associada à falta de uma instrução letrada, mas refere-se ao desconhecimento
das normas cristãs e às práticas contrárias a elas. Nessa linha, situam-se os
conhecidos manuais portugueses Nova Escola de Meninos, do padre Manoel Dias
de Souza (1784), O Perfeito Pedagogo, de João Rosado de Villa-Lobos e Vascon-
cellos (1782), Escolla Nova Christã e Política, de d. Leonor Thomasia de Sousa
e Silva, pseudônimo de Francisco Luís Ameno (1799). Deve-se observar que
todos eles receberam aprovações dos tribunais censórios, assim como algumas
obras que, com linhas de pensamento distintas em seus fundamentos, indicam
a presença do pensamento ilustrado na comunidade intelectual portuguesa.
Mas entende-se que se adequavam às concepções do chamado “reformismo
ilustrado”, sem atingir de maneira inconveniente os princípios religiosos, um
dos pilares dos parâmetros utilizados pela censura.
Os catecismos, elaborados na forma de diálogos, à moda de um exame
ou arguição, geralmente iniciavam-se com perguntas centradas nas questões
dogmáticas e doutrinárias, em Deus e na religião católica: quem fez o Céu,
quem é Deus, os mistérios da fé, quem é Cristo etc. A criança, alvo da cate-
quese, raramente é sujeito no elenco de perguntas, e quando o é, é lembrada
22 Ibidem, p. 4-5.
23 Ibidem, p. 6-7 (grifos nossos).
154 A globalização das luzes
24 Cathecismo Português, ou Princípios de Filosophia de Moral e Política para Instrução da Mocidade (Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra).
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 155
eles o não muito menor número de leigos, que ingressava no “sistema” para o
ensino neste nível elementar.26
Cuidando para não atingir frontalmente as normas legais estabelecidas
pelas reformas, a Igreja agiu, buscando aproveitar-se da percepção, compar-
tilhada pelo governo de d. Maria I, de que o ensino da doutrina cristã nas
escolas régias ficava aquém das necessidades de formação do súdito. Nas duas
últimas décadas do século XVIII, a Igreja portuguesa passou a orientar o clero
para que ensinasse o catecismo aos domingos e estimulou a publicação dos
catecismos diocesanos, inclusive reeditando o tradicional catecismo tridentino.27
Todo esse complexo movimento apresenta a densidade necessária
para indicar a importância histórica das reformas da educação realizadas em
Portugal e seus domínios, sob a égide do pensamento ilustrado. Ainda que
esse estivesse definido por limites próprios ao contexto português da época, as
reformas foram as bases que, procurando a secularização da instrução estatal,
abriram caminho para o processo de laicização que se tornaria um grande
embate nos séculos XIX e XX, tanto em Portugal como no Brasil, e que colo-
caram em cena os princípios norteadores do pensamento liberal.
R eferências bibliográficas
ADÃO, Áurea. Estado absoluto e ensino das primeiras letras: as escolas régias (1772-
1794). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
ALVARÁ de Regulamento dos Estudos Menores, 28 jun. 1759. O Governo dos Outros, S.d.
Disponível em: http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=105
&accao=ver&pagina=698. Acesso em: 23 ago. 2022
ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos estudos secundários no
Brasil (1769-1771). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Saraiva, 1978.
BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete
da ciência, da infância e da escola. São Paulo: EdUNESP, 2017.
CARTA de Lei ampliando a autoridade da Real Mesa Censória sobre o controle dos livros,
21 jun. 1787. O Governo dos Outros, S.d. Disponível em: http://www.governodosoutros.ics.
ul.pt/?menu=consulta&id_partes=109&id_normas=34294&accao=ver. Acesso em: 23
ago. 2022.
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo; Saraiva, 1978.
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Letras, ofícios e bons costumes: civilidade, ordem e
sociabilidades na América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
______. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais (1772-1814). Belo Horizonte: Au-
têntica, 2010.
FRAGOSO, Myriam Xavier. O ensino régio na Capitania de São Paulo (1759-1801). 1972.
Tese (Doutorado em História da Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo,
1972.
SILVA, José Carlos de Araújo. As aulas régias na Capitania da Bahia (1759-1827): pensa-
mento, vida e trabalho de “nobres” professores. 2006. Tese (Doutorado em Educação)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.
Expandir a educação, evitar a
revolução: a instrução como
estratégia contrarrevolucionária
no alvorecer do I mpério1
Luciano Mendes de Faria Filho
1 Este texto, porquanto seja inédito na forma que ora é apresentado, retoma reflexões e textos anteriormente publicados.
162 A globalização das luzes
A proposição de uma escola pública, laica, gratuita e para todos deriva, como
sabemos, das utopias político-pedagógicas assentadas no pensamento iluminista do
século XVIII e que foi levada a cabo pelos Estados Nacionais nos séculos seguintes.
Mas já no seu nascedouro e na potente síntese que a Revolução Francesa faz desses
princípios, ela se orientava pela tensão fundamental que vai presidir a expansão da
escola para o conjunto da população nos séculos XIX e XX. Tal tensão poderia
ser assim anunciada: como conciliar, no âmbito do processo de escolarização, as
dimensões liberadoras e integradoras da instituição escolar?
Como sabemos, a modernidade, ao conceber e produzir o indivíduo moder-
no fundado no cogito e liberado das amarras das tradições, estabelece também a
necessidade de organizar instituições que sejam responsáveis por sua integração no
mundo social e, de outra parte, pela guarda, isolamento e/ou reeducação dos não
integrados. Nasciam, assim, como defendia Michel Foucault, a escola, a fábrica,
a prisão e o hospital.2
O pensamento e as políticas iluministas que tiveram curso nos séculos XIX
e XX são profundamente herdeiros desse ideário. E os Estados Nacionais, ao
expandirem a escola para um número cada vez maior de pessoas por meio de um
amplo e complexo serviço público – o da instrução ou da educação, a depender da
época –, buscam fazer valer a força política, financeira e simbólica na constituição,
de fato, do Estado Educador.
Como sabemos hoje, a constituição do Estado Educador significou, ao lon-
go do tempo, a subalternização de tradicionais instituições educadoras, como a
família, a Igreja e o mundo do trabalho, como o lugar por excelência da formação
das novas gerações. A produção da infância e, crescentemente, da juventude, como
etapas de formação para o “enfrentamento” das dificuldades da vida adulta, esteve
umbilicalmente relacionada à produção e à expansão da escola moderna como
lugar de instrução, educação e guarda das crianças e dos jovens.
No Brasil, o início do século XIX foi um momento pródigo de elaboração
e disseminação de um discurso fundador a respeito da escola e de suas cada vez
mais ampliadas funções sociais. A esse respeito, é fundamental a presença da escola
no rol das instituições que, ao lado da imprensa e do Estado Nacional, seriam as
2 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do Império 163
3 FONSECA, Marcus Vinícius. População negra e educação: um perfil racial das escolas mineiras no século XIX. Belo Horizonte:
Mazza, 2009.
164 A globalização das luzes
O sistema de educação elementar, que se tem seguido no Brasil, desde o seu des-
cobrimento, tem sido mui dispendioso e mui delimitado; ainda sem notar outros
defeitos, que de tempos a tempos se têm conhecido e se tem tentado remediar com
algumas providencias oportunas.4
Vê-se, pois, que a referência a outros países, estratégia tão comum no Brasil
e em outros países da América Latina, tem, aqui, um caráter pedagógico e de
persuasão. Ela não é, neste sentido, retórica vazia: pretende demonstrar o sentido
do próprio processo civilizatório vivido pelas sociedades humanas.
Se a alguns pobres era permitida a liberdade, se a perspectiva iluminista era
aquela que parecia animar o autor de tal projeto, não poderia passar despercebido
que a liberdade sem educação era perigosa. Referindo-se às escolas de Londres,
o jornal afirmava:
Destas escolas menores estabelecidas nos distritos, se tem seguido em Londres um
benefício da primeira magnitude, além da instrução, que a geração futura não
deixará de reconhecer com gratidão. As classes mais pobres da sociedade, como
são obreiros, trabalhadores, serventes dos ofícios mecânicos, &c.; e que não têm
meios de pôr seus filhos nas escolas, nem acham emprego próprio para as suas
9 Ibidem.
10 Ibidem.
166 A globalização das luzes
tenras idades, são obrigados a deixá-los andar vadios pelas ruas, aonde, em uma
cidade tão populosa como Londres, contraem as crianças mil hábitos viciosos,
acostumam-se à ociosidade, associam[-se] com pessoas depravadas, que os induzem
a cometer crimes; e vêm, por fim, a serem vitimas do rigor das leis, quando se des-
cobrem suas práticas. Estas escolas, portanto, ocupando utilmente o tempo destes
meninos pobres, não somente lhes dá [sic] a instrução em ler, escrever e contar,
que tão proveitosa é aos mesmos indivíduos; mas impede[m] que eles se habituem
à ociosidade e tira[m]-lhes a oportunidade de associar pelas ruas com quem lhes
deprave os costumes; porque as horas vagas, que restam da escola, são aquelas em
que seus pais têm voltado de seus respectivos empregos e [em] que, estando em casa,
podem ter seus filhos debaixo de seus olhos.11
a luta pela submissão ou pela emancipação é contínua e atual, no que diz respeito
aos objetivos da educação escolar.
A este respeito, para finalizar, gostaria de assinalar que vivemos, hoje, um
momento sem precedentes na história da escola pública no mundo ocidental (e não
apenas neste). Digo sem precedentes porque as críticas atuais à escola não se referem
tão somente ao fato de tal instituição ter grande dificuldade de ser contemporânea
de seu tempo. Elas põem em questão a pertinência e a relevância social, cultural,
intelectual, econômica e política da escola na formação das novas gerações.
O diagnóstico da crise da escola é parte constituinte e importante da história
dessa instituição. Cada época, cada tempo, olha para a escola e descobre que a
“sua” escola não consegue ser contemporânea do seu tempo. São currículos, mé-
todos, programas, professores, espaços e materiais didáticos que estão aquém da
necessária atualidade da escola. E, para a sua atualização, o prognóstico é sempre
uma boa reforma. O problema é que as reformas se desmancham no ar antes mes-
mo de serem levadas a cabo! Isso, por sua vez, alimenta continuamente o ímpeto
reformista dos administradores do público em relação à escola.
Há que se sublinhar, no entanto, que, para certos grupos, a escola está além
do seu tempo e, por isso, precisa ser refreada. Tais grupos, de um modo geral par-
tidários de diversos fundamentalismos religiosos, nunca aceitaram a constituição
de uma sociedade civil e de um Estado laicos, ou mesmo seculares, e, portanto,
independentes das Igrejas e das crenças que professam. De um modo geral, pro-
duzem o diagnóstico de que a escola está aliada às forças do mal na deseducação
das novas gerações. Por isso, seria preciso controlá-la e frear o seu livre curso.
Na contemporaneidade brasileira, como todos sabemos, um movimento que
bem representa essa tendência é aquele autodenominado escola sem partido... No
entanto, há que se considerar que tais movimentos, tanto os partidários de que a
escola está aquém ou, de outra parte, que está além de seu tempo, acreditam na
importância da escola e querem, por meio de reformas, torná-la contemporânea
de seu tempo. Uns defendem reformas para acelerar o tempo da escola; outros,
para atrasá-lo.
No entanto, do ponto de vista estratégico para a democracia e a política,
inclusive aquelas cujas bases, como dissemos, foram projetadas no século XVIII e
expandidas nos séculos seguintes, o grande problema não vem dos reformadores
170 A globalização das luzes
R eferências bibliográficas
BASTOS, Maria Helena C.; FARIA FILHO, Luciano Mendes de (orgs.). A escola elementar
no século XIX: o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: EdUPF, 1999.
FONSECA, Marcus Vinícius. População negra e educação: um perfil racial das escolas mineiras
no século XIX. Belo Horizonte: Mazza, 2009.
1 O Discurso de inauguração da Biblioteca Pública encontra-se transcrito no Livro de Subscrições nº 208 do Arquivo da Câmara Municipal
de São João del-Rei. Doravante indicado como ACMSJDR: SUB 208 (1824-1827).
174 A globalização das luzes
2 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 14. Este autor também considera que não
há consenso sobre o termo civilização entre os filósofos das luzes. Civilização pode significar ainda processo, continuidade, estando
estreitamente relacionada à noção de progresso. Norbert Elias apresenta definição similar a esta, ao afirmar que civilização “diz
respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente ‘para a frente’ e que deve ser o tempo todo buscado”.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, v. 1, p. 24.
3 PAIVA, Wilson Alves de. Progresso e depravação: a cultura como remédio. Kriterion, Belo Horizonte, n. 134, p. 421-440, ago.
2016.
4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 475-476.
5 SOUZA, Maria das Graças. Ilustração e história. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 114.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 175
Aflige-se quando se considera [...] essa multidão prodigiosa de homens que não têm
a menor centelha de gosto, que não amam nenhuma das belas-artes, que nunca
leem, da qual alguns folheiam, no máximo, o jornal uma vez por mês para estar
atualizado e para se colocar em estado de falar ao acaso coisas das quais eles não
podem ter senão uma ideia confusa.6
6 VOLTAIRE. Dictionnaire philosophique. In: VOLTAIRE. Œuvres complètes de Voltaire. L'édition Moland. Paris: Garnier, 1875.
VOLTAIRE-INTEGRAL. CD-ROM, 1999-2005 apud MOTA, Vladimir de Oliveira. Belas Artes e gosto da filosofia da história de
Voltaire. Quadranti–Rivista Internazionale di Filosofia Contemporanea, v. 5, n. 1-2, 2017, p. 298.
7 STAROBINSKI, op. cit., p. 45.
8 WITTMANN, Reinhard. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: CHARTIER, Roger; CAVALLO,
Guglielmo (orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999, v. II, p. 151.
9 Essa e as citações subsequentes, cf. ACMSJDR. Discurso de inauguração da Biblioteca Pública (SUB 208, 1824-1827).
176 A globalização das luzes
10 Vários foram os projetos educativos postos em prática no período imperial. Sobre a profusão da imprensa periódica, cf. MOREIRA,
Luciano da Silva. Imprensa e política: espaço público e cultura política na província de Minas Gerais (1828-1842). 2006. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. Ver também JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura
impressa e educação da mulher no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Sobre a escolarização, cf. FARIA FILHO, Luciano
Mendes de. O processo de escolarização na Província. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A Província
de Minas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 131-144; e ainda VEIGA, Cynthia Greive. Crianças pobres,
negras e mestiças na organização da instrução elementar. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A
Província de Minas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 145-160.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 177
11 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1802-1842. São Paulo: Símbolo,
1979. Ver também GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del-Rei
(1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
12 WALSH, Robert. Notícias do Brasil–1828/1829. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985, v. 2, p. 74.
13 CAMPOS, Maria Augusta do Amaral. A Marcha da Civilização: as Vilas oitocentistas de São João del Rei e São José do Rio das
Mortes–1810/1844. 1998. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998, p. 176.
14 ACMSJDR. Atas das Sessões da Câmara (ATA-SES 14, 1823-1828; 1831): Acórdão da reunião dos vereadores do dia 04 de agosto
de 1827.
178 A globalização das luzes
ser profícuo; este remédio é o vírus vacínico”.15 No ano de 1828, Baptista Caetano
d’Almeida16 buscou convencer os demais vereadores da necessidade de se cuidar da
canalização da água. Afirmava que “nenhuma [água] há que tão boa seja, como
a do Chafariz do largo de São Francisco: porque além de merecer a aprovação do
químico João Manso,17 pertence à mesma serventia pública”.18 E continuando sua
argumentação a respeito da qualidade da água, afirmava:
embora digam alguns amigos do velho ideal, que outra origem há da Serra do
Lenheiro, que melhor é, e que mais cômodo se tornará o seu encanamento: a estes
responderei que contra a experiência não há argumentos, tanto mais quando ela
não se funda em fatos duvidosos, e sim em fatos autênticos, com exames formados
por peritos, em 1822.19
15 Ibidem.
16 Baptista Caetano obteve provisão para advogar, mesmo sem ter frequentado o curso de Direito. Foi vereador da Câmara Municipal
de São João del-Rei e Juiz de Paz. Fundou a biblioteca e a primeira tipografia da cidade, na qual foi impresso o periódico O Astro de
Minas. Foi benemérito e participou da mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia de São João del-Rei. Em 1829, contratou
um professor português para que lecionasse Belas-Letras a seus irmãos e à população da cidade, curso que durou até o ano de 1833.
Ocupou o cargo de Deputado pelo Partido Liberal da Província Mineira, entre 1830 e 1837. Cf. ALMEIDA, Francisco de Assis e.
Apontamentos biographicos de Baptista Caetano de Almeida, natural de Camandocaia, actual cidade de Jaguary, da Provincia de
Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, jan./jul. 1905, p. 37-38.
17 João Manso Pereira era natural de Minas Gerais, alto, magro e de cor parda. Foi professor de Gramática Latina no Rio de Janeiro.
Sabia latim, grego, hebraico, francês e inglês e publicou cinco obras sobre alambiques, destilação de vinho e aguardente. Autodidata,
solicitou ao Frei José Mariano da Conceição Veloso, em Lisboa, vários livros de Química. CAVALCANTI, Nireu O. A livraria do
Teixeira e a circulação de livros na cidade do Rio de Janeiro, em 1794. Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1-2, jan./dez. 1995, p. 187.
18 ACMSJDR. Cartas e Editais da Câmara (CAED 68, 1823-1831): “Registro de um ofício dirigido a esta Câmara pelo Cidadão Baptista
Caetano d’Almeida acerca da Subscrição para o Chafariz público, aos 30 de março de 1828”.
19 Ibidem.
20 MORIN, Edgar. Para além do Iluminismo. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 26, 2005, p. 24. Morin também afirma que
Rousseau se opõe à vinculação razão-progresso, atribuindo à natureza uma “importância matricial”, considerando que a “civilização
acarreta a degradação humana”. Afirma ainda que Voltaire discorda abertamente desses pressupostos rousseaunianos (p. 25).
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 179
21 Baseado em MORAIS, Christianni Cardoso. Para o aumento da instrução da mocidade da nossa Pátria: estratégias de difusão do letra-
mento na Vila de São João del-Rei (1824-1831). 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2002. Alguns outros trabalhos foram publicados a partir dessa dissertação e serão indicados ao longo do texto.
22 Esta e as citações seguintes se encontram na correspondência em que Baptista Caetano oferece seus livros ao presidente da
província, transcrita em ACMSJDR. SUB 208 (1824-1827).
180 A globalização das luzes
del-Rei.23 O local foi cedido provavelmente pelo fato de Baptista Caetano ter feito
parte da mesa administrativa da Santa Casa.
Não foram localizados documentos que informem sobre a atividade interna
da instituição, o que nos impediu de identificar o gosto literário de seus possíveis
frequentadores. Além disso, nos livros de Receita e Despesa da Câmara, no período
de 1824 a 1831, não se registrou qualquer menção à compra de livros ou periódicos
e tampouco pagamentos feitos a funcionários da Biblioteca.24
Sem apoio oficial, para conservar e aumentar o acervo da Biblioteca, foram
convocados subscritores, que contribuiriam com “uma subscrição módica de cinco
mil réis anuais”.25 Com a intenção de atrair os leitores, Baptista Caetano pretendia
transformar a Biblioteca em “assinante de todas as Folhas Públicas do Brasil. Para
que os interessados pudessem saber o que ocorria fora do país, a Biblioteca seria
assinante “de uma mais interessante de França, de outra de Portugal, de outra de
Inglaterra, e de outra de Cádiz”.26 Após reunir os subscritores, seria entre eles eleita
uma comissão que deveria organizar um regimento interno, além de instituir-se
uma mesa administrativa, composta pelo diretor, um secretário e um tesoureiro.
As obrigações do bibliotecário também seriam estipuladas nessa primeira reunião
e constariam do regimento. Na solenidade de inauguração da Biblioteca, a con-
vocação de Baptista Caetano foi, num primeiro momento, atendida, tendo sido
registrados 91 subscritores.27 Alguns, inclusive, contribuíram com mais de uma
“ação”, sendo que cada uma custava 5$000. Todavia, com o passar do tempo,
nem todos os valores prometidos pelos subscritores que assinaram a lista foram
pagos. Em 1836, o bibliotecário, dizendo-se ser responsável pela instituição desde
1831, lamentava, em carta à Assembleia Provincial, “o abandono, em que caíra
tão preciosa Biblioteca” e queixava-se de não ter recebido salário algum até então.
23 Ibidem.
24 ACMSJDR. Livros de Receita e Despesa: REC 171 (1806-1868); REC 172 (1829); REC 173 (1829-1838); e REC 174, (1830-1833).
25 Ibidem.
26 Ibidem.
27 Sobre o perfil econômico e cultural desses homens, cf. MORAIS, 2002 (especialmente o capítulo IV).
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 181
Uma vez que o expediente das subscrições não logrou êxito, no intuito de
aumentar o acervo da Biblioteca, tentou-se criar uma sociedade de leitura,28 tendo
sido submetidos à Corte seus estatutos. Finalizados em 30 de novembro de 1827,
os Projectos dos Estatutos da Sociedade Phylopolytechnica29 foram enviados pelo diretor
da Biblioteca, o Dr. Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (juiz de fora da vila),
para exame e aprovação de sua majestade imperial. O significado das palavras que
compunham o nome da sociedade de leitura já anunciava o escopo desse projeto:
phylos = amigo + polytechnica = o que abrange muitas artes ou ciências.
Nos estatutos da Sociedade Phylopolytechnica, afirma-se que “esta sociedade é
livre, literariamente falando; isto é, professa-se nela a liberdade de pensamento e
de expressão”, sendo “as leis sociais e religiosas [...] a única coação externa”. Seu
grupo frequentador seria constituído a partir de um “pacto espontâneo de Literatos
associados”.30 Os membros seriam todos os subscritores da Biblioteca. Mas pode-
riam se inscrever outros sócios da vila, da região, ou correspondentes de todas as
províncias do Império, qualquer um que se interessasse por ciências, literatura ou
artes. A admissão dos novos sócios seria feita a partir da indicação dos candidatos
pelos sócios efetivos, seguida de votação secreta. Os requisitos essenciais para se
tornar um membro eram: “além de bons costumes e consideração da sociedade
civil, ser amante da literatura em geral, das artes e ciências”.
Sugeriu-se que a sociedade fosse constituída por três corpos ou institutos:
um Ginásio Literário, um Gabinete de Estudo e um Instituto Econômico. O
primeiro teria como finalidade “aperfeiçoar nossas faculdades pela deliberação e
pelo conflito das Luzes em todos os assuntos dos conhecimentos humanos”, ou seja,
seria este corpo um fórum de discussões, subdividido por seus membros em “três
grandes objetos – Ciências, Artes e Letras”.31 Esse primeiro corpo deveria funcionar
em uma sala, com uma mesa no alto ocupada pelo presidente. O presidente teria
como principal objetivo manter a ordem das sessões e dirigir a discussão dos temas
28 Uma versão ampliada sobre esse assunto pode ser lida em MORAIS, Christianni Cardoso. Aprender o método industrioso de ler
com análise: o projeto de criação da Sociedade Phylopolitechnica de São João del-Rei (Minas Gerais, 1824-1828). Educação em Revista,
Belo Horizonte, v. 39, p. 101-120, 2004.
29 PROJECTOS d’Estatutos para a organização da Sociedade Phylopolytechnica emprehendida em a Villa de São João D’El Rei.
Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 4, p. 815-838, 1899.
30 Ibidem. Esta e as citações seguintes.
31 Ibidem.
182 A globalização das luzes
propostos e, sobre sua mesa, estariam sempre uma publicação da Lei Fundamental
do Império, uma da Lei da Liberdade de Imprensa e os Estatutos da Sociedade,
além de um códice com folhas em branco para que nele o secretário redigisse as
atas das reuniões.
Os criadores dos estatutos propuseram outro corpo, para que as discussões
não ficassem restritas ao círculo dos seus sócios, pois dessa forma a única coisa que
conseguiriam seria “[tirar] de si próprias luzes para as concentrar em si mesmo [...]
avaramente num círculo inútil”, tornando-se “um instituto solitário, insuficiente a
si mesmo e indiferente à Sociedade”. O objetivo era abrir “uma porta ao ingresso
das luzes, e outra, ao derramamento d’elas”. Isso corrobora a ideia de que se re-
alizassem leituras socialmente úteis e de que se promovesse um projeto amplo de
educação, almejando a civilização dos costumes. O segundo corpo seria chamado
Gabinete de Estudos, descrito como um “Instituto estudioso, a fim de nos enriquecer
e pôr-[nos] ao nível das luzes da Europa culta pela leitura das peças periódicas de
várias Nações”. Os conhecimentos seriam divididos com os demais interessados
a partir de um periódico, uma “folha d’extratos” redigida pelos sócios efetivos.
Assim, enquanto o primeiro corpo “nutrirá nosso Instituto do espírito das Nações
cultas da Europa”, o segundo corpo teria um objetivo educativo mais amplo, pois
nele se “difundirá esse mesmo espírito sobre as belas e remotas Províncias da nossa
infante Nação”. A intenção de se tornar um instituto que desse aos leitores dos ex-
tratos periodicamente publicados a possibilidade de se educar, em sentido amplo,
é muito enfatizada, pois o Gabinete “terá por fim o estudo e o ensino”, ficando
ocupado “em recolher e transmitir”. A renda obtida com a venda desse periódico
mensal seria destinada à compra de novos materiais de leitura para a Biblioteca.
Haveria, por fim, na sociedade, uma diretoria, para administrar e dirigir.
O último objetivo da Sociedade Phylopolytechnica seria criar um Gabinete de História
Natural. O referido projeto, contudo, não foi aprovado pelo parecerista, o visconde
de Cayru, José da Silva Lisboa. De acordo com o parecer, a referida associação
“poderia implicar ‘com a Religião e Política’, além de ser ‘tão remota da Corte e
sem Inspeção de Autoridade’”.32 Essa forma de enxergar a proposta da sociedade de
32 PARECER do Visconde de Cayru acerca dos Projectos d’Estatutos para a organização da Sociedade Phylopolytechnica em-
prehendida em a Villa de São João D’El Rei. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 4, p. 838-839, 1899.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 183
leitura foi justificada, segundo o visconde, pelo fato de que, uma vez declarando-se
livre e com “liberdade de pensamento e expressão, em todos os assuntos de conhecimentos
humanos”, a instituição poderia, como já se assinalou, “implicar com a Religião e
Política”.33 Além disso, os estatutos permitiam que qualquer pessoa “culta”, de
qualquer lugar, pudesse ingressar na sociedade, sendo esta cláusula também consi-
derada “perigosa, por dar facilidade à correspondências sinistras com Estrangeiros”.
Outro motivo, alegado pelo visconde de Cayru e que impedia a criação oficial
desta sociedade de homens das letras em São João del-Rei, era o fato de a vila es-
tar localizada longe da Corte, “sem Inspeção de Autoridade”. Desde as primeiras
povoações, no século XVIII, as Minas Gerais eram temidas pelas autoridades,
pois, além de se localizar no interior do Brasil, seus habitantes eram considerados
instáveis, inquietos. Todos os cuidados eram tomados com relação à população
das Minas. Mesmo assim, várias conturbações foram verificadas ao longo de
sua história, provocadas tanto pelos colonizadores e vadios, quanto por escravos
fugidos e indígenas. Como exemplos, podem-se citar a Guerra dos Emboabas no
início do Setecentos, os inúmeros quilombos surgidos nas décadas de 1740-1750,
a Inconfidência Mineira (1789)34 e um levante de escravos, ocorrido em 1820, que
reuniu cerca de 21.000 homens. Mesmo após a Independência, os ânimos dos
mineiros ainda necessitavam ser controlados, como em 1822, quando em Ouro
Preto “grassava um movimento de dissidência contrário à adesão ao príncipe”.35
Minas Gerais conjugava a localização no interior do Império, longe dos “olhos do
Governo”, com o fato de ser um lugar historicamente marcado por revoltas, e pelo
menos uma delas, ligando homens de letras a livros potencialmente sediciosos.
A organização da sociedade de leitura revela o quanto seus idealizadores
desejavam discutir quaisquer assuntos abordados pelos homens de letras. Toda-
via, isso indicava que pretendiam se afirmar simbolicamente como obedientes à
ordem pública imperial, tanto é que demarcavam a presença da Lei Fundamental
do Império e da Lei da Liberdade de Imprensa, o que não foi suficiente para a
O acervo da Biblioteca36
No ano de 1828, o viajante inglês Robert Walsh, durante sua estada em São
João del-Rei, fez uma visita à Biblioteca. Suas impressões sobre o bibliotecário,
Francisco d’Assis Braziel, impregnadas de um olhar europeu (como não poderia
deixar de ser), foram as seguintes: tratava-se de um
padre mulato, de aparência bastante curiosa – baixo, gordo, com um vasto chapéu
colocado de banda e o rosto afundado no peito [...] se assemelhava, sob todos os
aspectos, a um [tatu]. Tratava-se, contudo, de um homem de talento [...] falava
um pouco de francês.37
36 Essas informações se encontram publicadas em MORAIS, Christianni Cardoso; VILLALTA, Luiz Carlos. Bibliotecas nas Minas
em tempos de civilização. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A Província de Minas. Belo Horizonte:
Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 187-208. Agradeço ao professor Villalta o trabalho de identificação de vários títulos
e acréscimo de informações sobre as obras que compunham o acervo inicial da biblioteca em análise.
37 WALSH, op. cit., p. 77. No original, o viajante escreveu “porco de armadura”, em vez de tatu, ao fazer alusão ao mamífero nativo
de nosso cerrado, que tem sobre as costas uma carapaça que se assemelha a uma armadura.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 185
38 Ibidem, p. 77-78.
39 A Encyclopédie méthodique não constitui o texto original da Enciclopédie de Diderot e D’Alembert (publicada entre 1751-1772). Seu título
completo é Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une société de gens de lettres. Cf. DARNTON, Robert. O
Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
40 A edição encontrada na biblioteca data de 1782-1832.
41 DARNTON, op. cit., p. 350.
42 Ibidem, p. 252.
186 A globalização das luzes
A relação parcial dos livros, com data de 1845, elaborada pelo irmão de
Baptista Caetano, Francisco de Assis e Almeida, traz as informações mais precisas
a respeito do acervo doado por Baptista Caetano.43 Segundo a correspondência,
foram gastos 192$000 com livros comprados a João Pedro da Veiga, 10$880 com
obras da testamentaria do vigário Joaquim Marianno, e da testamentaria de um
homem denominado na documentação apenas Lemos, foram comprados 493$260
de livros.44 Há referência também aos prováveis fornecedores de livros de Baptista
Caetano, pois se mencionam os “Livros comprados a Ogier: 80$000”, ou ainda
“ditos comprados a Cogê, compreendendo 123 volumes”. Dentre esses 123 volumes,
fica visível o grande interesse do comerciante por livros de autores das Luzes e
assuntos ligados à França. De acordo com o citado documento, através do forne-
cedor Cogê, foram adquiridas as obras completas de Condillac, Mably, Raynal,
Helvetius, Diderot e Buffon. Também as Obras de Napoleão, os Ensaios de Montaigne,
livros de história francesa, como Fastos da Nação Franceza e História da França, sem
haver referências a seus autores. Além disso, citam-se um Diccionario historico dos
Cultos e as Memórias de Las Casas,45 compra esta que custou 25$000. Mencionam-
-se também 44 volumes de Voltaire, Obras Completas, que custaram 40$000. Com
as obras completas de Benjamim Constant, Bentham, De Pradt, Say e Bonin, e
outros volumes, como Curso de Litteratura de La Harpe, Martyres, Hyssope(sic),46 Jury
Criminal, Diccionario Francez, História Universal, de Millot, Spectaculo da Natureza, Fabulas
de La Fontaine, Encyclopedia methodica Franceza e um Diccionario Histórico, teriam sido
investidos 348$000. Na compra de Biographia dos contemporaneos e Choix de rapportes,
foram gastos, respectivamente, 42$000 e 50$000. Foram comprados ainda “seis
caixões de Livros dos trabalhos da Assembleia Nacional Francesa”, por 24$000;
dois volumes dos Diários da Assembleia Constituinte, por 12$120; alguns Diários da
Câmara dos Deputados em 1826, por 20$000; Diários da Câmara dos Deputados “em
43 ACMSJDR. “Correspondência enviada à Câmara Municipal de São João del Rei por Francisco de Assis e Almeida, contendo a
Relação dos livros que Baptista Caetano d’Almeida deu para a Livraria desta Cidade, e de seus preços – 1845” (documento avulso).
44 Esses testamentos não foram localizados no decorrer da pesquisa.
45 Las Casas escreveu sobre o homem americano, as civilizações antigas do México e do Peru. Seus dados foram fortemente criticados
por Buffon e Raynal. VENTURA, Roberto. Leituras do Abade Raynal na América Latina. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.) A Revolução
Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp; Brasília: CNPq, 1990, p. 171.
46 Possivelmente a obra Hissope, de “António Dinis da Cruz e Silva, Elpino Nonacriense, poeta lírico e satírico de raro mérito, membro
da alçada que julgou os inconfidentes e juiz da devassa contra os jacobinos fluminenses de 1794”. RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a
tipografia no Brasil: 1500-1822, com um breve estudo geral sobre a informação. Rio de Janeiro: Kosmos, 1946, p. 275.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 187
1827”, por 15$000; e Diários “dos Senadores”, pela importância de 6$000.47 Diderot,
La Fontaine, Rousseau e Voltaire, autores de livros que compunham o corpus da
Biblioteca de São João, foram proibidos pelo Edital de 24 de setembro de 1770, da
Real Mesa Censória, “o mais importante edital que se voltou contra os Ilustrados e
os pensadores políticos modernos”.48 Buffon, Condillac, Mably, Helvétius, Raynal
e Montaigne, que também figuravam na Biblioteca de São João del-Rei, tiveram
várias de suas obras proibidas e inscritas num catálogo organizado pelos órgãos
censórios entre 1769 e 179649 – a menção a essas proibições, inválidas na época
imperial, serve apenas para que se pense no caráter dessas obras, vistas ao final
do período colonial como ameaçadoras à ordem. Os livros existentes na Biblioteca
Pública de São João, em grande parte, eram lidos em outros locais do Brasil, so-
bretudo no Rio de Janeiro, no período imediatamente posterior à Independência.50
Outros livros foram doados, conforme notícias veiculadas pelo periódico
local O Astro de Minas. Em correspondência publicada em 1827, Baptista Caetano
d’Almeida rogava ao redator do periódico
a graça de inserir no seu Astro a carta junta do Sr. S. M. Antonio Felisberto da
Costa, a qual se torna digna de publicação, por conter uma oferta interessante à
Pública Livraria e mesmo porque dela coligirá o Respeitável Público as patrióticas
intenções do Sr. Costa [...] o “Atlas Historico, Chronologico, Geografico, e Genealogico de
Le Sage, raro e pouco lido no nosso País, mas que será um dia apreciado segundo
o seu merecimento”.51
47 Dos livros ainda existentes no acervo de obras raras e antigas, que provavelmente pertenceram a Baptista Caetano, apenas um
dicionário de Português-Francês possui a assinatura do iniciador da biblioteca. O fato de os livros não possuírem anotações revela
um tipo de relação com esses objetos, que passa pelo cuidado e vontade de preservá-los, tendo em vista o estatuto de objeto sagrado,
muitas vezes assumido pelo livro no período.
48 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas da leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado
em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p. 226.
49 Ibidem, p. 228-231.
50 “A obra de De Pradt circulava em trechos, recortada, através de vulgarizadores, adquirindo ampla divulgação e eficácia política.
[...] Raynal, De Pradt, Benjamim Constant, Mably, Rousseau e outros mais contribuíram, assim, para o aprendizado político das elites”.
SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada. São Paulo: UNESP, 1999, p. 123. O livro de B. Constant, Cours de politique constitutionnelle,
publicado em quatro volumes em 1818-1820, é considerado “o manual do liberalismo oitocentista”. MARTINS, Wilson. História da
inteligência brasileira. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992, v. 2, p. 113.
51 O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 16, 25 dez. 1827, p. 4.
188 A globalização das luzes
52 ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal
no século XVIII. Topoi, v. 8, n. 15, p. 80-104, 2007.
53 VILLALTA, Luiz Carlos. A Universidade de Coimbra sob o reformismo ilustrado português (1770-1807). In: FONSECA, Thais
Nivea de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011, p. 157-202.
54 Todas essas doações foram publicadas em: O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 35, 7 fev. 1828, p. 2.
55 Nasceu em 1765 no lugar denominado de Laje (atual cidade de Resende Costa), Comarca do Rio das Mortes. Era filho de José
de Resende Costa, homem de terras no referido arraial. Ambos envolvidos na Inconfidência Mineira, foram acusados pelo crime de
lesa-majestade e condenados, vindo o pai a falecer no degredo. Resende Costa (filho) se tornou Conselheiro e importante político no
período imperial brasileiro, tendo participado da Assembleia Constituinte de 1823. Foi sócio correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1841. Foi convidado pelo IHGB a escrever sobre a Inconfidência Mineira, mas
se recusou, restringindo-se a traduzir um artigo em inglês sobre o tema. GOMES, Wenderson de Souza. José de Resende Costa Filho:
a arquitetura da nação brasileira a partir do passado colonial. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 29., 24-28 jul. 2017,
Brasília. Anais... Brasília: ANPUH, 2017.
56 ACMSJDR. Correspondência de 1842 (documento avulso).
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 189
57 ACMSJDR. Atas das Sessões da Câmara (ATA SES 28–1839-1844), fl. 216.
58 ACMSJDR. “Relação de obras doadas pelo Conselheiro José de Resende Costa, por Martiniano Severo de Barros” (1842- do-
cumento avulso).
59 LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes. Um breve itinerário editorial: do Arco do Cego à Impressão Régia. In: CAMPOS,
Fernanda Maria Guedes de et al (orgs.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): bicentenário: “Sem livros não há instrução”. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Biblioteca Nacional, 1999, p. 79.
60 PENTEADO, David Francisco de Moura. O auxiliador da indústria nacional: Um periódico a serviço do estado brasileiro?
(1833-1896). Revista Trilhas da História, Três Lagoas, v. 8, n. 15, p. 126-143, jul./dez. 2018.
190 A globalização das luzes
iluminista que avançava pelo século XIX. Havia na biblioteca de Resende Costa,
por fim, dicionários de inglês, espanhol, francês, italiano e latim.
Até o ano de 1841, não foi registrada na Câmara Municipal qualquer refe-
rência a medidas de conservação ou aumento do acervo da Biblioteca. Em 1842,
após as negociações sobre o transporte da doação de livros do conselheiro Resende
Costa, foi registrada em Ata da Câmara uma solicitação feita ao bibliotecário: que
elaborasse um inventário das obras da Biblioteca. Não obtendo resposta sobre o
assunto, os vereadores decidiram nomear uma comissão composta por professores
públicos, para que estes fizessem o inventário. Poucos dias depois, um vereador
lembrou que a comissão não tinha, até aquele momento, feito o inventário das
obras. Novamente a Câmara Municipal enviava um ofício ao bibliotecário, exi-
gindo resposta, mas a correspondência foi interrompida e não há como concluir
se o trabalho foi elaborado.61
Há muitas dúvidas com relação ao acervo original da Biblioteca Pública de
São João del-Rei. Pode-se constatar, analisando os ex-libris de vários livros desse
acervo que chegaram aos nossos dias, que, ao longo de sua existência, muitas do-
ações foram feitas por moradores da cidade, sobretudo por famílias de médicos,
advogados e padres, quando estes faleciam. Outro problema é o fato de a Biblioteca
ter sido transferida para locais diferentes várias vezes desde sua criação. Nota-se
também a inexistência de documentos da época que indiquem, nominalmente, a
totalidade dos títulos dos livros que compunham seu acervo original.
Embora não tenha sido possível estabelecer, com absoluto rigor, uma clas-
sificação dos livros que compunham o acervo original da Biblioteca de São João
del-Rei (dados os limites impostos pelas fontes), podemos afirmar que a maior
parte dizia respeito às “ciências profanas”: Geografia, História, Filosofia, Política,
Direito, Ciências Naturais.62
63 O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 127, 09 set. 1828, p. 1. O termo publicado pelo Astro afirma que a Câmara assumiu
a “prontificação” da sala que abrigaria os livros, mas nos documentos do ACMSJDR não foram encontradas referências a gastos com
a Biblioteca entre 1824 e 1840.
64 ACMSJDR. Atas e sessões da Câmara (ATA-SES 28, de 10 de julho de 1840).
65 FONTES, Lucy G.; FIUSA, Marysia M.; GOMES, Sonia de C. Catálogo de livros raros da Biblioteca Baptista Caetano. Central Globo
de Comunicações da Rede Globo de Televisão, 1992.
192 A globalização das luzes
UFSJ em 2005. Em 2017, foi realizada nova mudança das obras raras para o prédio
do CEDOC, no Campus Dom Bosco, em sala com condições ambientais ideais.
A lgumas considerações
R eferências bibliográficas
ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das trans-
formações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, v. 8, n. 15, p. 8 0-104, 2007.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. O processo de escolarização na Província. In: RE-
SENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A Província de Minas. Belo
Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 131-144.
FONTES, Lucy G.; FIUSA, Marysia M.; GOMES, Sonia de C. Catálogo de livros raros da
Biblioteca Baptista Caetano. Central Globo de Comunicações da Rede Globo de Televisão,
1992.
JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher no século XIX. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2010.
LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes. Um breve itinerário editorial: do Arco do Cego
à Impressão Régia. In: CAMPOS, Fernanda Maria Guedes de et al (orgs.). A Casa Literária
do Arco do Cego (1799-1801): bicentenário: “Sem livros não há instrução”. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda; Biblioteca Nacional, 1999.
MORAIS, Christianni Cardoso. Para o aumento da instrução da mocidade da nossa Pátria: estra-
tégias de difusão do letramento na Vila de São João del-Rei (1824-1831). 2002. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002.
______. Aprender o método industrioso de ler com análise: o projeto de criação da So-
ciedade Phylopolitechnica de São João del-Rei (Minas Gerais, 1824-1828). Educação em
Revista, Belo Horizonte, v. 39, p. 101-120, 2004.
MORAIS, Christianni Cardoso; VILLALTA, Luiz Carlos. Bibliotecas nas Minas em tempos
de civilização. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A
Província de Minas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 187-208.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 195
MORIN, Edgar. Para além do Iluminismo. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 26, 2005.
O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 16, 25 dez. 1827; n. 35, 7 fev. 1828; n. 127,
9 set. 1828.
PAIVA, Wilson Alves de. Progresso e depravação: a cultura como remédio. Kriterion, Belo
Horizonte, n. 134, p. 421-440, ago. 2016.
RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil: 1500-1822, com um breve estudo
geral sobre a informação. Rio de Janeiro: Kosmos, 1946.
SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Minas e a Monarquia. In: SANTOS, Estilaque Ferreira
dos. A Monarquia no Brasil: o pensamento político da Independência. Vitória: EDUFES/
CEG, 1999.
SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada. São Paulo: UNESP, 1999.
SOUZA, Maria das Graças. Ilustração e história. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
196 A globalização das luzes
VILLALTA, Luiz Carlos. Os clérigos nas Minas Gerais na segunda metade do século
XVIII. Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1/2, p. 19-52, 1995.
______. Reformismo ilustrado, censura e práticas da leitura: usos do livro na América Portugue-
sa. 1999. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
WITTMANN, Reinhard. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In:
CHARTIER, Roger; CAVALLO, Guglielmo (orgs.). História da leitura no mundo ocidental.
São Paulo: Ática, 1999, v. II.
Quando morre um século:
“recomendações econômicas e políticas
que fez o Século 18 a seu filho o
Século 19”1
Álvaro de Araujo Antunes
1 Os resultados aqui apresentados estão associados ao projeto “Luzes entre Livros: ilustração e cultura escrita em Minas Gerais
(1750-1822)”, aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), por meio do edital universal de pesquisa,
que se encontra sob o registro APQ 02439-17.
2 À época, a comissão destinada à avaliação e censura de livros era formada pelo Ordinário, Inquisição e Desembargo do Paço.
Anteriormente, durante o reinado de D. José I, esse controle era exercido pela Real Mesa Censória. Em 1787, D. Maria cria a “Real
Comissão Geral sobre o Exame e Censura de livros”, que funciona até 1794. Sobre o assunto, ver VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do
livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. Para evitar repetições, todas
as referências ao documento neste capítulo remetem ao documento arquivado no endereço: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(ANTT). Real Mesa Censória (RMC)–caixa 508, documento 4701.
198 A globalização das luzes
Pouco se sabe acerca da obra e do seu autor.3 Tudo indica que o manuscrito nunca
foi impresso, tendo no máximo uma circulação restrita, de mão em mão, pouco
influenciando no quadro das ideias portuguesas. Acerca do seu autor, António José
Soeiro da Silva, sabe-se apenas que era bacharel em direito formado em Coimbra
e, até onde se apurou, não deixou outros escritos para além do Testamento do Século
18.4 Essa breve apreciação investigativa indica um escritor sem expressão no qua-
dro letrado português e uma obra praticamente desconhecida. Entretanto, mesmo
oculto na zona cinzenta do quase esquecimento, esse escrito tem muito a revelar
sobre a maneira pela qual um homem trivial compreendeu a história do chamado
“Século das Luzes”.
Guardado no fundo Real Mesa Censória do Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, o manuscrito permaneceu desconhecido até o momento, não obstante
tivesse muito a revelar sobre as Luzes lusas. Formalmente, o documento se apresenta
com 19 páginas, frente e verso, ordenadas em duas partes. A primeira consiste no
Testamento, composto por dez páginas, que teria sido redigido em 25 de outubro
de 1800, conforme vai escrito na obra. O Codicilo, a segunda parte do escrito, é
datado de 25 de dezembro do mesmo ano. Não é difícil notar que a fixação das
datas e a formalidade da escrita servem de recursos que conferem ao panfleto um
aspecto legal e administrativo, similar a um testamento, não obstante se trate de
uma obra literária.5 O enredo tem por personagem principal o Século 18, que re-
lata, em primeira pessoa, seus feitos e ocorridos.6 Moribundo e temendo a morte,
3 Não se encontrou registro da referida obra nas bibliotecas nacionais de Portugal e do Brasil. Até o momento, também não se
localizou o parecer dos censores. Sobre o autor, por um erro de paleografia, julgava ser António José Louro da Silva, no entanto, o
correto é Antonio José Soeiro da Silva. Aproveito a ocasião para corrigir o erro que cometi ao analisar o documento no VII Encontro
Internacional de História Colonial, de 2018. ANTUNES, Álvaro de Araujo. Legado das Luzes: a ciência e a educação transmitidas em
testamento do século XVIII ao século XIX. In: ALVEAL, Carmen Margarida de Oliveira et al. (orgs.). Anais do VII Encontro Internacional
de História Colonial. Mossoró: EDUERN, 2018, p. 347.
4 Os registros da Universidade de Coimbra indicam que Antonio José Soeiro da Silva era filho de Antonio Soeiro e natural de
Sendim, Trancoso, Portugal. Em 1785, matriculou-se no curso de direito da referida instituição, colando grau de bacharel em 3 de
junho de 1789, com boa avaliação por Nemine Discrepante, mas estendeu sua formação até 1791. As informações foram retiradas do site
do Arquivo da Universidade de Coimbra. Disponível em: http://pesquisa.auc.uc.pt. Acesso em: 31 jun. 2019.
5 Sobre o aspecto formal dos testamentos, ver ANTUNES, Álvaro de Araujo. A forma de fazer testamento; apontamentos acerca
de um opúsculo setecentista. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 7, n. 2, p. 93-101, jul./dez. 2005a. Existem outros registros de obras
literárias no formato de testamentos ou assim nomeadas. Um exemplo dessa espécie de “gênero”: Testamento de um velho que acha na cidade
de Lisboa, de idade de mil setecentos e cinquenta e dois anos cerrada por Mensieur de los tempos a vista de toda a marotagem, impresso por Francisco
Guerverz na Catalunha.
6 Para evitar replicar todo o título, optou-se por se referir ao escrito como Testamento do Século 18. As menções Século 18 dizem respeito
ao personagem, diferindo-se do século XVIII, aqui utilizado para circunscrever um determinado tempo. O mesmo vale para o Século
19 e o século XIX.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 199
o Século 18 alertava seu filho, o Século 19, para os desafios que seriam enfrentados
e para os incômodos que deveriam ser evitados.
O Testamento é a síntese narrativa de todo um século, suas conquistas e seus
desafios. Para os problemas econômicos, por exemplo, propõe soluções de cunho
fisiocrático, em defesa da riqueza proveniente da agricultura, que deveria ser
cultivada pela maior parcela da população. Quanto à sociedade, uma variável no
cálculo econômico, lamentava a mendicância e defendia o ordenamento estamen-
tal, negando qualquer laivo de igualdade. No terreno da educação, exaltava os
avanços da ciência e criticava o atraso do ensino promovido pelos inacianos. Em
geral, depreende-se da obra uma visão da história ordenada pela recordação dos
grandes eventos, sobretudo das guerras, que se projetavam para um futuro incerto.
Trata-se de um relato quase biográfico de um século agonizante, cuja vivência, nem
sempre exemplar, serviria de instrução ao filho. Apesar da riqueza dos assuntos
mencionados, que tomavam a história como mestra da vida, neste capítulo serão
avaliadas apenas algumas ideias de António José Soeiro da Silva quanto ao fun-
damento dos poderes, ao progresso das Luzes e às guerras. Objetivando associar
as ideias ao lugar de produção, exploraremos o universo de referências intelectuais
do autor, iniciando com uma breve análise sobre as Luzes em Portugal.
Em que pesem todos os questionamentos que possam ser interpostos acerca
do distanciamento entre criador e criatura, a forma pela qual o documento se
apresenta ao leitor permite uma sobreposição entre autor e obra. Deste modo,
compreendemos que, pela boca do Século 18, se expressam as posições de António
José Soeiro da Silva; a expressão singular de um universo ilustrado. Este prin-
cípio metodológico, de base relacional, entende que o autor carrega a marca de
uma coletividade, isto é, de um contexto que permite ou impede, sem determinar
plenamente.7 Uma conjuntura de circulação e apropriação de ideias, incentivada,
até certo ponto, por um projeto oficial lusitano e ilustrado, que visava à reforma
e não à revolução.
7 O Testamento do Século 18 é entendido como um ato autoral, porém coletivo; uma espécie de “universalidade para si”. ZIZEK,
Slavoj. Sobre la violência: seis reflexiones marginales. Barcelona: Austral, 2015, p. 183.
200 A globalização das luzes
8 Neste capítulo, por vezes, se fez uso indiscriminado dos mencionados termos, ainda que seja mais frequente o uso das “Luzes”
para designar o movimento intelectual de fins do século XVIII. Sobre a variação e especificidades do termo, cf. OUTRAM, Dorin-
da. Panorama de la ilustración. Barcelona: Blume, 2008, p. 26-27.
9 CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. 2. ed. Campinas: EdUNICAMP, 1994; HAZARD, Paul. La pensée européenne au XVIIIe
siècle: de Montesquieu à Lessing. Paris: Fayard, 1993; e GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York: W. W.
Norton & Company, 1995.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 201
século XVIII no mundo luso: a expansão geográfica das Luzes em direção às terras
portuguesas e os contornos que ali adquiriu; e, pautando a pluralidade das Luzes,
a constituição de uma perspectiva de progresso que serviria de rota às nações eu-
ropeias e que contrastava com as lamúrias do atraso lusitano. Diante dessas duas
zonas de problemas, como hipótese, ainda que apenas aventada, quer-se considerar
a possibilidade de o discurso sobre atraso funcionar como um elemento crítico capaz
de dinamizar o avanço lusitano no amplo plano do progresso humano.
Nas últimas duas ou três décadas, “os estudiosos concentraram-se mais nas
diferenças nacionais ou confessionais”, revelando as especificidades do Iluminismo
em diferentes partes da Europa.10 Destacando a dilatação da área geográfica do
Iluminismo, normalmente restrita à França, Dorinda Outram ressaltou a plurali-
dade das manifestações das Luzes. Nos termos da autora, a ilustração, mesmo em
sua menor definição, compreendia muitos e distintos abrigos, variando no tempo e
no espaço.11 E mais, “la ilustración se vivió como una cacofonía y una paradoja”.12
Seguindo essa perspectiva, alguns estudos se preocuparam em identificar as
especificidades da manifestação das Luzes em Portugal. Com frequência, as Luzes
no mundo luso são descritas como conciliadoras, reformadoras, católicas. Para
caracterizá-las desta maneira, é comum se ressaltar a flutuante relação da razão
ilustrada e da fé católica. Ainda que a segunda metade do século XVIII tenha
presenciado entreveros entre a Coroa portuguesa e o papa, bem como uma perse-
guição sistemática aos jesuítas e à escolástica, a Igreja católica não sofreu grandes
perdas.13 Apesar de todos os óbices, o padroado régio continuaria a aproximar os
interesses do Estado e da Igreja. Os ataques que partiram do trono ou da cadeira
ministerial do governo português, em meados do Setecentos, não visavam solapar
os valores religiosos, nem romper a parceria com a Igreja, de mútuo interesse na
conquista e controle dos fiéis súditos.
10 ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes: iluminismo radical e as origens intelectuais da Democracia Moderna. Tradução de
Daniel Moreira Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2013, p. 29.
11 OUTRAM, op. cit., p. 24.
12 Ibidem.
13 Observador perspicaz e partidário da secularização do ensino, Ribeiro Sanches considerava que, com a expulsão dos jesuítas
que dirigiam a Universidade de Coimbra (1759) e com o rompimento das relações com a autoridade romana (1760), era “um absurdo
ensinar nas Universidades as Leis de soberano alheio”, no caso, o papa. SANCHES, Ribeiro. Dificuldades de um reino velho para remendar-se
e outros textos. 2. ed. [Lisboa]: Livros Horizonte, 1980, p. 68.
202 A globalização das luzes
14 DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração e catolicismo: Teodoro de Almeida. Lisboa: Colibri, 1994, p. 152.
15 ARAÚJO, Ana Cristina. O marquês de Pombal e a universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2000, p. 15.
16 NOVAIS, Fernando Antônio. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 167.
17 ANTUNES, Álvaro de Araujo. O código intentado: lei e justiça na “economia da imposição”, Portugal, finais do século XVIII
e início do XIX. In: BARRAL, Maria Helena; SILVEIRA, Marco Antonio (coords.). Historia, poder e instituciones: diálogo entre Brasil
y Argentina. Rosario: Prohistoria; Universidad Nacional de Rosario, 2015, p. 126-142.
18 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1996.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 203
19 Sobre as sedições, ver MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira; Brasil-Portugal: 1750-18 08 . Tradução
de João Maia. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995; VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o Império Luso-Brasileiro e os Brasis.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000; e JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do
século XVIII. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
20 ARAÚJO, 2000, p. 9.
21 “Não é surpresa para ninguém afirmar que as noções de progresso, melhoria da sociedade [...], melhoria do ‘estado da humanidade’,
foram fundamentais para o iluminismo.” ISRAEL, op. cit., p. 15.
204 A globalização das luzes
seu Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano.22 Contudo, o desen-
volvimento também poderia estar associado à decadência, quando considerados
os “perigos e desafios a que está sujeita a condição humana”.23 Em Considerações
sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência, Montesquieu desenha a
ascensão e a queda de uma “república” modelar.24 No mesmo sentido, Rousseau
destoaria da nota positiva ao questionar o progresso da humanidade promovido
pelas ciências e artes. Para Rousseau, a “aventura da civilização se mostra como
um processo de degeneração progressiva do homem”.25 Mais do que revelar a
discordância no interior das Luzes, as perspectivas, desenhadas entre desenvol-
vimento e derrocadas, consideravam o progresso como um processo movido por
causas e acidentes, cujos resultados eram incertos.26
Justamente pelo progresso da humanidade estar sujeito aos lapsos, havia um
descompasso na trajetória da modernidade. Dentro dessa lógica, no século XIX,
autores portugueses, como Antero de Quental, denunciaram o atraso do mundo
luso em relação aos outros países europeus e ao seu próprio passado de conquistas
e descobertas.27 A imagem de atraso como marca de Portugal não esteve, portanto,
desvinculada de uma noção de progresso que escalonava as nações e povos do
mundo. Os referenciais dessa categorização poderiam variar, mas era comum a
afirmação da posição da nação portuguesa como retardatária na linha evolutiva
percorrida pelas potências europeias.
Segundo Carvalho, a tópica da decadência teria sido forjada pela geração
de escritores de 1870. Contudo, as ideias de atraso e isolamento do país eram fru-
22 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução
de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. Campinas: EdUnicamp, 2013.
23 ISRAEL, op. cit., p. 17.
24 MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Tradução de Renato Moscateli. Porto
Alegre: Edipucrs, 2010.
25 “Além disso, o conceito de perfectibilidade no século foi elaborado por Rousseau no interior de uma concepção da história
humana absolutamente contrária ao otimismo da ideologia de progresso.” NASCIMENTO, Maria das Graças S. Apresentação. In:
CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução de
Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. Campinas: EdUnicamp, 2013, p. 13.
26 Havia concepções distintas de progresso: metafísicas, materialistas, deterministas, providenciais deístas ou religiosas. Segundo Israel,
“ao contrário do que muitos presumem, as teorias do progresso estavam geralmente embaralhadas com um forte traço de pessimismo,
uma percepção dos perigos e desafios a que está sujeita a condição humana”. E mais, a ideia de que os pensadores iluministas nutriam
uma crença na perfectibilidade do homem poderia ser uma invenção do início do século XIX. Apesar dos avanços da humanidade no
campo da produção e da ciência, a intolerância e o fanatismo botavam as Luzes em risco. ISRAEL, op. cit., p. 24.
27 É preciso considerar a hipótese de que os portugueses, no geral, não se sentiam atrasados em relação ao resto da Europa. CAR-
VALHO, Flávio Rey de. Um Iluminismo português?: a reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008, p. 22.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 205
28 Ibidem, p. 26.
29 SANCHES, op. cit.
30 LEMOS, Francisco. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Atlântida, 1980.
206 A globalização das luzes
31 Nesse sentido, a controvérsia é destacada, relativizando a ideia de “família de iluminismos”, afinal a crítica consistia no motor das
mudanças promovidas pelas Luzes. Segundo Jonathan Israel, a perspectiva de “família de iluminismos”, baseada em John Pocock, é
“em grande parte inaplicável às questões controvérsias mais básicas e abrangentes do iluminismo”, tais como: o alcance da razão, a
possibilidade ou a impossibilidade de milagres, a situação da providência divina, a função da autoridade eclesiástica, a igualdade, a
democracia, a imprensa livre e a separação entre o Estado e a Igreja. ISRAEL, op. cit., p. 29.
32 TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarola, 2008, p. 35.
33 Ibidem, p. 145.
34 ZIZEK, op. cit., p. 183.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 207
35 Não apresentaremos a referência do documento em todas as ocasiões que for mencionado ou analisado, para evitar repetições.
Todas as referências remetem ao documento guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), no fundo da Real Mesa
Censória (RMC)–caixa 508, documento 4701.
36 HAZARD, Paul. O pensamento Europeu no século XVIII: de Montesquieu a Lessing. Tradução de Carlos Grifo Babo. Lisboa: Presença,
1983, p. 112.
208 A globalização das luzes
37 Sobre o assunto, cf. TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade,
1981; e VILLALTA, 2015, p. 29 et seq.
38 AZEVEDO, João Lúcio. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: Alameda, 2004, p. 185.
39 GOMES, Joaquim Ferreira. O Marquês de Pombal criador do ensino primário oficial. Revista de História das Ideias – O Marquês de
Pombal e sua época, t. II, p. 25-41, 1982.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 209
40 ANTUNES, Álvaro de Araujo. First lines of schooling: regius and private teachers in Brail, 1759-1834. Sisyphus, v. 4, n. 1, p.
120-143, 2016.
41 Segundo o testamento: “patriotismo para procurarem a felicidade dos povos. Nem pode ser bom Ministro ou militar aquele que
não é dotado de probidade, prudência, e patriotismo bem entendido. Do contrário se segue o assolarem os povos e olharem só para si,
não para o bem publico”.
210 A globalização das luzes
43 Ibidem, p. 141.
44 VAN DE WIEL, Constant. History of canon law. Louvain: Peeters Press Louvain, 1983, p. 158.
45 Sob o pseudônimo de Justinus Febronius, Nicolaus Von Hotheim escreveu uma obra contundente na qual dissertava sobre os
fundamentos do poder papal, defendendo que a monarquia clerical era uma usurpação. As ideias de Febronius, segundo Paul Hazard,
eram “de nature à provoquer une crise dans la chrétienté”, mas se afinavam com a política centralizadora do reinado de D. José I. Não
por menos, o marquês de Pombal providenciou a tradução da obra de Febronius, que também foi adotada na reformada Universidade
de Coimbra, sendo substituída, após 1780, pela obra de Von Riegger, autor que também defendia a supremacia do poder temporal.
MAXWELL, 1996, p. 102; e HAZARD, 1993, p. 326.
46 No terceiro ano de direito, na cadeira sintética de Direito Civil, se estudava o Digesto por meio da obra de Heinécio. A Universidade
reformada adotava a obra de Justino Febrônio, autor que alguns associavam ao enciclopedismo e ao jansenismo. HAZARD, 1983, p.
150 e 152. ANTUNES, Álvaro de Araujo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-1808). 2005. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005b, p. 156.
47 Newton submetera as matemáticas ao serviço da física, sem partir de abstrações, de axiomas, mas sim de fatos, “para chegar a
outros fatos decididamente constatados, porque extraia da natureza as leis da natureza”. Leibniz entendia que a cultura, a ética e a
razão serviriam à pacificação e união das religiões. Discípulo de Leibiniz, Wolf era um autor que protestava contra os livres pensadores
ingleses, bem como contra o deísmo, o materialismo e o cepticismo dos franceses. “Para ele a moral era racional, a fé era uma operação
racional e Deus é produto da razão humana”. Aqui, talvez, uma das razões da oposição de Soeiro da Silva ao autor. Locke era um
empirista e, como tal, entendia que o conhecimento, não importa de qual ordem, era constituído em função dos sentidos. HAZARD,
1983, p. 47 e 127; e ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 14,
30 e 45.
212 A globalização das luzes
48 JACQUES, Martine. Caraccioli et son œuvre: la mesure d’une avancée de La pensée chrétienne vers les lumières. Dix-huitième
Siècle, n. 34, 2002, p. 298.
49 Para Kant, o objetivo final do telos do progresso humano, “seria o total desabrochar da racionalidade e da capacidade moral
humanas, que somente seria possível com base na legislação republicana e na paz perpétua; tudo isso, porém, viria quase automatica-
mente, pelo funcionamento da providência, sem qualquer intervenção humana específica”. ISRAEL, op. cit., p. 19.
50 Segundo Israel, “o iluminismo moderando, então, e o rousseanismo, não tinham qualquer estratégia política que pudesse produzir
mudanças estruturais capazes de transformar a ordem existente, de modo a diminuir a probabilidade de guerra”. ISRAEL, op. cit., p.
125.
214 A globalização das luzes
51 O tema da guerra é fundamental para a compreensão das instituições do Estado. Para Koseleck, dois acontecimentos, que fizeram
época e marcaram o início e o fim do absolutismo clássico, foram a guerra civil religiosa e a Revolução Francesa, que preparou o fim
do Estado monárquico. Observa ainda que, “para Hobbes, a razão é o fim da guerra civil; uma frase cujo significado histórico também
pode ser invertido: o fim das guerras civis religiosas é a razão. Não é o progresso que pede o Estado, mas a necessidade de por fim
a guerra civil”. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj;
Contraponto, 1999, p. 19 e 34.
52 ARAÚJO, 2003, p. 11.
53 Para entender o caminho que leva à paz universal, Diderot, Holbach e seus discípulos pautaram os vínculos morais que ligam os
indivíduos em uma sociedade justa. ISRAEL, op. cit., p. 142.
54 É provável que se trate da derrota do Império Otomano para a Áustria, entre os anos de 1715 e 1718.
55 Para Kant, já que a guerra é “o triste meio necessário para afirmar seu direito pela força no estado de natureza (onde não há
tribunais que julguem com base no direito), em que nenhuma das duas partes pode ser declarada como inimigo injusto (porque isto já
pressupõe um verdicto judiciário), mas o desfecho da querra (como um chamado juízo divino) decide de que lado o direito está [...]”.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 19.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 215
o rico ambicioso e pobre mendicante etc. Todos esses males, que se sobrepunham
aos princípios morais e às virtudes, eram caracterizados como verdadeiros monstros
a assombrar o recém-nascido Século 19 e a reputação do Século 18.
Trêmulo e convulso, esperando a meia noite do dia 31 deste mês, não ouço soar mais
coisa alguma que dizerem mal de mim, acusando-me de bárbaro e ignorante [...] o
que mais sinto são as falas de muitos vícios, que soberbos se jactam dos progressos
que fizeram no meu tempo!
56 Nesse sentido, é preciso destacar a ideia ilustrada de que a transformação do mundo presente em função de um futuro melhor não
era distinta da perspectiva retilínea da fé cristã. Aliás, para Dorinda Outram, foi justamente este “sincretismo” que contribuiu para o
sucesso da ideia de progresso no Setecentos. OUTRAM, op. cit., p. 25.
57 ARAÚJO, 2003, p. 17.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 217
R eferências bibliográficas
______. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-1808). 2005.
Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005b.
______. First lines of schooling: regius and private teachers in Brail, 1759-1834. Sisyphus,
v. 4, n. 1, p. 120-143, 2016.
______. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
AZEVEDO, João Lúcio. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: Alameda, 2004.
CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Esboço de um quadro histó-
rico dos progressos do espírito humano. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed.
Campinas: EdUnicamp, 2013.
GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York: W. W. Norton &
Company, 1995.
______. La pensée européenne au XVIIIe siècle: de Montesquieu à Lessing. Paris: Fayard, 1993.
LEMOS, Francisco. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Atlântida, 1980.
SANCHES, Ribeiro. Dificuldades de um reino velho para remendar-se e outros textos. 2. ed. [Lisboa]:
Livros Horizonte, 1980.
TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São
Paulo: Barcarola, 2008.
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na restauração. Coimbra: Biblioteca
Geral da Universidade, 1981.
VAN DE WIEL, Constant. History of canon law. Louvain: Peeters Press Louvain, 1983.
______. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
ZIZEK, Slavoj. Sobre la violência: seis reflexiones marginales. Barcelona: Austral, 2015.
A nostalgia por um mundo no qual a
ordem reinava soberana:1
A ntigo regime e contrarrevolução
na época das restaurações
(c.1790-1840)
Andréa Lisly Gonçalves
1 LEVI, Primo. A assimetria e a vida: artigos e ensaios (1955-1987). São Paulo: EdUnesp, 2016, p. 56.
2 Um dos primeiros autores a apontar tal correlação foi MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Societa rural i actituds polítiques a Portugal
(1820-34). In: FRADERA, Josep Maria; MILLAN, Jesús; GARRABOU, Ramon (eds.). Carlisme i moviments absolutistes. Capellades:
Eumo, 1990.
3 FRASQUET, Ivana. Restauración y revolución en el Atlántico Hispanoamericano. In: RÚJULA LÓPEZ, Pedro; SOLANS,
Javier Ramón (eds.). El desafio de la revolución: reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionários (siglos XVIII y XIX). Granada:
Comares, 2017, p. 46.
222 A globalização das luzes
de Fernand Braudel “pensar contra é pensar na sua órbita”, o que parece particu-
larmente válido para os movimentos reacionários que, como se verá, constituem
uma dentre outras formulações no conjunto das forças contrarrevolucionárias.4
A afirmação seria um verdadeiro truísmo não fosse pelo fato de que vários
autores já teriam apontado a manifestação do fenômeno da contrarrevolução
sem a ameaça revolucionária. Foi o caso de Florestan Fernandes que, há algumas
décadas, mostrou a recorrência, na história do Brasil, da contrarrevolução sem
revolução, preventiva e permanente.5 Na mesma linha, estudiosos voltados para
a História do tempo presente, como Bernard Hacourt, vêm apontando a existên-
cia da contra insurgência sem insurgência, uma política preventiva, que se antecipa a
qualquer contestação, como nas áreas ocupadas após conflagrações armadas capi-
taneadas por grandes potências.6 Isso significa que as articulações entre revolução
e contrarrevolução, em finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século
XIX, devem ser examinadas à luz de fatores históricos e não simplesmente como
decorrência lógica ou natural de processos de ação e de reação.
Em estudo anterior, abordei a dinâmica entre internacionalismo e patriotismo/
nacionalismo na experiência antiliberal.7 Em outro trabalho, discuti a viabilidade
do emprego da categoria popular royalism para o entendimento do apoio dos setores
populares à monarquia e aos seus projetos de manutenção dos arranjos imperiais,
em uma chave que aponta para a autonomia desses setores e não uma adesão cega
ou fanática aos reis absolutos.8
Neste estudo, busco discutir alguns aspectos das relações entre o Antigo
Regime e os movimentos antiliberais, partindo da compreensão de que nem toda
contestação ao liberalismo comportou o projeto de retorno à antiga ordem. A afir-
9 SILVA, Bruno Diniz da. Da Restauração à Regeneração: linguagens políticas em José da Silva Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2010.
224 A globalização das luzes
Em seu artigo “El exílio cotidiano”, Ramón Arnabat enumera, pelo menos,
três motivos pelos quais foram baldados os esforços de Fernando VII para reins-
taurar o absolutismo monárquico, quando de seu regresso ao trono espanhol, em
1814, após a derrota napoleônica.11 O primeiro deles refere-se a que as sementes
do liberalismo já haviam sido semeadas; o segundo é relativo aos problemas fiscais
que o país enfrentava após a sucessão de conflitos armados, que comprometiam
a fazenda pública, exigindo medidas modernizadoras; por último, relacionado
aos fatores anteriores, o fato de que a Espanha passava por uma crise econômica
estrutural. Tudo isso tornava impossível o retorno ao Antigo Regime, pelo menos,
na visão do autor, “a medio plazo”.12
Não há como negar que os desafios listados pelo autor embaraçavam as ten-
tativas dos governos restauradores de, como era o seu intento, promoverem a volta
ao absolutismo. Isso não impediu que a retórica predominante, principalmente na
Península Ibérica das décadas de 1820 e 1830, ressalvados os interregnos liberais,
fosse a de que o direito absoluto dos reis tinha sido reposto. Assim manifestavam-
-se, por exemplo, muitos adeptos de d. Miguel, como se lia em alguns periódicos
da época: “entraram a dar Vivas ao Senhor D. Miguel: [...] o povo fiel dizia –
10 “Várias gerações de historiadores escavaram entre os dois países [Portugal e Espanha] fossos tão profundos, que hoje em dia é
preciso muito esforço para entender a história comum a estes dois países e impérios.” GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da
monarquia católica e outras connected histories. Topoi, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, jun. 2001, p. 177.
11 ARNABAT, Ramón. El exilio cotidiano: sociedad, violencia y guerra civil en el siglo XIX español. Cahiers de Civilisation Espagnole
Contemporaine, v. 21, 2018.
12 Ibidem.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 225
Viva ElRei Absoluto”.13 A própria aclamação do infante como rei pelas Cortes
tradicionais do reino já reforçava esse propósito, mesmo que as tais Cortes não se
reunissem desde 1680 e que, por isso mesmo, se desconhecessem todos os protocolos
envolvidos na solenidade.14
Ainda que os motivos listados por Arbanat devam ser levados em conta, cabe
questionar se o retorno à antiga ordem era, de fato, possível em um contexto como
o europeu, sacudido pelas revoluções liberais. Melhor dizendo, quais as possibili-
dades efetivas de retorno a uma ordem passada, por mais que uma sociedade ou
grupos dentro dela apregoem tal objetivo? A questão merece ser nomeada, mesmo
que não esteja entre os objetivos deste trabalho o desenvolvimento do complexo e
inesgotável assunto da permanência e da mudança na história, exceto no que se
faz necessário para tratar o tema da contrarrevolução no contexto das revoluções
liberais que se iniciam em finais do século XVIII.
Comecemos pelas críticas de Elias Palti a Reinhart Koselleck. Segundo
Palti, para Koselleck, tudo o que
se coloca antes del Sattelzeit (o período entre 1750 e 1850, referido como o da mo-
dernidade, com a dissolução da antiga ordem) “queda agrupado bajo la rúbrica
de ‘tradicional’, y todo que se ubica con posteridad se ve homogeneizado bajo la
etiqueta común de ‘moderno’”.15
13 PERIODICO para os bons realistas. Jornal Historico, politico e noticioso, n. 4, 17 jun. 1828, p. 1.
14 Coube ao 2º visconde de Santarém reinventar os procedimentos a serem adotados pelos três estados do Reino para a aclamação
do infante D. Miguel a rei de Portugal. Sobre o 2º visconde de Santarém, cf. MARKL, Alexandra Gomes. Uma família de poder
e cultura: em torno do retrato da família do 1º Visconde de Santarém de Domingos Sequeira. In: PROTÁSIO, Daniel Estudante
(org.). Historiografia, cultura e política na época do Visconde de Santarém (1791-1856). Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa,
2019, p. 123-153.
15 PALTI, José Elias. Una arqueología de lo político: regímenes de poder desde el siglo XVII. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2018, p. 26.
226 A globalização das luzes
16 ANNINO, Antonio. Soberanía y competición política, 1808-1830: unos problemas y unas definiciones. Almanack, n. 19, ago. 2018 ,
p. 8.
17 ANNINO, op. cit., p. 6-7.
18 Sobre o tema ver, dentre outros, MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996; e SANTOS, Nívea Cirne Pombo dos. O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos ilustrados: (Portugal, Brasil e Angola,
1796-1803). 2013. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
19 HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra:
Almedina, 2004, p. 47.
20 PAQUETTE, Gabriel. Império e nação nas monarquias constitucionais portuguesa e brasileira. In: RAMOS, Rui; SILVA, Isabel
Corrêa; CARVALHO, José Murilo de (orgs.). Do Reino Unido de Portugal e Brasil às monarquias portuguesa e brasileira (1822-1810). Lisboa:
D. Quixote, 2018, p. 8.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 227
21 Ibidem.
22 Ibidem.
23 Ibidem.
24 ISABELLA, Maurizio. Religion, Revolution, and popular mobilization. In: INNES, Joanna; PHILIP, Mark (eds.). Re-imagining
democracy in the Mediterranean, 1780-1860. Oxford: Oxford Press, 2018.
25 GONÇALVES, Andréa Lisly. A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828 -1834): o caso do homem preto Luciano
Augusto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, p. 211-234, 2013.
228 A globalização das luzes
tavernas por sua militância liberal. Não perdia a oportunidade de dizer que estava
convicto da vitória de d. Pedro IV e repetia algo que remete a um sentido um tanto
tradicional da monarquia: “que ele Senhor D. Pedro havia de vir a Portugal e que
todos lhe havíamos de obedecer como se obedece ao Padre Santo”.26 Um exemplo,
dentre tantos, de que, no calor da luta, cabia aos sujeitos interpretarem, em chaves
próprias, os ideários que só posteriormente e pela mão dos estudiosos ganharão
contornos bem delimitados e excludentes.
Do lado da contrarrevolução, poucos personagens talvez tenham vivenciado
as contradições do período de transição de uma sociedade de Antigo Regime para
uma monarquia liberal como o padre e ideólogo reacionário José Agostinho de
Macedo (1761-1831). A personagem encarnava, como ninguém, a retórica de que
o governo de d. Miguel representou o retorno ao absolutismo:
A sua reação, no sentido mais primário do termo, sublinha o traumatismo que a
sua época estava vivendo e a tentativa desesperada, tanto mais que era tardia, de
tentar repor no seu antigo estatuto um Portugal abalado, primeiro pelas invasões
francesas e, em seguida, pela vitória do modelo liberal.27
26 Processo crime movido contra o Dr. José Frederico Pereira Marecos, advogado da Casa de Suplicação e ex-professor do Colégio
da Luz, natural de Santarém, filho de José Tiago Pereira Marecos e de D. Ana Genoveva Marecos, e seu criado Luciano Augusto,
natural do Maranhão, filho de Simeão e de Delfina por haverem sido denunciados por Manuel Martins, sapateiro, que os acusara,
assim como a seu irmão Firmo Pereira Marecos, funcionário da Torre do Tombo, de em sua casa, na travessa de S Mamede, n.3, 3º,
falarem mal de D. Miguel e do seu governo e de fazerem afirmações que demonstravam o seu amor à causa de D. Pedro. ANTT, Maço
57, n.5.
27 ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. A contrarrevolução em português: José Agostinho de Macedo. Lisboa: Colibri, 2004, v. 2,
p. 30.
28 LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. A contrarrevolução em português: José Agostinho de
Macedo. Lisboa: Colibri, 2004, v. 1, p. 13.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 229
desde os golpes que o infante intentou a partir de 1823.29 Como destacou Marco
Morel, nas monarquias absolutas, para a divulgação de ideias, prevaleciam panfletos
e pasquins, anônimos, afixados nas portas.30 Já no contexto do liberalismo, tais
práticas serão substituídas por intensa produção jornalística, mesmo que a maioria
dos periódicos tivesse vida efêmera.31
No reinado de d. Miguel, a edição de periódicos foi das mais intensas.
Ressalte-se, porém, que os jornais sofriam forte censura, não havendo lugar para
a imprensa liberal. Essa, ao contrário, e à exceção dos exilados, que publicavam
no exterior,32 teria que repetir a tradição absolutista dos panfletos e pasquins anô-
nimos. Em síntese, como observa Nuno Monteiro:
os miguelistas tentaram suscitar uma mobilização “popular” e “nacional” contra
os liberais, reminiscente da de 1808 contra os franceses – usando as ordenanças
e o clero, mas também os recursos do espaço público criado pelo regime liberal
(imprensa, “clubes”, voluntários).33
Com toda essa discussão, porém, não se quer negar que as mudanças trazi-
das pelas revoluções corroeram, definitivamente, o edifício da antiga ordem, num
movimento sem volta. Não que deixassem de existir setores dispostos a adotar o
discurso de retorno à antiga ordem, um mundo sem constituições, baseado nas
liberdades corporativas e não nas individuais. Nem se quer negar que, nos anos
iniciais que se seguiram às revoluções liberais, várias práticas da nova ordem social
e política tiveram que se haver com permanências que só foram superadas ao longo
do tempo. Nem é o caso de afirmar que as monarquias restauradas não tiveram
sucesso ao reabilitar instituições e práticas pré-revolucionárias. Mas, parece indu-
bitável, também, que as transformações foram de tal monta que não foi suficiente
29 É como se manifesta Fernando Campos, para quem, no miguelismo, “apenas existe uma doutrina contrarrevolucionária cujo
projeto político passa pela restauração das ‘nossas mais genuínas tradições políticas e religiosas’. D. Miguel encarnará este projeto
que não se confundia com o absolutismo”. LOUSADA, Maria Alexandre. O Miguelismo (1828-1834): o discurso político e o apoio da
nobreza titulada. Provas de aptidão pedagógica e capacidade científica apresentadas na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Trabalho de síntese. Lisboa, 1987, p. 13.
30 MOREL, Marco. Papéis incendiários, gritos e gestos: a cena pública e a construção nacional nos anos 1820-1830. Topoi, Rio de
Janeiro, n. 40, p. 39-58, mar. 2002.
31 TENGARRINHA, José Manuel. História da imprensa periódica portuguesa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1989.
32 Sobre o tema, cf. FARIA, Fabio Alexandre. Circulações internacionais e Liberalismo: o exílio liberal português, 1828-1832. 2015.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2015.
33 MONTEIRO, 1990, p. 854.
230 A globalização das luzes
40 “El ultracisme pudo entonces comprobar sus límites en esta alianza obligada entre el vencedor y el vencido de la época napoleónica,
ambos partidarios de ejercer un estrecho control sobre el mercado nacional, aunque los unos para exhibir su nueva pujanza y los otros
para intentar preservar sus deterioradas posiciones.” DÉMIER, Francis. Permanencia y mutaciones del Estado napoleónico bajo la
Restauración de los Borbones, 1814-1830. Pasado y Memoria–Revista de Historia Contemporánea, n. 13, 2014, p. 34-35.
41 Ibidem, p. 42.
42 Diferentemente dos regimes autoritários que, de acordo com Juan Linz, apostariam na despolitização das massas, as experiências
do nazismo e do fascismo, apoiadas numa relação direta entre o líder e os grupos subalternos, lançariam mão das mobilizações populares
para compensar os questionamentos sobre a falta de legitimidade dos reis que ascenderam suspendendo as garantias constitucionais
em um mundo varrido pelas revoluções liberais. LINZ, Juan J. Regimes autoritários. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (coord.). O Estado
autoritário e os movimentos populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
43 SARLIN, Simon. Arming the people against revolution: royalist popular militias in Restoration Europe. Varia Historia, v. 35, n.
67, jan./abr. 2019, p. 200.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 233
44 CARDOSO, António Monteiro. A revolução liberal em Trás-os-Montes (1820-1834): o povo e as elites. Porto: Afrontamento, 2007, p.
283.
45 SARLIN, op.cit., p. 18.
46 SUÁREZ VERDEGUER, Federico. Los cuerpos de Voluntarios Realistas: notas para su estudio. Anuario de Historia del Derecho
Español, Madrid, t. XXVI, 1956, p. 56.
47 Acerca dos poderes locais e intermédios em Portugal, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o
Liberalismo. Lisboa: ICS, 2007.
234 A globalização das luzes
48 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 235
49 CARAVAGLIA, Juan Carlos. Os primórdios do processo de independência hispano-americano. In: JANCSÓ, István (org.).
Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 207-234; e GUERRA, François-Xavier. Conocimiento y
representaciones contemporáneas del proceso de continuidad y ruptura. In: DAMAS, Germán Carrera; LOMBARDI, John V. (eds.).
La crisis estructural de las sociedades implantadas. Madri: Trotta, 2007, p. 429-447.
50 GUERRA, op. cit.
51 A bibliografia sobre o tema é extensa. A título de exemplo, ver JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico
(ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta:
a experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: SENAC, 2000, p. 127-175; e BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo
constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Fapesp; Hucitec; Pernambuco: UFPE, 2006.
52 JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 24.
236 A globalização das luzes
légios, em contextos de mudança, nos quais a condição de súdito vai dando lugar à
de cidadão, comporta algum tipo de “hibridismo” entre antigas leituras do passado
e as exigências postas pelo presente. Em outras palavras, mesmo a reivindicação
da manutenção de prerrogativas típicas das sociedades do Antigo Regime, sejam
individuais ou coletivas, as altera, em suas características, em relação ao que foram
no passado.
Em seus estudos, Marcela Echeverri utiliza a categoria popular royalism53
para abordar a ação de grupos de escravos e de indígenas realistas, em Popayán,
Nova Granada, nos anos de 1808 a 1820. Seu objetivo é ressaltar, primeiramente,
que indígenas e escravos atuaram como atores políticos no contexto imperial, mais
especificamente, durante o processo de independência, negociando com os realistas
alguma mobilidade social, a expansão e a criação de direitos políticos. Isso mostra
não ter sido apenas o campo liberal, em um contexto de crise, o portador de noções
de direito e de liberdade: “Both Indians and slaves were engaged with the Hispanic
discourse of justice, and they appropriated monarchical values for individual and
collective gains and empowerment”.54
Aproveitando-se das disputas entre insurgentes e autoridades leais ao rei,
índios das terras altas do Pasto e escravos africanos mineradores do oeste do Vice-
-reino de Nova Granada encontraram, no suporte ao rei, “an opportunity to gain
new power and to redefine the terms of their relation to the royalist elites”.55 O
apoio ao rei não era irrestrito, ou baseado em fidelidades “pouco racionais”. O
caso dos indígenas é bem ilustrativo a esse respeito. Aproveitaram-se da conjuntura
de instabilidade para fazerem frente aos caciques que mantinham seu poder pela
exação de tributos aos povos. Grupos de indígenas negociaram, com as autori-
dades reais, a comutação de tributos por prestação de serviço militar. O fato de
servirem militarmente poderia enfraquecer o poder dos caciques.56 Em nenhum
caso, trata-se do retorno tout court à antiga ordem, mas de projetos próprios, ainda
que distantes do campo insurgente.
53 ECHEVERRI, Marcela. Popular royalist, Empire, and politics in Southwestern New Granada, 1809-1819. Hispanic American
Historical Review, v. 91, n. 2, p. 237-269, 2011.
54 Ibidem, p. 241.
55 Ibidem, p. 239.
56 Ibidem.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 237
57 KRAAY, Hendrik. Identidade racial na política, Bahia 1790-1840. In: JANCSÓ, Istvan (org.). Brasil: formação do Estado e da
nação. São Paulo: Hucitec; Unijuí; Fapesp, 2003, p. 532.
58 Ibidem, p. 532.
59 Ibidem, p. 545-546.
60 SILVA, Luiz Geraldo. Aspirações barrocas e radicalismo ilustrado: raça e nação em Pernambuco no tempo da independência
(1817-1823). In: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Unijuí, 2005, p. 915-934.
61 Sobre a abordagem do tema, na perspectiva dos impérios pluricontinentais, ver FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda;
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. Para uma crítica à ideia do “Antigo Regime nos trópicos”, na vertente interpretativa do “antigo sistema
colonial”, cf. SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
238 A globalização das luzes
62 Argumento central de: MATTOS, Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em pers-
pectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 143-162.
63 FERNANDES, Florestan. A sociedade escravista no Brasil. In: FERNANDES, Florestan. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec,
1976.
64 JANCSÓ, Istvan (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Unijuí; Fapesp, 2003, p. 21.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 239
“Não eram a esses ‘povos desordenados’ que se reportavam, por certo, as atas de
Lamego”, uma referência ao mito de fundação da nação portuguesa, com suas
lendárias Cortes. Tal incompatibilidade ficou particularmente clara em períodos
como o da revolução de 1817. Ao longo do movimento, para alguns informantes
de d. João VI, a populaça de Pernambuco constituía uma “canalha que se compõe
geralmente de mulatos, negros etc.”.65
Em outro artigo, esse em coautoria com Fernanda Prestes de Souza, Luiz
Geraldo observa que as milícias constituídas por afrodescendentes estiveram pre-
sentes em todos os impérios coloniais, do espanhol ao português, do francês ao
britânico.66 Os autores não enxergam na organização social da América portuguesa
uma sociedade estruturada em moldes corporativos, optando por designá-la como
uma sociedade de tipo antigo e oligárquico. Interessa aos autores apreenderem
como se deu a passagem da tal ordem antiga para a “nova configuração social de
tipo democrático e representativo”, conforme designam o Estado liberal.67 A defesa
da manutenção de privilégios, por parte dos integrantes das milícias de negros e
afrodescendentes, não é vista como fruto da ambiguidade da ação desses sujeitos,
sendo entendida como o resultado do compartilhamento de valores da antiga or-
dem, agora com a sociedade liberal que se inaugura, situação típica de contextos
de transição que, de resto, afetava todos os demais estratos sociais:
estos individuos y grupo ni eran “ambiguos” en la sociedad de tipo antiguo u
oligárquico, ni en la de tipo democrático y representativo que la sucedió. Ellos
entrelazaban valores y significados llegados de ambos tipos de sociedad porque
vivían en el medio de una transición entre estas formas sociales. Este aspecto, ade-
más, afectaba a toda la figuración social, o a todos los individuos, grupos y clases
sociales, estuviesen estos situados en el nivel más bajo o más alto de la sociedad.68
Considerações finais
72 Existe, como é previsível, vasta bibliografia sobre o tema do primeiro reinado e os anos iniciais das regências, no Brasil. Tive a
oportunidade de tratar do assunto, ressaltando o papel dos grupos restauradores, em: GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social
e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional Brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Hucitec, 2008.
242 A globalização das luzes
dominantes, por outro, pode ter acepções bastante distintas. Isso não quer dizer que
não tenha havido categorias, inclusive aquelas compostas pelos desenraizados, que
tenham apoiado soluções reacionárias, representadas pelos regimes autoritários e
mobilizadores. Como esse ponto, porém, já parece incorporado à tradição histo-
riográfica da contrarrevolução, os trabalhos mais recentes vêm insistindo na ideia
de que o não alinhamento à insurgência liberal nem sempre significou a defesa do
retorno a um “mundo no qual a ordem reinava soberana”.
R eferências bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ARNABAT, Ramón. El exilio cotidiano: sociedad, violencia y guerra civil en el siglo XIX
español. Cahiers de Civilisation Espagnole Contemporaine, v. 21, 2018.
______. Brasil em compasso de espera: pequenos escritos políticos. São Paulo: Hucitec, 1980.
______. O apoio popular à monarquia no contexto das revoluções liberais: Brasil e Por-
tugal (1820 e 1834). Varia Historia, v. 35, n. 67, p. 241-272, jan./abr. 2019.
HACOURT, Bernard E. The counterrevolution: how our government went to war against its
citizens. New York: Basic Books, 2018.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 245
HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo
monárquico português. Coimbra: Almedina, 2004.
ISABELLA, Maurizio. Religion, Revolution, and popular mobilization. In: INNES, Jo-
anna; PHILIP, Mark (eds.). Re-imagining democracy in the Mediterranean, 1780-1860. Oxford:
Oxford Press, 2018.
JANCSÓ, Istvan (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec;
Unijuí; Fapesp, 2003. (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec;
Fapesp, 2005.
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para
o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme
(org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: SENAC, 2000,
p. 127-175.
KRAAY, Hendrik. Identidade racial na política, Bahia 1790-1840. In: JANCSÓ, Istvan
(org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Unijuí; Fapesp, 2003.
LEVI, Primo. A assimetria e a vida: artigos e ensaios (1955-1987). São Paulo: EdUnesp, 2016.
LINZ, Juan J. Regimes autoritários. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (coord.). O Estado
autoritário e os movimentos populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. A con-
trarrevolução em português: José Agostinho de Macedo. Lisboa: Colibri, 2004.
MANNHEIM, Karl. Essays on sociolog y and social psycholog y. Nova York: Oxford University,
1953.
______. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: ICS, 2007.
MOREL, Marco. Papéis incendiários, gritos e gestos: a cena pública e a construção nacional
nos anos 1820-1830. Topoi, Rio de Janeiro, n. 40, p. 39-58, mar. 2002.
PALTI, José Elias. Una arqueología de lo político: regímenes de poder desde el siglo XVII.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2018.
PARIS, Álvaro. La construcción del Pueblo bajo en Madrid: trabajo, cultura y política
popular en la crisis del Antiguo Régimen (1780-1833). Sociología Histórica, n. 3, p. 337-
366, 2013.
PERIODICO para os bons realistas. Jornal Historico, politico e noticioso, n. 4, 17 jun. 1828.
RÚJULA LÓPEZ, Pedro. Presentación. In: RÚJULA LÓPEZ, Pedro (coord.). Recom-
poner el mundo después de Napoleón: 1814 y las restauraciones. Pasado y Memoria–Revista
de História contemporânea, n. 13, 2014.
SANTOS, Nívea Cirne Pombo dos. O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos
ilustrados: (Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803). 2013. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
SARLIN, Simon. Arming the people against revolution: royalist popular militias in Res-
toration Europe. Varia Historia, v. 35, n. 67, p. 177-208, jan./abr. 2019.
SILVA, Bruno Diniz da. Da Restauração à Regeneração: linguagens políticas em José da Silva
Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de
Ouro Preto, Ouro Preto, 2010.
SILVA, Luiz Geraldo; SOUZA, Fernanda Prestes de. Negros apoyos: milicianos afrodescen-
dientes, transición política y cambio de estatus en la era de las independencias (capitanías
de São Paulo y Pernambuco). Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, Debates, 2014.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 247
1 Os documentos aqui transcritos, manuscritos ou impressos, tiveram sua ortografia, acentuação e pontuação atualizadas, à
exceção da epígrafe. Em trechos deste trabalho, reproduzo parcialmente reflexões feitas em publicações anteriores: VILLALTA,
Luiz Carlos. Pernambuco, 1817, “encruzilhada de desencontros” do Império luso-brasileiro: notas sobre as ideias de pátria, país e
nação. Revista USP, São Paulo, v. 58, p. 58-91, 2003; e VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português (1788-1822).
Rio de Janeiro: FGV, 2016.
2 BIBLIOTECA NACIONAL (BN-RJ). Seção de Manuscritos. MARTINS, Domingos José. Poema feito por Domingos José
Martins no ano de 1817 no ato de ser passado pelas armas, 1817. I-30, 34, 007.
250 A globalização das luzes
3 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e interpretações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel;
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 17; e CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras–Revista
de História, Dourados, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011.
4 Sobre a inventividade dos leitores, cf. CHARTIER, op. cit., p. 121.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 251
5 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Tradução de Wilma Patrícia Maas. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-RJ, 2006, p. 42.
6 Ibidem, 22-24.
252 A globalização das luzes
7 Ibidem, p. 50.
8 Ibidem, p. 25.
9 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências de tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 137.
10 Ibidem, p. 139.
11 CEZAR, Temístocles. O sentido do ensino de história nos regimes antigo e moderno de historicidade. In: MAGALHÃES,
Marcelo et al. (orgs.). O ensino de história: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 15-32 (especialmente, p. 16).
12 Ibidem.
13 Ibidem, p. 26.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 253
14 Ibidem, p. 138.
15 ARAÚJO, Valdei Lopes. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX Brasileiro. In: NICOLAZZI,
Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO, Valdei Lopes (orgs.). Aprender com a História?: o passado e o futuro de uma questão.
Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 131-147 (especialmente, p. 132-133).
16 Ibidem, p. 132-133.
254 A globalização das luzes
17 VILLALTA, Luiz Carlos. Os contrarrevolucionários de 1817 e suas apropriações da história: “os perigos das revoluções”. História,
São Paulo, v. 36, e28, 2017, p. 2.
18 ARAÚJO, op. cit., p. 136.
19 RÜSEN, Jörn. Historical consciousness: narrative structure, moral function, and ontogenetic development. In: SEIXAS, Peter
(ed.). Theorizing historical consciousness. Toronto: University Toronto Press, 2004, p. 63-85 (especialmente, p. 71-78).
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 255
20 Ibidem, p. 71-73.
21 Ibidem, p. 73-74.
22 RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à
consciência moral. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.). Jörn Rüsen e o ensino
de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2011, p. 66.
256 A globalização das luzes
rativas então em voga, fossem as “histórias” que tinham um fim moral, educativo,
a chamada “história mestra da vida”, fossem as “histórias” tradicionais. O futuro
distinto, que então se antevia, não dava margem para repetições, e as narrati-
vas exemplares e tradicionais se opunham ao que se advogava como progresso,
claridade. Todavia, isso não se deu de maneira linear ou frontal, como se verá a
seguir, no caso específico das representações e apropriações da história feitas pelos
revolucionários de 1817. As tradições são, de alguma maneira, invertidas e/ou sub-
vertidas, ao mesmo tempo que a Providência Divina, embora ainda presente nas
narrativas, abre espaço para o compartilhamento do protagonismo com os seres
humanos. Ao mesmo tempo, a tradição é apropriada de forma não a legitimar a
ordem vigente, mas de modo a modificá-la, propondo-se uma ruptura.
Em seus embates políticos, os revolucionários de 1817, como se procurará
sustentar neste texto, mobilizaram representações e narrativas históricas. Fizeram-
-no com inventividade e deram claras mostras de afastamento, ainda que relativo,
das narrativas históricas de tipo exemplar e, mesmo, de tipo tradicional. Tal
afastamento implicou a incorporação de características que podem ser associadas
ao tipo de narrativa denominado crítico. Os revolucionários de 1817 apresentam
traços preponderantemente “modernos” em termos de suas concepções de História:
a concepção de tempo como algo linear e progressivo; uma experiência voltada
para o futuro, concebido como imprevisível, mas planejável; um entendimento de
que aprender com a história implica analisar as conjunturas; a relação dialética
entre o sentido e o agir na história; e certa relatividade do humano e de valores, sem
que se rompa com uma compreensão de que há uma natureza humana universal.
Todavia, percebe-se o recurso eventual à fórmula historia magistra vitae e o apelo às
tradições, o que sinaliza que as transformações do “antigo” para o “moderno” e,
ainda, os modos como elas se deram entre os revolucionários não foram isentos de
ambiguidades e instabilidades conceituais.
Quanto ao recurso à historia magistra vitae, cabem alguns esclarecimentos
adicionais. O uso da expressão historia magistra vitae permanece entre os modernos.
Isso é indicativo dessas ambiguidades e instabilidades. Valdei Araújo registra que
uma coisa é o emprego da referida expressão, feito em obediência à tópica e aos
preceitos ditados pela retórica, na realidade anterior à emergência dos Estados
nacionais; outra, seria quando esta última realidade estava estabelecida e, ainda,
258 A globalização das luzes
29 SIQUEIRA, Antônio Jorge. Os padres e a teologia da ilustração: Pernambuco 1817. Recife: Editora UFPE, 2009, p. 175-176 e 188-189.
30 Ibidem, p. 208.
260 A globalização das luzes
poder concebiam que Deus era a origem do poder, que por ele era transmitido à
comunidade. Esta, em algum momento de sua história, renunciaria ao poder que
lhe fora concedido, entregando-o ao soberano. O monarca, por sua vez, ficava
obrigado a “reger os povos com justiça e de manter os seus direitos”, sendo legítimo, quan-
do não o fizesse, que a comunidade lhe fosse infiel, podendo, assim, “escolher o
governo que melhor lhe parecer”.32 Não por acaso, a Carta, em sua continuidade,
ecoava máximas que se veem num sermão do padre Antônio Vieira, feito em 1640,
em homenagem ao primeiro vice-rei do Brasil, o marquês de Montalvão, que
então chegava à Bahia. Vieira, jesuíta, compartilhava em suas análises as teorias
corporativas de poder (e é isso o que se vê nas entrelinhas do seu sermão, que traz
uma crítica política e administrativa). Esse sermão de Vieira foi empregado antes
de 1817, mais precisamente em 1788-1789, em Minas Gerais, por Joaquim José da
Silva Xavier, o Tiradentes, que lhe deu um tom anticolonialista. Ele seria, ademais,
apropriado depois, em fins de 1822, pelo grande frei Joaquim do Amor Divino
Caneca, personagem da Revolução de 1817, num sermão em louvor ao Império do
Brasil, que então nascia, e ao imperador d. Pedro I.33 Como se viu anteriormente,
nos trechos da carta endereçada em 1817 ao capitão-mor do Crato, o tom é clara-
mente anticolonialista (melhor dizendo, antimetropolitano).
Se Vieira e Tiradentes denunciavam que os ministros vinham às partes
ultramarinas para se enriquecer e corromper-se à custa das gentes, na carta,
acrescenta-se que o trono, mesmo instado sobre essas práticas dos “tiranos vindos
de fora”, nada faz e, ainda, que a “Corte corrompida” endossa suas práticas e seus
feios vícios:
Lembrai-vos das opressões dos Ouvidores e dos Governadores nessa Capitania,
[refere-se ao Ceará], lembrai-vos que muitos de nossos patrícios têm levado queixas
32 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, Antônio
Manuel (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1997, p. 113-139 (especialmente, p. 115); e TORGAL, Luís
Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982, v. 1, p. 110, 188 e 191; v.
2, p. 6-8.
33 VILLALTA, Luiz Carlos. Identidades coletivas e produção, circulação e usos de representações históricas: do final do Antigo
Regime à emergência do Império Constitucional no Brasil (c. 1788-1823). In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL CULTURA ES-
CRITA NO MUNDO MODERNO, 1., 2019, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2019,
p. 88-95.
262 A globalização das luzes
ao trono, mas tudo em vão; por aqui a Corte corrompida só quer que eles voltem ricos
com os despojos do miserável povo para ali se atolarem nos seus mais feios vícios.34
A carta contém uma narrativa histórica que pode ser enquadrada como
tradicional. Traz a defesa da religião herdada como uma marca a ser perseguida
e defendida pela Revolução. A própria figura de Deus permanece como o grande
protagonista da história. Mas o passado é visto como um tempo de sofrimento, de
cativeiro secular, como algo a ser superado. A orientação que se tira disso é a da
ruptura com o passado, ao menos parcialmente: até mesmo para preservar-se a
religião, cumpriria encerrar o cativeiro. Assim, o presente e o devir são concebi-
dos como tempos de ruptura parcial com o passado, ruptura esta que traduz um
compadecimento de Deus com os sofrimentos seculares dos homens. Trata-se de
ruptura com uma “opressão” e um “cativeiro” seculares; com uma Corte corrupta;
com as “opressões dos Ouvidores e dos Governadores”, todos ladrões e déspotas
enviados pelo soberano, uns e outros responsáveis pela miséria. Curiosamente, como
base teórica para legitimar-se a insurreição e o novo, busca-se recurso nas velhas
teorias corporativas de poder. Elas, porém, em 1817, estavam sendo usadas não
para se manterem as estruturas do Antigo Regime, mas para instaurar uma nova
ordem. Nisso tudo, há, claramente, um quê de narrativa de tipo crítico, notando-se
uma problematização dos modelos culturais e de vida coevos, com a introdução
de uma ruptura na continuidade.
Quando se pensa em termos de narrativas históricas, a “Proclamação feita
aos Habitantes de Pernambuco pelo Governo Provisório”, datada de logo depois
da instalação da República em 6 de março de 1817, em linhas gerais, segue o
mesmo padrão da carta analisada anteriormente. Seu tom, porém, é muito mais
conciliador. Por um lado, evita-se o antagonismo explícito com a Corte, o Rio de
Janeiro e, por outro, amenizam-se as dissensões existentes entre, de um lado, os
“portugueses” e, de outro, os “brasileiros” e os “pernambucanos”. Explicitamente,
culpa-se o governador de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro,
pela eclosão da Revolução, que é atribuída à ausência do referido governante. Ao
mesmo tempo, representa-se o governador, de certa forma, como a personificação
do “despotismo”. Na Proclamação, revisita-se a transferência da Corte portuguesa
para o Brasil, que é explicada como resultado dos “encadeamentos dos sucessos da
Europa”, tendo-se como adendo que, com isso, passou-se a “dar ao continente do
Brasil aquela consideração, de que era digno e para o que não concorreram nem
podiam concorrer os Brasileiros”.35 Ou seja, se a transferência da Corte se devia
a fatores europeus e de um tempo histórico mais restrito, a situação do Brasil, até
aquele momento, era mais longeva e, sobretudo, indigna. Sublinha-se, ainda, que
os “Brasileiros” nada tiveram a ver com a transferência, pois não poderiam ser
os culpados de “que o Príncipe de Portugal [tivesse sido] sacudido da sua capital
pelos ventos” da invasão francesa. Com efeito, foi do Brasil que, “pela quase Di-
vina providência e liberalidade dos seus habitantes”, partiu o socorro para que os
lusitanos, fugidos de Lisboa, matassem a fome e a sede no Atlântico, na altura de
Pernambuco.36 A essa posição dos “Brasileiros” e do “Brasil”, inclusive, é atribuída
a explicação para que o príncipe regente, “sensível à gratidão, quisesse honrar a
terra, que o acolhera com a sua residência, estabelecendo a sua Corte, e elevá-la
à categoria de Reino”. Com isso, a narrativa salta da transferência da Corte, em
1807-1808, para a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Al-
garves, em 1815. Em seguida, desloca-se para a eclosão da Revolução, em 5 e 6 de
março de 1817, reportando-se, sem haver menção explícita, à decisão de Caetano
Pinto de Miranda Montenegro de aprisionar oficiais acusados de sedição. Essa
decisão é adjetivada como despótica e descrita da seguinte forma: “o despotismo”
e o “mau conselho” recorreram, então, “às medidas mais violentas e pérfidas que
podia excogitar o demônio da perseguição”, ou, em outros termos, “ao meio tirano
de perder Patriotas honrados, e beneméritos da Pátria”, o que fez com que a “tropa
inteira” se opusesse, “envolvida na ruína de alguns de seus oficiais”.37 Colocando-
-se contra os que disseminavam “um mal-entendido ciúme, e rivalidade, entre
os filhos do Brasil, e de Portugal, habitantes desta Capital”, o governo provisório
conclamava à unidade entre brasileiros e portugueses, engajados indistintamente
na defesa da “pátria”, baseada na agricultura, entendendo que “uma nação rica
35 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CI. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1953, p. 14-16.
36 Ibidem.
37 Ibidem.
264 A globalização das luzes
38 Ibidem.
39 VILLALTA, 2003, p. 76.
40 CABRAL, Flávio José Gomes. Conluios, circulação de ideias e a imprensa no tempo da Revolução Pernambucana de 1817. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, 29., 2017, Recife. Anais... Recife: ANPUH/UFPE, 2017.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 265
41 BN-RJ. PRECISO dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco desde a faustíssima e gloriosíssima revolução operada e
felismente na praça do Recife, aos seis de março de 1817, em que o generoso esforço dos nossos bravos patriotas exterminou daquela
parte do Brasil o monstro infernal da tirania real. [S.l.: s.n.], 1817.
42 Ibidem.
43 Ibidem.
44 Ibidem.
45 Ibidem.
46 Ibidem.
266 A globalização das luzes
vras de ordem: “Viva a pátria, vivam os Patriotas, e acabe para sempre a tirania
Real”.47 A pátria, no uso dos revolucionários, significava a coletividade constituída
pelos defensores dos ideais constitucionais, liberais, republicanos, antiabsolutistas
e antidespóticos, uma comunidade investida de soberania e que se antagonizava
com a monarquia do Rio de Janeiro. A palavra “pátria” não remetia à acepção,
então muito usual no mundo luso-brasileiro, de local de nascimento e dos afetos. O
novo sentido da palavra pátria e sua presença como palavra de ordem, ao lado da
defesa da extinção da “tirania Real”, denotam que, ao final do “Preciso”, celebra-se
a inovação. Entre tradição e ruptura, o “Preciso” aposta na ruptura –– não por
acaso, o documento foi impresso de tal sorte que o brasão real figurava na parte
de baixo da folha, não em cima.
Na Proclamação que o governo provisório dirigiu aos baianos, a aposta na
ruptura e o entendimento de que a tradição a legitimava conjugavam-se com certa
concepção de humanidade. Nela, vê-se, igualmente, um brado contra o despotismo,
fosse o representado pelo governador da Bahia, o conde dos Arcos, fosse aquele
vinculado a d. João VI e ao governo do Rio de Janeiro.48 Vê-se, também, a repulsa
à ânsia aristocrática enraizada na sociedade colonial e ao ideal de fidelidade aos
governos, adjetivados como tirânicos. Inicialmente, a Proclamação afirma aos “pa-
triotas Baianos” que, no dia 6 de março de 1817, restituíram-se “perdidos direitos”
aos “irmãos de Pernambuco”. Portanto, implicitamente, expõe-se uma compreensão
de que, em algum momento do passado, os pernambucanos tiveram direitos. Essa
compreensão alia-se à ideia de que, entre baianos e pernambucanos, havia uma
identidade definida, entre outros elementos, pela sujeição ao despotismo, ou, nos
próprios termos do documento, uma “identidade de Religião, costumes, moradia
e simpatia de sofrimentos”, identidade essa que criara laços entre os primeiros e
os últimos. Esses laços eram as bases para que, na Proclamação, por meio de uma
pergunta aos baianos, reputados como estando sempre “dianteiros na estrada da
civilização e da cultura”, se fizesse a proposta de “sacudirmos o jugo e recuperarmos
o título, que nunca deveríamos ter perdido, o título de homens livres”.49 Até mesmo
47 Ibidem.
48 O CARAPUCEIRO. Recife, 3 ago. 1833, p. 256. Este documento é analisado em CABRAL, op. cit., p. 5-7.
49 O CARAPUCEIRO, 3 ago. 1833, p. 256.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 267
A Proclamação insinua que o conde dos Arcos seria um traidor do rei d. João
VI, ao afirmar que ele teria “negro projeto” e que seus “consórcios” mereceriam o:
título de conspiração: ele destruía um trono odiado para substituir-lhe milhares de
Tronos ainda mais aborrecíveis. O Povo, desgraçado Povo, era obrigado a satisfazer
o seu orgulho e pretensões de um bando de Aristocratas ávidos de sangue, insaciáveis de
pompas e grandezas vãs e nunca satisfeitos com as humilhações de seus escravos. 52
Embora o trecho acima pareça dirigir-se ao conde dos Arcos, a seu governo
e a seus apaniguados, tudo indica que seu conteúdo remeta à monarquia portuguesa
em geral. Quase em seu final, a Proclamação conclama os baianos a honrarem seu
passado de lutas pela liberdade e, por conseguinte, a desferirem um ataque àquele
que os tiranizava, inscrevendo, na própria Escritura Sagrada, o ódio à tirania e a
defesa da igualdade do homem que o legitimava:
Não pode ser divisa de um Povo, nobre e generoso, fidelidade a um Déspota baixo e opressor [(isto
é, o conde dos Arcos)]. Mostrai-lhe que são mentirosas suas gratuitas asserções e
que os vossos peitos são o Santuário de Vesta, onde nunca extinguiu o fogo da
50 Ibidem.
51 Ibidem.
52 Ibidem.
268 A globalização das luzes
Liberdade; e que, se o sopro dos tiranos lhe pode diminuir a força, jamais conse-
guiu abafá-lo de todo. Correi prontos ao grito de vossos consanguíneos e de vossos
conterrâneos: escutai os ditames da Religião Santa, que professais: a cada página dos
Livros Sagrados ressumbram a igualdade do homem e o ódio à tirania. Viva a Religião, viva
a Pátria, viva a Liberdade.53
53 Ibidem.
54 SIQUEIRA, op. cit., p. 213.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 269
55 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CIV. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1954a, p. 86-87.
56 BN-RJ, Seção de Manuscritos. SILVA, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e. [Carta a Martim Francisco, 29/03/1817].
Cartas [andradinas]. [Recife], Bordeaux, Mupidan e Paris, 1817-1834. I-4, 34, 054 n. 003.
57 Ibidem.
270 A globalização das luzes
Dirigiu também aos patriotas uma advertência, no sentido de que não de-
sonrassem aquele passado de feitos dos “avós”, malgrado essas glórias tenham sido
“em serviço de um tirano”; e destacava que o engajamento na luta pela Revolução
visava ao que podemos chamar de inovação, a um “novo ser”, definido pelo estatuto
de constituir “um povo livre”:
Mocidade de Pernambuco, não degenereis do caráter de vossos avós[;] se eles fica-
ram tão famosos e honrados na memória dos séculos pelos feitos que obraram em
serviço de um tirano, quanto mais o sereis vós, seguindo o seu exemplo na defesa
de uma causa em que só se trata de nos dar a todos um novo ser, a alta dignidade de um
povo livre. Correi, portanto, a escrever os vossos nomes no quadro dos defensores da
pátria, tomando cada um aquela arma que melhor se acomodar à sua inclinação.61
63 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CVI. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1954b, p. 23.
64 PIRES, Antônio S. T. Evolução das ideias da física. São Paulo: Livraria da Física, 2008, p. 22.
65 BRASIL, 1954b, p. 24 (grifos nossos).
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 273
66 MELLO, Evaldo Cabral. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004, p.
185-186.
67 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CVII. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1955, p. 197.
274 A globalização das luzes
conduta anterior e posterior é que pode provar quais eram os sentimentos do meu
coração e a dura necessidade em que me via de contemporizar.68
D. João é apresentado como o “pai comum” dos seus vassalos dos quatro
continentes, enquanto ele, José Mayrink, que nasceu em Vila Rica, diz não ter
como pátria senão essa coletividade abrangida pela monarquia portuguesa, ou
seja, o que sabemos, à época, considerar-se “nação portuguesa”:
A minha pátria não são os penhascos de Vila Rica que me viram nascer, a minha
pátria, eu o digo e entendo, é o meu Governo, é a Constituição da Monarquia Por-
tuguesa, a que pertenço e a que pertenceram os meus maiores; a este corpo moral
é que eu chamo pátria, aliás seria preciso não ter senso comum e ser rapaz que briga
por pertencer aos bandos de Tróia e da Grécia.69
68 Ibidem. Sobre o juízo referente às aparências sob o Antigo Regime, ver, dentre outros: SENNET, Richard. O declínio do homem público:
as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 53; e ELIAS, Norbert. A
sociedade de Corte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995, p. 67. A refutação da civilidade das aparências parece ter-se convertido numa tópica no
século XVIII. Ela figura, por exemplo, em Cartas Persas, romance de Montesquieu publicado em 1721. Cf. VILLALTA, Luiz Carlos.
Robinson Crusoé e Cartas Persas: romances, viagens e devir histórico (1719-1806). In: BORGES, Célia Maia (org.). Narrativas e imagens.
Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2006, p. 102-155. Em Portugal, desde meados do século XVIII, foi frequente a crítica ao juízo feito a
partir das aparências pelo senso comum.
69 BRASIL, 1955, p. 200 (grifos nossos).
70 ALMODÓVAR, Antônio; CARDOSO, José Luís. D. Rodrigo de Souza Coutinho e administração econômica do Brasil: no
território da economia política. In: INTERNATIONAL CONGRESS ON THE ENLIGHTENMENT, 10., 25-31 jul. 1999, Du-
blin. Proceedings… Dublin, 1999, p. 2; SILVA, Andrée Mansuy Diniz. D. Rodrigo de Souza Coutinho, comte de Linhares, 1755-1822: l’homme
d’État, 1796-1812. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2006, v. 2; e VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro
sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 144.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 275
Considerações finais
72 VILLALTA, Luiz Carlos. Leituras e apropriações da História na defesa dos acusados de lesa-majestade pela participação na
Revolução de 1817. Artcultura, Uberlândia, v. 24 n. 44, 2022.
73 Idem, 2019.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 279
R eferências bibliográficas
ARAÚJO, Valdei Lopes. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século
XIX Brasileiro. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO,
Valdei Lopes (orgs.). Aprender com a História?: o passado e o futuro de uma questão. Rio de
Janeiro: FGV, 2011, p. 131-147.
74 STENDHAL apud MOURÃO, Gonçalo. A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 100. No original: “1er Juin [1817] l. L'insurrection admirable du Br[ésil] 2, presque la plus
grande chose qui pût arriver, me donne les idées suivantes: 1. La liberté est comme la peste. Tant qu'on n'a pas jeté à la mer le dernier
pestiféré, l'on n'a rien fait. 2. Le seul remède contre la liberté c’est les concessions. Mais il faut employer le remède à temps voyez Louis
XVIII. Il n'y a ni lords, ni brouillards, au Brésil”. STENDHAL. Mélanges intimes et Marginalia II. Établissement du texte et préfaces par
Henri Martineau. Paris: Le Divan, 1936.
280 A globalização das luzes
PIRES, Antônio S. T. Evolução das ideias da física. São Paulo: Livraria da Física, 2008.
RÜSEN, Jörn. Historical consciousness: narrative structure, moral function, and onto-
genetic development. In: SEIXAS, Peter (ed.). Theorizing historical consciousness. Toronto:
University Toronto Press, 2004, p. 63-85.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 281
SILVA, Andrée Mansuy Diniz. D. Rodrigo de Souza Coutinho, comte de Linhares, 1755-1822:
l’homme d’État, 1796-1812. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2006.
STENDHAL. Mélanges intimes et Marginalia II. Établissement du texte et préfaces par Henri
Martineau. Paris: Le Divan, 1936.
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca
Geral da Universidade, 1981-1982. 2 vols.
______. Robinson Crusoé e Cartas Persas: romances, viagens e devir histórico (1719-
1806). In: BORGES, Célia Maia (org.). Narrativas e imagens. Juiz de Fora: Editora da UFJF,
2006, p. 102-155.
______. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
______. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português (1788-1822). Rio de Janeiro: FGV, 2016.
1 Edição utilizada: ALVES, Castro. Gonzaga ou a Revolução de Minas. In: CRUZ, Duarte Ivo (org.). Teatro romântico brasileiro.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 389-495.
284 A globalização das luzes
Esse drama já foi bastante – e bem – analisado e comentado pela crítica lite-
rária do ponto de vista das suas vertentes ultrarromânticas. Não obstante, salvo erro,
ainda não foi avaliado a partir da noção de reativação do pensamento iluminista.
Mas, será esta observação suficiente para podermos afirmar que Castro
Alves solicita esses ideais como herança das Luzes setecentistas? Poder-se-ia falar
em Luzes “ativas” em pleno romantismo do século XIX? Ou será que apenas po-
demos verificar a exaltação de alguns conceitos, muitos deles “republicanos”, sem a
vontade explícita de o dramaturgo se reivindicar tributário dos filósofos ilustrados?
Para mobilizar e reativar as Luzes, bastará aludir confusamente a ideais políticos
ou referir-se inequivocadamente a eles? Jean-Pierre Schandeler, pesquisador francês
do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), observa que, para se
falar em “Luzes ativas”, é preciso que os elementos evidenciados como referentes
ao pensamento das Luzes tenham “efeitos estruturantes para influir na situação”.2
Caso contrário, só se poderá averiguar que apenas existe uma similaridade de temas
entre certos ideais das Luzes e os fatos observados. Nem se pode considerar que a
“reativação” seja sinônimo de herança, recepção, leitura ou interpretação das Luzes,
pois essas são noções demasiado “passivas”: para reativar as Luzes, revitalizá-las,
é indispensável um profundo envolvimento na luta. Pode-se afirmar, então, que
Castro Alves se apossou do pensamento das Luzes (de que pensamento, aliás?) na
sua luta pela abolição da escravatura? Ou será que a valorização, no seu drama,
de vários ideais iluministas não passa de um processo de sublimação romântica,
de exaltação, de reencantamento?
Numa obra intitulada Pourquoi se référer au passé?, Claudia Moatti e Michèle
Riot-Sarcey3 observam quatro modalidades de referência a um passado histórico:
o exemplo ou “modelo”; o modo genealógico (a inscrição numa tradição); a legiti-
mação simbólica da ação pela instrumentalização e/ou manipulação do passado
com fins de propaganda ou desinformação; e, enfim, o modo referencial. Nessa
última modalidade, as noções de origem e gérmen exprimem uma relação dinâ-
mica com o passado, “um passado sempre inacabado, dotado de uma possibilidade
Com a exuberância dos seus 20 anos,7 Castro Alves mescla os dois temas
acima citados, a independência e a abolição da escravatura, ambas intimamente
ligadas a um forte patriotismo, com um terceiro, a história de amor infeliz entre
Gonzaga e Marília, mergulhando o conjunto numa atmosfera eminentemente
religiosa. A vertente cristã da peça8 evidencia a dicotomia maniqueísta entre os
maus e os virtuosos: os primeiros são escravocratas, corruptos, reles, enquanto os
segundos exibem uma integridade moral inquestionável (sejam escravos ou membros
da elite aristocrática), lembrando uma postura crítica.
Quais são as referências explícitas às Luzes nesta peça? Na verdade, muito
poucas. Não passam de alusões que até se poderiam considerar como clichês. A
primeira é a fala do padre Carlos:
PADRE CARLOS: Meus senhores, nós chegamos à grande época da regeneração
e da liberdade. Além do Atlântico há um povo livre, grande pela força, sublime
pelo pensamento, divino pela liberdade, que, através dos mares, nos estende a
mão. É a França. A Revolução Francesa protege a revolução de Minas, esta é
filha daquela, ou antes, ambas são filhas de Deus. Quando um povo levanta-se
do cativeiro, Deus do topo dos Alpes ou do cimo dos Andes empresta-lhe uma
espada, como dava as leis no cimo do Sinai. Pois bem, peçamos a este povo irmão
auxílio e caminhemos.
6 SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 283 e 288.
7 Carta de Machado de Assis a José de Alencar: “Esta exuberância, que V. Ex. com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta
há-de reprimi-la com os anos. Então, conseguirá separar completamente a língua lírica da língua dramática”. ALVES, Castro. Gonzaga
ou a Revolução de Minas. Rio de Janeiro: Livraria Cruz Coutinho, 1875, p. XV.
8 GALINDO, Cláudia Sabbag Ozawa. Análise do drama romântico “Gonzaga ou a Revolução de Minas”, de Castro Alves. Revista
Mulheres e Literatura, v. 10, 2006.
9 ALVES, 2008, ato I, cena 2, p. 398.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 287
Castro Alves não desenvolve essas poucas referências que já, na altura, pa-
recem ser lugares-comuns. O dramaturgo, na verdade, não domina a história da
Revolução Francesa, pois comete o anacronismo de dar existência à Marselhesa em
1789, enquanto foi criada em 1792 e só adotada como hino nacional em 1795. Além
disso, já sabemos que foi a revolução americana e não a francesa que motivou os
conjurados mineiros, em 1788, antes mesmo da tomada da Bastilha. Atestam-no
as cartas de Vendek a Jefferson:
Sou brasileiro e sabeis que a minha desgraçada pátria geme em atroz escravidão,
que se torna todos os dias mais insuportável depois da vossa gloriosa independência,
pois que os bárbaros portugueses nada poupam para tornar-nos desgraçados com
medo que vos sigamos as pisadas, e como sabemos que estes usurpadores, contra
a lei da natureza e da humanidade, não cuidam senão de oprimir-nos, estamos
decididos a seguir o admirável exemplo que acabais de dar-nos e, por conseguinte,
quebrar as nossas cadeias e fazer reviver a nossa liberdade, que está de todo morta
e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus têm sobre a América.12
12 Segunda Carta de José Joaquim da Maia (Vendek) a Thomas Jefferson, Montpellier, França, 21-11-1786. Disponível em: http://
www.iheal.univ-paris3.fr/sites/www.iheal.univ-paris3.fr/files/S2%20DOC1%20-%20Correspondance%20Maia-Jefferson,%20
1786-1787.pdf.
13 ALVES, 2008, ato III, cena 12, p. 456.
14 Ibidem, p. 463.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 289
15 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978, p. 100.
290 A globalização das luzes
16 Definição da palavra “pátria” no dicionário Aulete Digital: “Nação em relação à qual se desenvolve sentimento de pertencimento
e ligação afetiva”.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 291
Como se deduz dessas poucas ocorrências lexicais, Castro Alves não se po-
siciona como pensador da Inconfidência e até parece que poucos conhecimentos
precisos tem da conjuração e das suas fontes teóricas e ideológicas, o que não chega
a surpreender, porque à época começavam a ser publicados na imprensa docu-
mentos sobre o movimento. O seu interesse é o homem, o homem cativo, o homem
do povo perseguido por um poder ilegítimo porque não “natural”, e que deveria
usufruir uma total liberdade, tanto em nível pessoal como em nível do território
em que vive. Assim, parece exprimir-se Castro Alves pela boca de Cláudio Manuel
da Costa, frisando que a independência é da ordem da natureza:
292 A globalização das luzes
Ah, senhores da metrópole, ides enfim saber que este chão é nosso, que a América
é dos Americanos, como o céu é da ave, como a espingarda é da pólvora.17
GONZAGA: Sim! Quando o escravo quer ser livre, quando o trabalhador quer
ser proprietário, quando o colono quer ter direitos, quando a cabeça quer pensar,
quando o coração quer sentir, quando o povo quer ter vontade, há um fantasma que
lhe diz: Loucura, mil vezes loucura! O escravo tem o azorrague, o trabalhador o
24 “Primeiramente, temos o fio do tramar da Inconfidência. Já Prado (1996) descrevia esse fio como o mais frágil dos três. A conju-
ração mineira é delineada como um movimento romanesco e idealista, sem pontos de apoio com a realidade.” BOTTON, Flávio. A
Inconfidência Mineira: literatura e história em dois tempos. Anuário de Literatura, v. 14, n. 1, 2009, p. 40.
25 SCHWARCZ; STARLING, op. cit., p. 142.
26 “A maior parte dos conjurados mineiros encontrava-se enredada de algum modo com o contrabando de ouro e dos diamantes,
burlava o fisco e zombava da autoridade dos funcionários do governador. […] Mas quem se envolveu com a Conjuração Mineira
também punha ênfase na diversificação das atividades econômicas e considerava a possibilidade de autossuficiência de Minas.”. Ibidem.
27 VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasis. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 54.
28 MAXWELL, op. cit., p. 153.
29 “Luís: Oh, Santo Deus! Ter uma criancinha, pequena, risonha, gordinha, que chora tanto, que faz a gente rir, que nos trepa nos
joelhos, que nos puxa a barba, que corre nuazinha para nos tomar a enxada com que não pode, que nos conta mil tolices, que ri, que
salta até fazer brotar a alegria na cara e a felicidade na lama… para um dia o senhor arrebatá-la, arrancá-la do meio das veias do
coração…”. ALVES, 2008, p. 393-394.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 295
LUIZ — Não, senhor, a ordem deve ser para todos os presos... Eu que o apanhei
no berço, só o largarei no túmulo... Minha senhora, ele terá um amigo junto do seu
leito de agonia, ou ao pé de seu cadafalso. Adeus... minha senhora.32
Castro Alves pode ter herdado a sua fibra abolicionista através dos textos
de Victor Hugo, grande leitor de Montesquieu, Diderot, Condorcet e muitos
outros pensadores das Luzes, que permitiram uma tomada de consciência do
valor humano na América então colonial: “là comme ailleurs les Lumières ont
bien été libératrices”.34 Em meados do século XIX, é já quase clichê reconhecer
o princípio fundamental da igualdade entre os homens, princípio eminentemente
35 JAUCOURT, Louis de. Esclavage. In: DIDEROT, Denis; ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des métiers, t. V. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1755, p. 936. Disponível em: http://enccre.academie-
-sciences.fr/encyclopedie/article/v5-1910-0/. Acesso em: 18 jun. 2018.
36 ALVES, 2008, ato I, cena 3, p. 400.
37 Ibidem, ato I, cena 1, p. 392.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 297
leitura dupla: por um lado, é a exaltação positiva da revolução que se destaca; por
outro, a série de perguntas orientadas que Gonzaga lhe faz tem muito a ver com
manipulação e manobra para fazer do negro o eterno devedor do branco. Aliás,
esse intercâmbio conclui-se com a frase de Gonzaga: “Pois bem Luís, em nome
da revolução, tua cabeça é minha”.38 Parece que Castro Alves não pode escapar
ao condicionamento do seu tempo. Na verdade, como o analisou Léon-François
Hoffmann, em Le nègre romantique, o escravo negro trabalhado pela literatura é:
Personnage, certes, mais personnage encore très “littéraire”, illustration vivante
d’un problème de morale. Au nom des droits naturels, pour des raisons religieuses,
par sensibilité, les plus grands esprits du siècle déplorent l’esclavage et demandent
son abolition. Ce qui ne veut aucunement dire qu’ils considéraient les Noirs comme
leurs égaux, loin de là. Tout le monde semble à peu près d’accord: le Noir est un
inférieur, un cannibale, un vendeur d’hommes, un être lubrique et fort laid, ignorant
l’ABC de la civilisation et de la bonne philosophie. Bon sauvage arraché au paradis
terrestre? Oui, pour les besoins de la poésie didactique et comme symbole attendris-
sant. Mais personne ne risque de prendre cette métaphore pour la réalité. Homme
à peine mais homme quand même, on réclame pour lui un minimum de bien-être.
Et le bel optimisme du siècle espère qu’à force de patience et de bonnes leçons, le
Noir un jour – un jour lointain, s’entend – prendra sa place parmi les civilisés. En
attendant, bien des plaidoyers en faveur des Nègres rappellent désagréablement les
histoires d’animaux fidèles et malheureux que la Société Protectrice des Animaux
distribue aux enfants pour leur inculquer l’amour des bêtes.39
Les vices des esclaves disparaîtraient avec ceux du maître; bientôt il se trouverait
au milieu d’amis attachés à lui jusqu’à la passion, fidèles jusqu’à l’héroïsme. […] Le
sentiment de l’honnêteté, l’amour de la vertu, l’amitié, la tendresse maternelle ou
filiale, tous les sentiments doux, tendres ou généreux qui viendraient charmer ou
embellir l’âme de ces infortunés, ou plutôt leur âme entière serait son ouvrage, et
au lieu d’être riche du malheur de ses esclaves, il serait heureux de leur bonheur.42
42 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Réflexions sur l’esclavage des nègres et autres textes abolitionnistes. Présen-
tation de David Williams. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 51.
43 ALVES, 2008, ato I, cena 1, p. 393.
44 HOFFMAN, op. cit., p. 224.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 299
LUIZ (Aperta o coração desesperado, depois olhando o céu) — É a vida que foge,
mas é a honra que vem.
(Todos saem).47
Que concluir desses dados expostos? Na sua tragédia, Castro Alves utiliza-se
da História (algo que já aconteceu) para dar conta de algo que está a acontecer:
o processo da luta pela abolição. Não escreve a história, mas sobre a história. O
tema da abolição não é novo no teatro brasileiro, e a leitura das numerosas peças
relativas à libertação dos escravos no decurso do século permite verificar o interesse
da sociedade brasileira pelo assunto:
Através das obras teatrais podemos acompanhar as mudanças do pensamento
dos brasileiros a respeito da escravidão. O principal valor dessa fonte rica e
isolada das chamadas fontes históricas é a análise do discurso e suas tendências
na época. Mesmo não sendo uma história vista de baixo, é possível notar, na
reconstrução das tendências do discurso, que o negro lentamente passa de mero
figurante para antagonista e depois para protagonista, até se apresentar com
falas abolicionistas.48
48 SILVA, Emerson de Paula. Dramaturgia e memória: breve histórico do negro no espaço teatral. Cadernos Letra e Arte, v. 3, n. 3,
2013, p. 72.
49 CACCIAGLIA, Mário. Pequena história do teatro no Brasil. São Paulo: Edusp; T. A. Queiroz, 1986, p. 52 apud CRUZ, Duarte Ivo
(org.). Teatro romântico brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 21.
50 REBELLO, Luiz Francisco (org.). O teatro romântico português: o drama histórico. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007,
p. 39.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 301
e tu, Maria, e tu, sempre arrancada de meus braços... por esse poder estúpido da
Metrópole”.51
A paixão amorosa serve para sensibilizar o espectador à questão aboli-
cionista, que é, por sua vez, diretamente associada ao poder colonial. Castro
Alves não procura aqui representar a realidade histórica, mas servir-se dela para
desenvolver os temas que lhe são queridos. A história é um pano de fundo que
sustenta um propósito ideológico. Mas uma ideologia fundada no pensamento das
Luzes? Não basta sublinhar que a peça se alicerça nos ideais da descolonização e
da abolição – temas das Luzes, como já vimos – para concluir que Castro Alves
reativa as posições dos enciclopedistas. Ele valeu-se eventualmente desses ideais,
aplicou-lhes uma simbólica forte, humanística, profundamente arraigada na noção
de liberdade individual e nacional. Moldou simbólica e emocionalmente os valores
iluministas, trabalhados como anedotas, num período traumático do país (luta
abolicionista, guerra do Paraguai). As poucas alusões à Revolução Francesa – se
ainda podem ser consideradas como referências às Luzes – servem um propósito
destinado a comover, muito mais do que a incentivar uma reflexão. Num processo
de “reencantamento” de certos ideais, Castro Alves não discute nem reativa, de
fato, as teses setecentistas; faz “referência” a elas, no sentido indicado em preâmbulo
deste estudo, como “associação livre, evidente entre passado e presente”, mas sem
analogia entre esses dois espaços temporais.
Hors de toute continuité historique, elle se dérobe à la construction d’un récit linéai-
re fondé sur les rapports de causalité ou sur les grandes généalogies, et s’écarte de
toute signification close sur elle-même. Interprétée différemment selon les collectifs
et les individus, elle est mouvante et singulière à chaque instant historique qu’elle
mobilise. Enfin, son interprétation même dans le moment de son surgissement peut
être contradictoire et en débat.52
[P]enso no esplendor de Minas do século XVIII, ciente da vida no século das luzes
e a acendê-las no recôncavo abençoado. Sempre lamentei a ausência de um histo-
riador disposto a contar o milagre mineiro e de colher-lhe as razões.
Aleijadinho é representativo de um período de arte deslumbrante, de bela música,
de poesia, de grandes esperanças, e de arquitetura sublime que criou tesouros como
Ouro Preto, Congonhas do Campo, Mariana e outros tão únicos quanto encantadores.
É a Inconfidência, surpreendentemente informada a respeito das ideias destinadas a
mudar a Europa e o mundo. Deste enredo brotaria mais tarde a figura de José Boni-
fácio de Andrada, cavalheiro internacional com aprendizado civilizatório na França.
R eferências bibliográficas
ALVES, Castro. Gonzaga ou a Revolução de Minas. Rio de Janeiro: Livraria Cruz Coutinho,
1875.
______. Gonzaga ou a Revolução de Minas. In: CRUZ, Duarte Ivo (org.). Teatro romântico
brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 389-495.
CACCIAGLIA, Mário. Pequena história do teatro no Brasil. São Paulo: Edusp; T. A. Queiroz,
1986.
CARTA, Mino. Cada vez mais para trás. Carta Capital, n. 993, 05 mar. 2018. Disponível
em: https://www.cartacapital.com.br/revista/993/cada-vez-mais-para-tras. Acesso em:
18 jun. 2018.
53 CARTA, Mino. Cada vez mais para trás. Carta Capital, n. 993, 05 mar. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
revista/993/cada-vez-mais-para-tras. Acesso em: 18 jun. 2018.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 303
CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Réflexions sur l’esclavage des
nègres et autres textes abolitionnistes. Présentation de David Williams. Paris: L’Harmattan, 2003.
CRUZ, Duarte Ivo (org.). Teatro romântico brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2008.
JAUCOURT, Louis de. Esclavage. In: DIDEROT, Denis; ALEMBERT, Jean le Rond d’
(éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, t. V. Paris: Brias-
son; David; Le Breton; Durand, 1755. Disponível em: http://enccre.academie-sciences.
fr/encyclopedie/article/v5-1910-0/. Acesso em: 18 jun. 2018.
REBELLO, Luiz Francisco (org.). O teatro romântico português: o drama histórico. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.
SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
Franck Salaün
Doutor em Filosofia. Professor da Université Paul-Valéry/Montpellier 3. Mem-
bro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humanidades:
a Globalização das Luzes”.
E-mail: franck.salaun@univ-montp3.fr
Jean-Pierre Schandeler
Doutor em Filosofia. Pesquisador do CNRS – Institut de Recherche sur la
Renaissance, L’âge Classique et les Lumières (UMR 5186 du CNRS) CNRS,
Université Paul-Valéry, Montpellier. Membro da Cátedra-UNESCO/DRI
“Territorialidades e Humanidades: a Globalização das Luzes”
E-mail: jean-pierre.schandeler@cnrs.fr
Luciano Mendes de Faria Filho
Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Membro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humani-
dades: a Globalização das Luzes”
E-mail: lucianomff@uol.com.br
Marie-Noëlle Ciccia
Doutora em Literatura. Professora da Université Paul-Valéry/Montpellier 3.
Membro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humani-
dades: a Globalização das Luzes”.
E-mail: marienoelle.ciccia@gmail.com