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LUIZ CARLOS VILLALTA

ÁLVARO DE ARAUJO ANTUNES


MARIE-NOËLLE CICCIA
(Organizadores)
Universidade Federal Fluminense
REITOR
Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
VICE-REITOR
Fabio Barboza Passos

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense


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Luciano Dias Losekann
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Marco Moriconi
Marco Otávio Bezerra
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Ronaldo Gismondi
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Vágner Camilo Alves
Luiz Carlos Villalta
Á lvaro de A raujo A ntunes
M arie-Noëlle Ciccia
(Organizadores)
Copyright © 2022 by Luiz Carlos Villalta, Álvaro de Araujo Antunes e Marie-Noëlle Ciccia
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.

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Normalização: Camilla Almeida
Edição de texto e revisão: Maria das Graças Carvalho
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação–CIP

G562 A globalização das luzes [recurso eletrônico] / Luiz Carlos Villalta, Álvaro de Araujo Antunes,
Marie-Noëlle Ciccia (organizadores). – Niterói : Eduff, 2022. – 4.529 kb. ; ePUB.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5831-151-5
BISAC HIS037050 HISTORY / Modern / 18th Century
1. História Moderna – século XVIII. 2. Iluminismo. 3. Luzes luso-brasileiras. I. Título. II. Villalta, Luiz
Carlos. III. Antunes, Álvaro de Araujo. IV. Ciccia, Marie-Noëlle.

CDD 909.7

Ficha catalográfica elaborada por Camilla Castro de Almeida CRB7-0041/21

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[Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos conteúdos desta publicação e pelas opiniões que
nela se encontram expressas, as quais não são necessariamente conformes às da UNESCO e não comprometem
a organização.]
Sumário

P refácio 7

Introdução 11

P rolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 23


Franck Salaün

Os anti-iluministas contra Condorcet durante a R evolução: 43


como um espelho de nossa época?
Jean-Pierre Schandeler

Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo 61


luso -brasileiro
Alexandre Mansur Barata

Notas sobre o Iluminismo católico luso -brasileiro: 81


reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade
Igor Tadeu Camilo Rocha

L ivros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de 115


claríssimas Luzes : a educação de jovens portugueses no contexto
da I lustração
Antonio Cesar de Almeida Santos

Educação, livros e luzes: reformas ilustradas 145


e os manuais de catecismo
Thais Nívia de Lima e Fonseca

Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como 161


estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do I mpério
Luciano Mendes de Faria Filho

Luzes no interior da província: 173


criação e acervo da Biblioteca P ública de São João del-R ei
Christianni Cardoso Morais
Quando morre um século: “recomendações econômicas e 197
políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19”
Álvaro de Araujo Antunes

A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: 221


A ntigo regime e contrarrevolução na época das restaurações
(c.1790-1840)
Andréa Lisly Gonçalves

Os revolucionários de 1817, suas representações e 249


apropriações da história
Luiz Carlos Villalta

Luzes e heróis românticos em Gonzaga, 283


ou a R evolução de Minas (1867), de Castro A lves
Marie-Noëlle Ciccia

Sobre os autores 305


Prefácio
Marco Antonio Silveira
Professor Titular do Departamento de História da UFOP e Pesquisador do CNPq

O leitor encontrará nas páginas introdutórias desta edição uma ótima síntese
da dinâmica institucional e historiográfica da qual ela resultou, bem como dos di-
versificados e ricos conteúdos trabalhados pelos autores que a compõem. Trata-se
de um dos resultados obtidos junto à Cátedra UNESCO-UFMG intitulada “Ter-
ritorialidades e Humanidades: a Globalização das Luzes”, ela mesma derivada do
diálogo há muito mantido por colegas brasileiros e franceses, em especial por Luiz
Carlos Villata, Álvaro de Araujo Antunes, Franck Salaün, Marie-Noëlle Ciccia e
Jean-Pierre Schandeler. Não valeria a pena, assim, repetir neste pequeno prefácio
as palavras esclarecedoras que serão lidas logo adiante. Frente ao honroso convite
que recebi para apresentar este livro, considerei pertinente retomar algo do contexto
histórico em que sua elaboração se deu. Meu objetivo não é, de forma alguma, o de
estabelecer relações superficiais entre o período das Luzes e certos fenômenos atuais,
nem o de avaliar em que medida estes últimos devem ou não ser compreendidos em
termos de apropriação de tradições iluministas ou anti-iluministas. O que desejo,
seja este um bom ou mau caminho, é não deixar escapar o fato de que, no geral,
as reflexões contidas em A Globalização das Luzes foram elaboradas em meio a uma
aflição que somente aumentaria nos anos de sua organização editorial.
8 A globalização das luzes

A grande maioria dos capítulos que constituem o livro foi apresentada e dis-
cutida num colóquio internacional organizado pelos referidos professores e realizado
na cidade de Ouro Preto (Minas Gerais) em 23 e 24 de abril de 2018. Na ocasião,
havia grande perplexidade em relação às mudanças pelas quais o Brasil passava.
O golpe representado pela abertura de falacioso processo de impeachment contra a
presidente Dilma Rousseff em 2 de dezembro de 2015 consistira num dos momentos
mais deprimentes de um conjunto de acontecimentos que poriam fim à chamada
Nova República, cuja democracia jamais se livrara dos filtros oligárquicos voltados
à contenção de formas efetivas de democratização. Mas, àquela altura, chamava
também a atenção a preocupante presença nas ruas de manifestantes de caráter
fascista, apoiados tanto por uma suposta “nova direita”, aliás bastante fascinada
pelo delírio autoritário, quanto pelos velhos herdeiros dos porões da ditadura de
1964-1985. Estávamos em plena campanha eleitoral, num cenário complexo e
atordoante. Nos meses seguintes, assistiríamos à eleição de um presidente fascista,
cuja atuação em seus quatro anos de mandato, parte deles marcada pelo avanço
assustador do coronavírus, visou à destruição das estruturas do Estado brasileiro
e à organização de um movimento autoritário de massas armado e disposto a
aterrorizar a sociedade.
Não cabe aqui, evidentemente, reconstituir os fatos e delinear os personagens
infames que conduziram o país à delicada situação em que se encontra, apesar
de as eleições de 2022 terem impedido, pelo menos por ora, que tomássemos um
caminho sem volta. Gostaria apenas de chamar a atenção para três aspectos. O
primeiro diz respeito à surpreendente dimensão assumida pela propagação de
notícias e informações falsas, voltadas não apenas à detração do adversário trans-
formado em inimigo, mas também, e fundamentalmente, à implosão da capacidade
das pessoas de ancorar-se em opiniões minimamente fundamentadas. Theodor
Adorno discutiu essa questão para um contexto diverso – o dos Estados Unidos
logo após o fim da Segunda Guerra Mundial – em obra que, a despeito de certos
problemas metodológicos, segue sendo referência fundamental.1 Adorno, em suas
análises sobre a personalidade autoritária, salientou, entre outros pontos, o papel

1 ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. Trad. São Paulo: Ed. Unesp, 2019.
Prefácio 9

desempenhado pela estereotipia na corrosão dos modos pelos quais os indivíduos


percebem o mundo em que vivem. E não se trata, conforme ensinariam diferentes
autores, tais como Hannah Arendt na década de 1960 e Contardo Calligaris na
de 1990, de gente dotada de algum tipo de patologia, mas sim de pessoas comuns,
de pessoas como nós.2
O segundo aspecto abarca uma difícil e incansável discussão sobre o papel
do intelectual no mundo contemporâneo, especialmente frente ao avanço da big tech,
do neofascismo e de seu irmão de sangue, o neoliberalismo – esse conjunto proble-
mático de estereótipos, crenças mais ou menos teológicas, doutrinação acadêmica
e solapamento institucional que tem nutrido o que Jacques Rancière denominou
de ódio à democracia.3 Em 1993, em suas palestras de Reith, Edward Said definiu
o intelectual como aquele que fala verdade ao poder, salientado a importâcia do
“amadorismo”, isto é, do
desejo de se ser motivado, não por lucros ou recompensas, mas por amor e interesse
insaciável por horizontes mais vastos, pelo estabelecimento de relações para além
de linhas e barreiras, pela recusa em estar amarrado a uma especialidade, pela
preocupação com ideias e valores apesar das restrições de uma profissão.4

É difícil avaliar em que medida tais proposições se sustentam nos dias de


hoje, visto que o próprio meio acadêmico, no interior do qual parte expressiva do
debate intelectual acontece, assumiu ares de indústria. Contudo, não por acaso, o
ataque desferido por fascistas e pseudoconservadores, para usar um termo adotado
por Adorno, deu-se também contra as universidades e com base num esforço para
criar meios alternativos, em boa parte de caráter virtual, de promoção e divulga-
ção de jargões autoritários ou das mistificações de Ludwig von Mises e Friedrich
Hayek. A perplexidade gerada pela avalanche reacionária dos últimos dez anos
não deixou de mobilizar parte dos professores universitários, mais conscientes a
respeito da bolha em que vivem. Além disso, o entendimento de que as estratégias

2 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. São Paulo: Cia. das Letras, 1999.
CALLIGARIS, Contardo. O grupo e o mal. Estudos sobre perversão social. Trad. São Paulo: Fósforo, 2022.
3 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. São Paulo: Boitempo, 2014. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão
do mundo. Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Trad. São Paulo: Boitempo, 2016. KHEL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2011. SAFATLE, Vladimir; SILVA JUNIOR, Nelson da; DUNKER, Christian (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento
psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
4 SAID, Edward W. Representações do intelectual. As palestras de Reith de 1993. Trad. Lisboa: Colibri, 2000, p. 70.
10 A globalização das luzes

e os delírios de extrema-direita possuem uma dimensão internacional, cuja orien-


tação foi bem descrita por Benjamin Teiltelbaum, tornou decisivo o problema da
responsabilidade dos intelectuais frente àquele que pode ser o século do fim da
democracia e do colapso climático.5 Chegamos, então, ao terceiro aspecto para o
qual desejo chamar a atenção: o do modelo de universidade gestado nas últimas
décadas. É importante se perguntar se as engenhocas produtivistas, articuladas às
velhas armadilhas do carreirismo, contribuem ou não para que estejamos à altura
de desafios tão grandes. Seríamos ainda capazes de pensar o mundo valendo-nos
de certa radicalidade?
O presente livro, pela riqueza dos temas tratados e pela consistência da
formação de seus autores, remeterá o leitor a um vasto repertório de questões e
problemas filosóficos, políticos, sociais e historiográficos. A leitura de cada uma
de suas contribuições, ao conduzir aleatoriamente do passado ao presente e do
presente ao passado, possibilitará que se entenda melhor no que consiste pensar
criticamente universos sociais atravessados pela crise.

5 TEITELBAUN, Benjamin R. Guerra pela eternidade. O retorno do Tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Trad. Campinas
(SP): Ed. Unicamp, 2020.
Introdução
Luiz Carlos Villalta, Álvaro de Araujo Antunes e Marie-Noëlle Ciccia

Este livro é a primeira publicação da Cátedra Unesco-UFMG “Territoria-


lidades e Humanidades: a Globalização das Luzes”, estabelecida na Diretoria de
Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais. A Cátedra tem
um caráter transdisciplinar, envolvendo as Ciências Humanas e Letras e, também,
outros campos do conhecimento, com interfaces com as Ciências Exatas e Natu-
rais. Tem o apoio fundamental do Programa de Pós-Graduação em História, com
recursos do Proex-Capes.
Em consonância com a natureza da Cátedra e trazendo estudos de vários
de seus membros, neste livro tem-se como objeto as Luzes, em diferentes espaços e
tempos, com destaque, porém, para o mundo luso-brasileiro. Discutem-se os fun-
damentos, expoentes e obras que marcaram as Luzes, ou, pelo contrário, os atores,
os textos, os movimentos que claramente se colocaram como seus adversários. Com
isso, por um lado, focalizam-se as revoluções e os reformismos que tiveram as Luzes
como referências. Entretanto, por outro lado, volta-se o olhar para as tradições
e as contrarrevoluções. Abordam-se, ainda, as sociabilidades das quais as Luzes
são indissociáveis, bem como as apropriações e controvérsias de que foram alvos,
12 A globalização das luzes

concedendo-se especial atenção para a educação no mundo luso-brasileiro. Por


fim, dá-se espaço para apropriações das Luzes na História (em suas correlações
com a memória) e no Teatro.
As Luzes, ou Iluminismo, grosso modo, que são a espinha dorsal da Cáte-
dra, correspondem a um movimento de pensamento e de ideias heterogêneas, no
espaço, no tempo e quanto aos temas. Definem-se por uma atitude de pensamento,
que preza a autonomia intelectual e que refuta todo e qualquer princípio que
não se justifique racional e/ou empiricamente. Essa atitude intelectual intrínse-
ca às Luzes foi muito bem sintetizada por Emmanuel Kant, quando procurou
responder à questão “o que são as Luzes” (ou, em outros termos, mais fiéis ao
título do texto em alemão, “o que é o esclarecimento?”), em 1784. Na ocasião,
ele afirmou o seguinte: as “Luzes são a saída do homem do estado de tutela do
qual ele mesmo é o responsável. O estado de tutela é a incapacidade de se servir
de seu entendimento sem a condução de outrem”.1
A autonomia intelectual do homem tem na ideia de razão um de seus pi-
lares. Conforme a Encyclopédie, por razão: “Pode-se entender simplesmente e sem
restrição a faculdade natural de que Deus proveu os homens para conhecer a
verdade, qualquer que seja a luz que ela siga e qualquer ordem de matéria que ela
aplique”.2 Acrescenta, ainda, uma outra acepção, menos inclusiva e que denota
uma perspectiva claramente sensualista de razão, que toma como fundamental a
observação, em prejuízo de atributos inatos e universais à humanidade:
Podemos entender pela razão essa mesma faculdade considerada, não absoluta-
mente, mas apenas na medida em que ela se conduz em sua pesquisa por certas
noções, que trazemos ao nascer e que são comuns a todos os homens do mundo.
Outros não admitem essas noções, entendem por luz natural a evidência de objetos
que atingem a mente e que lhe tiram o consentimento.3

Por razão, as Luzes concebem uma força, uma faculdade, pertencente a


todos os homens pensantes, de todas as épocas e culturas, que lhes permite desco-

1 KANT, Emmanuel. Vers la paix perpétuelle. Que signifie s’orienter dans la pensée? Qu’est-ce que les Lumières? Et autres textes. Traduction par
Françoise Proust et Jean-François Poirier. Paris: Flamarion, 2006, p. 43-44.
2 DIDEROT, Denis. Encyclopédie, ou,Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers: par une Société de Gens de lettres. Neufchastel:
Samuel Faulce, 1765, v. 13, p. 773.
3 Ibidem.
Introdução 13

brir e conquistar parcelas do saber. Tal força só é compreendida em ação, como
algo que se forma na medida em que se conforma e que deve ser repartido com os
semelhantes. A ideia de razão dos pensadores das Luzes tem um caráter individual
e, ao mesmo tempo, possui uma dimensão social. Não reconhece outra autoridade
que não a si mesma e comporta um duplo trabalho: primeiramente, separar os
fatos, as informações dadas pelos sentidos e as crenças encontradas nas fontes da
Revelação, da tradição e da autoridade; depois, juntar, envolvendo a construção de
uma nova estrutura, avaliada como verdadeira.4 Portanto, a razão dos ilustrados
nada tem de inato ou de apriorístico. Segundo Todorov, a razão é valorizada como
instrumento de conhecimento, não como móvel das condutas humanas; ela se opõe
à fé, mas não às paixões. Isto se coaduna com uma visão inteira de homem – tal
como ele é, não como deveria ser. Essa visão de homem conjuga corpo e espírito,
razão e paixão, sensualidade e meditação.5
Os progressos da razão são muito importantes para se compreender as
Luzes em Portugal e no Brasil, seja em sua vertente reformista e católica, aquela
ligada à Coroa e aos pensadores que inspiraram suas iniciativas e/ou que foram
por ela patrocinados, seja em sua vertente “libertina”, de Luzes mais radicais,
cujo desenvolvimento é indissociável do próprio reformismo, mas que bebe de
repertórios, posturas e elementos mais antigos do que as próprias Luzes.6 Assim,
se o reformismo ilustrado oficial busca conciliar fé e razão, fazendo um esforço no
sentido de racionalizar a compreensão e as manifestações religiosas, os libertinos
não só afrontam a religião e, sobretudo, seus ministros, como, por vezes, a ordem
social, quando não a própria monarquia.7 Com isso, alargam a racionalização do
mundo para muito além do permitido e idealizado pelas autoridades reformistas
ilustradas, sendo, por isso, perseguidos por elas.
Os textos deste livro foram dispostos numa ordem que conjugou o movimen-
to que vai do geral ao particular e, ainda, das Luzes às suas apropriações. Dessa

4 CASSIRER, Ernst. Filosofia de la ilustración. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 28 -29; e BLANCO MARTÍNEZ,
Rogelio. La ilustración en España y en Europa. Madrid: Endymion, 1999, p. 60-70.
5 TODOROV, Tzvetan. L’esprit des lumières. Paris: Robert Laffont, 2006, p. 13-14.
6 VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016, p. 15-16; e VILLALTA,
Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 502.
7 Idem, 2016, p. 44-63.
14 A globalização das luzes

maneira, primeiramente, vêm aqueles estudos cujos objetos e recortes espaciais e


temporais são de ordem mais geral, ou de cunho mais teórico. Depois, encontram-se
os textos referentes às Luzes luso-brasileiras e às suas apropriações nos campos da
História da Educação e da História dos Livros, ordenados em termos cronológicos,
espaciais e por temáticas. Por fim, estão os textos consagrados às apropriações
realizadas pela História (ou pela memória) e pelo Teatro.
Em conformidade com esses critérios, iniciando o primeiro eixo, vê-se o
ensaio de Franck Salaün, “Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes”.
Ao examinar a questão da Globalização das Luzes, o texto detém-se sobre as Luzes
como fenômeno, procurando demarcar o que lhes seria essencial e específico, e
sobre as representações de que foram objeto, entrecruzando-as com as histórias
nacionais. Assim, põe em revista aspectos como os fundamentos, a periodização, a
geografia e a historicidade do pensamento das Luzes e as disputas que as tiveram
como centro, inclusive no mundo luso-brasileiro, destacando que a globalização das
Luzes é indissociável das representações que suscitaram. O segundo texto, de Jean
Pierre Schandeler, “Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução:
como um espelho de nossa época”, versa sobre os contrarrevolucionários que se
opuseram a Condorcet durante a Revolução Francesa e, ao mesmo tempo, sobre
as interfaces observadas entre essas operações intelectuais e políticas, no contex-
to revolucionário, e aquelas identificadas na contemporaneidade. Dessa forma,
Schandeler, centrando-se em Condorcet e em seus críticos, mira em específico o elo
entre a filosofia das Luzes (universalismo, tolerância, liberdade de pensar, crítica da
religião, papel primordial da razão) e a Revolução que põe fim à monarquia abso-
luta. Ao final, discute se a corrente anti-ilustrada não seria encarnada por aqueles
que fazem um combate “à república, à democracia, ao universalismo, espontânea
e exclusivamente, se voltam para os ‘símbolos’ e os ‘valores’ a serem defendidos”.
Abrindo o segundo eixo, que compreende os estudos referentes ao mundo
luso-brasileiro, tem-se o capítulo de Alexandre Mansur Barata, “Expansionismo
maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro”. Seu ponto de partida
são as origens da maçonaria na Inglaterra e sua expansão. Em seguida, ele examina
as relações de sociabilidade que a alimentam em Portugal e no Brasil, suas regras,
seus princípios e igualmente as motivações para o pertencimento maçônico. Por
fim, aborda as investidas da maçonaria no campo educacional. Com tudo isso,
Introdução 15

avalia o aumento progressivo da capilaridade da instituição no Brasil, do século


XVIII aos inícios do século XX. Segundo o autor, “existiram muitas maçonarias”
e, ademais, a sociabilidade maçônica foi muito mais complexa do que o apresentado
pelas autoridades repressivas e pela historiografia, prisioneiras da ideia cristalizada
segundo a qual o segredo permitiu a instauração “de um espaço para o culto à
liberdade de pensamento, para a crítica ao obscurantismo de uma religião revelada”.
Depois, vem o texto de Igor Tadeu Camilo Rocha, “Notas sobre o Iluminis-
mo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade”,
que foca, sobretudo, as luzes lusófonas. Inicialmente, analisa as características
fundamentais das Luzes, em geral, em meio à sua heterogeneidade e às suas con-
tradições, seu cosmopolitismo e suas particularidades nacionais. Quanto às Luzes
lusófonas, Rocha tem em vista alcançar o nosso presente. Por isso, primeiramente,
analisa o Iluminismo católico, não só luso-brasileiro, pondo em relevo suas especi-
ficidades e o fato de algumas proposições que constituem suas raízes remontarem
ao século XVI, destacando, ademais, seus adversários: de um lado, a religiosidade
barroca, de fanatismos e de jesuitismos, e, de outro, a irreligiosidade, no limite
sinônimo do que se entendia como “libertinagem”. Aborda, ainda, o propósito
central do reformismo católico português, o de superar o atraso, colocando “um
povo atrasado” no compasso das “mais polidas nações da Europa”, apelando-se,
para tanto, para o “dirigismo cultural como projeto”, protagonizado pela Coroa e
pelos letrados de que ela se serviu. Em seguida, o autor trata dos libertinos, pondo
em evidência, assim, a vertente radical das Luzes lusófonas. Ao final, sublinha
haver, no presente, a permanência da tópica do atraso e um aprisionamento ao
dirigismo como via de sua superação, pondo em discussão a possibilidade de
buscar-se inspiração nos libertinos de outrora para construir-se um novo devir,
ecoando o universalismo de suas críticas e, ao mesmo tempo, superando a falta de
um projeto político que os marcava.
Em seguida, tem-se o capítulo de Antonio Cesar de Almeida Santos, “Livros
de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens
portugueses no contexto da Ilustração”, que tem como objeto a base epistêmica
que orientou a concepção de ensino que se quis implantar em Portugal sob o re-
formismo ilustrado pombalino, que concedeu à educação um papel central para a
realização de reformas com vistas a igualar Portugal às demais nações europeias.
16 A globalização das luzes

Para tanto, Almeida Santos centra-se na formação que se queria oferecer aos jo-
vens portugueses que, adultos, iriam servir à monarquia, sintonizando-os com os
novos tempos e com o pilar do reformismo, isto é, o regalismo. O autor identifica
a observação e a experiência, bases da investigação científica, como elementos
centrais da epistemologia advogada, vindo a serem incorporadas ao propósito de
ter no ensino universitário o espaço formador de quadros para a monarquia. Por
fim, o capítulo volta-se para os “textos sãos”, que estariam em consonância com
as novas bases epistemológicas aludidas acima e que seriam usados mormente nos
estudos menores.
Na continuidade, elegendo também a educação como campo de análise, há o
capítulo “Educação, livros e luzes: reformas ilustradas e os manuais de catecismo”,
de Thais Nívia de Lima e Fonseca, que se volta para as reformas educacionais
ilustradas portuguesas em seus entrecruzamentos com os catecismos e manuais
de civilidade. Para tanto, numa primeira parte a historiadora focaliza os textos
legais que nortearam as reformas educacionais, destacando os princípios que os
embasaram e, num segundo momento, examina os catecismos e manuais de civi-
lidade aprovados pelos órgãos censórios portugueses da época (entre 1768 e 1777,
a Real Mesa Censória e, de 1777 a 1794, a Real Mesa da Comissão Geral para a
Censura de Livros). Thais Fonseca, desse modo, identifica, em congruência com
as presenças das tópicas do “atraso” e da educação como uma das formas de sua
superação, expressões e palavras-chaves como “progressos”, “ciências”, “conheci-
mento”, “razão”, “bem comum” e “liberdade”. Em seguida, confronta-as com os
conteúdos de catecismos e manuais de civilidade publicados em Portugal, traduções
de textos estrangeiros ou obras originalmente lusitanas, entre 1774 e 1787. Por fim,
detém-se no exame do manuscrito O Cathecismo Português, ou Princípios de Filosophia de
Moral e Política para Instrução da Mocidade, de autoria não identificada.
Finalizando o segundo eixo, estão os textos de Luciano Mendes de Faria
Filho, “Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia con-
trarrevolucionária no alvorecer do Império”, e de Christianni Cardoso Morais,
“Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São
João del-Rei”. Luciano Mendes, em seu texto, na contramão de uma certa pers-
pectiva bastante consagrada na História da Educação, defende que a expansão
da escolarização verificada no Brasil do século XIX, muito mais do que exprimir
Introdução 17

um certo ideal das Luzes, de firmar o esclarecimento e autonomia dos cidadãos


por meio da educação, curvava-se ao interesse de integrá-los “à ordem cultural e
política escravista”. Por conseguinte, a educação foi utilizada pelo Estado nacio-
nal sobretudo como instrumento de “contenção do povo”. Para comprovar esta
tese, Luciano Mendes restringe seu recorte espacial e suas fontes documentais,
concentrando-se na província de Minas Gerais e em textos do jornal O Universal,
publicado em Ouro Preto entre 1825 e 1842. Em seguida, de um lado, o autor
aponta que a escola não se resignou (nem se resigna) a exercer este papel integrador,
podendo ser apropriada pelos atores históricos em sentido contrário, isto é, como
instrumento de libertação e emancipação. De outro lado, centrando-se na con-
temporaneidade, discorre sobre os movimentos que questionam “a pertinência e a
relevância social, cultural, intelectual, econômica e política da escola na formação
das novas gerações”, citando, por exemplo, no mundo, o home schooling, e no Brasil,
o Escola sem partido. Christianni Morais, por sua vez, também voltando-se para o
século XIX, aborda a Livraria de São João del-Rei, a primeira biblioteca pública
de Minas Gerais, inaugurada em 1827. A autora parte do conceito de civilização,
difundido e utilizado de maneiras distintas entre os filósofos iluministas, relacionado
ora ao sentido de mascarar a corrupção dos costumes, ora às noções de polidez
ou educação dos espíritos. A partir do caso exemplar da biblioteca e baseando-se
em documentação variada (discurso de inauguração da biblioteca, documentos da
Câmara Municipal, jornais, listas de livros e o próprio acervo da biblioteca que
sobreviveu ao tempo), busca compreender as atribuições e a circulação dos livros,
tendo identificado muitos autores ligados ao Iluminismo. Morais conclui que, no
século XIX, o estabelecimento de uma biblioteca pública e a leitura “correta” de
“bons livros” assumiam uma dimensão educativa em sentido amplo, mas restrita
a poucos. O projeto era civilizar a população branca e livre (sobretudo os homens),
para que se tornasse capaz de se submeter à ordem pública, naquele contexto em
que as elites do Brasil recém-independente buscavam constituir uma nova nação.
Já o terceiro eixo, que versa sobre as apropriações das Luzes feitas na História
e no Teatro, reúne os estudos de Álvaro de Araujo Antunes, “Quando morre um
século: ‘recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19’”; de
Andréa Lisly Gonçalves, “A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana:
Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840)”; de Luiz
18 A globalização das luzes

Carlos Villalta, “Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações


da história”; e de Marie-Noëlle Ciccia, “Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou
a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves”.
O capítulo de Álvaro Antunes trata de um manuscrito pouco conhecido,
o Testamento e Codicilo do século XVIII ou recomendações econômicas e políticas que fez o
Século XVIII a seu filho, o Século XIX. Escrito por António José Soeiro da Silva, no
ano de 1802, o Testamento é o relato em primeira pessoa de todo um século, de seus
avanços e percalços. A perspectiva da obra revela uma faceta reformista e eclética
das Luzes em Portugal, capaz de incorporar a defesa da monarquia, dos dogmas
do catolicismo, da produção agrícola, ao mesmo tempo que promove uma crítica
objetiva contra os jesuítas, as guerras e os vícios. Exaltando a prudência, a verdade,
a obediência e a razão, a escrita mescla referências ilustradas, repudiando, contudo,
autores seminais como Locke, Newton, Wolf e Leibniz. Localizada em uma zona
cinzenta da produção literária portuguesa, a obra de Soeiro da Silva apresenta a
visão moderada, de um autor praticamente desconhecido, sobre um século con-
vulsionado que, com todo cuidado, almejava o progresso humano.
Andréa Lisly aborda as relações entre o Antigo Regime e os movimentos an-
tiliberais. Toma como ponto de partida que “nem toda contestação ao liberalismo
comportou o projeto de retorno à antiga ordem”, sendo tal pressuposição válida
para as atuações dos setores populares em face do campo contrarrevolucionário.
Denominados por vezes “restauradores”, segundo Lisly, eles o foram, mas não
tanto por se aproximarem de “soluções políticas” propriamente absolutistas – o
que, em alguns casos, era, de fato, defendido. Moviam-se, ainda, pelo intuito
de “regenerar”, o que implicava o anseio de, ao propugnarem uma volta a uma
ordem passada, realizar reformas. Ao discutir movimentos e propostas de retor-
no à antiga ordem, concedendo especial atenção ao miguelismo, Lisly revisita
os conceitos de “contrarrevolução e retradicionalização”. Em seguida, discute
como os setores populares atuaram na crise do Antigo Regime nas Américas,
mais precisamente na Grã-Colômbia e no Brasil. Conclui que, se eles não se
pautaram pela defesa da volta ao Antigo Regime, não desafiaram igualmente
a ordem liberal; no caso brasileiro, em particular, associados a d. Pedro I, eles
colaboraram para a implantação de uma monarquia constitucional – enfim, não
foram contrarrevolucionários.
Introdução 19

Em seu capítulo, Luiz Villalta aborda as apropriações da História feitas pelos


revolucionários de 1817. Primeiramente, analisa as mudanças, ocorridas entre os
séculos XVIII e XIX, nas noções de história (de narrativa a curso de acontecimen-
tos) e nos regimes de historicidade (de “antigo” a “moderno”). Passa, em seguida,
a abordar a tipologia de Jörn Rüsen, partindo do pressuposto de que, no período
considerado, seriam encontrados os tipos de narrativa “tradicional”, “mestra da
vida” e “crítico”. Depois, examina as apropriações da história dos revolucionários
de 1817, sustentando, ao final, que os regimes de historicidade “antigo” e “moder-
no” e os tipos de narrativa “tradicional” e “mestra da vida” se fizeram presentes,
bem como o “crítico”, por vezes, mesclando-se uns aos outros. Tradições, vivas ou
silenciadas, foram empregadas para legitimar os propósitos dos revolucionários. A
história, seja como “narrativa exemplar ou consagradora de tradições”, seja como
transcurso dos fatos, permitia aos sujeitos históricos estabelecer analogias entre
presente e passado, e perceber que, no transcurso dos fatos, no presente, havia
“possibilidades, não propriamente fatalidades”, de tal sorte que, com isso, os usos
da história combinavam “os tipos ‘moderno’ e ‘antigo’ de experiência histórica”. A
História antiga, as revoluções do século XVIII e de inícios do século XIX (objetos
de apropriações imprecisas, vagas ou quase silenciosas, percebidas nas entreli-
nhas) e, de forma eloquente, a Restauração Pernambucana do século XVII foram
apropriadas pelos revolucionários. Das Luzes, Montesquieu talvez tenha deixado
sua sombra. Referência fundamental de Aragão e Vasconcelos – que não foi re-
volucionário, mas advogado de defesa dos 317 réus pelo delito de lesa-majestade
consubstanciado na Revolução –, na prioridade dada pelos revolucionários à Res-
tauração Pernambucana, ele poderia coadunar-se com a perspectiva aristocrática
ou, pelo contrário, referendar a República: afinal, nos fatos do século XVII, teria
se exercitado a soberania da pátria pernambucana, do mesmo modo que ela se
efetivava em 1817, quando o governo provisório, encarnação da soberania popular
e da pátria, assentava-se na igualdade jurídica, inerente à ordem constitucional.
Por fim, no último capítulo do livro, Marie-Noëlle Ciccia tem como ob-
jeto a peça ultrarromântica Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro
Alves, procurando avaliar se ela conteria traços de ideais iluministas. Partindo
das “quatro modalidades de referência a um passado histórico” encontradas na
obra de Claudia Moatti e Michèle Riot-Sarcey (o exemplo ou “modelo”; o modo
20 A globalização das luzes

genealógico, isto é, a inscrição numa tradição; “a legitimação simbólica da ação


pela instrumentalização e/ou manipulação do passado com fins de propaganda
ou desinformação”; o modo referencial, no qual “as noções de origem e gérmen
exprimem uma relação dinâmica com o passado”, que “constitui, no presente,
uma fonte de ação”), Ciccia interroga-se se, no projeto de Castro Alves, haveria
lugar para este uso referencial. Depois de analisar a estrutura dramática da peça,
a autora rastreia as referências explícitas às Luzes, concluindo que elas são poucas
e, mais, são clichês. Recorrendo à contagem rápida de certas ocorrências lexicais
relativas às Luzes, de sorte a examinar “os conceitos trabalhados por Castro Alves”,
tais como “liberdade”, “pátria”, “escravidão”, além da “noção de desgraça”, Ciccia
conclui que, “se Castro Alves não pretende reativar o pensamento iluminista, pelo
menos já o integrou como ‘referência’ no próprio pensamento”, na medida em que
se veem “noções de filosofia iluminista (liberdade, direitos humanos, pensamento,
razão)” associadas à “ultra sensibilidade romântica (o coração, a piedade, a morte…),
ou seja, ideias objetivas associadas a julgamentos de valores, considerando que o
sistema colonial (a metrópole), tal como funciona, emperra o progresso, a liberdade
dos povos”; a luta pela abolição, na verdade, constitui “o aspecto mais importante
da peça”. Em seguida, a autora mergulha na história da Conjuração Mineira tal
como ela é narrada na peça, observando que, para o dramaturgo, tratava-se de “um
verdadeiro movimento de subversão, propulsor dos ideais republicanos”; Castro
Alves desproveria “as suas personagens de valores de classe”, vindo a atribuir-lhes
“preocupações ligadas à condição das camadas populares que, na realidade, não
motivaram, na maior parte dos casos, a rebelião”. Depois, a autora volta seu olhar
para a personagem do escravo, introduzida na peça, sujeito heroico, “de porte e
conduta nobre, movido pelos mais elevados sentimentos humanos”, que entrega sua
própria vida por amor à filha e à pátria, mas cujo diálogo com Gonzaga o coloca
na posição de negro “eterno devedor do branco”, de alguma forma confirmando
o “sentimento de que, quanto mais branco, melhor”. Na última parte do capítulo,
Ciccia retoma a questão da apropriação da história por Castro Alves, concluindo
que ele se utiliza “da História (algo que já aconteceu) para dar conta de algo que
está a acontecer: o processo da luta pela abolição. Não escreve a história, mas so-
bre a história”; a história, enfim, “é um pano de fundo que sustenta um propósito
ideológico”.
Introdução 21

R eferências bibliográficas

BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. La ilustración en España y en Europa. Madrid: Endymion,


1999.

CASSIRER, Ernst. Filosofia de la ilustración. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica,


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KANT, Emmanuel. Vers la paix perpétuelle. Que signifie s’orienter dans la pensée? Qu’est-ce que les
Lumières? Et autres textes. Traduction par Françoise Proust et Jean-François Poirier. Paris:
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TODOROV, Tzvetan. L’esprit des lumières. Paris: Robert Laffont, 2006.

VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura
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______. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2016.
Prolegômenos ao estudo da
Globalização das Luzes
Franck Salaün1

A partir do começo dos anos 1980, para descrever as transformações das


sociedades humanas e seus feitos, em particular a aceleração das trocas comerciais
– o mundo aparecendo mais e mais como o território do jogo das multinacionais
–, os observadores têm progressivamente adotado o conceito de “globalização” e
o termo americano correspondente, “globalization”, que, adaptado nas diferentes
línguas, assim invadiu as ciências humanas e sociais, levando ao nascimento de
disciplinas,2 como a história global, de centros de pesquisa e de formações espe-
cializadas, notadamente no domínio das ciências políticas e das relações interna-
cionais.
Por definição, essa mudança de escala e essa abordagem holística atingem
todos os domínios, quer eles tratem dos fluxos financeiros, das regras jurídicas ou
dos problemas sanitários e ambientais – as epidemias e o aquecimento climático

1 Tradução para o português feita por Luiz Carlos Villalta.


2 STANZIANI, Alessandro. Les entrelacements du monde: histoire globale, pensée globale. Paris: CNRS, 2018.
24 A globalização das luzes

não conhecem as fronteiras. Em nossos dias, a globalização e o “pensar global”


generalizaram-se de tal sorte a ponto de conduzirem ao risco de instalar um novo
conformismo intelectual.
Ao mesmo tempo, por um estranho escape precipitado, os nacionalismos
retomam o terreno em todos os continentes. Esse duplo movimento de expansão em
escala planetária e de nacionalização afeta também as representações das Luzes.
Ademais, os defensores de abordagens globais, como antes deles os partidários de
uma inversão de perspectivas ou de uma multiplicação de pontos de vista – em
particular, os estudos pós-coloniais, subalternos e decoloniais –, visam geralmente
romper com o eurocentrismo, de que eles acusam, de bom grado, a historiografia
das Luzes de ser um dos representantes tradicionais.3 Por conseguinte, o conceito
de globalização e os métodos dos estudos globais podem nos ajudar a melhor com-
preender o fenômeno das Luzes? Em qual sentido pode-se falar de “Globalização
das Luzes”? O que, no conjunto disso que se acha “globalizado” por meio dos
intercâmbios internacionais, se relaciona à história das Luzes?
Antes de poder falar de “globalização das Luzes”, ou seja, da presença das
Luzes no mundo, mas também, se aplicável, da tendência de considerar as realidades
sociais e culturais associadas a esse movimento como um conjunto de interações
em uma escala vasta, é preciso ter a certeza dos fatos. O termo “Luzes” e seus
equivalentes nas diferentes línguas designam apenas uma e mesma realidade? Esse
fenômeno encontra-se terminado ou pode ainda ser observado? Ele é muito locali-
zado ou manifesto em um grande número de países, alcançando o mundo inteiro?

A s Luzes: mito ou realidade?

O estudo da globalização das Luzes deve começar por estabelecer a existência


de seu objeto, isto é, tanto a existência das Luzes como um movimento unificado e

3 Sobre esse último ponto, ver, principalmente, CONRAD, Sebastian. Enlightenment in global history: a historiographical criti-
que. The American Historical Review, v. 117, n. 4, p. 999-1027, oct. 2012 ; e LILTI, Antoine. L’impossible histoire globale: parcours de la
« civilization ». In: LILTI, Antoine et al. (dir.). L’expérience historiographique. Paris: EHESS, 2016, p. 181-199.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 25

a efetividade de sua globalização. A primeira questão que se coloca é a de saber se


os historiadores são capazes de definir o fenômeno das Luzes, de situá-lo no tempo
e no espaço, pois, antes de se achar em todos os lugares, ele deve ter começado em
alguma parte, num espaço cultural, numa rede, ou mesmo em muitos lugares ao
mesmo tempo. De todo modo, ele não pôde ser global desde a origem. Em outras
palavras: qual consistência esse fenômeno possui?
É verdadeiro que nossas representações do fenômeno das Luzes, quer
limitando-as ao Ocidente ou não, resultam de um processo complexo de constru-
ção cujas etapas e resultados sucessivos podem ser identificados.4 O termo alemão
Aufklärung parece ser a origem das outras denominações empregadas nas diferentes
línguas europeias – Lumières, Enlightenment, Ilustracion, Illuminismo, Luzes, Verlichting etc.
–, mas cada uma dessas denominações possui uma significação particular, ligada a
um contexto específico. Além disso, não se deve confundir o termo e o conceito. No
mundo francófono, o último parece ter precedido às traduções do termo alemão,
de outros termos ou circunlóquios, garantindo uma espécie de transição.5
Os problemas de tradução sublinhados por Jonathan C. Clark, longe de
demonstrar a inexistência das Luzes,6 confirmariam mais a necessidade para os
historiadores de se entenderem sobre um período restrito e sobre um núcleo con-
ceitual cuja realidade, na metade do século XVIII, é comprovada.
Por seu lado, o conceito de globalização apresenta a vantagem de obrigar
os pesquisadores a considerar um futuro planetário; resta saber o que isso pode
verdadeiramente significar no caso das Luzes.

4 Sobre este assunto, ver SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire:
CIEDS, 2018.
5 Sobre a história do emprego metafórico do termo "Luzes" para designar a corrente intelectual e cultural que se manifestou em meados
do século XVIII, ver, sobretudo, ROGER, Jacques. La lumière et les lumières. Cahiers de l’Association Internationale des Études Françaises,
v. 20, p. 167-177, 1968; MORTIER, Roland. Lumière et Lumières, histoire d’une image et d’une idée. In: MORTIER, Roland. Clartés
et ombres du siècle des Lumières: études sur le 18e siècle littéraire. Genève: Droz, 1969, p. 13-59; BECKER, Karin Elisabeth. Licht – [L]
lumière[s] – siècle des lumières: von der Lichtmetapher zum Epochenbegritf der Aufklärung in Frankreich. Köln: Universität zu Köln, 1994;
LÜSEBRINK, Hans-Jürgen. Lumières et ténèbres dans le discours philosophique et historiographique du XVIIIe siècle: l’exemple
de l’Histoire des deux Indes. In: SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire:
CIEDS, 2018, p. 53-60; VENTURINO, Diego. L’historiographie révolutionnaire française et les Lumières, de Paul Buchez à Albert
Sorel: suivi d’un appendice sur la genèse de l’expression « siècle des Lumières » (XVIIIe-XXe siècles). In: RICUPERATI, Giuseppe
(dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 21-83; SALAÜN, Franck. Les Lumières: une introduction. Paris:
PUF, 2011; e SALAÜN, Franck. L’objet « Lumières » : problèmes et perspectives. In: SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre
(dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018a, p. 9-23.
6 Sobre este tema, ver CLARK, Jonathan C. The Enlightenment: catégories, traductions, et objets sociaux. Lumières, n. 17-18, p.
19-39, 2011; e a resposta de FULDA, Daniel. Les Lumières ont-elles ttoma?: quelques réflexions de théorie de l’histoire et d’histoire
des concepts à l’occasion de la critique par Jonathan C. Clark de nos concepts d’époque. Lumières, n. 20, p. 151-163, 2012.
26 A globalização das luzes

Importa descartar, desde o início, uma interpretação ilusória segundo a qual


as ideias das Luzes seriam impostas sem resistências no mundo inteiro, seja no plano
teórico, seja em suas aplicações, pois não é este o caso: a globalização das Luzes não
é, de nenhum modo, a realização de um plano, nem uma odisseia da razão ou da
democracia. Tais abordagens teleológicas, contrariamente, sustentam o discurso
colonial e a justificação da dominação europeia. Numa leitura mais atenta, tais
abordagens são aquelas que os defensores dos estudos pós-coloniais e decoloniais
denunciam, corretamente, como hegemônicos e eurocêntricos. A globalização de
que nos ocupamos ressalta uma lógica bem diferente: a de uma referência que é,
em si mesma, problemática e sujeita a debate. Nesse sentido, como as apologias
e as tomadas de posição militantes, mas com objetivos distintos, mesmo opostos,
os anti-ilustrados e todas as críticas destinadas às Luzes contribuem para a sua
globalização. Isso significa que a globalização das Luzes é, antes de tudo, a propa-
gação exponencial de representações das Luzes. Entretanto, mesmo se processos
comuns existem em todas as nações, em particular a vontade de se situar num lugar
eminente na história universal, cada situação cultural é original.
Mas houve realmente algo de especial no século XVIII que justifique o
uso daquela expressão sedutora, “as Luzes”, ou trata-se mais de uma fata morgana
durável? É preciso reconhecer que, no que se refere às Luzes, as definições e deli-
mitações espaço-temporais são numerosas e contraditórias. As posições antagônicas
e fortemente midiáticas de Robert Darnton, de um lado, e de Jonathan Israel, de
outro, serão suficientes para dar uma ideia do problema. O primeiro situa as Luzes,
grosso modo, entre 1730 e o começo dos anos 1780, principalmente em Paris, com
uma intensificação em meados do século e uma fase de experimentação política
a partir de cerca de 1760.7 Para designar o período precedente e para dar espaço,
do lado das fontes diretas, a Locke, Bayle e alguns outros, ele emprega a expres-
são “pre-Enlightenment”.8 Por sua vez, Jonathan Israel desloca sensivelmente a zona
geográfica em que as Luzes emergiram e insiste sobre o período que vai de 1650 a

7 DARNTON, Robert. George Washington’s false teeth. The New York Review of Books, n. 27, p. 34-38 , mars 1997. Eu cito a tradução
francesa de Jean-François Baillon: DARNTON, Robert. Le dentier de George Washington. In: DARNTON, Robert.  Pour les Lumières:
défense, illustration, méthode. Pessac: Presses Universitaires de l’Université de Bordeaux, 2002, p. 9-29.
8 DARNTON, 2002, p. 12. O tradutor francês opta pela expressão « Lumières primitives » (Luzes primitivas), mas o termo « pré-
-Lumières » (Pré-Luzes) seria mais exato.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 27

1750, que ele estende à frente, interessando-se, em particular, nos textos do barão
de Holbach, aparecidos por volta de 1770.
Afetado por uma espécie de monomania, ele explica não só este movimento,
mas também a Revolução Francesa, pela mesma causa: a penetração duradoura
e profunda das ideias de Spinoza entre os pensadores dos séculos XVII e XVIII.
Com isso, desta maneira, ele estende sua periodização por cerca de um século e
meio, ou até mais no seu último trabalho, que é três a quatro vezes mais do que
no caso anterior. Reunindo as “Luzes precoces” (early Enlightenment) e as “Luzes
tardias” (late Enlightenment), obtém-se perto de dois séculos, o que é evidentemente
muito. Como podemos ver, o desafio é tanto historiográfico como filosófico, o que
não torna a nossa tarefa mais fácil.
Ora, no século XVIII, os pensadores, as ideias e as práticas, que nós associa-
mos hoje em dia a este período, não eram ainda nomeados “as Luzes”. Falava-se,
então, de “filósofos”, de “enciclopedistas” ou da “filosofia”. Conhece-se certamente
uma ocorrência do sintagma “as Luzes”, sob a pena de Karl Friedrich Reinhard,
no Moniteur Universel de 8 de janeiro de 1792, a propósito precisamente da tradução
do termo Aufklärung em francês, mas isso foi excepcional. A expressão se impôs
posteriormente, primeiro nas obras de filosofia, depois, após a Segunda Guerra
Mundial, entre os historiadores que a adotaram para designar um período.9 Nas
obras de filosofia, esta denominação avançou por contaminação a partir do alemão,
notadamente por meio das traduções do artigo de Kant “Was ist Aufklärung?”
(O que é o esclarecimento?), depois da Phénoménologie de l’esprit [Fenomenologia do
Espírito] de Hegel, cujo capítulo VI consagra um importante desenvolvimento ao
“Aufklärung” (Esclarecimento). Essa relativa novidade e o afastamento entre as
tradições filosóficas explica, sem dúvida, que Jean Hyppolite, autor da primeira
tradução francesa (1939-1941), tenha traduzido o termo no subtítulo (Aufklärung
ou « Les Lumières »),10 mantendo a palavra alemã no texto.11 Escolhas similares

9 VENTURINO, op. cit., p. 59-83.


10 Nota do tradutor: em francês, é comum traduzir-se o termo alemão “Aufklärung” para « Lumières », Luzes, o que não sucede
em português, em que a preferência é por « esclarecimento ».
11 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. La phénoménologie de l’esprit. Traduction de Jean Hyppolite. Paris: Aubier, 1939-1941. 2 vols.
28 A globalização das luzes

podem ser observadas na Inglaterra e na Itália, onde Enlightenment e Illuminismo se


impõem no curso do século XIX para traduzir Aufklärung.12
Reconheça-se ao menos que, desde meados do século XVIII, a existência
de um movimento foi assinalada pelos contemporâneos, que, em parte, aderiram
ao projeto que ele encarnava, havendo, em contraposição, outros, que, inversa-
mente, lançaram uma contraofensiva duradoura, como foi bem mostrado por
Zeev Sternhell, em Les Anti-Lumières [Os Anti-Luzes].13 A aparição desse fenômeno
no espaço público pode ser situada em 1750-1751, anos durante os quais surge o
Prospectus, anunciando o aparecimento do dicionário dirigido por Diderot e lan-
çando a subscrição,14 e o Discours préliminaire de l’Encyclopédie [Discurso preliminar
da Enciclopédia].15
A obra mais representativa desse clima intelectual é precisamente a
Encyclopédie [Enciclopédia], cujo fim, fornecendo um estado “racionalizado” dos
conhecimentos atuais, é contribuir para “mudar o modo comum de pensar”.16 O
sucesso da obra pressupõe um interesse e mesmo um apoio da opinião pública, que,
sabe-se, toma mais e mais consistência no curso do século na Europa.17 Todavia,
essa esperança não deve ser confundida com a ideologia do progresso que advém
de toda uma outra história.

12 Sobre essas traduções, ver, respectivamente, ROSSO, Claudio. Inventing “Illuminismo” (and “Enlightenment”): the emergence
of a word and of a concept. In: RICUPERATI, Giuseppe (dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 123-132;
e SCHMIDT, James. Inventing the Enlightenment: anti-jacobins, british hegelians, and the Oxford English Dictionary. Journal of the
History of Ideas, v. 64, n. 3, p. 421-443, 2003.
13 STERNHELL, Zeev. Les Anti-Lumières: une tradition du 18e siècle à la guerre froide. Édition revue et augmentée. Paris: Gallimard,
2010. Ver também: MASSEAU, Didier. Les ennemis des philosophes: l’antiphilosophie au temps des Lumières. Paris: Albin Michel, 2000; e
McMAHON, Darrin M. Enemies of the Enlightenment: the French Counter-Enlightenment and the making of modernity. Oxford: Oxford
University Press, 2001.
14 DIDEROT, Denis, Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, recueilli des meilleurs auteurs et particulierement des
dictionnaires anglois de Chambers, d'Harris, de Dyche, &c. Par une société de gens de lettres. Mis en ordre & publié par M. Diderot ; & quant
à la partie mathématique, par M. D'Alembert, de l'Académie Royale des Sciences de Paris & de l'Académie Royale de Berlin. […] Dix
volumes in-folio, dont deux de planches en taille-douce, proposés par souscription. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1751.
15 Sobre a importância desse momento, ver SALAÜN, Franck. Diderot et D’Alembert ont-ils inventé les Lumières? Recherches sur
Diderot et sur l’Encyclopédie, v. 52, p. 181-194, 2017.
16 DIDEROT, Denis. Encyclopédie. In: DIDEROT, Denis; ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des métiers, t. VI. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1755, p. 642.
17 Sobre essa subida e força, ver, sobretudo, BINOCHE, Bertrand; LEMAITRE, Alain Jacques (dir.). L’opinion publique dans l’Europe
des Lumières: stratégies et concepts. Paris: Armand Colin, 2013.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 29

Alguns anos mais tarde, esse período será apresentado por alguns como
um verdadeiro ponto de virada.18 Em seu Essai sur les éléments de philosophie [Ensaio
sobre os elementos de filosofia], publicado em 1759, D’Alembert propõe um balanço
particularmente revelador:
Se considerarmos, ainda que rapidamente, com olhos atentos, o meio do século em
que vivemos, os acontecimentos que nos agitam, ou pelo menos que nos ocupam,
os nossos costumes, as nossas obras e, até mesmo, as nossas conversas, é difícil
não notar que, em vários aspectos, se deu uma mudança muito notável nas nossas
ideias; uma mudança que, pela sua rapidez, parece prometer-nos uma outra ainda
maior. É, portanto, o tempo de determinar o objeto, a natureza e os limites dessa
revolução, sobre a qual a nossa posteridade conhecerá, melhor do que nós, os
inconvenientes e as vantagens.19

No que se refere ao fim ou ao declínio das Luzes, pode-se situá-lo em torno


de 1780. Com efeito, desde o fim dos anos 1770, dúvidas se manifestam quanto à
possibilidade de transformar rapidamente a sociedade por meio de uma grande
difusão dos saberes e das novas prioridades emergentes.
Em seu célebre artigo de 1784, “O que é o Esclarecimento?”, voltado para
a resposta a uma questão de circunstâncias colocada pelo pastor luterano Zöllner,
Kant fornece, por sua vez, todo um balanço dos três decênios anteriores e se
posiciona a favor da liberdade, para os letrados, de comunicar seus pensamentos.

18 Ver, principalmente, ALEMBERT, Jean le Rond d’. Éloge de Monsieur le Président de Montesquieu. In: DIDEROT, Denis;
ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, t. VIII. Paris: Briasson; David;
Le Breton; Durand, 1757. Por seu turno, Malesherbes, que argumenta a favor da "liberdade de escrever" e de publicar, nota, em 1788:
« Nous sommes dans un moment où la nation invoque les lumières de tous les citoyens sur les objets qui l’intéressent » [Nós estamos
em um momento em que a nação invoca as luzes de todos os cidadãos sobre os objetos que a interessam]. CHARTIER, Roger (éd.).
Mémoire sur la liberté de la presse. Paris: Imprimerie Nationale, 1994, p. 291.
19 Texto original em francês: « Pour peu qu’on considère avec des yeux attentifs le milieu du siècle où nous vivons, les événements qui
nous agitent, ou du moins qui nous occupent, nos mœurs, nos ouvrages, et jusqu’à nos entretiens ; il est difficile de ne pas apercevoir qu’il
s’est fait à plusieurs égards un changement bien remarquable dans nos idées ; changement qui par sa rapidité semble nous en promettre
un plus grand encore. C’est au temps à fixer l’objet, la nature et les limites de cette révolution, dont notre postérité connaîtra mieux
que nous les inconvénients et les avantages. » ALEMBERT, Jean le Rond d’. Essai sur les éléments de philosophie. In: ALEMBERT,
Jean le Rond d’. Mélanges de littérature, d’histoire et de philosophie. Nouvelle édition, revue, corrigée et augmentée très considérablement par
l’auteur. Amsterdam: Z. Chatelain et fils, 1773, t. IV, p. 3.
30 A globalização das luzes

Luzes e histórias nacionais

O desejo de localizar as Luzes produz, ele mesmo, mal-entendidos. O papel


de capital cultural da Europa exercido por Paris em meados do século XVIII não
basta para fazer das Luzes um fenômeno francês, e a expressão “Luzes francesas”
estimula a confusão. Em realidade, desde os anos 1750, o movimento é transnacio-
nal. A língua francesa certamente domina, mas encontramos várias nacionalidades
entre os partidários do movimento, e as obras, do passado ou contemporâneas,
que são mobilizadas para constituir uma espécie de “biblioteca das Luzes”, são,
elas também, de origens diversas. O caso de Dei delitti e delle pene [Dos delitos e
das penas, de Cesare Beccaria] (1764) é muito representativo do caráter coletivo
e internacional das Luzes: escrita em italiano por Beccaria, com a colaboração
de Pietro Verri, sobre a base de uma cultura europeia, a obra foi reorganizada e
traduzida por Morellet desde 1765. 20
Outras traduções, em inglês, russo, sueco, alemão etc., sucederam-se na
Europa no curso do século, e a obra marcou os homens de letras, do que são
testemunhos os periódicos da época. Sabe-se que essa obra exerceu um papel
fundamental na redefinição do direito e na afirmação do princípio dos direitos do
homem, durante as últimas décadas do século XIX e depois. Isso confirma que se
o espaço das Luzes tem por base a realidade geográfica e política da época, ele não
se confunde com as divisões nacionais. Além disso, como conta Vincenzo Ferrone,
em The Enlightenmen: History of an Idea, o movimento das Luzes beneficiou-se da es-
trutura internacional constituída, desde o século XVI, pela República das Letras.
Todavia, esse quadro não se manteve dessa forma, e um novo modelo, constitutivo
das Luzes, tomou forma, notadamente pelo aumento do número de leitores e do
desejo de transformar a sociedade a partir de dentro, manifestado pela concepção
e realização da Enciclopédia entre 1750 e 1765, tratando-se de volumes de texto (o
último volume de pranchas aparece em 1772).

20 Sobre a recepção, as traduções e o significado dessa obra fundamental, ver, principalmente, PANDOLFI, Jean. Beccaria traduit
par Morellet. Dix-huitième siècle, v. 9, p. 291-316, 1977; ABBRUGIATI, Raymond. Écriture et réécriture de Dei delitti e delle pene: le
cas Beccaria. Cahiers d’Études Romanes, n. 20, p. 33-42, 2009; AUDEGEAN, Philippe et al. (dir.). Le bonheur du plus grand nombre: Beccaria
et les Lumières. Lyon: ENS, 2017; e AUDEGEAN, Philippe; DELIA, Luigi (dir.). Le Moment Beccaria: naissance du droit pénal (1764-
1810). Oxford: Voltaire Foundation, 2018.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 31

Algo novo aconteceu entre 1750 e 1780: um ponto de referência se estabe-


leceu, nomeadamente a representação (idealizada) de uma forma de sociabilidade
fundada sobre a liberdade de pensamento, de debate, e o reconhecimento da
igual dignidade dos seres humanos. É verdade que esta representação conecta-se
a outras, em particular àquela do futuro histórico, mas a filosofia da história não
estava unificada entre os atores do movimento, nem mesmo sob a forma de uma
doutrina de progresso contínuo. Ao contrário, constata-se que, nos anos 1770,
dúvidas prevaleceram entre certos pensadores, notadamente em Diderot, de que a
Histoire des Deux Indes [História dos Estabelecimentos e do Comércio Europeus nas
duas Índias, do abade Raynal e de Diderot, publicada em 1770] é uma evidência.
A Revolução colocará antes a questão de saber se é preciso aplicar as ideias das
Luzes, quais e em que medida. Há, pois, um referente, mas ele não é, ou não é
mais, uma unanimidade entre os historiadores.
Com efeito, o que é globalizado, por meio das transferências culturais,
mais ou menos extensas, é um conjunto de conceitos, livros, na sua língua origi-
nal ou em tradução, palavras de ordem, modelos teóricos, também práticas – a
começar pelo debate de ideias –, direitos, nem sempre eficazes, mas apresentados
como universais, sem esquecer as ilusões, claro. O que circula, graças a diferentes
suportes, são, portanto, principalmente as representações, que são suscetíveis de
ser adaptadas ou atualizadas em função do contexto, mas conservando um certo
grau de generalidade, inclusive nas refutações e caricaturas. Assim, em numerosos
países, e potencialmente no mundo inteiro, as Luzes, em si mesmas, constituem
um ponto de referência fundamental nos debates.
A globalização, em questão, não supõe uma adesão uniforme, nem o perten-
cimento a um mesmo regime, voluntariamente ou não, como no caso das colônias
em relação a uma metrópole ou de país pertencente a uma área de influência,
particularmente econômica. É preciso imaginar outro tipo de globalização, o
que demanda um esforço de análise que dê conta de diversos fatores, dentre eles
a existência de representações distintas ou mesmo contraditórias. Nesse sentido, a
história dos Anti-Luzes pertence doravante à história das Luzes. Isso vale também
para as novas “Luzes”, associadas às culturas que a historiografia não coloca no
32 A globalização das luzes

coração do movimento anterior, em particular as “Luzes chinesas”.21 A globalização


das Luzes não é um processo de esclarecimento, o futuro esclarecido do mundo,
mas a presença crescente desta referência cultural nos debates e representações, do
século XVIII até hoje, versando sobre a circulação de termos, colocando de lado
as inumeráveis ocorrências.
No que concerne à circulação de termos, deixando de lado as inúmeras
ocorrências no setor editorial de desenvolvimento pessoal e sabedoria, é preciso
fazer uma distinção entre traduções ou adaptações de um termo preexistente, neste
caso “Aufklärung”, e especificações nacionais, tais como Scottish Enlightenment”
(Luzes Escocesas).
Desde o fim dos anos 1940 e de maneira mais nítida pelo menos desde
os últimos 40 anos, a reivindicação das Luzes nacionais tornou-se mais e mais
importante, como se o reconhecimento de uma tradição própria se tornasse uma
questão identitária fundamental. Mas pode-se interrogar sobre os inconvenientes
e a racionalização por analogias. Eu me limitarei a alguns exemplos, apresentados
de maneira muito esquemática. Pode-se fazer uma distinção entre os casos em que
as Luzes em questão se enquadram aproximadamente no mesmo período que o
modelo de referência e aqueles que se situam antes ou depois. Eu deixarei de lado
o caso do confucionismo, por vezes apresentado pelas autoridades chinesas como
as Luzes antes da hora. É preciso também mencionar algumas exceções, como a
Suécia, que, segundo Tore Frängsmyr, não teria sido tocada pelas Luzes,22 mas não
é seguro que os historiadores se contentem com essa visão por muito mais tempo.
Comecemos pela Inglaterra. Depois de ter convidado os pesquisadores a
reavaliar seu lugar no seio das Luzes, desde 1979, em um artigo intitulado “The
Enlightenment in England” [“As Luzes na Inglaterra”],23 Roy Porter se encorajou
a apresentar, em 2000, seu país como país das Luzes, a origem da civilização
moderna, em uma obra difundida na Inglaterra sob o título Enlightenment: Britain

21 Sobre a emergência desta reivindicação, ver, em particular, CHENG, Anne. Chine des Lumières et Lumières chinoises. Rue
Descartes, v. 84, n. 1, p. 4-10, 2015.
22 FRÄNGSMYR, Tore. Was there an Enlightenment in Sweden ?. In: FRÄNGSMYR, Tore. Les Relations culturelles et scientifiques
entre la France et la Suède au siècle des Lumières. Paris: [s.n.], 1993; e FRÄNGSMYR, Tore. À la recherche des Lumières: une perspective sué-
doise. Traduction de Jean-François et Marianne Battail. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 1999.
23 PORTER, Roy. The Enlightenment in England. In: PORTER, Roy; TEICH Mikuláš (dir.). The Enlightenment in national context.
Cambridge: Cambridge University Press, 1981, p. 1-18.
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 33

and the Creation of the Modern World [Luzes: a Grã-Bretanha e a Criação do Mundo
Moderno], e nos Estados Unidos sob o título, mais cativante, The Creation of the Modern
World: The Untold Story of the British Enlightenment [A Criação do Mundo Moderno:
A História Não-Contada das Luzes Britânicas].24
O caso da Escócia é também marcante. Como explica Nicholas Phillipson,
a reivindicação de Luzes Escocesas é muito recente. Considerando-se a difusão
do termo, ela data dos anos 1960.25 A partir daí, as obras sobre o assunto se mul-
tiplicaram. Doravante, os historiadores têm a tendência a preferir as expressões
“escola escocesa”, “Luzes na Escócia”, ou ainda “representantes escoceses das
Luzes”, “Scottish Enlightenment”, isto é, “Luzes escocesas”. Como na Inglaterra
e, em resposta ao desafio, não sem ironia, alguns autores procuram atribuir ou
conceder à Escócia o primeiro lugar na formação do mundo moderno. Esse é o
caso de Arthur Herman, num livro best-seller, intitulado How the Scots Invented the
Modern World: The True Story of How Western Europe’s Poorest Nation Created Our World &
Everything in It [Como os Escoceses inventaram o Mundo Moderno: A Verdadeira
História de como a mais pobre nação da Europa Ocidental criou nosso Mundo &
Tudo mais] (2001), reimpresso no ano seguinte com o título The Scottish Enlightenment.
The Scots’ Invention of The Modern World [As Luzes Escocesas: A Invenção Escocesa
do Mundo Moderno] (2002).26 Encontramos este fascínio pela modernidade, que
talvez tenha pouco a ver com as questões levantadas pelos pensadores do Século
das Luzes. Observa-se também certa tendência editorial a aproveitar-se da sedução
dos termos “Luzes” e “modernidade”. É verdade que Henry Steele Commager
abriu as hostilidades, um pouco mais cedo, com The Empire of Reason: How Europe
Imagined and America Realized the Enlightenment [O Império da Razão: Como a Europa
imaginou e a América percebeu as Luzes] (1978).27

24 PORTER, Roy. Enlightenment: Britain and the creation of the modern world. London: Penguin Books, 2000a; e PORTER, Roy.
The creation of the modern world: the untold story of the British Enlightenment. New York: W.W. Norton & Co., 2000b.
25 PHILLIPSON, Nicholas. « Scottish Enlightenment ». In: CANNON, John (ed.). A dictionary of British History. 3. ed. Oxford: Oxford
University Press, 2015.
26 HERMAN, Arthur. How the scots invented the modern world: the true story of how western Europe’s poorest nation created our world
& everything in it. New York: Crown Publishing Group, 2001; e HERMAN, Arthur. The scottish Enlightenment: the scots’ invention of
the modern world. London: Fourth Estate, 2002.
27 COMMAGER, Henry Steele. The empire of reason: how Europe imagined and America realized the Enlightenment. London:
Weidenfeld & Nicolson, 1978 apud CLARK, op. cit., p. 35.
34 A globalização das luzes

O caso dos Países-Baixos segue um esquema diferente, mas também revela-


dor. Se é verdade que P. J. Buijnsters empregava já a expressão “Luzes holandesas”,28
em um artigo publicado em francês em 1972, é preciso esperar o fim dos anos 1980
para assistir a uma ofensiva em favor do reconhecimento de sua existência. Simon
Schama, especialista na história dos Países-Baixos, também registrou, significativa-
mente em 1979, durante o seminário organizado por Roy Porter: “O fato de ainda
não haver um trabalho importante, em qualquer idioma, que trate do Iluminismo
na República Holandesa sugere não apenas quão ambicioso, mas quão ambíguo,
tal empreendimento pode ser”.29 Nota-se que ele emprega a expressão “Luzes na
República neerlandesa” e não ainda aquela “Luzes neerlandesas” (Dutch Enlighten-
ment, que em holandês é Nederlandse Verlichting). Em 1998, o historiador neerlandês
Wijnand Mijnhardt, com base nas obras recentes de Margaret Jacob, de um lado,
e de Jonathan Israel, de outro, pôde denunciar, no quadro do seminário sobre “a
historiografia das Luzes”, organizado em Turin por Giuseppe Ricuperati, a su-
bestimação do papel da cultura neerlandesa na história das Luzes.30 Ele já vinha
defendendo a causa das “Luzes neerlandesas” desde 20 anos antes. 31 Em julho de
2015, na sua conferência de encerramento no Congresso da Sociedade Internacional
de Estudos do Século XVIII, intitulado, de modo sintomático, “The Swan Song
of the Dutch Enlightenment” [“A Canção de Cisne das Luzes Holandesas”],32 ele
pôde afirmar, não sem emoção e com um certo orgulho, que havia chegado o dia
do reconhecimento, tão esperado, da existência de “Luzes neerlandesas” (“Dutch
Enlightenment”) no século XVII.

28 BUIJNSTERS, Piet J. Les Lumières hollandaises. Studies on Voltaire and the Eighteenth Century, v. 87, p. 197-215, 1972. Ver também
BOTS, Hans; DE VET, Jan. Les Provinces-Unies et les Lumières. Dix-Huitième Siècle, v. 10, p. 101-122, 1978.
29 Texto original em inglês: “That there is as yet non major work in any language dealing with the Enlightenment in the Dutch
Republic suggests not only how ambitious, but how ambiguous, any such undertaking might be”. Tradução em francês pelo autor:
« Le fait qu’il n’existe pas encore, en quelque langue que ce soit, d’étude de référence sur les Lumières dans la République néerlandaise
indique non seulement la difficulté d’une telle entreprise mais aussi son extrême ambiguïté ». SCHAMA, Simon. The Enlightenment
in the Netherlands. In: PORTER, Roy; TEICH Mikuláš (dir.). The Enlightenment in national context. Cambridge: Cambridge University
Press, 1981, p. 263.
30 MIJNHARDT, Wijnand W. The construction of silence: religious and political radicalism in dutch history, 1650-present. In: RI-
CUPERATI, Giuseppe (dir.). Historiographie et usages des Lumières. Berlin: Arno Spitz, 2002, p. 85-110.
31 MIJNHARDT, Wijnand W. De nederlandse verlichting: een terreinverkenning. In: MIJNHARDT, Wijnand W. (ed.). Figuren en
figuraties: acht opstellen aangeboden aan J.C. Boogman. Groningen: Wolters-Noordhoff, 1979, p. 1-25; e MIJNHARDT, Wijnand W.
De nederlandse verlichting. In: GRIJZENHOUT, Frans (dir.). Voor vaderland en vrijheid: de revolutie van de patriotten. Amsterdam: De
Bataafsche Leeuw, 1987, p. 53-97.
32 Na tradução em francês feita pelo autor: « Le chant du cygne des Lumières néerlandaises ».
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 35

Jonathan Israel, outro especialista em história dos Países-Baixos, antes de


tornar-se o teórico das “Luzes radicais”, desempenhou um papel determinante nesse
reconhecimento, pois, se Spinoza é o pensador central das Luzes, secundado pelo
círculo de espinosistas, então os Países-Baixos são o berço das Luzes… Em troca,
Israel encontra logicamente um importante apoio entre os defensores desta tese. O
inconveniente é que, remontando assim no tempo perto de um século, ele acaba por
confundir as realidades culturais e intelectuais, todas importantes, mas bem diferentes.
A questão da existência de Luzes nacionais se coloca também a propósito de
Portugal e do Brasil. Desde quando se empregam as expressões “Luzes portugue-
sas”, “Luzes brasileiras” ou ainda “Luzes luso-brasileiras”? O que é preciso pensar?
Pombal, cujo ministério sob o reinado de d. José I se inscreve na época das Luzes,
procurou implementar os ideais, como por vezes tem sido escrito sobre sua reforma
educacional, influenciado pelas ideias de Ribeiro Sanches, ou as instrumentali-
zando, como ele alimentou largamente o mito dos jesuítas33 e procurou controlar
a imagem das colônias portuguesas na Histoire des Deux Indes [História das Duas
Índias, do abade Raynal e de Diderot]?34 Quanto ao Brasil, seria preciso aplicar o
modelo difusionista, que parece ter sido por muito tempo a tendência dominante, ou
se poderia ali distinguir uma corrente autônoma, aquela das “Luzes brasileiras”,35
desde o século XVIII ou mais tarde? Em outras palavras, seria preciso manter o
esquema centro-periferia ou metrópole-colônia, sob o risco de privilegiar o ponto
de vista do colonizador português? Os estudos recentes mostram muito bem os
inconvenientes dessa perspectiva, que distorce os dados do problema e projetam
sobre uma situação específica a dinâmica europeia e norte-americana. Por exemplo,
não é provavelmente seguro interpretar, sem nenhuma precaução, a conspiração
de Minas Gerais [de 1788 -1789] como uma tentativa de importação das Luzes.36 A

33 FRANCO, José Eduardo. O Marquês de Pombal e a Invenção do Brasil: reformas coloniais iluministas e a protogênese da nação
brasileira. Cadernos IHU Ideias, v. 13, n. 220, p. 3-30, 2015.
34 Ver FURTADO, Junia Ferreira; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Raynal and the defence of the Portuguese colonization of Brazil:
diplomacy and the Memoirs of the Visconde de Balsemão. Análise Social, v. 54, n. 230, p. 4-33, 2019; e o estudo de Marco Antônio
Silveira neste volume. Para uma abordagem mais ampla, ver LÜSEBRINK, Hans-Jürgen; TIETZ, Manfred (dir.). Lectures de Raynal:
l’histoire des deux Indes en Europe et en Amérique au 18e siècle. Oxford: Voltaire Foundation, 1991.
35 Ver a recente síntese de HAMNETT, Brian. The Enlightenment in Iberia and Ibero-America. Cardiff: University of Wales Press, 2017.
36 Sobre esse assunto, ver a obra clássica de MAXWELL, Kenneth. Conflicts and conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808. New
York: Routledge, 2004. Ver também a síntese recente de VILLALTA, Luiz Carlos. Les appropriations des Lumières par les conspi-
rateurs du Minas Gerais et de Bahia: textes, auteurs et débats au Brésil à la fin du 18 e siècle. In: SALAÜN, Franck; SCHANDELER,
Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018, p. 145-155.
36 A globalização das luzes

questão não pode se reduzir a explicar as contestações, as sublevações ou mesmo


o desejo de reforma simplesmente partindo-se do fato de que brasileiros tinham
lido as obras dos “filósofos”. É também importante para o estudo da globalização
das Luzes se interrogar sobre este hábito de pensamento que consiste em ver, em
certos eventos, efeitos dessa corrente intelectual e cultural.
A tese, defendida sobretudo por Vamireh Chacon,37 segundo a qual a di-
fusão das ideias das Luzes no Brasil, em particular por intermédio dos estudantes
brasileiros que haviam estudado em Montpellier, criou um clima intelectual pré-
-revolucionário, parece reducionista. Com efeito, parece difícil avaliar com precisão
os efeitos reais das leituras de uns e de outros. Além disso, outros discursos e causas
têm sido certamente determinantes.38 Entretanto, se as interpretações do papel das
Luzes divergem, a presença dos textos e da referência que constituem os debates
europeus e americanos, os quais são eles mesmos estruturados por uma certa re-
presentação das Luzes, é incontestável. A este respeito, há sem dúvida lugar para
descolonizar o saber, mas isso não implica necessariamente romper com as Luzes
como tal, mas com sua instrumentalização.

Descolonizar as Luzes

Longe de atenuar as tensões nacionalistas, a globalização das Luzes as


exacerbou. Veem-se, assim, as Luzes nacionais, mas também as Luzes religiosas se
multiplicarem. Parece que cada nação, cada religião tem o desejo de demonstrar que
ofereceu uma contribuição maior à modernidade, ou a uma outra modernidade. As
questões em jogo vão para muito além do campo historiográfico. É porque a ques-
tão da nacionalização das Luzes conduz a uma outra, cuja atualidade é candente,
que é aquela de saber se as Luzes se confundem com o pensamento colonial. Para

37 CHACON, Vamireh. Étudiants brésiliens à Montpellier et Révolution française. Annales Historiques de la Révolution Française, n.
282, p. 485-492, 1990. Para uma abordagem mais ampla, ver NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das; NEVES, Guilherme Pereira
das. Indépendance au Brésil et Lumières au Portugal: politique et culture dans l’espace luso-brésilien (1792-1823). Annales Historiques de
la Révolution Française, n. 365, p. 31-53, 2011.
38 VILLALTA, op. cit. (em particular p. 147-151).
Prolegômenos ao estudo da Globalização das Luzes 37

dimensionar o problema, é preciso interrogar a tese, incontestavelmente errônea


e perniciosa, segundo a qual as Luzes constituíram um momento histórico, uma
etapa necessária à modernização na história. Esta concepção da modernidade
acabou por impor a ideia de uma fase histórica pela qual cada sociedade deveria
passar para ser plenamente “civilizada”, “moderna”. Esta maneira de apresentar
as coisas explica em parte a importância do tema do “atraso”, em diferentes países,
notadamente no Irã, de acordo com Farad Khosrokhavar e Mohsen Mottaghi,39 e na
Grécia, onde a crise econômica relançou o debate.40 Os efeitos da tese do “atraso”
são sempre dramáticos, atualmente, em todo o mundo.
A tendência simétrica que consiste, agora, em definir as Luzes como a ide-
ologia do Ocidente coloca também problemas, notadamente porque os contradis-
cursos podem voltar-se contra aqueles que os disseminam, por exemplo, quando o
porta-voz de um governo, quer ele se trate do regime chinês ou do regime iraniano,
acusa aqueles que se inquietam quanto ao respeito aos direitos humanos em seu
país de sustentar um discurso eurocêntrico ou neocolonial. Isso confirma que um
dos efeitos da globalização das representações das Luzes é introduzir um termo de
comparação de geometria variável. Entretanto, a globalização das Luzes, que é uma
realidade, não é da mesma ordem que a colonização; ela não é nem semelhante à
mundialização do comércio e da sociedade de consumo. Seus principais desafios
são a representação do passado, a compreensão da modernidade e, portanto, as
referências nacionais e transnacionais essenciais para as escolhas da sociedade.
A lição é paradoxal: a abordagem global convida não a considerar as Luzes
como um fenômeno mundial e unificado, mas, pelo contrário, a distinguir um
tempo forte e processos de longa duração41 nos quais esse momento se inscreve e com
os quais ele pode contribuir para acelerar ou abrandar segundo o caso. Se se quer
fornecer uma descrição satisfatória do fenômeno das Luzes e dos seus múltiplos
efeitos, é desejável escrever uma história das suas representações desde meados do

39 KHOSROKHAVAR, Farad; MOTTAGHI, Mohsen. Les intellectuels iraniens et les Lumières. Conférence tenue à MSH-Sud,
Montpellier en 29 sept. 2017.
40 SKOULARIKI, Athena. The “Enlightenment deficit”: genealogy and transformation of cultural explanations for the greek
“backwardness”. In: AVLAMI, Chryssanthi; SALAÜN, Franck; SCHANDELER, Jean-Pierre (dir.). De l’Europe ottomane aux nations
balkaniques: les Lumières en question. Actes du colloque d’Athènes. Athènes, 23-25 mai 2018.
41 Sobre esta distinção, ver SALAÜN, Franck. Temps fort et processus: deux approches des Lumières. In: KARP, Sergueï (dir.). Qu’est-
-ce que les Lumières?: nouvelles réponses à l’ancienne question. Moscou: Naouka, 2018b, p. 9-19. (Le Siècle des Lumières, v. 6).
38 A globalização das luzes

século XVIII até os nossos dias.42 A questão que se coloca, hoje, talvez não seja
tanto libertar-nos de uma ideologia das Luzes, mas de descolonizar o projeto ilu-
minista, para lhe devolver a sua própria dinâmica – inclusive tornando visíveis suas
contradições históricas – em face das múltiplas tentativas de instrumentalização.

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Os anti-iluministas contra
Condorcet durante a Revolução:
como um espelho de nossa época?1
Jean-Pierre Schandeler

A presente contribuição não se propõe a analisar os fundamentos teóricos dos


anti-iluministas e da Contrarrevolução.2 Trata-se somente de analisar o discurso
produzido contra o pensamento de Condorcet no momento em que ele encarna,
segundo certos atores, o laço entre o movimento político e filosófico que simboliza
o século quase a acabar e a revolução que encerra a monarquia. Talvez seja possível
ouvir, nessa oposição de outrora, ecos de debates atuais.

1 Tradução para o português feita por Luiz Carlos Villalta e revisada por Marie-Noëlle Ciccia.
2 Sobre esse assunto, cf. GODECHOT, Jacques. La contre-révolution (1789-1804). Paris: PUF, 1984; MARTIN, Jean-Clément. Contre-
-Révolution, révolution et nation en France, 1789-1799. Paris: Seuil, 1998; MASSEAU, Didier. Les ennemis des philosophes: l’antiphilosophie au
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44 A globalização das luzes

Os contrarrevolucionários e Condorcet

Por quais motivos Condorcet é um dos alvos privilegiados dos contrarrevo-


lucionários? Convencido, como Turgot, de que as ciências morais e políticas devem
alcançar um grau de precisão equivalente às ciências físicas,3 o filósofo desenvolve,
em vários escritos seus, trabalhos sobre a matemática social,4 atua no programa de
reformas do ministério de Turgot e intervém nas questões econômicas e políticas.
Condorcet é também um personagem que assegura a transição entre a
geração dos “filósofos” (Voltaire, Turgot, D’Alembert, Rousseau, Diderot), todos
desaparecidos no curso das décadas de 1770 e 1780, e a Revolução de 1789. Ele
frequentou esses filósofos, entreteve um intercâmbio intelectual assíduo com al-
guns deles, mas pertenceu à geração que conheceu a Revolução Francesa. Nesta
última, o próprio Condorcet exerceu um papel de primeiro plano. Ele foi eleito,
em 1791, à Assembleia Legislativa, de que ele se tornaria o presidente e, depois,
em 1792, à Convenção nacional. Foi membro do Comitê de Instrução Pública e o
principal redator da Constituição de 1793. Teve também uma atividade importante
de jornalista.5 Decretada sua prisão em julho de 1793, por ter criticado o projeto
de Constituição jacobina, escondeu-se em Paris, onde viria a redigir o longo ma-
nuscrito inacabado do Tableau historique des progrès de l’esprit humain [Quadro histórico
do progresso do espírito humano], assim como seu prospecto, publicado em 1795 sob o
título póstumo Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain [Esboço de um
quadro histórico do progresso do espírito humano].

3 Em 1785, seu Discours préliminaire de l’Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix se abre
com as seguintes palavras: “Um grande homem [Turgot], […] estava persuadido de que as verdades das ciências morais e políticas
são suscetíveis de ter o mesmo grau de certeza que aquelas que formam o sistema das ciências físicas e, até mesmo, dos ramos dessas
ciências que, como a astronomia, parecem aproximar-se da certeza matemática. Esta opinião lhe era cara, porque ela conduz à espe-
rança consoladora de que a espécie humana fará necessariamente progressos na direção da felicidade e da perfeição, como ela fizera
quanto ao conhecimento da verdade”. CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Essai sur l’application de l’analyse
à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix. Édite par Olivier de Bernon. Paris: Fayard, 1986, p. 9. Cf. CONDORCET, Jean
Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Discours de réception à l’Académie française. In: BAKER, Keith Michael (éd.). Condorcet’s
notes for a revised edition of his reception speech to the Académie française. Studies on Voltaire, v. 169, 1977, p. 19. Ver, no mesmo
discurso, a nota F, 45; esta ideia é recorrente num grande número das obras dele a partir dos anos 1780. Cf. RASHED, Roshdi (ed.).
Condorcet. Mathématique et société. Paris: Hermann, 1974.
4 CONDORCET, 1986. Ver, igualmente, CRÉPEL, Pierre. Condorcet, la théorie des probabilités et les calculs financiers. In: RA-
SHED, Roshdi (éd.). Sciences à l’époque de la Révolution française: recherches historiques. Paris: Blanchard, 198 8 , p. 267-325; BRIAN, Éric.
La puissance ambiguë de l’œuvre scientifique de Condorcet: une question d’histoire intellectuelle. Mélanges de l’École Française de Rome,
t. 108, n. 2, p. 505-516, 1996; e ARROW, Kenneth J. Social choice and individual values. New York: John Wiley and Sons, 1951 (para uma
tradução francesa, cf. ARROW, Kenneth J. Choix collectifs et préférences individuelles. Paris: Calmann-Lévy, 1974).
5 Ver DELSAUX, Hélène. Condorcet journaliste (1790-1794). Paris: Champion, 1931.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 45

Esta última obra iria tornar-se alvo dos contrarrevolucionários, pois lhes
permitiria estabelecer um elo entre a filosofia das Luzes (universalismo, tolerância,
liberdade de pensar, crítica da religião, papel primordial da razão) e a Revolução,
que pôs fim à monarquia. A obra se apresenta como uma narrativa do progresso
realizado pelo espírito humano em todos os domínios do saber, contra as resistências
da superstição e dos charlatões.
O conceito de perfectibilidade indefinida revela as perspectivas incomensu-
ráveis em termos de criatividade, de invenção, de evolução de concepções morais e
dos costumes. O futuro é descrito como um horizonte largamente aberto: “Tudo nos
diz que nós nos aproximamos da época de uma das grandes revoluções da espécie
humana [...] O estado atual das Luzes nos garante que ela será feliz”.6
Sobre o período considerado, nenhuma interpretação de Condorcet rivaliza
com aquelas que lhe dão os contrarrevolucionários. O filósofo certamente não
aparece como o único representante das Luzes. Mas seu pensamento, que se desen-
volveu nos domínios-chaves para a concepção de uma sociedade, seu engajamento
nos eventos revolucionários, a sua sorte pessoal, tudo isso coloca em evidência os
elos entre as Luzes e a Revolução, elos que são, eles mesmos, considerados pelos
contrarrevolucionários como os frutos do fanatismo filosófico.

Contra o direito natural

Condorcet funda o objeto político sobre um direito natural irredutível às


práticas históricas ou costumeiras. Deduzir uma lei de questões empíricas, ou de
pertencimentos nacionais ou étnicos, permitiria justificar práticas contrárias ao
direito natural do homem: a pena de morte, a tortura, o ostracismo por adesão a

6 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Tableau historique des progrès de l’esprit humain. In: SCHAN-
DELER, Jean-Pierre; CRÉPEL, Pierre (eds.). Projets, prospectus, fragments, notes (1772-1795). Paris: INED, 2004, p. 243, n. 128. Sobre a
questão do otimismo ou do meliorismo, ver LOTY, Laurent. Condorcet contre l’optimisme: de la combinatoire historique au méliorisme
politique. In: CREPEL, Pierre; GILAIN, Christian (dir.). Condorcet, mathématicien, économiste, philosophe, homme politique. Paris: Minerve,
1989, p. 288-296.
46 A globalização das luzes

uma religião… As regras normativas não podem, por consequência, ser deduzidas
de leis positivas:
Não é no conhecimento positivo das leis estabelecidas pelos homens que se deve
procurar conhecer o que convém adotar, mas exclusivamente na razão pura.7

Nós queremos uma constituição cujos princípios sejam unicamente fundados sobre
os direitos naturais do homem, anteriores às instituições sociais. Nós chamamos
esses direitos naturais porque eles derivam da natureza do homem, ou seja, porque
a partir do momento em que existe um ser sensível capaz de raciocinar e de ter
ideias morais, resulta, como uma consequência evidente, que se ele deve gozar
desses direitos, que não se pode deles ser privado sem injustiça. 8

Essa posição não repousa sobre uma rejeição completa e definitiva da his-
tória, uma vez que o estudo de leis dos diversos povos em diferentes épocas é útil
“para dar à razão apoio da observação e da experiência, [...] para lhe ensinar a
prever o que pode ou que deve acontecer”.9 Condorcet considera a história mais
como um recurso teórico. A título de exemplo, no que concerne à possibilidade de
fundar uma teoria da arte social, o período grego é edificante na medida em que
ele oferece ilustração teórica de um impasse. A análise das instituições e das leis
gregas permite, com efeito, compreender como, querendo anular os efeitos negati-
vos de um mal, contrabalançando-os com outros efeitos, os gregos se privaram de
desenvolver um saber sobre a sociedade: 10

7 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Essai sur la constitution et les fonctions des assemblées provinciales
(1788). In: O’CONNOR, A. Condorcet; ARAGO, François (éds.). OEuvres de Condorcet. Paris: F. Didot, 1847a, t. 8, p. 496.
8 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Lettres d’un bourgeois de New-Haven à un citoyen de Virginie
sur l’inutilité de partager le pouvoir législatif entre plusieurs corps (1787). In: O’CONNOR, A. Condorcet; ARAGO, François (éds.).
OEuvres de Condorcet. Paris: F. Didot, 1847b, t. 9, p. 14.
9 Idem, 1847a, t. 8, p. 496.
10 Condorcet escreve: “Na política como na filosofia dos Gregos, acha-se um princípio geral que oferece somente um bem pequeno
número de exceções. Deve-se procurar menos nas leis para fazer desaparecer as causas de um mal que destruir os efeitos opondo essas
causas umas às outras, deve-se querer, das instituições, tirar partido dos preconceitos, dos vícios, mais que dissipá-los ou reprimi-los;
deve-se ocupar mais frequentemente dos meios de desnaturalizar o homem, de dar-lhe sentimentos artificiais que de aperfeiçoar, pu-
rificar as inclinações e os sentimentos que ele recebeu da natureza ; erros produzidos pelo erro mais geral de observar, como o homem
da natureza, aquele que o estado atual da sociedade lhes oferecia, em outros termos, o homem corrompido pelos preconceitos, pelos
interesses e paixões factícias e pelos hábitos sociais”. No original francês: “Dans la politique comme dans la philosophie des Grecs on
trouve un principe général qui n’offre qu’un très petit nombre d’exceptions. C’est de chercher moins dans les lois à faire disparaître les
causes d’un mal qu’à en détruire les effets opposant ces causes l’une à l’autre, c’est de vouloir dans les institutions tirer parti des préjugés,
des vices, plutôt que de les dissiper, ou les réprimer, c’est de s’occuper plus souvent des moyens de dénaturer l’homme, de lui donner
des sentiments factices que de perfectionner, d’épurer les inclinations et les sentiments qu’il a reçus de la nature ; erreurs produites par
l’erreur plus générale de regarder comme l’homme de la nature, celui que l’état actuel de la société leur offrait, c’est-à-dire l’homme
corrompu par les préjugés, par les intérêts des passions factices, et par [les] habitudes sociales”. CONDORCET, 2004, p. 290-291. Ele
não apenas evoca a Grécia Antiga e Roma, mas igualmente a Idade Média, a Inglaterra, a Itália etc. Condorcet já havia teorizado
sobre o recurso à história em o Discours préliminaire de l’Essai sur l’application de l’analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des
voix; cf. CONDORCET, 1986, p. 10-12.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 47

Essa observação é tanto mais importante, é tanto mais [necessário] desenvolver a


origem desse erro para melhor o destruir, que ele se transmitiu até nosso século e
que corrompe ainda muito frequentemente entre nós, tanto a moral como a política.
Assim, nessa época, o progresso da política dos Gregos fez dela mais uma ciência
dos fatos, uma ciência factual, e de certa forma puramente empírica, do que uma
verdadeira ciência formada sobre os princípios gerais extraídos da natureza e
reconhecidos pela razão.11

Condorcet retoma, no Tableau historique [Quadro Histórico], um desenvolvi-


mento feito anteriormente nas Lettres d’un bourgeois de New-Haven à un citoyen de Virginie
[Cartas de um burguês de New-Haven a um cidadão da Virgínia]:
Não é porque se conseguiu pôr uma máquina a andar, estabelecendo uma espécie de
equilíbrio entre forças que tendem a destruí-la, que se pode deduzir a necessidade de
submeter à ação dessas forças contrárias uma máquina que se pretende criar. Vê-se
também que os exemplos que se citam ordinariamente não provam nada. A luta
eterna dos grandes e do povo perturbou as repúblicas da Grécia e da Itália e, após
torrentes de sangue humano derramado nessas inúteis querelas, uma vergonhosa
escravidão pesou sobre os vencedores e vencidos. Mas essas querelas supunham
a existência de grandes, acostumados desde muito tempo a exercer o poder e de
um povo fatigado desse mesmo poder. Conclui-se que as antigas repúblicas não
subsistiram porque ali não se conhecia a arte de estabelecer o equilíbrio entre os
três poderes, mas se poderia concluir que elas pereceram porque não conheciam
os meios para combinar uma democracia representativa onde houvesse ao mesmo
tempo a paz e a igualdade. É, portanto, independentemente de exemplos que é
preciso raciocinar aqui...12

A experiência histórica atua em Condorcet não como historia magistra vitae,


mas como campo de experiência humana, ou seja, como uma instância de regulação
do discurso teórico que evita o risco de se perder nas obscuridades da metafísica
ou nas construções de sistemas rígidos.

11 Idem, 2004, p. 291.


12 Original em francês: “De ce que l’on est parvenu à faire aller une machine, en établissant une sorte d’équilibre entre des forces
qui tendaient à la détruire, il ne faut pas en conclure qu’il soit nécessaire de soumettre une machine qu’on veut créer à l’action de
ces forces contraires. On voit aussi que les exemples que l’on cite ordinairement ne prouvent rien. La lutte éternelle des grands et du
peuple a troublé les républiques de la Grèce et de l’Italie, et après des flots de sang humain répandus dans ces inutiles querelles, un
honteux esclavage s’est appesanti sur les vainqueurs et les vaincus. Mais ces querelles supposaient l’existence de grands, accoutumés
dès longtemps à exercer le pouvoir, et d’un peuple fatigué de ce pouvoir. On en conclut que les anciennes républiques n’ont pas subsisté
parce que l’on n’y connaissait pas l’art d’établir l’équilibre entre les trois pouvoirs; mais on pourrait en conclure qu’elles ont péri, parce
qu’elles ne connaissaient pas les moyens de combiner une démocratie représentative où il y eût à la fois de la paix et de l’égalité. C’est
donc indépendamment des exemples qu’il faut raisonner ici […]”. Idem, 1847b, t. 9, p. 84.
48 A globalização das luzes

Burke qualifica essa concepção de “direitos metafísicos”. Ela é, segundo ele,


a negação das tradições históricas no sentido de que elas devam servir de regras e
de leis. Com a Revolução de 1688, os ingleses tinham restabelecido a monarquia
no seu devido lugar e tinham assim renovado o fio da história (que Hume, aliás,
contesta),13 enquanto 1789 provocou uma ruptura brutal. A origem daquela residiria
nos princípios abstratos, a priori, tal como aquele do “direito do homem”, ao qual
Burke opõe aquele dos “direitos adquiridos”. Ele define os direitos dos ingleses
como o resultado de um processo empírico:
A Revolução [a de 1688] teve por objeto conservar nossas antigas e incontestáveis
leis e liberdades, e essa antiga constituição que é a única salvaguarda delas. […]
Nós desejamos à época da revolução, e nós desejamos ainda hoje, dever tudo o
que possuímos somente à herança de nossos ancestrais. Tomamos muito cuidado para
não enxertar neste corpo e nesta cepa herdada qualquer resíduo que não fosse da
natureza da planta original. Todas as reformas que nós temos feito até a atualidade
estiveram fundadas sobre a relação que elas tinham com a antiguidade; e eu espero,
estando mesmo persuadido, que tudo o que possa ser feito no futuro será cuidado-
samente dirigido pelas mesmas analogias, autoridades e exemplos.14

Burke encontra um eco em J. de Maistre que expressa a mesma ideia sobre


a Constituição de 1795, quando analisa “o erro de teoria que serviu de base a esta
construção e que desviou os franceses desde o primeiro momento da sua revolução”:
A Constituição de 1795, tal como as suas predecessoras, é feita para o homem. Agora,
não há nenhum homem no mundo. Vi, na minha vida, franceses, italianos, russos
etc.; sei até, graças a Montesquieu, que se pode ser persa: mas quanto ao homem, declaro
que nunca o conheci em minha vida; [...] uma constituição que é feita para todas as
nações não é feita para nenhuma: é uma pura abstração, um trabalho escolástico

13 STERNHELL, op. cit., p. 12.


14 Versão do texto de Burke em francês: “La Révolution [celle de 1688] a eu pour objet de conserver nos anciennes et incontestables
lois et libertés, et cette ancienne constitution qui est leur seule sauvegarde. […] Nous souhaitions à l’époque de la révolution, et nous
souhaitons encore aujourd’hui ne devoir tout ce que nous possédons qu’à l’héritage de nos ancêtres. Nous avons eu grand soin de ne greffer
sur ce corps et sur cette souche d’héritage aucun rejet qui ne fût point de la nature de la plante originaire. Toutes les réformes que nous
avons faites jusqu’à ce jour ont été fondées sur le rapport qu’elles avaient avec l’antiquité; et j’espère, je suis même persuadé, que tout
ce qui pourra être fait par la suite sera soigneusement dirigé d’après les mêmes analogies, les mêmes autorités et les mêmes exemples”.
BURKE, Edmund. Reflections on the revolution in France and on the proceedings in certain societies in London relative to that event. London, 1790
(citação em francês de BURKE, Edmund. Réflexions sur la révolution de France, et sur les procédés de certaines sociétés a Londres relatifs a cet
événement. Paris, 1791, p. 58-59). Acha-se essa passagem em tradução moderna para o francês em: BURKE, Edmund. Réflexions sur
la Révolution de France: suivi d'un choix de textes de Burke sur la Révolution. Traduction de Pierre Andler; presentation de Philippe
Raynaud; annotations d'Alfred Fierro et Georges Liébert. Paris: Hachette, 1989, p. 40.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 49

feito para desenvolver o espírito de acordo com uma hipótese ideal e que deve ser
dirigida ao homem, nos espaços imaginários onde ele vive.15

A nação não é uma associação livre e voluntária de indivíduos. Estes últi-


mos nascem já integrados a um corpo de regras sancionadas por uma tradição. A
sociedade é, por consequência, uma ordem natural e transcendente, que preexiste
ao homem. Para os tradicionalistas (Burke), é o efeito de uma razão imanente
do curso da história; para os teocráticos (Bonald ou de Maistre), esta ordem é de
inspiração divina.

Democracia política

A Théorie du pouvoir politique et religieux dans la société civile [Teoria do poder


político e religioso na sociedade civil] (1796),16 de Bonald, é a primeira tentativa
importante de reendereçamento doutrinal nas fileiras da aristocracia emigrada.
Bonald reúne Rousseau, Voltaire e os enciclopedistas em um só sistema revolucio-
nário, reprovando-os por haver provocado a falência do organismo social – monár-
quico e religioso–e haver constituído a sociedade como uma massa de indivíduos
ligados entre si unicamente por um “pacto”. Contra os representantes das Luzes,
ele elabora uma teoria do corpo social independente do empirismo histórico. A
Constituição (que é o plano de Deus) deve ser respeitada escrupulosamente pela so-
ciedade; a Conservação caracteriza a vida eterna e feliz de Deus; a Sociedade Civil se
define como a união indissolúvel de uma alma (a sociedade religiosa) e de um corpo
(a sociedade política). O tipo mesmo da “sociedade constituída”, a realeza, tem por
características essenciais a unidade do poder, as distinções sociais e hierárquicas
necessárias, o apego à religião cristã.

15 Texto em francês: “La Constitution de 1795, tout comme ses aînées, est faite pour l’homme. Or, il n’y a point d’homme dans le monde.
J’ai vu, dans ma vie, des Français, des Italiens, des Russes, etc...; je sais même, grâce à Montesquieu, qu’on peut être Persan: mais quant à
l’homme, je déclare ne l’avoir rencontré de ma vie; [...] une constitution qui est faite pour toutes les nations, n’est faite pour aucune: c’est
une pure abstraction, une œuvre scolastique faite pour exercer l’esprit d’après une hypothèse idéale, et qu’il faut adresser à l’homme,
dans les espaces imaginaires où il habite”. MAISTRE, Joseph de. Considérations sur la France. 2. ed. London, 1797, p. 101-102.
16 BONALD, Louis de. Observations sur un ouvrage posthume de M. de Condorcet. In: BONALD, Louis de. Théorie du pouvoir
politique et religieux dans la société civile. [S.l.]: Constance, 1796, t. 2, p. 482-520.
50 A globalização das luzes

O interesse que manifesta na concepção do corpo social explica porque


é depois da Théorie des pouvoirs [Teoria dos poderes] que ele faz Observations sur un
ouvrage posthume de M. de Condorcet [Observações sobre uma obra póstuma de M.
de Condorcet], uma obra que qualifica como “a última produção de filosofia no
processo judicial que instaurou contra a sociedade”. Essas “observações” não foram
colocadas por acaso no fim do tomo segundo. Para o essencial, elas recobrem os
temas expostos nesse volume: sociedade natural física e religiosa (livro II, capítulo
I), formação das sociedades políticas (livro II, capítulo II), desenvolvimento da so-
ciedade natural e da sociedade religiosa (livro II, capítulo III), história da religião
(livro V), relação das sociedades religiosas às sociedades políticas (livro VI). Mais
que “observações”, trata-se, de fato, de uma análise dos fundamentos filosóficos
da filosofia de Condorcet exposta no l’Esquisse d’un tableau historique des progrès de
l’esprit humain [Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano].
Bonald define a constituição social como o conjunto de leis perfeitas, ou “re-
lações necessárias” que existem entre os seres. Mais a sociedade tem constituição,
mais ele desenvolve as relações necessárias entre os seres e, como consequência,
o homem tem mais capacidade de apreender e conceber tais relações necessárias.
Sua faculdade de perceber essas relações entre os objetos constitui sua inteligência,
que lhe vem da própria sociedade, porque o homem não se aperfeiçoa a si mes-
mo, somente a sociedade que o constrói o aperfeiçoa. Se o homem físico é mais
aperfeiçoado numa sociedade política mais constituída, o homem inteligente é
mais aperfeiçoado quando a sociedade religiosa é mais constituída. O ser humano
pôde fazer grandes progressos no conhecimento da natureza exterior porque tais
progressos dependiam somente de seus sentidos ou de sua razão. Mas no caso do
conhecimento da sociedade, a ordem impôs-se no sistema de legislação primitiva,
que é diferente de suas formas realizadas na história. Assim sendo, a pesquisa das
leis sociais conduz às “relações absurdas”, na medida em que elas são a consequência
da vontade humana e não do desenvolvimento de relações necessárias.
Pretender transformar a monarquia em democracia é um caso exemplar,
pois não se pode instituir uma “poliarquia” (ou democracia) enquanto se situa a
origem e o germe das sociedades políticas na família. Isso equivaleria a introduzir
uma contradição entre o corpo social, que seria plural, e seu elemento constitutivo
(ou germe), que é um. Na monarquia, ao contrário, o corpo político é da mesma
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 51

natureza que os elementos de que ele é formado e que o germe de que ele é o
desenvolvimento.
Bonald conclui que o homem se deprava e se “desconstitui” a si mesmo que-
rendo constituir a sociedade e que a sociedade constitui o homem constituindo-se
a si mesma.17 As consequências de uma tal concepção têm uma tradução política
que Bonald exprime em sua crítica do Esquisse [Esboço]:
Não devemos esquecer de sublinhar que o filósofo, supondo que os que terão neces-
sidade de ser instruídos não se deixarão conduzir, e que os outros, que terão necessidade de ser
governados, não se abandonarão a seus governantes com uma cega confiança, estabelece,
em princípio, na sociedade, a revolta contra a autoridade, seja religiosa, seja política,
o direito de julgar seus senhores e de desobedecer a seus chefes; e, com isso, ele
constitui a anarquia, seja nas opiniões, seja nas ações exteriores.18

Moral e perfectibilidade

Um outro aspecto da crítica a Condorcet versa sobre as questões morais.


Malthus designa Condorcet como um adversário desde o título de sua célebre
obra: An essay on the principle of population, as it affects the future improvement of society,
with remarks on the speculations of Mr. Godwin, M. Condorcet, and other writers (1798) [En-
saio sobre o princípio da população, como ele afeta o futuro aprimoramento da
sociedade, com observações sobre as especulações de M. Godwin, M. Condorcet
e outros escritores].19 Também é o Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit

17 A leitura bonaldiana do Esquisse [Esboço] é das mais fundamentais, pois, inscrevendo-se num vazio teórico deixado pelos ideólogos,
ela restitui toda sua espessura à obra. Para ele, o Esquisse [Esboço] é exemplar, exemplar porque revela a natureza radical do confronto
entre duas concepções: “Se eu tivesse defendido a religião e a monarquia, estas duas bases da felicidade da raça humana, com tanto
talento como M. de Condorcet emprega na sua luta, talvez se pudesse com alguma razão, lendo o seu trabalho e o meu, dizer que o
caso está suficientemente instruído, e que está num estado a ser julgado”. No original em francês: “Si j’eusse défendu la religion et la
monarchie, ces deux bases du bonheur de l’espèce humaine, avec autant de talent que M. de Condorcet en emploie à les combattre, on
pourrait avec quelque raison peut-être, en lisant son ouvrage et le mien, dire que l’affaire est suffisamment instruite, et qu’elle est en
état d’être jugée”. BONALD, op. cit., p. 485.
18 No original, em francês: “Il ne faut pas oublier de remarquer que le philosophe, en supposant que les uns qui auront besoin d’être
instruits ne se laisseront pas conduire, et que les autres, qui auront besoin d’être gouvernés, ne s’abandonneront pas à leurs gouvernants avec une
aveugle confiance, établit en principe, dans la société, la révolte contre l’autorité soit religieuse, soit politique, le droit de juger ses maîtres,
et de désobéir à ses chefs; et par là il constitue l’anarchie, soit dans les opinions, soit dans les actions extérieures”. Ibidem, p. 467.
19 MALTHUS, Thomas Robert. An essay on the principle of population: as it affects the future improvement of society, with remarks on
the speculations of M. Godwin, M. Condorcet, and other writers. London: J. Johnson, 1798. 2 vols.
52 A globalização das luzes

humain [Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano] que é


questionado.
Para lidar com as desigualdades produzidas pela divisão do trabalho e
produção de meios de subsistência, Condorcet propunha estabelecer um sistema
de crédito que não seria reservado às classes mais ricas, bem como um fundo de
assistência às viúvas, aos órfãos e aos idosos. Tais proposições lhe valeram, no
século XIX, a admiração dos socialistas.20 Mas Malthus rejeita essa política sob a
alegação de que os “preguiçosos e os negligentes” não podem gozar das mesmas
atenções e da mesma segurança que os “homens laboriosos e vigilantes”. Ele estima
que um tal dispositivo eliminaria o medo da pobreza, e não só introduziria um
desequilíbrio na prosperidade do Estado, mas também proporcionaria um meio
de subsistência para aqueles que o não têm, e assim protegeria a nova geração dos
males engendrados pela pobreza. Um dos resultados seria um crescimento rápido
da população.21
Entretanto, no Esquisse [Esboço], a questão demográfica é também abordada
sob a perspectiva da procriação. Condorcet especula a partir de um mundo que seria
emancipado de todas as formas de preconceitos e superstições e no qual a igualdade
dos direitos do Homem seria real. Sendo tais condições admitidas, ele formula a
hipótese de que os homens saberão que “se eles têm obrigações aos olhos dos seres
que não o são ainda, elas não consistem em lhes dar existência, mas felicidade”.22
A extensão dos direitos individuais, continua Condorcet, permanece ainda mal
explorada e não se tem fixado com exatidão os limites desses direitos, notadamente
“os dos indivíduos, das reuniões espontâneas no caso de uma formação livre e pri-

20 Um fragmento do texto (“a igualdade de fato, o objetivo final da arte social”) serve de epígrafe ao Manifeste des Égaux [Manifesto
dos Iguais] (1796), de Gracchus Babeuf, publicado em 1828 por Buonarroti. Jean Reynaud, na l’Encyclopédie nouvelle [Enciclopédia
Nova], retoma as proposições programáticas do último capítulo do l’Esquisse [Esboço]. Um pouco mais tarde, Jean Jaurès, fundador do
jornal L’Humanité [A Humanidade], verá nele um dos predecessores do socialismo: “Entre os meios múltiplos de reduzir a desigualdade
que Condorcet indica, ele insiste no vasto sistema de seguridade universal e social. A mutualidade, não estreita, não fragmentária,
não superficial, mas estendida a todos os indivíduos contra os riscos, inclusive aquele que resulta na ausência de capital, portanto, a
mutualidade mais próxima disso que nós chamamos hoje de socialismo, eis o que entrevê, o que propõe o grande espírito de Con-
dorcet”. No original francês: “Parmi les moyens multiples de réduire l’inégalité qu’indique Condorcet, il insiste sur un vaste système
d’assurance universelle et sociale. La mutualité, non pas étroite, non pas fragmentaire, non pas superficielle, mais étendue à tous les
individus contre tous les risques, y compris celui qui résulte de l’absence de capital, donc la mutualité la plus voisine possible de ce que
nous appelons aujourd’hui socialisme, voilà ce qu’entrevoit, ce que propose le grand esprit de Condorcet”. JAURÈS, Jean. Histoire
socialiste de la révolution française (1901-1908). Édition revue et annotée par Albert Soboul. Paris: Éditions Sociales, 1969, t. 6, p. 474.
21 MALTHUS, op. cit., p. 11.
22 No original francês: “s’ils ont des obligations à l’égard des êtres qui ne sont pas encore, elles ne consistent pas à leur donner l’existence
mais le bonheur”. CONDORCET, 2004, p. 445.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 53

mitiva, ou de uma separação tornada necessária”.23 Trata-se, aqui, de uma linha


de raciocínio mal esboçada no Esquisse [Esboço], mas que Condorcet desenvolve
num manuscrito do qual Malthus não teve conhecimento:
Efeitos sobre o estado moral e político da espécie humana oriundos de algumas
descobertas físicas, como do meio de produzir, com uma certa probabilidade, crian-
ças, do sexo masculino ou feminino, à escolha de cada um, de produzir crianças
sem a união da mãe com nenhum homem etc., o que pode resultar para ou contra
o aperfeiçoamento contínuo da espécie.24

Esse texto avalia os riscos de um controle de nascimentos, os efeitos pos-


síveis de uma determinação de sexo das crianças a nascer, assim como os efeitos
de um modo de produção sem união sexual. Malthus evoca as práticas contra a
natureza, que são uma renúncia à virtude e à pureza dos costumes, uma “espécie
de concubinato ou mistura de sexos livre de desconfortos”.25
Outro ponto essencial em relação ao qual Malthus se opõe a Condorcet é a
perfectibilidade orgânica do homem no domínio das capacidades intelectuais ou
físicas. Se certas experiências tendem a provar a possibilidade de um melhoramento
manifesto nas plantas e nos animais, é impossível inferir uma teoria do progresso
ilimitado no homem.26 Sustentar esta hipótese, contra toda experiência, representa
considerar que as leis da natureza são inconstantes e caprichosas e que é, portanto,
ilusório conhecê-las. Esta discussão leva a outras considerações que visam à teoria
do motivo de crer,27 longamente elaborada por Condorcet e sucintamente referida
no Esquisse [Esboço]:
A constância das leis da natureza e da relação dos efeitos às causas é o fundamento
de todos os conhecimentos humanos. Se, sem qualquer índice prévio de mudança,
nós podemos afirmar que uma mudança terá lugar, não há nenhuma proposta que

23 No original francês: “ceux des individus, des réunions spontanées dans le cas d’une formation libre et primitive, ou d’une séparation
devenue nécessaire”. Ibidem, p. 446.
24 No original francês: “Effets sur l’état moral et politique de l’espèce humaine de quelques découvertes physiques, comme du moyen
de produire avec une certaine probabilité des enfants mâles ou femelles, à son choix, de produire des enfants sans l’union de la mère
avec aucun homme, etc., ce qui peut en résulter pour ou contre le perfectionnement continu de l’espèce”. Ibidem, p. 923-937.
25 Na versão em francês: “espèce de concubinage ou un mélange des sexes exempt de toute gêne”. MALTHUS, op. cit., p. 12-13.
26 Ibidem, p. 17.
27 CONDORCET, 1986.
54 A globalização das luzes

não possa ser sustentada; e não temos mais o direito de negar que a lua entrará em
contato com a terra, do que afirmar o próximo nascer do sol.28

Com isso, o filósofo das Luzes é acusado de se apoiar sobre uma escolástica
que acomoda a realidade a um sistema de pensamento.
A radicalidade das leituras dos anti-ilustrados contribui para reconhecer, no
pensamento de Condorcet, sua profundidade e sua importância filosófica e política.
A partir daí, cada revolução terá o seu Burke ou Louis de Bonald para denunciar
os perigos da filosofia do Iluminismo através das teses do filósofo.29

A s respostas dos republicanos

De uma maneira geral, em face das críticas endereçadas a Condorcet, os


republicanos recuaram. Suas respostas não estão à altura da guerra ideológica que
os contrarrevolucionários conduzem no mesmo momento contra Condorcet, que
representa a seus olhos uma ligação teórica entre as Luzes e a Revolução no que
ela contém de mais trágico para eles: a execução do rei, o fim da monarquia, a luta

28 Na versão em francês: “La constance des lois de la nature et du rapport des effets aux causes est le fondement de toutes les
connaissances humaines. Si, sans aucun indice préalable de changement, nous pouvons affirmer qu’un changement aura lieu, il n’est
aucune proposition que l’on ne puisse soutenir ; et nous n’avons pas plus droit de nier que la lune va se mettre en contact avec la terre,
que d’affirmer le prochain lever de soleil”. MALTHUS, op. cit., p. 14-15.
29 Para fazer aparecer a relação de causalidade entre a Filosofia das Luzes e a Revolução (no caso, a de 1848), Saint-Beuve analisa
os fundamentos filosóficos da ação política de Condorcert. À maneira de Bonald, ele opõe, de um lado, o espírito orgânico que remete
para uma ordem de pensamento positiva, apoiando-se sobre a realidade dos fatos e cuja finalidade é somente conter o progresso na
ordem, e, de outro lado, “o espírito de sistema” fundado sobre um conjunto de ideias consideradas na sua coerência mais do que em sua
verdade. Depois da Comuna de Paris (1817), sua filosofia da história foi condenada por Edme Caro, titular da cátedra de filosofia geral
na Sorbonne. Todo o começo de seu artigo, que versa sobre o progresso social, mostra retomar as concepções de Condorcet. Ele até faz
uma comparação da filosofia com Schopenhauer. Mas quando Caro deixa o mundo das ideias e volta à história concreta, Condorcet
torna-se imediatamente o modelo dos comunardes: “[O (Esboço) é] o evangelho de toda uma escola que inspira ainda e que se pode
chamar pelo nome de que ela se glorifica ela mesma, a escola revolucionária, quero dizer aquela que proclama a Revolução como
uma instituição permanente [...]. Ela refez, ela refaz todos os dias, o livro de Condorcet, ajuntado-lhe um capítulo sobre a revolução
[...]. Suas disciplinas repetem a lição do mestre acrescentando-lhe alguns pontos de vista novos, algumas percepções recentes tiradas
das ciências positivas [...] Eles tomaram ao mestre não apenas o gosto da hipérbole e da declamação, sua intolerância, sua prodigiosa
desinteligência da história, mas também sua doutrina filosófica: o desenvolvimento ilimitado do progresso no tempo e na natureza
do homem”. No original em francês: “[L’Esquisse est] l’évangile de toute une école qui s’en inspire encore et que l’on peut bien appeler
du nom dont elle se glorifie elle-même, l’école révolutionnaire, j’entends celle qui proclame la Révolution comme une institution en
permanence […]. Elle a refait, elle refait tous les jours le livre de Condorcet, en y ajoutant un chapitre sur la révolution […]. Ses disciples
répètent la leçon du maître en y ajoutant quelques vues nouvelles, quelques aperçus récents tirés des sciences positives […]. Ils ont pris au
maître non seulement le goût de l’hyperbole et de la déclamation, son intolérance, sa prodigieuse inintelligence de l’histoire, mais aussi
sa doctrine philosophique: le développement illimité du progrès dans le temps et dans la nature de l’homme”. CARO, Edme. Le progrès
social. Revue des Deux Mondes, 15 oct. 1873, p. 757-758.
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 55

contra a religião. Do lado republicano, forma-se um vazio conceitual em torno do


pensamento e da obra de Condorcet.30 Assim, deixa-se em repouso a questão da
perfectibilidade indefinida ou o papel da matemática social nas ciências morais e
políticas. O Esquisse [Esboço] e, sobretudo, toda uma seção do pensamento e os
trabalhos de Condorcet abriram o caminho para uma arte social racional e para
uma concepção do político. Os republicanos que comentam sua obra se atêm a uma
abordagem da política como campo de lutas de interesses divergentes.
Sob a revolução e ao longo de todo o século XIX, a luta se desloca para um
outro campo de batalha, aquele do confronto dos símbolos. Ela segue duas vias.
A glória do personagem em si mesma articula-se em torno da figura socrática:
Condorcet morreu como filósofo e sábio sob os golpes da tirania. Essa figura socrá-
tica é universal, na medida em que ela conota o crime perpetuado pela instância
política. No palco simbólico, o personagem Condorcet-Sócrates torna-se a antítese
de Robespierre-vândalo (o neologismo “vandalismo” nasceu nessa época) e essa
oposição é a tradução de um conflito entre o arbitrário e a suspensão dos direitos,
de um lado, e da liberdade democrática, de outro.
Paralelamente, a última obra de Condorcet, o Esquisse [Esboço], é publicada
como título póstumo em 1795 e consagrada pela Convenção, que vota a compra
de três mil exemplares. Ela torna-se um verdadeiro best-seller uma vez que, para
o período compreendido entre 1795 e 1798, aparecem cinco edições. O texto é pu-
blicado em francês em Leipzig (1796), Milão (ano VI) e Gênova (1798). Traduções
são igualmente disponíveis em Londres (1795), Dublin (1796), Nova Iorque (1796),
Tübigen (1796), Copenhague (1797) e Filadélfia (1798), ao que é preciso acrescen-
tar uma nova edição em Baltimore (1802) e outra em Haarlem (Países-Baixos),
na mesma data. Compreendem, ao todo, dez traduções ou edições em francês no
exterior, publicadas entre 1795 e 1802. No espaço de oito anos, elas representam
15% do conjunto das publicações da obra em dois séculos.31
Este duplo dispositivo desenvolve um simbolismo forte. A curto prazo, ele
sustenta o combate contra o terror. Ele se tornará, no curso do tempo, o símbolo

30 SCHANDELER Jean-Pierre. Les interprétations de Condorcet: symboles et concepts (1794-1894). Oxford: Voltaire Foundation, 2000.
31 SCHANDELER, Jean-Pierre. La construction des Lumières par l’édition et la traduction. In: SALAÜN, Franck; SCHANDE-
LER, Jean-Pierre (dir.). Enquête sur la construction des Lumières. Ferney-Voltaire: CIEDS, 2018, p. 25-33; e SCHANDELER, Jean-Pierre.
Contemporary forms of Enlightenment mobilization: an attempt at definition. Revue de Synthèse, t. 142, n. 3-4, p. 581-622, 2021.
56 A globalização das luzes

da oposição a toda forma de tirania. Num tempo mais longo, ele permite situar
no centro do debate a questão do progresso geral da humanidade, mesmo se cer-
tos aspectos deste progresso (longevidade, perfectibilidade indefinida, evolução
da moral inerente às questões de sexo e de reprodução, definição de uma ciência
moral como instrumento desse progresso) não recolhem unanimidade. Condorcet
terminará, nos anos 1890, por povoar a memória coletiva republicana e se tornará
uma das figuras incontornáveis do seu discurso das origens.

E o espelho contemporâneo?

Mas o combate de fundo sobre as objeções levantadas pelos anti-ilustrados


não tem realmente sido sustentado. E essa corrente, que se poderia qualificar de
intelectualmente preguiçosa, não será hoje encarnada por aqueles que, assim que
consideram que se faz um ataque à república, à democracia, ao universalismo,
espontânea e exclusivamente, se voltam para os “símbolos” e os “valores” a serem
defendidos?
Ora, o discurso contemporâneo anti-ilustração, que se inscreve frequentemente
nas linhas dos Bonald e dos Burke, veste-se também de novas formas e toca em novos
objetos. O antiuniversalismo está em ação nas tendências políticas nacionalistas da
direita e da esquerda, que baseiam as suas análises numa oposição entre um “povo”
fantasioso e os seus inimigos, as elites, que são necessariamente “globalizadas” ou
“cosmopolitas” e obviamente “corruptas”; ele está igualmente de maneira massiva
nos estudos decoloniais que reintroduzem, sob a capa de um conceito sociológico, a
noção de “raça” e que agitam um relativismo cultural para atacar o que designam
como o imperialismo universalista do Ocidente, em outras palavras, das Luzes, mães
de todos os males (cientificismo, colonialismo, universalismo...). A ideia de democracia
se acha ameaçada pelos mesmos indivíduos que aprovam os regimes nacionalistas
“fortes”, de direita, de esquerda, ou bem menos identificáveis.
Do outro extremo do espectro, os identitários tradicionalistas são confron-
tados aos avanços “societais”, permitidos pelas evoluções da moral como pelos
Os anti-iluministas contra Condorcet durante a Revolução: como um espelho de nossa época? 57

progressos científicos e técnicos. Eles são sustentados pelo retorno, no debate pú-
blico, de uma moral religiosa que se encarna de maneiras diferentes na Europa,
nos Estados Unidos ou na América do Sul.
A tudo isso se conjuga a manipulação da linguagem política que se refere
ao que remete ao pesadelo orwelliano32 e que é a marca dos períodos de fortes ten-
sões. Já sob a Revolução Francesa, a expressão “contrarrevolucionário” permitia
designar os revolucionários que não partilhavam das ideias vitoriosas do momento
(alternadamente, o girondino, o proprietário, o financista, o acadêmico). As dita-
duras do século usaram esse estratagema para se manter. Mas perto de nós, o caos
semântico permite justificar o caos ideológico graças ao qual, por exemplo, um
regime nacionalista “ forte ” quase consegue fazer-se passar por uma democracia.
De tais manipulações linguísticas e ideológicas nascem os termos fantasmagóricos
como “mundialismo”, “casta”, “sistema”, “elites”, que alguns conjuram com uma
mística do “povo”, sem hesitar em recolocar em causa a legitimidade democrática.
É contra esta estratégia do caos semântica que lutava precisamente Con-
dorcet, quando ele desejava desenvolver uma linguagem do político e da ciência
social, que seria equidistante da expressão erudita e da linguagem comum, de tal
maneira que ela não criaria qualquer ambiguidade e seria compreendida por to-
dos. 33 Um dos exemplos que se pode recuperar é a definição que ele propõe para
o termo “revolucionário”:
De Revolução nós fizemos revolucionário, e este termo, no seu sentido geral, exprime
tudo o que pertence a uma revolução. Mas se criou para a nossa, para aquela que, de
um dos Estados desde muito submetido ao despotismo, fez, em poucos anos, a única
república onde a liberdade alguma vez teve como base uma completa igualdade

32 ORWELL, George. Nineteen eighty-four. London: Secker & Warburg, 1949. “La guerre c’est la paix” ; “La Liberté c’est l’esclavage” ;
“l’ignorance c’est la force”. Tradução nossa: “A guerra é a paz”; “A liberdade é a escravidão”; “a ignorância é a força”.
33 Sobre a relação entre linguagem e democracia, ver LOTY, Laurent; PIGUET, Marie-France. Histoire des mots et histoire des
sciences de l’homme: héritage séculaire et nouvelles perspectives. Revue de Synthèse, v. 128 , n. 1-2, p. 233-238 , 2007; DROIXHE, Daniel.
Condorcet: la démocratie linguistique malgré tout. In: GROSSE, Sybille; NEIS, Cordula (eds.). Langue et politique en France à l’époque des
Lumières. Frankfurt am Main: Domus Editoria Europaea, 2008; e SCHANDELER, Jean-Pierre. La langue des sciences sociales dans
le Tableau historique de Condorcet. Revue de Synthèse, t. 133, n. 3, p. 345-367, 2012.
58 A globalização das luzes

de direitos. Assim, a palavra revolucionário aplica-se apenas às revoluções que têm


a liberdade como objeto.34

Do ontem ao hoje, essa definição invalida certas apropriações do termo que


o remetem precisamente ao disparate: “revolução nacional”, “revolução religio-
sa”. Existem outras soluções além daquelas de Condorcet: sustentar o debate em
todas as frentes da racionalidade política, histórica, sociológica e linguística e não
se limitar a agitar em vão os símbolos e os princípios como as tábuas da lei? Isso
demanda dentro da Universidade a distinção necessária entre o discurso militante
e ativista e a abordagem que articula a vigilância política com a ciência dos textos.

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34 No original em francês: “De Révolution nous avons fait révolutionnaire, et ce mot, dans son sens général, exprime tout ce qui
appartient à une révolution. Mais on l’a créé pour la nôtre, pour celle qui, d’un des états soumis depuis longtemps au despotisme, a fait,
en peu d’années, la seule république où la liberté ait jamais eu pour base une entière égalité des droits. Ainsi, le mot révolutionnaire ne
s’applique qu’aux révolutions qui ont la liberté pour objet”. CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Sur le sens
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das Luzes no mundo luso -brasileiro
Alexandre Mansur Barata

Em 1796, a Inquisição de Lisboa, com base na denúncia de Manuel de Jesus,


tomou conhecimento de que, no Rio de Janeiro, nas boticas de José Luís Mendes e de
Antônio Bandeira Gouveia, se faziam assembleias nas quais se criticava e escarnecia
“da nossa Santa Religião, atrevendo-se a proferir heréticas, e atrevidas preposições
como duvidar da verdade das Escrituras Sagradas tratando-as de bagatelas, e negando
a superioridade ao Papa [...]”. Embora o pertencimento à maçonaria não tenha sido
o objeto central da diligência ordenada pelos inquisidores, havia a suspeita de que,
entre os frequentadores das boticas, alguns fossem maçons. Manuel de Jesus, que foi
o autor da denúncia, confirmou, perante o comissário do Santo Ofício, que ouvira
dizer que José de Faria Magalhães falava com admiração dos maçons: “eram bons
homens, e a melhor gente que havia”. Por sua vez, José Martiniano de Oliveira, ou-
tra testemunha, teria dito que ouviu o mesmo José de Faria dizer que “os Pedreiros
Livres eram boas gentes, e não más como nós supúnhamos, pois, vendo-se algum em
62 A globalização das luzes

necessidade os companheiros o socorriam e, por certo sinal que traziam, se conheciam


uns aos outros [...]”.1
Não se pode afirmar que todos os frequentadores das boticas de José Luís
Mendes e Antônio Bandeira de Gouveia eram maçons, mas os depoimentos apontam
para um dado significativo: a maçonaria não era um “mistério” no Rio de Janeiro,
na década de 1790. O uso de sinais de reconhecimento pelos maçons, a reputação de
ajuda mútua e de beneficência da maçonaria já eram então conhecidos deste lado do
Atlântico, tinham cruzado continentes e oceanos.
Como explicar esse expansionismo maçônico? Como essa forma associativa,
que surgiu nas Ilhas Britânicas, na virada do século XVII para o século XVIII, se
espalhou primeiro para a Europa continental e depois para o restante do mundo?
Por que o pertencimento maçônico chamou a atenção de tantas pessoas desde o
seu surgimento? Responder a essas questões não é uma tarefa fácil. Além de dar
algumas pistas no sentido de solver alguns desses questionamentos, meu objetivo é
perceber também que esse maior dinamismo da sociabilidade maçônica é uma das
faces das profundas transformações culturais e políticas que atingiram o mundo
luso-brasileiro ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Origens do associativismo maçônico

Como já dito, o associativismo maçônico, como hoje o conhecemos, teve sua


origem nas Ilhas Britânicas, na virada do século XVII para o século XVIII. Nessa
época, diversas corporações, vinculadas ao ofício de pedreiro, tiveram sua composição
social alterada com a admissão de membros da pequena nobreza, de negociantes, de
militares, os chamados “maçons aceitos”. Aos poucos, essas corporações deixaram de
lado as preocupações tipicamente ligadas ao exercício da profissão para se dedicarem

1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa, maço 38, doc. 411. A transcrição deste sumário foi publi-
cada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, precedida por um estudo crítico de David Higgs. Cf. HIGGS, David. O Santo
Ofício da Inquisição de Lisboa e a “Luciferina Assembleia” do Rio de Janeiro na década de 1790. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 162, n. 412, p. 239-384, jul./set. 2001.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 63

ao aperfeiçoamento moral e intelectual dos seus membros, a partir da adoção do sigi-


lo, da tolerância religiosa e da fraternidade universal como princípios fundamentais.
Tais mudanças ocorreram inicialmente na Escócia e na Inglaterra, mas rapidamente
se expandiram para a Europa continental e o restante do mundo, assumindo muitas
vezes características e peculiaridades locais.
Entender esse processo de expansão da sociabilidade maçônica é uma preo-
cupação relativamente recente da historiografia. Jessica Harland-Jacobs, em seu
livro Builders of Empire, ao percorrer o período entre 1717 e 1927, argumenta que,
desde o momento em que deixou as costas da Grã-Bretanha, a maçonaria foi
fundamental para a construção e coesão do Império Britânico.2 Para ela, alguns
mecanismos explicariam essa expansão. Em primeiro lugar, a maçonaria, como
instituição, desde o início, se mostrou bastante adaptável às oportunidades de
crescimento surgidas tanto na Europa quanto no resto do mundo. Exemplo
dessa adaptabilidade foi a criação, em 1732, pela Grande Loja da Irlanda, de
um certificado maçônico de viagem, uma espécie de passaporte. Tendo em
conta que muitos dos seus membros estavam em constante trânsito, deslocando-
-se por grandes distâncias, a posse de um certificado de viagem permitia que
o maçom pudesse ser recebido em uma loja maçônica em qualquer lugar em
que ele estivesse. Outro exemplo dessa adaptabilidade foi a criação das lojas
provinciais, uma espécie de representante da Grande Loja da Inglaterra, com
poderes para autorizar o funcionamento de novas lojas.
Além dessa adaptabilidade administrativa, Jessica Harland-Jacobs des-
taca a importância das chamadas lojas militares itinerantes. Quase todos os
regimentos militares britânicos possuíam ao menos uma loja maçônica. Foram
criadas aproximadamente 500 lojas militares desse tipo. Segundo ela, até
1815, as lojas militares foram os vetores principais da expansão desse tipo de
associativismo. A partir desse período, a importância das lojas militares foi
ultrapassada pelos movimentos migratórios. Entre 1815 e 1914, 22,6 milhões
de britânicos emigraram com destino aos Estados Unidos, Canadá, Austrália,
Nova Zelândia e África do Sul. Muitos desses migrantes eram maçons. Se ao

2 HARLAND-JACOBS, Jessica. Builders of Empire: freemasons and British imperialism, 1717-1927. Chapel Hill: The University of
North Caroline Press, 2007.
64 A globalização das luzes

chegarem ao lugar de destino, não encontrassem nenhuma loja maçônica em


funcionamento, eles poderiam solicitar à Grande Loja de Londres uma auto-
rização para constituir uma nova loja. Centenas de lojas foram estabelecidas
dessa maneira. Segundo ainda essa autora, o pertencimento maçônico teria
ajudado esses emigrados de inúmeras formas: dava-lhes acesso a uma rede de
ajuda mútua, que facilitava os deslocamentos; encorajava-os ao aperfeiçoamento
moral; oferecia-lhes oportunidades de lazer e conferia-lhes respeitabilidade.
Em síntese, para Harland-Jacobs, os mecanismos citados possibilitaram
à maçonaria britânica iniciar o processo de expansão, transformando-se numa
das primeiras instituições socioculturais a operar em escala global. Mas essa
expansão também só foi possível porque o surgimento do associativismo maçô-
nico coincidiu com um período notável de crescimento do Império Britânico.
A cada nova colônia incorporada ao Império, se intensificavam e aceleravam
as atividades e os intercâmbios sociais facilitados pela rede maçônica.3

Sociabilidade maçônica no mundo luso -brasileiro

No caso específico do mundo luso-brasileiro, as primeiras lojas maçôni-


cas remontam à virada dos anos 20 para os anos 30 do século XVIII e foram
fundadas por maçons britânicos. Entre 1728 e 1738, existiam em Lisboa duas
lojas maçônicas em funcionamento: a dos Hereges Mercantes, formada em sua
maioria por protestantes ingleses, e a Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia,
formada por irlandeses católicos.
O funcionamento dessas duas lojas maçônicas coincidiu com a primei-
ra condenação formal da maçonaria durante o papado de Clemente XII. Essa
condenação tornou-se conhecida em Portugal, em 28 de setembro de 1738, com
a publicação de um Edital assinado pelo inquisidor-geral, cardeal D. Nuno da

3 HARLAND-JACOBS, Jessica. Fraternidad global: masonería, imperios y globalización. Revista de Estudios Historicos de la Masoneria
Latinamericana y Caribeña, n. esp., p. 69-88, 2013.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 65

Cunha, que, além de reproduzir os termos gerais da Bula Papal, exortava a todos,
sob pena de excomunhão, que denunciassem, num prazo de 30 dias, pessoas co-
nhecidas por serem “Pedreiros Livres” ou maçons.4 Tudo leva a crer que as duas
lojas citadas cessaram suas atividades após as publicações da Bula Papal e do
Edital de Fé.
A inclusão do pertencimento maçônico no rol dos crimes sob a alçada in-
quisitorial produziu seus primeiros efeitos concretos entre os anos de 1742 e 1744,
quando foram presos e processados quatro maçons.5 Três deles – John Coustos,6
Alexandre-Jacques Mouton e João Tomás Bruslé – saíram em auto de fé público
em 21 de junho de 1744. Além das penitências espirituais, Coustos foi mandado
para as galés do rei por quatro anos. Mouton e Bruslé foram degredados para fora
do Patriarcado de Lisboa por cinco anos. Por sua vez, o quarto processado – João
Baptista Richard –, em função de sua conversão ao catolicismo, foi absolvido ad
cautelam da excomunhão em que teria incorrido.7
As perseguições da década de 1740, embora não tenham impedido a conti-
nuidade do funcionamento de lojas maçônicas em Portugal, acabaram por desace-
lerar o ritmo de sua expansão. Dessa forma, foi apenas no início da década de 1790
que o associativismo maçônico ganhou maior dinamismo com o funcionamento
de lojas em Lisboa, Coimbra e Funchal.
Em 1794, por exemplo, Antônio Bandeira Monteiro denunciou à Mesa
da Inquisição de Coimbra vários estudantes daquela universidade pelo fato de
possuírem livros considerados proibidos, de fazerem proposições heréticas e de
serem maçons.8 Disse aos inquisidores que, em conversas com Patrício Morfi, ficou
sabendo que em Coimbra existia um grande número de maçons, que se reuniam
à noite nos bosques e durante o dia na loja do chapeleiro Rosa.
Também disse que em Lisboa a bordo de Navios Ingleses estes sectários tinham
uma espécie de templo no qual tinham um altar e nele as Pessoas da SS. Trindade,

4 Este Edital de Fé (28/09/1738) encontra-se reproduzido em MARQUES, A. H. de Oliveira. História da Maçonaria em Portugal: das
origens ao triunfo. Lisboa: Presença, 1990, v. 1, p. 29-30.
5 ANTT. Inquisição de Lisboa, processos 10115, 257, 10683, 4867.
6 Cf. COUSTOS, John. The sufferings of John Coustos. London: W. Strahan, 1746.
7 DIAS, Graça; DIAS, Jose Sebastiao da Silva. Os primórdios da maçonaria em Portugal. 2. ed. Lisboa: INIC, 1986, v. 2, t. 2, p. 711-712.
8 ANTT. Inquisição de Coimbra, Promotor – Caderno 118 / 2 ª Série, Livro 410.
66 A globalização das luzes

no teto o sol pintado com algumas figuras de Geometria e me parece disse também
que tinham uma régua, uma trolha, e um compasso, e que os que queriam entrar
para a dita seita que estavam da parte de fora com um lenço nos olhos e que lhe
perguntavam depois dele ter tocada uma campainha o que queria, e ele respondia
“quero ver luz” […]. 9

Mas, da mesma forma que nas Ilhas Britânicas, um relatório do desem-


bargador do crime José Anastácio Lopes Cardoso, datado de 14 de abril de 1803,
vinculava de forma explícita esse crescimento da atividade maçônica em Portugal
às atividades dos militares portugueses. Segundo o corregedor da polícia:
[…] o que adiantou muito a Maçonaria em Portugal, e principalmente em Lisboa
foi particularmente o comércio das nossas Tropas no Roussillon, da nossa Marinha
em Inglaterra, e na Itália; e principalmente os Corpos Estrangeiros Auxiliares que
vieram a Lisboa, em que me parece se misturam as índoles das Lojas Francesas,
e Inglesas: cada Regimento tinha ao menos uma Loja, e cada uma delas fez um
grande número de Adeptos, animados pelo exemplo da Tropa da Marinha, e por
esta fascinada cegueira de imitar os Estrangeiros; [...].10

Nessas lojas maçônicas, sobretudo de Lisboa, Coimbra e Funchal, muitos


naturais da América portuguesa foram iniciados na maçonaria, como também
muitos portugueses que vieram para o Brasil. Um exemplo dessa presença foi o de
José Borges de Barros. Membro da elite baiana, Borges de Barros conseguiu fugir
para a Ilha da Madeira antes que os envolvidos na chamada Conjuração Baiana
de 1798 fossem descobertos e reprimidos. Lá acabou por se tornar grão-mestre. Ao
ser comunicado por um amigo das perseguições da Inquisição, acabou por queimar
todos os papéis e insígnias pertencentes à irmandade e por ajudar seus amigos a
embarcarem para os Estados Unidos.11
Se a presença de naturais da América portuguesa nos círculos maçônicos
do reino foi uma constante, seria quase impossível que o tipo de sociabilidade
proporcionado pelas lojas maçônicas ficasse restrito ao espaço metropolitano. Para
grande parte da historiografia brasileira, a inserção da maçonaria no espaço colonial
americano foi resultado da ação dos estudantes brasileiros, que foram estudar nas

9 ANTT. Inquisição de Coimbra, Promotor – Caderno 121 / 2 ª Série, Livro 413.


10 Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Notas, documento e Relação dos Pedreiros Livres ou Franco maçons, em
Portugal. Documentos sobre o Réu José Hipólito da Costa. Lisboa, 1802-03. Lata 21, documento 02.
11 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 16805.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 67

universidades europeias no final do século XVIII. Durante a estadia na Europa,


muitos deles tomaram conhecimento do que era a maçonaria e procuraram ser
iniciados. Ao regressarem à colônia, acabaram por incentivar novos membros a
se reunirem e fundarem algumas lojas, especialmente no Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Bahia e Pernambuco.
Essa interpretação traz consigo alguns problemas. O principal deles é que
essa forma de explicação, de tanto ser reafirmada, acabou por nublar outras tra-
jetórias de expansão da maçonaria. Refiro-me, por exemplo, ao papel exercido
pelos negociantes, militares, funcionários públicos, que aqui se estabeleceram ou
que circulavam entre as diferentes partes do Império português.
Em 1799, por exemplo, partiu de Lisboa com destino a Goa o navio Nossa
Senhora da Conceição e Santo Antônio, com 243 presos. Entre eles, estava o nego-
ciante portuense Francisco Álvaro da Silva Freire que, em 1791, havia sido preso
pelo crime de ser maçom.12 Quando chegou ao porto do Rio de Janeiro, Silva Freire
procurou entrar em contato, por meio de correspondências com seus amigos em
Lisboa, com o chanceler da Relação do Rio de Janeiro, Luiz Beltrão de Gouveia e
Almeida, e com Modesto Antônio Mayer, ouvidor de Vila Rica, recém-nomeado e
que estava por chegar ao Brasil.13 Ao tomar conhecimento da tentativa de Francisco
Álvaro da Silva Freire, o vice-rei conde de Resende determinou que se procedesse
imediata diligência. Segundo o vice-rei, Francisco Álvaro da Silva Freire era “um
refinado jacobino e pedreiro livre”, que projetava, assim que chegasse em Goa,
fugir para a Holanda ou para a França.14
De fato, Francisco Álvaro da Silva Freire esperava contar com os maçons
e com a maçonaria para o livrar de seus tormentos. Numa de suas cartas, por
exemplo, a solidariedade, encontrada tanto a bordo quanto na Fortaleza da Ilha
das Cobras, propiciada pelo pertencimento à maçonaria, aparecia de forma cifra-
da, por meio de um sinal formado por três pontos alinhados em forma triangular,
colocado depois da expressão “homens honrados”:

12 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8608.


13 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ). Vice-Reinado, caixa 491, pacotilha 1.
14 ANRJ. Correspondência dos vice-reis para a Corte. Códice 68, v. 15, 1799.
68 A globalização das luzes

Finalmente acho-me neste continente, e bem contra minha vontade. Até aqui bem
tenho passado, porque a bordo achei amigos que me procuraram um tratamento
como passageiro o mais atendido. Na Ilha das Cobras, em que me acho, tenho sido
assaz distinguido pelo Governador e seu filho, que dá toda a liberdade. A sua casa é
o meu quartel: em toda a parte acho homens honrados :. . Na Índia espero também
encontrá-los no pouco tempo que espero ali demorar-me; [...].15

O período em que Francisco Álvaro da Silva Freire esteve no Rio de Janeiro


foi justamente o momento no qual a maçonaria iniciava um processo gradativo
de maior institucionalização. No início do século XIX, diversas lojas maçônicas
começaram a funcionar: Reunião (Rio de Janeiro); Virtude e Razão (Bahia); Constância
(Rio de Janeiro); Filantropia (Rio de Janeiro); Emancipação (Rio de Janeiro); São João
de Bragança (Rio de Janeiro), Beneficência (Rio de Janeiro), Comércio e Artes (Rio de
Janeiro); Distintiva (Niterói); Regeneração (Pernambuco); Patriotismo (Pernambuco);
Restauração (Pernambuco); Pernambuco do Oriente (Pernambuco); Pernambuco do Ocidente
(Pernambuco); Virtude e Razão Restaurada (Bahia); Humanidade (Bahia); União (Bahia).

Motivações para o pertencimento maçônico

Mas quais seriam as motivações que impulsionavam a intenção de ser


iniciado na maçonaria? Essas seriam de natureza variada. As fontes inquisitoriais
consultadas revelam que a curiosidade de fazer parte de uma sociedade conside-
rada como secreta foi muito citada como uma motivação inicial. Outra motivação
também citada era que o pertencimento à maçonaria facultava ao iniciado uma
ampla rede de auxílios mútuos. Num tempo em que os meios de comunicação eram
precários, de guerras, de diferenças religiosas, em que os deslocamentos, tanto por
mar quanto por terra, eram demorados e inseguros, pertencer a uma sociedade,
que apontava para o estabelecimento de uma rede de proteção e de apoio entre
seus membros, era algo extremamente sedutor. Esse foi o caso, por exemplo, de
José Marques da Silva:

15 ANRJ. Vice-Reinado, caixa 491, pacotilha 1.


Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 69

[...] tendo feito tenção de girar pelos portos da Ásia, entregue ao negócio e tendo
ouvido dizer, que ali havia muitos Pedreiros Livres, e que estes prestavam entre
si mútuo auxilio, se tinha lembrado ser um deles em atenção aos seus interesses;
porém não se tendo verificado então o seu destino, também se não verificou a sua
recepção; e só passados seis anos, tempo em que ouviu falar com mais calor nesta
Sociedade, se resolveu a entrar nela por ímpeto de mera curiosidade; não tendo
já em vista o primeiro fim, porque já não formava tenção de sair desta Corte.16

Embora pouco referido, é importante não esquecer de um terceiro fator,


extremamente importante para a compreensão do fenômeno maçônico e das
motivações que mobilizavam alguns a ingressarem na maçonaria. Trata-se da
percepção da maçonaria como um espaço de convívio e mobilidade sociais. Não foi
outro o motivo que levou o padre João Pereira da Silva, natural da cidade do Rio
de Janeiro, e morador no Funchal, Ilha da Madeira, onde era professor régio de
Gramática Latina, a procurar ser introduzido na maçonaria. Na sua apresentação
à Mesa da Inquisição, em 1792, teria dito:
Que achando-se ele Declarante residindo na Cidade do Funchal, Ilha da Madeira,
e frequentando muitas vezes a comunicação das principais pessoas, tanto do estado
político, como do eclesiástico, da mesma Ilha, sucedera, que ouvindo por algumas
tratar da Sociedade denominada dos Pedreiros Livres, e das virtudes exercidas e
praticadas pelos seus membros, lhe sobreviesse o desejo de aprofundar o sistema,
princípio, e fim da mesma Sociedade: e que propondo-se a este objeto, onde logo
reconhecera achar-se adotada por quase todos os cavalheiros, homens literatos, e
negociantes da mesma Ilha, e vendo não poder conseguir o seu intento, sem primeiro
se alistar por membro dela, não duvidara assim praticá-lo; [...].17

Mas também havia aquela motivação mais transgressora, ou seja, o perceber


a maçonaria como uma “escola de virtudes”, de aprendizado do viver em coletivi-
dade, de espaço de circulação e debate livre de ideias. Essa identificação pode ser
constatada, por exemplo, em um manuscrito, achado pelas autoridades policiais
entre os pertences do cônego secular D. André de Morais Sarmento, quando da
vistoria realizada em sua casa, em Lisboa, pelo juiz do crime do bairro do Limoeiro,
no dia 8 de outubro de 1791, em decorrência de uma ordem da Intendência Geral

16 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8593.


17 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8613.
70 A globalização das luzes

da Polícia.18 Esse manuscrito, intitulado Explicação da maçonaria aos recém-recebidos,


como o próprio título indica, era normalmente lido pelo orador, função exercida
por D. André na loja lisboeta, nas cerimônias de recepção ou de iniciação de novos
membros da loja.19
Nessa Explicação, a maçonaria é definida como uma sociedade “de honra e
de virtude”, sendo a prática da igualdade entre os seus membros sua característica
distintiva:
Entre nós o que há mais agradável, além de contar com tantos Irmãos, quantos
Maçons, é a igualdade que se observa, e que se simboliza no Nível. Luiz XIV,
Frederico, e Ganganelli tinham entre nós o mesmo lugar que qualquer outro. À
mesa tinham a mesma obediência. Cantavam, se os mandavam, e bebiam a saúde
que se lhes propunha com a mesma alegria, sem soberania, nem distinção. Todos
somos iguais.20

Num primeiro olhar, o que nos chama a atenção é o caráter radical da


proposição, sobretudo em se tratando de uma sociedade de Antigo Regime como
a portuguesa. Logo na cerimônia de recepção, o novo membro ficava sabendo que
o princípio que orientava a sociedade, na qual ele era recebido, era o da igualdade
entre os seus membros. Em torno da mesma mesa poderiam se sentar reis e ple-
beus, onde as hierarquias tradicionais de nada valiam, e, nesse momento, outros
princípios deveriam nortear a organização da vida social.
Mas quais seriam os novos parâmetros que orientariam a construção desse
novo homem, dessa nova sociedade? A Exposição de D. André de Morais Sarmento
responde a essa questão, a partir da definição de quatro grandes obrigações que
os maçons se comprometiam a cumprir e que faziam parte, normalmente, do
juramento dos recém-iniciados. Cabia àqueles que pretendiam tornar-se maçons
o cumprimento das seguintes obrigações:

18 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8614.


19 Essa Explicação da Maçonaria aos recém-recebidos foi transcrita integralmente em MARQUES, op. cit., v. 1, p. 56-57.
20 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8614. Ao que tudo indica, os três soberanos citados por D. André são: Frederico II (1712-
1786), rei da Prússia entre 1740 e 1786; Luís XIV (1638-1715), rei da França entre 1643 e 1715; e o Papa Clemente XIV (1705-1774,
Giovanni Vincenzo Ganganelli). Dos três, apenas Frederico II é reconhecido pela historiografia como maçom, tendo sido iniciado
em 1738 em Brunswich. Quanto ao papa Clemente XIV, o Ganganelli, embora sem comprovação, há uma tradição maçônica de
considerá-lo como um maçom em função do seu ato de suprimir a Companhia de Jesus em 1773. Ver MELLOR, Alec. Dicionário da
Franco-Maçonaria e dos Franco-Maçons. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 71

E a primeira é aquela imposta a todo o homem, de conservar um coração incorrupto,


apartado dos vícios, despido das funestas paixões e ornado das virtudes que inspira
a Razão, e a Humanidade. [...] A segunda uma particular obediência, e fidelidade
ao Rei, à Pátria segundo o legítimo Poder, e Governo, a que fôreis séquitos. Esta é a
vontade, e impreterível obrigação dos Maçons, pois que ele é pela sua profissão um
Homem de Caridade, de união, e de virtude social, que sem obediência ao Poder
Soberano do Príncipe não seria mais que um rebelde, insocial, e um Cismático da
união, e da verdadeira Maçonaria, que só quer união, Caridade, paz e obediência
legítima. A terceira obrigação, é de socorrer os vossos Irmãos nas suas necessidades
Irmãos que vos forem conhecidos por um exame maduro e exato. E é por isto que
contraístes a quarta Obrigação, de não revelar o vosso segredo, que consiste nos
sinais, palavras, e toques que se vos tem ensinado: porquanto revelados eles, nos
veríamos incomodados de infinitos Irmãos, apócrifos, e necessitados, e viria uma
sociedade tão virtuosa, e útil, a desvanecer-se, e a profanar-se.21

Em síntese, esperava-se que o maçom fosse um homem virtuoso, bom súdito,


caridoso, companheiro dos amigos, discreto, que soubesse conter seus instintos e
guardar os segredos que lhe eram revelados. Para aqueles homens da virada do
século XVIII para o século XIX, o pertencimento maçônico estava intimamente
associado a uma percepção, cada vez mais ampla, quanto à necessidade de criação
de novos “espaços”, em separado, para o aprendizado daquilo que poderíamos
chamar de “educação dos sentidos”.
Essa imagem da maçonaria como “escola de virtudes” estava profundamen-
te articulada às concepções modernas, que dominavam o panorama intelectual
europeu entre os séculos XVI e XIX, a partir da identificação entre educação,
sociabilidade e civilidade. Como destacado por Thais Fonseca, pelo menos desde
a publicação da obra A civilidade pueril (1530) de Erasmo de Rotterdam, difundiu-
-se uma preocupação com a educação, compreendida para além de sua versão
escolar, como:
[...] um instrumento para a organização harmoniosa da sociedade por meio da
disseminação de valores e normas de comportamento. Ainda herdeiras das pre-
ocupações modernas acerca da construção da civilidade e da formação de um
“novo homem”, muitas proposições expressas na produção intelectual, nas leis,
nas determinações administrativas, bem como na produção de obras de caráter

21 ANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8614.


72 A globalização das luzes

pedagógico, davam ênfase às questões relacionadas à civilização e à civilidade,


alvos últimos dos processos formativos, ou seja, da educação.22

Assim, a paixão precisava ser vigiada e educada. Se assim não fosse, a paixão
acarretaria a ruína moral. Com seus rituais e cerimônias, trajes e símbolos, com a
valorização do vínculo baseado no compartilhamento de um segredo, nas práticas
do juramento, da discrição e do autocontrole, a maçonaria, de modo singular, se
compararmos com outras formas associativas modernas, forneceu, ao longo dos
séculos XVIII e XIX, um espaço de experiência para a internalização dessas novas
regras de conduta moral. Como ressalta Iara Lis Schiavinatto, seria, então, a partir
do “governo de si” que a “felicidade geral” seria alcançada. Experimentava-se uma
lógica que ia do indivíduo à sociedade e vice-versa.23
Essa percepção da maçonaria permaneceu ao longo do século XIX. Em
1839, o jornal Archivos Maçônicos, editado por Francisco Gê Acaiaba Montezuma,
publicou o discurso de um maçom francês chamado Desanlis. A publicação inten-
cionava reforçar junto ao público brasileiro a associação essencial entre maçonaria
e educação:
O estudo, meu amigo, não tem nada deste falso prestígio; tudo nele é felicidade,
e felicidade sincera, sem pesares, sem remorsos: ele compensa exuberantemente
das fadigas que causa; cada hora, cada instante tem o seu salário; ele paga sempre
em boa moeda. [...] Entreguemo-nos ao estudo das letras, das ciências e das artes,
porque nos instruem e servem ao progresso social. [...] Entreguemo-nos ao estudo
de nós mesmos, sobretudo, a fim de estarmos incessantemente acautelados contra
nossas fraquezas e os nossos erros, e de sermos sempre tolerantes, sempre sinceros,
sempre humanos, sempre justos.24

Como vimos, a utilização de uma ritualística particular dotou a maçonaria


de uma notável capacidade educativa. A leitura dos principais documentos fun-
dadores, das constituições e dos rituais revela uma constante preocupação com
a reforma moral e com a preparação dos maçons para atuarem na vida pública.
A gradativa elevação dos graus que cada maçom deveria alcançar (desde o grau

22 FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Circulação e apropriação de concepções educativas: pensamento ilustrado e manuais peda-
gógicos no mundo luso-americano colonial (séculos XVIII-XIX). Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 32, n. 3, p. 167-185, set. 2016.
23 SCHIAVINATTO, Iara Lis. Questões de poder na fundação do Brasil: o governo dos homens e de si (c. 1780-1830). In: MALERBA,
Jurandir (org.). A Independência Brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
24 Apud AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Maçonaria, anti-racismo e cidadania: uma história de lutas e debates transnacionais. São
Paulo: Annablume, 2010.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 73

aprendiz até os graus superiores) reforçava a noção de que o dever e a lealdade


seriam os pilares fundamentais da liberdade. Uma liberdade que, por sua vez, im-
plicava o cumprimento dos princípios da igualdade e a prática da beneficência. O
conteúdo esotérico, mobilizado por empréstimo de outras tradições, como a cabala,
a alquimia e a cavalaria, deveria ser comentado e estudado após a experiência
ritualística. Para esse fim, algumas reuniões, as chamadas reuniões de instrução,
eram dedicadas ao estudo da doutrina maçônica, em que a prática do debate de
ideias era experimentada.25

Da “escola de virtudes” às aulas noturnas

Mas a ação educativa maçônica não se reduzia ao mundo fechado das lojas.
No caso do Brasil, após o protagonismo político e da repressão vivenciada nos
tempos que se seguiram à Independência, a maçonaria se reorganizou no início
da década de 1830. Os maçons e a maçonaria passaram a vivenciar uma situação
de quase total visibilidade. Muitos maçons passaram a ocupar importantes cargos
públicos. As perseguições que marcaram o início da década de 1820 haviam cessado.
Os locais das reuniões maçônicas eram conhecidos e importantes figuras políticas
assumiam publicamente fazer parte de alguma loja maçônica.
Todavia, essa maior visibilidade da sociabilidade maçônica foi acompanha-
da, do ponto de vista organizacional, por uma miríade de divisões e disputas de
poder, bem como por um processo de nacionalização, com lojas maçônicas funcio-
nando em todas as províncias do Brasil e com uma expressiva capacidade de recru-
tamento de novos filiados. Se, entre 1861 e 1865, funcionavam aproximadamente
180 lojas maçônicas, este número cresceu para 244, de 1885 a 1890, e alcançou
um total de 615, entre os anos de 1901 e 1905. Características que diferenciavam
a sociabilidade maçônica das demais formas associativas existentes no Brasil.

25 ÁLVAREZ LÁZARO, Pedro. Educación esotérica de la masonería española decimonónica. Historia de la Educación, Salamanca,
v. 9, n. 9, 1990.
74 A globalização das luzes

Esse crescimento expressivo do número de lojas maçônicas foi acompanhado


também por uma ampliação da atuação dessas lojas nos campos da beneficência
e do auxílio mútuo, bem como da criação de uma rede de escolas, dirigidas tanto
às crianças quanto aos adultos. Como muitos historiadores têm demonstrado, a
sociabilidade maçônica não estava restrita ao espaço fechado das lojas maçônicas.
No Brasil, esse engajamento da maçonaria com a educação começou, a
partir de meados da década de 1860, atingindo o seu apogeu nos anos iniciais do
século XX. De certo modo, os maçons brasileiros acompanhavam as iniciativas
de maçons de diversos países. A leitura atenta da imprensa maçônica publicada no
Brasil revela o esforço dos editores em relatar as mais diversas experiências exito-
sas no campo educacional de maçons de diferentes países: Bélgica, Chile, Estados
Unidos, França, Inglaterra, Itália, Portugal, dentre outros.
Cumpre ressaltar, entretanto, que as iniciativas educacionais dos maçons
brasileiros ocorreram de forma desigual nas diferentes províncias, refletindo não
somente o grau de desenvolvimento econômico e social de cada região, mas, so-
bretudo, o nível de organização política e cultural desses maçons.
Até o presente, as pesquisas realizadas chamam a atenção para a densidade
e o pioneirismo dos maçons da província de São Paulo. Segundo Luaê Carneiro
Ribeiro, a Loja América foi pioneira na fundação, em 1869, de escolas populares. Fo-
ram criadas duas aulas, uma noturna e outra diurna. Essa iniciativa foi amplamente
noticiada pela imprensa da época, especialmente pelo Correio Paulistano.26 Embora
longa, acho importante citar a matéria completa. Ela nos permite aproximar um
pouco do universo dessas escolas. Segundo a matéria, ficamos sabendo que:
O sr. Secretario da loja maçônica América, estabelecida nesta capital, confiou-nos
os livros de matrículas das duas aulas – uma noturna e outra diurna – criadas e
mantidas pela mencionada loja, dos quais extraímos o seguinte resumo: Escola no-
turna – matricularam-se 252 alunos, a saber: livres, 217; escravos 35. São: solteiros
231; viúvos 2; casados 16; de 5 a 10 anos 36; de 10 a 20, 132; de 20 a 30, 55; de 30
a 40, 16; de 40 a 70, 13. Brasileiros 222; portugueses 18; africanos 5; alemães 3;
suíço 1; espanhol 1; italiano 1; militares 6; alfaiates 25; sapateiros 10; pedreiros 13;
carpinteiros 20; marceneiros 10; charuteiros 3; padeiros 4; confeiteiro 1; comercian-

26 RIBEIRO, Luaê Carregari Carneiro. Uma América em São Paulo: a Maçonaria e o Partido Republicano Paulista (1868 -1889). 2011.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 75

tes 4; correeiros 5; chapeleiros 4; ourives 1; carroceiros 5; caixeiros 3; marchante


1; agentes 2; cocheiros 4; ferreiros 8; barbeiro 1; canteiro 1; cozinheiros 2; oleiros
2; tipógrafo 1; pintores 3; serralheiro 1; lavradores 2; funileiro 1; criados 88; sem
ofício 21. Os indivíduos notados sob designação – sem ofício – são menores. Escola
diurna – para menores de ambos os sexos. Matricularam-se 39 alunos, sendo: do
sexo masculino, 20. Destes são escravos 2, estrangeiros 2, brasileiros 18. Do sexo
feminino 19, sendo estrangeiras 2, escrava 1, brasileiras 17. A aula noturna foi
aberta a 22 de abril do ano passado: funciona a rua municipal, casa n. 53, das 6 às
8 horas. Os escravos somente são admitidos apresentando autorização escrita de
seus senhores: e os menores com autorização dos pais, tutores, etc. A aula diurna
foi aberta a 15 de junho do mesmo ano, e funciona das 8 horas ao meio-dia. São
professores da primeira – os senhores: Antônio Jose Cardoso, Henrique Antônio
Barnabé Vicent, Vicente Rodrigues da Silva, Luiz Gonzaga Pinto da Gama. E
professora da segunda a senhora, D. Guilhermina de Santa Anna Junker. A escola
diurna funciona a rua 25 de março. Nestes estabelecimentos, além de ensino gra-
tuito, é fornecido aos alunos todo o material do ensino.27

Mesmo sem conhecermos a estrutura curricular dessas escolas, chamou-nos


a atenção a heterogeneidade etária, de nacionalidade, de gênero e de condição
social do corpo discente. A presença também de escravos se, por um lado, revela
uma preocupação com a alfabetização desse segmento social, por outro, revela
as contradições que atravessam a sociabilidade maçônica no século XIX. Como
sabemos, a Loja América se notabilizou por ser um espaço importante de divulgação
e atuação abolicionista.
O exemplo da Loja América foi seguido por diversas lojas maçônicas. Em
levantamento parcial realizado por Milena Candiá, é possível constatar iniciati-
vas educacionais desse tipo em diversas cidades do país: Corte do Rio de Janeiro;
Província de São Paulo: Sorocaba, Franca, Rio Claro, Arêas, Campinas, Amparo,
Itapetininga, Mogi-Mirim, Tatuí, Taubaté, Araraquara, Brotas, São João da Boa
Vista, Guaratinguetá, S. Carlos Pinhal, São Paulo; Província do Rio de Janeiro:
Vassouras, Macaé, Nova Friburgo, Cantagalo, Resende, Campos; Província de
Minas Gerais: Campanha, Diamantina, Jaguari, Machado, Três Pontas, Itajubá,
Cataguases; Província do Rio Grande do Sul: Bagé, Uruguaiana, Porto Alegre,
Lavras do Sul, Pelotas, São Leopoldo; Província de Santa Catarina: Desterro

27 CORREIO PAULISTANO. São Paulo, 03 abr. 1870.


76 A globalização das luzes

(Florianópolis); Província do Espírito Santo: Vitória; Província do Pará: Belém;


Província do Paraná: Antonina, Curitiba; Província da Paraíba: João Pessoa;
Província do Mato Grosso: Corumbá; e Província de Pernambuco: Goiana.28
A criação de escolas e de aulas noturnas voltadas para as camadas populares,
particularmente no contexto da chamada “Questão Religiosa”, procurava fortalecer
uma identificação das lojas maçônicas como herdeiras das “Luzes”, libertadoras da
consciência dos homens e fiéis escudeiras no combate às trevas, representadas pelo
fanatismo da Igreja Católica. Por sua vez, os maçons brasileiros esperavam que
os alunos formados por essas escolas difundissem os ideais maçônicos. Em artigo
publicado no Boletim do Grande Oriente do Brazil, essa expectativa foi assim explicitada:
É preciso que a maçonaria não se deixe adormecer em sua propaganda e que, a
par do jornal lance quanto antes mãos de outros meios para difundir eficazmente
as suas ideias e com elas, ou por meio delas, preparar a geração atual e a por vir,
a fim de trabalharem com todo o amor e afinco, com todo entusiasmo em favor
do progresso e da civilização, defendendo a todo transe as ideias puramente de-
mocráticas, dentre as quais avulta em primeiro lugar a liberdade de consciência.29

Ao longo das últimas décadas do século XIX, as iniciativas das diferentes


lojas maçônicas, no sentido de promover a educação popular, foram aos poucos se
transformando em uma política oficial dos poderes centrais maçônicos. Em 1892,
por exemplo, no seu discurso de posse como grão-mestre da Ordem Maçônica,
Antônio Joaquim de Macedo Soares, ministro do Supremo Tribunal de Justiça,
propôs que a “questão social” se transformasse no eixo central de atuação da
maçonaria brasileira.
Em 1902 e 1903, Belisário Pernambuco realizou, por iniciativa da Loja
Amor ao Trabalho, duas conferências no Grande Oriente do Brazil, que alcançaram
grande repercussão entre os maçons e na imprensa. Nestas duas ocasiões, Belisário
Pernambuco defendeu a necessidade de a maçonaria brasileira assumir a “grande
revolução pacífica de transformação social, exercendo-se a propaganda de liber-
tação dos proletários”.30 Belisário Pernambuco defendia que o único meio para

28 CANDIÁ, Milena. Projetos e realizações culturais e pedagógicas maçônicas. 2013. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2013.
29 BOLETIM DO GRANDE ORIENTE DO BRAZIL. Rio de Janeiro, v. 25, n. 8-10, out./dez. 1900.
30 PERNAMBUCO, Belisário. A Maçonaria e o proletariado: comemoração do 1º de maio. Rio de Janeiro: Typ. da Papelaria Ribeiro,
1903, p. 8.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 77

harmonizar o conflito entre capital e trabalho era o incentivo à formação de asso-


ciações operárias e a ampliação do número de escolas voltadas para o operariado.
Sim, meus Irmãos, a causa é nobre – porque redime; é santa porque é humanitária;
é política – porque dá melhor organização à sociedade; é filosófica porque inspira-
-se no Cristianismo; é finalmente maçônica – porque é limpa e pura, fazendo do
vilipendiado operário, – um homem livre e de bons costumes!31

Para o autor, a maçonaria, ao incentivar a fundação de escolas voltadas


para os setores populares, demonstrava na prática a sua utilidade teórica, ou seja:
o aperfeiçoamento moral e o aperfeiçoamento intelectual dos homens.32
Além da criação de escolas populares, na segunda metade do século XIX,
houve, também, por parte da maçonaria, um esforço em promover conferências
públicas. O conflito com a Igreja Católica impulsionou os maçons para a defesa
pública de seus princípios. Para Alexandrino do Amaral, um dos redatores do
Boletim do Grande Oriente:
Imitemos os nossos irmãos franceses promovendo em nossas lojas conferências,
onde sejam admitidos os profanos, ou seja, então elas feitas em lugares públicos
para que todos conheçam o que somos e o que pretendemos, e uma vez por todas
respeitem-nos como amigos da humanidade, sem os preconceitos calculadamente
instigados pelos modernos jesuítas. É um meio de fazer conhecer em toda a sua
pureza em toda a sua glória a maçonaria que, não deve somente instruir os seus
filhos, mas propagar também a instrução em todas as classes.33

Tais conferências tiveram início na década de 1870, no Rio de Janeiro.


Um dos primeiros conferencistas foi José Liberato Barroso, que discursou sobre o
tema “O espírito do cristianismo”. Seguiram-se a essa primeira, as conferências de
Joaquim Nabuco, Luiz de Oliveira Bello, Thomaz Alves Junior, Pedro Meireles e
J. A. Pinto Junior. A exemplo do Rio de Janeiro, várias lojas maçônicas espalhadas
pelo país organizaram conferências semelhantes.
É evidente que o conflito com a Igreja Católica tornou mais forte, mais
densa, essa prática de promover conferências públicas. Entretanto, é preciso pensá-
-las também como parte do projeto pedagógico maçônico mais amplo, que, como

31 Ibidem, p. 22.
32 Ibidem, p. 15.
33 BOLETIM DO GRANDE ORIENTE DO BRAZIL. Rio de Janeiro, maio 1872, p. 182.
78 A globalização das luzes

tenho tentado demonstrar, não pode ser reduzido aos limites temporais da chamada
“Questão Religiosa”. A citação nos ajuda a dimensionar esse projeto:
Já por diversas vezes temos procurado despertar entre nós o interesse por esse gênero
de instrução fecunda, agradável e gratuita. De novo lembramos principalmente aos
bons maçons a inauguração das conferências públicas. [...] Lembremo-nos que a
instrução ampla e gratuita, por qualquer forma dada ao povo, será a base sólida da
maçonaria. [...] Lembremo-nos ainda que a maçonaria é uma vasta escola da mais
pura filosofia. A instrução é o seu principal desideratum. Nos templos abramos os
livros da verdade, pois importa muito que sejamos instruídos. No mundo profano
abramos escolas, instituamos conferências francas para o povo; daí virá o grandioso
futuro compensar as fadigas do presente.34

Considerações finais

Ao longo deste texto, procurei apresentar, apesar de alguns limites, um


conjunto de falas e percepções dos próprios maçons. Nesse sentido, compartilho
do diagnóstico realizado por Pierre-Yves Beaurepaire. Para ele, os estudos sobre
a maçonaria deveriam ultrapassar os marcos de uma história institucional que
privilegia sua dimensão administrativa (obediências, ritos, regularidades) e uma
análise sociológica de seus membros. Se quisermos de fato avançar no marco
de uma história social e cultural das Luzes, é necessário atuar em duas frentes
complementares: o estudo das práticas de sociabilidade e a reflexão sobre como
os contemporâneos pensavam o vínculo social, como percebiam seu espaço re-
lacional e como viviam suas relações interpessoais.35 Se o segredo possibilitou a
criação de um espaço para o culto à liberdade de pensamento, para a discussão
de ideias, para a crítica ao obscurantismo de uma religião revelada, portanto, de
uma ação mais política dos maçons, é importante ter em conta que a sociabilidade

34 BOLETIM DO GRANDE ORIENTE UNIDO E SUPREMO CONSELHO DO BRAZIL. Rio de Janeiro, abr./jul. 1874, p.
515-516.
35 BEAUREPAIRE, Pierre-Yves. Sociabilidad y francmasonería: propuestas para una historia de las prácticas sociales y culturales
en el Siglo de las Luces. Revista de Estudios Historicos de la Masoneria Latinamericana y Caribeña, v. 5, n. 1, p. 1-13, 2013.
Expansionismo maçônico e a cultura das Luzes no mundo luso-brasileiro 79

maçônica foi muito mais complexa que essa imagem cristalizada, primeiramente,
pelas autoridades repressivas e, depois, pela própria historiografia. Ter em conta
que existiram muitas maçonarias talvez nos permita compreender as tonalidades
das Luzes no mundo luso-brasileiro.

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Notas sobre o Iluminismo católico
luso -brasileiro: reformismo,
radicalismo e narrativas da
modernidade
Igor Tadeu Camilo Rocha

Este texto se propõe a ser um ensaio sobre as Luzes lusófonas, de Portugal e


Brasil, considerando muitos de seus matizes, que analisei em minha tese de douto-
rado, cujo título é Entre o “ímpeto secularizador” e a “sã teologia”: tolerância religiosa, secu-
larização e Ilustração católica no mundo luso (séculos XVIII-XIX). A proposta é apresentar
uma síntese dos seus resultados gerais, mas com um objetivo mais reflexivo, o qual
sintetizo numa pergunta inicial: por que devemos ler e o que podemos procurar
nas Luzes que falavam português, para nos entendermos melhor como sociedade
no século XXI? Espero esboçar uma resposta a isso no fim.
82 A globalização das luzes

Olhar para um I luminismo que fala português

A importante renovação pela qual passa a historiografia sobre as Luzes desde


o último quartel do século XX vem ampliando bastante suas balizas geográficas e
cronológicas. Com elas, ainda que com o devido reconhecimento às grandes sínteses
sobre a Ilustração, como as de Peter Gay,1 Ernst Cassirer2 e Paul Hazard,3 historia-
dores de várias partes do mundo vêm problematizando concepções consideradas
demasiadamente uniformizadoras sobre o contexto iluminista. Esse alargamento
de balizas geográficas e cronológicas, uma verdadeira globalização das Luzes, tem
aberto muitas possibilidades para pensarmos contextos como o mundo ibérico,
tanto as metrópoles, Portugal e Espanha, como suas colônias americanas, como
participantes das dinâmicas sociais e intelectuais da Ilustração.
Dentre os problemas apontados nas ditas concepções uniformizantes, está
a circunscrição do Iluminismo em narrativas que apagam dele duas das suas
características fundamentais, que são seu cosmopolitismo e a predominância de
disputas e debates, ao invés de consensos, nos contextos político, intelectual, cien-
tífico e religioso. Sobre este último ponto, Rogelio Blanco-Martinez, ainda que
fazendo a ressalva de que havia algumas linhas gerais que pautavam as disputas
no contexto das Luzes, como eram a defesa da liberdade e da tolerância religiosa,
além de condenações à intolerância, ao fanatismo, aos dogmatismos e às injustiças,
afirma que, na Ilustração, predominavam os dissensos entre os principais pensado-
res, não existindo ali algo como uma filosofia única ou qualquer homogeneidade
como escola de pensamento ou movimento.4 Nesse mesmo sentido, Stephen Barnett
mostra os problemas, aos quais se refere como “mitos”, decorrentes da forma como
a religião é abordada na historiografia do Iluminismo.5 Para ele, a tentativa de
homogeneizar as Luzes como uma grande marcha linear rumo à secularização, e

1 GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York; London: W. W. Norton, 1996, v. 1.
2 CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Tradução de Álvaro Cabral. Campinas: EdUnicamp, 1997.
3 HAZARD, Paul. La pensée européenne au XVIIIe siècle: de Montesquieu à Lessing. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1979.
4 BLANCO MARTÍNEZ, Rogelio. La ilustración en Europa y en España. Madrid: Endymion, 1999, p. 16-25.
5 BARNETT, Stephen J. The Enlightenment and religion: the myths of modernity. Manchester; New York: Manchester University
Press, 2003.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 83

que marca o nascimento das democracias modernas, conduz muitos historiadores


a uma enormidade de anacronismos e equívocos.
Em relação à circunscrição das Luzes em narrativas nacionais – ou naciona-
listas, a depender do caso –, tais concepções uniformizadoras turvam bastante seu
caráter cosmopolita. Uma crítica importante a isso foi feita por Franco Venturi,6
que propôs um modelo de análise sobre o Iluminismo pautado na complementa-
ridade entre o universal e o local. Para Venturi, as Luzes se desenvolveram com
a cosmopolitização da linguagem política dos levellers da Revolução Inglesa, além
da própria circulação da Encyclopédie a partir da década de 1740, processo pelo
qual se universalizou uma linguagem comum para se discutir temas muitas vezes
localizados. Assim, ao longo desse processo, surgiu um ambiente intelectual e uma
linguagem política comuns, a partir dos quais uma grande diversidade de pessoas
e grupos pensaram soluções para seus problemas práticos, articulando o universal
– com valores como liberdade, tolerância, razão etc. – com o local.
Dorinda Outram, sobre o mesmo assunto, propôs pensar o Iluminismo
como projeto inacabado e como conceito, visando pensar múltiplas realidades,
contraditórias entre si, ainda que conectadas por elementos comuns, de manei-
ra que as ideias iluministas pudessem ser pensadas nas suas diversas acepções,
apropriações e ressignificações, feitas em consonância com múltiplos contextos
históricos e culturais e diferentes camadas sociais.7 Dessa maneira, seria evitada a
extrema fragmentação nos estudos, criticada por Robert Darnton, quando dizia só
faltar um Iluminismo, o da Antártida, dentre as infinitas divisões de iluminismos
continentais e nacionais.8
Outro problema que coloca o cosmopolitismo das Luzes em segundo plano
é a incômoda divisão entre, de um lado, os centros produtores e irradiadores de
ideias e, de outro, as periferias, que só as receberam e consumiram. Essa divisão é
especialmente problemática para o contexto lusófono, comumente relegado a esse

6 VENTURI, Franco. Utopia e Reforma no Iluminismo. Tradução de Modesto Florenzano. Bauru: EDUSC, 2003.
7 OUTRAM, Dorinda. The Enlightenment: new approaches to European history. Cambridge: Cambridge University Press, 1995,
p. 1-13.
8 DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. Tradução de José
Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 18.
84 A globalização das luzes

segundo lado, o periférico, como aparece na obra de Richard Morse.9 E mesmo


esse consumo é matizado, já que as Luzes, em periferias como o mundo ibérico,
são constantemente adjetivadas como “ecléticas”, no sentido de serem misturas de
coisas incoerentes entre si – , “de compromisso”, “pragmáticas”: ou seja, nesses
contextos teria se verificado somente uma apropriação das ideias ilustradas que
resolveriam problemas mais concretos. Essa situação seria contraposta ao outro
lado, ao Iluminismo que praticou uma suposta “filosofia pura” e “abstrata”, dentre
outras qualificações, que realça a distância das periferias com relação à França, à
Alemanha, à Inglaterra ou a qualquer outro “ocidente civilizado”.10
Já há muitas pesquisas que buscam mudar os olhares voltados aos contextos
lusófonos das Luzes,11 e este ensaio não tem objetivo de dar mais um passo nesse
sentido, embora reconheça que eles são ainda muito necessários. A proposta aqui
é diferente: trata-se de esboçar, com as Luzes lusófonas, algo próximo daquilo que
foi feito por Tzvetan Todorov, quando ele se propôs a revisitar a Ilustração para
pensar as bases tanto ético-morais quanto os discursos daquele passado, “sem
desviar o olhar de nossa época”, destacando “as grandes linhas do pensamento
das Luzes, num vai e vem constante entre passado e presente”,12 reconhecendo as
Luzes como constitutivas de muitas das nossas identidades, naquilo que conhece-
mos como modernidade, em especial pensando numa realidade pós-utopias, ou
pós-modernidade. Assim, executando esse movimento de vai e vem, proponho,
aqui, um breve ensaio sobre perspectivas de abordagem do Reformismo Ilustrado
pombalino e pós-pombalino, ou dos núcleos dos libertinos luso-brasileiros, das
trajetórias de sujeitos notáveis ou de anônimos documentados, naquele contexto,
entre os séculos XVIII e XIX. Com isso, busco refletir sobre nossas bases ético-
-morais, além de encontrar chaves críticas para pensarmos os nossos próprios
processos modernizadores.

9 MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 72-73.
10 Uma síntese sobre o assunto pode ser lida em CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português?: a reforma da Universidade
de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008.
11 Discuto esse desenvolvimento da historiografia sobre as Luzes no mundo luso-brasileiro no primeiro capítulo da minha tese.
ROCHA, Igor Tadeu Camilo. Entre o “ímpeto secularizador” e a “sã teologia”: tolerância religiosa, secularização e Ilustração católica no
mundo luso (séculos XVIII-XIX). 2019. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019,
p. 26-67.
12 TODOROV, Tzetan. O espírito das Luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarrolla, 2008, p. 10.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 85

Não se trata, é claro, de projetar nos sujeitos que viveram entre a segunda
metade do século XVIII e as primeiras décadas do XIX soluções para problemas
que eles sequer vislumbraram ou deveriam vislumbrar. Nem mesmo ousaria aqui
reivindicar uma circunscrição nacional ou nacionalista, brasileira ou portuguesa,
e muito menos lusófona, para as Luzes. Pelo contrário, proponho, sim, partir
de algumas conclusões e apontamentos feitos sobre a Ilustração no mundo luso-
-brasileiro, sempre à luz dessas novas abordagens historiográficas, para levantar
algumas reflexões sobre questões do presente. Não, efetivamente, para buscar
soluções ou uma historia magistra vitae, mas fazer um movimento em direção ao
passado como meio de construir chaves críticas que nos auxiliem a pensar qual é
o nosso lugar na modernidade.

O I luminismo católico

Em sua crítica à abordagem da religião na historiografia das Luzes, Barnett


ressaltou, muitas vezes, ser comum e equivocado conceber o Iluminismo como
movimento unívoco e linear rumo à secularização. Por esse viés, “católico”, ao ser
associado à Ilustração, não é nada além de adjetivo desqualificante, por realçar sua
suposta incompletude. Afinal, Luzes católicas seriam aquelas que não alcançaram
o ideal irreligioso, deísta ou ateísta, que seriam próprios da versão “pura” das Lu-
zes. Assim, o catolicismo cobriria um Iluminismo apegado a estruturas arcaicas,
característico de processos periféricos, como seriam os ibéricos.13
Muitos estudos, não exatamente recentes, porém, complexificam esse en-
tendimento sobre o Iluminismo católico. Um exemplo é o de Samuel J. Miller,14
cujo enfoque foi o conjunto das relações diplomáticas entre a Coroa portuguesa e
a Santa Sé de Roma, nos anos em que Portugal esteve sob o controle de Sebastião

13 CARVALHO, op. cit., p. 20-21.


14 MILLER, Samuel J. Portugal and Rome c. 1748-1830: an aspect of the Catholic Enlightenment. Rome: Università Gregoriana, 1978 .
(Miscellanea Historiae Pontificiae, v. 44).
86 A globalização das luzes

José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal, entre 1750 e 1777. Na sua tese,
Miller defende que o ministro de d. José I, influenciado pelas Luzes e auxiliado
por um corpo de pensadores ilustrados católicos, muitos dos quais eclesiásticos,
desenvolveu e colocou em prática uma nova agenda política, elaborada em cima
de um corpo doutrinário inédito. Miller descreveu tal agenda como um tipo de
regalismo, que afirmava poderes régios em diversos pontos de conflito de jurisdição
civil e eclesiástica, em conexões com doutrinas tais como o episcopalismo, o galica-
nismo e o jansenismo. Assim, no Portugal pombalino, articularam-se tentativas de
avanço e centralização dos poderes civis com tendências que visavam a “ilustrar”
o catolicismo, criando um campo bem amplo de conflitos, próprios do contexto
católico na Ilustração.
Ulrich L. Lehner, por sua vez, define o Iluminismo católico como fenômeno
multifacetado, que tomou os intelectuais católicos, de meados do século XVIII até o
início do século XIX, e combinou várias vertentes de pensamento e uma variedade
de projetos, que foram implementados com intuito de reformar o catolicismo, de
maneira que dialogasse com a cultura contemporânea. Tal diálogo envolvia uma
nova aproximação hermenêutica do pensamento católico com o Concílio de Trento,
o que passava por algumas querelas, tais como entre jansenistas e regalistas, mas que
também trazia consigo releituras e conciliação de alguns valores, tidos por globais,
do processo do Iluminismo europeu, nas vertentes do pensamento católico, visando
“renovar” e “reformar” as sociedades como um todo.15
Na historiografia portuguesa, o livro de Cabral de Moncada sobre Verney16 é
um marco importante para uma abordagem historiográfica na qual o catolicismo é
entendido como realidade que atravessou os desenvolvimentos do Iluminismo luso.
O livro coloca diversas questões e problemas que orientavam embates presentes
naquele contexto. Embora na abordagem de Moncada o catolicismo seja tomado
como especificidade daquelas Luzes não secularizadas, ela deixa patente que o
mundo católico português teve seus próprios desenvolvimentos do pensamento

15 LEHNER, Ulrich L. What is “Catholic Enlightenment”? History Compass, v. 8, n. 2, 2010, p. 166-167.


16 MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. Um “iluminista” português do século XVIII: Luís António Verney. In: MONCADA, Luís
Cabral de Oliveira (org.). Estudos de História do Direito: século XVIII: Iluminismo Católico: Verney: Muratori. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1950, v. 3.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 87

iluminista, contrariamente a uma perspectiva que nega a própria existência das


Luzes portuguesas ou católicas.
Uma análise mais aprofundada sobre a Ilustração em contextos ibéricos
precisa considerar as dinâmicas dos debates e das ideias iluministas dentro de um
contexto católico. Trata-se de desenvolvimentos de ideias ilustradas que não po-
dem ser vistos sem se colocar em perspectiva a multiplicidade de interações entre
o catolicismo, suas discussões internas e sectárias, bem como toda uma gama de
concepções de política e de sociedade. Tais concepções, presentes no contexto das
monarquias ibéricas desde, pelo menos, meados do século XVI, possuíam raízes
anteriores. Outros aspectos importantes a considerar, dentre vários, são a Inquisição,
a divisão social entre cristãos velhos e cristãos novos, o papel do clero regular – em
especial dos jesuítas – ou as tensões entre autoridades nacionais e de Roma sobre o
clero e as hierarquias eclesiásticas.
Considerando todas essas possibilidades, é possível fazer uma contextuali-
zação mais ampla das ideias dos ilustrados portugueses, tal como faz João Adolfo
Hansen, em sua análise sobre a produção dos poetas árcades da segunda metade
do século XVIII. Segundo o autor, as aparentes contradições entre a permanência
de uma política católica, existente desde o século XVI, e a modernização ilumi-
nista, projetada pelo escol pombalino, ofereceram contornos específicos para uma
cultura intelectual luso-brasílica setecentista.17 Já Cândido dos Santos faz uma
síntese histórica sobre o josefismo, termo que usa para se referir ao reinado de d.
José I (1750-1777) e que seria o clímax desse Iluminismo católico de Portugal. Para
Santos, o josefismo foi um verdadeiro “movimento de renovação” marcado “pela
renovação da liturgia, pelo abandono de formas populares de devoção”, em privi-
légio de seu sentido histórico e “pelo gosto da história eclesiástica, pela oposição
ao escolasticismo”. Tal movimento se marcaria também “pela austeridade moral
e recusa do probabilismo, pela predileção das línguas vulgares, pela crítica do es-
tilo barroco de pregação”. Outras características do josefismo seriam o regalismo

17 HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade & civilização. Oficina da Inconfidência, Ouro Preto, v. 4, n. 3, p. 11-47,
dez. 2004; e HANSEN, João Adolfo. As Liras de Gonzaga: entre retórica e valor de troca. Via Atlântica, v. 1, n. 1, p. 40-53, 1997.
88 A globalização das luzes

na política, o antiaristotelismo e o antiescolasticismo na filosofia e uma agenda


visceralmente antijesuíta.18
Longe de ter sido antirreligioso, o Iluminismo católico português produziu
suas balizas intelectuais em torno de um ímpeto secularizador, marcado pela afirmação
da autoridade régia perante as eclesiásticas. Caracterizou-se igualmente por uma in-
tensa cooptação de quadros dos cleros regular e secular, além da estrutura eclesiástica
para seu projeto modernizador. Isso se formou juntamente com o ideal de sã teologia,
definidor de grande parte do pensamento religioso, cultural e político que atravessou
a agenda do reformismo ilustrado pombalino e posterior. Tal reformismo almejava
um catolicismo engajado com ideais de progresso e de modernidade iluministas,
esvaziando-o da religiosidade barroca, de fanatismos e do jesuitismo. Ao mesmo
tempo, contrapunha-se às próprias tendências irreligiosas das Luzes. Um importante
exemplo de obra que sintetiza essa forma de pensar um catolicismo ressignificado
pela racionalidade iluminista, ou um pensamento ilustrado ressignificado por uma
fé católica ilustrada, é O Triumpho da Religião, de Francisco de Pina de Sá e de Melo,
publicado em 1756.19 Trata-se de um poema que se define como épico-polêmico, no
qual se combina o formato literário clássico do gênero épico com um herói que irá
enfrentar desafios grandiosos, rumo a uma gloriosa vitória, remontando à Antigui-
dade clássica greco-romana e ao gênero da polêmica, comum às querelas religiosas,
sobretudo no meio protestante entre os séculos XVI e XVII, em que se procurava
refutar algum sistema adversário por meio de argumentos.
O Triumpho desenvolve a história do personagem chamado Peregrino que, ao
longo de nove livros, enfrentará, em disputas de argumentos, diversos pensadores,
como teólogos, filósofos e outros, que estão na base de todos os “desvios” da ver-
dadeira religião. O triunfo glorioso, que é a vitória do catolicismo sobre os demais
sistemas religiosos e filosóficos, se dá na medida em que o Peregrino demonstra, com
erudição e argumentação sólidas, com base na discussão de filósofos modernos e
antigos, na crítica das Escrituras e na história profana e sagrada, a solidez da verdade

18 SANTOS, Cândido dos. Matrizes do Iluminismo Católico da época pombalina. In: SILVA, Francisco Ribeiro da et al. (orgs.). Estudos
em homenagem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, v. 3, p. 949-956.
19 MELO, Francisco de Pina de Sá e de. Triumpho da religião: poema epico-polemico que a’ Santidade do Papa Benedito XIV dedica
Francisco de Pina e de Melo, moço fidalgo da Casa de Sua Magestade, e Academico da Academia Real de Historia Portugueza.
Coimbra: Na Officina de Antonio Simoens Ferreyra, Impressor da Universidade, 1756.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 89

católica. Ao longo dos livros, o Peregrino duela com filósofos e figuras-chave de várias
religiões instituídas, como o hebraísmo (Livro VII), o maometismo (Livro VI), o
luteranismo e o calvinismo (Livro VIII). Faz o mesmo contra tendências religioso-
-filosóficas identificadas com o pensamento iluminista, como o ateísmo (Livro I),
o deísmo (Livros III) e a libertinagem (Livros IV e V). Ao fim, o Peregrino se vê
diante da própria alegoria antropomorfizada da verdade, configurando sua vitória.
Assim, o Triumpho é uma narrativa em que o catolicismo só pode se impor
aos demais sistemas com o uso da razão. Além disso, ainda que de forma sutil, há
um relativo reconhecimento de alguns pontos válidos nos demais sistemas, o que
reforça que somente com o uso das Luzes e da razão, e não com a reafirmação
mecânica de dogmas e tradições, o catolicismo poderia triunfar, mostrando-se mais
sólido diante da própria razão natural. Esse tipo de entendimento do catolicismo
era ponto-chave da agenda que visava superar um presumido atraso português
diante das nações “civilizadas”, o que talvez seja a marca mais substantiva desse
processo modernizador específico.

Um “povo atrasado” frente às “mais polidas nações da Europa”

Na documentação sobre a Ilustração portuguesa, são muitas as referências a


um Portugal “atrasado” em relação às “nações cultas” da Europa. Tais referências
fazem-se presentes nos diversos “diagnósticos” sobre a situação ruim do reino, em
campos como cultura, economia ou religião. Flávio Rey de Carvalho assinala que
a tópica do atraso português foi transmitida e reforçada por uma tradição literária,
filosófica e historiográfica oitocentista, em especial a geração de 1870, que reforçou
a percepção de uma modernidade anômala no caso luso e europeu meridional, o
que também engloba leituras sobre o Brasil e demais ex-colônias ibéricas. Contudo,
Carvalho peca ao dizer que tais percepções “não conferiam com o que a grande
maioria dos portugueses, à exceção de uns poucos ‘estrangeirados’, sentiam acerca
90 A globalização das luzes

de si mesmos” durante o Setecentos.20 A documentação mostra que a percepção de


um Portugal atrasado era presente nas Luzes portuguesas, sendo compartilhada
por autoridades e pensadores notáveis, mas também disseminada noutras camadas
da população.
As Luzes do século XVIII sintetizaram e organizaram, de maneira inédi-
ta, muitas ideias de séculos anteriores, e a tópica do atraso português é um bom
exemplo disso. Fernando Antônio Novais mostra que, a partir do século XVII,
pensadores como Sancho de Moncada, na Espanha, e Duarte Ribeiro de Macedo,
em Portugal, percebiam um crescente atraso econômico de seus países ante a In-
glaterra, a França e a Holanda, e uma consequente periferização naquele concerto
de Estados nacionais, tentando formular explicações para tal situação, assim como
soluções para que o problema se sanasse.21 Ana Rosa Cloclet acrescenta que foi,
nesse mesmo século, que se gestou e consolidou, no vocabulário político português,
especialmente a partir da linguagem diplomática, a tópica do atraso, opondo-se
uma cultura isolada e castiça portuguesa ao imperativo de uma crescente dinâmica
cosmopolita entre os Estados nacionais na Europa a partir da década de 1640,
o que se aprofundou na medida em que os resultados desfavoráveis de guerras e
tratados econômicos com ingleses e holandeses, por exemplo, provocavam efeitos
nefastos a Portugal.22 Remetem a essa tópica as polêmicas publicadas pelos arbi-
tristas, do final do século XVI até meados do XVII, em que se expunham mazelas
das administrações do reino da Espanha e de suas colônias, acompanhadas de
sofisticadas leituras conjunturais, propondo e solicitando soluções de curto, médio
e longo prazo.23
A ideia de um atraso ibérico – português e espanhol, brasileiro e latino-
-americano – a ser superado é anterior ao século XVIII e sobreviveu a ele, apon-
tando, talvez, a necessidade de pesquisas sobre essa tópica numa perspectiva de

20 CARVALHO, op. cit., p. 28.


21 NOVAIS, Fernando Antônio. Reformismo Ilustrado luso-brasileiro: alguns aspectos. Revista Brasileira de História, v. 4, n. 77, 1984,
p. 106.
22 SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: Intelectuais Ilustrados e Estadistas luso-brasileiros no crepúsculo do Antigo
Regime Português: 1750-1822. 2000. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000, p. 36-38.
23 Sobre o arbitrismo, cf. DUBET, Anne. Los arbitristas entre discurso y acción política. Tiempos Modernos, v. 4, n. 9, p. 1-14, 2003;
ALBIÑAGA, Salvador. Notas sobre decadencia y arbitrismo. Estudis, v. 20, p. 9-28, 1994; e ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no
Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 93-122 (ver, em especial, p. 101 e 119).
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 91

longa duração. Não é objetivo fazer isso aqui, mas sim salientar sua presença nas
mentalidades lusas da Ilustração, orientando projetos e ações de diversas figuras.
Nas ações e na documentação sobre o marquês de Pombal, a tópica do atraso,
que teria seguido a uma decadência, aparece de maneira marcante. Um exemplo
está em uma carta datada de 2 de fevereiro de 1777, terceira de um conjunto de
17 atribuídas ao ministro, originalmente escritas em inglês, organizadas e publi-
cadas em 1822. Nela, Pombal apresentava uma série de lamentos sobre Portugal,
a começar pela agricultura que, para o ministro, “antes não só fornecia trigo para
o seu próprio consumo, mas igualmente supria a alguns outros países”. Mas isso
teria mudado depois do tratado celebrado com a Inglaterra em 1703, “obrigando
aquela potência a tomar os vinhos de Portugal em troca de suas fazendas de lã”.
Isso gerou pobreza em Portugal que, segundo Pombal, ficara repleto de campos
férteis, dos quais se “daria [alg]um produto na mão de um Povo industrioso”,
completando que:
Não se deve alegar, que há uma natural falta no gênio dos Povos Meridionais.
Os anais de Portugal contradizem esta opinião; os Tirios e Cartagineses dão um
exemplo do contrário, e devemos procurar a causa mais depressa na natureza do
governo, do que atribuí-las ao defeito do clima.24

Pombal, assim, argumenta que sucessivas ações de governantes, como a


assinatura do tratado de 1703, além da estagnação do próprio povo português,
produziram uma decadência, sendo esta explicável pela natureza dos governos, não
podendo ser tomada como mazelas intrínsecas ao povo ou ao clima. Ele endossa
tal ponto em carta de 20 fevereiro de 1777, na qual diz que, no reinado de d. José I,
como “Ministro amante da Pátria, pretendia aumentar as comodidades de seu país
e equilibrá-lo o mais que fosse possível com as outras nações”, e que, para tanto,
“empreendeu restaurar o espírito da indústria, animando as artes, e manufaturas”,
entendendo que o espírito industrioso, perdido pelos portugueses, poderia ser reto-
mado por um bom governo.

24 POMBAL, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de. Cartas e outras obras selectas do Marquez de Pombal, Ministro e Secretario
D’Estado D’El Rei D, Joze I com epítome da vida deste Ministro e ornado do seu retrato. Lisboa: Typ. De Desiderio Marques Leão, 1822, t. 2.
Digitalizado por Harvard University, 2009, p. 178 (grifos nossos). Disponível em: https://catalog.hathitrust.org/Record/009721362.
Acesso em: 02 maio 2018.
92 A globalização das luzes

Para recuperar tal espírito, Pombal toma o “exemplo da Holanda, cujo clima
não sendo favorável às artes”, pela sua pequena população e território reduzido,
não impediu que aquele país prosperasse, sendo “tão mudado pela indústria, que a
abundância veio suceder à geral carestia” de recursos. Conclui Pombal que “uma
nação pobre em si mesma, em outro tempo tributária às mais”, como era a Holan-
da, “achava-se agora em estado tal que as outras contribuem para o aumento de
sua prosperidade e riqueza”.25 Pombal, então, defendia que a posição periférica de
uma nação ou seu atraso podiam ser revertidos com um bom governo, a despeito
de limitações externas.
No diagnóstico sobre Portugal prestes a ser posto sob o reinado de d. José I,
feito pelo diplomata d. Luís da Cunha, no seu Testamento Político (1749), há alguns
pontos similares aos que aparecem nas cartas do marquês de Pombal – a quem o
diplomata, no mesmo Testamento, indica como ministro. No texto, Cunha faz lamentos
sobre o estado da economia, cultura e posição geopolítica de Portugal. O diplomata
atribui tal estado lamentável do seu país, dentre outros fatores, a quatro sangrias
que ceifariam as potencialidades do reino. A Inquisição era uma dessas sangrias,
pois provocara o despovoamento de Portugal, devido às perseguições religiosas e
à consequente destruição das manufaturas e do comércio, por criar barreiras para
o trato com nações de outras religiões. Havia outras sangrias, como o excesso de
frades vivendo em terras férteis entregues à Igreja e às ordens religiosas. D. Luís da
Cunha afirmava que, além desses religiosos não produzirem nada pelo trabalho,
eram sustentados por impostos dos súditos e, ainda, seu celibato ajudava a manter o
reino despovoado. Também criticava os tratados comerciais portugueses, sobretudo
o de 1703, além de ressaltar os prejuízos e o isolamento produzidos pela intolerância
contra judeus e pela separação entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ao longo de
todo o texto, d. Luís da Cunha usava como metáfora que aludia ao monarca a figura
do médico, que deveria cuidar de um corpo doente que, por sua vez, era o reino
de Portugal. Esse mesmo reino de Portugal, apesar de representado como corpo
adoecido, era repleto de capacidades intrínsecas. No argumento do diplomata luso,
essas qualidades lhe eram reprimidas ou tolhidas pela irracionalidade com a qual

25 Ibidem, p. 180-181.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 93

fora cuidado. Assim, Cunha argumentava no Testamento Político que o novo rei, sendo
ele ilustrado e diligente, além de aconselhado por quem também o fosse, poderia
alterar a situação de doença do corpo.26
Já Verney, em carta intitulada Diagnóstico cultural da vida intelectual dos Portu-
gueses, escrita em Roma e datada de 1 de janeiro de 1753, em resposta a outra que
o Barbadinho teria recebido, em 8 de junho de 1752, de um remetente desconhe-
cido, demonstra preocupação com o estado da cultura em Portugal, além de um
certo desdém diante da incultura de seus conterrâneos. Na carta, ao reclamar da
censura, feita por “algum jesuitinha da mão furada que se mete a falar no que não
entende”,27 contra uma obra sua,28 além de argumentar que o censor não entendeu
o que disse no livro, Verney reforça que os portugueses estariam tão isolados da
cultura letrada, não lendo mais do que aquilo que havia de mais vulgar entre os
autores estrangeiros, que eles sequer teriam a noção de sua rusticidade, tornando-se
um povo ensimesmado na sua própria ignorância.29
Apesar dessa tópica do atraso luso estar mais disseminada entre vários pen-
sadores portugueses de meados do século XVIII, ela nunca esteve restrita a uma
alta cultura letrada, tendo recepções noutras camadas sociais. Voltarei a esse ponto.
Naquele contexto, era disseminada uma percepção de que uma realidade
marcada por mau governo, instituições decrépitas, excessos de privilégios e de terras
a grupos que pouco ou nada produziam, além de um isolamento que só gerava uma
espécie de ignorância arrogante e orgulhosa, marcavam o estado das coisas no país.
Junto a isso, vinha toda a sorte de mazelas, fazendo que o país ficasse entregue à

26 CUNHA, Luís da. Testamento político, ou carta escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor Rei D. José antes do seu governo. São Paulo:
Alfa-Ômega, 1976.
27 VERNEY, Luís Antônio. Cartas italianas. Prefácio, traduçâo e notas de Ana Lúcia Curado e Manuel Curado. Lisboa: Silabo,
2008, p. 39-40.
28 No caso, o Aloysii Antonii Verneii equitis Torquati archidiaconis Eborensis Apparatus ad philosophiam et theologiam ad usum Lusitanorum
adolescentium libri sex, escrita por Verney em latim, sem jamais ter sido publicada em português. A obra teve um parecer favorável do
Fr. Joannes De Luca Venetus, e nela há uma dedicatória ao rei d. José I. O nome de Verney, como autor, aparece em latim: Aloysius
Antonius Verneius. De acordo com Eduardo Teixeira de Carvalho Junior, trata-se de uma obra cuja proposta é apresentar a melhor
forma de se fazer filosofia, para que os adolescentes portugueses pudessem usá-la com facilidade, como “um aparato”. Ver CARVALHO
JUNIOR, Eduardo Teixeira de. O método de Verney e o Iluminismo em Portugal. 2015. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2015, p. 43.
29 Ibidem, p. 46-47.
94 A globalização das luzes

própria sorte, composto por uma elite não educada para fazer algo útil ao todo30 e
por um povo letárgico, que tampouco poderia corrigir esse destino.
Como mudar? Através de reformas vindas “de cima”.

R eformar a partir de cima: o dirigismo cultural como projeto

Tão disseminada quanto a percepção do presumido atraso era a ideia de


que ele poderia e deveria ser revertido. Para tanto, era preciso acelerar o presente,31
repaginando e cooptando antigas estruturas que cerceavam as potencialidades
do reino e das colônias, construindo-se outras bases para a nova sociedade que se
desejava estabelecer. À ideia de se restaurar, no sentido de retomar o destaque que
Portugal tivera num passado anterior à União Ibérica e à chegada dos jesuítas, se
somavam acepções da ideia iluminista de progresso, na qual o uso da ciência, da
razão e da ação humanas, em função do bem comum, tomava forma nos projetos
políticos ali em jogo. Ao binômio decadência-atraso contrapunha-se outro, nos
termos de restauração-progresso, pelo qual alcançar um futuro melhor também
passava por almejar uma posição de destaque perdida, mas sempre sob a égide de
valores do progresso iluminista.
Parte do projeto político de Pombal foi marcado por forte dirigismo cultural,
que ainda teve alguma continuidade ao longo de todo o período do Reformismo
Ilustrado posteriormente à sua queda. Esse dirigismo englobava, ao menos, duas

30 Um diagnóstico próximo a esse pode ser encontrado na obra de Antônio Nunes Ribeiro Sanches, quando propôs uma série de
reformas importantes na educação portuguesa, especialmente das elites. SANCHES, Antônio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação
da mocidade. Nova edição revista e prefaciada pelo dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1922. E-book. Sobre a
disseminação da ideia da educação como meio de promover mudanças profundas nas mentalidades e estruturas sociais portuguesas,
cf. ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2003.
31 Reinhart Koselleck explica esse “acelerar o presente” a partir das categorias históricas “espaço de experiência” e “horizonte
de expectativa”. A primeira categoria denota, grosso modo, o espaço de ação individual e coletivo, ao passo que a segunda remete à
percepção de um futuro possível, produto dessa ação humana, e que não repete o presente, articulando-se aos ideais de progresso, nos
projetos reformistas e nas utopias que marcaram o vocabulário político das Luzes. Segundo o autor, essa aceleração do presente como
percepção do tempo histórico marca a gênese da modernidade. KOSELLECK, Reinhart. Futuro e passado: contribuição à semântica
dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2006, p.
305-328.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 95

frentes de ação. A primeira, aqui remetendo às análises de Ivan Teixeira32 e de


Ana Cristina Araújo,33 referia-se ao envolvimento de muitos letrados no projeto
político do marquês de Pombal. Isso se dava por meio do mecenato e do encômio,
que inseriam uma gama substantiva de letrados lusos, mais ou menos alinhados
às delimitações do discurso “oficial”, em intrincadas redes clientelares. Assim,
desenvolveu-se uma literatura elogiosa às ações do reinado josefino, meio pelo qual
difundiram-se e hegemonizaram-se diversos valores – antijesuitismo, progresso,
utilidade etc. – naquele período. Ao mesmo tempo e com contornos específicos em
consonância com o Iluminismo católico, delimitaram-se vários aspectos estéticos
e temáticos nas obras poéticas, literárias, historiográficas, tratadísticas e outras.34
A segunda frente, aqui em concordância parcial com Moncada,35 quando
entendia que o Iluminismo português, conforme postulado na obra de Verney e
materializado também no pombalismo, apropriou-se do próprio catolicismo e de
instituições como a Inquisição e a censura como instrumentum regni para reformar
estruturas e mentalidades lusitanas. Com isso, buscava vencer o “atraso português”,
valendo-se de um conjunto de ações vindas “de cima”. Por essa via, a aceleração
do presente se daria por meio do poder exercido por homens ilustrados e ajustados
com um ideário iluminista católico que, por sua vez, contrapunha-se às forças que
simbolizavam o “antigo” (como setores do clero, sobretudo os jesuítas, além da
nobreza e das camadas populares, em que se viam preconceitos), e às variantes
mais radicais do Iluminismo.36
Ações nesse sentido são visíveis na reforma da Inquisição, que se deu de
forma progressiva a partir do final da década de 1750, mas que teve sua expressão
mais aguda com a promulgação do regimento de 1774. No texto do documento,

32 TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama e a poética do encômio. São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1999, p. 67-130.
33 ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo. In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês
de Pombal e a universidade. 2. ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p. 15-48.
34 HANSEN, 2004, p. 15-16.
35 MONCADA, op. cit., p. 65-74 e 93-95.
36 Essa ideia aparece em carta de Verney sobre os jesuítas. Nela, Verney defendia que bons princípios, úteis para a liberdade e
para o progresso das ciências e letras em Portugal, necessários para a reforma completa das mentalidades e para a extirpação dos
preconceitos nacionais, teriam lugar apenas com uma boa educação do príncipe, segundo o ideário moderno, cercando-o ainda de
uma elite ilustrada, com o afastamento dos aduladores. Nestes últimos, o Barbadinho incluía os jesuítas, com seu “espírito de sedição,
obscurantismo e despotismo”. VERNEY, op. cit., p. 83-84.
96 A globalização das luzes

evocou-se, de maneira inédita até então, o caráter régio do Santo Ofício português,
em detrimento do eclesiástico; dialogou-se com debates iluministas sobre o direito,
ao praticamente banir o uso da tortura e dos autos de fé públicos, impedindo ainda
processos baseados em testemunhas únicas – exceto nos crimes de solicitação – e
aumentando os meios de defesa dos réus, com destaque para o fim do segredo
processual. Além disso, o regimento redefiniu o delito de bruxaria, a ponto de
tratá-lo, na maioria das vezes, como mera superstição. Em casos excepcionais,
alguém convicto da efetividade da bruxaria seria condenado a receber instrução,
sendo tomado por ignorante, ou à internação, por entender-se a crença na bruxaria
como produto de loucura.37
A criação da Real Mesa Censória, em 1768, como um tribunal régio de
censura, mesmo com a composição majoritariamente de clérigos, também significou
uma reforma dos órgãos censores segundo os propósitos do Reformismo Ilustrado.
Com ela, orientava-se o controle da leitura e da circulação de livros em função das
mudanças pretendidas, que visavam conciliar a preservação da ordem monárquica,
da religião e moral católicas segundo valores do Iluminismo católico, rejeitando
tendências materialistas e irreligiosas de outras correntes iluministas, juntamente
com o fanatismo, a ignorância e as superstições atribuídas a formas desreguladas
de devoção católica.38
O antijesuitismo, marcado em publicações como a Relação Abreviada39 e o
Compêndio histórico da Universidade de Coimbra40 e que norteou grande parte da reforma
da Universidade de Coimbra, de 1772, aponta para um aspecto do dirigismo que

37 ROCHA, Igor Tadeu Camilo. O Regimento Inquisitorial de 1774: modernização e dirigismo cultural nos tribunais de fé no
reformismo pombalino. Cadernos de Pesquisa do CDHIS, v. 30, n. 2, 2017.
38 Sobre a censura no Reformismo Ilustrado, ver VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas,
censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015 (especialmente p. 171-323); e ABREU, Márcia. O controle à publicação de
livros nos séculos XVIII e XIX: uma outra visão da censura. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais, v. 4, n. 4., p. 1-12, out./dez.
2007.
39 RELAÇAÕ Abreviada da Republica que os religiosos jesuítas das Provincias de Portugal, e Hespanha, estabeleceraõ nos Dominios
Ultramarinos das duas Monarchias, e da Guerra, que nelles tem movido, e sustentado contra os Exercitos Hespanhoes, e Portuguezes.
Formada pelos regidos das Secretarias dos dous respectivos Principes Comissarios, e Plenipotenciarios; e por outros Documentos
authenticos. [S.l.: s.n.], 1757.
40 POMBAL, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de. (1771). Compêndio histórico da Universidade de Coimbra no tempo da invasão
dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas sciencias, nos professores e directores que a regiam pelas maquinações e publicações dos novos estatutos por
eles fabricados. Edição coordenada, fixação do texto e introdução por José Eduardo Franco e Sara Marques Pereira, prefácios de José
Esteves Pereira e Manuel Ferreira Patrício. Porto: Campo das Letras, 2008.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 97

buscou conciliar a religião e as ordens religiosas com o projeto de modernidade


do Reformismo Ilustrado. Os jesuítas, sobretudo, foram caracterizados como
contraprojeto de modernidade, o que aparece de maneira bastante explícita no
mencionado Compêndio. Nessa publicação, assinada pelo próprio marquês de Pombal,
é traçada uma história linear da universidade coimbrã, que começa nos tempos
gloriosos e cosmopolitas do século XVI e vai até a época da publicação, 1771. A
glória da instituição é interrompida em finais do Quinhentos, com a chegada da
Companhia de Jesus, e o tom da obra é ressaltar a necessidade de enterrar o an-
tigo, o jesuitismo, e retomar o resplendor daquela universidade, por meio de uma
reorientação de rumos, segundo o Reformismo Ilustrado.
Enfim, reformar o Estado e as mentalidades fazia parte de uma agenda que
buscava orientar o reino de Portugal visando-se à superação de um presumido
atraso. Tratava-se de um progresso em que se articulava um ímpeto secularizador,
que não prescindia de estruturas como a censura e a Inquisição, reorientando-as
com uma sã teologia, e que sintetizava um catolicismo purgado de superstições
e fanatismos. Com isso, ficava-se pronto para enfrentar, no terreno da razão, as
ideias irreligiosas e radicais das Luzes e, além disso, tornar tal projeto hegemônico,
depois de séculos de isolamento e de atraso, o que só poderia ser feito a partir de
cima, com um Estado centralizado e ilustrado.
Entretanto, nas franjas dessa agenda de modernização, existiam discursos e
demandas mais radicais, ainda que dialogando com linhas gerais desse reformismo.
Em vários núcleos, havia espaços de crítica mais profunda às estruturas da monar-
quia absoluta e aos seus principais alicerces, que eram nobreza e Igreja. Além disso,
críticas à religião tinham espaços concomitantes às mais amplas reivindicações por
liberdades de corpos, mentes e espíritos, distantes ou inimagináveis para a maioria
das pessoas do século XVIII. Tratava-se dos libertinos, que, de núcleos difusos no
reino e América portuguesa, produziram um substrato crítico importante para
refletirmos sobre nossas Luzes.
98 A globalização das luzes

Os libertinos e o radicalismo das Luzes lusófonas

Em 1804, o frade espanhol Bruno de Zaragoza advertia, em sermão, que,


naquele “século apaixonado e solícito por novidades” que era o das Luzes – no
qual experimentavam-se tantas transformações nos costumes, religião e política,
grandes perigos que deveriam ser combatidos –,41 havia certa categoria de pessoas
que, movidas por “um espírito faccionário de novidade, para fazer valer as má-
ximas sediciosas”, disseminavam, em discursos e atitudes, “o estrago contagioso
da liberdade e soberba”, que têm levado os homens a se pensarem “capazes de
emendar as leis de Deus”.42 Ele se referia ao libertinismo e aos libertinos, fenôme-
no político, cultural e religioso que marcou os reinos ibéricos e suas colônias, do
último quartel do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX, gerando
muita preocupação em autoridades como a Inquisição, a Igreja Católica e ordens
religiosas, bem como em órgãos civis, como a Intendência Geral de Polícia.
Anita Novinsky viu nesses libertinos um exemplo destacado de radicalismo
no Iluminismo luso que, em sua leitura, marcou-se por moderação.43 Luís Antônio
de Oliveira Ramos notou, nos núcleos de libertinos de Portugal, sociabilidades
esparsas e espaços de leituras e debates diversos sobre a filosofia iluminista; para
ele, tais libertinos lusos estavam mais em posições de leitores consumidores de
ideias que de formuladores delas.44 Stuart B. Schwartz já concebe o fenômeno dos
libertinos como produto de uma filosofia das Luzes, lida e filtrada por um substrato
de conflitos políticos, religiosos e existenciais, verificados na cultura e religiosidade
populares ibéricas desde finais da Idade Média.45 Ao final do século XVIII e início
do XIX, diante da efervescência política do contexto pós-Revolução Francesa,

41 ZARAGOZA, Bruno, fr. (OMS). Instrucción católica y convencimiento racional de los heterodoxos y libertinos, compuesta sobre un sermón pa-
negírico, dogmático y moral del Apóstol San Pedro. Cuenca: Fernando de la Madrid, 1804, p. 225. Digitalizado por Complutense University
Library of Madrid. Disponível em: https://www.europeana.eu/portal/pt/record/9200110/BibliographicResource_1000126614905.
html?q=libertino. Acesso em: 02 maio 2021.
42 Ibidem, p. 222.
43 NOVINSKY, Anita Waingort. Estudantes brasileiros “afrancesados” na Universidade de Coimbra: a perseguição de Antônio de
Morais e Silva. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). A Revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp, 1990, p. 357-371.
44 RAMOS, Luís A. de Oliveira. A irreligião filosófica na província vista do Santo Ofício nos fins do século XVIII: uma tentativa
de exemplificação. Revista da Faculdade de Letras, Porto, 2ª série, v. 5, p. 173-188, 1988.
45 SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa: salvação no mundo atlântico ibérico. Tradução de Denise Bottman.
São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 99

mas com raízes que remontam a meados do século XVIII e às difundidas teses da
suposta conspiração maçônica, os libertinos povoavam o imaginário político coevo
como os responsáveis por conspirar contra a religião e a monarquia, a partir das
universidades (no caso luso, especialmente a Universidade de Coimbra), lojas ma-
çônicas, academias literárias e científicas, além de outros espaços de sociabilidade
mais livre e menos controlada por autoridades.46
Mas “libertino” remete a significados que surgiram em séculos anteriores
às Luzes, embora ressignificados por elas. É o que mostra Jean-Pierre Cavaillé,
analisando os conceitos “libertino” e “libertinismo” na literatura escocesa no
século XVII. Para ele, há uma sequência diacrônica no processo de construção
desse arquétipo entre os séculos XVI e XVIII, na qual se sucedem, sem exclusões
mútuas, a caracterização do “libertino espiritual”, estigmatizado por Calvino em
panfleto publicado em 1545, e do “libertino erudito”, na figura do “filósofo céti-
co” e do “espírito forte”, além do “libertino de costumes” ou hedonista, tocante à
liberdade em matéria moral e sexual.47
Já Tulio Gregory, analisando a figura do “libertino erudito” do século XVII,
sintetiza a construção do “libertinismo” nos círculos letrados da Europa ocidental a
partir de cinco características comuns: a) uma erudição que recupera e faz uso da
Antiguidade clássica, além das tradições do Humanismo renascentista, buscando
reconciliar cristianismo e paganismo greco-romano; b) destacado ceticismo, que
rejeita o dogmatismo e encontra no exercício crítico da razão sua própria função,
natural da condição humana e sintetizado no ideal da libertas philosophandi (grosso
modo, a liberdade de pensar); c) o relativismo radical, fortalecido pela experiên-
cia da diversidade, que nega valores universais e reduz normas éticas e práticas
religiosas às suas origens históricas, no sentido de terem sido criadas pelo homem;
d) um entendimento elitista a respeito da posse da cultura letrada, da sabedoria e
do conhecimento detido pelos “espíritos fortes” (que, portanto, não é comunicável
nem ao homem comum iletrado, nem aos letrados escravizados pelos dogmas,

46 Sobre a tese da conspiração maçônica e como ela existia no imaginário político luso-brasileiro entre os séculos XVIII e XIX, ver
MAGALHÃES, Pablo Antonio Iglesias. O caçador de pedreiros-livres: José Anastácio Lopes Cardoso e sua ação contra a maçonaria
luso-brasílica (1799-1804). Revista de História, n. 176, 2017.
47 CAVAILLÉ, Jean-Pierre. Libertine and libertinism: polemic uses of the terms in sixteenth-and seventeenth-century English and
Scottish literature. The Journal for Early Modern Cultural Studies, v. 12, n. 2, 2012, p. 13-17.
100 A globalização das luzes

preconceitos e tradições); e, por fim, e) constante apelo à ideia de “natureza”, em


que todos os fenômenos se localizam e podem ser explicados.48
Na definição em língua portuguesa, “libertino” aparece no dicionário escrito
por um acusado e condenado pela Inquisição justamente por libertinagens e outros
delitos, o dicionarista Antônio de Morais e Silva. Em seu Diccionario da língua por-
tuguesa, na edição de 1813, “libertino” é aquele que “sendo cativo se forrara”, aqui
partindo da sua definição da Roma antiga, mas também “aquele que sacudiu o
jugo da Revelação, e presume, que a razão só pode [se] guiar com certeza no que
respeita a Deus, à vida futura”. Acrescenta que o termo também define “aquele
que é licencioso na vida”, “neste sentido moderno”.49
Libertino, no século XVIII, era aquele sujeito que obedecia somente a au-
toridade sustentada pela razão, e não pelo costume, tradição ou dogma. Por isso,
comumente era um termo usado para se definir aquele que reivindicava liberdades
que se complementavam em uma crítica geral aos pilares das sociedades de Anti-
go Regime: liberdade contra tradições, autoridades e dogmas que oprimiam seu
pensamento, espíritos, mentes e corpos, que deveriam ser limitados somente pelo
que fosse explicado pelo uso da razão iluminista. São pontos que estão presentes
na documentação do final do século XVIII sobre os libertinos, nas falas dos réus e
acusados de libertinismo ou libertinagem, assim como nos pareceres de autoridades.
Um caso emblemático de núcleo libertino, datado de 1779, envolve o es-
tudante de leis da Universidade de Coimbra, José Maria da Fonseca.50 Na sua
confissão, ele disse que, desde o 1º ano da faculdade, conviveu com estudantes
que liam livros proibidos de Rousseau e Voltaire, debatendo pontos associados à
doutrina do deísmo. Fonseca denunciou vários colegas que, posteriormente, seriam
também citados no processo de Antônio de Morais e Silva, que foi denunciado pela
primeira vez também em 1779, pelo estudante Francisco Cândido Chaves. Ele
disse ao inquisidor Manoel Antônio Ribeiro que conheceu Morais e Silva numa

48 GREGORY, Tullio. “Libertinisme érudit” in seventh-century France and Italy: the critique of ethics and religion. British Journal
for the History of Philosophy, v. 6, n. 3, 1998, p. 329.
49 SILVA, Antônio de Morais. Diccionario da lingua portuguesa recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente
emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Tipographia Lacerdina, 1813, p. 221.
50 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO PRO-
MOTOR. Livro 319, fls. 137-143.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 101

república de estudantes brasileiros e portugueses, que ficava na Travessa de Sub-


-Ripas, em Coimbra. Chaves dizia que ali era comum se ver Morais e Silva junto a
vários estudantes, discutindo livremente proposições consideradas heréticas, como
que a alma morre após a morte do corpo, que diversos pontos das Escrituras exis-
tiam apenas para controle dos povos e não eram mais que “fábulas”, e que várias
passagens bíblicas descreviam fatos que eram pecaminosos. Chaves disse, ainda,
que Morais e os estudantes criticavam livremente a venda de indulgências, o clero
e a autoridade do papa, negando também a virgindade de Maria Santíssima. Na
denúncia, consta que Morais e Silva teria dito que a razão da existência da Inqui-
sição era meramente política, visando-se manter os súditos do reino com apenas
uma religião. Teria falado, também, que os tribunais inquisitoriais eram contrários
às Escrituras, pois nelas não se orientava que a conversão ao catolicismo fosse por
coerção violenta. Em função disso, Morais e Silva acreditaria que cada um deveria
seguir a religião que melhor conviesse a seu entendimento.51
Havia grande preocupação de autoridades quanto ao estado moral, de “cos-
tumes e doutrina” dos estudantes da Universidade de Coimbra, que era vista como
um ambiente de leituras e debates livres, o que poderia ser temerário, se associado
à grande liberdade de discentes em suas moradas temporárias e nos ambientes de
sociabilidade que compartilhavam em torno delas, como descreveu, em documento
de 1777, o reitor d. Francisco de Lemos.52
Porém, é equivocada a impressão de que esses núcleos de libertinos surgiram
somente em ambientes como as universidades. Muitos acusados de libertinagem
estavam em conventos e eram eclesiásticos, seculares e regulares. Por exemplo, em
1792, o frei Henrique de Jesus Maria foi denunciado, por “falar libertinamente e
com grande escândalo, em pontos de nossa Santa Religião”, pelo padre mestre frei
José do Amor Divino, que disse ainda que “um seu condiscípulo [ter] lhe” dito:
“– tu és pior que Voltaire!”.53 Na denúncia, o frei foi descrito como leitor contumaz
de livros proibidos, dentre os quais estavam os dos philosophes das Luzes francesas
e dos teóricos do regalismo. Jesus Maria foi denunciado também como sendo de-

51 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Antônio de Morais, proc. 2015.
52 LEMOS, Francisco de. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1980.
53 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Henrique de Jesus Maria, proc. 6239, fls. 3-3v.
102 A globalização das luzes

fensor da liberdade de consciência e da tolerância religiosa, crítico da Inquisição,


e ainda com destacada disposição para confrontos com outros religiosos sobre a fé
católica. No processo, é descrito o convento como o ambiente no qual Jesus Maria
mormente desenvolvia seus confrontos de argumentos.54
Caso similar entre religiosos foi denunciado ao comissário do Santo Ofício,
frei José Barreto Coutinho, pelo vice-prefeito dos capuchinhos italianos, frei Félix
Maria de Cremona. Ele delatou vários frades do Convento do Carmo, no Rio de
Janeiro, em 1778. O primeiro denunciado, o dr. Tomé Joaquim Gonzaga, “faltava
pouco para ser herege” e andava com livros proibidos, dizendo que “tinha faculda-
de para tê-los e lê-los”. O denunciante também disse ter sido informado pelo frei
Francisco de Santa Tereza que João Ferreira Luvas, familiar do Santo Ofício, era
casado com uma mulata. O frei Félix Maria de Cremona apresentou ainda mais
denúncias, como de ter ouvido dizer, por Francisco da Costa Cordeiro, que o padre
José da Mota, do hábito de São Pedro, e o tenente Francisco Roberto, irmão do
cônego e cura da Sé, negavam a existência do inferno e de seus tormentos, dizendo
que lá apenas havia a privação da visão de Deus. Denunciou também que o alferes
Vicente Vaz Ferreira Serigueiro disse que o dr. Tomé da Silva Gonzaga defendia
“com argumentos” que não havia inferno e outras proposições.55
Dentre os acusados de libertinagem no mundo luso-brasileiro das Luzes,
há muitos que, ao contrário dos estudantes coimbrãos e dos religiosos seculares e
regulares, não estiveram – ou pode-se presumir que não – tão próximos da cultura
letrada. É o que acontecia nos muitos casos de acusados que tinham ofícios asso-
ciados à marinhagem. Isso é o que se vê, por exemplo, na apresentação de Geraldo
Garcia, marinheiro, nascido em Paraíba, que contou sua trajetória de homem
simples, que fora criado como católico e que passara a vacilar na sua religião de
nascimento ao servir na Marinha em terras inglesas, onde passara a admirar a lei
protestante e a tomá-la como boa.56

54 Ibidem.
55 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. 130º CADERNO DO
PROMOTOR. Livro 319, fls. 24-25.
56 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Apresentação de Gonçalo Garcia, proc. 13638.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 103

O meio militar era outro ambiente em que havia vários casos de libertinos,
como se vê na denúncia de José Adorlo “Bráu” – possível corruptela de um nome
estrangeiro – contra Alberto “Albak” – mesmo caso –, militar agregado ao regi-
mento da praça de São Sebastião, na vila de Setúbal. O denunciante disse que,
numa conversa sobre o seu próprio pai, que também servira ao Exército, teria dito
ao denunciado que ele nascera protestante e morrera católico. A isso, Albak teria
respondido que o pai do denunciante “obrara mal em mudar de lei, pois em todas
havia salvação”, acrescentando, na mesma conversa, que “no Concílio Tridentino,
faltaram somente dois votos para se negar que havia Espírito Santo”.57
Isso remete a um ponto importante: os próprios libertinos, muitos deles fora
do que se poderia chamar de elite letrada, também, muitas vezes, entendiam seus
conterrâneos como atrasados. Tal situação indica que a tópica do atraso também
era compartilhada fora dos círculos letrados. O médico José Vieira Couto,58 por
exemplo, se referia como “patranha portuguesa” ao tratar de algumas devoções
populares, de dogmas eclesiásticos e de tradições católicas. Já o estudante de
medicina “brasileiro” José Antônio da Silva dizia que a Inquisição era “asneira”,
declarava ódio aos frades por eles falarem “apenas de infernos e mais infernos” ou
adjetivava como inútil a política da rainha d. Maria I, que realizava procissões,
em vez de tomar medidas úteis aos súditos.59
Eram comuns, ademais, falas heréticas sobre a liberdade sexual, em que
se observam claramente as dúvidas analisadas por Ronaldo Vainfas, em sua obra
clássica sobre a sexualidade na colônia,60 e formulações críticas marcadas pela
ideia iluminista de natureza ou pela leitura crítica da Bíblia. Um exemplo disso
é o estudante José Antônio da Silva, citado anteriormente, que defenderia que a
masturbação não era um pecado contra o 6º preceito, o qual se referia somente
ao adultério.
Chamo a atenção, ainda, ao extenso processo de Jerônimo Francisco Lobo,
iniciado após ele se apresentar ao inquisidor Antônio Veríssimo de Larre, em 1778,

57 Ibidem, fl. 40.


58 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa Processo de Doutor José Vieira Couto, proc. 12957.
59 ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa. Processo de José António da Silva, proc. 13365.
60 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
104 A globalização das luzes

e declarar 53 proposições heréticas que teria defendido, em sua maioria, na sua


passagem pelo serviço militar, na Praça de Valença do Minho, alguns anos antes
da apresentação. Em conjunto, elas sintetizam muitos pontos sobre o arquétipo do
libertino. Lobo contou que ali, entre militares, “se persuadiu do Libertinismo”,61 o
que o levou a defender vários pontos condenados, que vão do ateísmo à tolerância
religiosa, passando por questionar a moralidade sexual católica depois da lição do
romance libertino L’Histoire de Dom Bougre, portier des Chartreaux.62 Mencionou, além
disso, a proposição que dizia ser a de que mais se arrependia, defendida quando,
movido por sua descrença,
(...) chegou a desacatar (...) o triângulo com que os Santos Padres indicam o princípio
sem fim da mesma Trindade Santíssima; porquanto, sendo convidado por José Iná-
cio da Silveira Cordeiro, Estudante do primeiro ano Jurídico, natural de Évora, para
que escrevesse uma carta de dar composição, não se lembra a quem, entre outras
parvoíces que na dita carta escreveu, nela pintou o referido triângulo, metendo-lhe
no meio as partes genitais do homem, com um letreiro = É a Trindade =.63

As trajetórias de Jerônimo Francisco Lobo e de outros diversos libertinos


luso-brasileiros, de múltiplas origens, foram analisadas por mim, em minha tese,
de maneira mais completa.64 Aqui, cabe levantar algumas considerações sobre
elas, mais precisamente sobre o libertinismo, em consonância com os propósitos
deste texto. Primeiramente, cabe dizer que, como mostra a historiografia, o liber-
tinismo foi um fenômeno social em que ideias da Ilustração se entrecruzaram a
elementos da religiosidade portuguesa e colonial presentes durante toda a Idade
Moderna, advindos da condição dos fiéis, que se viam constantemente vigiados
na sua ortodoxia. A expressão de insatisfação com uma realidade tão vigiada em
termos morais, religiosos, sociais e políticos, experimentada de maneira difusa e
espontânea, na maioria dos casos, teve novos elementos para se expressar no de-
curso da efervescência cultural e filosófica do século das Luzes. De certa maneira,

61 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo. fls, 20-20v.
62 Ibidem, fl. 28. Este livro é atribuído a Gervaise de Latouche. Foi publicado em 1741, trazendo uma narrativa semelhante a memórias
autobiográficas, em que se conta uma série de desventuras de natureza sexual do protagonista, Saturnin, em meio ao clero regular
e dentro de um convento. Sobre sua circulação no Brasil e em Portugal, ver GALVES, Charlote; ABREU, Márcia. A circulação
clandestina de romances e o mistério do “anônimo brasileiro”. Remate de Males, v. 27, n. 1, p. 109-125, jan./jun. 2007.
63 ANTT. Tribunal do Santo Ofício. Inquisição de Lisboa. Processo de Jerónimo Francisco Lobo, fl. 23.
64 ROCHA, 2019, p. 312-433.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 105

a Ilustração católica portuguesa teve no libertinismo seu “efeito indireto”, ao po-


tencializar um processo de dessacralização de algumas bases do Antigo Regime.65
Com efeito, o libertinismo jamais significou um movimento ou conjunto de movi-
mentos organizados, ainda que acusados e condenados por esse delito estivessem
em movimentos organizados e conscientes, com objetivos políticos mais definidos,
do que são exemplos José Vieira Couto, envolvido com a Inconfidência Mineira,66
Cipriano Barata, participante da Conjuração Baiana,67 ou os participantes da
“luciferina assembleia” carioca, analisada por David Higgs.68

Olhar para o nosso I luminismo, criticar o presente

Seguindo a proposta deste ensaio, cabem considerações sobre como as Luzes,


em Portugal e no Brasil colonial, marcadas pela diversidade de elementos e tonali-
dades, indo das Luzes católicas, oficiais e reformistas até as Luzes evidenciadas na
rebeldia e na crítica marcantes no libertinismo, nos ajudam a pensar melhor nossa
realidade no presente. É preciso, antes, fazer uma ressalva: não proponho aqui
discutirmos nossos problemas a partir das experiências ou das ideias das Luzes. As
pessoas daquele contexto viveram suas próprias vidas, suas próprias realidades, e
nos seus respectivos contextos lidaram com seus problemas e procuraram soluções.
Isso é parte de um passado, irrepetível como tal. Por óbvio, só poderemos olhar

65 ROCHA, Igor Tadeu Camilo. “Não se fazem mais excomunhões que prestem nos dias de hoje”: libertinos, Reformismo Ilustrado
e a defesa da tolerância religiosa no mundo luso-brasileiro (1750-1803). Almanack, n. 14, p. 196-240, 2016.
66 Sobre a trajetória como naturalista de José Vieira Couto, sua biblioteca e sociabilidades no contexto da Inconfidência Mineira, cf.
FURTADO, Júnia Ferreira. Sedição, heresia e rebelião nos trópicos: a biblioteca do naturalista José Vieira Couto. In: DUTRA, Eliana
de Freitas; MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política, Brasil, Europa e
Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 69-86. Sobre o José Vieira Couto libertino, ver VILLALTA, Luiz
Carlos. Leituras libertinas. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 48, n. 1, p. 78-97, jan./dez. 2012.
67 Para uma análise sobre o processo de Cipriano Barata na Inquisição, ver VILLALTA, Luiz Carlos. As imagens e o controle
da difusão de ideias em Portugal no ocaso do Antigo Regime. blogue de História Lusófona, mar. 2011. Disponível em: http://www2.iict.
pt/?idc=102&idi=16996. Acesso em: 02 maio 2021. A respeito do mesmo Cipriano Barata como periodista e político, ver TASCA,
Alexandre Bellini. Enredamentos: o constituir nacional entre Portugal e Brasil nas Cortes de Lisboa (1820-1822). 2016. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.
68 HIGGS, David. O Santo Ofício da Inquisição de Lisboa e a “luciferina assembleia” do Rio de Janeiro na década de 1790. Revista
do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 162, n. 412, p. 239-384, jul./set. 2001.
106 A globalização das luzes

para esse passado através das fontes, fazendo as devidas e metódicas aproximações,
mas nos é impossível vivê-lo.
Feita a ressalva, a proposta deste ensaio poderá ser apresentada de manei-
ra mais clara. Assim, sem qualquer pretensão de esgotar um assunto tão amplo
e complexo, a ideia neste texto é a de enunciar algumas indagações gerais sobre
como podemos revisitar as Luzes lusófonas, sempre com todos os cuidados neces-
sários, para pensarmos alguns aspectos da nossa realidade presente. Não se trata,
no caso, de procurar alguma maneira de inscrever a Ilustração que fala português
em nossa biografia nacional, de forma linear, à maneira das diversas abordagens
nacionalistas feitas sobre tal contexto em diversos países europeus, como apontam
diversas críticas advindas da renovação historiográfica recente sobre as Luzes.
Aqui, proponho olhar de maneira dialógica para o período ao qual nos dedicamos,
pensando nos diversos contrapontos críticos que ele pode nos trazer para o debate
e para pensarmos nas diversas questões que nos importam e nos conectam com
nosso passado. Em síntese, trata-se de dialogar com esse Iluminismo luso para
pensarmos nas bases e nos descaminhos da modernidade vista a partir do mundo
luso-brasileiro.
Um primeiro ponto que indago é sobre a pertinência ou não de tentarmos
olhar o Reformismo ilustrado, sobretudo o pombalismo, como paradigma que
brasileiros e portugueses possuem de modernidade. Não de maneira consciente, em
torno de projetos políticos, mas talvez como uma base tão profunda que nem sequer
a problematizamos. Digo, sobretudo, quanto às ideias complementares, que estamos
atrasados em relação à “civilização” ou ao “primeiro mundo”. Tenho aqui uma
hipótese, que só poderia ser confirmada com pesquisas mais aprofundadas sobre
o tema, que é a de que seríamos marcados profundamente por uma permanente
noção de que estamos “para trás” e que precisamos, para mudar isso, acelerarmos
as coisas no presente a fim de alcançarmos um patamar civilizatório que sempre
projetamos para fora. E este “fora” é bem delineado no mapa, pois está localizado
na Europa ocidental e mundo anglófono, sobretudo. E completo a hipótese de que
tal marca seria de longa duração, nos conectando, ainda que sob perspectivas bem
diversas, com uma representação do nosso lugar no mundo compartilhada e vivida
por figuras como d. Luís da Cunha e o marquês de Pombal.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 107

Como já foi dito acima, segundo o paradigma pombalino, mudar, no sentido


de modernizar, representa sempre desenvolver algum projeto vindo de cima. A partir
desse ponto, cabe adicionar outro aspecto importante à hipótese enunciada supra: de
que a ideia de acelerar o presente para alcançarmos a modernidade, que projetamos
para além das fronteiras lusófonas (surgindo, via de regra, como um projeto condu-
zido por uma elite), talvez seja outro marco de nossa modernidade. Esse marco seria
complementado pela ideia de que caberia a uma elite conduzir o vulgo ao progresso.
E este vulgo é, geralmente, identificado com o atraso e a ignorância quanto a seu
destino, sendo incapaz e sem voz. Além disso, essa mesma elite precisa se impor
perante outros agentes identificados com a ordem anterior, a do atraso.
Novamente, digo que tal questão só poderia ser melhor elaborada com uma
pesquisa mais robusta. Contudo, vemos aspectos que nos remetem a essa ideia na
história do nosso século XX, tanto em Portugal quanto no Brasil nas suas trajetórias
políticas. Na ex-colônia portuguesa, tivemos duas ditaduras, entre 1930-1945 e
1964-1985, as quais, a despeito de seu conservadorismo e autoritarismo, apresen-
tavam suas próprias percepções de modernidade, além de perspectivas específicas
sobre uma sociedade, que no entendimento delas, deveria ser tutelada e guiada, de
forma a construir-se um porvir melhor que o presente. Pontos similares podem ser
observados no Estado Novo português, que durou entre 1933-1974. Evidentemente,
não se pode fazer qualquer ligação pertinente entre o dirigismo do Reformismo
Ilustrado e as ditaduras do século XX. Contudo, a ideia de modernidade tutela-
da está presente, de maneiras diversas, nesses fenômenos políticos, tão distantes
temporalmente, localizados no mundo lusófono. Seria o caso de olharmos a ideia
de reformismo vertical e da modernização tutelada por certa elite, que aconteceu
no século XVIII, para fazermos as devidas indagações sobre as que ocorreram
na era contemporânea? Ou mesmo para questionarmos e historicizarmos as bases
dos projetos e narrativas políticas que estão em disputa nos dois países atualmente?
Não tenho resposta, e a proposta aqui é mais a de provocar reflexão.
De certa maneira, as raras experiências progressistas e democráticas que
tivemos, como os governos brasileiros entre 1946 e 1964 e 2002 e 2016, guardaram,
a seu modo, particularidades mais ou menos tocantes a essas linhas gerais. Dito de
outra maneira, mesmo nos projetos políticos e nos governos mais progressistas e
democráticos que tivemos, a ideia de que se deve conduzir uma reforma de cima, ou
108 A globalização das luzes

a de que estamos atrasados perante a “civilização” não é estranha. Impõe-se, como


um grande desafio para nós, no presente, romper com o paradigma de modernidade
que parece nos guiar até agora, o que implica a defesa e o engajamento na constru-
ção de uma outra modernidade, que seja feita mais lateralmente, que não venha
de cima para baixo e que não seja tributária de uma perspectiva salvacionista e/
ou do pressuposto de que há um outro a ser tutelado. Experiências fascistas, como
a portuguesa sob Salazar ou a brasileira, do governo instaurado após a eleição de
2018, talvez sejam os produtos mais nocivos que surgem das contradições inerentes
a essa perspectiva de modernidade que reúne salvacionismo e tutela.
Outra reflexão concerne aos libertinos. Talvez eles nos ensinem que é possível
pensar realidades e mudanças sociais sem se nortear pelas balizas impostas a nós
pelos que representam a ordem em nosso contexto político, ou por aqueles setores
que são os hegemônicos entre os que propugnam reformas e alterações. Certamente
ao tomarmos os libertinos como fontes de inspiração será indispensável considerar-
mos as enormes diferenças entre eles e nós, entre Antigo Regime luso-brasileiro e
a ordem liberal-burguesa em que vivemos. Todavia, a crítica universal realizada
pelos libertinos, assim como a nossa, se circunscreveu aos círculos próximos, sem
maior enraizamento social e, sobretudo, sem se tornar organização ou projeto
político concreto, sem reverberar em ações políticas minimamente estruturadas.
Isso me fez conjecturar que, tal como eles, nós, ao pensarmos em sociedades livres e
emancipadas das várias estruturas de dominação sob as quais vivemos, do domínio
do capital, das Igrejas, das elites parasitárias e, mais ainda, de Estados autoritários,
guiados por autoridades que trazem o mofo dos velhos déspotas do Antigo Regime,
estejamos muito distantes de construir um mundo novo. De toda forma, reler as
Luzes é também procurar chaves de leitura para novos mundos possíveis.
Podemos indagar muitas coisas sobre os libertinos. Afinal, se algo os dis-
tingue é a sua capacidade de provocar. E quando o exame sobre suas trajetórias,
registradas na documentação, nos faz pensar sobre nós e nossos mundos, sinto que
seus legados estão sendo mais que honrados. Particularmente, quando vejo suas
histórias, limitações e contradições, juntamente com seus sonhos e ideias, penso no
quanto eles poderiam nos ensinar a sonhar com um mundo melhor e mais livre,
mas sem perder de vista que também devemos aprender como tornar sonhos de
liberdade uma realidade.
Notas sobre o Iluminismo católico luso-brasileiro: reformismo, radicalismo e narrativas da modernidade 109

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Livros de sã e útil erudição, que
encheram estes reinos de claríssimas
Luzes: a educação de jovens
portugueses no contexto da
Ilustração1
Antonio Cesar de Almeida Santos

Meu propósito, neste texto, é o de apresentar e discutir a base epistêmica


que orientou a concepção de ensino que se pretendeu implantar em Portugal, na
segunda metade do século XVIII. Em relação a este tema, é lugar comum atribuir
um papel de destaque para Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e
marquês de Pombal, identificando-o como o propositor das reformas educacionais

1 Versão preliminar deste texto foi apresentada no II Colóquio Internacional Globalização das Luzes: Contestações e contrarrevoluções na França
e no mundo luso-brasileiro, realizado na cidade de Ouro Preto (MG), nos dias 23 e 24 de abril de 2018. Agradeço a Álvaro de Araújo
Antunes e a Luiz Carlos Villalta o convite. O texto apresenta resultados de pesquisa financiada com recursos do Edital de Apoio a
Projetos de Pesquisa MCTI/CNPQ/Universal 14/2014 (Projeto 444135/2014-6).
116 A globalização das luzes

empreendidas durante o reinado de d. José (1750-1777),2 soberano que ficou conhe-


cido pelo epíteto de “O Reformador”.3 Para a discussão que pretendo empreender,
levo em conta a presença de um desejo de igualar Portugal, econômica e intelec-
tualmente, às demais nações europeias. Junto a este sentimento, manifestado em
diferentes ocasiões, também considero uma proposição formulada por Carvalho e
Melo, que afirmou ser necessário deixar de olhar apenas para a “superfície dos ob-
jetos” e passar “a investigar e compreender a substância das coisas”.4 Neste sentido,
interessa olhar para a formação que se pretendeu oferecer aos jovens portugueses
que, em idade adulta, iriam servir à monarquia, entendendo que as reformas edu-
cacionais do período estiveram orientadas pela vontade de desenvolver neles uma
mentalidade em sintonia com os novos tempos.
Devo apontar que as reformas educacionais não ficaram restritas apenas ao
reino; após a publicação do Alvará de 28 de junho de 1759, que privou os jesuítas
de suas escolas, “algumas aulas régias foram implementadas no Brasil, principal-
mente nas Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco”, apesar
das inúmeras dificuldades enfrentadas.5 Em relação a Pernambuco, Maria Beatriz
Nizza da Silva aponta
que as aulas régias tardaram a ser criadas porque não era inicialmente cobrado um
imposto específico para pagar os mestres espalhados pela capitania e suas anexas.

2 Veja-se, por exemplo, CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Saraiva; Ed. Univer-
sidade de São Paulo, 1978 (originalmente publicado em 1952); ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos estudos
secundários no Brasil. São Paulo: Saraiva; Editora da USP, 1978; CARRATO, José Ferreira. O iluminismo em Portugal e as reformas pomba-
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Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010; e FONSECA, Thaís Nívia de Lima e (org.). As reformas pombalinas no
Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011.
3 Para uma visada do reinado de d. José e das ações de seu “valido”, o Marquês de Pombal, cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D.
José na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. Sobre a trajetória de Carvalho e Melo, ver SERRÃO, Joaquim Veríssimo.
O Marquês de Pombal: o homem, o diplomata e o estadista. 2. ed. Lisboa: [s.n.], 1987. Sobre as reformas pombalinas, ver SANTOS,
Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p.
75-95, jan./jun. 2011.
4 MELO, Sebastião José de Carvalho e. Observações secretíssimas do Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo,
na ocasião da inauguração da Estátua Equestre no dia 6 de junho de 1775, e entregues por ele mesmo oito dias depois ao senhor rei D.
José I. In: MELO, Sebastião José de Carvalho e. Memórias secretíssimas do Marquês de Pombal e outros escritos. Mem Martins: Publicações
Europa-América, S.d., p. 245.
5 FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais, 1772-1814. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 19.
Para o Rio de Janeiro, ver CARDOSO, Tereza M. R. Fachada Levy. As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática das
aulas régias no Rio de Janeiro, 1759-1834. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
117

Em seguida, depois de lançado o subsídio literário para tal fim, constatou-se sua
deficiente cobrança.6

Com pequenas variações, este foi o cenário geral da extensa colônia ame-
ricana, cujos jovens, para frequentar o ensino universitário, precisavam dirigir-se
ao reino.
Maria Beatriz Nizza da Silva, ao discutir “a cultura da Ilustração” na capi-
tania de Pernambuco, refere-se ao “desejo pombalino de vencer a ignorância das
populações”, expresso principalmente “pelas transformações do ensino, primeiro
naquilo que então se denominava Estudos Menores, e em seguida nos estudos uni-
versitários de Coimbra, reformados em 1772”.7 O “desejo pombalino de vencer a
ignorância”, no entanto, é apenas um dos aspectos que conformam o “parado-
xo” expresso por Kenneth Maxwell há algum tempo. Apropriando-se de uma
manifestação de António Ribeiro dos Santos, o historiador inglês indicou que o
marquês de Pombal “quis civilizar a nação e, ao mesmo tempo, escravizá-la. Quis
difundir a luz das ciências filosóficas e, ao mesmo tempo, elevar o poder real do
despotismo”, informando, entretanto, que esta situação teria sido “comum entre
os absolutistas europeus do século XVIII, mas que encontra talvez o seu exemplo
mais extremo em Portugal”.8
As mencionadas palavras de António Ribeiro dos Santos, tido como “um
dos colaboradores mais próximos de Pombal na área da reforma educacional e
eclesiástica”, teriam sido redigidas em “um período de autocrítica após a morte
de Pombal”,9 ocorrida em 1782. Elas constam de uma carta “sem destinatário” e
estão inseridas em um comentário mais amplo, conforme transcrição apresentada
por Luís Fernando de Carvalho Dias:
Este ministro [Pombal] quis um impossível político; quis civilizar a nação e ao
mesmo tempo fazê-la escrava; quis espalhar a luz das ciências filosóficas, e ao mesmo
tempo elevar o poder real ao despotismo; inculcou muito o estudo do direito natural

6 SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Pernambuco e a cultura da ilustração. Recife: EdUFPE, 2013, p. 10.
7 Ibidem, p. 10 e 15.
8 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 2. O original inglês
(Pombal, paradox of the Enlightenment) foi publicado em 1995 pela Cambridge University Press. Para uma visão ampla sobre a propagação
das Luzes pela Europa, “incluindo a nação lusa de um Marquês de Pombal”, cf. IM HOF, Ulrich. A Europa no século das Luzes. Lisboa:
Presença, 1995.
9 MAXWELL, op. cit., p. 1-2.
118 A globalização das luzes

e das gentes, e do direito público universal, e lhes erigiu cadeiras na Universidade


de Coimbra, mas não via que dava luzes aos povos para conhecerem por elas que
o poder soberano era unicamente estabelecido para o bem comum da nação e não
do príncipe, e que tinha limites e balizas em que se deveria conter.10

Considerando as contradições que Ribeiro dos Santos apontou para as


ações de Pombal, José Esteves Pereira entende que o aspecto “verdadeiramente
problemático no pombalismo (1755-1777)”:11
[...] é, justamente, a conciliação entre um programa de abertura a correntes teóricas,
e também especulativas, que se inscreviam no âmbito da filosofia natural, ou mesmo
no âmbito de uma certa casuística, que a influência jusnaturalista ia produzindo,
fundando a “boa razão” em detrimento de um arrimo jurídico consuetudinário.
Não obstante tal atitude, o certo é que a necessidade de preservar muitas raízes
culturais de sentido tradicional, especialmente no campo do pensamento teológico,
que em derradeira análise fundamentava o Estado absoluto, justificam as palavras
de Ribeiro dos Santos.12

Em relação ao assunto que nos interessa mais particularmente, Ana Cristina


Araújo aponta que o pombalismo foi “incapaz de resolver a contradição de base
da sua política educativa: fazer da crítica o fundamento da modernidade e, sob
os auspícios da ideia de progresso, manter amarrada a razão à tradição”. Neste
sentido, considera que a “orientação ilustrada do governo pombalino [...] filia-
-se diretamente na corrente regalista que caracteriza o Absolutismo Esclarecido
português”.13 Contudo, não obstante o peso das críticas dirigidas ao pombalismo,
não é descabido considerar que Carvalho e Melo, à sua maneira, pretendeu dar
“luzes aos povos”. Ou, como propõem Mário Costa e Rui Marcos, as reformas
pombalinas foram “um sério esforço destinado a implantar no ensino português

10 DIAS, Luís Fernando de Carvalho (ed.). Algumas cartas do Doutor António Ribeiro dos Santos aos seus contemporâneos. Revista
Portuguesa de História, Coimbra, v. 14, p. 413-519, 1975, p. 447 apud PEREIRA, José Esteves. Percursos de História das Ideias. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004, p. 134. O mesmo trecho está transcrito em texto de Ana Cristina Araújo, que utilizei para
cotejar e fazer uma pequena correção na citação. Cf. ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo.
In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000b, p. 14. Nota-se
alguma variação nas palavras do texto citado por Maxwell, possivelmente devido aos processos de tradução (do português para o inglês
e deste, novamente, para o português); todavia, deve-se destacar a diferença essencial na expressão “elevar o poder real do despotismo”,
em Maxwell, e “elevar o poder real ao despotismo”, em Pereira e em Araújo.
11 José Esteves Pereira parece utilizar o termo “pombalismo” no mesmo sentido atribuído a ele por seu “mestre”, José Sebastião da
Silva Dias, que o relaciona à cultura política que se desenvolveu em Portugal na segunda metade do século XVIII. Ver DIAS, José
Sebastião da Silva. Pombalismo e teoria política. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1982.
12 PEREIRA, op. cit., p. 134.
13 ARAÚJO, 2000b, p. 15-16.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
119

certas modernidades que faziam carreira além-fronteiras”.14 A partir desta pre-


missa, parece interessante e necessário investigar o significado que o marquês
de Pombal atribuía ao ensino e que meios ele pretendeu utilizar para “vencer a
ignorância das populações”.
A exposição que segue apoia-se, principalmente, em documentos oficiais,
dentre outros, o Alvará de confirmação dos Estatutos da Aula do Comércio,15 o
Alvará de reforma das Escolas Menores,16 a Lei de criação e Estatutos do Colégio
Real dos Nobres,17 a Lei criando Escolas públicas, seus professores e concedendo a
jurisdição delas à Real Mesa Censória18 e os Estatutos da Universidade de Coimbra
de 1772.19 Estes documentos expõem, dentre outros aspectos, os conhecimentos
que deveriam ser transmitidos e o modo pelo qual o ensino deveria ser ministrado.
Assim, a documentação em foco, não obstante as suas limitações, possibilitou iden-
tificar as concepções e as expectativas dos propositores das reformas educacionais
do período, permitindo também perceber nexos entre as ideias que circulavam
no ambiente intelectual europeu da época e a formação escolar que se pretendia
oferecer aos jovens portugueses.

*
Aos olhos de um homem de negócios da época, “o Senhor Rei D. José foi o
Regenerador da Nação”. Dentre as diversas ações levadas a cabo naquele reinado,
Jacome Ratton, em suas Recordações, dedica algum espaço para tratar da “educação
pública”, informando que, após a “extinção dos jesuítas”,
[...] se criaram e distribuíram pelos bairros de Lisboa e terras do Reino, mestres
públicos de Primeiras Letras, Gramática, Retórica e Filosofia, debaixo da direção

14 COSTA, Mário Júlio de Almeida; MARCOS, Rui de Figueiredo. Reforma pombalina dos estudos jurídicos. In: ARAÚJO, Ana
Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 125.
15 Alvará de 19 de maio de 1759, confirmando os Estatutos da Aula do Comércio. Cf. SILVA, António Delgado da. Collecção da
legislação portugueza desde a última Compilação das Ordenações: legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 655-660.
16 Alvará de 28 de junho de 1759, sobre a restauração dos estudos nestes reinos e seus domínios. Ibidem, p. 673-678.
17 Carta de Lei de 07 de março de 1761, criando o Colégio Real dos Nobres. Ibidem, p. 773-792.
18 Lei de 06 de novembro de 1772, sobre as escolas menores e mestres. Cf. SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portugueza
desde a última Compilação das Ordenações: legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829, p. 612-615.
19 ESTATUTOS da Universidade de Coimbra compilados debaixo da imediata e suprema inspeção de el Rei D. José I. Lisboa:
Regia Officina Typografica, 1772. 3 vols.
120 A globalização das luzes

de um tribunal que o mesmo soberano criou, com o nome de Real Mesa Censória,
o qual foi encarregado não só da direção dos estudos públicos, mas também da
revisão dos livros.20

Jacome Ratton também abordou a criação da Aula do Comércio, informan-


do que o objetivo foi o de ensinar “os elementos até então ignorados pela maior
parte dos nacionais, que somente praticavam o comércio no interior do Reino e suas
colônias”.21 Outro estabelecimento de ensino, o Colégio Real dos Nobres, recebeu
igualmente sua atenção, tratando com minúcia dos seus professores,
sendo de notar que, nos primeiros anos do estabelecimento do Colégio dos Nobres,
fossem todos os professores estrangeiros, inclusive os de dança, escrita [sic] e flo-
rete; podendo apenas excetuar-se os da língua portuguesa e latina e o de desenho,
Joaquim Carneiro.22

Por fim, sua atenção voltou-se para “a reforma da Universidade de Coim-


bra”, considerada como “o último aperfeiçoamento do ensino público”, registrando:
“Depois de tão sábias como providentes instituições que tiveram lugar durante o
reinado do Senhor Rei D. José, recebeu a nação uma nova ilustração que hoje a
iguala com as nações mais polidas e iluminadas”.23
Para o marquês de Pombal, “a restauração da Universidade de Coimbra”
coroou as reformas educacionais ocorridas naquele reinado. Em suas “Observações
secretíssimas”, redigidas por ocasião da inauguração da estátua equestre do rei,
em 6 de junho de 1775, na praça do Comércio, ele fez – como não poderia deixar
de ser – uma elogiosa apreciação delas. Porém, é interessante verificar que a não
tão bem-sucedida criação do Colégio Real dos Nobres não é mencionada,24 ao
contrário do que acontece com a reforma dos Estudos Menores, a criação da Aula
do Comércio e a publicação dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra.
Aliás, a “restauração da Universidade”, no seu entender, foi a responsável pela re-

20 RATTON, Jacome. Recordações de Jacome Ratton sobre ocorrências do seu tempo em Portugal, de maio de 1747 a setembro de 1810. 4. ed. Lisboa:
Fenda, 2007, p. 172. Edição fac-similar da primeira edição publicada em Londres, em 1813. O relato de Jacome Ratton, como todo
aquele fundado em lembranças, traz diversas informações inexatas, condensando fatos que ocorreram em períodos de tempo distintos.
21 Ibidem, p. 202.
22 Ibidem, p. 174.
23 Ibidem, p. 175 e 178.
24 Ao tratar da criação do Colégio Real dos Nobres, Jacome Ratton observa “que o estabelecimento foi criado para 200 alunos; mas
também me persuado que nunca chegaram nem à metade, não obstante a módica pensão anual que devia pagar cada aluno”. Ibidem,
p. 173.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
121

generação do “estado das ciências maiores” em Portugal e, com o “estabelecimento


das sacrossantas leis, que abolindo os expurgatórios romano-jesuíticos, fecharam
aos livros perniciosos as portas que abriram aos de sã e útil erudição”, foi possível
propiciar ao reino as “claríssimas luzes em que hoje abundam”.25
No entendimento de Pombal, os “efeitos” das reformas educacionais haviam
atravessado as fronteiras nacionais, pois
As nações que, com arrogância, vanglória e superioridade, olhavam antes para a
portuguesa como bisonha, rude, inerte e destituída de todos os elementos e princípios
das artes fabris e liberais, e dos verdadeiros conhecimentos das ciências maiores,
acabaram agora de ter o último desengano, de que a respeito das primeiras, nos
achamos com elas igualados, e a respeito das segundas, excedemos à maior parte
delas, como os italianos e franceses não têm já feito cerimônia de confessar, muitas
e repetidas vezes, respeitando e imitando as leis e resoluções de S. M., pedindo e
invejando os estatutos da Universidade de Coimbra, e encomendando aos seus
correspondentes em Lisboa a remessa de todos os escritos que se têm publicado e
publicarem, neste glorioso reinado, até por esses mesmos estrangeiros cognominado
felicíssimo.26

Não obstante as loas tecidas por Pombal e, depois, por Ratton, a apreciação
sobre a efetividade e o alcance das reformas educacionais da segunda metade do
século XVIII português foram e continuam a ser objeto de alguma controvérsia,
especialmente quando a avaliação leva em conta o “espírito das Luzes”.27 Não
obstante reconhecer que “uma das abordagens mais seguras sobre a prática cul-
tural pombalina é certamente a vertente educativa”, José Esteves Pereira ressalva
que “a reforma educativa pombalina, efectiva, será lenta e não isenta de alguns
equívocos”.28 Ana Cristina Araújo, ao confrontar documentos e textos que ante-
cederam e que instituíram as reformas educacionais com as avaliações que foram
produzidas depois delas, entende que os resultados ficaram, “em muitos aspectos,
aquém da ambição e das expectativas” de diversos reformistas, como Luís António

25 MELO, op. cit., p. 246.


26 Ibidem, p. 249 (destaque no original).
27 Para Todorov, o “projeto das Luzes” está embasado em “três ideias”: a autonomia, a finalidade humana de nossos atos e, enfim,
a universalidade; neste sentido, o “espírito das Luzes”, mais do que uma época, ou “uma doutrina historicamente situada”, significa
“uma atitude em relação ao mundo”. TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. São Paulo: Barcarolla, 2008, p. 114 e 149.
28 PEREIRA, op. cit., p. 133.
122 A globalização das luzes

Verney, António Soares Barbosa e António Nunes Ribeiro Sanches.29 Todavia,


Ana Cristina Araújo lembra que devemos levar em conta os ideais políticos que
orientaram a tomada de decisões naquele contexto, pois “não se tratava apenas
de controlar, funcionalmente, a escola, mas de infundir, por meio de um projecto
coerente de educação nacional, a ideia de que a instrução era inseparável do bem
comum e da felicidade pública”. Tal avaliação deixa explícita a relação entre as
reformas da educação e uma “cultura das Luzes”, e o Estado português teria
procurado adequar o ensino às suas “exigências secularizadoras e regalistas”,
conformando-o às “orientações dominantes, do ponto de vista filosófico, pedagó-
gico e científico, do século das Luzes”, na medida em que elas não confrontassem
seus interesses.30 Neste assunto em particular, parece importante considerar que
o controle da instrução pelo Estado era tema recorrente em diversos tratados de
política de meados do século XVIII. Emmerich de Vatel, por exemplo, em seu O
direito das gentes, dedica alguns parágrafos ao assunto, defendendo que “a educação
da juventude é um dos temas mais importantes a merecer a atenção do governo”,
assinalando que ela não deveria “repousar inteiramente nos pais”. Vatel recomen-
dava que o governante dedicasse grande atenção para “instruir seu povo, esclarecê-
-lo, formá-lo nos bons conhecimentos e sábias disciplinas”, devendo “fundar bons
estabelecimentos para a educação pública, provê-los de mestres hábeis, dirigi-los
com sabedoria e fazer de modo que, por meios amenos e convenientes, os súditos
não deixem de tirar proveito deles”.31
As reformas do sistema educacional português, apesar das limitações im-
postas, foram conduzidas no sentido de, como já apontado, transformar a men-
talidade de setores da sociedade portuguesa,32 formando um “cidadão cristão, que
seria necessariamente virtuoso, trabalhador e aplicado para obter a riqueza para

29 ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 51-66.
30 Ibidem, p. 54.
31 VATEL, Emmerich de. O direito das gentes ou princípios da lei natural aplicada à condução e aos negócios nas nações e dos governantes. Ijuí:
Unijuí, 2008, p. 242. Vatel escreveu esse seu tratado em francês, o qual foi publicado pela primeira vez em 1758. Segundo Francesco
Mancuso, Vatel foi influenciado pelas ideias de Christian Wolff, e O direito das gentes inscreve-se “na gramática absolutista do discurso
sobre a soberania”. MANCUSO, Francesco. Introdução. In: VATEL, Emmerich de. O direito das gentes ou princípios da lei natural aplicada
à condução e aos negócios nas nações e dos governantes. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 19.
32 SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para formar homens capazes de “discernimento e de percepção”: reformas educacionais
em Portugal (segunda metade do século XVIII). In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 13., 2012, Londrina-PR. Anais...
Londrina: ANPUH-PR, 2012, p. 392-403.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
123

si e para o Estado”.33 José Esteves Pereira, a propósito, afirma que “a visão política
pombalina compagina-se, aliás, adequadamente, com a promoção do vassalo útil,
sem prejuízo do cristão esclarecido. Esclarecido, justamente, em relação a tudo o
que perturbasse a sua meditação”.34
Mas, se os antigos Estatutos da Universidade de Coimbra35 já preconizavam
que, junto às ciências, fosse ensinada a “santa doutrina”, de modo a assegurar a
formação de súditos cristãos leais à monarquia,36 esse sujeito “virtuoso”, “útil” ao
Estado e a si próprio já não estaria sendo produzido desde antes dessas reformas?
O que diferencia, então, um momento do outro?
Em busca de respostas a tais questões, pode-se indicar, inicialmente, que,
desde o Alvará de 28 de junho de 1759 (que privou os jesuítas de suas escolas),
o foco declarado das reformas educacionais foi o método de ensinar, à medida
que se determinou a substituição daquele utilizado pelos padres da Companhia
de Jesus por outro, conforme ao “que se pratica atualmente pelas nações polidas
da Europa”.37 Aliás, em Portugal, desde pelo menos a primeira metade do século
XVIII, a metodologia de ensino empregada pelos jesuítas enfrentava críticas. Antes
da publicação da principal obra a confrontar o ensino promovido pelos jesuítas – o
Verdadeiro método de estudar –,38 Martinho de Mendonça de Pina e de Proença já havia
expressado suas reservas ao “sistema abstrato de Aristóteles, ou para melhor dizer
dos Escolásticos”; para ele, o “método Matemático” era mais adequado que “as
súmulas dialéticas, cujo fim parece que é uma pertinácia na disputa”.39

33 VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia: as ideias económicas no discurso da Ilustração portuguesa (1746-1820).
Lisboa: Colibri, 2002, p. 74 (destaques no original).
34 PEREIRA, op. cit., p. 139.
35 Segundo Mário Júlio de Almeida Costa, “[...] os Estatutos Filipinos de 1598, conhecidos por Sétimos Estatutos, depois revistos
e confirmados por Filipe II (1612) e de novo confirmados por D. João IV (1653), permaneceram em vigor até à reforma pombalina.
Recebem o nome de Estatutos Velhos, em contraposição aos chamados Estatutos Novos, de 1772”. COSTA, Mário Júlio de Almeida.
O Direito (cânones e leis). In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra;
Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 825.
36 ESTATUTOS da Universidade de Coimbra confirmados por el Rei nosso Senhor Dom João o IV, no ano de 1653. Coimbra:
Oficina de Thomé Carvalho, Impressor da Universidade, 1654, p. 1.
37 Alvará de 28 de junho de 1759. SILVA, 1830, p. 675.
38 Cf. VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar para ser útil à República e à Igreja, proporcionado ao estilo e necessidade de Portugal
etc... Valensa: Oficina de Antonio Balle, 1746.
39 Cf. PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a educação de um menino nobre. Lisboa: Oficina de Joseph
Antonio da Silva, 1734, p. 334 e 319.
124 A globalização das luzes

Mas, além da metodologia de ensino, os conhecimentos que se queria


transmitir também foram merecedores de atenção. Talvez, a criação da Aula do
Comércio demonstre a importância dada à formação de um indivíduo que pre-
cisaria estar em sintonia com os novos tempos.40 Conforme Cláudia Chaves, no
transcorrer do século XVIII, “a instrução formal tornara-se requisito fundamen-
tal para pertencer e atuar em diversas áreas profissionais”, inclusive na atividade
mercantil; para esta área específica, “a aquisição formal de conhecimentos para
os mercadores, os caixeiros e os guarda-livros tornou-se obrigatória, enquanto que
para os negociantes era apenas recomendada”.41
O já mencionado Jacome Ratton foi um entusiasta da Aula do Comércio,
entendendo que d. José, autorizando o seu funcionamento,42 havia compreendido
a necessidade de “lançar outros fundamentos ao comércio nacional”, formando
pessoas que soubessem realizar a “escrituração dos livros em partidas dobradas” e
que fossem versados “no conhecimento de pesos, medidas e moedas estrangeiras,
dos câmbios e suas combinações”.43 Estes eram os conteúdos a serem ministrados
pelo professor daquela escola. Conforme sua avaliação, o funcionamento da Aula
do Comércio era de grande utilidade, tanto para os negociantes como para “a
Nação, pelos alunos que dela têm saído, que não só as contadorias da Real Fazen-
da, tanto no Reino como nas colônias, se tem servido deles”.44 Esta afirmação de
Ratton é corroborada pelo seguinte acontecimento: em 18 de março de 1767, o
vice-rei do Estado do Brasil, conde da Cunha, recebeu uma carta da secretaria de
estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos, informando-o da nomeação de
“um guarda-livros e dois escriturários” para gerirem a arrecadação dos impostos

40 Ver, entre outros, SANTANA, Francisco. A Aula de Comércio: uma escola burguesa em Lisboa. Ler História, n. 4, p. 19-30, 1985;
RODRIGUES, Lúcia; GOMES, Delfina; CRAIG, Russel. The Portuguese School of Commerce, 1759-1844: a reflection of the “En-
lightenment”. Accounting History, v. 9, n. 3, p. 53-71, 2004; e SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. A Aula de Comércio: “uma escola
política e magnífica para a formação de negociantes peritos e hábeis”. In: CONGRESSO LUSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA
EDUCAÇÃO, 11., Porto. Anais... Porto: CITCEM, 2016.
41 CHAVES, Cláudia Maria das Graças. As aulas de comércio no Império luso-brasileiro: o ensino prático profissionalizante. In:
DORÉ, Andréa; SANTOS, Antonio Cesar de Almeida (orgs.). Temas setecentistas: governos e populações no Império português. Curitiba:
UFPR; Fundação Araucária, 2008, p. 267.
42 A criação e funcionamento de uma Aula do Comércio estava prevista no Capítulo XVI dos Estatutos da Junta do Comércio, criada
em 30 de setembro de 1755. Ver os Estatutos da Junta do Comércio, aprovados pelo Alvará de 16 de dezembro de 1756 em SILVA,
1830, p. 458-480.
43 RATTON, op. cit., p. 202-206.
44 Ibidem.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
125

e a sua escrituração, a qual devia ser realizada nos moldes ensinados na Aula do
Comércio. Os antigos “proprietários” daqueles ofícios da Real Fazenda, no Rio de
Janeiro, foram demitidos, recebendo os ordenados devidos, “pela metade”, como
forma de compensação.45
Os Estatutos da Aula do Comércio foram confirmados por d. José, em 19 de
maio de 1759. Naquele estabelecimento, seriam ensinados “os princípios necessários
a qualquer negociante perfeito”,46 com o objetivo de alcançar “a conservação e au-
mento do bem público dos meus vassalos e do comércio”.47 O curso teria a duração
de três anos48 e estava destinado, preferencialmente, para os filhos de “homens de
negócios”. Para ingressar, os jovens deveriam ter “catorze anos completos” e saber
“ler, escrever e contar”. Justificava-se a exigência de uma idade mínima com o
argumento de que os estudos não poderiam “suprir o defeito causado pela pouca
idade”.49
Os Estatutos do Colégio Real dos Nobres, criado em 1761 (estabelecimento
que só começou a funcionar em 1766), também explicitavam algumas exigências
de ingresso: “os que houverem de ser admitidos, no dito Colégio, saberão ler e es-
crever, não tendo menos de sete anos, nem mais de treze”.50 A idade mínima, neste
caso, além de estar relacionada à aptidão de leitura e escrita dos alunos, indica que
os jovens fidalgos, mais do que instrução, receberiam uma educação condizente
a suas posições. Enquanto os jovens que iriam frequentar a Aula do Comércio já
teriam recebido uma primeira educação escolar (dada a idade mínima de ingres-
so), na qual se incluíam os preceitos religiosos, os alunos do Colégio dos Nobres
ainda seriam instruídos nos preceitos de Deus “e da sua Igreja, não bastando que

45 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Códice 415–Livro de registro de cartas, ordens e mais papéis expedidos pela Secretaria de
Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos para o Estado do Brasil (1765-1769). Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado
para o Conde da Cunha, 18 de março de 1767.
46 Ver os Estatutos da Aula de Comércio em SILVA, 1830, p. 656.
47 Alvará régio de 19 de maio de 1759. Ibidem, p. 655.
48 Ao contrário da Aula do Comércio, não havia uma indicação sobre a duração dos estudos realizados no Colégio dos Nobres.
Contudo, pode-se considerar que a permanência dos seus alunos seria equivalente àquela que Laerte Ramos de Carvalho descreve
para as escolas menores jesuíticas: “o curso de gramática e humanidades deveria durar de cinco a seis anos. Completada a iniciação
literária, passavam os estudantes para as classes de filosofia, que abrangiam três anos de estudos sobre lógica, física, metafísica, moral
e as matemáticas. Totalizavam esses estudos nove anos”. CARVALHO, op. cit., p. 113.
49 Estatutos da Aula de Comércio em SILVA, 1830, p. 657.
50 Lei de 07 de março de 1761. Ibidem, p. 778.
126 A globalização das luzes

no Colégio floresçam as Belas Letras se com elas não se aprenderem e cultivarem


os bons costumes”.51
Apesar de existirem recomendações acerca do que deveria ser ensinado, o
professor da Aula do Comércio não estava preso a um plano de ensino formal.52
Ao contrário, cada professor do Colégio Real dos Nobres deveria ter o “método
pelo qual pretende ensinar” previamente aprovado.
[...] que os professores da lógica, da história, da matemática, da arquitetura militar
e civil, do desenho, da física e das artes, da cavalaria, esgrima e dança formem
cada um deles na sua diferente profissão uma minuta na qual se contenha: primei-
ramente, uma ideia clara do método pelo qual pretende ensinar; em segundo lugar,
um catálogo dos livros por onde intenta que seus respectivos discípulos hajam de
estudar; em terceiro e último lugar, outro catálogo que sirva de socorro de estudo
àqueles que entre os sobreditos discípulos se acharem capazes de passar das lições
das Escolas a exercitarem-se pela sua própria aplicação nas Faculdades, que antes
houverem aprendido. Conferindo-se as referidas minutas, depois de assim serem
formadas, com o Reitor e professores, que ao mesmo Reitor e professores parecer
convocar para a conferência. E sendo os autos dela remetidos ao Diretor Geral para
Me os consultar e Eu resolver sobre eles o que achar que é mais útil ao adiantamento
e boa ordem dos Estudos.53

O Colégio Real dos Nobres tinha outras particularidades. Para o ensino


da Matemática “e das diferentes partes que a constituem”, estavam previstos “três
professores”, o que indica a importância que estava sendo conferida ao seu ensino,
cujos conhecimentos eram considerados indispensáveis para todos os que aspirassem
colocar-se a serviço do rei, “na milícia, ou por mar ou por terra”.54 Entretanto,
caso preferissem seguir para os cursos universitários, os jovens que concluíssem
seus estudos naquele colégio poderiam efetuar suas matrículas nas faculdades da
Universidade de Coimbra, sem a necessidade de realizarem outros exames, de-
pendendo apenas do aval do diretor geral dos Estudos.55

51 Ibidem, p. 775.
52 Alvará régio de 19 de maio de 1759. Ibidem, p. 658.
53 Lei de 07 de março de 1761. Ibidem, p. 785-786.
54 Ibidem, p. 782.
55 Ibidem, p. 786.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
127

A idade de ingresso nos cursos universitários também recebeu a atenção dos


legisladores. Os responsáveis pela elaboração dos Estatutos da Universidade de
Coimbra de 1772 defendiam que os estudantes deveriam permanecer “nas Escolas
Menores” o tempo necessário para a realização “dos estudos preparatórios”.56 O
“futuro teólogo”, por exemplo, precisaria ter uma “boa instrução da Língua latina,
da Retórica, das disciplinas filosóficas e muito principalmente da Lógica”, além de
conhecer “todas as partes da Metafísica” e a Ética;57 além disso, considerava-se,
para esta faculdade em particular, que “nenhuma coisa se opõe mais ao bem da
Igreja e do Estado do que a pouca reflexão com que muitos entram no Curso de
Teologia”.58
Conforme Fernando Taveira da Fonseca,
O panorama das condições de acesso à Universidade muda de forma substancial,
com os Estatutos de 1772. [...] Antes de mais, pelo estabelecimento de idades mínimas
de ingresso – para obviar, como explicitamente se afirma, a que se precipitassem
os estudos preparatórios: assim é que ninguém poderia matricular-se em Teologia
“sem contar dezoito anos de idade completos e daí para cima”; o mesmo se aplica-
va à Medicina; para os cursos de Direito (Civil e Canônico) a idade mínima seria
de dezasseis anos; já para Matemática se podia ingressar com quinze anos e para
Filosofia, com catorze.59

Por sua vez, os Estatutos de 1653 estabeleciam que, para a matrícula em


um dos cursos de Direito, era necessário apenas comprovar o prévio conhecimento
do latim e, para o ingresso nos cursos de Teologia ou de Medicina, era exigida a
conclusão do curso em Artes.60 Não obstante essas exigências, que pressupunham a
realização de estudos anteriores, diversos jovens concluíam os cursos universitários
com idades entre os 17 e os 21 anos, apesar de os cursos jurídicos, por exemplo,

56 ESTATUTOS..., 1772, livro primeiro, p. 5.


57 Ibidem, p. 5-6.
58 Ibidem , p. 2.
59 FONSECA, Fernando Taveira da. A dimensão pedagógica da reforma de 1772: alguns aspectos. In: ARAÚJO, Ana Cristina
(coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000, p. 46-47.
60 ESTATUTOS..., 1654, p. 136. A referência é ao Colégio das Artes, que funcionava em Coimbra e oferecia uma formação huma-
nística, necessária ao ingresso na Universidade. Além de filosofia, gramática latina, retórica, lógica e matemática, o Colégio oferecia
cursos de teologia, grego e hebraico.
128 A globalização das luzes

terem uma duração média superior a 7 anos.61 Não havia, portanto, nenhuma
disposição regulando a idade mínima (ou máxima) para ingresso na Universidade.
Fernando Taveira da Fonseca também informa que, durante “o longo pe-
ríodo de 1577 a 1772”, 72% dos alunos matriculados em Coimbra frequentaram
o curso de Direito Canônico; 15,3%, o de Direito Civil; 7,1%, o de Medicina; e,
5,6% cursaram Teologia.62 Se considerarmos que a opção pelas carreiras expressa
o valor social a elas atribuído, percebe-se um relativo desprezo pela formação em
Medicina, mesmo sendo um curso com duração média de seis anos;63 a faculdade
de Teologia, por seu turno, gozava de certa especificidade, pois era a opção quase
exclusiva de “membros das ordens religiosas”.64 Os cursos de Direito apareciam,
para os estudantes e suas famílias, como aqueles que ofereciam as melhores opor-
tunidades para carreiras profissionais e reconhecimento social. A alta porcentagem
de estudantes no curso de Direito Canônico pode ser explicada pela possibilidade
de o formado atuar também no Direito Civil, e o destaque recebido pelos cursos
de leis estaria relacionado ao reconhecimento que os “juristas letrados” foram
ganhando no ambiente social português, entre os séculos XVI e XIX.65
Se o estudante esperava obter emprego e reconhecimento social, o que
a monarquia portuguesa desejava daquele que concluía o ensino universitário?
Segundo os Estatutos de 1653, além da “honra, glória e serviço de Deus nosso
Senhor”, esperava-se que, na Universidade, fossem ensinadas e aprendidas as
“ciências necessárias para bom governo e conservação da República Cristã”,66 ou
seja, a Universidade seria a responsável pela formação dos indivíduos encarregados
dos negócios políticos e administrativos da monarquia, nos quais se incluíam as
questões religiosas. Neste aspecto, os Estatutos de 1772 registravam que

61 FONSECA, Fernando Taveira da. [Os corpos acadêmicos e os servidores da] Universidade de Coimbra. In: HISTÓRIA da
Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997a, p. 555.
62 Ibidem, p. 537-539. Além dos quatro cursos mencionados, a Universidade de Coimbra contava, ao menos desde 1653, com “uma
cadeira de Matemática”. Cf. ESTATUTOS..., 1654, p. 144.
63 FONSECA, Fernando Taveira da. A medicina. In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771). Coimbra:
Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997b, p. 835.
64 Idem, 1997a, p. 541.
65 HESPANHA, Antonio Manuel. Os modelos normativos; os paradigmas literários. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida
privada em Portugal: a Idade Moderna Coordenação de Nuno Gonçalo Monteiro. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, p. 58-70.
66 ESTATUTOS..., 1654, p. 1.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
129

as Universidades e Escolas públicas de Teologia foram instituídas para nelas se cria-


rem ministros idôneos, que hajam de ser o sal que preserve os povos da corrupção
dos vícios, a luz que os ilustre e guie nas trevas do século, os Mestres e Doutores
que os instruam no sólido conhecimento das verdades cristãs [...].67

Esse interesse da Coroa na formação dos indivíduos que iriam atuar junto às
populações corresponde à avaliação que José Subtil faz sobre o ensino universitário
em geral, considerando-o responsável pela reprodução do poder dominante, na
medida em que os graduados na Universidade de Coimbra, no exercício de seus
ofícios, asseguravam a presença simbólica do soberano em diversos níveis e espaços
da administração régia.68 A propósito desta relação entre a instituição de ensino
e os interesses da Coroa, António de Oliveira salienta que “não admira, por isso,
que o poder régio, à medida que se foi fortalecendo, se impusesse à Universidade
como corporação, cerceando-lhe as liberdades colectivas”.69
Então, se mesmo antes da Reforma de 1772, a Universidade de Coimbra já
desempenhava o papel de formadora dos quadros administrativos, o que motivou
a reforma ocorrida no reinado de d. José? É possível admitir que a intenção teria
sido a de modificar uma situação em que, “por motivos metodológicos fundamen-
tais, a ‘ciência’ ministrada na Universidade nada tinha de investigativa e tudo de
argumentativa”?70 Enfim, a motivação da reforma teria sido a de transformar a
Universidade, para que ela oferecesse um ensino assentado na investigação e não
apenas na arte de argumentar?
Tendo em vista estas questões, já foi apontado que o método de ensino
recebeu grande atenção dos responsáveis pela elaboração dos documentos que
orientaram as reformas educacionais da segunda metade do século XVIII, em
Portugal,71 as quais contaram inclusive com as criações de novas instituições de
ensino, a Aula do Comércio e o Colégio Real dos Nobres. Os membros da Junta

67 ESTATUTOS..., 1772, livro primeiro, p. 1-2.


68 SUBTIL, José. O protagonismo dos professores e dos graduados. In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-
1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 943-944.
69 OLIVEIRA, António de. A Universidade e os poderes. In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-1771).
Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 897-898.
70 MAGALHÃES, Joaquim Romero. A Universidade e a Inquisição. In: HISTÓRIA da Universidade em Portugal, v. 1, t. II (1537-
1771). Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 971.
71 Ana Cristina Araújo destacou que, “no fulcro das novas tendências filosóficas, está o problema do método dos estudos”. ARAÚJO,
2003, p. 29 (destaque no original).
130 A globalização das luzes

de Providência Literária, encarregada da redação dos novos Estatutos da Uni-


versidade de Coimbra, criticaram duramente a metodologia de estudos até então
adotada, acusando-a de estar fundada em “questões sutis, abstratas e inúteis” e em
“contendas, disputas e rixas” inócuas.72 Seguindo tais críticas, é possível considerar
que o principal ponto da reforma dos Estatutos residiu em definir o que deveria
ser ensinado, como e por quê. Tal atenção contrasta com os Estatutos de 1653, que
eram omissos na definição de como ensinar, indicando apenas as formalidades dos
atos que os estudantes estavam obrigados a realizar.73
Ainda que as reformas do ensino não derivem exclusivamente de um en-
frentamento ao método preconizado pelos jesuítas, os Estatutos de 1772 trazem
diversos parágrafos tratando do “método e ordem” que deveriam ser seguidos nos
estudos, recomendando-se, especificamente, o “método demonstrativo” (também
designado por “geométrico ou matemático”), para que as lições fossem “mais
frutuosas”.74 Os responsáveis pela elaboração dos novos Estatutos da Universidade
de Coimbra pretenderam substituir o aristotelismo escolástico dos jesuítas por um
método “mais próprio para dar a conhecer as verdades pelas suas causas”.75 De
modo mais enfático, ao tratar do funcionamento do curso de Filosofia afirmavam
que não havia “outros meios de chegar ao conhecimento da Natureza” que não
fosse “a Observação e a Experiência”, indicando que a observação limitava-se
[...] aos factos e fenômenos que a mesma Natureza oferece aos olhos dos homens no
curso ordinário de suas operações. Depois das verdades conhecidas pela observação,
será necessário passar às que somente se podem haver por meio da experiência, a
qual obriga a mesma Natureza a declarar as verdades mais escondidas, que por
si mesma não quer manifestar, senão sendo perguntada com muita destreza e
artifício.76

Este entendimento é bastante semelhante à ideia contida em uma pequena


passagem das já mencionadas “Observações secretíssimas” do marquês de Pom-
bal. Para ele, os resultados obtidos pelas “paternais, magnânimas e infatigáveis

72 COMPÊNDIO histórico do estado da Universidade de Coimbra (1771). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1972, p. 97-141.
73 ESTATUTOS..., 1654, 185-186.
74 ESTATUTOS..., 1772, livro terceiro [que contém os Cursos das Ciências Naturais e Filosóficas], p. 3.
75 Ibidem, livro primeiro, p. 22-23.
76 Ibidem, livro terceiro, p. 336-337.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
131

providências” de d. José apresentavam-se “ao claro conhecimento de todos aqueles


que, não parando na superfície dos objectos que lhes presentam à vista, passam
a investigar e compreender a substância das coisas”.77 Entendo que esta proposição ex-
pressa os fundamentos da teoria política pombalina, assentada em uma posição
de abandono de noções preconcebidas em prol de conhecimentos produzidos a
partir da observação sistemática da realidade sobre a qual se pretendia intervir.78
Esta valorização de conhecimentos que pudessem ser obtidos pela observação e
experimentação e comprovados “por demonstrações de conta, peso e medida”,79
aponta para a base epistemológica sobre a qual foram estabelecidas as reformas
educacionais da segunda metade do Setecentos português.

*
Para concluir este texto, entendo ser interessante e necessário apresentar
algumas considerações sobre os livros “de sã e útil erudição”, que foram saudados
pelo marquês de Pombal em seu discurso apologético sobre as reformas ocorridas
no reinado de d. José.80 Neste particular, Álvaro de Araújo Antunes nos lembra
que “os livros e as ideias que traziam se associavam e representavam um saber, um
poder intelectual, mas também um poder sobre intelectuais”.81 Disto decorre, então,
não ser um assunto fácil de abordar, mesmo porque, conforme apontado por Luiz
Carlos Villalta em estudo sobre a circulação de livros tidos como “libertinos”,82
em Portugal, na segunda metade do século XVIII, verifica-se um amálgama de

77 MELO, op. cit., p. 245 (destaque nosso).


78 Ver: SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Aritmética política e governo no reinado de D. José I (1750-1777). In: CONGRESSO
INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, 6., 2013, Maringá-PR. Anais... Maringá: ANPUH, 2013.
79 Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo para Marco Antonio Azevedo Coutinho, de 19 de fevereiro de 1742 apud DIAS, José
Sebastião da Silva. Pombalismo e projecto político. Lisboa: Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1984, p. 227.
Esta maneira de pensar mostra a inequívoca influência que Sebastião José de Carvalho e Melo recebeu da aritmética política inglesa,
cujo principal teórico, William Petty, defendia que os governantes, em suas decisões, deviam “usar apenas argumentos baseados nos
sentidos e considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza”. PETTY, William; QUESNAY, François. Obras
econômicas. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 143.
80 MELO, op. cit., p. 246.
81 ANTUNES, Álvaro de Araújo. Os ânimos e a posse de livros em Minas Gerais (1750-1808). In: ALGRANTI, Leila Mezan;
MEGIANI, Ana Paula T. (orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX).
São Paulo: Alameda, 2009, p. 255.
82 Para o sentido de libertino, ver VILLALTA, Luiz Carlos. Libertinagens e livros libertinos no mundo luso-brasileiro (1740-1802).
In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula T. (orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no
mundo ibérico (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 523-563.
132 A globalização das luzes

uma “herança secular de proposições heréticas e iconoclastas e de blasfêmias às


ideias trazidas pelas Luzes”, sendo bastante difícil determinar “até onde vai essa
herança e em que ponto começam as Luzes”.83 Não obstante esta indefinição,
Pombal, certamente, não estava se referindo a livros de conteúdos semelhantes ao
de Tereza Filósofa,84 analisado por Villalta, os quais, embora proibidos, circularam
em Portugal.
Legalmente, a circulação de livros proibidos ocorria mediante licenças
concedidas pelos órgãos de censura. Conforme Luiz Carlos Villalta, essas conces-
sões para que determinados indivíduos pudessem ter e ler livros proibidos podem
ser entendidas, por um lado, como “uma mercê da Coroa, e, de outro, um direito
inerente à condição social ou categoria profissional dos que as solicitavam”. Assim,
“o funcionamento da censura portuguesa no período do Reformismo Ilustrado, no
que se referia à fixação de interdições, à fiscalização da circulação e da posse de
livros, e à concessão de licenças para a leitura de livros proibidos”, mostra que a
ação censória estava em “coerência com a política desenvolvida num âmbito mais
geral pela Coroa”.85 Os livros que poderiam ser colocados ao alcance de ávidos
leitores eram, portanto, assunto de grande preocupação, como se verifica no texto
de um Edital da Real Mesa Censória, de 24 de setembro de 1770:
Considerando Eu quanto as ditas obras são capazes, pela força da sua iniquidade,
disfarçada com o artifício das expressões e com a aparência do estilo, de seduzir e
corromper não só a mocidade, falta de luzes e de experiência, mas também os espí-
ritos fracos e superficiais, inclinados a receber, sem discernimento, toda a novidade
e tudo o mais que pode lisonjear os seus sentidos e adular as suas desordenadas
paixões [...] Mando que as sobreditas obras, livros e cadernos sejam entregues na
secretaria do meu Tribunal da Real Mesa Censória.86

83 VILLALTA, Luiz Carlos. “Tereza Filósofa” e o frei censor: notas sobre a circulação cultural e as práticas de leitura em Portugal
(1748 -18 02). In: PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (séculos
XVI-XVIII). São Paulo: Annablume, 2006, p. 128.
84 Tereza Filósofa, cuja autoria é atribuída ao marquês d’Argens, é considerado um exemplo de livro “libertino”. O livro, publicado
em 1748, alcançou “cerca de quinze edições até 1785, tornando-se um clássico da literatura proibida, não escapando da interdição por
parte da censura portuguesa, determinada em 1758”. Idem, 2009, p. 530.
85 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado
em História) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999, p. 233 e 269-270.
86 Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Pombalina. Códice 456 – Coleção Josefina: Leis, decretos e alvarás (Tomo IV). Edital
da Real Mesa Censória, 24 de setembro de 1770.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
133

O referido Edital, que listava mais de cem títulos, proibia o comércio e a


posse de textos cuja autoria era creditada a autores tidos como de “Espíritos Fortes”
e que atribuíam a si mesmos “o especioso título de Filósofos”, como Du Marsais
(e seu Analyse de la religion chrétienne), o marquês D’Argens (diversas obras), Pierre
Bayle (Dictionnaire Historique et critique), Thomas Hobbes (De cive e Leviathan), Ber-
nard Mandeville (La fable des Abeilles), Rousseau (vários títulos), lorde Shaftesbury
(Characteristics of men, manners, opinions, times), Spinoza (o Tractatus e outras obras) e
Voltaire (muitas de suas obras, ou a ele atribuídas).87 Como destacaram Cláudio
Denipoti e Thaís Fonseca, “os censores portugueses atuaram revisando uma parte
significativa do corpus de livros escritos e/ou publicados durante o período mais
profícuo do Iluminismo”, agindo no sentido de “limitar ou impedir a circulação – e
mesmo a entrada no país – da obra de autores como Montaigne, Hobbes, Locke,
Bayle, Montesquieu, Voltaire, La Mettrie, Diderot e diversos outros”.88 Apesar
de toda a vigilância em relação aos “livros perniciosos”, de “autores ateístas, ou
ainda daqueles homens ímpios”,89 Rui Tavares oferece alguns dados que permitem
entrever uma expressiva produção intelectual de textos autorais e de traduções que
foram submetidos à censura. Entre 1768 e 1777, a Real Mesa Censória examinou
“cerca de um milhar e meio de textos”, concedendo licença para impressão “a
mais da metade (774 textos, 53,34%)”; 512 textos (35,29%) foram proibidos, e “os
censores alteraram ainda quase um décimo deles (9,58%, 139 textos), rasurando
passagens ou modificando-os”.90 Um censor, Joaquim de Santana, ao examinar
uma tradução da História Universal de Bossuet, “um autor quase aprovado a priori”,
observou, a propósito de uma passagem da obra, que a Real Mesa Censória, “que
incansavelmente vigia sobre a boa instrução dos Portugueses, deve tirar-lhe tudo
que pode ser ocasião de falsas e perniciosas preocupações”, recomendando que,

87 Ibidem.
88 DENIPOTI, Cláudio; FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. Censura e mercê: os pedidos de leitura e posse de livros proibidos em
Portugal no século XVIII. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 4, n. 2, 2011, p. 142.
89 O Título 10, do Regimento da Real Mesa Censória, publicado em 18 de maio de 1768, estabelecia as “regras que se devem observar
na censura dos livros enquanto se não formar um novo Index Expurgatório”, indicando os tipos de obras que deveriam ser proibidas de
circular. REGIMENTO da Real Mesa Censória. [Lisboa]: Impresso na Secretaria de Estado, 1768, p. 19-29. Exemplar microfilmado
[Biblioteca Nacional, Portugal, cota F. G. 616].
90 TAVARES, Rui. Lembrar, esquecer, censurar. Estudos Avançados, São Paulo, v. 13, n. 37, set. /dez. 1999, p. 128 e 138.
134 A globalização das luzes

neste caso, no lugar de “mutilar a obra”, o tradutor acrescentasse uma nota para
explicar a passagem tida como inconveniente.91
Na quantidade total dos textos examinados pela Real Mesa Censória,
indicada por Rui Tavares, incluem-se, como vimos, algumas traduções. Cláudio
Denipoti encontrou 61 pareceres sobre licenças para impressão de traduções,
no período de 1771-1777, e informa que “cerca de quatrocentas traduções foram
publicadas em Portugal”, durante a segunda metade do século XVIII, “compara-
das a apenas duzentas e sessenta e seis durante todo o século precedente”. Ainda
conforme Denipoti,
[...] o esforço pelas traduções, feito pelos diversos agentes da palavra impressa
eventualmente envolvidos (tradutores, editores e censores), pode mostrar aos histo-
riadores contemporâneos como uma identidade “ilustrada” estava em construção
ao redor das muitas traduções para o português, e como o contato – e interferência
– de ideias do Iluminismo (qualquer que seja sua definição) foram interpretadas
por aqueles agentes.92

Não obstante a possibilidade de identificarmos a presença de variados tipos


de livros (e das “ideias que traziam”),93 o significado da frase de Pombal – saudan-
do os livros de “sã e útil erudição” – talvez fique mais aparente se a situarmos no
interior de um discurso sobre as reformas que retiraram da Companhia de Jesus
a prerrogativa de ensinar. Ao declarar que “os expurgatórios romano-jesuíticos”
haviam sido postos de lado e, com isso, fechado as portas aos livros considerados
“perniciosos”,94 ou seja, aqueles que vinham sendo utilizados nas escolas dos
inacianos, foi permitido que novos (e antigos) textos fossem utilizados nos estudos
dos jovens portugueses.
Em seu já mencionado discurso de 6 de junho de 1775, o marquês de Pom-
bal anunciava que o “estado de civilidade política, da opulência e das forças de

91 Ibidem, p. 139-140.
92 DENIPOTI, Cláudio. A censura e as traduções portuguesas no século XVIII: a busca pela norma. Revista de Estudos de Cultura, n.
9, 2017a, p. 28 e 33. Para informar sobre a quantidade de traduções publicadas nos séculos XVII e XVIII, Denipoti usou informações
de RODRIGUES, Antonio. A. Gonçalves. A tradução em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 153. Ainda sobre
a presença de textos traduzidos em Portugal, na segunda metade do século XVIII, cf. DENIPOTI, Cláudio. Tradutores médicos e a
ideia de tradução em Portugal em fins do século XVIII: o caso dos livros de medicina. História, Ciências, Saúde, v. 24, n. 4, p. 913-931,
2017b.
93 ANTUNES, op. cit., p. 255.
94 MELO, op. cit., p. 246.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
135

qualquer nação culta”, como Portugal era naquele momento, poderia ser avaliado,
dentre outros fatores, pelo
[...] estado da filosofia ou das belas-letras, que servem de base a todas as ciências
e à multidão de prosas e de poesias que apareceram na mesa censória, compostas
nas línguas portuguesa, latina, grega, hebraica e arábica, com pureza de estilo e
elegância dos séculos dos Demóstenes, dos Homeros, dos Túlios, dos Virgílios e
dos Horácios, em Roma, e dos Teives, Andrades, Gouveias, Resendes, Barros,
Camões e Bernardes, em Portugal. Também fizeram ver demonstrativamente que
estes estudos preparatórios se não achavam mais florescentes ao tempo da invasão
dos jesuítas, do que hoje se acham.95

Em 28 de junho de 1759, mesma data de publicação do Alvará que privou os


jesuítas de suas escolas, foi expedida uma instrução “para os professores de Gramá-
tica latina, grega, hebraica e de Retórica”, regulamentando os estudos nas “escolas
novamente fundadas nestes Reinos e seus Domínios”. Essa Instrução estabelecia “os
princípios mais acomodados sobre os quais o ‘ensino da mocidade’” deveria estar
assentado; além de dispor sobre o método a ser empregado nos estudos, indicava
os livros que deveriam ser utilizados para as aulas.96
Nesse sentido, quando o marquês de Pombal se referiu aos tais livros de “sã
e útil erudição”, seria mais acertado considerar que ele estivesse fazendo menção
a textos como o Novo método da Gramática Latina, do oratoriano António Pereira
de Figueiredo, que foi publicado em 1752, e que se tornou uma obra “de grande
aceitação”, sendo “uma das gramáticas recomendadas no Alvará régio de julho
[sic] de 1759, que tratava da reforma do ensino em Portugal”.97 Nesta situação
também pode ser incluído o livro Arte da gramática da língua portuguesa, de António
José dos Reis Lobato, que foi publicado em 1770, pela Régia Oficina Tipográfica,
e que teve uma longa série de reedições. No mesmo ano em que o livro de Lobato
foi publicado, um Alvará régio determinou que:
[...] os mestres da língua latina, quando receberem nas suas classes os discípulos
para a ensinarem, os instruam previamente por tempo de seis meses, se tantos forem

95 Ibidem.
96 Instruções para os professores de Gramática latina, grega, hebraica e de Retórica, em 28 de junho de 1759 em ANDRADE, op.
cit., p. 165-182.
97 SOUZA, Evergton Sales. Do destino das almas dos Índios. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula T. (orgs.). O
Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009, p. 509.
O texto traz “julho” em vez de junho.
136 A globalização das luzes

necessários para a instrução dos alunos, na Gramática portuguesa, composta por


António José dos Reis Lobato, e por mim aprovada para uso nas ditas classes [...].
E mando que [nas escolas de ler e escrever] se ensine aos meninos por impressos,
ou manuscritos de diferente natureza, especialmente pelo Catecismo pequeno do
Bispo de Montpellier, Carlos Joaquim Colbert, mandado traduzir pelo Arcebispo
de Évora para instrução de seus diocesanos.98

As mencionadas Instruções recomendavam, para o ensino do grego, o


“epítome do Método de Port-Royal traduzido em Português”.99
Da tradução e elaboração deste compêndio, que saiu no ano seguinte (1760), dos
prelos de F. Didot, em Paris, com o título Novo Epitome da Grammatica Grega
de Porto-Real, composto na Lingoa Portugueza para uzo das Novas Escolas de
Portugal, foi incumbido João Jacinto de Magalhães.100

Carlos Morais considera que o Epítome de João Jacinto de Magalhães serviu


convenientemente ao “projeto pombalino de reforma dos estudos secundários”,
substituindo “os compêndios usados pelos Jesuítas”. Essa “primeira gramática de
Grego impressa em língua portuguesa” só conheceu um concorrente em 1790,
quando foi “impressa na Real Tipografia da Universidade de Coimbra a Arte Nova
da Língua Grega para uso do Colégio da Graça, de Fr. Custódio de Faria, professor
de Grego e de Hebraico no mesmo Colégio”.101
Como vemos, a relação entre ensino e livros é explícita, inclusive com enco-
mendas ou patrocínio para a impressão de algumas obras. Em 1766, “por ordem
de Sua Majestade”, foi publicado, para “uso do Real Colégio de Nobres”, o texto
Os três livros de Cícero sobre as obrigações civis, cuja tradução fora solicitada ao italiano
Miguel Antonio Ciera, que havia sido contratado como professor de matemática
para o Colégio.102 Apesar de sua destinação inicial, o livro cruzou o Atlântico: no
mês de junho daquele mesmo ano, Sebastião José de Carvalho e Melo, então conde
de Oeiras, enviou ao governador da capitania de São Paulo “alguns exemplares da

98 Alvará régio de 30 de setembro de 1770, regulando as aulas de latim e de primeiras letras. SILVA, 1829, p. 497-498.
99 Instruções para os professores de Gramática latina, grega, hebraica e de Retórica, em 28 de junho de 1759 em ANDRADE, op.
cit., p. 176.
100 MORAIS, Carlos. Artes de gramática para o ensino do grego em Portugal: Clenardo e João Jacinto de Magalhães (séculos XVI-
-XIX). Kléos – Revista de Filosofia Antiga, n. 19, 2015, p. 272.
101 Ibidem, p. 288 e 286.
102 CÍCERO. Os três livros de Cícero sobre as obrigações civis, traduzidos em língua portuguesa para uso do Real Colégio de Nobres. Lisboa: Oficina
de Miguel Manescal da Costa, 1766. Na dedicatória, Miguel Antonio Ciera informa que, no lugar de traduzir do latim, utilizou uma
versão italiana elaborada por Giácomo Facciolati, tomando-a como “a mais correta”.
Livros de sã e útil erudição, que encheram estes reinos de claríssimas Luzes: a educação de jovens portugueses no contexto da Ilustração
137

Instrução dos ofícios de Cícero”, informando que aqueles livros eram “para V. Sa.
aí formar alguns homens que sejam capazes de discernimento e de percepção”.103
No mesmo ano de 1766, veio a público o Discurso do bom e verdadeiro gosto na
filosofia, do padre António Soares, que dedicou sua obra ao conde de Oeiras, que
“soube comover os espíritos (ao parecer sujeitos quase como os corpos às leis da
inércia) para se aplicarem à verdadeira cultura das Letras”. Os três censores – do
Santo Ofício, do Ordinário e do Paço – saudaram o livro que, “pequeno no volu-
me”, é “obra muito útil para o público”; segundo o frei Sebastião de Santo António,
censor do Paço, o texto mostrava “a perfeição a que têm chegado as letras depois que
Vossa Majestade empunhou o cetro”. O censor do Santo Ofício, frei João Batista
de São Caetano, por sua vez, aproveitou a ocasião para criticar aqueles que “não
têm as luzes que lhes são necessárias para conhecerem a Filosofia” e que por isso
“fazem que os seus discípulos sacrifiquem à ignorância os anos mais preciosos da sua
vida”; ao final de sua censura, o frei João Batista reafirmou sua posição contrária
à maneira pela qual os recém-destituídos professores ensinavam:
enquanto, porém, alguma iluminada polícia literária não castiga e faz esquecer nos
cantos das aulas estes restos tenebrosos do barbarismo, sirvam-se Vossas Excelências
de acreditar, com a sua aprovação, um Discurso que faz conhecer a formosura da
verdadeira Filosofia.104

O padre António Soares, após abordar aspectos da Lógica, da Moral, em que


expõe “os princípios do Direito Natural”, e da Metafísica, chega à Física, destacando
a importância de Newton, afirmando que este, “para achar o verdadeiro método
de indagar a natureza”, seguiu um caminho contrário ao de Descartes, a quem
havia faltado “a observação por fundamento”. Deste modo, defende uma “observação
exata nos efeitos e fenômenos” oferecidos pela natureza, a qual deve ser obrigada,

103 AHU. Códice 423 – Livro de registro de cartas expedidas pela Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos para
a capitania de São Paulo (1765-1769). Carta do Conde de Oeiras para o governador da capitania de São Paulo, Luís Antonio de Souza
Botelho Mourão, de 22 de julho de 1766.
104 SOARES, António. Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto na filosofia. Lisboa: Na Oficina de Miguel Rodrigues, 1766. O outro censor,
do Ordinário, foi frei Manuel do Cenáculo, que reconheceu ser o autor “verdadeiramente amigo de seus compatriotas”, exprimindo-se
“sem ofensa da fé e dos bons costumes”.
138 A globalização das luzes

“para assim dizer, pela experiência a patentear o que nos oculta”.105 Como vimos,
trata-se de um argumento semelhante ao que apareceu, anos depois, nos novos
Estatutos da Universidade de Coimbra, especificamente quando se tratou do curso
de Filosofia: para os elaboradores dos Estatutos não havia “outros meios de chegar
ao conhecimento da Natureza” que não fosse por intermédio da observação e da
experiência.106 Estes princípios também fazem parte da teoria política pombalina,
assentada na valorização de conhecimentos obtidos pela observação e experimen-
tação e, por que não dizer, por intermédio de livros de “sã e útil erudição”.

R eferências bibliográficas

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105 Ibidem, p. 59-60 (destaque nosso). Não deixa de ser interessante encontrar às páginas 61 e 62 uma explícita referência “ao matemático
judicioso e juntamente verdadeiro filósofo deste nosso século” Jean D’Alembert e ao Discurso preliminar da Enciclopédia, do qual o
padre António Soares transcreve um parágrafo que pode ser encontrado em PIMENTA, Pedro Paulo; SOUZA, Maria das Graças de
(orgs.). Diderot e D'Alembert. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios, v. 1: Discurso preliminar e outros textos.
São Paulo: EdUnesp, 2015, p. 75.
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Educação, livros e luzes:
reformas ilustradas e os manuais
de catecismo
Thais Nívia de Lima e Fonseca

A recepção das ideias ilustradas em Portugal e seus domínios tem sido inter-
pretada à luz das características próprias da sociedade e da cultura portuguesas,
e marcaria suas qualidades singulares. Algumas delas se destacam, conforme as
análises mais conhecidas sobre a questão: a) os limites impostos às apropriações
do pensamento ilustrado, definidos pela secularização de algumas estruturas do
Estado e de sua atuação, mas sem contudo avançar para processos de laicização;
b) o entrelaçamento das propostas de modernização pela realização de reformas
com a preservação dos fundamentos culturais da sociedade portuguesa, princi-
palmente influenciados pelo catolicismo; c) as tendências contrárias às liberdades
individuais e a manutenção de mecanismos de controle sobre o pensamento e sobre
os comportamentos.
Dentre outros processos, as reformas da educação promovidas durante o
reinado de d. José I (1750-1777), e em parte continuadas por seus sucessores d.
146 A globalização das luzes

Maria I (1777-1816) e d. João VI (1816-1826), foram particularmente impactadas


por essas tensões, e a análise de alguns aspectos a elas relacionados ajuda a des-
vendar as relações entre as ideias de modernização, num contexto cultural que
tendia para as práticas de conservação. Com esse propósito, é pertinente partir de
documentos normativos relacionados àquelas reformas e dos princípios ilustrados
que as moveram, para, em seguida, examinar a produção impressa voltada para
a educação da mocidade, disponível no último quartel do século XVIII e nas pri-
meiras décadas do século XIX, especialmente do ponto de vista das concepções e
das práticas relacionadas à educação moral, dos comportamentos e dos costumes.
As reformas de d. José I (1750-1777) foram justificadas a partir de argumentos
modernizadores, desde o seu primeiro momento, quando da expulsão dos jesuítas
de todo o Império e do consequente fechamento de suas escolas e da proibição de
seus métodos, vistos como responsáveis pelo atraso da educação portuguesa em
relação às “nações civilizadas” da Europa. O conhecido Alvará de 28 de junho
de 1759 chamava a atenção para a importância das ciências para a conservação
da religião e da justiça, e dos estudos públicos para os “progressos em benefício da
Igreja e da Pátria”.1 As ciências, ou seja, o conhecimento, eram apontadas na lei como
um dos fundamentos da conservação do Estado e de sua justiça, mas também da
Igreja e da religião.
É interessante olhar mais de perto os significados de diversos termos presen-
tes neste documento, pois ajudam a esclarecer os sentidos atribuídos às ideias de
reforma e modernização nos quadros da cultura portuguesa. Ciência tem a ver com
a ideia de conhecimento e de erudição,2 e progresso, com adiantamento contínuo.3 Alguns
termos que poderiam aparentemente induzir à interpretação de que o Alvará trazia
em si as ideias das luzes, como opositoras das trevas em matéria da cultura, estão
na verdade indicando outros sentidos: o “escuro” método de ensino dos jesuítas era
assim definido por ser difícil de entender, e o “lustre”, que as reformas restituiriam à

1 Alvará 1759, 673 (grifos nossos).


2 Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de JESU, 1712 (grifos nossos).
3 Ibidem; e SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza: recompilado dos vocabularios impressos até agora, e nesta
segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1789.
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 147

educação portuguesa, significaria dar novamente relevo, destaque, ao antigo método


que seria restabelecido.
As referências a outros países, que seriam tomados como modelos ou exem-
plos, ajudavam a reforçar a necessidade das reformas, e suas qualidades eram
indicadas por termos como “civilizadas” e “polidas”. Os termos civilizado e civilização
não são encontrados nos principais dicionários portugueses publicados no século
XVIII, mas sim o termo civilidade, definido por Moraes Silva como cortesia, urbanidade,
em oposição ao seu significado mais antigo, que seria a rusticidade do homem do
povo, do mecânico. Esse novo sentido deriva de uma redefinição moderna e tem
na Encyclopédie um sentido mais próximo do que vemos no texto do Alvará de 1759:
“civilidade e polidez são uma certa decência nos modos e nas palavras, tendendo
a agradar e a mostrar o respeito que temos um pelo outro”.4 Relacionado a este
termo, polido é definido pelos dicionaristas portugueses como o indivíduo bem ensinado,
treinado para a convivência cortês e, pelo menos no dicionário de Raphael Bluteau,
relaciona-se com o conceito de urbanidade.
Na Lei de 6 de novembro de 1772, que visava ampliar a reforma com a
criação das aulas régias de primeiras letras e a expansão das demais, destacam-
-se termos que são comumente associados ao pensamento ilustrado.5 Um deles é
razão, que era definido na época como a faculdade da alma, ou potência intelectual, para
distinguir o bem do mal, a verdade do que não é verdade,6 sentido muito próximo
do encontrado na Encyclopédie: “faculdade natural da qual Deus proveu os homens,

4 MORRISSEY, Robert; ROE, Glenn (eds.). Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, etc., eds.
Denis Diderot and Jean le Rond d'Alembert. ARTFL Encyclopédie Project, Chicago, 2021. Disponível em: https://encyclopedie.uchicago.
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5 Sobre as reformas e seus impactos em Portugal e no Brasil, cf. ADÃO, Áurea. Estado absoluto e ensino das primeiras letras: as escolas
régias (1772-1794). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos
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– Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004; e SILVA, José Carlos de Araújo. As aulas régias na Capitania da Bahia
(1759-1827): pensamento, vida e trabalho de “nobres” professores. 2006. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Natal, 2006.
6 Cf. BLUTEAU, op. cit.; e SILVA, 1789.
148 A globalização das luzes

para conhecer a verdade, qualquer que seja a luz que ela segue, e para qualquer
ordem de matéria a que ela se aplique”.7
Outro termo destacado é o bem comum, definido como o que é útil para a
existência e conservação de alguma coisa física ou moral, mas também como proveito
e utilidade.8 A utilidade, neste caso, dizia respeito à melhor preparação dos que, a
partir do Estado, serviriam aos interesses do bem comum, conforme os propósitos
modernizadores da administração pombalina.
Longe de uma concepção de educação agenciada pelo Estado e que im-
pusesse sua presença exclusiva na sociedade por meio da obrigatoriedade escolar
– algo que só ocorreria no século XIX –, as reformas pombalinas da educação
determinavam o controle estatal sobre a instrução pública e privada, mas permi-
tindo que as famílias usassem de “liberdade”, caso quisessem contratar mestres
para seus filhos. Liberdade é outro termo que tradicionalmente foi associado ao
pensamento ilustrado, mas que, nesse contexto, não indica, necessariamente, um
sentido libertador.9 Liberdade era formalmente definida como a “faculdade de
poder fazer impunemente, e sem ser responsável, tudo o que não é proibido pelas
Leis, sem haver quem arbitrariamente tome conhecimento disso”.10 A Lei de 1772
indicava as condições para o exercício dessa liberdade:
Que aos particulares, que puderem ter Mestres para seus filhos dentro das próprias
casas, como costuma suceder, seja permitido usarem da dita liberdade; pois que daí
não resultará prejuízo à Literatura, quando, como os mais, devem ser examinados,
antes de entrarem nos Estudos Maiores.11

E quanto àqueles que poderiam ensinar nessas condições, “que as Pessoas,


que quiserem dar Lições pelas casas particulares, o não possam fazer antes de se
habilitarem para estes Magistérios com Exames e Aprovações da Mesa”.12

7 MORRISSEY; ROE, op. cit.


8 Cf. BLUTEAU, op. cit. Sobre os sentidos desses termos, ver o verbete: DeNIPOTI, Cláudio. Útil / utilidade. Glossário de termos do
Mundo Ibérico Setecentista, 17 nov. 2019. Disponível em: https://denipoti.wixsite.com/website/util-utilidade. Acesso em: 23 ago. 2022.
9 Na verdade, a discussão sobre alguns desses termos, como a liberdade, por exemplo, foi bastante complexa no seio mesmo do
pensamento ilustrado, e, na Encyclopédie, há pelo menos 12 verbetes sobre liberdade, que discorrem sobre os seus múltiplos significados.
10 Cf. SILVA, 1789.
11 Lei de 6 de novembro de 1772. APM/Secretaria de Governo da Capitania. SC-394, fls. 47-53.
12 Ibidem.
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 149

A definição de liberdade encontrada nos dicionários portugueses do século


XVIII indicava limites impostos pelas leis para seu exercício, e nelas essa concepção
fica evidente também em relação às ideias que poderiam ou não circular no processo
educacional. Neste sentido, percebe-se como o Alvará de 1759 postulava a unidade
de pensamento vinculada à conservação de uma cultura marcada pela influência
da Igreja e do catolicismo. Ao indicar as atribuições do diretor dos estudos, cargo
criado neste momento, observava-se que:
porquanto as discórdias provenientes na contrariedade de opiniões, que muitas
vezes se excitam entre os Professores, só servem de distraí-los das suas verdadeiras
obrigações e de produzirem na Mocidade o espírito do orgulho, e discórdia; terá o
Diretor todo o cuidado em extirpar as controvérsias e de fazer que, entre eles, haja
uma perfeita paz e uma constante uniformidade de Doutrina; de sorte, que todos
conspirem para o progresso da sua profissão e aproveitamento dos seus Discípulos.13

Os mesmos princípios estariam também presentes no Alvará de 1771, que


concedeu à Real Mesa Censória a administração dos Estudos Menores. Atribuir
ao órgão de censura o gerenciamento da educação seria uma forma de encurtar
o caminho do controle sobre a produção e a circulação de ideias e sobre uma ati-
vidade considerada, já naquele contexto, como fundamental para a formação de
súditos fiéis e conformados à ordem: a educação. A ampliação da autoridade da
Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros e a confirmação de suas
atribuições no controle do ensino régio, pela Carta de Lei de 1787, deixava clara a
relação entre o controle dos livros e a educação, afirmando ser “a escolha de livros
bons, e uteis a principal parte da educação do homem, por aprender neles a sólida
e pura doutrina, e as suas obrigações, assim Cristãs – como Civis”.14
A influência do pensamento ilustrado nas reformas pombalinas da educação
é pouco questionada pela historiografia, que compartilha essa interpretação. A
expectativa de secularizar o ensino em Portugal e seus domínios, e de impor à sua
organização uma racionalização moderna, é evidente nas ações do Estado naquele
momento. O aparato normativo trabalhou para eliminar, se não a influência, ao

13 ALVARÁ de Regulamento dos Estudos Menores, 28 jun. 1759, p. 675. O Governo dos Outros, S.d. (grifos nossos). Disponível em:
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=105&accao=ver&pagina=698. Acesso em: 23 ago. 2022.
14 CARTA de Lei ampliando a autoridade da Real Mesa Censória sobre o controle dos livros, 21 jun. 1787. O Governo dos Outros, S.d.
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150 A globalização das luzes

menos a presença direta dos jesuítas no ensino, e para ordenar e controlar uma
nova estrutura, além de transferir, para o Estado e seus agentes, atribuições antes
exclusivas da Igreja e do clero. A existência do Padroado certamente facilitou esse
processo, e a Igreja, expurgada da Companhia de Jesus, participou subalternamente
da nova estrutura educacional criada pelo governo pombalino. É preciso lembrar,
contudo, que subalternamente não implicava a diminuição da importância daquela
instituição e da própria religião católica na sociedade luso-americana e mesmo nos
processos educativos.
Essa importância fica evidente nas determinações da Lei de 1772, segundo
a qual os mestres régios das primeiras letras deveriam dar especial atenção ao
estudo da língua portuguesa e, particularmente, às regras de civilidade, caras
ao pensamento educacional moderno desde o século XVI. Mas seriam também
responsáveis pelo ensino do catecismo cristão. Todos esses elementos eram objeto
dos exames a que os candidatos a uma cadeira régia eram submetidos.15 Uma vez
que também os mestres particulares deveriam se submeter a exames para obtenção
de licença para ensinar e que estes seriam realizados em conformidade com a lei,
então, o ensino do catecismo estaria, também, em suas mãos. E para isso estariam
à disposição inúmeros livros, os manuais de catecismo e de civilidade destinados à
instrução elementar e, evidentemente, submetidos ao controle dos órgãos censórios.
Nesses livros, identificamos muitos dos princípios norteadores dessas con-
cepções de educação conforme a recepção das ideias ilustradas em Portugal, e
não apenas naqueles de autores portugueses, mas também nas traduções de obras
estrangeiras, não raro adaptadas, sobretudo francesas.16 É o caso de Thesouro de
meninas ou Diálogos entre uma sabia aia e suas discípulas, traduzido em 1774, pelo padre
Joaquim Ignacio de Frias, da obra de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, publi-
cada em 1757.17 Interessa aqui o Prólogo do tradutor, no qual justifica a importância
da obra para o contexto português, na mesma linha de raciocínio que servia aos
argumentos das reformas da educação, isto é, inspirar-se nos exemplos das nações

15 Ver o conteúdo de um desses exames em FONSECA, 2009; e FONSECA, 2010, p. 72-73.


16 Sobre essas concepções, cf. FONSECA, Thais Nívia de Lima e. Circulação e apropriação de concepções educativas: pensamento
ilustrado e manuais pedagógicos no mundo luso americano colonial (séculos XVIII-XIX). Educação em Revista, v. 32, p. 167-185, 2016.
17 Madame LePrince de Beaumont é também conhecida pela autoria do conto A Bela e a Fera.
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 151

civilizadas da Europa. Frias dizia claramente que “se em Londres e Paris se achou
utilidade” para aquela obra, não haveria de ser desmerecida em Lisboa, ainda
que sua tradução não fosse perfeita. Seria ela “útil para o bem do Estado”, uma
contribuição para a formação de “cidadãos ilustres”, trazendo para os meninos “os
mais sólidos princípios para viverem cristã e civilmente”, ensinando-os a “serem
cidadãos honrados, cristãos esclarecidos e perfeitos”.
A mesma preocupação está presente em outras traduções de obras francesas,
como a Escola dos bons costumes, ou refleçõens moraes e históricas, traduzida por d. João de
Nossa Senhora da Porta Siqueira, em 1786, da obra de Jean-Baptiste Blanchard.
No Prólogo, o tradutor, também um clérigo, considerava o ensino dos bons costu-
mes o nível mais fundamental de todo o processo educativo e, por isso, deveria ser
comum a todos os indivíduos, qualquer que fosse a sua qualidade ou condição. Os
bons costumes, segundo ele, seriam a “base dos Estados, a defesa dos Tronos, o
baluarte dos Reinos, e dos Impérios”, sendo a condição da formação dos “ilustres
cidadãos”, úteis “à sua Família, aos seus amigos, à sociedade, a si mesmos”. É in-
teressante observar a sincronia dessas últimas palavras com a definição de educação
no verbete correspondente da Encyclopédie:
As crianças que vêm ao mundo devem formar um dia a sociedade em que terão
que viver: sua educação é, portanto, o objeto mais interessante, 1º para eles mes-
mos, que a educação deve ser tal que seja útil a esta sociedade, da qual elas obtêm
sua estima, e que ali encontram seu bem-estar: 2º para suas famílias, que devem
satisfazer e decorar: 3º para o próprio Estado, que deve recolher os frutos da boa
educação que recebem os cidadãos que a compõem.18

A presença desses elementos em obras pedagógicas publicadas na segunda


metade do século XVIII é bastante plausível em vista do cenário intelectual que
emanava principalmente da França para Portugal, da circulação de ideias por meio
de impressos e de pessoas, e de um ambiente político, naquele contexto favorável aos
movimentos reformadores. Ainda que as bases culturais portuguesas fossem refra-
tárias a discursos mais radicais relacionados ao pensamento ilustrado, havia nítida
concordância quanto às funções e utilidades da educação para o Estado e para a
sociedade. Neste ponto, os documentos analisados até aqui convergem e se conectam.

18 MORRISSEY; ROE, op. cit. (grifos nossos).


152 A globalização das luzes

Um interessante livro teve sua tradução do francês publicada em Portugal


em 1787, aprovada pela Real Mesa da Comissão Geral para a Censura de Livros
e com ligações bastante nítidas com o pensamento iluminista: Methodo de ser feliz,
ou catecismo moral, especialmente para uso da mocidade, tradução realizada no âmbito do
Real Colégio de São Pedro da Universidade de Coimbra. Segundo Ana Cristina
Araújo, a obra é “uma compilação traduzida e adaptada de textos de diversa
proveniência, inspirados basicamente em artigos da Encyclopédie e em obras de
Jean-François Marmontel, como o Essai sur le Bonheur”.19 Mas é possível que
tivesse contado, também, com textos de Dominique-François Rivard, autor
de muitos livros de caráter pedagógico. O catecismo moral, nesta obra, era
definido como o caminho mais acertado para a formação dos “homens virtuo-
sos”, necessários à fortaleza dos Estados, e deveria ser concebido para alcançar
todos os indivíduos. A sua adequada formação seria atingida pelo exercício da
civilidade, o comportamento cortês para com todos, independentemente de
seu lugar na sociedade, ideia sustentada pela defesa de um princípio de igual-
dade natural que não era, certamente, o dominante na sociedade portuguesa
do Setecentos. O autor afirmava em destaque no capítulo sobre a civilidade:
Um desgraçado é uma coisa sagrada. Mas nesta mesma classe tão humilde,
quantos homens semelhantes ao diamante em bruto, nada mais esperam do
que uma mão que os saiba trabalhar para terem um luzimento eclipsante?
Aquele, que vós desprezais, é talvez o diamante bruto que mereceria estar no
vosso lugar.20

E, em decorrência, o autor indicava uma perspectiva que seria, tempos


à frente, associada ao pensamento liberal, isto é, a de que os talentos indivi-
duais seriam os motores da mobilidade social: “os homens são iguais, não é o
nascimento, é somente a virtude quem os constitui diferentes”.21 Nesse curso
de pensamento, o autor desse catecismo moral define e analisa diferentes te-
mas, na maioria comuns em obras desta natureza, entre os quais, a liberdade,

19 ARAÚJO, Ana Cristina. Urbanidade e sociabilidade: notas acerca da “arte de bem viver” em Portugal no século XVIII. População
e Sociedade, Porto, v. 25, jun. 2016, p. 140.
20 METHODO de ser feliz, ou catecismo de moral, especialmente para uso da mocidade; compreendendo os deveres do homem,
e do cidadão, de qualquer religião, e de qualquer nação que seja. Versão do francez para o idioma vulgar. Por G.E.F. Coimbra: Real
Impressão da Universidade, 1787. Com licença da Real Mesa Censória, p. 145.
21 Ibidem, p. 144-145.
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 153

um dos que nos ocupa aqui. Como a maioria dos autores deste tipo de livro,
este também entendia a liberdade como uma faculdade humana, “pela qual a
alma pode, em certos casos, suspender as suas determinações, ou as suas ações;
ou também virá-las para a parte que lhe praz, sem mais nenhum motivo do
que a sua satisfação”.22 Embora seja necessário admitir a liberdade como uma
necessidade humana, ela não é, contudo, “fazer o que se quer”, e há um limite
para ela: o direito, que é a liberdade aprovada pela razão de fazer ou não algo,
e a moral, que disciplina essa liberdade.23
Essas obras francesas diferem sensivelmente dos manuais de catecismo
com viés mais propriamente religioso, que se limitavam ao ensino da doutri-
na e das regras de bom comportamento, estritamente do ponto de vista dos
princípios cristãos católicos. Nestes manuais, a ignorância não é geralmente
associada à falta de uma instrução letrada, mas refere-se ao desconhecimento
das normas cristãs e às práticas contrárias a elas. Nessa linha, situam-se os
conhecidos manuais portugueses Nova Escola de Meninos, do padre Manoel Dias
de Souza (1784), O Perfeito Pedagogo, de João Rosado de Villa-Lobos e Vascon-
cellos (1782), Escolla Nova Christã e Política, de d. Leonor Thomasia de Sousa
e Silva, pseudônimo de Francisco Luís Ameno (1799). Deve-se observar que
todos eles receberam aprovações dos tribunais censórios, assim como algumas
obras que, com linhas de pensamento distintas em seus fundamentos, indicam
a presença do pensamento ilustrado na comunidade intelectual portuguesa.
Mas entende-se que se adequavam às concepções do chamado “reformismo
ilustrado”, sem atingir de maneira inconveniente os princípios religiosos, um
dos pilares dos parâmetros utilizados pela censura.
Os catecismos, elaborados na forma de diálogos, à moda de um exame
ou arguição, geralmente iniciavam-se com perguntas centradas nas questões
dogmáticas e doutrinárias, em Deus e na religião católica: quem fez o Céu,
quem é Deus, os mistérios da fé, quem é Cristo etc. A criança, alvo da cate-
quese, raramente é sujeito no elenco de perguntas, e quando o é, é lembrada

22 Ibidem, p. 4-5.
23 Ibidem, p. 6-7 (grifos nossos).
154 A globalização das luzes

por perguntas como: “sois cristão?”. A humanidade é descrita como obra da


criação e que, apesar de pecadora, é amada por Deus.
Esse tipo de estrutura foi também utilizado para a produção de uma
modalidade de catecismo moral, sem um direcionamento religioso explícito ou
com pequena preocupação com ele. O pequeno livro Princípios da Educação dos
Meninos, offerecidos aos pais de família, de autoria não identificada, se organiza na
forma de diálogos, e a primeira pergunta é: “que é o Homem?”. As respostas
que se seguem são muito sugestivas acerca da visão que o autor teve sobre os
fundamentos da educação das crianças: o homem é um ser sensível dotado de
razão, sua existência tem a finalidade de trabalhar para ser feliz, a felicidade
deve ser obtida por meio do emprego da razão, a razão é o conhecimento da
verdade e deve ser o instrumento para o cultivo das virtudes, dos bons hábitos,
do controle das paixões, das relações com outros homens. Embora este conteúdo
tenha relações com fundamentos morais advindos da religião, o manual não
associa diretamente essas questões à doutrina cristã ou a princípios dogmáticos, e
sua aprovação pela censura não deixa de ser notável, ainda que se considere que,
naquele contexto intelectual e político, razão e religião poderiam andar juntas.
Chama realmente a atenção um pequeno manuscrito, feito provavelmen-
te entre o final do século XVIII e início do século XIX, que coloca, na estrutura
tradicional de um catecismo cristão, na forma de diálogos, uma conceituação
distinta para este tipo de obra com finalidades pedagógicas. O Cathecismo Por-
tuguês, ou Princípios de Filosophia de Moral e Política para Instrução da Mocidade,24 de
autoria não identificada, não elimina a dimensão religiosa e doutrinária, mas
a traduz em outro registro, aproximando-se de uma perspectiva ilustrada. A
primeira pergunta dos diálogos é: “quem sois vós”. Ela é seguida da resposta,
que surpreende quem já se habituou aos convencionais catecismos:
Homem por essência, português por nascimento, livre por natureza: Nasci-
do para amar os meus semelhantes, e irmãos; servir minha Pátria, viver do
meu trabalho, ou da minha indústria, aborrecer a tirania, e a escravidão, e
submeter-me às Leis.

24 Cathecismo Português, ou Princípios de Filosophia de Moral e Política para Instrução da Mocidade (Coleção de Manuscritos da Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra).
Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 155

Responde que foi criado por Deus, criador de “toda a máquina do


Universo” e que, embora não possa ser definido, se mostra por sua criação.
Também trata da imortalidade da alma, das virtudes e vícios, mas sua abor-
dagem se afasta dos catecismos tradicionais. Alguns temas dos diálogos são
particularmente interessantes no que diz respeito à sua relação com os movi-
mentos filosóficos daquele momento e de sua possível influência pedagógica,
para além das ações específicas do Estado português no contexto das reformas
da segunda metade do século XVIII. Depois de afirmar que quem falta com
os deveres perde os direitos, o autor passa a definir quais seriam esses direitos:
Limitando aquela porção de liberdade natural, que [podia] ser prejudicial
ao bem comum, os direitos do homem, são, de livremente pensar, crer, ex-
pressar, declarar as suas ideias e conceitos, gerar os frutos do seu trabalho,
viver tranquilo na segurança dos seus bens e pessoa, e opor sua força a todo
aquele que tentar oprimi-lo.

A liberdade é definida como parte da essência do homem e uma dádiva


divina, mas igualmente filha da razão, e não podendo ser simplesmente uma
inclinação natural, “ela tem por medida, e regra, a razão e a justiça”. Outro
direito apontado é o da propriedade, que se supõe ser entendida pelo autor
como um direito natural. E como esse direito estaria associado à existência
da desigualdade entre as pessoas, o autor afirma que esta última pode ser
corrigida pela justiça e pela ordem social, e a principal forma de fazê-lo seria
por meio de “um pacto social, que de membros dispersos reúne um corpo
formal; onde todos devem estar seguros; e onde o fraco e desigual em meios
se faz igual em direitos, pela justiça e pelas leis”. Uma abordagem que nos
lembraria, por exemplo, a de Rousseau e suas teorias sobre o contrato social,
um dos autores interditados pela censura portuguesa em 1770. O Cathecismo
não resolve, contudo, o problema da permanência da desigualdade material
e deixa transparecer uma perspectiva cristã e paternalista, ao explicar quais
seriam os deveres dos senhores para com seus servidores:
O meu semelhante, forçado por uma triste necessidade a vender-me o seu
trabalho e os seus cuidados, deve, sem dúvida, esperar de mim doçura,
humanidade, razão e justiça; por um ouro supérfluo, eu lucro um longo
serviço; e neste troco desigual, sou eu claramente o que dou e perco menos.
156 A globalização das luzes

Finalmente, o Cathecismo reforça que a garantia dos direitos, o fim do


fanatismo e da escravidão, da degradação da natureza e da profanação das
leis é o objetivo último dos estudos, defesa contra as “trevas da ignorância e
do jugo dos erros”, pois mostra a luz e conduz à verdade.
A crescente publicação de livros destinados à educação das crianças
e jovens na segunda metade do século XVIII – obras de catecismo moral, de
civilidade, de gramática latina e portuguesa, principalmente – pode ser vista
como uma compreensível decorrência das reformas levadas a efeito pela mo-
narquia portuguesa a partir do reinado de d. José I. Isso não se deveu, apenas,
à proibição de manuais identificados à pedagogia jesuítica, mas também ao
estabelecimento de princípios norteadores do que se considerava então ser a
nova face do ensino em Portugal e seus domínios.
Sabemos que, por um lado, os fundamentos dessas reformas estavam
assentados em elementos do pensamento ilustrado, e, por outro, que não se
afastavam radicalmente das bases culturais e religiosas conformadoras da
sociedade portuguesa, e mesmo de seu sistema político, embora esse fosse um
dos principais alvos daquele reformismo. Certamente, essas múltiplas facetas
das reformas e seus reflexos na produção dos manuais impactaram as maneiras
pelas quais a censura atuou em relação a estas publicações. E, ainda, como
procurou combater a proliferação de obras manuscritas que ameaçavam a
pureza desejada pelas autoridades.25
Ao criar o ensino régio e estabelecer suas condições de funcionamento –
estruturação e distribuição das cadeiras, financiamento, fiscalização e controle
–, a Coroa dava passos no sentido de promover a secularização da educação e
da instrução, retirando da Igreja e do clero a exclusividade de algumas prerro-
gativas educativas, como o ensino da doutrina cristã. Na instrução elementar
– o ensino das primeiras letras –, o catecismo passava a ser função do ensino
régio. Ainda que uma parte expressiva dos professores que ingressavam neste
ensino fosse constituída por clérigos, em tese, talhados para o exercício desta
tarefa, tratava-se de realizá-la fora das instituições eclesiásticas. Juntava-se a

25 Cf. ADÃO, op. cit.


Educação, livros e luzes: reformas pombalinas e os manuais de catecismo 157

eles o não muito menor número de leigos, que ingressava no “sistema” para o
ensino neste nível elementar.26
Cuidando para não atingir frontalmente as normas legais estabelecidas
pelas reformas, a Igreja agiu, buscando aproveitar-se da percepção, compar-
tilhada pelo governo de d. Maria I, de que o ensino da doutrina cristã nas
escolas régias ficava aquém das necessidades de formação do súdito. Nas duas
últimas décadas do século XVIII, a Igreja portuguesa passou a orientar o clero
para que ensinasse o catecismo aos domingos e estimulou a publicação dos
catecismos diocesanos, inclusive reeditando o tradicional catecismo tridentino.27
Todo esse complexo movimento apresenta a densidade necessária
para indicar a importância histórica das reformas da educação realizadas em
Portugal e seus domínios, sob a égide do pensamento ilustrado. Ainda que
esse estivesse definido por limites próprios ao contexto português da época, as
reformas foram as bases que, procurando a secularização da instrução estatal,
abriram caminho para o processo de laicização que se tornaria um grande
embate nos séculos XIX e XX, tanto em Portugal como no Brasil, e que colo-
caram em cena os princípios norteadores do pensamento liberal.

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26 Ibidem; e FONSECA, 2010.


27 Cf. ADÃO, op. cit.
158 A globalização das luzes

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Expandir a educação, evitar a
revolução: a instrução como
estratégia contrarrevolucionária
no alvorecer do I mpério1
Luciano Mendes de Faria Filho

Há uma arraigada crença entre professores e ativistas sociais, e mesmo entre


alguns cientistas sociais e historiadores, de que a expansão da instrução nos séculos
XIX e XX resulta, pelo menos em parte, das ideias e dos debates iluministas que
propunham a educação como estratégia de esclarecimento e promoção da autono-
mia dos cidadãos. A minha comunicação pretende argumentar que, sem prejuízo
da consideração dos prováveis efeitos das apropriações desse viés iluminista, a
expansão da escolarização, amplamente defendida no período pós-independência,
esteve atrelada muito mais a uma perspectiva de integração à ordem cultural e
política escravista e à contenção do povo do que de seu esclarecimento e autonomia
de pensamento.

1 Este texto, porquanto seja inédito na forma que ora é apresentado, retoma reflexões e textos anteriormente publicados.
162 A globalização das luzes

A proposição de uma escola pública, laica, gratuita e para todos deriva, como
sabemos, das utopias político-pedagógicas assentadas no pensamento iluminista do
século XVIII e que foi levada a cabo pelos Estados Nacionais nos séculos seguintes.
Mas já no seu nascedouro e na potente síntese que a Revolução Francesa faz desses
princípios, ela se orientava pela tensão fundamental que vai presidir a expansão da
escola para o conjunto da população nos séculos XIX e XX. Tal tensão poderia
ser assim anunciada: como conciliar, no âmbito do processo de escolarização, as
dimensões liberadoras e integradoras da instituição escolar?
Como sabemos, a modernidade, ao conceber e produzir o indivíduo moder-
no fundado no cogito e liberado das amarras das tradições, estabelece também a
necessidade de organizar instituições que sejam responsáveis por sua integração no
mundo social e, de outra parte, pela guarda, isolamento e/ou reeducação dos não
integrados. Nasciam, assim, como defendia Michel Foucault, a escola, a fábrica,
a prisão e o hospital.2
O pensamento e as políticas iluministas que tiveram curso nos séculos XIX
e XX são profundamente herdeiros desse ideário. E os Estados Nacionais, ao
expandirem a escola para um número cada vez maior de pessoas por meio de um
amplo e complexo serviço público – o da instrução ou da educação, a depender da
época –, buscam fazer valer a força política, financeira e simbólica na constituição,
de fato, do Estado Educador.
Como sabemos hoje, a constituição do Estado Educador significou, ao lon-
go do tempo, a subalternização de tradicionais instituições educadoras, como a
família, a Igreja e o mundo do trabalho, como o lugar por excelência da formação
das novas gerações. A produção da infância e, crescentemente, da juventude, como
etapas de formação para o “enfrentamento” das dificuldades da vida adulta, esteve
umbilicalmente relacionada à produção e à expansão da escola moderna como
lugar de instrução, educação e guarda das crianças e dos jovens.
No Brasil, o início do século XIX foi um momento pródigo de elaboração
e disseminação de um discurso fundador a respeito da escola e de suas cada vez
mais ampliadas funções sociais. A esse respeito, é fundamental a presença da escola
no rol das instituições que, ao lado da imprensa e do Estado Nacional, seriam as

2 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do Império 163

responsáveis por construir e/ou consolidar a independência nacional, entendida


esta como estando assentada na constituição de um cidadão imperial livre, ordeiro
e, portanto, integrado.
A começar pelo estabelecimento da gratuidade da instrução pública na
Constituição outorgada, da lei da instrução pública de 1827 e numa série infindável
de legislações sobre o tema, à escola foi debitada uma importante responsabilidade
de integração social e política. Porém, num momento em que pairavam no ar as
ameaças das revoluções estrangeiras e a realidade das “inconfidências” e revoltas
nacionais, não se podiam perder de vista os perigos da falta de educação ou, pior
ainda, de uma educação que fosse malconduzida.
A preocupação que tomava corpo entre as elites imperiais em Minas Ge-
rais, e de resto em todo o Império, era a necessidade de ofertar uma instrução que
fosse instrumentalizadora para o exercício integrado da liberdade. Para isso, ela
precisaria, cada vez mais, constituir a escola como um empreendimento educador
da população branca e livre. No entanto, como bem demonstram os trabalhos de
Marcus Vinicius Fonseca, rapidamente a população negra e, às vezes, também a
escrava, aprendeu a lição de que educação e escola rimavam com liberdade e se
mobilizaram para ocupar os espaços escolares.3
Em Minas Gerais, as elites políticas imperiais foram pródigas na produção
de discursos e leis que visavam convencer a população – e talvez a si mesmas – da
importância da instrução pública para o império da lei e da ordem. Assim, no
legislativo, na imprensa e em diversas outras instâncias sociais, discutia-se a ne-
cessidade de educar e instruir o povo para garantir a ordem social.
A imprensa foi, sem dúvida, uma das principais estratégias utilizadas pelos
intelectuais para difundir os seus discursos civilizatórios e legalistas. Em Minas, até
então a província de maior população do Império, o jornal O Universal (1825-1842)
foi, naquele momento, um dos principais divulgadores de tal ideário. No entanto,
em suas páginas, qual era o diagnóstico feito a respeito da educação brasileira?
Diziam os intelectuais:

3 FONSECA, Marcus Vinícius. População negra e educação: um perfil racial das escolas mineiras no século XIX. Belo Horizonte:
Mazza, 2009.
164 A globalização das luzes

O sistema de educação elementar, que se tem seguido no Brasil, desde o seu des-
cobrimento, tem sido mui dispendioso e mui delimitado; ainda sem notar outros
defeitos, que de tempos a tempos se têm conhecido e se tem tentado remediar com
algumas providencias oportunas.4

Animados que estavam com a recém-conquistada independência, diziam


que “se a cultura do espírito aumenta a felicidade dos homens, não pode deixar
de ser grande serviço à humanidade inventar meios, pelos quais essa cultura se
generalize”.5 Para tanto, propõe-se um projeto de instrução que: 1º) abrevie o tempo
necessário para a educação das crianças; 2 º) diminua as despesas das escolas; e 3º)
generalize a instrução necessária às classes inferiores da sociedade.6 Tal escola seria
organizada de acordo com o método mútuo de ensino, cujos defensores diziam
tornar possível a instrução de um número de até mil alunos para cada professor.
Tal possibilidade animava aqueles que, no Brasil e na América Latina, defendiam
a incorporação de um número maior de sujeitos à instituição escolar.7
No entanto, apenas estabelecida a necessidade, o lugar das classes inferiores
na sociedade se impunha e aparecia a seguinte ressalva:
Não queremos dizer que todos os homens devam ou possam ser médicos, matemá-
ticos, jurisconsultos, &c., porém asseveramos que se deve dar a todos os homens a
maior massa de conhecimento possível, sem interromper as ocupações ordinárias
da vida a que cada indivíduo se destina.[...] Por este princípio se não deve ocupar
a mocidade de um homem, destinado pelas circunstancias a um ofício mecânico,
no estudo ciências abstratas, que não têm relação com o trabalho manual, em
que tal indivíduo se deve empregar. Mas há certos ramos de instrução que são
compatíveis com todos os empregos, no que se distingue o homem da criação
bruta; e no que se interessa tanto à felicidade dos indivíduos em particular, como
a do Estado em geral.8

O caráter autoritário e excludente da nação que se queria construir acabava


por deixar claros os limites da inclusão. Ela seria positiva desde que não colocasse

4 O UNIVERSAL. Ouro Preto, 18 jul. 1825, p. 2.


5 Ibidem, p. 3.
6 Idem, 27 jul. 1825, p. 19.
7 Para mais informações sobre a divulgação do método mútuo em alguns países como Brasil, Argentina, Portugal e França, cf.
BASTOS, Maria Helena C.; FARIA FILHO, Luciano Mendes de (orgs.). A escola elementar no século XIX: o método monitorial/mútuo.
Passo Fundo: EdUPF, 1999..
8 O UNIVERSAL. Ouro Preto, 18 jul. 1825, p. 3.
Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do Império 165

em risco as formas tradicionais de submetimento da maioria ao jugo e à exploração


da elite imperial. Daí, a defesa de que o tempo da escola não deveria comprome-
ter o tempo do trabalho, ou de que a escola deveria instruir nas artes mecânicas,
desnudando, assim, na prática, o problema da proposta de educação iluminista
defendida por alguns.
O problema, pois, que há para resolver é: Como se poderá generalizar uma boa
educação elementar, sem grandes despesas do Governo e sem que se tirem as classes
trabalhadoras o tempo, que é necessário que empreguem nos diferentes ramos de
suas respectivas ocupações?9

Para reforçar a necessidade da instrução elementar do povo, buscam o


exemplo em outros países em que, como no Brasil, ela não existe, e afirmam:
Em tais países, o Governo não tem outro meio de manter a ordem publica se não
o rigor dos castigos, ou as imposturas de alguma superstição, cujos mistérios são
conhecidos unicamente dos poucos que governam, os quais, com o andar dos tempos,
vêm ficar tão sujeitos aos erros dessas superstições como os povos para cuja ilusão
elas haviam sido inventadas. A mais leve observação, comparando o estado de
educação de duas nações quaisquer, mostra evidentemente estas verdades. Assim,
a vara de um meirinho em Inglaterra obtém mais obediência entre o povo, do que
o alfanje de um Janisaro pode alcançar em Constantinopla.10

Vê-se, pois, que a referência a outros países, estratégia tão comum no Brasil
e em outros países da América Latina, tem, aqui, um caráter pedagógico e de
persuasão. Ela não é, neste sentido, retórica vazia: pretende demonstrar o sentido
do próprio processo civilizatório vivido pelas sociedades humanas.
Se a alguns pobres era permitida a liberdade, se a perspectiva iluminista era
aquela que parecia animar o autor de tal projeto, não poderia passar despercebido
que a liberdade sem educação era perigosa. Referindo-se às escolas de Londres,
o jornal afirmava:
Destas escolas menores estabelecidas nos distritos, se tem seguido em Londres um
benefício da primeira magnitude, além da instrução, que a geração futura não
deixará de reconhecer com gratidão. As classes mais pobres da sociedade, como
são obreiros, trabalhadores, serventes dos ofícios mecânicos, &c.; e que não têm
meios de pôr seus filhos nas escolas, nem acham emprego próprio para as suas

9 Ibidem.
10 Ibidem.
166 A globalização das luzes

tenras idades, são obrigados a deixá-los andar vadios pelas ruas, aonde, em uma
cidade tão populosa como Londres, contraem as crianças mil hábitos viciosos,
acostumam-se à ociosidade, associam[-se] com pessoas depravadas, que os induzem
a cometer crimes; e vêm, por fim, a serem vitimas do rigor das leis, quando se des-
cobrem suas práticas. Estas escolas, portanto, ocupando utilmente o tempo destes
meninos pobres, não somente lhes dá [sic] a instrução em ler, escrever e contar,
que tão proveitosa é aos mesmos indivíduos; mas impede[m] que eles se habituem
à ociosidade e tira[m]-lhes a oportunidade de associar pelas ruas com quem lhes
deprave os costumes; porque as horas vagas, que restam da escola, são aquelas em
que seus pais têm voltado de seus respectivos empregos e [em] que, estando em casa,
podem ter seus filhos debaixo de seus olhos.11

Assim, muito presente nas páginas de O Universal ao longo de seus 17 anos


de circulação, o tema da necessidade da instrução aparece de forma contundente
num artigo transcrito do jornal português O Panorama e publicado, aqui, sob o
título de Instrução Pública (14 de junho de 1842). Tal matéria inicia-se indagando se
serão ou não perigosos o ensino e a instrução das classes inferiores da sociedade?
Dizia o articulista:
Há quem receie esta instrução nos operários, nos trabalhadores, no povo, enfim;
nós somos de opinião contrária e estamos profundamente convencidos de que o
perigo não está no povo instruído, mas sim no povo ignorante, e quem o duvida
olhando para a nossa história desde 1820? Mas deixemos essa questão, que pode
ser irritante, e voltemos à tese: é ou não útil instruir o povo?
Nós repetimos – sim –, porque o aperfeiçoamento da razão humana condiz ao
regramento das paixões, e estas são mais temíveis em espíritos mais incultos do que
naqueles em que a educação penetrou: a ignorância é acompanhada da anarquia e
da demagogia, quando por outra parte se tem observado que os hábitos de reflexão,
que são inseparáveis do gosto da leitura, ajudam e favorecem o espírito de ordem
e bom procedimento nos que a ela se dedicam.
É entre os autômatos, que vegetam como animais nas últimas classes da sociedade,
que se acham os agitadores e os desordeiros e às massas ignorantes se dirigem as
Catalinas e os Marats do tempo; chama-lhes virtuosos e soberanos quando precisam
deles para pôr em prática planos tenebrosos. Uma insurreição feita por pessoas
sérias e instruídas seria impraticável.
Regra geral, a instrução é a mãe da prudência; o selvagem é imprudente e imprevidente
porque é ignorante; a previdência e a reflexão seguem necessariamente nas nações,

11 Idem, 22 jul. 1825, p. 12.


Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do Império 167

assim como nos indivíduos, o progresso da civilização e da instrução; o trabalhador


e o operário que estudarem os elementos das ciências morais e naturais hão de
pensar que o bom procedimento e a sobriedade são as garantias mais sólidas da
sua felicidade, e que o seu bom procedimento e a sobriedade são as garantias mais
sólidas da sua felicidade, e que o seu primeiro dever, como maridos e pais, é o se
segurar enquanto moços e robustos aqueles gozos e recursos que lhes hão de ser
precisos quando forem velhos e enfermos. Quando tiverem alcançado o gosto e
o hábito da leitura fugirão da preguiça e dos vícios. Um operário, que por sua
reflexão não gastar doze vinteis em bebidas espirituosas, não há de ser certamente
sedicioso. A educação aperfeiçoa a sociedade, não só porque dá hábitos e costumes
de regularidade, mas também porque substitui esses maus costumes pelos bons; um
operário estudioso e aplicado achará a sua delícia no estudo mesmo, ele será feliz e
contente não só por ter aprendido o que os outros sabem, mas também por saber o
que os outros ignoram; quando ele estiver totalmente possuído de amor de ciência,
há de fugir, então, às distrações, mesmo inocentes, para se entregar totalmente ao
estudo; neste estado podem bem os Cleos e os Hyperbolos dos nossos dias (sobre
as revoluções de Atenas e de Roma, vide o nosso artigo inserto no Diretor de 10
de dezembro de 1839) bater-lhes à porta; prudente por cálculo e por gosto, não se
precipitará em desordens e sedições das ruas que possam comprometer a sua vida e
os seus gozos. Impossível nos parece que aconteça o contrário, e pensamos mais que
cegos partidaristas do que existe pensarão antes ao excesso de nada reformarem,
mesmo inútil, só por medo de arriscarem a paz e o sossego públicos; em suma,
acreditamos que os tesouros intelectuais, pelo estudo adquiridos, produzirão nos
operários o mesmo efeito que a riqueza produz nos poderosos, isto é, o de dar-lhes
um interesse direto na ordem pública. Um povo instruído há de conhecer, mais
depressa do que o ignorante, que o seu interesse consiste na paz e na ordem pública,
e instrução lhe há de fazer conhecer mais, que a inviolabilidade das propriedades
é um seguro esteio da sociedade e que atacar à força bruta as classes ricas é uma
monstruosa injustiça. Em suma, na marcha atual das sociedades europeias, o que
nos parece útil, o que nos parece necessário e indispensável é o proporcionar ao
povo uma instrução sólida, fundada na ciência e na religião; o meio para alcançar
este fim será objeto de outro artigo.
Assina: X de A.12

Este texto, publicado nas páginas de O Universal, que indica a circulação do


ideário nele contido e que já fora publicado inicialmente no jornal português O
Panorama, está a demonstrar todo um projeto político-educativo a ser abraçado e

12 Idem, 14 jun. 1842.


168 A globalização das luzes

operacionalizado pela escola. A questão diretamente enfocada no texto é: quem


se revolta, o povo ignorante ou o instruído? A resposta do autor, que coincide
com a resposta da teoria política que presidiu a construção dos modernos sistemas
nacionais de ensino no mundo ocidental, diz que é massa ignara que se revol-
ta. Neste sentido, contrariamente ao que pregam nossos militantes políticos de
agora, a educação não é entendida como fator de emancipação política, mas de
integração ao status quo! De sorte que, nesse contexto e nessa produção discursiva,
mais que uma ação emancipadora, a educação vai aparecer, como diria Michel
Foucault, como uma ortopedia social ou como arte de prevenir e de curar.13 Não
por acaso, como nos lembra esse filósofo, aqueles que inventaram a moderna li-
berdade inventaram também a moderna disciplina, dentro da qual a escola tem
lugar privilegiado.
Doutra parte, é preciso que se pergunte: quem é o ignorante? O povo pobre,
despossuído, traveste-se de plebe ignara e revoltosa. Em nossa tradição política, os
pobres são aproximados das “classes perigosas”, e a ignorância é tida como a mãe
de todas as revoltas, sejam contra a ordem política instituída, sejam, o que é pior,
contra a propriedade alheia.
Sem a propriedade, sem o saber e sem racionalidade, não se pode, também,
almejar o poder, ou, de forma mais elementar ainda, não se pode constituir-se
como fonte, como origem do poder político. Por isso, uma face fundamental da
história política do século XIX é a produção do analfabeto como ignorante. Como
já o demonstrei em outro trabalho, os debates sobre as leis eleitorais e o voto dos
analfabetos acabaram se configurando como uma desqualificação cultural e uma
exclusão política dos setores mais pobres da população.14
Afirmar que a escola foi mobilizada e expandida como força integradora não
significa esquecer o caráter latentemente liberador e emancipador dessa instituição.
Como sabemos, os sujeitos individuais e coletivos não se submetem passivamente
aos investimentos do poder instituído e fazem usos mais diversos dos objetos, das
habilidades e saberes que lhes são possibilitados pela escola. É por isso também que

13 FOUCAULT, op. cit.


14 FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Representações da escola e do analfabetismo no século XIX. In: BATISTA, Antônio A.
Gomes; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira (orgs.) Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 143-164.
Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do Império 169

a luta pela submissão ou pela emancipação é contínua e atual, no que diz respeito
aos objetivos da educação escolar.
A este respeito, para finalizar, gostaria de assinalar que vivemos, hoje, um
momento sem precedentes na história da escola pública no mundo ocidental (e não
apenas neste). Digo sem precedentes porque as críticas atuais à escola não se referem
tão somente ao fato de tal instituição ter grande dificuldade de ser contemporânea
de seu tempo. Elas põem em questão a pertinência e a relevância social, cultural,
intelectual, econômica e política da escola na formação das novas gerações.
O diagnóstico da crise da escola é parte constituinte e importante da história
dessa instituição. Cada época, cada tempo, olha para a escola e descobre que a
“sua” escola não consegue ser contemporânea do seu tempo. São currículos, mé-
todos, programas, professores, espaços e materiais didáticos que estão aquém da
necessária atualidade da escola. E, para a sua atualização, o prognóstico é sempre
uma boa reforma. O problema é que as reformas se desmancham no ar antes mes-
mo de serem levadas a cabo! Isso, por sua vez, alimenta continuamente o ímpeto
reformista dos administradores do público em relação à escola.
Há que se sublinhar, no entanto, que, para certos grupos, a escola está além
do seu tempo e, por isso, precisa ser refreada. Tais grupos, de um modo geral par-
tidários de diversos fundamentalismos religiosos, nunca aceitaram a constituição
de uma sociedade civil e de um Estado laicos, ou mesmo seculares, e, portanto,
independentes das Igrejas e das crenças que professam. De um modo geral, pro-
duzem o diagnóstico de que a escola está aliada às forças do mal na deseducação
das novas gerações. Por isso, seria preciso controlá-la e frear o seu livre curso.
Na contemporaneidade brasileira, como todos sabemos, um movimento que
bem representa essa tendência é aquele autodenominado escola sem partido... No
entanto, há que se considerar que tais movimentos, tanto os partidários de que a
escola está aquém ou, de outra parte, que está além de seu tempo, acreditam na
importância da escola e querem, por meio de reformas, torná-la contemporânea
de seu tempo. Uns defendem reformas para acelerar o tempo da escola; outros,
para atrasá-lo.
No entanto, do ponto de vista estratégico para a democracia e a política,
inclusive aquelas cujas bases, como dissemos, foram projetadas no século XVIII e
expandidas nos séculos seguintes, o grande problema não vem dos reformadores
170 A globalização das luzes

da escola – ou não vem fundamentalmente deles –, mas de um grupo cada vez


mais numeroso de pessoas que simplesmente defende o fim da escola. A volta da
educação doméstica, tal como ocorria nos momentos anteriores ao advento e à
expansão da escola obrigatória, é uma bandeira de milhões de famílias que agem
de forma organizada em vários recantos do mundo.
Há evidências de que a defesa do esvaziamento do potencial formativo da
escola, como faz, no Brasil, o movimento escola sem partido, ou, simplesmente,
o seu desaparecimento, como faz, no mundo inteiro, o movimento home schooling,
estão irmanados em algumas críticas que fazem à escola. Para ambos, ela seria
muito diversa, não atenderia aos anseios das famílias de “bem”, são operadas por
uma classe de profissionais, os professores, que têm outros compromissos políticos
e ideológicos que não a integração das novas gerações ao mundo tal como ele é,
que é muito violenta para seus filhos, dentre outros aspectos.
Mas a distingui-los está o fato de que o primeiro movimento ainda aposta
na escola como importante agência de integração social de seus filhos e dos filhos
dos outros ao mundo social, ainda que de forma bastante diferenciada, e o outro
já não porta a mesma crença. Mas, é preciso perguntar, quais serão as nossas
forças e disponibilidade para a ação política para que, distinguindo-nos de ambos
os movimentos, possamos reinventar a escola pública e continuarmos fazendo da
instituição uma das balizas importantes da luta por mais democracia e igualdade
entre nós? Na resposta prática a essa questão, pode estar o germe de novas utopias
ou distopias de abrangência planetária.

R eferências bibliográficas

BASTOS, Maria Helena C.; FARIA FILHO, Luciano Mendes de (orgs.). A escola elementar
no século XIX: o método monitorial/mútuo. Passo Fundo: EdUPF, 1999.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Representações da escola e do analfabetismo no


século XIX. In: BATISTA, Antônio A. Gomes; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira (orgs.).
Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 143-164.
Expandir a educação, evitar a revolução: a instrução como estratégia contrarrevolucionária no alvorecer do Império 171

FONSECA, Marcus Vinícius. População negra e educação: um perfil racial das escolas mineiras
no século XIX. Belo Horizonte: Mazza, 2009.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 5. ed. Petrópolis:


Vozes, 1987.

O UNIVERSAL. Ouro Preto, 18, 22 e 27 jul. 1825.


Luzes no interior da província:
criação e acervo da Biblioteca
Pública de São João del-Rei
Christianni Cardoso Morais

O estabelecimento de uma Biblioteca Pública em um País é,


sem dúvida, a primeira data da sua civilização.1

Civilização, razão e moral

A frase usada como epígrafe compõe um discurso proferido na solenidade


de abertura daquela que veio a ser a primeira biblioteca pública da província de
Minas Gerais, inaugurada em 1827, na Vila de São João del-Rei. A citação articula
algumas ideias fundamentais, difundidas desde a época das Luzes, ideias essas que

1 O Discurso de inauguração da Biblioteca Pública encontra-se transcrito no Livro de Subscrições nº 208 do Arquivo da Câmara Municipal
de São João del-Rei. Doravante indicado como ACMSJDR: SUB 208 (1824-1827).
174 A globalização das luzes

se tornaram preciosas também no Oitocentos: os livros possibilitariam o saber e, por


conseguinte, uma nação leitora se tornaria sábia e civilizada a partir de um processo
educativo (principalmente, sob o ponto de vista da moral). Segundo Starobinski,
o conceito de civilização pode ser compreendido como um “vocábulo sintético”,
que envolvia, desde o século XVIII, “abrandamento dos costumes, educação dos
espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento
do comércio e da indústria, aquisição das comodidades materiais e do luxo”.2 Esta
forma de pensar se encontrava difundida entre os iluministas, mas não de forma
unânime. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, considerava que a sociedade e os
costumes corrompiam os homens. A partir desse pressuposto, o filósofo genebrino
criticou veementemente a sociedade civilizada, ou melhor, o que nomeou como
os “disfarces da civilidade”,3 aprendidos sobretudo nas instituições educativas de
seu tempo. Em Emílio ou da Educação (1762), Rousseau se opôs “às máscaras da civi-
lização”. Segundo ele, nas instituições educativas de seu tempo, especialmente nos
colégios e conventos, “as primeiras aulas que uns e outras recebem, e as únicas que
dão frutos, são as aulas de vício, e não é a natureza que os corrompe, é o exemplo”.4
O conceito em tela era visto por Voltaire de maneira distinta. Este filósofo
considerava que o transcorrer da história poderia ser definido como
a trajetória da civilização, entendida [...] como o conjunto dos desenvolvimentos
produzidos pelo homem nas artes, nas ciências, nas técnicas, e, além disso, das
transformações espirituais e morais que acompanharam esse desenvolvimento.5

A civilização poderia ser atingida com o aperfeiçoamento da razão, segundo


a perspectiva de Voltaire, o que possibilitaria o progresso da humanidade. Uma
educação estética e a prática da leitura (mas não de qualquer material de leitura)
seriam fundamentais nessa busca pela civilização:

2 STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 14. Este autor também considera que não
há consenso sobre o termo civilização entre os filósofos das luzes. Civilização pode significar ainda processo, continuidade, estando
estreitamente relacionada à noção de progresso. Norbert Elias apresenta definição similar a esta, ao afirmar que civilização “diz
respeito a algo que está em movimento constante, movendo-se incessantemente ‘para a frente’ e que deve ser o tempo todo buscado”.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, v. 1, p. 24.
3 PAIVA, Wilson Alves de. Progresso e depravação: a cultura como remédio. Kriterion, Belo Horizonte, n. 134, p. 421-440, ago.
2016.
4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 475-476.
5 SOUZA, Maria das Graças. Ilustração e história. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 114.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 175

Aflige-se quando se considera [...] essa multidão prodigiosa de homens que não têm
a menor centelha de gosto, que não amam nenhuma das belas-artes, que nunca
leem, da qual alguns folheiam, no máximo, o jornal uma vez por mês para estar
atualizado e para se colocar em estado de falar ao acaso coisas das quais eles não
podem ter senão uma ideia confusa.6

No decorrer do século XIX, o conceito de civilização se aliou fortemente


à noção de educação, com vistas a fazer dos homens seres livres e racionais.7 A
partir dessas ideias disseminadas pelo Ocidente no século XVIII, e que tomaram
novos contornos no contexto do XIX, podemos atribuir às bibliotecas uma função
educativa ampla. Esses espaços de leitura possibilitariam o progresso no lugar onde
fossem inaugurados, levando seus leitores a alcançar, a partir do conhecimento
contido nos livros, os bons costumes. Wittmann adjetiva esse tipo de relação com
os livros como “métodos de leitura do Iluminismo”, que têm como objetivo servir
a uma causa e “amaldiçoavam [a] leitura de entretenimento socialmente inútil”.8
Essa relação utilitária com os livros e a busca pela civilização por meio da leitura
encontraram expressão também no projeto de inauguração da biblioteca pública
de São João del-Rei. Segundo o aludido discurso de inauguração da biblioteca,
“o homem ignorante [...] se deprava, e se faz mau: [sendo] o flagelo de si próprio,
e da Sociedade, em que vive”.9 O homem civilizado deveria ser, ao contrário e
acima de tudo, racional, não se deixando arrastar “pelo tropel de desenfreadas
paixões”. Ainda de acordo com o referido discurso, o homem civilizado, ao contrário
do bárbaro, é firme, corajoso, virtuoso. Aquele que se torna civilizado “está tran-
quilo em sua consciência, ama, e aprecia a Virtude só porque é Virtude” – ou seja,
atinge um comportamento moral por meio de um processo educativo. A sabedoria
obtida nos livros deveria ser constantemente buscada, pois é ela a maior “benfeitora
do homem! [...] mantém a moral em sua nativa pureza, engrandece a alma, eleva

6 VOLTAIRE. Dictionnaire philosophique. In: VOLTAIRE. Œuvres complètes de Voltaire. L'édition Moland. Paris: Garnier, 1875.
VOLTAIRE-INTEGRAL. CD-ROM, 1999-2005 apud MOTA, Vladimir de Oliveira. Belas Artes e gosto da filosofia da história de
Voltaire. Quadranti–Rivista Internazionale di Filosofia Contemporanea, v. 5, n. 1-2, 2017, p. 298.
7 STAROBINSKI, op. cit., p. 45.
8 WITTMANN, Reinhard. Existe uma revolução da leitura no final do século XVIII? In: CHARTIER, Roger; CAVALLO,
Guglielmo (orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1999, v. II, p. 151.
9 Essa e as citações subsequentes, cf. ACMSJDR. Discurso de inauguração da Biblioteca Pública (SUB 208, 1824-1827).
176 A globalização das luzes

o pensamento, torna inabaláveis a Virtude e a Liberdade”. A leitura tornar-se-ia,


assim, indispensável para o cultivo das virtudes morais, promovendo a civilização.
Essa perspectiva contida no discurso de inauguração da biblioteca se ali-
nha, em grande medida, ao pensamento voltairiano. Parte da elite cultural de
São João del-Rei acreditava ser necessária a difusão das Luzes às outras camadas
da sociedade, uma vez que: “as mais importantes verdades lançadas no meio de
um Povo rude [...] são como a mais brilhante luz, que, interceptada pelos Corpos
opacos [...] se confunde com as trevas”. Era imprescindível instituir um programa
que civilizasse os cidadãos, todavia, de acordo com o que as elites consideravam o
ideal de racionalidade e virtude. Dessa forma, uma parcela da elite sanjoanense, no
contexto oitocentista, se identificava como herdeira das Luzes e buscava controlar
“os bárbaros”, “o povo rude”, os “ignorantes”, a partir de um programa civilizatório
que tinha como objetivo último instituir uma moral. Daí a defesa da educação em
um sentido mais amplo, não limitado às habilidades básicas de leitura e escrita
ou apenas restrito à instituição escolar. Pretendia-se educar moralmente o que se
nomeava à época de “povo miúdo”, para que este se submetesse à ordem pública,
o que levaria à constituição de um sentimento de pertencimento, de identidade
e impediria as revoltas. Era preciso ordenar a sociedade a partir desse processo
civilizatório dirigido pelas elites, que aliava ensinamento de condutas morais e bom
uso da razão. Assim, seria garantida a ordem social e, portanto, ficaria mantida a
união do florescente Império do Brasil.10
Nas primeiras décadas do século XIX, São João del-Rei se destacava por ser
uma vila próspera e que, mesmo situada no interior da província de Minas Gerais,
era muito dinâmica, tanto cultural quanto economicamente. A vila era um relevante
centro político e administrativo, posto que se tratava da cabeça da comarca do Rio
das Mortes. A especialidade econômica dessa comarca era a produção de gêneros
alimentícios, os quais eram exportados para outras províncias, principalmente para

10 Vários foram os projetos educativos postos em prática no período imperial. Sobre a profusão da imprensa periódica, cf. MOREIRA,
Luciano da Silva. Imprensa e política: espaço público e cultura política na província de Minas Gerais (1828-1842). 2006. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. Ver também JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura
impressa e educação da mulher no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Sobre a escolarização, cf. FARIA FILHO, Luciano
Mendes de. O processo de escolarização na Província. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A Província
de Minas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 131-144; e ainda VEIGA, Cynthia Greive. Crianças pobres,
negras e mestiças na organização da instrução elementar. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A
Província de Minas. Belo Horizonte: Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 145-160.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 177

a Corte. A localização privilegiada de São João del-Rei favorecia este comércio


intraprovincial, tornando-se um entreposto ativo e diversificado.11 À época, São
João del-Rei era uma das vilas mais urbanizadas de Minas, e o viajante e clérigo
anglicano Robert Walsh a descreveu, em 1828, como uma próspera e florescente
cidade.12 Em termos culturais, a partir da instalação de sua primeira tipografia
em 1827, “assistiu à explosão da imprensa local”: entre 1827 e 1844, publicaram-
-se, em São João del-Rei, 12 periódicos.13 Além da Biblioteca, outras associações
culturais foram inauguradas na vila, sendo um dos exemplos mais notáveis aquelas
relacionadas à vida musical, como suas orquestras barrocas.
Considerando a busca pela civilização, nesse contexto próspero e ativo
culturalmente, podemos citar algumas discussões ocorridas na Câmara Municipal
da vila. Em Ata da Câmara Municipal assinada por Baptista Caetano d’Almeida,
iniciador da Biblioteca Pública, e outros vereadores, no ano de 1827, há indicações
sobre a importância que esses homens davam aos conhecimentos produzidos “à
luz da razão”. Naquele ano, expressavam grande preocupação com uma possível
epidemia de “bexiga” (varíola), e o que mais interessa nesse documento, para o
presente capítulo, é o fato de esses homens mostrarem sua confiança na “razão” e
nos experimentos que começavam a se disseminar nas primeiras décadas do século
XIX. Criticavam as câmaras anteriores por “não adotarem o que identicamente
se pratica nos Países cultos da Europa, e mesmo da América do Norte, adotando,
e adaptando quanto se tem descoberto e útil para prevenir os males físicos”.14
Elegiam algumas nações como modelos de civilização e buscavam criar medidas
civilizatórias para o contexto local. Segundo seu plano, para prevenir a epidemia de
varíola, dever-se-ia agir com racionalidade, “antepondo-lhe o previdente remédio
descoberto por homens amantes da humanidade, e que a experiência tem mostrado

11 LENHARO, Alcir. As tropas da moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil, 1802-1842. São Paulo: Símbolo,
1979. Ver também GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del-Rei
(1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
12 WALSH, Robert. Notícias do Brasil–1828/1829. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985, v. 2, p. 74.
13 CAMPOS, Maria Augusta do Amaral. A Marcha da Civilização: as Vilas oitocentistas de São João del Rei e São José do Rio das
Mortes–1810/1844. 1998. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998, p. 176.
14 ACMSJDR. Atas das Sessões da Câmara (ATA-SES 14, 1823-1828; 1831): Acórdão da reunião dos vereadores do dia 04 de agosto
de 1827.
178 A globalização das luzes

ser profícuo; este remédio é o vírus vacínico”.15 No ano de 1828, Baptista Caetano
d’Almeida16 buscou convencer os demais vereadores da necessidade de se cuidar da
canalização da água. Afirmava que “nenhuma [água] há que tão boa seja, como
a do Chafariz do largo de São Francisco: porque além de merecer a aprovação do
químico João Manso,17 pertence à mesma serventia pública”.18 E continuando sua
argumentação a respeito da qualidade da água, afirmava:
embora digam alguns amigos do velho ideal, que outra origem há da Serra do
Lenheiro, que melhor é, e que mais cômodo se tornará o seu encanamento: a estes
responderei que contra a experiência não há argumentos, tanto mais quando ela
não se funda em fatos duvidosos, e sim em fatos autênticos, com exames formados
por peritos, em 1822.19

Os documentos citados revelam que esses homens basearam suas decisões em


um tipo de saber característico das elites do século XIX, sendo seus projetos orien-
tados racionalmente. Combatiam o que chamavam de “velho ideal”, alinhando-se à
racionalidade difundida pelas Luzes. O século XVIII, segundo Morin, “construi[u]
as suas teorias, especialmente as científicas, e a ideia de um universo totalmente
acessível ao racional, assim como a concepção de uma humanidade guiada pela
Razão”,20 e essa construção se amplificou no Oitocentos, mesmo no interior do
Brasil. Essas ideias permeavam discussões ocorridas na Câmara Municipal de São
João del-Rei e também orientavam o projeto de abertura da Biblioteca Pública. O
projeto da Biblioteca revela que parte da elite política local buscava colocar em prá-

15 Ibidem.
16 Baptista Caetano obteve provisão para advogar, mesmo sem ter frequentado o curso de Direito. Foi vereador da Câmara Municipal
de São João del-Rei e Juiz de Paz. Fundou a biblioteca e a primeira tipografia da cidade, na qual foi impresso o periódico O Astro de
Minas. Foi benemérito e participou da mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia de São João del-Rei. Em 1829, contratou
um professor português para que lecionasse Belas-Letras a seus irmãos e à população da cidade, curso que durou até o ano de 1833.
Ocupou o cargo de Deputado pelo Partido Liberal da Província Mineira, entre 1830 e 1837. Cf. ALMEIDA, Francisco de Assis e.
Apontamentos biographicos de Baptista Caetano de Almeida, natural de Camandocaia, actual cidade de Jaguary, da Provincia de
Minas Geraes. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 10, n. 1, jan./jul. 1905, p. 37-38.
17 João Manso Pereira era natural de Minas Gerais, alto, magro e de cor parda. Foi professor de Gramática Latina no Rio de Janeiro.
Sabia latim, grego, hebraico, francês e inglês e publicou cinco obras sobre alambiques, destilação de vinho e aguardente. Autodidata,
solicitou ao Frei José Mariano da Conceição Veloso, em Lisboa, vários livros de Química. CAVALCANTI, Nireu O. A livraria do
Teixeira e a circulação de livros na cidade do Rio de Janeiro, em 1794. Acervo, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1-2, jan./dez. 1995, p. 187.
18 ACMSJDR. Cartas e Editais da Câmara (CAED 68, 1823-1831): “Registro de um ofício dirigido a esta Câmara pelo Cidadão Baptista
Caetano d’Almeida acerca da Subscrição para o Chafariz público, aos 30 de março de 1828”.
19 Ibidem.
20 MORIN, Edgar. Para além do Iluminismo. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 26, 2005, p. 24. Morin também afirma que
Rousseau se opõe à vinculação razão-progresso, atribuindo à natureza uma “importância matricial”, considerando que a “civilização
acarreta a degradação humana”. Afirma ainda que Voltaire discorda abertamente desses pressupostos rousseaunianos (p. 25).
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 179

tica um projeto civilizatório, naquele contexto de dinamismo econômico e cultural.


Esse projeto tinha como pilar o uso da razão, sustentando as expectativas políticas
e sociais desses homens da elite na busca por uma educação moral para o povo.

A Biblioteca e a Sociedade de leitura21

Em 1824, o já citado Baptista Caetano d’Almeida, que era também rico


comerciante, fez a primeira tentativa de inauguração da Biblioteca Pública de São
João del-Rei. Em correspondência de 30 de julho de 1824, ofereceu sua biblioteca
particular ao presidente da província, dizendo ter empregado “alguns centos de
mil reis em algumas Obras políticas e históricas”22 e afirmando que assim agia
porque conhecia “o estado atual deste país, que é falto no todo de ilustração”. Re-
solveu, dessa forma, “organizar um dos mais úteis Estabelecimentos para aumento
da instrução da mocidade da nossa Pátria”. Para tanto, oferecia “a Enciclopédia
metódica, Dicionário das Artes e Agricultura e algumas outras interessantes obras,
que reunidas completarão talvez oitocentos volumes, para princípio de uma Livra-
ria Pública desta Vila”. Na mesma correspondência, o comerciante demandou à
Câmara Municipal de São João del-Rei que abrigasse a biblioteca em uma de suas
salas. Solicitou, ademais, a isenção de impostos para as obras que fossem trazidas
do Rio de Janeiro para aumentar o acervo da Biblioteca.
O presidente da província, José Teixeira da Fonseca Vasconcellos, em res-
posta, disse ter recebido uma portaria com a resolução do imperador d. Pedro I,
segundo a qual a abertura da Biblioteca fora aprovada. Porém, alegava que não
havia lugar para a isenção de impostos solicitada. Sem apoio provincial, o projeto
foi interrompido, vindo a ser retomado em 1827, quando se deu a inauguração da
Biblioteca Pública em uma das salas da Santa Casa da Misericórdia de São João

21 Baseado em MORAIS, Christianni Cardoso. Para o aumento da instrução da mocidade da nossa Pátria: estratégias de difusão do letra-
mento na Vila de São João del-Rei (1824-1831). 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2002. Alguns outros trabalhos foram publicados a partir dessa dissertação e serão indicados ao longo do texto.
22 Esta e as citações seguintes se encontram na correspondência em que Baptista Caetano oferece seus livros ao presidente da
província, transcrita em ACMSJDR. SUB 208 (1824-1827).
180 A globalização das luzes

del-Rei.23 O local foi cedido provavelmente pelo fato de Baptista Caetano ter feito
parte da mesa administrativa da Santa Casa.
Não foram localizados documentos que informem sobre a atividade interna
da instituição, o que nos impediu de identificar o gosto literário de seus possíveis
frequentadores. Além disso, nos livros de Receita e Despesa da Câmara, no período
de 1824 a 1831, não se registrou qualquer menção à compra de livros ou periódicos
e tampouco pagamentos feitos a funcionários da Biblioteca.24
Sem apoio oficial, para conservar e aumentar o acervo da Biblioteca, foram
convocados subscritores, que contribuiriam com “uma subscrição módica de cinco
mil réis anuais”.25 Com a intenção de atrair os leitores, Baptista Caetano pretendia
transformar a Biblioteca em “assinante de todas as Folhas Públicas do Brasil. Para
que os interessados pudessem saber o que ocorria fora do país, a Biblioteca seria
assinante “de uma mais interessante de França, de outra de Portugal, de outra de
Inglaterra, e de outra de Cádiz”.26 Após reunir os subscritores, seria entre eles eleita
uma comissão que deveria organizar um regimento interno, além de instituir-se
uma mesa administrativa, composta pelo diretor, um secretário e um tesoureiro.
As obrigações do bibliotecário também seriam estipuladas nessa primeira reunião
e constariam do regimento. Na solenidade de inauguração da Biblioteca, a con-
vocação de Baptista Caetano foi, num primeiro momento, atendida, tendo sido
registrados 91 subscritores.27 Alguns, inclusive, contribuíram com mais de uma
“ação”, sendo que cada uma custava 5$000. Todavia, com o passar do tempo,
nem todos os valores prometidos pelos subscritores que assinaram a lista foram
pagos. Em 1836, o bibliotecário, dizendo-se ser responsável pela instituição desde
1831, lamentava, em carta à Assembleia Provincial, “o abandono, em que caíra
tão preciosa Biblioteca” e queixava-se de não ter recebido salário algum até então.

23 Ibidem.
24 ACMSJDR. Livros de Receita e Despesa: REC 171 (1806-1868); REC 172 (1829); REC 173 (1829-1838); e REC 174, (1830-1833).
25 Ibidem.
26 Ibidem.
27 Sobre o perfil econômico e cultural desses homens, cf. MORAIS, 2002 (especialmente o capítulo IV).
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 181

Uma vez que o expediente das subscrições não logrou êxito, no intuito de
aumentar o acervo da Biblioteca, tentou-se criar uma sociedade de leitura,28 tendo
sido submetidos à Corte seus estatutos. Finalizados em 30 de novembro de 1827,
os Projectos dos Estatutos da Sociedade Phylopolytechnica29 foram enviados pelo diretor
da Biblioteca, o Dr. Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (juiz de fora da vila),
para exame e aprovação de sua majestade imperial. O significado das palavras que
compunham o nome da sociedade de leitura já anunciava o escopo desse projeto:
phylos = amigo + polytechnica = o que abrange muitas artes ou ciências.
Nos estatutos da Sociedade Phylopolytechnica, afirma-se que “esta sociedade é
livre, literariamente falando; isto é, professa-se nela a liberdade de pensamento e
de expressão”, sendo “as leis sociais e religiosas [...] a única coação externa”. Seu
grupo frequentador seria constituído a partir de um “pacto espontâneo de Literatos
associados”.30 Os membros seriam todos os subscritores da Biblioteca. Mas pode-
riam se inscrever outros sócios da vila, da região, ou correspondentes de todas as
províncias do Império, qualquer um que se interessasse por ciências, literatura ou
artes. A admissão dos novos sócios seria feita a partir da indicação dos candidatos
pelos sócios efetivos, seguida de votação secreta. Os requisitos essenciais para se
tornar um membro eram: “além de bons costumes e consideração da sociedade
civil, ser amante da literatura em geral, das artes e ciências”.
Sugeriu-se que a sociedade fosse constituída por três corpos ou institutos:
um Ginásio Literário, um Gabinete de Estudo e um Instituto Econômico. O
primeiro teria como finalidade “aperfeiçoar nossas faculdades pela deliberação e
pelo conflito das Luzes em todos os assuntos dos conhecimentos humanos”, ou seja,
seria este corpo um fórum de discussões, subdividido por seus membros em “três
grandes objetos – Ciências, Artes e Letras”.31 Esse primeiro corpo deveria funcionar
em uma sala, com uma mesa no alto ocupada pelo presidente. O presidente teria
como principal objetivo manter a ordem das sessões e dirigir a discussão dos temas

28 Uma versão ampliada sobre esse assunto pode ser lida em MORAIS, Christianni Cardoso. Aprender o método industrioso de ler
com análise: o projeto de criação da Sociedade Phylopolitechnica de São João del-Rei (Minas Gerais, 1824-1828). Educação em Revista,
Belo Horizonte, v. 39, p. 101-120, 2004.
29 PROJECTOS d’Estatutos para a organização da Sociedade Phylopolytechnica emprehendida em a Villa de São João D’El Rei.
Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 4, p. 815-838, 1899.
30 Ibidem. Esta e as citações seguintes.
31 Ibidem.
182 A globalização das luzes

propostos e, sobre sua mesa, estariam sempre uma publicação da Lei Fundamental
do Império, uma da Lei da Liberdade de Imprensa e os Estatutos da Sociedade,
além de um códice com folhas em branco para que nele o secretário redigisse as
atas das reuniões.
Os criadores dos estatutos propuseram outro corpo, para que as discussões
não ficassem restritas ao círculo dos seus sócios, pois dessa forma a única coisa que
conseguiriam seria “[tirar] de si próprias luzes para as concentrar em si mesmo [...]
avaramente num círculo inútil”, tornando-se “um instituto solitário, insuficiente a
si mesmo e indiferente à Sociedade”. O objetivo era abrir “uma porta ao ingresso
das luzes, e outra, ao derramamento d’elas”. Isso corrobora a ideia de que se re-
alizassem leituras socialmente úteis e de que se promovesse um projeto amplo de
educação, almejando a civilização dos costumes. O segundo corpo seria chamado
Gabinete de Estudos, descrito como um “Instituto estudioso, a fim de nos enriquecer
e pôr-[nos] ao nível das luzes da Europa culta pela leitura das peças periódicas de
várias Nações”. Os conhecimentos seriam divididos com os demais interessados
a partir de um periódico, uma “folha d’extratos” redigida pelos sócios efetivos.
Assim, enquanto o primeiro corpo “nutrirá nosso Instituto do espírito das Nações
cultas da Europa”, o segundo corpo teria um objetivo educativo mais amplo, pois
nele se “difundirá esse mesmo espírito sobre as belas e remotas Províncias da nossa
infante Nação”. A intenção de se tornar um instituto que desse aos leitores dos ex-
tratos periodicamente publicados a possibilidade de se educar, em sentido amplo,
é muito enfatizada, pois o Gabinete “terá por fim o estudo e o ensino”, ficando
ocupado “em recolher e transmitir”. A renda obtida com a venda desse periódico
mensal seria destinada à compra de novos materiais de leitura para a Biblioteca.
Haveria, por fim, na sociedade, uma diretoria, para administrar e dirigir.
O último objetivo da Sociedade Phylopolytechnica seria criar um Gabinete de História
Natural. O referido projeto, contudo, não foi aprovado pelo parecerista, o visconde
de Cayru, José da Silva Lisboa. De acordo com o parecer, a referida associação
“poderia implicar ‘com a Religião e Política’, além de ser ‘tão remota da Corte e
sem Inspeção de Autoridade’”.32 Essa forma de enxergar a proposta da sociedade de

32 PARECER do Visconde de Cayru acerca dos Projectos d’Estatutos para a organização da Sociedade Phylopolytechnica em-
prehendida em a Villa de São João D’El Rei. Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, v. 4, p. 838-839, 1899.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 183

leitura foi justificada, segundo o visconde, pelo fato de que, uma vez declarando-se
livre e com “liberdade de pensamento e expressão, em todos os assuntos de conhecimentos
humanos”, a instituição poderia, como já se assinalou, “implicar com a Religião e
Política”.33 Além disso, os estatutos permitiam que qualquer pessoa “culta”, de
qualquer lugar, pudesse ingressar na sociedade, sendo esta cláusula também consi-
derada “perigosa, por dar facilidade à correspondências sinistras com Estrangeiros”.
Outro motivo, alegado pelo visconde de Cayru e que impedia a criação oficial
desta sociedade de homens das letras em São João del-Rei, era o fato de a vila es-
tar localizada longe da Corte, “sem Inspeção de Autoridade”. Desde as primeiras
povoações, no século XVIII, as Minas Gerais eram temidas pelas autoridades,
pois, além de se localizar no interior do Brasil, seus habitantes eram considerados
instáveis, inquietos. Todos os cuidados eram tomados com relação à população
das Minas. Mesmo assim, várias conturbações foram verificadas ao longo de
sua história, provocadas tanto pelos colonizadores e vadios, quanto por escravos
fugidos e indígenas. Como exemplos, podem-se citar a Guerra dos Emboabas no
início do Setecentos, os inúmeros quilombos surgidos nas décadas de 1740-1750,
a Inconfidência Mineira (1789)34 e um levante de escravos, ocorrido em 1820, que
reuniu cerca de 21.000 homens. Mesmo após a Independência, os ânimos dos
mineiros ainda necessitavam ser controlados, como em 1822, quando em Ouro
Preto “grassava um movimento de dissidência contrário à adesão ao príncipe”.35
Minas Gerais conjugava a localização no interior do Império, longe dos “olhos do
Governo”, com o fato de ser um lugar historicamente marcado por revoltas, e pelo
menos uma delas, ligando homens de letras a livros potencialmente sediciosos.
A organização da sociedade de leitura revela o quanto seus idealizadores
desejavam discutir quaisquer assuntos abordados pelos homens de letras. Toda-
via, isso indicava que pretendiam se afirmar simbolicamente como obedientes à
ordem pública imperial, tanto é que demarcavam a presença da Lei Fundamental
do Império e da Lei da Liberdade de Imprensa, o que não foi suficiente para a

33 Ibidem, grifos nossos.


34 SOUZA, Laura de Mello e. Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo
e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 347-366.
35 SANTOS, Estilaque Ferreira dos. Minas e a Monarquia. In: SANTOS, Estilaque Ferreira dos. A Monarquia no Brasil: o pensamento
político da Independência. Vitória: EDUFES/CEG, 1999, p. 261.
184 A globalização das luzes

aprovação do funcionamento da sociedade de leitura. Apesar de buscar civilizar


a população em geral por meio de um periódico facilitado, era clara a intenção
excludente deste projeto civilizatório. Havia uma dupla estratégia, baseada tanto
no pertencimento quanto na exclusão. Sua intenção civilizatória também era ba-
seada nesse princípio, pois seus sócios se definiam como capacitados a ler os textos
e reescrevê-los, de forma facilitada, para civilizar a população, identificando-se
a si mesmos como educadores e, ao mesmo tempo, a seus possíveis leitores como
indivíduos com necessidade de ser educados, civilizados.

O acervo da Biblioteca36

No ano de 1828, o viajante inglês Robert Walsh, durante sua estada em São
João del-Rei, fez uma visita à Biblioteca. Suas impressões sobre o bibliotecário,
Francisco d’Assis Braziel, impregnadas de um olhar europeu (como não poderia
deixar de ser), foram as seguintes: tratava-se de um
padre mulato, de aparência bastante curiosa – baixo, gordo, com um vasto chapéu
colocado de banda e o rosto afundado no peito [...] se assemelhava, sob todos os
aspectos, a um [tatu]. Tratava-se, contudo, de um homem de talento [...] falava
um pouco de francês.37

Sobre o acervo da Biblioteca, comenta que era constituído de aproxima-


damente mil volumes e que se encontrava instalado em uma das salas da Câmara
Municipal, sendo seu horário de funcionamento das nove da manhã até uma da
tarde. Em seu interior, os livros ficavam “dispostos ao longo das paredes, numa
sala bem arrumada, com uma mesa de leitura no centro”. Havia livros publicados
em português, espanhol, francês e inglês. Escritas em francês estavam as obras de
Voltaire, Rousseau e Raynal, “juntamente com outras que aparecem na fase inicial

36 Essas informações se encontram publicadas em MORAIS, Christianni Cardoso; VILLALTA, Luiz Carlos. Bibliotecas nas Minas
em tempos de civilização. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage; VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). A Província de Minas. Belo Horizonte:
Autêntica; Companhia do Tempo, 2013, v. 2, p. 187-208. Agradeço ao professor Villalta o trabalho de identificação de vários títulos
e acréscimo de informações sobre as obras que compunham o acervo inicial da biblioteca em análise.
37 WALSH, op. cit., p. 77. No original, o viajante escreveu “porco de armadura”, em vez de tatu, ao fazer alusão ao mamífero nativo
de nosso cerrado, que tem sobre as costas uma carapaça que se assemelha a uma armadura.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 185

da Revolução Francesa” e a Enciclopédia Metódica. Dentre os livros ingleses, cita O


Revolucionário Plutarco, Riqueza das Nações, de Adam Smith, Geografia, de Pinkenton,
O Paraíso Perdido, de John Milton, Viagem Sentimental, de Laurence Sterne e Trials
for Adultery, além dos periódicos Chronicle e Times. Diz ainda que todos os jornais
publicados no Brasil “são recebidos ali e colocados na sala de leitura”,38 mas não
chegou a destacar qualquer periódico nacional.
Além das informações prestadas pelo viajante, existe, no Arquivo da Câmara
Municipal da cidade, uma relação parcial dos livros doados por Baptista Caetano,
incluindo seus preços. Dentre outros livros, nessa relação parcial, consta a Enciclo-
pédia metódica. Na correspondência em que ofereceu ao presidente da província sua
biblioteca particular, em 1824, este foi o único título de livro referido por Baptista
Caetano.39 Esta obra foi um grande empreendimento editorial, a última e maior
enciclopédia do século XVIII. Sua primeira edição data de 1782, pelo editor fran-
cês Charles-Joseph Panckoucke e trata-se de uma incorporação, reorganização e
ampliação de várias publicações da Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert.40 Tal
coleção simboliza o ponto máximo do enciclopedismo, sendo uma obra que revela
o interesse pela discussão teórica a respeito de objetos, máquinas, instrumentos e
a “preocupação setecentista de colocar a ciência a serviço do aperfeiçoamento da
agricultura, da manufatura, da construção naval e dos transportes”.41 A Enciclopédia
metódica, de caráter mais científico do que filosófico, marcou um momento decisivo
nas relações estabelecidas entre os homens e o conhecimento, pois sua publicação
revela e alimenta o interesse pelas ciências, que nesse período era crescente entre
as elites.42 Nesta relação com uma racionalidade científica, provavelmente reside
o fato de ter sido a única obra citada por Baptista Caetano, ao fazer sua doação
de livros ao poder público.

38 Ibidem, p. 77-78.
39 A Encyclopédie méthodique não constitui o texto original da Enciclopédie de Diderot e D’Alembert (publicada entre 1751-1772). Seu título
completo é Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une société de gens de lettres. Cf. DARNTON, Robert. O
Iluminismo como negócio: história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
40 A edição encontrada na biblioteca data de 1782-1832.
41 DARNTON, op. cit., p. 350.
42 Ibidem, p. 252.
186 A globalização das luzes

A relação parcial dos livros, com data de 1845, elaborada pelo irmão de
Baptista Caetano, Francisco de Assis e Almeida, traz as informações mais precisas
a respeito do acervo doado por Baptista Caetano.43 Segundo a correspondência,
foram gastos 192$000 com livros comprados a João Pedro da Veiga, 10$880 com
obras da testamentaria do vigário Joaquim Marianno, e da testamentaria de um
homem denominado na documentação apenas Lemos, foram comprados 493$260
de livros.44 Há referência também aos prováveis fornecedores de livros de Baptista
Caetano, pois se mencionam os “Livros comprados a Ogier: 80$000”, ou ainda
“ditos comprados a Cogê, compreendendo 123 volumes”. Dentre esses 123 volumes,
fica visível o grande interesse do comerciante por livros de autores das Luzes e
assuntos ligados à França. De acordo com o citado documento, através do forne-
cedor Cogê, foram adquiridas as obras completas de Condillac, Mably, Raynal,
Helvetius, Diderot e Buffon. Também as Obras de Napoleão, os Ensaios de Montaigne,
livros de história francesa, como Fastos da Nação Franceza e História da França, sem
haver referências a seus autores. Além disso, citam-se um Diccionario historico dos
Cultos e as Memórias de Las Casas,45 compra esta que custou 25$000. Mencionam-
-se também 44 volumes de Voltaire, Obras Completas, que custaram 40$000. Com
as obras completas de Benjamim Constant, Bentham, De Pradt, Say e Bonin, e
outros volumes, como Curso de Litteratura de La Harpe, Martyres, Hyssope(sic),46 Jury
Criminal, Diccionario Francez, História Universal, de Millot, Spectaculo da Natureza, Fabulas
de La Fontaine, Encyclopedia methodica Franceza e um Diccionario Histórico, teriam sido
investidos 348$000. Na compra de Biographia dos contemporaneos e Choix de rapportes,
foram gastos, respectivamente, 42$000 e 50$000. Foram comprados ainda “seis
caixões de Livros dos trabalhos da Assembleia Nacional Francesa”, por 24$000;
dois volumes dos Diários da Assembleia Constituinte, por 12$120; alguns Diários da
Câmara dos Deputados em 1826, por 20$000; Diários da Câmara dos Deputados “em

43 ACMSJDR. “Correspondência enviada à Câmara Municipal de São João del Rei por Francisco de Assis e Almeida, contendo a
Relação dos livros que Baptista Caetano d’Almeida deu para a Livraria desta Cidade, e de seus preços – 1845” (documento avulso).
44 Esses testamentos não foram localizados no decorrer da pesquisa.
45 Las Casas escreveu sobre o homem americano, as civilizações antigas do México e do Peru. Seus dados foram fortemente criticados
por Buffon e Raynal. VENTURA, Roberto. Leituras do Abade Raynal na América Latina. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.) A Revolução
Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Edusp; Brasília: CNPq, 1990, p. 171.
46 Possivelmente a obra Hissope, de “António Dinis da Cruz e Silva, Elpino Nonacriense, poeta lírico e satírico de raro mérito, membro
da alçada que julgou os inconfidentes e juiz da devassa contra os jacobinos fluminenses de 1794”. RIZZINI, Carlos. O livro, o jornal e a
tipografia no Brasil: 1500-1822, com um breve estudo geral sobre a informação. Rio de Janeiro: Kosmos, 1946, p. 275.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 187

1827”, por 15$000; e Diários “dos Senadores”, pela importância de 6$000.47 Diderot,
La Fontaine, Rousseau e Voltaire, autores de livros que compunham o corpus da
Biblioteca de São João, foram proibidos pelo Edital de 24 de setembro de 1770, da
Real Mesa Censória, “o mais importante edital que se voltou contra os Ilustrados e
os pensadores políticos modernos”.48 Buffon, Condillac, Mably, Helvétius, Raynal
e Montaigne, que também figuravam na Biblioteca de São João del-Rei, tiveram
várias de suas obras proibidas e inscritas num catálogo organizado pelos órgãos
censórios entre 1769 e 179649 – a menção a essas proibições, inválidas na época
imperial, serve apenas para que se pense no caráter dessas obras, vistas ao final
do período colonial como ameaçadoras à ordem. Os livros existentes na Biblioteca
Pública de São João, em grande parte, eram lidos em outros locais do Brasil, so-
bretudo no Rio de Janeiro, no período imediatamente posterior à Independência.50
Outros livros foram doados, conforme notícias veiculadas pelo periódico
local O Astro de Minas. Em correspondência publicada em 1827, Baptista Caetano
d’Almeida rogava ao redator do periódico
a graça de inserir no seu Astro a carta junta do Sr. S. M. Antonio Felisberto da
Costa, a qual se torna digna de publicação, por conter uma oferta interessante à
Pública Livraria e mesmo porque dela coligirá o Respeitável Público as patrióticas
intenções do Sr. Costa [...] o “Atlas Historico, Chronologico, Geografico, e Genealogico de
Le Sage, raro e pouco lido no nosso País, mas que será um dia apreciado segundo
o seu merecimento”.51

Ainda se têm notícias de doações realizadas por “beneméritos filhos da


Pátria, que, desejosos do aumento das luzes em o nosso país, vão doando à nossa
Pública Livraria obras com as quais ela se vai enriquecendo e tornando-se mais

47 Dos livros ainda existentes no acervo de obras raras e antigas, que provavelmente pertenceram a Baptista Caetano, apenas um
dicionário de Português-Francês possui a assinatura do iniciador da biblioteca. O fato de os livros não possuírem anotações revela
um tipo de relação com esses objetos, que passa pelo cuidado e vontade de preservá-los, tendo em vista o estatuto de objeto sagrado,
muitas vezes assumido pelo livro no período.
48 VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas da leitura: usos do livro na América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado
em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p. 226.
49 Ibidem, p. 228-231.
50 “A obra de De Pradt circulava em trechos, recortada, através de vulgarizadores, adquirindo ampla divulgação e eficácia política.
[...] Raynal, De Pradt, Benjamim Constant, Mably, Rousseau e outros mais contribuíram, assim, para o aprendizado político das elites”.
SOUZA, Iara Lis Carvalho. Pátria coroada. São Paulo: UNESP, 1999, p. 123. O livro de B. Constant, Cours de politique constitutionnelle,
publicado em quatro volumes em 1818-1820, é considerado “o manual do liberalismo oitocentista”. MARTINS, Wilson. História da
inteligência brasileira. São Paulo: T. A. Queiroz, 1992, v. 2, p. 113.
51 O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 16, 25 dez. 1827, p. 4.
188 A globalização das luzes

útil à mocidade”, segundo Baptista Caetano. A relação de beneméritos e livros


doados compreendia obras editadas em inglês, francês e português: um livro de
cirurgia, Princípios de cirurgia, publicado em língua portuguesa em 1787, de auto-
ria de Jorge De La Faye;52 livros que eram usados na Universidade de Coimbra
após as reformas pombalinas e marianas, de autoria de Euclides e de Monsier
Lalande;53 obras de Belas Letras, como o célebre romance A Nova Heloísa, de
Rousseau, proibido pela censura portuguesa, ao que parece, em versão inglesa;
o cultuado The Paradise Lost, de John Milton, em inglês; The Letters of Abellard and
Heloisa, originalmente escritas em latim na Idade Média e, na versão incorporada
à Biblioteca, em versão inglesa, feita provavelmente por John Hughes, a partir de
tradução francesa de Pierre Bayle; e, ainda, Les enfants de l’Abbaye, romance gótico
da inglesa Regina Maria Roche, em edição francesa; obras de cunho político,
como o livro de emblemas de Diego Saavedra Fajardo, do século XVII, dirigido à
educação dos príncipes; uma obra de ensaios de Benjamin Thompson, traduzida
para o português pelo jornalista luso-brasileiro Hipólito José da Costa; e textos da
Assembleia Constituinte da França em 96 volumes, doados pelo deputado Januário
da Cunha Barbosa.54
A expansão do acervo da Biblioteca também foi registrada em Ata da
Câmara Municipal, na qual o coronel Martiniano de Barros comunicava que
os livros doados em testamento pelo conselheiro José de Resende Costa,55 envol-
vido na Inconfidência Mineira, teriam chegado à vila. Eram cerca de 120 obras
(500 tomos) deixadas em testamento pelo conselheiro, em 1841, à Biblioteca de
São João.56 Todavia, estes livros só chegaram em 1842, após vários pedidos e

52 ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal
no século XVIII. Topoi, v. 8, n. 15, p. 80-104, 2007.
53 VILLALTA, Luiz Carlos. A Universidade de Coimbra sob o reformismo ilustrado português (1770-1807). In: FONSECA, Thais
Nivea de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza, 2011, p. 157-202.
54 Todas essas doações foram publicadas em: O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 35, 7 fev. 1828, p. 2.
55 Nasceu em 1765 no lugar denominado de Laje (atual cidade de Resende Costa), Comarca do Rio das Mortes. Era filho de José
de Resende Costa, homem de terras no referido arraial. Ambos envolvidos na Inconfidência Mineira, foram acusados pelo crime de
lesa-majestade e condenados, vindo o pai a falecer no degredo. Resende Costa (filho) se tornou Conselheiro e importante político no
período imperial brasileiro, tendo participado da Assembleia Constituinte de 1823. Foi sócio correspondente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1841. Foi convidado pelo IHGB a escrever sobre a Inconfidência Mineira, mas
se recusou, restringindo-se a traduzir um artigo em inglês sobre o tema. GOMES, Wenderson de Souza. José de Resende Costa Filho:
a arquitetura da nação brasileira a partir do passado colonial. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 29., 24-28 jul. 2017,
Brasília. Anais... Brasília: ANPUH, 2017.
56 ACMSJDR. Correspondência de 1842 (documento avulso).
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 189

reclamações do conde de Valença, testamenteiro do conselheiro, que insistia em


pedir à Câmara que enviasse alguém ao Rio de Janeiro para se responsabilizar
pelo transporte das obras doadas. Quando foram trazidas para São João del-Rei,
por Martiniano Severo de Barros, um dos subscritores da Biblioteca, percebeu-se
que, nas “quatro caixas e um caixote de livros”, havia muitos livros “arruinados”
e constituiu-se uma comissão para examinar e escolher os que ainda poderiam
servir. Mas muito se perdeu, tendo sido registrado em Ata da Câmara Municipal
que parte de seus livros e todas as “brochuras”, com anotações do conselheiro, se
encontravam “arruinados”.57 Havia várias duplicatas de livros que deveriam ser
vendidas para que fossem adquiridas outras obras para a Biblioteca. Não se pode
dizer, porém, se essas providências foram tomadas. A relação das obras doadas pelo
conselheiro José de Resende Costa58 indica a existência da Encyclopédie méthodique;
das Œuvres de Molière, obras de Voltaire, de Rousseau, Genuensi e de Crebillon;
Os Lusíadas de Camões, Robinson Crusoé e as Fábulas de La Fontaine. Há menção a
autores como Racine, Manuel Maria Barbosa du Bocage, Benjamim Constant, J.
B. Say, Condillac, Marmontel e Necker. Há, ainda, outros títulos extremamente
relevantes para a história luso-brasileira do livro O fazendeiro do Brasil, coleção ilus-
trada (em 11 volumes) compilada pelo célebre Frei Mariano da Conceição Veloso,
publicada entre 1798 e 1806. Essas obras sobre técnicas agrícolas e de criação “se
inscrevem num programa extremamente vasto de divulgação das ciências e das
técnicas, postas ao serviço do desenvolvimento económico do Reino e, sobretudo,
do Brasil”.59 Vê-se, também, O Auxiliador da Indústria Nacional, periódico publicado
entre 1833-1896, no Rio de Janeiro, pela Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional, com o objetivo de “instruir os homens industriosos”, ou seja: vulgarizar
o conhecimento técnico-científico.60 Portanto, assim como O Fazendeiro do Brasil,
O Auxiliador da Indústria Nacional se encontrava fortemente ligado a uma tradição

57 ACMSJDR. Atas das Sessões da Câmara (ATA SES 28–1839-1844), fl. 216.
58 ACMSJDR. “Relação de obras doadas pelo Conselheiro José de Resende Costa, por Martiniano Severo de Barros” (1842- do-
cumento avulso).
59 LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes. Um breve itinerário editorial: do Arco do Cego à Impressão Régia. In: CAMPOS,
Fernanda Maria Guedes de et al (orgs.). A Casa Literária do Arco do Cego (1799-1801): bicentenário: “Sem livros não há instrução”. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Biblioteca Nacional, 1999, p. 79.
60 PENTEADO, David Francisco de Moura. O auxiliador da indústria nacional: Um periódico a serviço do estado brasileiro?
(1833-1896). Revista Trilhas da História, Três Lagoas, v. 8, n. 15, p. 126-143, jul./dez. 2018.
190 A globalização das luzes

iluminista que avançava pelo século XIX. Havia na biblioteca de Resende Costa,
por fim, dicionários de inglês, espanhol, francês, italiano e latim.
Até o ano de 1841, não foi registrada na Câmara Municipal qualquer refe-
rência a medidas de conservação ou aumento do acervo da Biblioteca. Em 1842,
após as negociações sobre o transporte da doação de livros do conselheiro Resende
Costa, foi registrada em Ata da Câmara uma solicitação feita ao bibliotecário: que
elaborasse um inventário das obras da Biblioteca. Não obtendo resposta sobre o
assunto, os vereadores decidiram nomear uma comissão composta por professores
públicos, para que estes fizessem o inventário. Poucos dias depois, um vereador
lembrou que a comissão não tinha, até aquele momento, feito o inventário das
obras. Novamente a Câmara Municipal enviava um ofício ao bibliotecário, exi-
gindo resposta, mas a correspondência foi interrompida e não há como concluir
se o trabalho foi elaborado.61
Há muitas dúvidas com relação ao acervo original da Biblioteca Pública de
São João del-Rei. Pode-se constatar, analisando os ex-libris de vários livros desse
acervo que chegaram aos nossos dias, que, ao longo de sua existência, muitas do-
ações foram feitas por moradores da cidade, sobretudo por famílias de médicos,
advogados e padres, quando estes faleciam. Outro problema é o fato de a Biblioteca
ter sido transferida para locais diferentes várias vezes desde sua criação. Nota-se
também a inexistência de documentos da época que indiquem, nominalmente, a
totalidade dos títulos dos livros que compunham seu acervo original.
Embora não tenha sido possível estabelecer, com absoluto rigor, uma clas-
sificação dos livros que compunham o acervo original da Biblioteca de São João
del-Rei (dados os limites impostos pelas fontes), podemos afirmar que a maior
parte dizia respeito às “ciências profanas”: Geografia, História, Filosofia, Política,
Direito, Ciências Naturais.62

61 ACMSJDR. Atas e Sessões da Câmara (ATA-SES 28, 1839-1844).


62 Neste estudo, os livros foram classificados em dois grandes grupos. O primeiro deles é constituído pelas Ciências Sacras, que se
subdividem em escritura santa (que compreende a Bíblia e os comentários feitos a partir dela), padres da Igreja (que se refere aos
escritos dos primeiros padres), teologia (livros de teologia moral e história sagrada), cânones, liturgia (livros de catecismos, manuais
de confessores, breviários, sermões e oratória sacra) e dicionários. O segundo grupo compreende as Ciências profanas, subdividido em
geografia, retórica, história, dicionário, literatura e gramática, filosofia, política, direito e ciências físicas e naturais. Essa classificação
foi inspirada em VILLALTA, Luiz Carlos. Os clérigos nas Minas Gerais na segunda metade do século XVIII. Acervo, Rio de Janeiro,
v. 8, n. 1/2, p. 19-52, 1995.
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 191

Sobre os locais de funcionamento, a Biblioteca ficou alocada, primeiramen-


te, na Santa Casa de Misericórdia e, em 1828, na Casa da Câmara. Conforme o
periódico Astro de Minas informou em 9 de setembro de 1828, tal providência fora
determinada pelo ouvidor da comarca do Rio das Mortes, pois, assim, a Biblioteca
ficaria “mais bem acomodada, decente e útil aos Cidadãos desta Vila”, uma vez
que antes se achava numa “das Salas no interior das enfermarias, sendo por isso
necessário conservar abertas as portas, do que resultavam infinitos inconvenientes”.
As novas instalações foram devidamente pintadas para abrigar a Biblioteca, pre-
paradas com “toda a decência”, uma vez que se tratava de um “estabelecimento”
apreciado em “países civilizados”.63 A partir de 1842, as Atas da Câmara registram
iniciativas para que se pudesse mudar a Biblioteca de lugar, levando os livros para
“as salas onde estão as cadeiras de Instrução Pública”. Este era o prédio onde havia
funcionado a Casa da Intendência, para onde também foram transferidas as Aulas
Públicas de Instrução Primária, o Correio e a Recebedoria.64
Em 1915, a Biblioteca passou a funcionar no atual prédio da Prefeitura
Municipal (antiga Câmara e Cadeia), tendo recebido o nome de seu iniciador em
1916. Na década de 1970, foi novamente transferida de local, ficando em um pré-
dio na rua da Prata, onde atualmente funciona a Biblioteca Municipal da cidade.
Os livros publicados entre os séculos XVI e XVIII passaram por um trabalho de
catalogação na década de 1980, realizado pelas professoras da Escola de Ciência
da Informação da UFMG: Sônia Conti Gomes e Marysia Malheiros Fiusa, sob a
coordenação de Lucy G. Fontes.65 Desde 1999, as obras se encontram sob a guarda
da Universidade Federal de São João del-Rei, em regime de comodato, tendo sido
realizado um novo projeto de organização, catalogação e classificação de todas as
obras, com o financiamento da Fundação Vitae, sob a coordenação de Lucy G. Fontes
Hargreaves. As obras foram transferidas para a Biblioteca do Campus Dom Bosco/

63 O ASTRO DE MINAS. São João del-Rei, n. 127, 09 set. 1828, p. 1. O termo publicado pelo Astro afirma que a Câmara assumiu
a “prontificação” da sala que abrigaria os livros, mas nos documentos do ACMSJDR não foram encontradas referências a gastos com
a Biblioteca entre 1824 e 1840.
64 ACMSJDR. Atas e sessões da Câmara (ATA-SES 28, de 10 de julho de 1840).
65 FONTES, Lucy G.; FIUSA, Marysia M.; GOMES, Sonia de C. Catálogo de livros raros da Biblioteca Baptista Caetano. Central Globo
de Comunicações da Rede Globo de Televisão, 1992.
192 A globalização das luzes

UFSJ em 2005. Em 2017, foi realizada nova mudança das obras raras para o prédio
do CEDOC, no Campus Dom Bosco, em sala com condições ambientais ideais.

A lgumas considerações

No Brasil do Oitocentos, várias medidas foram adotadas pelos “homens


ilustres” para que o sonho da civilização pudesse ser concretizado, sendo criados
espaços nos quais os ideais civilizatórios se enraizassem e se disseminassem até
mesmo no interior. Dentre esses loci, estavam as bibliotecas, as sociedades de leitura
e a imprensa periódica.
Vivíamos no Império um período de organização do Estado, da construção
da nacionalidade brasileira. Naqueles tempos, o conceito de civilização, o objeto
livro e as práticas de leitura se encontravam relacionados, tornando-se relevantes
para que o empreendimento de construção de uma nação fosse posto em prática.
Era preciso conformar uma nação cuja força de trabalho continuava a ser escrava
e que era, ademais, povoada por uma massa fluida de pessoas livres e de poucas
posses, todas vistas pelas elites como potencialmente perigosas. Civilização pela
palavra impressa era, portanto, o próprio amálgama que permitiria a coesão dessa
sociedade, composta por estratos sociais tão diversificados quanto difíceis de se
controlar.
Os títulos e autores identificados na constituição do corpus da Biblioteca
Pública de São João del-Rei, inaugurada em 1827, mas acrescidos ao longo do
século XIX, são bastante eloquentes e mostram uma relação estreita entre as ideias
difundidas pelo movimento que se nomeou genericamente como Iluminismo e a
crença na civilização pela palavra impressa. Estabeleceu-se, a partir desse movi-
mento filosófico, uma relação positiva com os livros: mais do que instruir, alterar
comportamentos, estabelecer uma moral dos costumes, retidão dos pensamentos
e ações, cabia favorecer a implantação de uma ordem pública, reprimir os desejos
de insubordinação. Eram tempos de poucas instituições escolares e, assim, a difu-
são dos impressos, dos espaços e das práticas de leitura tinha como objetivo muito
Luzes no interior da província: criação e acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei 193

mais do que instruir; possibilitaria “educar os espíritos”. As ideias relacionadas


à civilização e ao progresso, por meio dos livros e da leitura, que disseminariam
virtudes morais e uso da razão em benefício do público, ganharam força também
em São João del-Rei.
A inauguração da Biblioteca Pública em São João del-Rei e a tentativa de
abertura da Sociedade Philopolytecnica que possuía, dentre seus objetivos, publicar
uma folha de extratos para o “povo rude”, o “povo miúdo”, são exemplares nesse
sentido. A leitura, vista como determinante para a civilização, era aceita por esses
homens, apesar de se encontrar enraizada em seus projetos a ideia de que nem
todos deveriam ler tudo. Nesse movimento de inclusão havia, pois, uma intenção
excludente, que revela a tensão vivida no interior desse projeto civilizatório para
uma sociedade marcada pela desigualdade. A proibição da abertura da Sociedade
Philopolytecnica também pode ser tomada como um caso exemplar de controle e
cerceamento da leitura. A pretensão de se estabelecer uma política de leitura útil
e de escrita de um periódico que educasse os leitores poderia disseminar, rasteira
e silenciosamente, ideias perigosas, postas a favor de causas com as quais o Estado
imperial não concordava, num período tão delicado como foi aquele após a Inde-
pendência do Brasil.

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Quando morre um século:
“recomendações econômicas e políticas
que fez o Século 18 a seu filho o
Século 19”1
Álvaro de Araujo Antunes

No ano de 1802, foi apresentada à Comissão destinada à censura dos livros


em Portugal e seus domínios um manuscrito intitulado: “Testamento e Codicilo do
século 18 ou recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19”.2

1 Os resultados aqui apresentados estão associados ao projeto “Luzes entre Livros: ilustração e cultura escrita em Minas Gerais
(1750-1822)”, aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG), por meio do edital universal de pesquisa,
que se encontra sob o registro APQ 02439-17.
2 À época, a comissão destinada à avaliação e censura de livros era formada pelo Ordinário, Inquisição e Desembargo do Paço.
Anteriormente, durante o reinado de D. José I, esse controle era exercido pela Real Mesa Censória. Em 1787, D. Maria cria a “Real
Comissão Geral sobre o Exame e Censura de livros”, que funciona até 1794. Sobre o assunto, ver VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do
livro no mundo luso-brasileiro sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015. Para evitar repetições, todas
as referências ao documento neste capítulo remetem ao documento arquivado no endereço: Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(ANTT). Real Mesa Censória (RMC)–caixa 508, documento 4701.
198 A globalização das luzes

Pouco se sabe acerca da obra e do seu autor.3 Tudo indica que o manuscrito nunca
foi impresso, tendo no máximo uma circulação restrita, de mão em mão, pouco
influenciando no quadro das ideias portuguesas. Acerca do seu autor, António José
Soeiro da Silva, sabe-se apenas que era bacharel em direito formado em Coimbra
e, até onde se apurou, não deixou outros escritos para além do Testamento do Século
18.4 Essa breve apreciação investigativa indica um escritor sem expressão no qua-
dro letrado português e uma obra praticamente desconhecida. Entretanto, mesmo
oculto na zona cinzenta do quase esquecimento, esse escrito tem muito a revelar
sobre a maneira pela qual um homem trivial compreendeu a história do chamado
“Século das Luzes”.
Guardado no fundo Real Mesa Censória do Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, o manuscrito permaneceu desconhecido até o momento, não obstante
tivesse muito a revelar sobre as Luzes lusas. Formalmente, o documento se apresenta
com 19 páginas, frente e verso, ordenadas em duas partes. A primeira consiste no
Testamento, composto por dez páginas, que teria sido redigido em 25 de outubro
de 1800, conforme vai escrito na obra. O Codicilo, a segunda parte do escrito, é
datado de 25 de dezembro do mesmo ano. Não é difícil notar que a fixação das
datas e a formalidade da escrita servem de recursos que conferem ao panfleto um
aspecto legal e administrativo, similar a um testamento, não obstante se trate de
uma obra literária.5 O enredo tem por personagem principal o Século 18, que re-
lata, em primeira pessoa, seus feitos e ocorridos.6 Moribundo e temendo a morte,

3 Não se encontrou registro da referida obra nas bibliotecas nacionais de Portugal e do Brasil. Até o momento, também não se
localizou o parecer dos censores. Sobre o autor, por um erro de paleografia, julgava ser António José Louro da Silva, no entanto, o
correto é Antonio José Soeiro da Silva. Aproveito a ocasião para corrigir o erro que cometi ao analisar o documento no VII Encontro
Internacional de História Colonial, de 2018. ANTUNES, Álvaro de Araujo. Legado das Luzes: a ciência e a educação transmitidas em
testamento do século XVIII ao século XIX. In: ALVEAL, Carmen Margarida de Oliveira et al. (orgs.). Anais do VII Encontro Internacional
de História Colonial. Mossoró: EDUERN, 2018, p. 347.
4 Os registros da Universidade de Coimbra indicam que Antonio José Soeiro da Silva era filho de Antonio Soeiro e natural de
Sendim, Trancoso, Portugal. Em 1785, matriculou-se no curso de direito da referida instituição, colando grau de bacharel em 3 de
junho de 1789, com boa avaliação por Nemine Discrepante, mas estendeu sua formação até 1791. As informações foram retiradas do site
do Arquivo da Universidade de Coimbra. Disponível em: http://pesquisa.auc.uc.pt. Acesso em: 31 jun. 2019.
5 Sobre o aspecto formal dos testamentos, ver ANTUNES, Álvaro de Araujo. A forma de fazer testamento; apontamentos acerca
de um opúsculo setecentista. Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 7, n. 2, p. 93-101, jul./dez. 2005a. Existem outros registros de obras
literárias no formato de testamentos ou assim nomeadas. Um exemplo dessa espécie de “gênero”: Testamento de um velho que acha na cidade
de Lisboa, de idade de mil setecentos e cinquenta e dois anos cerrada por Mensieur de los tempos a vista de toda a marotagem, impresso por Francisco
Guerverz na Catalunha.
6 Para evitar replicar todo o título, optou-se por se referir ao escrito como Testamento do Século 18. As menções Século 18 dizem respeito
ao personagem, diferindo-se do século XVIII, aqui utilizado para circunscrever um determinado tempo. O mesmo vale para o Século
19 e o século XIX.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 199

o Século 18 alertava seu filho, o Século 19, para os desafios que seriam enfrentados
e para os incômodos que deveriam ser evitados.
O Testamento é a síntese narrativa de todo um século, suas conquistas e seus
desafios. Para os problemas econômicos, por exemplo, propõe soluções de cunho
fisiocrático, em defesa da riqueza proveniente da agricultura, que deveria ser
cultivada pela maior parcela da população. Quanto à sociedade, uma variável no
cálculo econômico, lamentava a mendicância e defendia o ordenamento estamen-
tal, negando qualquer laivo de igualdade. No terreno da educação, exaltava os
avanços da ciência e criticava o atraso do ensino promovido pelos inacianos. Em
geral, depreende-se da obra uma visão da história ordenada pela recordação dos
grandes eventos, sobretudo das guerras, que se projetavam para um futuro incerto.
Trata-se de um relato quase biográfico de um século agonizante, cuja vivência, nem
sempre exemplar, serviria de instrução ao filho. Apesar da riqueza dos assuntos
mencionados, que tomavam a história como mestra da vida, neste capítulo serão
avaliadas apenas algumas ideias de António José Soeiro da Silva quanto ao fun-
damento dos poderes, ao progresso das Luzes e às guerras. Objetivando associar
as ideias ao lugar de produção, exploraremos o universo de referências intelectuais
do autor, iniciando com uma breve análise sobre as Luzes em Portugal.
Em que pesem todos os questionamentos que possam ser interpostos acerca
do distanciamento entre criador e criatura, a forma pela qual o documento se
apresenta ao leitor permite uma sobreposição entre autor e obra. Deste modo,
compreendemos que, pela boca do Século 18, se expressam as posições de António
José Soeiro da Silva; a expressão singular de um universo ilustrado. Este prin-
cípio metodológico, de base relacional, entende que o autor carrega a marca de
uma coletividade, isto é, de um contexto que permite ou impede, sem determinar
plenamente.7 Uma conjuntura de circulação e apropriação de ideias, incentivada,
até certo ponto, por um projeto oficial lusitano e ilustrado, que visava à reforma
e não à revolução.

7 O Testamento do Século 18 é entendido como um ato autoral, porém coletivo; uma espécie de “universalidade para si”. ZIZEK,
Slavoj. Sobre la violência: seis reflexiones marginales. Barcelona: Austral, 2015, p. 183.
200 A globalização das luzes

A(s) obra(s) de um século e as Luzes lusas

Na historiografia especializada ou mesmo nos livros didáticos, é comum


a associação do século XVIII às Luzes, ao Iluminismo, à Ilustração.8 O fato de
todo um século ser caracterizado por um movimento intelectual, para além de ser
impressionante, induz à percepção equivocada de que havia um domínio homo-
gêneo ou ao menos global das Luzes, mesmo que por global se entenda a Europa.
É indiscutível que o Iluminismo, no século XVIII, se difundiu pela Europa, de
Londres a Moscou, de Estocolmo a Lisboa, se expandindo mais além, atravessando
oceanos e atracando em terras de outros continentes. Ocorre que o dilatado domínio
das Luzes, que serviu para forjar uma imagem de unidade intelectual europeia ou
mesmo global, se multiplicou em particularidades que coexistiram e se mesclaram
com outras formas do pensar.
Contra as especificidades, pode-se retorquir que a concepção generalizante
das Luzes não destoava do discurso dos pensadores ilustrados que trataram os pro-
blemas da sua época como sendo universais, uma vez que atinentes à natureza e/
ou ao gênero humano. Estudiosos como Peter Gay, Ernest Cassirer, Paul Hazard,
entre outros, foram coerentes ao referendarem o caráter universal ou geracional
do Iluminismo, compreendendo-o como um conjunto mais ou menos uniforme
de princípios que reconheciam na razão o potencial para explicar e mudar a or-
dem do mundo.9 A imagem de um Século das Luzes, cara aos filósofos do século
XVIII e a historiadores mais coetâneos, reafirma a perspectiva de uma Europa
unida por valores filosóficos e estéticos comuns. Um espaço e uma unidade cultu-
ral oriundos, em grande parte, do próprio empenho em conhecer as leis gerais do
progresso humano.
Do panorama desenhado, dois pontos devem ser destacados para nuançar
as abordagens totalizantes e atingir o presente propósito de avaliar as Luzes do

8 Neste capítulo, por vezes, se fez uso indiscriminado dos mencionados termos, ainda que seja mais frequente o uso das “Luzes”
para designar o movimento intelectual de fins do século XVIII. Sobre a variação e especificidades do termo, cf. OUTRAM, Dorin-
da. Panorama de la ilustración. Barcelona: Blume, 2008, p. 26-27.
9 CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. 2. ed. Campinas: EdUNICAMP, 1994; HAZARD, Paul. La pensée européenne au XVIIIe
siècle: de Montesquieu à Lessing. Paris: Fayard, 1993; e GAY, Peter. The Enlightenment: the rise of modern paganism. New York: W. W.
Norton & Company, 1995.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 201

século XVIII no mundo luso: a expansão geográfica das Luzes em direção às terras
portuguesas e os contornos que ali adquiriu; e, pautando a pluralidade das Luzes,
a constituição de uma perspectiva de progresso que serviria de rota às nações eu-
ropeias e que contrastava com as lamúrias do atraso lusitano. Diante dessas duas
zonas de problemas, como hipótese, ainda que apenas aventada, quer-se considerar
a possibilidade de o discurso sobre atraso funcionar como um elemento crítico capaz
de dinamizar o avanço lusitano no amplo plano do progresso humano.
Nas últimas duas ou três décadas, “os estudiosos concentraram-se mais nas
diferenças nacionais ou confessionais”, revelando as especificidades do Iluminismo
em diferentes partes da Europa.10 Destacando a dilatação da área geográfica do
Iluminismo, normalmente restrita à França, Dorinda Outram ressaltou a plurali-
dade das manifestações das Luzes. Nos termos da autora, a ilustração, mesmo em
sua menor definição, compreendia muitos e distintos abrigos, variando no tempo e
no espaço.11 E mais, “la ilustración se vivió como una cacofonía y una paradoja”.12
Seguindo essa perspectiva, alguns estudos se preocuparam em identificar as
especificidades da manifestação das Luzes em Portugal. Com frequência, as Luzes
no mundo luso são descritas como conciliadoras, reformadoras, católicas. Para
caracterizá-las desta maneira, é comum se ressaltar a flutuante relação da razão
ilustrada e da fé católica. Ainda que a segunda metade do século XVIII tenha
presenciado entreveros entre a Coroa portuguesa e o papa, bem como uma perse-
guição sistemática aos jesuítas e à escolástica, a Igreja católica não sofreu grandes
perdas.13 Apesar de todos os óbices, o padroado régio continuaria a aproximar os
interesses do Estado e da Igreja. Os ataques que partiram do trono ou da cadeira
ministerial do governo português, em meados do Setecentos, não visavam solapar
os valores religiosos, nem romper a parceria com a Igreja, de mútuo interesse na
conquista e controle dos fiéis súditos.

10 ISRAEL, Jonathan. A revolução das Luzes: iluminismo radical e as origens intelectuais da Democracia Moderna. Tradução de
Daniel Moreira Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2013, p. 29.
11 OUTRAM, op. cit., p. 24.
12 Ibidem.
13 Observador perspicaz e partidário da secularização do ensino, Ribeiro Sanches considerava que, com a expulsão dos jesuítas
que dirigiam a Universidade de Coimbra (1759) e com o rompimento das relações com a autoridade romana (1760), era “um absurdo
ensinar nas Universidades as Leis de soberano alheio”, no caso, o papa. SANCHES, Ribeiro. Dificuldades de um reino velho para remendar-se
e outros textos. 2. ed. [Lisboa]: Livros Horizonte, 1980, p. 68.
202 A globalização das luzes

O empenho secular que inaugura a Real Mesa Censória mostrou-se zeloso


para com os valores cristãos e para com a própria Igreja. Nas escolas de primei-
ras letras, mesmo depois das reformas educacionais iniciadas com a expulsão
dos jesuítas, o ensino escolar não abria mão do catecismo. Nas universidades, as
cotidianas contestações e blasfêmias de alguns estudantes e populares ficaram,
em sua maioria, no limite do aceitável e, quando exorbitavam, a Inquisição não
se eximia de colocar limites. Entre os intelectuais, eram representativos aqueles
que, como Teodoro de Almeida, consorciaram fé e razão.14 Enfim, por essas e
outras razões, as Luzes em Portugal mostraram-se peculiares, se não paradoxais,
em especial quando consideradas as análises mais ortodoxas e universalistas.
Recolocando a questão das expressões das Luzes, Ana Cristina Araújo
ponderou que o aspecto paradoxal da forma lusa seria um componente de todos
os Estados europeus nos quais vigorou o absolutismo esclarecido. O paradoxo era
algo inerente às formas absolutistas que promoveram as Luzes. No caso do Portugal
pombalino, a contradição estava na “crítica do fundamento da modernidade”,
o qual, “sob os auspícios da ideia de progresso”, manteve “amarrada a razão à
tradição”.15 Em outra perspectiva, Fernando Novais destacaria a incoerência
entre a “prática e a teoria”. Para ele, Portugal teria se adiantado a outros países
europeus, desenvolvendo uma série de reformas ilustradas – por exemplo, as já
mencionadas reformas dos ensinos de primeiras letras e universitário –, enquanto,
no plano das ideias, mostrou-se extremamente controlador e censor.16
No projeto de modernização estabelecido para Portugal, a Coroa seria mais
reformadora do que revolucionária, seguindo a virtude cardeal da prudência,
em especial depois dos eventos da Revolução Francesa.17 Em termos gerais, no
mundo português, a força perturbadora das Luzes mostrou-se atenuada.18 Ainda
que tenha influenciado alguns movimentos sediciosos e contestações pontuais, o

14 DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração e catolicismo: Teodoro de Almeida. Lisboa: Colibri, 1994, p. 152.
15 ARAÚJO, Ana Cristina. O marquês de Pombal e a universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2000, p. 15.
16 NOVAIS, Fernando Antônio. Aproximações: ensaios de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 167.
17 ANTUNES, Álvaro de Araujo. O código intentado: lei e justiça na “economia da imposição”, Portugal, finais do século XVIII
e início do XIX. In: BARRAL, Maria Helena; SILVEIRA, Marco Antonio (coords.). Historia, poder e instituciones: diálogo entre Brasil
y Argentina. Rosario: Prohistoria; Universidad Nacional de Rosario, 2015, p. 126-142.
18 MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1996.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 203

Iluminismo português esteve, mormente, atrelado ao Estado, mais especificamente


ao reinado de D. José I e do seu ministro, o marquês de Pombal.19
Para além dos contornos paradoxais que marcam a especificidade da
ilustração portuguesa, as perspectivas apresentadas suscitam questionamentos
quanto ao progresso das nações, dentro de um plano global de desenvolvimento
e modernização. Para Araújo, o uso constante de expressões como “necessidade
pública” e a prática das “nações civilizadas” reforçavam “a ideia de que o Estado
poderia objetivamente beneficiar-se do influxo racional e crítico das ciências e
das artes, colocando-as a serviço da sociedade”.20 No processo de modernização a
noção de atraso passaria a ser incorporada no espectro das análises. Com algum
risco de apontar obviedades, vale frisar que tal perspectiva de atraso dependia de
um referencial ideal e de uma concepção de tempo em progresso, o que novamente
remete à universalidade da humanidade.
Em muitos escritos portugueses, o referencial ideal ganhava o contorno im-
preciso de “países ilustrados e modernos”, dos “países desenvolvidos”, das “nações
civilizadas”, rótulos que, normalmente, se atrelavam à França, à Inglaterra, aos
Países Baixos, atual Holanda. A noção de atraso, por sua vez, revela seu sentido
quando considerado o progresso humano, perspectiva, aliás, tributária de uma
teleologia que não era estranha ao catolicismo, mas que ganharia novos contor-
nos em uma filosofia da história. À extensão geográfica das Luzes, se somava a
universalização das leis naturais, da percepção de humanidade, da defesa dos
valores gerais, enfim, uma série de princípios e concepções que embalavam as
Luzes na esteira do progresso.
Entre os iluministas, o progresso se apresentava como o desenvolvimento do
espírito humano, ao qual se associava o desenvolvimento econômico, tecnológico,
político, medicinal, administrativo etc.21 Parte dos autores ilustrados mostrava-se
esperançosa quanto ao avanço da humanidade, como é o caso de Condorcet, em

19 Sobre as sedições, ver MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira; Brasil-Portugal: 1750-18 08 . Tradução
de João Maia. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995; VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o Império Luso-Brasileiro e os Brasis.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000; e JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do
século XVIII. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
20 ARAÚJO, 2000, p. 9.
21 “Não é surpresa para ninguém afirmar que as noções de progresso, melhoria da sociedade [...], melhoria do ‘estado da humanidade’,
foram fundamentais para o iluminismo.” ISRAEL, op. cit., p. 15.
204 A globalização das luzes

seu Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano.22 Contudo, o desen-
volvimento também poderia estar associado à decadência, quando considerados
os “perigos e desafios a que está sujeita a condição humana”.23 Em Considerações
sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência, Montesquieu desenha a
ascensão e a queda de uma “república” modelar.24 No mesmo sentido, Rousseau
destoaria da nota positiva ao questionar o progresso da humanidade promovido
pelas ciências e artes. Para Rousseau, a “aventura da civilização se mostra como
um processo de degeneração progressiva do homem”.25 Mais do que revelar a
discordância no interior das Luzes, as perspectivas, desenhadas entre desenvol-
vimento e derrocadas, consideravam o progresso como um processo movido por
causas e acidentes, cujos resultados eram incertos.26
Justamente pelo progresso da humanidade estar sujeito aos lapsos, havia um
descompasso na trajetória da modernidade. Dentro dessa lógica, no século XIX,
autores portugueses, como Antero de Quental, denunciaram o atraso do mundo
luso em relação aos outros países europeus e ao seu próprio passado de conquistas
e descobertas.27 A imagem de atraso como marca de Portugal não esteve, portanto,
desvinculada de uma noção de progresso que escalonava as nações e povos do
mundo. Os referenciais dessa categorização poderiam variar, mas era comum a
afirmação da posição da nação portuguesa como retardatária na linha evolutiva
percorrida pelas potências europeias.
Segundo Carvalho, a tópica da decadência teria sido forjada pela geração
de escritores de 1870. Contudo, as ideias de atraso e isolamento do país eram fru-

22 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução
de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. Campinas: EdUnicamp, 2013.
23 ISRAEL, op. cit., p. 17.
24 MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Tradução de Renato Moscateli. Porto
Alegre: Edipucrs, 2010.
25 “Além disso, o conceito de perfectibilidade no século foi elaborado por Rousseau no interior de uma concepção da história
humana absolutamente contrária ao otimismo da ideologia de progresso.” NASCIMENTO, Maria das Graças S. Apresentação. In:
CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução de
Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. Campinas: EdUnicamp, 2013, p. 13.
26 Havia concepções distintas de progresso: metafísicas, materialistas, deterministas, providenciais deístas ou religiosas. Segundo Israel,
“ao contrário do que muitos presumem, as teorias do progresso estavam geralmente embaralhadas com um forte traço de pessimismo,
uma percepção dos perigos e desafios a que está sujeita a condição humana”. E mais, a ideia de que os pensadores iluministas nutriam
uma crença na perfectibilidade do homem poderia ser uma invenção do início do século XIX. Apesar dos avanços da humanidade no
campo da produção e da ciência, a intolerância e o fanatismo botavam as Luzes em risco. ISRAEL, op. cit., p. 24.
27 É preciso considerar a hipótese de que os portugueses, no geral, não se sentiam atrasados em relação ao resto da Europa. CAR-
VALHO, Flávio Rey de. Um Iluminismo português?: a reforma da Universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008, p. 22.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 205

tos de uma “ênfase exagerada e unilateral aos estigmas da diferença e da eterna


defasagem, como características da cultura dos portugueses nos séculos XVI,
XVII e parte do XVIII”.28 Assim sendo, a percepção do atraso dependia de uma
perspectiva de progresso, mas também da construção histórica da saga portuguesa,
de nação vitoriosa a decadente. A despeito de toda a grandeza imperial e das suas
colônias, Portugal ressentia-se do passado de grandeza e o projetava, saudosamente,
em um futuro incerto. Nesse sentido, é possível afirmar que o espectro constante
do atraso serviu, contraditoriamente, de impulso ao desenvolvimento português.
Antes mesmo de Antero de Quental, o Portugal setecentista demonstrava sua
preocupação em buscar alternativas para “um reino velho remendar-se”.29
Tanto no Verdadeiro Método de Verney, quanto no Plano de Reforma da Univer-
sidade de Coimbra, o atraso português é atribuído à má influência dos jesuítas, algo
que deveria ser superado em nome do progresso. Observe-se que as obras citadas,
dentre outras, não atribuíam à nação portuguesa a culpa pela decadência, muito
menos às mentes iluminadas capazes de pensar alternativas de desenvolvimento.30
O atraso seria fruto de apostas erradas, obstáculos contornáveis se o rumo fosse
traçado por sextante, racionalmente, mas sem se desapegar do terço e das orações.
O discurso de um retrocesso português perante as “nações europeias ilu-
minadas” explicitava o impulso intelectual diante de um importante movimento
coletivo; um discurso que tinha no passado o exemplo glorioso e, na crítica ra-
cional, as forças motrizes de um projeto de desenvolvimento português. Dentro
dessa lógica, cabe ainda observar que a temática da decadência, associada à do
progresso, não era estranha à apreciação iluminista, como evidenciam os casos
mencionados de Montesquieu e Rousseau. Logo, os diversos discursos sobre a si-
tuação de atraso em Portugal poderiam revelar tanto um possível fato, quanto um
ímpeto de acelerar a participação lusa em um projeto com pretensões universais.
É nessas bases que se compreende a história de um século...

28 Ibidem, p. 26.
29 SANCHES, op. cit.
30 LEMOS, Francisco. Relação geral do estado da Universidade (1777). Coimbra: Atlântida, 1980.
206 A globalização das luzes

Um século na obra: sobre o fim e as heranças

Ultrapassando os limites das fronteiras nacionais, a globalização das Luzes


se daria por múltiplos caminhos de adesão e resistência no conjunto das relações
humanas que compunham e alteravam um sistema mundial em constante movi-
mento.31 A diversidade das Luzes, por sua vez, não prescindia do compartilhamento
e do debate crítico de ideias que teimavam em ludibriar as fronteiras e a censura.
O espírito questionador que considerou o atraso também promoveu o avanço de
toda a humanidade, na filosofia, economia, política, ética etc. Conforme Todo-
rov, o pensamento das Luzes foi conduzido por numerosos indivíduos que pouco
acordavam entre si, mas, apesar das cizânias, as Luzes afirmariam “a unidade do
gênero humano, portanto a universalidade dos valores”.32
A lição das Luzes consiste então em dizer que da pluralidade pode nascer uma nova
unidade, ao menos de três maneiras: ele incita à tolerância dentro da emulação,
desenvolve e protege o livre espírito crítico, facilita o desligamento de si, conduzindo
a uma integração superior de si e de outrem. 33

Neste processo é possível discernir uma espécie de “universalidade para si”,


que não é apenas externa e acima de todo contexto, como também se inscreve em
seu interior e o modifica por dentro, “de modo que a identidade do particular se
divide entre seus aspectos particulares e universais”.34 Esta perspectiva, que associa
o particular ao universal, servirá à análise do Testamento e Codicilo do século 18 ou
recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19. Nesta apre-
ciação, a obra foi compreendida como uma expressão, ao mesmo tempo singular
e coletiva, de um letrado português que faz uso da noção de decadência, como
fortuna crítica, para contar a história da humanidade, em um século conhecido pela
esperança depositada nas Luzes. A ordem dos imprevistos e dos poderes desenha

31 Nesse sentido, a controvérsia é destacada, relativizando a ideia de “família de iluminismos”, afinal a crítica consistia no motor das
mudanças promovidas pelas Luzes. Segundo Jonathan Israel, a perspectiva de “família de iluminismos”, baseada em John Pocock, é
“em grande parte inaplicável às questões controvérsias mais básicas e abrangentes do iluminismo”, tais como: o alcance da razão, a
possibilidade ou a impossibilidade de milagres, a situação da providência divina, a função da autoridade eclesiástica, a igualdade, a
democracia, a imprensa livre e a separação entre o Estado e a Igreja. ISRAEL, op. cit., p. 29.
32 TODOROV, Tzvetan. O espírito das Luzes. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Barcarola, 2008, p. 35.
33 Ibidem, p. 145.
34 ZIZEK, op. cit., p. 183.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 207

a história de um século, cujo desenrolar é similar ao de um ser vivo, com bons e


maus momentos, e que, no fim da existência, receoso e amedrontado, encara sua
natural decadência.
Copiando as formalidades dos testamentos, o século moribundo principia
com sua profissão de fé em um “ente todo poderoso, causa de todos os contingentes,
incriado, universal e incompreensível”.35 A caracterização desse ente superior, como
o princípio de tudo, como causa incausada, não poderia ser confundida com a de
um demiurgo. Longe de uma perspectiva deísta, o Deus do Testamento do Século 18
não é diluído, pálido, incapaz de estorvar a humanidade com sua ira ou benção.36
Isso, portanto, não afasta a responsabilidade dos homens, cujas ações se encarnam
no século moribundo. Outrossim, no Testamento, diferentemente dos deístas, não
se identificam questionamentos acerca das superstições católicas ou protestantes,
alvo dileto de muitos autores ilustrados. Ao declarar sua fé, o Século 18 afirma seu
crédito irrestrito na Santa Igreja, nos decretos pontifícios e nos concílios católicos.
Sua confiança na religião católica romana, fundada por “ordem do mesmo Deus”,
o aproxima de um posicionamento mais conservador, afastando-o de qualquer
crítica à Igreja que marcaria os estratos mais radicais das Luzes.
Recorrendo a São Paulo apóstolo, às epístolas e ao Corpus Juris Civilis de
Justiniano, o Século 18 apresenta a maneira como compreendia a ordem dos poderes.
Creio que o mundo é governado principalmente pelos dois poderes: do sacerdócio
e império civil; o primeiro dos quais tem por objeto a vida espiritual e felicidade
eterna: o segundo, a vida e felicidade temporal [...] Creio que o poder dos príncipes
vem imediatamente de Deus, que pelo mesmo Deus governam e que são postos,
uma vez constituídas as sociedades, para promoverem a felicidade temporal dos
povos e que quem lhe resiste, resiste [a]o poder de Deus.

Como não é um criador alheio, Deus estabelece e legitima os poderes sacer-


dotais e civis. O Século 18 declara que o poder dos príncipes “vem imediatamente de
Deus, que pelo mesmo Deus governam”. Não haveria, destarte, entre Deus e o rei
qualquer mediador, o que contrariaria a posição defendida por Azpicuelta Navarro,

35 Não apresentaremos a referência do documento em todas as ocasiões que for mencionado ou analisado, para evitar repetições.
Todas as referências remetem ao documento guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), no fundo da Real Mesa
Censória (RMC)–caixa 508, documento 4701.
36 HAZARD, Paul. O pensamento Europeu no século XVIII: de Montesquieu a Lessing. Tradução de Carlos Grifo Babo. Lisboa: Presença,
1983, p. 112.
208 A globalização das luzes

Francisco Vitória, Domingo Soto etc. A esses autores, associava-se a perspectiva


neoescolástica, na qual o povo era o intermediário do poder divino, a ponto de, em
casos de tirania, poder se levantar contra o regente.37 Há, não obstante, na obra
em análise o imperativo dos reis em promover a “felicidade temporal dos povos”.
A defesa da monarquia e do absolutismo do autor do Testamento ratificava a origem
divina do poder e a obrigação de promover o bem comum, mas não referendava
a perspectiva pactualista escolástica, muito menos a possibilidade do regicídio, ao
qual, aliás, abominava com veemência.
Dando mostras dessa repulsa, o “século testamenteiro” recordava, assom-
brado, o atentado sofrido por D. José I, evento que deflagrou perseguição a alguns
membros da nobreza portuguesa e a inacianos, cujo poder econômico e político se
agigantava em concorrência ao Estado.38 Com a ênfase do documento:
vi mesmo, com os olhos cobertos de lágrimas, alguns atentados contras as pessoas
sagradas dos príncipes, que eu castiguei de modo possível, até fazendo extinguir
os jesuítas, por me capacitar que eram prejudiciais, pondo todos os meios procurar
a paz e o sossego.

Em conformidade com o espírito reformista direcionado contra os jesuítas,


são condenados os “erros da escolástica”, visando à modernização de Portugal.
Na opinião de Joaquim Ferreira Gomes, iniciadas com a expulsão dos je-
suítas, as reformas educacionais foram um impulso de secularização que traduzia,
pela primeira vez na história do ensino de Portugal, uma tentativa consistente de se
formar um ensino público de primeiras letras.39 Já se ponderou que, dentro da lógica
do espírito ilustrado português, essa secularização significou a maior intervenção
do Estado sobre a censura, a Inquisição, a educação etc. Nenhum Estado laico
surgiu do esforço centralizador pombalino. O padroado continuaria associando os
poderes religiosos e civis, a Igreja atuaria nos instrumentos de censura, os padres
permaneceriam ensinando o catecismo associando-o à instrução das primeiras

37 Sobre o assunto, cf. TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade,
1981; e VILLALTA, 2015, p. 29 et seq.
38 AZEVEDO, João Lúcio. O Marquês de Pombal e sua época. São Paulo: Alameda, 2004, p. 185.
39 GOMES, Joaquim Ferreira. O Marquês de Pombal criador do ensino primário oficial. Revista de História das Ideias – O Marquês de
Pombal e sua época, t. II, p. 25-41, 1982.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 209

letras.40 O Testamento do Século 18 refletia esse ambiente intelectual, bem como a


instrução recebida pelo seu autor, António José Soeiro da Silva, formado na Uni-
versidade de Coimbra entre 1785 e 1791. A influência da instrução acadêmica de
Soeiro da Silva ficará mais clara adiante, quando serão apresentadas algumas das
suas referências bibliográficas.
Retomando a questão do poder, cabe observar que a felicidade da nação
consiste no objetivo final do monarca instituído por Deus. Porém, a promoção
dessa fortuna não dependia exclusivamente do rei, mas era compartilhada com
todos os homens dotados do espírito patriótico, isto é, com todos aqueles dedica-
dos à promoção do bem comum e ao respeito da ordem.41 Nesse sentido, o século
moribundo recomendava a seu filho:
Apenas eu expirar, ele tomar[á] conta do governo do mundo, fará logo persuadir
aos homens que o seu fim não é outro mais que procurar a sua felicidade, pondo
para isso os meios eficazes. Quais os de manter a paz, fazer respeitar a religião, seus
dogmas, e disciplina: fazer respeitar os soberanos e seus direitos [...].

No Testamento, Deus era compreendido como a “causa de todas as contin-


gências”, o que não afastaria os homens das suas responsabilidades, em especial
quando promoviam a guerra ou quando levavam uma vida sânie. Em geral, os vícios
tinham raízes no anseio individualizado pela distinção e pela honra, contrastando
com os interesses comuns defendidos por Soeiro da Silva.
No Codicilo, segunda parte do documento aqui analisado, é narrada a luta
do século moribundo contra a vaidade, o interesse, a lisonja e outros “vícios mons-
truosos”, nutridos pela arrogância pessoal. Por meio dela “o primeiro homem,
apesar de estar cercado de graça, foi reduzido ao engano”. Com uma boa dose
moralista, o século agonizante aconselhava seu filho que o único caminho para a
felicidade era fazer imperar as virtudes. Nos termos exatos do documento se evi-
dencia a relação de virtudes eleitas: “não se deve desanimar o meu filho, porque
ainda existem a Razão, Prudência, Verdade e Obediência, que são virtudes muito
superiores aos vícios”.

40 ANTUNES, Álvaro de Araujo. First lines of schooling: regius and private teachers in Brail, 1759-1834. Sisyphus, v. 4, n. 1, p.
120-143, 2016.
41 Segundo o testamento: “patriotismo para procurarem a felicidade dos povos. Nem pode ser bom Ministro ou militar aquele que
não é dotado de probidade, prudência, e patriotismo bem entendido. Do contrário se segue o assolarem os povos e olharem só para si,
não para o bem publico”.
210 A globalização das luzes

Central ao pensamento iluminista, a razão servia para desvelar as verdades,


as leis do universo. Dela dependia toda a ciência da filosofia, pois natureza e razão
estavam unidas: a natureza era racional e a razão era natural.42 A Razão, a marca
distintiva das Luzes, não se apresentava compromissada em alcançar a verdade e
em denunciar os erros se isso implicasse prejuízo da fé e da religião católica. No
Testamento do século 18, a razão era representada, sobretudo, como uma virtude, o
que não afastava outros sentidos e usos dentro da narrativa, como quando apare-
cia como sinônimo de motivo ou algo próprio da natureza humana. Entretanto,
mesmo como virtude, a razão não perderia a potência de esclarecer. Na obra em
foco a razão seria convocada pelo século moribundo para “iluminar os homens”,
para “ilustrar e emendar os gabinetes e países”. Dessa última acepção poder-se-ia
supor um forte apelo ilustrado por parte de António José Soeiro da Silva, o que
não estaria de todo errado, porém, talvez não fosse o suficiente para descrever seu
perfil intelectual, que estaria longe de ser o de um “ilustrado modelar”, se é que
isso é possível.
O conjunto heterogêneo das citações feitas pelo autor ao longo do Testamento
do século 18 tem a revelar um pensamento mais complexo e plural que, em alguma
medida, refletia o próprio universo intelectual lusitano. Como já demonstrado,
António José Soeiro da Silva tinha preferência em referendar seus posicionamen-
tos nos evangelhos e nas autoridades da Igreja, mas outra sorte de autores estava
representada, alguns deles associados às Luzes e à reformada Universidade de
Coimbra. Dentre as referências identificadas nas notas e no próprio corpo do
texto do Testamento do Século 18 é possível encontrar as Constituições, de Justiniano,
dividindo o espaço com os jusnaturalistas Hugo Grotius e Samuel Pufendorf, bem
como com outros autores assimilados pelo Iluminismo português. Em meio às
referências, vale destacar alguns casos com o propósito de desvendar um pouco
mais o eclético universo intelectual de Soeiro da Silva.
Associados à reformada Universidade de Coimbra e citados no Testamento
do Século 18, estavam: Febrônio, Van-Espen e Heinécio (ou Heineccius). Este autor
escreveu um verdadeiro “manual” em defesa da união entre o direito natural e a
jurisprudência, sem menosprezar a importância da religião. Heineccius era estu-

42 HAZARD, 1983, p. 36 e 269.


Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 211

dado na cadeira de Direito Civil Romano, na universidade coimbrã.43 Professor


em Louvain no início do século XVIII e autor do Jus Ecclesiasticum Universum,
Zegerus Bernardus Van-Espen foi considerado jansenista, tendo sido proibido
pelo Index.44 Apesar disso, depois da reforma pombalina dos estudos, os alunos
de Cânones estudavam o direito de Graciano por meio dos comentários de Van-
-Espen. Igualmente lido na universidade coimbrã, Justinus Febrônius também foi
considerado jansenista por questionar a monarquia papal e manteve contatos com
os enciclopedistas.45 Outro ilustrado citado no Testamento do Século 18 era Montes-
quieu, autor de O Espírito das Leis.46 A relação desses escritores espelha a formação
que Soeiro da Silva obteve dentro e fora da reformada universidade às margens do
Mondego, onde, nada obstante, fora aprovado em exame final pela unanimidade
dos avaliadores.
Durante a sua existência o Século 18 convocou a Razão, em alguma medida
associada aos autores acima mencionados, para que “viesse ao mundo ver os ga-
binetes” e para ilustrar e emendar os países. Mas mesmo a instrução deveria ser
acompanhada com uma boa dose de censura aos autores ímpios e radicais, dentre
os quais estaria, de forma surpreendente, Isaac Newton, o pai do experimentalismo,
que trouxe a matemática a serviço da física. Para além de Newton, o Testamento do
Século 18 se posicionava nomeada e explicitamente contra Wolf, Leibniz e Locke
e outros autores modernos!47 A condenação dos mencionados autores, por razões

43 Ibidem, p. 141.
44 VAN DE WIEL, Constant. History of canon law. Louvain: Peeters Press Louvain, 1983, p. 158.
45 Sob o pseudônimo de Justinus Febronius, Nicolaus Von Hotheim escreveu uma obra contundente na qual dissertava sobre os
fundamentos do poder papal, defendendo que a monarquia clerical era uma usurpação. As ideias de Febronius, segundo Paul Hazard,
eram “de nature à provoquer une crise dans la chrétienté”, mas se afinavam com a política centralizadora do reinado de D. José I. Não
por menos, o marquês de Pombal providenciou a tradução da obra de Febronius, que também foi adotada na reformada Universidade
de Coimbra, sendo substituída, após 1780, pela obra de Von Riegger, autor que também defendia a supremacia do poder temporal.
MAXWELL, 1996, p. 102; e HAZARD, 1993, p. 326.
46 No terceiro ano de direito, na cadeira sintética de Direito Civil, se estudava o Digesto por meio da obra de Heinécio. A Universidade
reformada adotava a obra de Justino Febrônio, autor que alguns associavam ao enciclopedismo e ao jansenismo. HAZARD, 1983, p.
150 e 152. ANTUNES, Álvaro de Araujo. Fiat Justitia: os advogados e a prática da justiça em Minas Gerais (1750-1808). 2005. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005b, p. 156.
47 Newton submetera as matemáticas ao serviço da física, sem partir de abstrações, de axiomas, mas sim de fatos, “para chegar a
outros fatos decididamente constatados, porque extraia da natureza as leis da natureza”. Leibniz entendia que a cultura, a ética e a
razão serviriam à pacificação e união das religiões. Discípulo de Leibiniz, Wolf era um autor que protestava contra os livres pensadores
ingleses, bem como contra o deísmo, o materialismo e o cepticismo dos franceses. “Para ele a moral era racional, a fé era uma operação
racional e Deus é produto da razão humana”. Aqui, talvez, uma das razões da oposição de Soeiro da Silva ao autor. Locke era um
empirista e, como tal, entendia que o conhecimento, não importa de qual ordem, era constituído em função dos sentidos. HAZARD,
1983, p. 47 e 127; e ARAÚJO, Ana Cristina. A cultura das Luzes em Portugal: temas e problemas. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 14,
30 e 45.
212 A globalização das luzes

que ficam mais ou menos evidenciadas na citação abaixo, seria acompanhada


de um verdadeiro expurgo, que reduziria às cinzas “a grande máquina de livros
que, em todas as faculdades e ciências, se têm descoberto e julgado perniciosos e
cavilosos”. Nota-se, na obra de Soeiro da Silva, uma clara defesa da censura, que
tinha a tarefa de filtrar a instrução livresca, pois os livros:
[...] vendidos, tanto daqueles que supõem o verdadeiro sentido da sã teologia, como
dos que atacam os legítimos poderes dos príncipes e os bons costumes, e ainda
mesmo o de história, que ou não foi verdadeira, ou pode conduzir os ânimos ao
vicio do amoroso ou do guerreiro, porque sendo estes livros peste na república,
a sua lição não pode deixar de o ser também; ainda mesmo nas mãos daqueles
que bem entendem o contrário e apesar de que eu usei da providência de proibir
em muitas nações a sua venda e lição, contudo, pouco ou nada concluí, porque
sendo os homens naturalmente inclinados a ver tudo aquilo que se esconde, vem a
proibição a aguentar-lhe o desejo de os ver, ler, escrever, e sempre há pavor aonde
este ou aquele tem passagem para de lá vir às mãos dos curiosos, por isso a total
redução das cinzas é o meio mais eficaz de acautelar o grande mal que se segue
de semelhantes livros.

Soeiro da Silva estava ciente de que a proibição instigava os espíritos curio-


sos à leitura das obras “cavilosas”, de onde sugerir a fogueira para os modernos e
antigos que atacavam o verdadeiro sentido da teologia, que submetiam os poderes
dos príncipes aos bons costumes, que falsificavam a história, assim como os livros
de fábulas pagãs. Parcela imensa de uma produção livresca devia ser condenada,
afinal “sempre há pavor onde este ou aquele [livro] tem passagem para de lá vir
às mãos dos curiosos”. A reprovação não quer dizer que António José Soeiro da
Silva fosse avesso às Luzes, mostrando coerência com a política ilustrada pomba-
lina, na qual a censura serviu de mecanismo de controle, mais do que obstáculo
ao progresso moderado e católico.
Talvez, a referência que melhor represente o posicionamento de Soeiro da
Silva seja: “Viagem da Razão debaixo do nome de Lucidôr”. Muito provavelmente,
a referência diz respeito à obra Voyage de la raison en Europe, do marquês Louis-Antoine
Caraccioli. Em um estudo sobre o referido escritor, Jacques Martine o posiciona na
fronteira dos partidários das Luzes e dos defensores da tradição católica. Normal-
mente considerado conservador e contrailuminista, Martine entende que Carracioli
teve diversos momentos de produção ao longo da sua vida. Este “honroso compila-
dor” difundiu o conhecimento que era produzido em diversas partes da Europa e,
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 213

ao longo de uma copiosa produção, é possível identificar tendências jansenistas e


críticas aos jesuítas, bem como as influências de Rousseau, no âmbito da educação,
e do “cartesianismo de Malembranche que reabilita a razão humana”.48 A partir
da década de 1760, período no qual foi publicada aquela citada obra, é notável o
empenho de Caraccioli em associar razão e religião, ou melhor, em submeter as
Luzes à fé, aspecto também verificado no Testamento do Século 18 aqui analisado.
Junto à exaltação da ciência e da defesa da fé e da monarquia, Soeiro da
Silva fez duras críticas à guerra, pelos seus efeitos nocivos à ordem social, política,
quando não à própria existência do Século 18.49
No tempo em que eu caia para a velhice e que pensava administrar com madureza
e que as ciências se aumentavam, que se rebatiam alguns filósofos que pelo desejo
de se fazerem célebres, davam a conhecer a folia dos seus novos inventos, maiores
catástrofes se sucedem! Mil vezes me desejei morto para não ver os homens, a quem
tantas lições tinha dado de Direito Natural, Público e das Gentes, esquecidos de si
mesmo, atacando os sagrados direitos dos Príncipes e caindo de abismo em abis-
mo, que levo para a sepultura a mágoa eterna de suceder no meu tempo uma tal
ignorância e barbaridade, como principiou em 14 de julho do ano 89o da minha
idade e que até o fim da minha vida não pude remediar.

Expurgado da vaidade e de certos pensadores, o desenvolvimento da ci-


ência era constantemente assediado pela barbárie e pela ignorância, plasmadas
nas guerras e na Revolução Francesa. Além de atacar os “sagrados direitos dos
príncipes”, a “nação francesa” havia ferido de morte o Século 18, que “oito anos
antes do fim da minha vida, passando a transformar a ordem da computação do
ano e das datas cronológicas, não fazendo caso da era cristã”. Fazendo referência à
mudança de calendário promovida pela Revolução Francesa, o século moribundo
lamenta a natureza maligna do ser humano, propenso à desordem e à guerra.50

48 JACQUES, Martine. Caraccioli et son œuvre: la mesure d’une avancée de La pensée chrétienne vers les lumières. Dix-huitième
Siècle, n. 34, 2002, p. 298.
49 Para Kant, o objetivo final do telos do progresso humano, “seria o total desabrochar da racionalidade e da capacidade moral
humanas, que somente seria possível com base na legislação republicana e na paz perpétua; tudo isso, porém, viria quase automatica-
mente, pelo funcionamento da providência, sem qualquer intervenção humana específica”. ISRAEL, op. cit., p. 19.
50 Segundo Israel, “o iluminismo moderando, então, e o rousseanismo, não tinham qualquer estratégia política que pudesse produzir
mudanças estruturais capazes de transformar a ordem existente, de modo a diminuir a probabilidade de guerra”. ISRAEL, op. cit., p.
125.
214 A globalização das luzes

O desassossego causado pelas guerras “é diametralmente oposto à tranquilidade


de corpo e espírito”.51
Vale observar que, na obra de Soeiro da Silva, o termo barbárie não foi
utilizado em contraste ao seu par oposto, a civilização, isto é, ao “processo de
refinamento das maneiras e costumes dos europeus [...] [e vinculada] à ideia de
perfectibilidade moral e intelectual dos homens”, povos e nações rumo ao progres-
so.52 No opúsculo o personagem moribundo atacava a barbárie compreendendo-a
como conflito que rouba a paz.53 O personagem secular relata que se empenhou:
em “apaziguar as dívidas e guerras que meu pai deixou, fazendo cessar, logo nos
meus primeiros dias, a guerra às portas Otomanas com o império alemão”.54 Lem-
bra, ainda, que buscou promover a união da França com a Inglaterra, ainda que
em prejuízo da Espanha, no âmbito da chamada Guerra da Quádrupla Aliança,
ocorrida entre 1718 e 1720. Na coleção dos conflitos, menciona ainda: a Guerra
Polaca de 1733 a 1738, a “Revolução da Suécia” e a Guerra dos Sete Anos. A falta
de organizações reguladoras acima das nações fazia da guerra uma forma violenta
de garantir direito e se obter justiça, pois não tendo os soberanos “superior abaixo
de Deus, não havia juiz para as suas causas se não a espada”.55
Ao conjunto dos conflitos que abalaram o cenário político europeu, Soeiro
da Silva relaciona o terremoto que atingiu Portugal e Marrocos, em 1755, com os
vícios da natureza humana. O que reúne todos esses elementos é a desarmonia: a
proveniente das guerras, a dos desastres naturais, as motivadas pelas imperfeições
do homem. Sim, porque, junto com a guerra e os desastres naturais, a vaidade, a
lisonja, a soberba vangloriavam-se de dominar o sábio vaidoso e o ignorante ocioso,

51 O tema da guerra é fundamental para a compreensão das instituições do Estado. Para Koseleck, dois acontecimentos, que fizeram
época e marcaram o início e o fim do absolutismo clássico, foram a guerra civil religiosa e a Revolução Francesa, que preparou o fim
do Estado monárquico. Observa ainda que, “para Hobbes, a razão é o fim da guerra civil; uma frase cujo significado histórico também
pode ser invertido: o fim das guerras civis religiosas é a razão. Não é o progresso que pede o Estado, mas a necessidade de por fim
a guerra civil”. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj;
Contraponto, 1999, p. 19 e 34.
52 ARAÚJO, 2003, p. 11.
53 Para entender o caminho que leva à paz universal, Diderot, Holbach e seus discípulos pautaram os vínculos morais que ligam os
indivíduos em uma sociedade justa. ISRAEL, op. cit., p. 142.
54 É provável que se trate da derrota do Império Otomano para a Áustria, entre os anos de 1715 e 1718.
55 Para Kant, já que a guerra é “o triste meio necessário para afirmar seu direito pela força no estado de natureza (onde não há
tribunais que julguem com base no direito), em que nenhuma das duas partes pode ser declarada como inimigo injusto (porque isto já
pressupõe um verdicto judiciário), mas o desfecho da querra (como um chamado juízo divino) decide de que lado o direito está [...]”.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 19.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 215

o rico ambicioso e pobre mendicante etc. Todos esses males, que se sobrepunham
aos princípios morais e às virtudes, eram caracterizados como verdadeiros monstros
a assombrar o recém-nascido Século 19 e a reputação do Século 18.
Trêmulo e convulso, esperando a meia noite do dia 31 deste mês, não ouço soar mais
coisa alguma que dizerem mal de mim, acusando-me de bárbaro e ignorante [...] o
que mais sinto são as falas de muitos vícios, que soberbos se jactam dos progressos
que fizeram no meu tempo!

Na biografia de um século é possível distinguir a resistência e o avanço das


Luzes e da razão, tanto quanto a ameaça constante e o progresso dos vícios do gê-
nero humano, da barbárie das guerras e dos eventos naturais, que convulsionaram
a ordem assentada por Deus na fé católica e na monarquia.

O autor, a obra, o século

Se, por um lado, a análise aqui apresentada ressente-se de mais informa-


ções sobre a figura de António José Soeiro da Silva, por outro lado, deduz-se da
própria obra o perfil de um autor sensível aos problemas do seu tempo. Seguindo
uma perspectiva analítica que associa singularidade e universalidade, revelou-se
no Testamento e Codicilo do Século 18 um contexto mais amplo e múltiplo de ideais
circulantes na Europa no final do século XVIII. Um período marcado pelas Luzes,
mas não de forma homogênea e/ou ortodoxa, de onde a pluralidade, os desvios e os
ecletismos notáveis em suas manifestações coletivas e individuais. Não publicado e
praticamente ignorado pela historiografia, o Testamento do século 18 é uma oportu-
nidade para se conhecer o conjunto de ideias, diverso e divergente, de um letrado
ordinário, uma vez que comum, na virada do século XVIII para o século XIX.
A biografia de um século escrita por António José Soeiro da Silva tem no
progresso dos tempos a linha narrativa que une o nascimento ao fim da vida. Sua
trajetória no tempo era lembrada pelo personagem que se aproximava, sem se
confundir, com a trajetória da humanidade em um século de Luzes, mas também
temeroso das desordens, guerras, revoluções. Como já apontado, a ideia de um
216 A globalização das luzes

progresso da humanidade, na conformidade de uma lei natural ou de um desígnio


divino, foi comum aos pensadores ilustrados. Entretanto, a pluralidade das Luzes
evidenciaria noções diversas de progresso, por vezes reafirmando o avanço positi-
vo, por vezes reforçando o traço do pessimismo, como um apelo à cautela ou uma
denúncia dos vícios.
A percepção de decadência acompanha os próprios estertores do fim da
existência do Século 18, mesclando existência e obra, como em uma biografia. Ou
melhor, é a confissão de um século marcado pelo progresso das Luzes e pela barbárie
das guerras. Um século que teme ter maculada sua memória e, como bom cristão,
pedia desculpas: “peço perdão a todos os habitantes do mundo de algum agravo
que lhe fizesse e igualmente perdoo a fraqueza humana”. A obra de António José
Soeiro da Silva reconhece o avanço da razão e das ciências, mas frisa a ameaça
perene da guerra e dos vícios, recorrendo piamente à misericórdia divina. Como
legado o Século 19 recebia as descobertas das ciências e, acima de tudo, a respon-
sabilidade de zelar pela tradição religiosa, pela monarquia e pela ordem social.56
António José Soeiro da Silva busca, claramente, harmonizar fé e razão, o
que não era estranho ao ambiente ilustrado português. A apropriação que António
José Soeiro da Silva fez dos autores ilustrados, acolhendo os vinculados à reforma
pombalina e rejeitando aqueles que considerava “cavilosos” e escolásticos, permite
vislumbrar sua filiação a um Iluminismo moderado, reformista, católico e eclético.
Com efeito, pressupor um consenso fundamental no campo da história das ideias
seria ignorar “as disputas ou as diferentes orientações que norteiam a afirmação
do ideal filosófico setecentista”.57 Nessa linha de análise afirma-se a necessidade
de se avaliar a diferença, a coexistência, as suas múltiplas implicações e as descon-
tinuidades, nos mais diversos estratos do pensamento, inclusive entre os autores
acantonados e esquecidos pela história. O Testamento do século 18 é a peça de autor
comum, que busca, na razão e nas virtudes alternativas, a barbárie e a maldade
humana.

56 Nesse sentido, é preciso destacar a ideia ilustrada de que a transformação do mundo presente em função de um futuro melhor não
era distinta da perspectiva retilínea da fé cristã. Aliás, para Dorinda Outram, foi justamente este “sincretismo” que contribuiu para o
sucesso da ideia de progresso no Setecentos. OUTRAM, op. cit., p. 25.
57 ARAÚJO, 2003, p. 17.
Quando morre um século: “recomendações econômicas e políticas que fez o Século 18 a seu filho o Século 19” 217

A decadência e a morte do Século 18 são a metáfora dos fracassos da natureza


humana. Sua história serve à educação do seu filho, enquanto seus conselhos apon-
tam para um futuro incerto. No Testamento os insucessos projetam uma expectativa
negativa sobre o devir, atenuada pela frágil esperança de um século moribundo:
“não se deve desanimar o meu filho, porque ainda existem a Razão, Prudência,
Verdade e Obediência que são virtudes muito superiores aos vícios”. Nesse sentido,
o pessimismo amedrontado de um século morrediço serviria à promoção das Luzes.
Extenuado por uma existência secular, calejado pelos conflitos, preocupado com
um devir em aberto, o Século 18 escreve a última linha da sua biografia rogando
aos céus que seu filho siga os seus conselhos, “para o sossego meu, glória sua e
felicidade dos homens”.

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A nostalgia por um mundo no qual a
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A ntigo regime e contrarrevolução
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(c.1790-1840)
Andréa Lisly Gonçalves

Já há algum tempo, vários estudiosos do tema das revoluções liberais vêm


insistindo no fato de que a história desses movimentos estaria incompleta sem a
abordagem da contrarrevolução.2 Como observa Ivana Frasquet: “[...] no se puede
separar el estudio de las revoluciones basadas en los principios del liberalismo del
de las fuerzas antiliberales, fueran éstas reaccionarias o no”.3 Na expressão elegante

1 LEVI, Primo. A assimetria e a vida: artigos e ensaios (1955-1987). São Paulo: EdUnesp, 2016, p. 56.
2 Um dos primeiros autores a apontar tal correlação foi MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Societa rural i actituds polítiques a Portugal
(1820-34). In: FRADERA, Josep Maria; MILLAN, Jesús; GARRABOU, Ramon (eds.). Carlisme i moviments absolutistes. Capellades:
Eumo, 1990.
3 FRASQUET, Ivana. Restauración y revolución en el Atlántico Hispanoamericano. In: RÚJULA LÓPEZ, Pedro; SOLANS,
Javier Ramón (eds.). El desafio de la revolución: reaccionarios, antiliberales y contrarrevolucionários (siglos XVIII y XIX). Granada:
Comares, 2017, p. 46.
222 A globalização das luzes

de Fernand Braudel “pensar contra é pensar na sua órbita”, o que parece particu-
larmente válido para os movimentos reacionários que, como se verá, constituem
uma dentre outras formulações no conjunto das forças contrarrevolucionárias.4
A afirmação seria um verdadeiro truísmo não fosse pelo fato de que vários
autores já teriam apontado a manifestação do fenômeno da contrarrevolução
sem a ameaça revolucionária. Foi o caso de Florestan Fernandes que, há algumas
décadas, mostrou a recorrência, na história do Brasil, da contrarrevolução sem
revolução, preventiva e permanente.5 Na mesma linha, estudiosos voltados para
a História do tempo presente, como Bernard Hacourt, vêm apontando a existên-
cia da contra insurgência sem insurgência, uma política preventiva, que se antecipa a
qualquer contestação, como nas áreas ocupadas após conflagrações armadas capi-
taneadas por grandes potências.6 Isso significa que as articulações entre revolução
e contrarrevolução, em finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século
XIX, devem ser examinadas à luz de fatores históricos e não simplesmente como
decorrência lógica ou natural de processos de ação e de reação.
Em estudo anterior, abordei a dinâmica entre internacionalismo e patriotismo/
nacionalismo na experiência antiliberal.7 Em outro trabalho, discuti a viabilidade
do emprego da categoria popular royalism para o entendimento do apoio dos setores
populares à monarquia e aos seus projetos de manutenção dos arranjos imperiais,
em uma chave que aponta para a autonomia desses setores e não uma adesão cega
ou fanática aos reis absolutos.8
Neste estudo, busco discutir alguns aspectos das relações entre o Antigo
Regime e os movimentos antiliberais, partindo da compreensão de que nem toda
contestação ao liberalismo comportou o projeto de retorno à antiga ordem. A afir-

4 BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. Lisboa: Teorema, 1989, p. 313.


5 FERNANDES, Florestan. Brasil em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980. A ideia de contrarrevolução permanente aparece
também em MARCUSE, Herbert. Counterrevolution and revolt. Boston: Beacon Press, 1972, p. 12: “The Western world has reached a new
stage of development: now, the defense of the capitalist system requires the organization of counterrevolution at home and abroad […]
The counterrevolution is largely preventive and, in the Western world, altogether preventive.” A diferença da abordagem de Marcuse
para a de Florestan, além dos distintos contextos analisados, é a de que, no caso da interpretação do autor alemão naturalizado norte-
-americano, a contrarrevolução preventiva não se dava na ausência de revolução, mas na sua eminência, em razão das mobilizações
populares de 1968, na Europa e nas Américas.
6 HACOURT, Bernard E. The counterrevolution: how our government went to war against its citizens. New York: Basic Books, 2018.
7 GONÇALVES, Andréa Lisly. A historiografia sobre a contrarrevolução na crise dos impérios modernos (c.1790-1830). No prelo.
8 GONÇALVES, Andréa Lisly. O apoio popular à monarquia no contexto das revoluções liberais: Brasil e Portugal (1820 e
1834). Varia Historia, v. 35, n. 67, p. 241-272, jan./abr. 2019.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 223

mação é particularmente válida quanto à adesão dos setores populares ao campo


contrarrevolucionário. Muitos desses grupos foram designados como restauradores,
significando com isso, de acordo com determinadas interpretações, que propug-
navam soluções políticas que os aproximavam do absolutismo. Porém, o próprio
termo restauração que, examinado à luz da história dos conceitos, é muitas vezes
associado à regeneração, como é bem conhecido, poderia significar, para os con-
temporâneos, o estabelecimento de uma ordem não totalmente identificada com o
passado que, reconhecia-se, urgia reformar.9 Tal discussão leva à abordagem das
relações entre tradição e mudança, bem como ao tema, vinculado ao anterior, da
modernidade, no caso, a tardia (1750-1850). Dada a envergadura de tal debate,
só será possível aqui tangenciá-lo e, ainda assim, sempre no interesse do assunto
específico da contrarrevolução, de forma necessariamente limitada.
Não se pretende negar, por outro lado, que alguns segmentos propugnassem,
de forma explícita, a sua vinculação ao absolutismo – o que não garantia, como
será discutido em seguida, a viabilidade da proposta. Se tal projeto se fez presente,
ou até mesmo predominou no discurso e em algumas práticas, tal fato não pode
obscurecer aquelas situações em que os antiliberais formularam projetos próprios,
como se vem afirmando, ou, ao menos, se alinharam até mesmo às forças reacio-
nárias, apresentando demandas específicas, diante das incertezas trazidas pelos
movimentos revolucionários.
As discussões historiográficas e teóricas que se seguem têm como principal
referência a história de Portugal, em razão de minhas pesquisas terem aquele país
como recorte espacial. A isso, soma-se o fato de que, em 2020, completaram-se
os 200 anos da Revolução Liberal do Porto. Tem-se, assim, uma oportunidade
para que se somem novas investigações ao já consolidado campo dos estudos da
revolução liberal naquele país, abarcando temas menos visitados, dentre os quais,
o da contrarrevolução, o que não impediu que se fizessem menções à realidade
de outras regiões, com destaque para a Espanha. Afinal, como observa Serge
Gruzinski, as distâncias estabelecidas entre a história dos dois países obedecem
mais a uma equivocada abordagem de tipo nacional, construída posteriormente

9 SILVA, Bruno Diniz da. Da Restauração à Regeneração: linguagens políticas em José da Silva Lisboa (1808-1830). 2010. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2010.
224 A globalização das luzes

à superação dos impérios coloniais, sendo necessário, a bem do entendimento do


contexto europeu, inclusive o das primeiras décadas do século XIX, um esforço
para que se realce a história comum à Península Ibérica.10

Contrarrevolução, retradicionalização e o retorno à


antiga ordem

Em seu artigo “El exílio cotidiano”, Ramón Arnabat enumera, pelo menos,
três motivos pelos quais foram baldados os esforços de Fernando VII para reins-
taurar o absolutismo monárquico, quando de seu regresso ao trono espanhol, em
1814, após a derrota napoleônica.11 O primeiro deles refere-se a que as sementes
do liberalismo já haviam sido semeadas; o segundo é relativo aos problemas fiscais
que o país enfrentava após a sucessão de conflitos armados, que comprometiam
a fazenda pública, exigindo medidas modernizadoras; por último, relacionado
aos fatores anteriores, o fato de que a Espanha passava por uma crise econômica
estrutural. Tudo isso tornava impossível o retorno ao Antigo Regime, pelo menos,
na visão do autor, “a medio plazo”.12
Não há como negar que os desafios listados pelo autor embaraçavam as ten-
tativas dos governos restauradores de, como era o seu intento, promoverem a volta
ao absolutismo. Isso não impediu que a retórica predominante, principalmente na
Península Ibérica das décadas de 1820 e 1830, ressalvados os interregnos liberais,
fosse a de que o direito absoluto dos reis tinha sido reposto. Assim manifestavam-
-se, por exemplo, muitos adeptos de d. Miguel, como se lia em alguns periódicos
da época: “entraram a dar Vivas ao Senhor D. Miguel: [...] o povo fiel dizia –

10 “Várias gerações de historiadores escavaram entre os dois países [Portugal e Espanha] fossos tão profundos, que hoje em dia é
preciso muito esforço para entender a história comum a estes dois países e impérios.” GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da
monarquia católica e outras connected histories. Topoi, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, jun. 2001, p. 177.
11 ARNABAT, Ramón. El exilio cotidiano: sociedad, violencia y guerra civil en el siglo XIX español. Cahiers de Civilisation Espagnole
Contemporaine, v. 21, 2018.
12 Ibidem.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 225

Viva ElRei Absoluto”.13 A própria aclamação do infante como rei pelas Cortes
tradicionais do reino já reforçava esse propósito, mesmo que as tais Cortes não se
reunissem desde 1680 e que, por isso mesmo, se desconhecessem todos os protocolos
envolvidos na solenidade.14
Ainda que os motivos listados por Arbanat devam ser levados em conta, cabe
questionar se o retorno à antiga ordem era, de fato, possível em um contexto como
o europeu, sacudido pelas revoluções liberais. Melhor dizendo, quais as possibili-
dades efetivas de retorno a uma ordem passada, por mais que uma sociedade ou
grupos dentro dela apregoem tal objetivo? A questão merece ser nomeada, mesmo
que não esteja entre os objetivos deste trabalho o desenvolvimento do complexo e
inesgotável assunto da permanência e da mudança na história, exceto no que se
faz necessário para tratar o tema da contrarrevolução no contexto das revoluções
liberais que se iniciam em finais do século XVIII.
Comecemos pelas críticas de Elias Palti a Reinhart Koselleck. Segundo
Palti, para Koselleck, tudo o que
se coloca antes del Sattelzeit (o período entre 1750 e 1850, referido como o da mo-
dernidade, com a dissolução da antiga ordem) “queda agrupado bajo la rúbrica
de ‘tradicional’, y todo que se ubica con posteridad se ve homogeneizado bajo la
etiqueta común de ‘moderno’”.15

As considerações de Antonio Annino, ainda que não dirigidas, diretamente,


ao autor de Crítica e crise e que tenham sido formuladas para o entendimento da
realidade americana, parecem se encaminhar na mesma direção. O autor assinala
a artificialidade de definições muito categóricas que tentam classificar o moderno,
de um lado, e o tradicional, do outro, no caso, para o contexto de disputas pela
independência, do Novo Mundo:
lo legal e institucional de las luchas fueron el fruto de una lógica que se puede
declinar con todos los términos que la historiografía fue capaz de inventarse para

13 PERIODICO para os bons realistas. Jornal Historico, politico e noticioso, n. 4, 17 jun. 1828, p. 1.
14 Coube ao 2º visconde de Santarém reinventar os procedimentos a serem adotados pelos três estados do Reino para a aclamação
do infante D. Miguel a rei de Portugal. Sobre o 2º visconde de Santarém, cf. MARKL, Alexandra Gomes. Uma família de poder
e cultura: em torno do retrato da família do 1º Visconde de Santarém de Domingos Sequeira. In: PROTÁSIO, Daniel Estudante
(org.). Historiografia, cultura e política na época do Visconde de Santarém (1791-1856). Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa,
2019, p. 123-153.
15 PALTI, José Elias. Una arqueología de lo político: regímenes de poder desde el siglo XVII. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
2018, p. 26.
226 A globalização das luzes

definir su desencanto: “ambivalencias”, “sincretismo”, “aporías”, “contradicciones”


etc., todo un vocabulario que a fin de cuenta es hijo de la verbosa y estéril disputa
entre modernidad y tradición.16

Um exemplo, dentre tantos, da dificuldade em separar, estritamente, aquilo


que é moderno daquilo que é fruto do Ancien Régime é dado pelo reconhecimento
de que a teoria da separação dos poderes, da forma como foi apresentada por
Montesquieu, sugeria que ela fosse plenamente compatível com o absolutismo:
cuando Montesquieu teorizo a su manera el principio de la división de los poderes
pensaba en la posibilidad concreta de reformar el Antiguo Régimen monárquico sin
destruirlo, ubicando en dos cámaras el poder nobiliario y el poder del estado llano.17

Importa ressaltar, também, que os Estados absolutistas já vinham, eles


próprios, promovendo reformas inspiradas nas Luzes, como é notório no caso de
Portugal, com todas as especificidades do absolutismo ilustrado naquele país.18 De
acordo com António Manuel Hespanha:
É esta identidade individualista-contratutalista que facilita a transição doutrinal
entre o reformismo da fase final do Antigo Regime e o período pós-revolucionário.
Que permite que Revolução se chame Regeneração, que o argumento histórico
ganhe o peso que teve na fundamentação das soluções políticas.19

De fato, um aspecto no qual são mais patentes as continuidades entre a antiga


ordem e os regimes liberais, fruto das revoluções, é o constitucionalismo. Os termos
“constituição e lei fundamental” já eram recorrentes em meados do Setecentos.
Um exemplo é o decreto de d. Maria I, do ano de 1778, que estabeleceu, seis anos
mais tarde, a Junta de Revisão e Censura do Novo Código, dirigida “por um ve-
terano pombalino, José de Seabra da Silva”.20 À Junta, caberia a compilação das
leis “dispersas e fragmentadas que vinham sendo acumuladas desde a Restauração

16 ANNINO, Antonio. Soberanía y competición política, 1808-1830: unos problemas y unas definiciones. Almanack, n. 19, ago. 2018 ,
p. 8.
17 ANNINO, op. cit., p. 6-7.
18 Sobre o tema ver, dentre outros, MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996; e SANTOS, Nívea Cirne Pombo dos. O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos ilustrados: (Portugal, Brasil e Angola,
1796-1803). 2013. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.
19 HESPANHA, António Manuel. Guiando a mão invisível: direitos, Estado e lei no liberalismo monárquico português. Coimbra:
Almedina, 2004, p. 47.
20 PAQUETTE, Gabriel. Império e nação nas monarquias constitucionais portuguesa e brasileira. In: RAMOS, Rui; SILVA, Isabel
Corrêa; CARVALHO, José Murilo de (orgs.). Do Reino Unido de Portugal e Brasil às monarquias portuguesa e brasileira (1822-1810). Lisboa:
D. Quixote, 2018, p. 8.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 227

da Independência de Portugal, em 1640 [...], visando a organizá-las em um código


legal sistematizado”.21
Em sentido oposto, notam-se os elementos do Ancien Régime que não teriam
sido superados pelo sistema constitucional gerado pelas revoluções liberais. Ainda
levaria algum tempo para que as formas e estilos da antiga ordem ficassem para
trás, o que teve início somente após 1834, com o fim da guerra civil e com as re-
formas de Mouzinho da Silveira. Coube a Mouzinho, ministro de d. Pedro IV e
deputado em várias legislaturas no pós-guerra civil, estabelecer as medidas essen-
ciais ao desmantelamento “do sistema de propriedade do Antigo Regime, o que
passou pela abolição de forais, morgadios, dízimos e obrigações individuais”.22 O
principal alvo eram os sistemas de privilégios e exceções, da Igreja e da nobreza,
relacionados à posse da terra e ao regime tributário,23 ainda vigentes muitos anos
após a derrota de d. Miguel.
Vale assinalar, também, que o apoio ao liberalismo poderia se manifestar em
chaves tradicionais, o que se deu, no caso português, pela recorrência do discurso
messiânico de que eram portadores alguns grupos liberais, conforme observa Mau-
rizio Izabella: “Some revolutionaries argued that João VI, who after thirteen years
in Brazil, made his way back to Portugal in order to accept the constitution, was in
truth the legendary monarch at long last returned from his place of concealment”.24
Mais tarde, desta vez entre os partidários de d. Pedro, não faltou, ao longo
do reinado de d. Miguel, a mobilização de símbolos, muitos deles tradicionais, como
as missas cantadas em saudação à vitória da revolução, os quadros, os impressos,
as medalhas, que buscavam consolidar o apoio das pessoas simples ao liberalismo.
Foi assim com o homem preto Luciano Augusto, um dos 57 criados de servir per-
seguidos e processados por d. Miguel, em Lisboa, sob a acusação de defenderem
a legitimidade de d. Pedro I ao trono português.25 Luciano era conhecido nas

21 Ibidem.
22 Ibidem.
23 Ibidem.
24 ISABELLA, Maurizio. Religion, Revolution, and popular mobilization. In: INNES, Joanna; PHILIP, Mark (eds.). Re-imagining
democracy in the Mediterranean, 1780-1860. Oxford: Oxford Press, 2018.
25 GONÇALVES, Andréa Lisly. A luta de brasileiros contra o miguelismo em Portugal (1828 -1834): o caso do homem preto Luciano
Augusto. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, p. 211-234, 2013.
228 A globalização das luzes

tavernas por sua militância liberal. Não perdia a oportunidade de dizer que estava
convicto da vitória de d. Pedro IV e repetia algo que remete a um sentido um tanto
tradicional da monarquia: “que ele Senhor D. Pedro havia de vir a Portugal e que
todos lhe havíamos de obedecer como se obedece ao Padre Santo”.26 Um exemplo,
dentre tantos, de que, no calor da luta, cabia aos sujeitos interpretarem, em chaves
próprias, os ideários que só posteriormente e pela mão dos estudiosos ganharão
contornos bem delimitados e excludentes.
Do lado da contrarrevolução, poucos personagens talvez tenham vivenciado
as contradições do período de transição de uma sociedade de Antigo Regime para
uma monarquia liberal como o padre e ideólogo reacionário José Agostinho de
Macedo (1761-1831). A personagem encarnava, como ninguém, a retórica de que
o governo de d. Miguel representou o retorno ao absolutismo:
A sua reação, no sentido mais primário do termo, sublinha o traumatismo que a
sua época estava vivendo e a tentativa desesperada, tanto mais que era tardia, de
tentar repor no seu antigo estatuto um Portugal abalado, primeiro pelas invasões
francesas e, em seguida, pela vitória do modelo liberal.27

É Eduardo Lourenço quem, no prefácio a essa obra de Maria Ivone Ornellas,


sublinha que o período em que Agostinho de Macedo teve atuação pública mais
destacada, entre 1805 e 1831, Portugal ainda era um país “arcaico, fiel ao seu rei,
herdeiro de um senhorialismo praticamente intacto [...] que só ao longo do século
XIX vai se transformando.”28
Por outro lado, o próprio Agostinho de Macedo dependeu, para a sua
atuação, da circulação de periódicos, confirmando o fato de que os miguelistas
não puderam prescindir de meios modernos na execução de suas políticas, o que
tem contribuído para dividir as opiniões sobre a natureza absolutista do regime,

26 Processo crime movido contra o Dr. José Frederico Pereira Marecos, advogado da Casa de Suplicação e ex-professor do Colégio
da Luz, natural de Santarém, filho de José Tiago Pereira Marecos e de D. Ana Genoveva Marecos, e seu criado Luciano Augusto,
natural do Maranhão, filho de Simeão e de Delfina por haverem sido denunciados por Manuel Martins, sapateiro, que os acusara,
assim como a seu irmão Firmo Pereira Marecos, funcionário da Torre do Tombo, de em sua casa, na travessa de S Mamede, n.3, 3º,
falarem mal de D. Miguel e do seu governo e de fazerem afirmações que demonstravam o seu amor à causa de D. Pedro. ANTT, Maço
57, n.5.
27 ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. A contrarrevolução em português: José Agostinho de Macedo. Lisboa: Colibri, 2004, v. 2,
p. 30.
28 LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: ANDRADE, Maria Ivone de Ornellas de. A contrarrevolução em português: José Agostinho de
Macedo. Lisboa: Colibri, 2004, v. 1, p. 13.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 229

desde os golpes que o infante intentou a partir de 1823.29 Como destacou Marco
Morel, nas monarquias absolutas, para a divulgação de ideias, prevaleciam panfletos
e pasquins, anônimos, afixados nas portas.30 Já no contexto do liberalismo, tais
práticas serão substituídas por intensa produção jornalística, mesmo que a maioria
dos periódicos tivesse vida efêmera.31
No reinado de d. Miguel, a edição de periódicos foi das mais intensas.
Ressalte-se, porém, que os jornais sofriam forte censura, não havendo lugar para
a imprensa liberal. Essa, ao contrário, e à exceção dos exilados, que publicavam
no exterior,32 teria que repetir a tradição absolutista dos panfletos e pasquins anô-
nimos. Em síntese, como observa Nuno Monteiro:
os miguelistas tentaram suscitar uma mobilização “popular” e “nacional” contra
os liberais, reminiscente da de 1808 contra os franceses – usando as ordenanças
e o clero, mas também os recursos do espaço público criado pelo regime liberal
(imprensa, “clubes”, voluntários).33

Com toda essa discussão, porém, não se quer negar que as mudanças trazi-
das pelas revoluções corroeram, definitivamente, o edifício da antiga ordem, num
movimento sem volta. Não que deixassem de existir setores dispostos a adotar o
discurso de retorno à antiga ordem, um mundo sem constituições, baseado nas
liberdades corporativas e não nas individuais. Nem se quer negar que, nos anos
iniciais que se seguiram às revoluções liberais, várias práticas da nova ordem social
e política tiveram que se haver com permanências que só foram superadas ao longo
do tempo. Nem é o caso de afirmar que as monarquias restauradas não tiveram
sucesso ao reabilitar instituições e práticas pré-revolucionárias. Mas, parece indu-
bitável, também, que as transformações foram de tal monta que não foi suficiente

29 É como se manifesta Fernando Campos, para quem, no miguelismo, “apenas existe uma doutrina contrarrevolucionária cujo
projeto político passa pela restauração das ‘nossas mais genuínas tradições políticas e religiosas’. D. Miguel encarnará este projeto
que não se confundia com o absolutismo”. LOUSADA, Maria Alexandre. O Miguelismo (1828-1834): o discurso político e o apoio da
nobreza titulada. Provas de aptidão pedagógica e capacidade científica apresentadas na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Trabalho de síntese. Lisboa, 1987, p. 13.
30 MOREL, Marco. Papéis incendiários, gritos e gestos: a cena pública e a construção nacional nos anos 1820-1830. Topoi, Rio de
Janeiro, n. 40, p. 39-58, mar. 2002.
31 TENGARRINHA, José Manuel. História da imprensa periódica portuguesa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1989.
32 Sobre o tema, cf. FARIA, Fabio Alexandre. Circulações internacionais e Liberalismo: o exílio liberal português, 1828-1832. 2015.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2015.
33 MONTEIRO, 1990, p. 854.
230 A globalização das luzes

que regimes como o instaurado em Portugal, com d. Miguel, se autodenominassem


absolutos, como se viu.
Até por isso, em nossos trabalhos, temos optado por considerar que, se foram
reais os propósitos de restabelecer o absolutismo, com destaque para a supressão
das monarquias constitucionais, em países como Portugal e Espanha, o retorno
a um passado em que “a ordem reinava soberana”, como sintetiza Jordi Canal,
encontrava-se irremediavelmente comprometido:
A contrarrevolução, tanto ao nível do pensamento como da ação, constituía uma
reação à revolução, mais ou menos real, mais ou menos imaginária, com a qual
chega a estabelecer uma relação dialética condicionando as evoluções tanto de uma
como de outra. Uma reação que, de toda maneira, não significava uma simples volta
ao Antigo Regime, sim que contava com uma ideologia e um projeto próprios.34

Uma categoria que define essa dinâmica é a retradicionalização, desde o iní-


cio presente em meus trabalhos. O conceito aparece na obra de Carl Mannheim
(1953), para explicar a ausência de contradição entre as ideologias formais que
surgem no contexto de crise e que buscam apontar a direção visando “impor [...]
um revigoramento dos costumes, ou reimpor a hegemonia religiosa”. Partindo de
Mannheim, acrescenta Cliford Geertz:
só se constroem argumentos para a tradição quando suas credenciais foram ques-
tionadas. Na medida em que tais apelos são bem-sucedidos, eles trazem de volta
não um tradicionalismo35 ingênuo, mas uma retradicionalização ideológica – algo
totalmente diferente.36

Não que os intentos de monarcas como Fernando VII, d. Miguel e Carlos


X não visassem restabelecer o retorno das casas reinantes, o poder do alto clero, o
restabelecimento dos privilégios de tipo estamental. A questão é que as condições
para que tais propósitos se efetivassem não se encontravam mais postas. Assim,
a suposição da volta ao absolutismo monárquico, alardeada por regimes como os

34 CANAL, Jordi. Carlismo y contrarrevolución. La Aventura de la Historia, n. 77, 2005, p. 49-50.


35 Retradicionalização também encontra alguma correspondência no termo tradicionalismo, ainda que remeta a um esforço mais
deliberado de marcar o retorno à antiga ordem: “Los años 1820-1827, marcados por la personalidad del duque de Richelieu, y todavía
más por Villèle, están caracterizados por el retorno hacia un tradicionalismo político que se acentúa con la llegada de Carlos X al
trono de Francia”. RÚJULA LÓPEZ, Pedro. Presentación. In: RÚJULA LÓPEZ, Pedro (coord.). Recomponer el mundo después de
Napoleón: 1814 y las restauraciones. Pasado y Memoria–Revista de História contemporânea, n. 13, 2014.
36 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1998, p. 124; e MANNHEIM, Karl. Essays on sociology and
social psychology. Nova York: Oxford University, 1953, p. 94-98.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 231

implantados em Portugal e Espanha, não passava de uma estratégia, mais ou me-


nos deliberada, de buscar conferir o status de defesa da tradição, em um contexto
varrido pelas revoluções liberais.
Retomando os motivos relacionados por Arbanat, quando afirma que havia
obstáculos quase instransponíveis para o retorno ao absolutismo, um deles, em es-
pecial, a política econômica das monarquias restauradas, parece reforçar o que se
vem discutindo até aqui. As invasões napoleônicas tiveram o papel de ressaltar as
contradições entre o “aparelho de Estado em processo de modernização e crescente
eficiência com as instituições do Antigo Regime”.37 Nesse ponto, ao contrário de
serem retomadas as antigas práticas, prevaleceu um tipo de “liberalismo nacio-
nalista”, cujo principal significado consistia em impedir o retorno à autonomia da
nobreza sobre os territórios, da forma como vigorava na época moderna.38
Os poderes das casas nobres sobre populações e territórios consistiam num
ponto essencial para a reiteração das sociedades sinalagmáticas da Época Moderna.
A sua supressão, portanto, variando de região para região, representava um ponto
sem volta ao Ancien Régime. Foi essa política “nacionalista”, contrária à dispersão
característica das jurisdições exercidas pela nobreza, que levou à adoção de medidas
protecionistas, pelos Estados em construção, o que teve como principal resultado
a constituição de um mercado interno. Não bastava às antigas elites assomarem
ao poder, no contexto das monarquias restauradas, com base em bandeiras como
as de “legitimidad histórica y en la vuelta a patrones políticos y sociales anterio-
res”, já que havia que se começar novamente a “hacer balance de daños y tratar
de recomponer el mundo con los materiales del presente, que no eran, ni mucho
menos, los de unos años atrás”.39
O caso francês parece ilustrativo do que se vem afirmando. Segundo Francis
Démier, não obstante o “agresivo programa de extrema derecha dos Burbons” que,
após 1814, pretendia “acabar con el aparato del Estado centralizado por conside-
rarlo la fuente misma del ‘peligro revolucionario’”, ficou clara a incapacidade dos
ultrarrealistas de estabilizarem a economia. A experiência é importante porque

37 PAQUETTE, op. cit., p. 3.


38 RÚJULA LÓPEZ, op. cit., p. 12-13.
39 Ibidem.
232 A globalização das luzes

mostra a conjugação de medidas remanescentes do Estado absolutista e aquelas


frutos da revolução, resultando em uma “tecnocracia compuesta por una fusión
de los despachos de la Francia anterior a 1789 y los del episodio revolucionario e
imperial”.40 Coube ao Estado, ou mais precisamente ao seu corpo de funcionários,
herdado da experiência napoleônica, tutelar o liberalismo econômico e social,
assegurando uma política de estímulo à industrialização e à formação de um
mercado interno.41
Se as casas nobres sofreram um duro golpe com o processo de centralização
da tomada de decisões, agora a cargo de quadros “técnicos”, elas também foram
afetadas pelas políticas assumidas por monarcas autointitulados absolutistas, ne-
cessitados de garantir os instrumentos que lhes assegurassem os recursos políticos
e militares que os sustentassem no poder. Era assim quando lançavam mão do
apoio popular. Aliás, uma das características marcantes dos regimes restaurados,
sobretudo na Península Ibérica, foi o seu caráter mobilizador, qualidade que não
compartilham com o absolutismo e sua sociedade dividida em corpos, mas que
os aproxima de experiências totalitárias do século XX.42 Esse mesmo caráter mo-
bilizador levava à divisão no interior de boa parte da nobreza, insatisfeita com o
fato de os seus trabalhadores serem reunidos em milícias de “voluntários” realistas,
como sintetiza Simon Sarlin:
However, the project of mobilizing reservoirs of popular support to serve counter-
-revolutionary objectives, so fundamental to the creation of voluntary militias, did
not meet with unanimous enthusiasm from the conservative ruling elite.43

A atuação das milícias realistas, comprometendo o projeto de retorno à antiga


ordem ao desafiarem importantes setores da nobreza, exatamente o grupo social

40 “El ultracisme pudo entonces comprobar sus límites en esta alianza obligada entre el vencedor y el vencido de la época napoleónica,
ambos partidarios de ejercer un estrecho control sobre el mercado nacional, aunque los unos para exhibir su nueva pujanza y los otros
para intentar preservar sus deterioradas posiciones.” DÉMIER, Francis. Permanencia y mutaciones del Estado napoleónico bajo la
Restauración de los Borbones, 1814-1830. Pasado y Memoria–Revista de Historia Contemporánea, n. 13, 2014, p. 34-35.
41 Ibidem, p. 42.
42 Diferentemente dos regimes autoritários que, de acordo com Juan Linz, apostariam na despolitização das massas, as experiências
do nazismo e do fascismo, apoiadas numa relação direta entre o líder e os grupos subalternos, lançariam mão das mobilizações populares
para compensar os questionamentos sobre a falta de legitimidade dos reis que ascenderam suspendendo as garantias constitucionais
em um mundo varrido pelas revoluções liberais. LINZ, Juan J. Regimes autoritários. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio (coord.). O Estado
autoritário e os movimentos populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
43 SARLIN, Simon. Arming the people against revolution: royalist popular militias in Restoration Europe. Varia Historia, v. 35, n.
67, jan./abr. 2019, p. 200.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 233

que suportaria aqueles projetos, aponta as contradições dos regimes restaurados,


sobretudo em sua feição reacionária. Foram recorrentes as queixas de abusos dos
milicianos, não apenas contra a militância liberal, como também contra notáveis,
principalmente, nas localidades. Assim, o juiz de Vila Real, situada na região do
Douro, acusou o capitão dos voluntários de conduzirem presos de forma arbitrária,
“até em casa de pessoas nobres, ofendendo a nobreza e a massa geral do povo”.44
Vale lembrar que as milícias realistas resultaram do redirecionamento das
funções das guardas nacionais, criadas no contexto revolucionário, apontando
para as possibilidades de apropriação de instrumentos modernos em proveito das
monarquias restauradas, como se vem afirmando, a partir de Sarlin: “In Lérida,
half of the officers appointed in 1825 in the Voluntarios Realistas had belonged to
the former Milícia Nacional”.45 Se nem todas as guardas nacionais converteram-
-se em milícias, havia aqueles casos em que o voluntário havia pertencido àqueles
corpos e deles herdara sua afeição ao liberalismo:
El capitán General de Valencia y Murcia – don José Maria Carvajal, que luego
fué hasta su muerte Inspector General de los Cuerpos de voluntarios Realista –
anotaba que había procurado renovar a algunos de los inscritos que por su carácter
bullicioso o porque había pertenecido a la llamada Milicia Nacional Voluntaria y
teniendo empleos por el gobierno extinguido, constitucional, estaban avezados al
prurito de alborotar fingiendo un realismo que jamás abrigaron en sus corazones,
promoviendo así el desorden.46

Assim, ficava limitada a efetividade das proposições de uma vertente impor-


tante da contrarrevolução, aquela que propugnava o retorno ao Antigo Regime e,
com ele, a defesa de poderes regionais, das grandes casas nobres, com seu intricado
sistema de jurisdição fracionada.47 Tal descentralização colidia não apenas com as
necessidades de recrutamento militar dos reis, mas com a necessidade de se adota-
rem políticas econômicas mais centralizadas, a fim de fazer frente às recorrentes
crises econômicas, conforme já observado.

44 CARDOSO, António Monteiro. A revolução liberal em Trás-os-Montes (1820-1834): o povo e as elites. Porto: Afrontamento, 2007, p.
283.
45 SARLIN, op.cit., p. 18.
46 SUÁREZ VERDEGUER, Federico. Los cuerpos de Voluntarios Realistas: notas para su estudio. Anuario de Historia del Derecho
Español, Madrid, t. XXVI, 1956, p. 56.
47 Acerca dos poderes locais e intermédios em Portugal, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e poder: entre o Antigo Regime e o
Liberalismo. Lisboa: ICS, 2007.
234 A globalização das luzes

Até aqui, o enfoque baseou-se, essencialmente, nas relações entre as insti-


tuições e os estratos dominantes de uma sociedade profundamente abalada pelas
mudanças ocasionadas pelas revoluções liberais. Não resta dúvida de que os menos
favorecidos, a plebe, como na designação corporativa do Antigo Regime, seriam
afetados de forma diferenciada em relação aos estratos superiores e responderia,
sob as mais diferentes maneiras, aos desafios impostos pelas mudanças ocorridas
em finais do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX.
Desse modo, na próxima seção, discutiremos alguns aspectos das relações
dos setores populares – indígenas, forros, escravos, artesãos e desenraizados so-
ciais – com a contrarrevolução e o Antigo Regime. Partimos da hipótese de que
as demandas pela manutenção de certos privilégios corporativos não podem ser
entendidas apenas como a defesa do retorno à antiga ordem, mas poderiam signifi-
car a ação autônoma dos grupos menos favorecidos, no contexto de crise do Antigo
Regime. Isso parece ficar claro pelo fato de que determinadas práticas típicas do
Ancien Régime, mesmo que não fossem superadas na nova ordem constitucional,
ganharam novos significados.
Optamos por redefinir o recorte espacial a fim de abranger alguns estudos
de caso voltados para as Américas. Afinal, a derrocada do absolutismo significou
a superação, com avanços e retrocessos, dos impérios pluricontinentais. Assim, o
resultado mais marcante das revoluções liberais, como é conhecido, foi a constru-
ção dos Estados Nacionais Modernos, com suas comunidades imaginadas48 em seus
territórios unificados e suas diferentes definições de soberania popular.

Os setores populares e a crise do A ntigo R egime


nas A méricas

Sabe-se que, nas Américas, os movimentos de independência não foram


uma consequência imediata das revoluções liberais na Europa. Ao contrário, na

48 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 235

América hispânica, a solução acalentada, inicialmente, foi a de apoio ao rei Fer-


nando VII, que se encontrava coato pelas forças napoleônicas.49 Não faltaram,
até mesmo, propostas que, mirando o exemplo português de 1808, defendessem a
vinda do rei para os seus domínios na América. Além disso, a opção de integrar a
monarquia espanhola em sua nova feição constitucional, a partir da participação
na Assembleia Constituinte reunida em Cádiz, em 1810, também foi um projeto
recebido com grande entusiasmo, principalmente pela elite crioula.50
No que diz respeito à América portuguesa, também é bem conhecido o
apoio de largas parcelas de comerciantes, de proprietários, de profissionais libe-
rais e da plebe à solução que preservasse o Reino Unido a Portugal e Algarves sob
uma monarquia constitucional,51 entre 1820 e 1822. Uma vez inviabilizadas tais
soluções, as independências foram a forma assumida pelas revoluções liberais na
Ibero-América, variando em conteúdo e forma, a depender de cada contexto.
Cumpre ressalvar, para os objetivos do assunto que viemos abordando, o fato de
que, por se tratar do contexto colonial, a subsunção das sociedades americanas
àquelas de Antigo Regime, que prevaleciam nas sedes dos Impérios, deve ser vista
com cautela. Ainda que valha a pena assinalá-las, abordar tais questões exigiria
um estudo à parte. A título de síntese, vale mencionar, aqui, as palavras de István
Jancsó, referindo-se a Fernando Novais, para quem “as estruturas da vida social
se tornaram simultaneamente replicantes e desviantes dos paradigmas europeus”.52
A seguir, vamos nos deter em alguns estudos de caso que, ainda que pareçam
pontuais, revelam aspectos importantes das sociedades emersas do passado colonial
nas Américas, com o fim do Antigo Regime na Europa. Mais uma vez, importa
ressaltar o argumento central, neste estudo, de que nem toda recusa à insurgência
significava a defesa do retorno à antiga ordem. A luta pela manutenção dos privi-

49 CARAVAGLIA, Juan Carlos. Os primórdios do processo de independência hispano-americano. In: JANCSÓ, István (org.).
Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 207-234; e GUERRA, François-Xavier. Conocimiento y
representaciones contemporáneas del proceso de continuidad y ruptura. In: DAMAS, Germán Carrera; LOMBARDI, John V. (eds.).
La crisis estructural de las sociedades implantadas. Madri: Trotta, 2007, p. 429-447.
50 GUERRA, op. cit.
51 A bibliografia sobre o tema é extensa. A título de exemplo, ver JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico
(ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem incompleta:
a experiência brasileira (1500-2000). São Paulo: SENAC, 2000, p. 127-175; e BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. O patriotismo
constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Fapesp; Hucitec; Pernambuco: UFPE, 2006.
52 JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 24.
236 A globalização das luzes

légios, em contextos de mudança, nos quais a condição de súdito vai dando lugar à
de cidadão, comporta algum tipo de “hibridismo” entre antigas leituras do passado
e as exigências postas pelo presente. Em outras palavras, mesmo a reivindicação
da manutenção de prerrogativas típicas das sociedades do Antigo Regime, sejam
individuais ou coletivas, as altera, em suas características, em relação ao que foram
no passado.
Em seus estudos, Marcela Echeverri utiliza a categoria popular royalism53
para abordar a ação de grupos de escravos e de indígenas realistas, em Popayán,
Nova Granada, nos anos de 1808 a 1820. Seu objetivo é ressaltar, primeiramente,
que indígenas e escravos atuaram como atores políticos no contexto imperial, mais
especificamente, durante o processo de independência, negociando com os realistas
alguma mobilidade social, a expansão e a criação de direitos políticos. Isso mostra
não ter sido apenas o campo liberal, em um contexto de crise, o portador de noções
de direito e de liberdade: “Both Indians and slaves were engaged with the Hispanic
discourse of justice, and they appropriated monarchical values for individual and
collective gains and empowerment”.54
Aproveitando-se das disputas entre insurgentes e autoridades leais ao rei,
índios das terras altas do Pasto e escravos africanos mineradores do oeste do Vice-
-reino de Nova Granada encontraram, no suporte ao rei, “an opportunity to gain
new power and to redefine the terms of their relation to the royalist elites”.55 O
apoio ao rei não era irrestrito, ou baseado em fidelidades “pouco racionais”. O
caso dos indígenas é bem ilustrativo a esse respeito. Aproveitaram-se da conjuntura
de instabilidade para fazerem frente aos caciques que mantinham seu poder pela
exação de tributos aos povos. Grupos de indígenas negociaram, com as autori-
dades reais, a comutação de tributos por prestação de serviço militar. O fato de
servirem militarmente poderia enfraquecer o poder dos caciques.56 Em nenhum
caso, trata-se do retorno tout court à antiga ordem, mas de projetos próprios, ainda
que distantes do campo insurgente.

53 ECHEVERRI, Marcela. Popular royalist, Empire, and politics in Southwestern New Granada, 1809-1819. Hispanic American
Historical Review, v. 91, n. 2, p. 237-269, 2011.
54 Ibidem, p. 241.
55 Ibidem, p. 239.
56 Ibidem.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 237

Para o Brasil da década de 1820, observa Hendrik Kraay, os partidos “exal-


tados e federalistas”, que “tentavam mobilizar as classes baixas urbanas e militares
inconformados em prol de reformas sociais e políticas, muitas vezes, vagas”,57 não
contavam, em suas fileiras, com oficiais negros. A tendência desses militares era a
de exigirem, da classe senhorial e da monarquia, no contexto liberal que se inau-
gurava na ex-colônia portuguesa da América, recompensas pelos serviços prestados
à própria independência, preservando seus postos anteriores.58 Como explica o
autor, o “ancién régime oferecia certa estabilidade que muitos não desejavam perder”,
dentre os quais se incluíam os batalhões de Henriques, compostos por negros e
que tiveram sua origem nos terços formados em Pernambuco, durante a guerra
contra os holandeses.59
O tema das milícias de negros e mestiços, no contexto da transição dos im-
périos modernos para a formação dos Estados nacionais, também é abordado por
Luiz Geraldo Silva, neste caso, para o contexto da capitania e, posteriormente, da
província de Pernambuco.60 Em seu trabalho, o autor problematiza a natureza do
Ancien Régime em um contexto colonial, referido acima por Hendrik Kraay. As refle-
xões de Luiz Geraldo relacionam-se a um dos principais debates estabelecidos pela
historiografia brasileira nos últimos anos, qual seja, o de que a América portuguesa
reproduziu ou não os padrões do Antigo Regime, prevalecentes em Portugal.61
A discussão interessa, já que o objetivo central de nosso estudo é o de abordar as
relações entre os projetos de perfil contrarrevolucionário e o Antigo Regime.
Para tanto, lembremos, de forma bastante resumida, que uma das linhas
mestras das diferentes interpretações é a discussão sobre se a incorporação de afri-
canos ao Império português era compatível ou não com uma sociedade na qual o
princípio de organização se assentava na naturalização das desigualdades sociais.

57 KRAAY, Hendrik. Identidade racial na política, Bahia 1790-1840. In: JANCSÓ, Istvan (org.). Brasil: formação do Estado e da
nação. São Paulo: Hucitec; Unijuí; Fapesp, 2003, p. 532.
58 Ibidem, p. 532.
59 Ibidem, p. 545-546.
60 SILVA, Luiz Geraldo. Aspirações barrocas e radicalismo ilustrado: raça e nação em Pernambuco no tempo da independência
(1817-1823). In: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Unijuí, 2005, p. 915-934.
61 Sobre a abordagem do tema, na perspectiva dos impérios pluricontinentais, ver FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda;
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. Para uma crítica à ideia do “Antigo Regime nos trópicos”, na vertente interpretativa do “antigo sistema
colonial”, cf. SOUZA, Laura de Mello. O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
238 A globalização das luzes

Dessa forma, a questão central seria a de que o reforço do trabalho compulsório,


principalmente no Novo Mundo, em um contexto europeu marcado pela emer-
gência do trabalho livre, só foi possível em razão de a incorporação subordinada
a esse novo segmento social, constituído por africanos escravizados, ter seguido o
curso societário natural das formações de tipo estamental.62
A questão já havia sido colocada, em outra direção, mais uma vez, por
Florestan Fernandes. O sociólogo afirmava que a desigualdade social instaurada
pela escravidão seria apenas um simulacro de uma ordem de tipo antigo, já que
uma das condições para essa configuração faltava ser cumprida, qual seja, a atri-
buição de liberdades específicas e subordinadas a cada grupo social, necessárias
à reprodução das sociedades de Antigo Regime, o que não incluía os escravos.63
Quanto ao escravismo, malgrado sua generalização tê-lo tornado estruturante das
relações sociais do mundo que não somente o português criou na América, ele nunca
foi redutível à concepção societária do Antigo Regime, cujo fundamento residia
na utopia da perfeita harmonização das naturais desigualdades entre detentores
de direitos/liberdades específicos, negados, sob qualquer forma, aos escravos.64

Não é o caso de nos estendermos sobre o assunto neste trabalho. A referência


a tais modelos interpretativos pode interessar aqui na medida em que esclarece que
nem todas as opções dos setores populares, ao se oporem ao campo insurgente,
representavam a defesa da ordem antiga – uma “ordem antiga” sobre a qual os
estudiosos divergem quanto à sua maior ou menor fidelidade aos modelos presentes
nas metrópoles europeias.
Luiz Geraldo Silva observa que, na visão das autoridades e na prática
diária, os povos mestiços no Brasil eram considerados uma canalha inclassificável.
O autor constata a ausência de correspondência entre a categoria povo, do Antigo
Regime, e a populaça que se amotinava em Pernambuco, o que não seria muito
diferente para outras capitanias, como Bahia e Minas Gerais. Essa diferença era
perceptível às autoridades contemporâneas e aparece sintetizada em frases como:

62 Argumento central de: MATTOS, Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em pers-
pectiva atlântica. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 143-162.
63 FERNANDES, Florestan. A sociedade escravista no Brasil. In: FERNANDES, Florestan. Circuito fechado. São Paulo: Hucitec,
1976.
64 JANCSÓ, Istvan (org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Unijuí; Fapesp, 2003, p. 21.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 239

“Não eram a esses ‘povos desordenados’ que se reportavam, por certo, as atas de
Lamego”, uma referência ao mito de fundação da nação portuguesa, com suas
lendárias Cortes. Tal incompatibilidade ficou particularmente clara em períodos
como o da revolução de 1817. Ao longo do movimento, para alguns informantes
de d. João VI, a populaça de Pernambuco constituía uma “canalha que se compõe
geralmente de mulatos, negros etc.”.65
Em outro artigo, esse em coautoria com Fernanda Prestes de Souza, Luiz
Geraldo observa que as milícias constituídas por afrodescendentes estiveram pre-
sentes em todos os impérios coloniais, do espanhol ao português, do francês ao
britânico.66 Os autores não enxergam na organização social da América portuguesa
uma sociedade estruturada em moldes corporativos, optando por designá-la como
uma sociedade de tipo antigo e oligárquico. Interessa aos autores apreenderem
como se deu a passagem da tal ordem antiga para a “nova configuração social de
tipo democrático e representativo”, conforme designam o Estado liberal.67 A defesa
da manutenção de privilégios, por parte dos integrantes das milícias de negros e
afrodescendentes, não é vista como fruto da ambiguidade da ação desses sujeitos,
sendo entendida como o resultado do compartilhamento de valores da antiga or-
dem, agora com a sociedade liberal que se inaugura, situação típica de contextos
de transição que, de resto, afetava todos os demais estratos sociais:
estos individuos y grupo ni eran “ambiguos” en la sociedad de tipo antiguo u
oligárquico, ni en la de tipo democrático y representativo que la sucedió. Ellos
entrelazaban valores y significados llegados de ambos tipos de sociedad porque
vivían en el medio de una transición entre estas formas sociales. Este aspecto, ade-
más, afectaba a toda la figuración social, o a todos los individuos, grupos y clases
sociales, estuviesen estos situados en el nivel más bajo o más alto de la sociedad.68

O comportamento dos “diferentes agrupamentos militares, irmandades e


hierarquias de ‘Outros’”, no período barroco, nas colônias, comparativamente à
metrópole, foi marcado por um intenso processo de “crioulização”, isto é, “das

65 SILVA, 2005, p. 915.


66 SILVA, Luiz Geraldo; SOUZA, Fernanda Prestes de. Negros apoyos: milicianos afrodescendientes, transición política y cambio
de estatus en la era de las independencias (capitanías de São Paulo y Pernambuco). Nuevo Mundo-Mundos Nuevos, Debates, 2014, p. 1.
67 Ibidem, p. 11 e 12.
68 Ibidem, p. 12.
240 A globalização das luzes

ideologias que formataram as ideias de nações e Estados independentes na era


pós-colonial”. Isso porque os terços militares, sobretudo, apresentavam autonomia
perante a metrópole, “com sua ingerência crioula sobre as normas metropolitanas”.
Longe, portanto, de se apresentar como a reprodução da ordem estamental me-
tropolitana na América portuguesa, esse grupo tratou de estabelecer uma leitura
própria de sua inserção na sociedade colonial, o que influenciou a sua posição no
contexto em que se estabelecia o regime institucional que apontava para o estabe-
lecimento de direitos a diferentes parcelas da população.
O importante é assinalar que, assim como afirmou Elias Palti sobre a questão
da modernidade e da tradição e, como é até certo ponto presumível, principalmente,
entre os grupos negros e mestiços que compunham as instituições “corporativas” da
América portuguesa, o que prevaleceu foi o conflito “entre, por um lado, a adesão
às novas ideias ilustradas e revolucionárias e, por outro lado, a forte vinculação aos
ideais e aspirações tipicamente barrocos e de Antigo Regime”.69
Da mesma forma, como observou Marcela Echeverri para o contexto da
Grã-Colômbia, os negros livres, especialmente em Pernambuco, mantiveram sua
autonomia diante das forças insurgentes portadoras das Luzes. Embora os acon-
tecimentos no Haiti tenham calado fundo em suas mentes e em seus corações, por
se tratar não de um “negócio de brancos”, mas de uma revolução de “pretos”,70
a perspectiva barroca de mundo, preponderante nesses grupos, fazia com que as
suas aspirações por “cargos, privilégios, isenções, soldos e promoções” os manti-
vessem aferrados a práticas e normas do Antigo Regime. Tais ideias reforçavam-se
em seus ambientes de sociabilidade urbana, como eram as ruas e as tavernas, as
redes familiares e, principalmente, as oficinas artesanais.71 Isso não poderia ser
interpretado, portanto, como a aspiração de retorno à ordem antiga, revelando as
tensões entre permanência/tradição e mudança.
Em síntese, os exemplos citados para a Grã-Colômbia, por Marcela Eche-
verri, e para o Brasil, por Hendrik Kraay e Luiz Geraldo Silva, mostram que as
demandas de setores populares, em chaves mais tradicionais, acabariam por se

69 SILVA, 2005, p. 927-928.


70 Ibidem, p. 924.
71 Ibidem.
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 241

expressar nos regimes constitucionais, sem que se levantasse a bandeira de retorno


ao Ancien Régime ou que se desafiasse a ordem liberal, merecendo a classificação de
contrarrevolucionário. No caso brasileiro, a questão se mostrava ainda mais com-
plexa, já que os movimentos ditos restauradores foram associados a d. Pedro, que
– não obstante as frequentes acusações, sobretudo de seus opositores na imprensa,
de pautar-se por pretensões absolutistas – foi o responsável pela implantação de
uma monarquia constitucional na ex-colônia portuguesa na América.72

Considerações finais

Ao chegar ao fim deste capítulo, espero que tenham ficado minimamente


claras as escolhas feitas em sua elaboração. A começar pelo tratamento da contrar-
revolução em uma obra dedicada às Luzes. Como se reiterou em várias passagens,
os movimentos contrarrevolucionários fizeram parte da história das revoluções
liberais. Ao enfatizar as relações entre os movimentos antiliberais e o Antigo Regi-
me, procurou-se apontar, pelo menos, duas questões centrais. A primeira, a de que,
por mais que os discursos, sobretudo os adotados pelas monarquias restauradas,
insistissem em que a batalha contra o liberalismo e o constitucionalismo visasse ao
retorno à antiga ordem, as revoluções que sacudiram o mundo ocidental – sendo
o marco principal a francesa, de 1789 – representaram rupturas de tal ordem que,
por mais repressivos e tradicionalistas que fossem, tais regimes não passavam de
um arremedo daquilo que buscavam emular: o Estado absolutista.
As contradições afloravam com o desmonte dos arranjos que haviam dado
sustentação às monarquias absolutas, dentre eles, a disputa pelo controle dos setores
populares, mobilizados em milícias para servir de suporte a reis, como d. Miguel
e Fernando VII, contrariando a estabilidade exigida na reprodução da nobreza,
a partir da exação de trabalho e de tributos. A centralização administrativa e

72 Existe, como é previsível, vasta bibliografia sobre o tema do primeiro reinado e os anos iniciais das regências, no Brasil. Tive a
oportunidade de tratar do assunto, ressaltando o papel dos grupos restauradores, em: GONÇALVES, Andréa Lisly. Estratificação social
e mobilizações políticas no processo de formação do Estado Nacional Brasileiro: Minas Gerais, 1831-1835. São Paulo: Hucitec, 2008.
242 A globalização das luzes

econômica, herança da expansão napoleônica, mostrou-se sem volta. Ela era


indispensável a um quadro em que emergiam e competiam os Estados nacionais
com as suas políticas protecionistas. Também nesse ponto a nobreza era afetada
pelo cerceamento do exercício de seus poderes particulares. Por todos esses aspec-
tos, pareceu-nos justificada a utilização da categoria retradicionalização, como uma
alternativa à ideia de retorno ao Antigo Regime, sobretudo pelos Estados nos quais
predominava a defesa da volta à antiga ordem.
Ao mesmo tempo que tudo aponta para a irreversibilidade do processo,
procurou-se indicar que não se trata de apreender as mudanças a partir de chaves
que, simplesmente, opõem a tradição à modernidade, o novo ao arcaico, o que já
se nota pelo fato, de resto previsível, de que muitas transformações, ocorridas antes
da voga revolucionária, já faziam parte dos projetos – e várias foram implemen-
tadas – dos regimes absolutistas. Da mesma forma, na sequência dos movimentos
liberais, foi necessário aguardar algumas décadas para que fossem superados as
formas e os estilos do Antigo Regime, sobretudo em Portugal, principalmente,
no que dizia respeito à posse e à propriedade da terra, pela Igreja e pela nobreza.
Passando às Américas, buscou-se discutir as especificidades do que poderia
caracterizar-se como contrarrevolução neste continente que, rapidamente, passava
da experiência constitucional, partilhada com as antigas metrópoles, para os mo-
vimentos de independência. A mirada sobre as ex-colônias ibéricas privilegiou o
comportamento dos setores populares naquilo que poderia ser identificado como
atitudes contrarrevolucionárias, mas que, na verdade, apontam para a construção
de espaços de autonomia da plebe, partindo de uma leitura atenta às mudanças
perceptíveis nos símbolos e nos privilégios típicos do Antigo Regime, mas que
passam a ser ressignificados, em chave própria, por índios, mestiços, escravos e seus
descendentes. Ainda que não tenha sido possível aprofundar o assunto, foi inevitável
a referência à discussão sobre as peculiaridades do Antigo Regime, principalmente
na América portuguesa, em razão de sua formação escravista. Tem-se a consciência
de que alguns exemplos são pontuais, mas nem por isso menos úteis para o debate
sobre a dinâmica entre a lógica dos impérios pluricontinentais, o seu processo de
superação e as atitudes e ideias que pudessem soar como do Ancien Régime.
Também a título de conclusão, parece importante frisar que a dinâmica da
contrarrevolução, na perspectiva dos setores populares, por um lado, e na dos grupos
A nostalgia por um mundo no qual a ordem reinava soberana: Antigo regime e contrarrevolução na época das restaurações (c.1790-1840) 243

dominantes, por outro, pode ter acepções bastante distintas. Isso não quer dizer que
não tenha havido categorias, inclusive aquelas compostas pelos desenraizados, que
tenham apoiado soluções reacionárias, representadas pelos regimes autoritários e
mobilizadores. Como esse ponto, porém, já parece incorporado à tradição histo-
riográfica da contrarrevolução, os trabalhos mais recentes vêm insistindo na ideia
de que o não alinhamento à insurgência liberal nem sempre significou a defesa do
retorno a um “mundo no qual a ordem reinava soberana”.

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Os revolucionários de 1817, suas
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Luiz Carlos Villalta

Meos ternos pensamentos que votados


Me fasteis quasi a par da divindade
Em voz não tem poder a iniquidade
A espoza voai narrai meos fados
Dizei-lhe que em tranzes apertados
Ao passar d’esta vida a eternidade
Ella d’alma reinava com a metade
E com a patria partia-me os cuidados
A patria foi o meu numem primeiro
Depois a espoza o mui querido
Objecto de desvelos verdadeiros
E na morte entre ambas repartido
Será d’único o suspiro derradeiro
E da outra há de ser final gemido.2

1 Os documentos aqui transcritos, manuscritos ou impressos, tiveram sua ortografia, acentuação e pontuação atualizadas, à
exceção da epígrafe. Em trechos deste trabalho, reproduzo parcialmente reflexões feitas em publicações anteriores: VILLALTA,
Luiz Carlos. Pernambuco, 1817, “encruzilhada de desencontros” do Império luso-brasileiro: notas sobre as ideias de pátria, país e
nação. Revista USP, São Paulo, v. 58, p. 58-91, 2003; e VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime Português (1788-1822).
Rio de Janeiro: FGV, 2016.
2 BIBLIOTECA NACIONAL (BN-RJ). Seção de Manuscritos. MARTINS, Domingos José. Poema feito por Domingos José
Martins no ano de 1817 no ato de ser passado pelas armas, 1817. I-30, 34, 007.
250 A globalização das luzes

Em 6 de março de 1817, eclodiu em Recife uma revolução que se alastraria


pelas capitanias de Pernambuco (incluindo Alagoas, então comarca pernambuca-
na), Paraíba e Rio Grande do Norte, chegando a parte do Ceará. Apropriações da
história pregressa figuraram nos impressos e proclamações dos governos provisórios
instituídos com a revolução. Neste texto, irei me deter na análise dessas apropriações
da história, referindo-me sempre que possível ao pensamento das Luzes. Minha
escolha pelo termo “revolução” baseou-se na tradição, na denominação consagrada
na memória coletiva, bem como na ousadia característica do movimento ou da
surpresa que ele causou nos contemporâneos, fosse em Pernambuco e em outras
capitanias do Norte do Brasil, fosse na Corte, fosse na Europa e nas Américas.
Neste capítulo, há alguns conceitos fundamentais. De um lado, o de repre-
sentação e, de outro, o de apropriações inventivas, que serão utilizados conforme
as elaborações de Roger Chartier. Entendem-se as representações como esquemas
mentais, por meio dos quais se apreendem e se apreciam o mundo social, as suas
divisões e o seu devir. Elas se particularizam conforme os grupos que as elaboram,
têm desdobramentos prático-estratégicos (do que se pode inferir também uma
correspondente materialidade), inscrevendo-se numa dada perspectiva sobre o que
deve ser o futuro.3 O conceito de apropriações inventivas implica refutar a ideia
de simples “influências” de textos, de prescrições, de normas, de representações
etc. sobre os sujeitos individuais e coletivos, sobretudo leitores. Portanto, a noção
de “apropriações” desloca o protagonismo dos textos, prescrições etc. para os
sujeitos das apropriações, muitas vezes inventivas.4 Com isso, eles são entendidos
como elementos ativos no diálogo com textos, prescrições, representações etc.,
não como meros receptores passivos, “vítimas de influências”. A inventividade é
entendida como a criatividade e a liberdade que o sujeito exercita em relação aos
livros, prescrições, normas, representações etc. Esta criatividade, quando pensa-
da em referência especificamente às narrativas históricas, denota: 1) endosso às
narrativas malvistas ou não recomendadas pelas autoridades, governamentais ou
não; 2) uso dessas narrativas como um elemento importante para afrontar os prin-

3 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e interpretações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel;
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 17; e CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. Fronteiras–Revista
de História, Dourados, v. 13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011.
4 Sobre a inventividade dos leitores, cf. CHARTIER, op. cit., p. 121.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 251

cípios defendidos pelos poderes constituídos; 3) autonomia para criticar narrativas


e textos em circulação, duvidando de suas afirmações, subvertendo o seu sentido;
e 4) capacidade de criar e se apropriar de passagens do passado, usando-as para
criticar a própria realidade imediata em que se vive.

Noções de História, regimes de historicidade


e tipos de narrativas

De meados do século XVIII aos inícios do século XIX, a ideia de história


transformou-se. Afastou-se de uma concepção de história como um relato de
caráter pedagógico, como narrativas que serviam de lições e eram moldadas
segundo doutrinas coevas – a Historia magistra vitae, ou história mestra da vida,
correspondente a um topos cujas origens remontam a Cícero.5 Tais narrativas eram
prisioneiras de uma compreensão de um tempo quase imutável, de uma identidade
entre passado e presente, que, por sua vez, era indissociável do entendimento de
que na História havia repetição. A existência de repetição, ademais, era a base
do caráter pedagógico das narrativas históricas. Nessas narrativas, Deus figurava
como o grande protagonista. Em contraposição a esse quadro, a partir da segun-
da metade do século XVIII, emergiu uma concepção de História como curso de
acontecimentos, como processo. Essa compreensão implicava dar ao homem uma
condição de protagonismo e, ao futuro, uma feição de novidade, de liberdade, de
claridade, de progresso. Com tudo isso, abandonou-se a ideia de permanência do
passado no presente e no futuro.6
Por volta de 1750, em alemão, o termo “historie”, cujo significado era relato,
perdeu a primazia para “geschichte”, palavra que correspondia originalmente a
acontecimento e à série de ações sofridas ou realizadas, designando também rela-

5 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Tradução de Wilma Patrícia Maas. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-RJ, 2006, p. 42.
6 Ibidem, 22-24.
252 A globalização das luzes

to.7 A Revolução Francesa veio a ter um impacto fundamental nesse processo de


transformação. Primeiramente, porque consolidou a ideia de que o homem era o
construtor da sua história e, por conseguinte, afigurava-se como um sujeito capaz
de edificar um novo tempo, um futuro dourado, de felicidade e liberdade, como
propugnava Robespierre.8 Em segundo lugar, a Revolução abalou a concepção
de história como mestra da vida, que ficou como uma espécie de topos ornamen-
tal. Como explica François Hartog, na Revolução: “Apelou-se para o passado,
convocou-se amplamente Roma e Plutarco, enquanto se proclamava bem alto que
não havia modelo e que não se devia imitar nada”.9
Todas essas transformações acontecidas a partir de meados do século XVIII
demarcam a fronteira entre dois regimes de historicidade. Até 1750 e a Revolução
Francesa, tinha-se o regime denominado “Antigo”. Depois, a partir desses mar-
cos temporais, emergiu outro regime, tido como “moderno”. Segundo Hartog, o
regime de historicidade é “expressão de uma ordem dominante do tempo”, não
uma “entidade metafisica, caída do céu e de alcance universal”: sendo tramado por
diferentes regimes de temporalidade, corresponde a uma “maneira de traduzir e de
ordenar experiências do tempo – modo de articular passado presente e futuro – e
de dar-lhes sentido”.10 Na verdade, o regime de historicidade é “um artefato (tipo-
-ideal), no molde weberiano, das categorias do passado, do presente e do futuro”.11
No regime antigo, veem-se a preponderância do passado, da historia magistra
vitae, a indistinção entre presente, passado e futuro, a figura do modelo exemplar
12

a ser imitado. Sob o Iluminismo, a história mestra da vida permaneceu como


topos sob outra roupagem, de caráter apenas pragmático e pedagógico, uma vez
que o “caráter modelar da história perde consistência diante da singularidade da
noção processual implicada na rede do progresso”.13 Já o regime moderno apre-

7 Ibidem, p. 50.
8 Ibidem, p. 25.
9 HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências de tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014, p. 137.
10 Ibidem, p. 139.
11 CEZAR, Temístocles. O sentido do ensino de história nos regimes antigo e moderno de historicidade. In: MAGALHÃES,
Marcelo et al. (orgs.). O ensino de história: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: FGV, 2014, p. 15-32 (especialmente, p. 16).
12 Ibidem.
13 Ibidem, p. 26.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 253

senta os seguintes traços: o exemplar desaparece; o passado é, por princípio ou


por oposição, ultrapassado; e, inversamente, o futuro dá ultimato. O futuro, que
surge como ruptura com o passado, para os historiadores, anuncia a possiblidade
de encontrarem-se leis. Ele lhes oferece igualmente um fim, um télos (a nação, o
povo, a república, a sociedade ou proletariado).14
Valdei Araújo faz uma descrição sintética desses dois regimes de historicida-
de. Segundo o referido autor, o regime “antigo” teria os seguintes traços: “campo
de experiência contínuo”, “natureza humana estável”, “estabilidade de valores”,
“exemplaridade, repetição e imitação”, “campo de experiência voltado para o
passado”, “valorização da proximidade temporal do historiador-testemunha”,
“coincidência entre a história e o seu relato (historie)”, “aprender com a história
é aplicar exemplos”, “aprende-se com a história nos livros”, “tempo circular ou
de evolução por etapas fechadas” (ciclos), “futuro previsível, mas não planejável”,
“dialética entre virtude e fortuna”, “o historiador e a história julgam conforme
valores estáveis”.15 Já as características do regime de historicidade “moderno”
seriam: “campo de experiência descontínuo”, “relatividade do humano”, “relati-
vidade de valores”, “singularidade, novidade e formação”, “campo de experiência
voltado para o futuro”, “esvaziamento da história do presente” e “valorização da
distância temporal”, “crescente complexificação das condições da história (sua
constante reescrita)”, “aprender com a história é avaliar a conjuntura e aumentar
a previsibilidade do futuro”, “a história em si é um processo formativo”, “tempo
linear e progressivo”, “futuro imprevisível, mas planejável”, “dialética entre sentido
histórico e ação histórica” e, por fim, “o historiador compreende, exibe os contornos
gerais; o próprio processo julga”.16
Em língua portuguesa, como evidenciam os dicionários de Raphael Blu-
teau e de Antônio de Morais Silva, publicados respectivamente em 1712 e 1789,
verificaram-se mudanças e permanências nas acepções do termo História. De
um lado, ocorreu uma secularização do termo e sua desvinculação em relação à

14 Ibidem, p. 138.
15 ARAÚJO, Valdei Lopes. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX Brasileiro. In: NICOLAZZI,
Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO, Valdei Lopes (orgs.). Aprender com a História?: o passado e o futuro de uma questão.
Rio de Janeiro: FGV, 2011, p. 131-147 (especialmente, p. 132-133).
16 Ibidem, p. 132-133.
254 A globalização das luzes

história sagrada. De outro lado, o termo “permaneceu ligado à ideia de narrativa,


não se definindo a partir dos acontecimentos, das ações cometidas ou sofridas”.17
O mundo luso-brasileiro, entretanto, na passagem do século XVIII para o século
XIX, dava claras evidências de estar a acompanhar o processo de transformações
das noções de História e dos regimes de historicidade observado no continente
europeu desde 1750. Entre as décadas de 1820 e 1830, o Brasil abriu-se de forma
definitiva à experiência moderna do tempo, o que não se fez sem instabilidade
conceitual e ambiguidades.18
Essa discussão sobre noções de história, regimes de historicidade e tipos
de narrativas históricas pode ser enriquecida com as contribuições do pensador
alemão Jörn Rüsen. Ele construiu uma tipologia de narrativas históricas que
vem muito a calhar para se pensar nos modos como os revolucionários de 1817
se apropriaram e representaram certas passagens da História. Em sua tipologia,
Rüsen identifica os seguintes tipos de narrativas: tradicional, exemplar/mestra da
vida, crítico e genético.19 Exceto o tipo genético, os demais se veem em circulação
entre os revolucionários de 1817, ainda que isso se desse de modo embrionário,
parcial e, até mesmo, com mesclagens.
Em sua caracterização dos tipos de narrativas tradicional, exemplar-mestra
da vida e crítico, Rüsen vale-se dos seguintes critérios: 1) a experiência de tempo;
2) os modelos de significância histórica; 3) a orientação para a vida externa; 4) a
orientação para a vida interna; 5) a relação com valores morais; e 6) a relação com
racionalização moral. O tipo de narrativa tradicional caracteriza-se por uma experiên-
cia de tempo em que se buscam a origem e a repetição de um modelo cultural e de
vida obrigatória. Do ponto de vista dos modelos de significância histórica, esse tipo
pauta-se pela permanência dos modelos culturais e de vida na mudança temporal.
Quanto à orientação para a vida externa, sustenta a afirmação de uma ordem
predeterminada pelo consentimento a um modelo de vida comum e válido para
todos. Já em termos de orientação para a vida interna, implica a sistematização dos

17 VILLALTA, Luiz Carlos. Os contrarrevolucionários de 1817 e suas apropriações da história: “os perigos das revoluções”. História,
São Paulo, v. 36, e28, 2017, p. 2.
18 ARAÚJO, op. cit., p. 136.
19 RÜSEN, Jörn. Historical consciousness: narrative structure, moral function, and ontogenetic development. In: SEIXAS, Peter
(ed.). Theorizing historical consciousness. Toronto: University Toronto Press, 2004, p. 63-85 (especialmente, p. 71-78).
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 255

modelos supracitados por imitação — role-playing —, configurando uma situação


em que as tradições sustentam identidades históricas. Em termos de relação com
os valores morais, o tipo tradicional pressupõe que a moralidade é conceito prees-
tabelecido de ordens obrigatórias, entendendo que a validade da moral, fixada pela
tradição, é inquestionável. Quanto à relação com a racionalização moral, concebe
que a razão subjacente aos valores é um suposto efetivo que permite o consenso em
questões morais. As tradições, assim, sustentam a obrigação moral.20
O tipo de narrativa exemplar (historia magistra vitae) caracteriza-se por uma
experiência de tempo em que há uma variedade de casos representativos de regras
gerais de conduta ou sistema de valores. Nele, o horizonte de experiência se alarga,
abarcando um número infinito de acontecimentos passados, que trazem ensinamen-
to moral geral. Do ponto de vista dos modelos de significância histórica, pauta-se
por regras atemporais de vida social, por valores atemporais. Quanto à orientação
para a vida externa, vê-se uma relação entre situações específicas e regularidades
do que aconteceu e do que deve acontecer futuramente. Já em termos de orientação
para a vida interna, o tipo exemplar implica a relação de conceitos próprios com
regras gerais e princípios, levando à legitimação pela generalização: em situações
atuais, aplicam-se regras comprovadas e derivadas historicamente. Em termos de
relação com os valores morais, pressupõe que a moralidade é a generalidade da
obrigação dos valores e dos sistemas de valores. A relação com a racionalização
moral é sustentada pela generalização, referida a regularidades e princípios. Dessa
maneira, a história ensinaria princípios morais por meio de aplicações a situações
específicas.21 Nesse tipo de narrativa, como base da argumentação, no lugar das
tradições, há o primado das regras. A história, os fatos do passado, traz exemplos
de regras gerais. A história é uma recordação do passado que nos ensina normas,
sua derivação de casos específicos. “A história ensina o argumento moral por meio
da aplicação de princípios a situações concretas e específicas”.22

20 Ibidem, p. 71-73.
21 Ibidem, p. 73-74.
22 RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à
consciência moral. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.). Jörn Rüsen e o ensino
de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2011, p. 66.
256 A globalização das luzes

O tipo de narrativa crítica caracteriza-se por uma experiência de tempo em que


há uma problematização dos modelos culturais e de vida atuais, com introdução
de uma ruptura na continuidade. Do ponto de vista dos modelos de significância
histórica, o tipo crítico pauta-se pela ruptura com esses modelos, pela negação de
sua validade, por exemplo, apelando a contranarrativas e detendo-se nas mudanças
legais do passado ao presente. Com isso, abre-se a um novo futuro. Quanto à
orientação para a vida externa, vê-se a definição de um ponto de vista próprio,
em oposição às obrigações predefinidas. Já em termos de orientação para a vida
interna, o tipo crítico implica a autoconfiança na refutação das obrigações vindas
do exterior — consagra-se, assim, o papel de fazer-se. Em termos de relação com
os valores morais, notam-se a ruptura do poder moral dos valores pela negação
de sua validade e, por conseguinte, o apelo ao relativismo cultural, em oposição à
universalização. Quanto à relação com a racionalização moral, veem-se a crítica
dos valores e a ideologia crítica como estratégias importantes de discurso moral.
A história rompe com continuidades históricas predefinidas, desconstruindo-as;
confronta valores morais com evidências que os negam. Isso se veria, por exemplo,
nas críticas das feministas modernas. Exemplos de narrativas críticas seriam a crítica
marxista aos valores burgueses e a genealogia da moral, de Nietzsche.23
Entre esses tipos de narrativas, percebe-se uma sequência lógica e uma com-
plexidade crescente em termos temporais, de abstração e de orientações externas e
internas. O tipo tradicional é primário, não pressupondo outras formas de consciência
histórica nem a distinção entre fato e significado, sendo bastante generalizado. Já o
tipo exemplar, também muito generalizado, envolve distinção entre fato e significação,
generalização. O tipo crítico pressupõe a diferenciação entre o próprio tempo e os
de outros e conduz a críticas a partir de pontos de vista. É um tipo de narrativa
raro, que exige maiores esforços de intelecção.24
Na passagem do século XVIII para o século XIX, ao lado de narrativas
tradicionais ou mestras da vida, emergiram narrativas críticas. O descolamento
ocorrido na noção de História em relação às narrativas, estabelecendo certa ideia
de processo e de progresso, tudo indica, abriu a possibilidade para críticas às nar-

23 Idem, 2004, p. 74-76.


24 Ibidem, p. 78-82.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 257

rativas então em voga, fossem as “histórias” que tinham um fim moral, educativo,
a chamada “história mestra da vida”, fossem as “histórias” tradicionais. O futuro
distinto, que então se antevia, não dava margem para repetições, e as narrati-
vas exemplares e tradicionais se opunham ao que se advogava como progresso,
claridade. Todavia, isso não se deu de maneira linear ou frontal, como se verá a
seguir, no caso específico das representações e apropriações da história feitas pelos
revolucionários de 1817. As tradições são, de alguma maneira, invertidas e/ou sub-
vertidas, ao mesmo tempo que a Providência Divina, embora ainda presente nas
narrativas, abre espaço para o compartilhamento do protagonismo com os seres
humanos. Ao mesmo tempo, a tradição é apropriada de forma não a legitimar a
ordem vigente, mas de modo a modificá-la, propondo-se uma ruptura.
Em seus embates políticos, os revolucionários de 1817, como se procurará
sustentar neste texto, mobilizaram representações e narrativas históricas. Fizeram-
-no com inventividade e deram claras mostras de afastamento, ainda que relativo,
das narrativas históricas de tipo exemplar e, mesmo, de tipo tradicional. Tal
afastamento implicou a incorporação de características que podem ser associadas
ao tipo de narrativa denominado crítico. Os revolucionários de 1817 apresentam
traços preponderantemente “modernos” em termos de suas concepções de História:
a concepção de tempo como algo linear e progressivo; uma experiência voltada
para o futuro, concebido como imprevisível, mas planejável; um entendimento de
que aprender com a história implica analisar as conjunturas; a relação dialética
entre o sentido e o agir na história; e certa relatividade do humano e de valores, sem
que se rompa com uma compreensão de que há uma natureza humana universal.
Todavia, percebe-se o recurso eventual à fórmula historia magistra vitae e o apelo às
tradições, o que sinaliza que as transformações do “antigo” para o “moderno” e,
ainda, os modos como elas se deram entre os revolucionários não foram isentos de
ambiguidades e instabilidades conceituais.
Quanto ao recurso à historia magistra vitae, cabem alguns esclarecimentos
adicionais. O uso da expressão historia magistra vitae permanece entre os modernos.
Isso é indicativo dessas ambiguidades e instabilidades. Valdei Araújo registra que
uma coisa é o emprego da referida expressão, feito em obediência à tópica e aos
preceitos ditados pela retórica, na realidade anterior à emergência dos Estados
nacionais; outra, seria quando esta última realidade estava estabelecida e, ainda,
258 A globalização das luzes

quando o pensamento sistemático-dedutivo, a observação e a exploração da natu-


reza encontravam-se dinamizados, situação que se constrói progressivamente no
Brasil desde fins do século XVIII.25 Sob essa condição, a expressão historia magistra
vitae se tornou um simples lugar comum, ou como o autor define com mais precisão,
um “protocolo”, elemento que se fazia presente num contexto de incorporação da
cultura clássica, sem ter efetividade nos textos, sendo objeto de uma apropriação que arruina-
va sua coerência.26 O autor, além disso, fala de um uso estrito da expressão historia
magistra vitae, que pressupõe que a história ensina pelo exemplo e pela imitação, e
outro, lato, como indicador de uma história cujo propósito é ensinar e moralizar.27
Disso derivaria que a historia magistra vitae seria aquela destinada para a educação
em geral, não servindo para os especialistas.28
No caso dos revolucionários de 1817, como se verá a seguir, a natureza
necessariamente estratégico-política dos usos da história, que tornava dispensável
qualquer rigor “de especialistas”, era perfeitamente ajustável à “história mestra da
vida” – isto é, à história como fonte de exemplos para a imitação no presente –, sem
eliminar-se uma compreensão da história como um processo. Os revolucionários
em 1817 eram, sobretudo, “leitores” da História. Nos textos que serão analisados,
não demonstram a menor pretensão de produzir conhecimentos históricos ou de
questioná-los, mas simplesmente de divulgá-los estrategicamente em suas ações
históricas, visando à construção de determinados futuros, vistos como possíveis e
planejáveis, sem ter qualquer caráter de fatalidade. Tais homens esboçaram uma
compreensão da história como um processo, mas não deixaram de compartilhar
da ideia de que ela era (às vezes, também) “mestra da vida”. Grosso modo, os re-
volucionários parecem ter comungado da crença no progresso. Isso denota que,
para eles, já inexistia aquela identidade concebida outrora entre passado, presente
e futuro, havendo, aqui e acolá, indícios de que a ideia de progresso, como possi-
bilidade, não como certeza, era por eles compartilhada, a depender das ações dos
sujeitos humanos (por mais que a mão da Providência pudesse interferir por meio dos

25 ARAÚJO, op. cit., p. 134.


26 Ibidem, p. 140 (grifos nossos).
27 Ibidem, p. 137.
28 Ibidem, p. 139.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 259

homens). Além disso, o progresso não acarretava a superação de todas as tradições,


pelo contrário, por vezes, exigia sua recuperação.

A propriações da história pelos partidários


da R evolução

Os revolucionários de 1817 elegeram diferentes fatos, personagens, processos


e períodos do passado em suas apropriações da história. Eles priorizaram o passa-
do imediato da capitania de Pernambuco, do Brasil e de Portugal; a expulsão dos
holandeses do Nordeste no século XVII; a História Sagrada; e a História Antiga,
cabendo a esta última ora a posição de ornamento, ora a de argumento central, nas
representações históricas. Todas essas apropriações engatavam-se a um discurso
cujo sentido político e estratégico era claro: sustentar a revolução e/ou defender seus
partidários da culpa pelo crime de lesa-majestade.
Antônio Jorge de Siqueira debruçou-se sobre o papel dos clérigos na Re-
volução de 1817, salientando sua centralidade, seja no campo da propagação das
ideias, seja no domínio militar. Os clérigos desenvolveram atividades de persuasão
e de aliciamento e, até mesmo, agiram como comandantes e capitães de guerrilha,
pagando soldo às tropas e sendo salteadores de cadeias.29 O renomado historiador
pernambucano analisou igualmente o papel das Proclamações escritas, impressas
e difundidas pelo governo provisório. Siqueira sustenta a relevância ocupada pelas
Proclamações na condução do movimento por parte de seus líderes. Defende que
“existem provas de que mandaram imprimir pronunciamentos” e que: “Essas pro-
vas, aliás, são um grande testemunho do uso eficiente da liderança e doutrinação
dos líderes insurgentes”.30
Um dos documentos garimpados por Siqueira é uma carta que se encarregou
o seminarista José Martiniano de Alencar de entregar ao capitão-mor do Crato,

29 SIQUEIRA, Antônio Jorge. Os padres e a teologia da ilustração: Pernambuco 1817. Recife: Editora UFPE, 2009, p. 175-176 e 188-189.
30 Ibidem, p. 208.
260 A globalização das luzes

no Ceará. A seguir, abordarei essa carta dirigida ao capitão-mor do Crato e, depois,


três proclamações de grande relevância no movimento de 1817: a “Proclamação feita
pelo Governo Provisório aos Habitantes de Pernambuco”, o chamado “Preciso” e a
“Proclamação do Governo Provisório aos baianos”. Em seguida, abordarei a “Pro-
clamação ao Regimento de Cavalaria de Goiana”, datada de 12 de março de 1817.
Na carta que tinha por portador Alencar, há uma asserção que, se não foi
a tônica dos documentos expedidos pelo Governo Provisório de Pernambuco, se
fez presente em alguns deles e seria regra geral anos depois, após a Revolução do
Porto de 24 de agosto de 1820, quando se rememoraria o passado colonial: este
teria sido sinônimo de opressão.
A Providência divina que destrói os Impérios e levanta outros, compadecendo-se de
tantos séculos de opressão e cativeiro, das desgraças dos povos do Brasil, donde somos naturais,
permitiu que, em um momento em que malvados sem religião nos queriam subterrar
e cobrir nossa pátria de lágrimas e de sangue, [... que] Nós recobrássemos os nossos
direitos e a nossa liberdade para formarmos um governo livre e independente, que
nos assegure a pureza de nossa santa Fé e os nossos direitos, todos os dias violados
pelos nossos opressores [...] O soberano, que só manda para governar os seus povos a déspotas
e a ladrões, tem quebrado perante Deus o juramento de reger os povos com justiça e de manter os
seus direitos e, por consequência, desobrigando o povo do juramento de fidelidade, [com o que este
povo] pode escolher o governo que melhor lhe parecer.31

A carta, como se vê, contém uma narrativa histórica claramente providen-


cialista. Nela, Deus é o principal sujeito da História, podendo destruir e levantar
impérios, assim como compadecer-se dos que sofrem “séculos de opressão e
cativeiro”, como seria o caso dos povos do Brasil. Como bem observou Siqueira,
há ainda um complemento neste viés religioso: o de se apreender a luta contra
o despotismo como sendo em defesa da religião. Há, além disso, uma referência
teórica subjacente, cujo fundamento é teológico: as teorias corporativas de poder
da Segunda Escolástica, que envolveram a releitura das ideias de São Tomás de
Aquino, releitura esta que teve como expoentes frades ligados à Companhia de
Jesus (mas não só). Referência política combatida pelo reformismo ilustrado lusi-
tano iniciado por d. José I, em 1750, e por seu poderoso ministro Sebastião José
de Carvalho e Melo, desde 1769 marquês de Pombal, as teorias corporativas de

31 Ibidem, p. 214-215 (grifos nossos).


Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 261

poder concebiam que Deus era a origem do poder, que por ele era transmitido à
comunidade. Esta, em algum momento de sua história, renunciaria ao poder que
lhe fora concedido, entregando-o ao soberano. O monarca, por sua vez, ficava
obrigado a “reger os povos com justiça e de manter os seus direitos”, sendo legítimo, quan-
do não o fizesse, que a comunidade lhe fosse infiel, podendo, assim, “escolher o
governo que melhor lhe parecer”.32 Não por acaso, a Carta, em sua continuidade,
ecoava máximas que se veem num sermão do padre Antônio Vieira, feito em 1640,
em homenagem ao primeiro vice-rei do Brasil, o marquês de Montalvão, que
então chegava à Bahia. Vieira, jesuíta, compartilhava em suas análises as teorias
corporativas de poder (e é isso o que se vê nas entrelinhas do seu sermão, que traz
uma crítica política e administrativa). Esse sermão de Vieira foi empregado antes
de 1817, mais precisamente em 1788-1789, em Minas Gerais, por Joaquim José da
Silva Xavier, o Tiradentes, que lhe deu um tom anticolonialista. Ele seria, ademais,
apropriado depois, em fins de 1822, pelo grande frei Joaquim do Amor Divino
Caneca, personagem da Revolução de 1817, num sermão em louvor ao Império do
Brasil, que então nascia, e ao imperador d. Pedro I.33 Como se viu anteriormente,
nos trechos da carta endereçada em 1817 ao capitão-mor do Crato, o tom é clara-
mente anticolonialista (melhor dizendo, antimetropolitano).
Se Vieira e Tiradentes denunciavam que os ministros vinham às partes
ultramarinas para se enriquecer e corromper-se à custa das gentes, na carta,
acrescenta-se que o trono, mesmo instado sobre essas práticas dos “tiranos vindos
de fora”, nada faz e, ainda, que a “Corte corrompida” endossa suas práticas e seus
feios vícios:
Lembrai-vos das opressões dos Ouvidores e dos Governadores nessa Capitania,
[refere-se ao Ceará], lembrai-vos que muitos de nossos patrícios têm levado queixas

32 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA, Antônio
Manuel (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Estampa, 1997, p. 113-139 (especialmente, p. 115); e TORGAL, Luís
Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981-1982, v. 1, p. 110, 188 e 191; v.
2, p. 6-8.
33 VILLALTA, Luiz Carlos. Identidades coletivas e produção, circulação e usos de representações históricas: do final do Antigo
Regime à emergência do Império Constitucional no Brasil (c. 1788-1823). In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL CULTURA ES-
CRITA NO MUNDO MODERNO, 1., 2019, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2019,
p. 88-95.
262 A globalização das luzes

ao trono, mas tudo em vão; por aqui a Corte corrompida só quer que eles voltem ricos
com os despojos do miserável povo para ali se atolarem nos seus mais feios vícios.34

A carta contém uma narrativa histórica que pode ser enquadrada como
tradicional. Traz a defesa da religião herdada como uma marca a ser perseguida
e defendida pela Revolução. A própria figura de Deus permanece como o grande
protagonista da história. Mas o passado é visto como um tempo de sofrimento, de
cativeiro secular, como algo a ser superado. A orientação que se tira disso é a da
ruptura com o passado, ao menos parcialmente: até mesmo para preservar-se a
religião, cumpriria encerrar o cativeiro. Assim, o presente e o devir são concebi-
dos como tempos de ruptura parcial com o passado, ruptura esta que traduz um
compadecimento de Deus com os sofrimentos seculares dos homens. Trata-se de
ruptura com uma “opressão” e um “cativeiro” seculares; com uma Corte corrupta;
com as “opressões dos Ouvidores e dos Governadores”, todos ladrões e déspotas
enviados pelo soberano, uns e outros responsáveis pela miséria. Curiosamente, como
base teórica para legitimar-se a insurreição e o novo, busca-se recurso nas velhas
teorias corporativas de poder. Elas, porém, em 1817, estavam sendo usadas não
para se manterem as estruturas do Antigo Regime, mas para instaurar uma nova
ordem. Nisso tudo, há, claramente, um quê de narrativa de tipo crítico, notando-se
uma problematização dos modelos culturais e de vida coevos, com a introdução
de uma ruptura na continuidade.
Quando se pensa em termos de narrativas históricas, a “Proclamação feita
aos Habitantes de Pernambuco pelo Governo Provisório”, datada de logo depois
da instalação da República em 6 de março de 1817, em linhas gerais, segue o
mesmo padrão da carta analisada anteriormente. Seu tom, porém, é muito mais
conciliador. Por um lado, evita-se o antagonismo explícito com a Corte, o Rio de
Janeiro e, por outro, amenizam-se as dissensões existentes entre, de um lado, os
“portugueses” e, de outro, os “brasileiros” e os “pernambucanos”. Explicitamente,
culpa-se o governador de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro,
pela eclosão da Revolução, que é atribuída à ausência do referido governante. Ao
mesmo tempo, representa-se o governador, de certa forma, como a personificação
do “despotismo”. Na Proclamação, revisita-se a transferência da Corte portuguesa

34 Apud SIQUEIRA, op. cit., p. 214-216.


Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 263

para o Brasil, que é explicada como resultado dos “encadeamentos dos sucessos da
Europa”, tendo-se como adendo que, com isso, passou-se a “dar ao continente do
Brasil aquela consideração, de que era digno e para o que não concorreram nem
podiam concorrer os Brasileiros”.35 Ou seja, se a transferência da Corte se devia
a fatores europeus e de um tempo histórico mais restrito, a situação do Brasil, até
aquele momento, era mais longeva e, sobretudo, indigna. Sublinha-se, ainda, que
os “Brasileiros” nada tiveram a ver com a transferência, pois não poderiam ser
os culpados de “que o Príncipe de Portugal [tivesse sido] sacudido da sua capital
pelos ventos” da invasão francesa. Com efeito, foi do Brasil que, “pela quase Di-
vina providência e liberalidade dos seus habitantes”, partiu o socorro para que os
lusitanos, fugidos de Lisboa, matassem a fome e a sede no Atlântico, na altura de
Pernambuco.36 A essa posição dos “Brasileiros” e do “Brasil”, inclusive, é atribuída
a explicação para que o príncipe regente, “sensível à gratidão, quisesse honrar a
terra, que o acolhera com a sua residência, estabelecendo a sua Corte, e elevá-la
à categoria de Reino”. Com isso, a narrativa salta da transferência da Corte, em
1807-1808, para a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Al-
garves, em 1815. Em seguida, desloca-se para a eclosão da Revolução, em 5 e 6 de
março de 1817, reportando-se, sem haver menção explícita, à decisão de Caetano
Pinto de Miranda Montenegro de aprisionar oficiais acusados de sedição. Essa
decisão é adjetivada como despótica e descrita da seguinte forma: “o despotismo”
e o “mau conselho” recorreram, então, “às medidas mais violentas e pérfidas que
podia excogitar o demônio da perseguição”, ou, em outros termos, “ao meio tirano
de perder Patriotas honrados, e beneméritos da Pátria”, o que fez com que a “tropa
inteira” se opusesse, “envolvida na ruína de alguns de seus oficiais”.37 Colocando-
-se contra os que disseminavam “um mal-entendido ciúme, e rivalidade, entre
os filhos do Brasil, e de Portugal, habitantes desta Capital”, o governo provisório
conclamava à unidade entre brasileiros e portugueses, engajados indistintamente
na defesa da “pátria”, baseada na agricultura, entendendo que “uma nação rica

35 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CI. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1953, p. 14-16.
36 Ibidem.
37 Ibidem.
264 A globalização das luzes

é uma nação poderosa”. Por fim, o governo provisório de Pernambuco encerrava


com a seguinte convocação: “A Pátria é a nossa mãe comum, vós sois seus filhos,
sois descendentes dos valerosos Lusos, sois Portugueses, sois americanos, sois Bra-
sileiros, sois Pernambucanos”.38 Nessa narrativa histórica, ao lado das tradições
lusas, que irmanavam portugueses e brasileiros, erige-se a novidade da “Pátria”,
uma “pátria republicana” e refratária ao despotismo, uma pátria que é sinônimo
de coletividade política fundada na soberania popular e alicerçada nos valores
liberais. Não se veem, na narrativa, ecos de uma “História Mestra da Vida”, mas a
reafirmação de uma tradição. Todavia, sublinhe-se, a tradição cede primazia à inovação.
Outra Proclamação famosa é o chamado “Preciso”, título cuja origem deve
ser “Précis”, termo francês que significa obra em que se expõem brevemente os
fundamentos de uma disciplina. O “Preciso” foi redigido por José Luís de Men-
donça. Acossado por ver sua reputação abalada devido a uma sua manifestação
moderada quanto à monarquia joanina, posição que quase lhe custou a vida, José
Luís visava parecer aos demais revolucionários pernambucanos como digno de
consideração, assumindo uma posição mais radical.39 O texto foi impresso no
dia 10 de março de 1817, na “Officina typographica da 2ª Restauração de Per-
nambuco” ou “Officina typographica de Pernambuco 2ª vez Restaurada”, o que
remete à primeira Restauração, aquela que expulsou os holandeses em 1654.40 O
nome da tipografia converge com o privilegiamento dado pelos revolucionários
à apropriação da chamada Restauração Pernambucana, privilegiamento este
que visava legitimar a Revolução de 1817. A opção por “Restauração”, ademais,
coaduna-se com a reticência dos revolucionários de 1817 de se pronunciarem, em
documentos públicos, sobre as Revoluções Americana, Francesa e do Haiti, como
se evidenciará nas páginas seguintes.
No “Preciso”, vê-se não propriamente uma narrativa histórica, mas uma
representação sobre a Corte portuguesa. Se sua administração é classificada como
abusiva, ela é representada como “uma corte insolente sobre toda a sorte de opres-

38 Ibidem.
39 VILLALTA, 2003, p. 76.
40 CABRAL, Flávio José Gomes. Conluios, circulação de ideias e a imprensa no tempo da Revolução Pernambucana de 1817. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUH, 29., 2017, Recife. Anais... Recife: ANPUH/UFPE, 2017.  
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 265

são de nossos legítimos direitos” e fonte de animosidade entre “os compatriotas


naturais de Portugal”, de um lado, e os envolvidos na Revolução, de outro.41 A
Corte caluniava a honra dos envolvidos no movimento, atribuindo-lhes o “negro
labéu de traidores”.42 A ela, somava o “insidioso governo extinto de Pernambuco”
–– ou seja, o governo do capitão-general Caetano Pinto de Miranda Montenegro
––, responsável pela ordem do dia 5 de março de 1817, pelo Conselho de Guerra
de 6 de março e pela ordem de prisão dos acusados de rebelião. Em contraposi-
ção, no “Preciso”, a representação trazida sobre o governo provisório sublinhava
sua composição (por “cinco Patriotas tirados das diferentes classes”), sua ação
no sentido de buscar a harmonia com os “nossos compatriotas de Portugal”, que
tinham ficado inquietos por causa dos “partidistas da tirania” e aos quais foram
seguradas, pelo novo governo, suas “famílias, pessoas e propriedades”.43 O governo
provisório proclamara,
enfim, por um bando, os sentimentos do Governo e do povo, e não haver mais
daqui por diante diferença entre nós, de Brasileiros a Europeus, mas deverem ser
tidos em uma só e única família, com igual direito a uma só e a mesma herança,
que é a propriedade geral de toda esta Província.44

Com isso, subentende-se, rompia-se com uma hierarquização longeva


e, igualmente, cessava-se com uma animosidade recente e, ao mesmo tempo,
afirmava-se a unidade de “brasileiros” e de “europeus”, ligados por uma única
herança.45 Em suas ações que combinavam preservação e inovação, dizia-se, o
governo provisório não tirou nenhum funcionário público de seus ofícios, mas,
ao mesmo tempo, proscreveu “fórmulas de tratamento até agora usadas” – que,
acrescente-se, eram típicas de uma sociedade aristocrática e escravista – e aboliu
“certos impostos modernos de manifesta injustiça e opressão para o povo, sem
vantagem nenhuma da nação”.46 O “Preciso” encerrava-se com as seguintes pala-

41 BN-RJ. PRECISO dos sucessos que tiveram lugar em Pernambuco desde a faustíssima e gloriosíssima revolução operada e
felismente na praça do Recife, aos seis de março de 1817, em que o generoso esforço dos nossos bravos patriotas exterminou daquela
parte do Brasil o monstro infernal da tirania real. [S.l.: s.n.], 1817.
42 Ibidem.
43 Ibidem.
44 Ibidem.
45 Ibidem.
46 Ibidem.
266 A globalização das luzes

vras de ordem: “Viva a pátria, vivam os Patriotas, e acabe para sempre a tirania
Real”.47 A pátria, no uso dos revolucionários, significava a coletividade constituída
pelos defensores dos ideais constitucionais, liberais, republicanos, antiabsolutistas
e antidespóticos, uma comunidade investida de soberania e que se antagonizava
com a monarquia do Rio de Janeiro. A palavra “pátria” não remetia à acepção,
então muito usual no mundo luso-brasileiro, de local de nascimento e dos afetos. O
novo sentido da palavra pátria e sua presença como palavra de ordem, ao lado da
defesa da extinção da “tirania Real”, denotam que, ao final do “Preciso”, celebra-se
a inovação. Entre tradição e ruptura, o “Preciso” aposta na ruptura –– não por
acaso, o documento foi impresso de tal sorte que o brasão real figurava na parte
de baixo da folha, não em cima.
Na Proclamação que o governo provisório dirigiu aos baianos, a aposta na
ruptura e o entendimento de que a tradição a legitimava conjugavam-se com certa
concepção de humanidade. Nela, vê-se, igualmente, um brado contra o despotismo,
fosse o representado pelo governador da Bahia, o conde dos Arcos, fosse aquele
vinculado a d. João VI e ao governo do Rio de Janeiro.48 Vê-se, também, a repulsa
à ânsia aristocrática enraizada na sociedade colonial e ao ideal de fidelidade aos
governos, adjetivados como tirânicos. Inicialmente, a Proclamação afirma aos “pa-
triotas Baianos” que, no dia 6 de março de 1817, restituíram-se “perdidos direitos”
aos “irmãos de Pernambuco”. Portanto, implicitamente, expõe-se uma compreensão
de que, em algum momento do passado, os pernambucanos tiveram direitos. Essa
compreensão alia-se à ideia de que, entre baianos e pernambucanos, havia uma
identidade definida, entre outros elementos, pela sujeição ao despotismo, ou, nos
próprios termos do documento, uma “identidade de Religião, costumes, moradia
e simpatia de sofrimentos”, identidade essa que criara laços entre os primeiros e
os últimos. Esses laços eram as bases para que, na Proclamação, por meio de uma
pergunta aos baianos, reputados como estando sempre “dianteiros na estrada da
civilização e da cultura”, se fizesse a proposta de “sacudirmos o jugo e recuperarmos
o título, que nunca deveríamos ter perdido, o título de homens livres”.49 Até mesmo

47 Ibidem.
48 O CARAPUCEIRO. Recife, 3 ago. 1833, p. 256. Este documento é analisado em CABRAL, op. cit., p. 5-7.
49 O CARAPUCEIRO, 3 ago. 1833, p. 256.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 267

para driblar os obstáculos à aceitação do convite, a Proclamação detém-se na figura


do conde dos Arcos, governador da Bahia, mencionando “as insípidas, roucas e
vãs bravatas do fútil General, que ainda vos [isto é, aos baianos] têm acurvados”.
Em tom provocativo aos baianos, a Proclamação sustentava: “O tempo dos prestígios
é passado. Fidelidade aos tiranos nos é cumplicidade em seus delitos, é atraiçoar a grande causa
do gênero humano”.50 Acrescenta-se que, conforme o conde dos Arcos, intitulado de
“Bachá”, os baianos deveriam guiar-se pela fidelidade “ao mais querido dos Reis”;
neste ponto, a Proclamação, em tom de zombaria, desfere o mais virulento ataque
a d. João VI, a seu governo e à Corte do Rio de Janeiro:
Esse Rei querido, oh, blasfêmia! Este Rei que dissipa, em aparatos e profusões
ridículas de uma Corte depravada, o fruto de vossas calejadas mãos, esse Rei, que
pródigo, reparte, pelos infames validos e sevandijas, os mais desprezíveis de uma
Corte corrompida, o pão arrancado aos vossos famintos filhos? Esse Rei, enfim,
que conservando um rancor oculto ao nome do Brasil, não vos dilacera porque vos
teme e, porque vos teme, ainda mais vos odeia?.51

A Proclamação insinua que o conde dos Arcos seria um traidor do rei d. João
VI, ao afirmar que ele teria “negro projeto” e que seus “consórcios” mereceriam o:
título de conspiração: ele destruía um trono odiado para substituir-lhe milhares de
Tronos ainda mais aborrecíveis. O Povo, desgraçado Povo, era obrigado a satisfazer
o seu orgulho e pretensões de um bando de Aristocratas ávidos de sangue, insaciáveis de
pompas e grandezas vãs e nunca satisfeitos com as humilhações de seus escravos. 52

Embora o trecho acima pareça dirigir-se ao conde dos Arcos, a seu governo
e a seus apaniguados, tudo indica que seu conteúdo remeta à monarquia portuguesa
em geral. Quase em seu final, a Proclamação conclama os baianos a honrarem seu
passado de lutas pela liberdade e, por conseguinte, a desferirem um ataque àquele
que os tiranizava, inscrevendo, na própria Escritura Sagrada, o ódio à tirania e a
defesa da igualdade do homem que o legitimava:
Não pode ser divisa de um Povo, nobre e generoso, fidelidade a um Déspota baixo e opressor [(isto
é, o conde dos Arcos)]. Mostrai-lhe que são mentirosas suas gratuitas asserções e
que os vossos peitos são o Santuário de Vesta, onde nunca extinguiu o fogo da

50 Ibidem.
51 Ibidem.
52 Ibidem.
268 A globalização das luzes

Liberdade; e que, se o sopro dos tiranos lhe pode diminuir a força, jamais conse-
guiu abafá-lo de todo. Correi prontos ao grito de vossos consanguíneos e de vossos
conterrâneos: escutai os ditames da Religião Santa, que professais: a cada página dos
Livros Sagrados ressumbram a igualdade do homem e o ódio à tirania. Viva a Religião, viva
a Pátria, viva a Liberdade.53

Constata-se que, para a citada Proclamação, vale o que Antônio Jorge de


Siqueira registrou sobre as proclamações e demais documentos produzidos pelo
governo revolucionário, em cuja dianteira destacaram-se os clérigos: “a doutrina
cristã está a serviço da doutrina político-revolucionária”.54 A tradição, enfim, jus-
tifica e pavimenta a ruptura, a revolução: e isso passa por certa leitura da História,
seja do período colonial como um todo, seja do Brasil joanino, seja da História
Sagrada. A História Antiga, ademais, serve, por vezes, de ornamento e, por outras,
como elemento essencial na argumentação.
Tomando-se como referência a tipologia de narrativas históricas construída
por Jörn Rüsen, percebe-se que, nas Proclamações analisadas, há lugar para os
tipos tradicional e crítico. Tais tipos se combinam e, como fundamentos, articulam
representações e apropriações da História que legitimam a Revolução.
O governo provisório de Pernambuco, em “Proclamação ao Regimento de
Cavalaria de Goiana”, datada de 12 de março de 1817 e assinada pelo padre João
Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro, por José Luís de Mendonça, por Domingos
José Martins e por Manuel Correa de Araújo, ecoou representações e apropriações
históricas semelhantes às anteriores. Depois de dar “Viva à Religião e à Pátria”
e, antes de o fazer em relação “à restauração dos nossos direitos, [dando] viva à
liberdade, viva à Pátria”, o governo provisório denunciou a tirania do passado
imediato. Ao mesmo tempo, louvou os feitos heroicos dos pernambucanos no século
XVII, no embate contra os holandeses, e empregou a metáfora da escravidão como
sinônimo de despotismo, metáfora típica do pensamento das Luzes:
Triunfou a causa da Humanidade, da Justiça e da Pátria. Tiranos covardes, que
ousaram querer calcar os filhos dos vencedores de Tabocas e Guararapes, esgo-
taram desta vez o nosso sofrimento. A espada da vingança vibrou sobre as suas
cabeças; eles não podem mais empecer-nos [sic]. Amanhecemos escravos; em o dia

53 Ibidem.
54 SIQUEIRA, op. cit., p. 213.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 269

seis de março, ao meio-dia, começamos a ser precipitados em masmorras; à tarde,


estávamos livres e, mais, a pátria estava libertada.55

A autoria daquela Proclamação dirigida aos baianos, abordada anterior-


mente, foi atribuída em 1833, pelo jornal O Carapuceiro, de Recife, a Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada e Silva, visando a criticar suas posições. Este último, em carta
dirigida ao seu irmão Martim Francisco, datada de 29 de março de 1817, fez uma
apreciação do movimento de 1817 que pouco tem a ver com a referida Proclamação
voltada aos baianos. Mencionou a adesão da população, das autoridades e dos par-
ticulares, o poderio militar (com milhares de homens, entre tropa regular e tropas
auxiliares) etc. Antônio Carlos sugere ter sido pego de surpresa pela Revolução,
que ele classifica como de Independência e de feição republicana. Ele sublinha
que houve mudança na administração da justiça e que isso estava a prejudicá-lo.
De certo modo, relacionou o movimento a uma leitura do passado imediato: ele o
explicou a partir da fraqueza do governador Caetano Pinto de Miranda Montene-
gro.56 Este argumento, presente na carta de Antônio Carlos, foi reiterado em muitos
outros documentos sobre a Revolução, como se viu nas Proclamações. Antônio
Carlos, ainda, pede ao irmão para tranquilizar sua mãe. Em quase nada, a carta
se assemelha à Proclamação aos baianos.57 Se a Proclamação tem uma narrativa
histórica de tipo crítico e é um ataque virulento ao conde dos Arcos, a d. João VI
e à monarquia absoluta, a carta de Antônio Carlos ao seu irmão é quase anódina,
apenas tangenciando, com seu conteúdo, uma narrativa histórica de tipo crítico.
Entre as apropriações feitas pelos revolucionários de 1817, aquelas que se re-
feriam à história pregressa do Brasil, sobretudo à expulsão dos holandeses no século
XVII, tiveram destaque, sendo um exemplo o que se vê numa das Proclamações
anteriormente analisadas. Elas eram totalmente congruentes com certa perspec-
tiva sobre a soberania e a ordem política que os revolucionários idealizavam. Essa
perspectiva associava a afirmação da soberania dos povos, o ideal constitucional e
conflitos identitários, que passavam por articulações referentes ao conceito de pátria.

55 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CIV. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1954a, p. 86-87.
56 BN-RJ, Seção de Manuscritos. SILVA, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e. [Carta a Martim Francisco, 29/03/1817].
Cartas [andradinas]. [Recife], Bordeaux, Mupidan e Paris, 1817-1834. I-4, 34, 054 n. 003.
57 Ibidem.
270 A globalização das luzes

Para os revolucionários de 1817, a “pátria”, como já se explicou, era a encarnação


da vontade geral. O governo, por eles instituído, por sua vez, constituía seu quase
sinônimo. Nas representações históricas que construíram sobre a Restauração
Pernambucana de 1817, a história trazia, de um lado, a pátria-governo provisório,
o presente, e de outro, o passado mais distante, o do século XVII, de glórias, lutas
e bravuras da pátria, momento em que se fez valer sua soberania diante do invasor
holandês, não obstante isso se dar “a serviço de um tirano”. Nessa contraposição
de passado e presente, a monarquia aparecia como sinônimo de tirania, inscrita já
naquele passado; apresentava-se, portanto, como “antigo cativeiro”, que embaçava
a imagem da pátria. Reintegrando numa mesma unidade povo e governo, com a
necessária eliminação do trono-Estado que a conspurcava, o governo provisório
usou o passado para legitimar-se e, por sua vez, disse fazer-lhe jus, recuperando
a “herança”, por ele legada, de luta, glória e bravura, maculada pela monarquia
absoluta.58
Isso tudo se vê no documento que o governo provisório dirigiu aos patriotas
pernambucanos, em 15 de março de 1817, conclamando-os a escutar “as vozes da
pátria, que fala ao vosso coração”, e a engajar-se na luta para consumar a “grande
obra da nossa Independência”. Salienta-se, no documento referido, que os “grilhões
do nosso antigo cativeiro estão quebrados, nós somos já livres e metidos de posse de
nossos legítimos direitos sociais”; ao chamá-los a participar da luta, rememorou-se
a guerra vitoriosa contra os holandeses, no século XVII:59
Filhos da pátria, herdeiros naturais da bravura e da glória dos Vieiras e dos Vidais,
dos Dias e Camarões [(isto é, João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Hen-
rique Dias e Filipe Camarão, personagens emblemáticos da chamada Restauração
Pernambucana)], vinde sem perda de tempo alistar-vos debaixo das bandeiras da
nossa liberdade. Pais e mães de famílias, lançai mão da ocasião que se vos oferece
de aproveitar os brios de vossos filhos, mandai-os para o campo da honra, e vós os
vereis brevemente coroados pelas mãos da pátria dos mesmos louros que ganharam
os heróis de Tabocas de Guararapes.60

58 VILLALTA, 2016, p. 204.


59 Proclamação do Governo Provisório, 15 mar. 1817 apud VILLALTA, 2016, p. 204.
60 BRASIL, 1953, p. 27-28.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 271

Dirigiu também aos patriotas uma advertência, no sentido de que não de-
sonrassem aquele passado de feitos dos “avós”, malgrado essas glórias tenham sido
“em serviço de um tirano”; e destacava que o engajamento na luta pela Revolução
visava ao que podemos chamar de inovação, a um “novo ser”, definido pelo estatuto
de constituir “um povo livre”:
Mocidade de Pernambuco, não degenereis do caráter de vossos avós[;] se eles fica-
ram tão famosos e honrados na memória dos séculos pelos feitos que obraram em
serviço de um tirano, quanto mais o sereis vós, seguindo o seu exemplo na defesa
de uma causa em que só se trata de nos dar a todos um novo ser, a alta dignidade de um
povo livre. Correi, portanto, a escrever os vossos nomes no quadro dos defensores da
pátria, tomando cada um aquela arma que melhor se acomodar à sua inclinação.61

O governo provisório da Paraíba valeu-se igualmente de referências históri-


cas, apelando à Antiguidade. Ampliou o universo das imagens pretéritas, visando à
compreensão do presente e à definição do futuro, abarcando da construção do devir
em si mesma até a memória que se teria dele. Em 22 de março de 1817, conclamou:
Mocidade Paraibana, correi, voai às Bandeiras da Liberdade, do Patriotismo e
do Heroísmo. Alistai-vos e deixai vossos nomes nas páginas das histórias futuras
com o distintivo de vosso esforço. Vejam as Nações do Universo, que os netos dos
Vieiras, dos Negreiros, dos Henriques Dias e dos Camarões [(isto é, João Fernandes
Vieira, André Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Filipe Camarão, personagens
emblemáticos da chamada Restauração Pernambucana)] imitam, um dia, os heróis
da Grécia e Roma. O Novo Mundo sabe criar novos heróis.62

Nessa narrativa histórica, de tipo claramente mestra da vida, veem-se exem-


plos dos heróis do passado da América portuguesa, protagonistas da expulsão dos
holandeses. Ela, além disso, remontava àqueles exemplos dos “heróis da Grécia e
Roma”. E, ainda, destacava que, com suas ações, os revolucionários deste “Novo
Mundo” português, daqueles idos de 1817, seriam “novos heróis”, que imitariam
os da Antiguidade Clássica.
Outro exemplo de recurso à Antiguidade vê-se da parte do réu “Venâncio
Henriques de Rezende, presbítero secular, preso na cadeia da Bahia pela infausta

61 Ibidem, p. 28 (grifo nosso).


62 Ibidem, p. 49.
272 A globalização das luzes

Revolução de Pernambuco”.63 Clamando pela sua libertação, ao refutar uma das


acusações que lhe eram feitas, ele citou Aquiles, herói grego, para demonstrar a fal-
sidade das testemunhas: estas, não tendo fatos concretos contra ele, teriam imitado
Aquiles. A origem da menção feita pelo padre réu parece estar no filósofo grego
Zenão, que, ao apresentar um de seus paradoxos, procurando mostrar a falsidade
de uma tese, citou uma história de Aquiles, que se propôs a disputar uma corrida
com uma tartaruga, dando-lhe uma vantagem para assim a humilhar. Segundo
Zenão, por mais que Aquiles corresse, haveria uma distância maior entre ele e
a tartaruga; ainda que Aquiles a alcançasse, saindo-se vencedor, uma vez que o
espaço é infinito, uma nova distância se estabeleceria. Portanto, depreende-se, na
infinitude do espaço estaria o ponto de contato entre a situação das testemunhas
que depuseram contra o réu Venâncio e aquela experimentada por Aquiles – isto
é, a realidade dos fatos, que contradiria as convicções do senso comum.64
A acusação, Senhor, feita ao Suplicante é de ter ingresso nas casas dos supostos
clubes e de declamar contra a sagrada pessoa de Vossa Majestade. Eis aqui o forte
Aquiles, a que recorrem todas as testemunhas, que não têm fatos autênticos que impor, e
que é tanto mais falso quanto o Suplicante, morando sete léguas distante do Recife e sendo
pobre, e sem ascendência, não podia ser desse número: e a testemunha que jura de vista não
o podia assim asseverar a respeito da casa do Morgado no Cabo. […] o simples fato
não implica o conhecimento de tramas, pois que somente poucas vezes ele ia à casa do
Morgado, e isto em razão do seu ofício na administração dos Sacramentos. Quanto
às declamações, a conduta do Suplicante, seu comedimento em toda sua vida, são
assaz conhecidos; é, pois, tão falsa, como impossível à moral do Suplicante, seme-
lhante imputação; assim como o é também a de sedução de povos.65

Portanto, morando a sete léguas de distância, possuindo uma pertença


social distinta, Venâncio Henriques ou não estaria em proximidade física com o
que se dava em casa do morgado, ou não teria acesso às tramas lá desenvolvidas,
mesmo que estivesse no local a administrar os sacramentos. O uso de Aquiles pelo
réu Venâncio Henriques implicava uma analogia entre o vivido por ele quanto
às testemunhas e o feito pelo herói. Essa analogia sugere, de algum modo, uma

63 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CVI. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1954b, p. 23.
64 PIRES, Antônio S. T. Evolução das ideias da física. São Paulo: Livraria da Física, 2008, p. 22.
65 BRASIL, 1954b, p. 24 (grifos nossos).
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 273

possibilidade de repetição do passado no presente, o que permite conjecturar que


a narrativa tem um quê de mestra da vida. Porém, o tom da argumentação do réu
é crítico a ambas as situações, ou seja, com Aquiles e com as testemunhas. Aqui,
talvez, o apelo à História Antiga ultrapasse o caráter ornamental, vindo a tornar-se
um elemento central na argumentação-defesa que o réu faz de si mesmo.
José Carlos Mayrink da Silva Ferrão, secretário de governo de Caetano Pinto
Montenegro e, depois, do governo provisório instalado com a Revolução, em 23 de
março de 1818, em carta apresentada a Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de
Carvalho, presidente do Tribunal da Alçada instituído por d. João VI para julgar
os acusados do crime de lesa-majestade, oferece elementos para que se pense sobre
as apropriações da história em sua correlação com as identidades coletivas e seus
conflitos. Mayrink, destaque-se, era irmão de Maria Doroteia Joaquina de Seixas
Brandão, a mais famosa “Marília” de Tomás Antônio Gonzaga, o ouvidor de Vila
Rica envolvido na Inconfidência Mineira em 1788-1789. Ele fora levado 15 anos
antes a Pernambuco, como secretário de governo, por Miranda Montenegro, que
também lhe arrumara um casamento com a filha de Gervásio Pires Ferreira,66
outra personagem revolucionária.
Mayrink procura justificar sua adesão à Revolução a partir de um argumento
usado por muitos implicados no movimento em suas defesas perante a justiça: todos
teriam agido sob coação. Tendo como opções resistir e ser fuzilado, ou lançado nas
masmorras pelos revolucionários, “sem proveito, por então, da causa do soberano”,
Mayrink disse ter preferido “não escandalizar, enganá-los e espreitar o primeiro
momento de tornar inúteis os seus esforços e praticar o que cumpria a um verdadeiro
e fiel vassalo”.67 Em sua defesa, Mayrink vale-se também de uma tópica da Época
das Luzes, aquela segundo a qual o julgamento das pessoas fia-se nas aparências:
O público julga sempre das coisas pelo que exteriormente observa, nem podia
ser patente a todos o meu modo e razão de obrar. Temos, portanto, que a minha

66 MELLO, Evaldo Cabral. A outra independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo: Editora 34, 2004, p.
185-186.
67 BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Documentos Históricos: Revolução de 1817, v. CVII. Rio de Janeiro: Divisão de Obras
Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1955, p. 197.
274 A globalização das luzes

conduta anterior e posterior é que pode provar quais eram os sentimentos do meu
coração e a dura necessidade em que me via de contemporizar.68

D. João é apresentado como o “pai comum” dos seus vassalos dos quatro
continentes, enquanto ele, José Mayrink, que nasceu em Vila Rica, diz não ter
como pátria senão essa coletividade abrangida pela monarquia portuguesa, ou
seja, o que sabemos, à época, considerar-se “nação portuguesa”:
A minha pátria não são os penhascos de Vila Rica que me viram nascer, a minha
pátria, eu o digo e entendo, é o meu Governo, é a Constituição da Monarquia Por-
tuguesa, a que pertenço e a que pertenceram os meus maiores; a este corpo moral
é que eu chamo pátria, aliás seria preciso não ter senso comum e ser rapaz que briga
por pertencer aos bandos de Tróia e da Grécia.69

Sem mencionar o termo “nação”, portanto, Mayrink usa a acepção então


corrente que lhe era dada – isto é, como coletividade formada pelos súditos de um
mesmo soberano – para atestar sua fidelidade ao monarca. Sua compreensão sobre
o monarca português, ademais, mostra-se afinada com o entendimento explicitado
por d. Rodrigo de Sousa Coutinho – que fora ministro de d. João, entre 1796 e 1803
e, depois, entre 1808 e 1812, data da sua morte –, para quem dele eram vassalos os
portugueses que habitavam quatro continentes, Europa, Ásia, América e África.70
Ele explicitamente justapõe essa acepção implícita de “nação” a uma ideia de “pá-
tria” que colide com a acepção então usual – isto é, como local de nascimento – e
que, aliás, ele mostra renegar. Em defesa de sua ideia de pátria, Mayrink faz uma
remissão histórica à Grécia dos tempos homéricos, à cisão entre os “bandos de Tróia
e da Grécia”. Essa operação de apropriação da História Antiga grega, de algum
modo, permite a Mayrink reforçar o pilar de pertença à nação portuguesa, dado
pela sujeição a um mesmo monarca, o que denota uma compreensão bem afinada

68 Ibidem. Sobre o juízo referente às aparências sob o Antigo Regime, ver, dentre outros: SENNET, Richard. O declínio do homem público:
as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 53; e ELIAS, Norbert. A
sociedade de Corte. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995, p. 67. A refutação da civilidade das aparências parece ter-se convertido numa tópica no
século XVIII. Ela figura, por exemplo, em Cartas Persas, romance de Montesquieu publicado em 1721. Cf. VILLALTA, Luiz Carlos.
Robinson Crusoé e Cartas Persas: romances, viagens e devir histórico (1719-1806). In: BORGES, Célia Maia (org.). Narrativas e imagens.
Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2006, p. 102-155. Em Portugal, desde meados do século XVIII, foi frequente a crítica ao juízo feito a
partir das aparências pelo senso comum.
69 BRASIL, 1955, p. 200 (grifos nossos).
70 ALMODÓVAR, Antônio; CARDOSO, José Luís. D. Rodrigo de Souza Coutinho e administração econômica do Brasil: no
território da economia política. In: INTERNATIONAL CONGRESS ON THE ENLIGHTENMENT, 10., 25-31 jul. 1999, Du-
blin. Proceedings… Dublin, 1999, p. 2; SILVA, Andrée Mansuy Diniz. D. Rodrigo de Souza Coutinho, comte de Linhares, 1755-1822: l’homme
d’État, 1796-1812. Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2006, v. 2; e VILLALTA, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro
sob as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015, p. 144.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 275

com o que então se consagrava para a palavra “nação”, no mundo luso-brasileiro,


inclusive por parte da monarquia. Tal entendimento, frise-se, não valia para o
mundo helênico, para os dois lados em conflito na Guerra de Tróia, os quais eram
compostos por coletividades governadas por soberanos distintos. Mayrink localiza
sua pertença num “corpo moral”, que ele toma como a constituição da monarquia
portuguesa, mas que pode remeter a princípios, a tradições e a elementos culturais
compartilhados pelos membros da coletividade. Tudo isso constituiria o que ele
chama de “pátria”. Fica claro, porém, que este “corpo moral” estava cindido, e
o próprio Mayrink o reconheceu ainda no início do seu documento, no qual ele
registrou ter nascido no Brasil, ter sido secretário de governo por 14 anos, sendo
estimado como tal, constituindo esta dupla condição, razão para que os rebeldes
quisessem associá-lo ao partido da Revolução:
A triste circunstância de ser nascido no Brasil, o conhecimento que devia ter ad-
quirido dos negócios da Capitania no exercício de 14 anos de secretário, o conceito
e estimação pública que tinha merecido eram mais que bastantes motivos para os rebeldes
pretenderem associar-me ao seu partido [...].71

De todo o exposto até aqui, conclui-se que, em Pernambuco e capitanias


próximas, em 1817, se a “pátria” era a mãe comum dos “filhos”, estes já se dividiam
em “gregos” e “troianos”, almejando constituir Estados distintos.
Os textos já citados, do secretário de governo José Mayrink, dos governos
provisórios de Pernambuco e da Paraíba e, ainda, do padre Venâncio Henriques,
enfim, demonstram que os revolucionários se apropriaram de passagens da His-
tória Antiga como fontes de bons ou maus exemplos e/ou de situações análogas
às do presente. No conjunto dos textos analisados, a combinação entre tradição
e inovação prepondera, denotando um enfraquecimento das narrativas de tipo
tradicional e de tipo mestra da vida, bem como a presença de elementos e carac-
terísticas das narrativas de tipo crítico. Aos olhos dos revolucionários, se a história
era um processo, podia também ser lugar para narrativas tradicionais e mestras da
vida, trazendo exemplos a serem imitados ou refutados no presente, ou tradições
a serem respeitadas. A tradição e a imitação, porém, destaque-se, alimentavam,
ambas, rupturas e inovações.

71 BRASIL, 1955, p. 196 (grifos nossos).


276 A globalização das luzes

Considerações finais

Neste texto, procurei demonstrar que os revolucionários de 1817 apro-


priaram-se da história pregressa segundo claros sentidos políticos e estratégicos.
Obviamente, não tinham qualquer pretensão de cunho acadêmico ou científico.
Nessa situação, os fatos dos tempos passados tornaram-se argumentos para se pensar
sobre o presente e justificar ações no seu interior, tendo em vista um futuro que se
mirava como desejável. Em alguns casos, o passado, mais ou menos distante, foi
concebido como digno de imitação ou de continuidade, embora sempre envolven-
do uma inovação. Em certos aspectos, o passado deveria ser superado, enquanto
noutros, reavivado. Assim, nessas apropriações do passado, havia lugar ora para
a imitação ou para o respeito, ora para a ruptura.
As apropriações da história se articulavam a noções do que seria a história.
Por vezes, esta última foi concebida como história mestra da vida – isto é, narrativa de
fatos exemplares – ou como narrativas em que se encontravam tradições a serem
reavivadas ou recuperadas do esquecimento devido à opressão. Frequentemente,
a história foi vista igualmente como um curso de fatos. Como narrativa exemplar
ou consagradora de tradições e, também, como transcurso dos fatos, na história
se viam situações passadas análogas às do presente, a serem imitadas ou negadas,
ou ainda em que se encontravam princípios a serem seguidos. De qualquer modo,
tais situações alargavam o entendimento acerca do presente vivido, na medida
em que as similitudes configuravam tipos, quase tipos ideais, ou permanências,
ou ainda, rupturas. Percebida a identidade tipológica, seria possível descortinar
as possibilidades, não propriamente fatalidades, contidas no presente. Esses usos
combinam os tipos “moderno” e “antigo” de experiência histórica, de que falam
François Hartog, Temístocles Cezar e Valdei Lopes de Araújo. Esse painel com-
plexo, que pode parecer, num primeiro olhar, contraditório, na verdade, mostra
que as transformações nas noções de história, embora detectáveis, não eliminaram
ambiguidades e instabilidades conceituais.
Nas apropriações da História Antiga feitas pelos revolucionários de 1817,
veem-se modelos, exemplos e tradições, que poderiam ser simplesmente imita-
dos ou, inversamente, que deveriam ser negados. As imitações ultrapassavam
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 277

os exemplos por conduzirem a uma maior perfeição. Já nas refutações, ao final


da argumentação, o princípio consagrado era superior ao identificado na An-
tiguidade.
Quando se apropriaram das revoluções do século XVIII e inícios do
século XIX, os revolucionários de 1817 distinguiam-se dos advogados que os
defenderam perante o Tribunal da Alçada instituído para julgá-los por d. João
VI, como foi o caso de Aragão e Vasconcelos. Distinguiam-se também dos con-
trarrevolucionários ou realistas. Advogados e contrarrevolucionários, de modo
profuso, discorreram sobre as revoluções em geral e, em especial, sobre as revo-
luções americana, francesa e haitiana. Os revolucionários de 1817, inversamente,
pareceram furtar-se a fazê-lo, ao menos em documentos de caráter público;
quando as mencionaram de algum modo, como se vê no caso da “Proclamação
do Governo Provisório aos habitantes de Pernambuco”, fizeram-no de modo vago
ou impreciso: com isso, ao falarem de “sucessos da Europa”, não se sabe se estão
a referir-se propriamente à Revolução Francesa ou à expansão napoleônica. Esse
silêncio talvez se explique pelas ambiguidades dos revolucionários de 1817 e/ou
pelo fato de que, encontrando-se já na segunda década do século XIX, em plena
restauração dos Bourbon, eram conhecedores e, talvez, críticos dos “excessos
revolucionários”, tais como o “terror” ou a insurgência das camadas subalter-
nas. Outra explicação, ainda, poderia ser a necessidade de contemporizar com
os temores presentes no então norte do Reino do Brasil, mormente nas camadas
dominantes da sociedade.
Essa perspectiva mais conservadora e aristocrática talvez se coadunasse à ên-
fase concedida pelos revolucionários à Restauração Pernambucana do século XVII
e, igualmente, à consagração que conferiram ao termo “Restauração”, evidenciada
no nome dado à gráfica de onde saíram impressos do governo provisório. A aristo-
cracia local, ao longo do tempo, com efeito, cultivou enormemente a memória da
Restauração Pernambucana e seu próprio protagonismo no sucesso obtido contra
os holandeses. Convém não se esquecer que o advogado Aragão e Vasconcelos,
em sua defesa dos 317 réus acusados de lesa-majestade por seu envolvimento na
Revolução de 1817, sublinhou que a adesão dos principais da terra ao movimento
deu-se por coação da massa. Na perspectiva do citado advogado, a ânsia aristo-
crática dos principais da terra só poderia ser satisfeita numa monarquia, não em
278 A globalização das luzes

um governo republicano como o instituído em 6 de março de 1817.72 Essa mesma


ânsia aristocrática pela honra e distinção, ademais, pode ter sido um dos pontos que
minou o êxito dos revolucionários. Além disso, travou suas ações, juntamente com
o medo do Haiti e a falta de unanimidade sobre a questão escrava. Tais elementos,
o que não é fortuito, foram usados nos esforços de persuasão protagonizados pelos
contrarrevolucionários, isto é, pelos realistas, pró-d. João VI.73
Numa outra leitura, entretanto, as apropriações das lutas feitas pelos revo-
lucionários em 1817 sobre os embates contra os holandeses no século XVII talvez
tenham sido feitas em chave oposta àquela delineada acima. Desse modo, elas po-
deriam ser interpretadas em correlação com a antinomia entre honra e igualdade,
entre monarquia e república, tal como estabelece Montesquieu: em outros termos,
os revolucionários de 1817 estariam a defender a república. Com efeito, para os
revolucionários, nos fatos do século XVII, exercitou-se a soberania da pátria per-
nambucana, do mesmo modo que ela se efetivava em 1817 e conduzia ao governo
provisório, ele próprio tratado como encarnação da soberania popular e da pátria.
Em que medida essa noção de soberania não teria como base imprescindível uma
ideia de igualdade, a igualdade jurídica, inerente à ordem constitucional?
Essas duas perspectivas distintas sobre os possíveis sentidos das apropriações
feitas pelos revolucionários de 1817 sobre a Restauração Pernambucana do século
XVII, enfim, fazem-nos pensar sobre a liberdade e sobre os processos históricos,
sobre a dialética entre mudanças e permanências, sobre os ardis da opressão e as
travas que parecem marcar as histórias de certos povos.
Stendhal, o grande literato francês, ao se pronunciar sobre a Revolução de
1817 em primeiro de junho daquele ano, estabelecendo analogias entre o sucedido
havia pouco no Brasil e o que se passara antes na França (neste caso, sob a Res-
tauração dos Bourbon), permite-nos vislumbrar a dialética entre permanências
e mudanças. De suas palavras, ressalta-se a ideia de que a liberdade só pode ser
aniquilada se houver a destruição do último que se bata por ela e, ainda, que sua

72 VILLALTA, Luiz Carlos. Leituras e apropriações da História na defesa dos acusados de lesa-majestade pela participação na
Revolução de 1817. Artcultura, Uberlândia, v. 24 n. 44, 2022.
73 Idem, 2019.
Os revolucionários de 1817, suas representações e apropriações da história 279

inexorabilidade só pode ser detida com concessões “feitas a tempo”, situação de


que seria exemplo Luís XVIII, na França:
A admirável insurreição do Brasil, quase a maior coisa que poderia acontecer,
traz-me as seguintes ideias: 1–A liberdade é como a peste. Enquanto não se jogar
ao mar o último pestífero, nada de definitivo foi feito. 2–O único remédio contra
a liberdade são as concessões. Mas é preciso empregar o remédio a tempo: vede
Luís XVIII. Não há Lordes ou névoa no Brasil.74

Em contradição com o que afirmava Stendhal, pode-se aventar que, entre


os revolucionários de 1817, restassem lordes e névoa. De qualquer forma, a Revo-
lução de 1817, sendo concebida como “admirável”, ou, inversamente, como palco
de “Lordes” e de “névoa”, abrigando contradições e conduzindo-nos a pensar
sobre suas ambiguidades, constitui um movimento que nos abre a janela para que
pensemos sobre a liberdade esgarçando suas possibilidades semânticas e, ao mesmo
tempo, suas variações de substância na história.

R eferências bibliográficas

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v. CI. Rio de Janeiro: Divisão de Obras Raras e Publicações/Biblioteca Nacional, 1953.

74 STENDHAL apud MOURÃO, Gonçalo. A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 100. No original: “1er Juin [1817] l. L'insurrection admirable du Br[ésil] 2, presque la plus
grande chose qui pût arriver, me donne les idées suivantes: 1. La liberté est comme la peste. Tant qu'on n'a pas jeté à la mer le dernier
pestiféré, l'on n'a rien fait. 2. Le seul remède contre la liberté c’est les concessions. Mais il faut employer le remède à temps voyez Louis
XVIII. Il n'y a ni lords, ni brouillards, au Brésil”. STENDHAL. Mélanges intimes et Marginalia II. Établissement du texte et préfaces par
Henri Martineau. Paris: Le Divan, 1936.
280 A globalização das luzes

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Luzes e heróis românticos em
Gonzaga, ou a R evolução de Minas
(1867), de Castro A lves
Marie-Noëlle Ciccia

Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871) é, como bem se sabe, o


grande poeta condoreiro, cuja produção literária se distingue pela defesa de ideais
igualitários herdados das grandes teorias iluministas, principalmente a luta pela
abolição da escravatura no Brasil. Em plena época romântica, o que o pensamento
das Luzes teve para lhe dizer ou para lhe ensinar sobre a sociedade do seu tempo?
Na sua peça Gonzaga, ou a Revolução de Minas1 (1867), obra caracterizada pelo seu
ultrarromantismo, em que medida será possível observar traços de ideais ilumi-
nistas? E será que esses traços, caso existam, permitem afirmar que alguns desses
ideais são reativados pelo poeta e dramaturgo?

1 Edição utilizada: ALVES, Castro. Gonzaga ou a Revolução de Minas. In: CRUZ, Duarte Ivo (org.). Teatro romântico brasileiro.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 389-495.
284 A globalização das luzes

Esse drama já foi bastante – e bem – analisado e comentado pela crítica lite-
rária do ponto de vista das suas vertentes ultrarromânticas. Não obstante, salvo erro,
ainda não foi avaliado a partir da noção de reativação do pensamento iluminista.
Mas, será esta observação suficiente para podermos afirmar que Castro
Alves solicita esses ideais como herança das Luzes setecentistas? Poder-se-ia falar
em Luzes “ativas” em pleno romantismo do século XIX? Ou será que apenas po-
demos verificar a exaltação de alguns conceitos, muitos deles “republicanos”, sem a
vontade explícita de o dramaturgo se reivindicar tributário dos filósofos ilustrados?
Para mobilizar e reativar as Luzes, bastará aludir confusamente a ideais políticos
ou referir-se inequivocadamente a eles? Jean-Pierre Schandeler, pesquisador francês
do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), observa que, para se
falar em “Luzes ativas”, é preciso que os elementos evidenciados como referentes
ao pensamento das Luzes tenham “efeitos estruturantes para influir na situação”.2
Caso contrário, só se poderá averiguar que apenas existe uma similaridade de temas
entre certos ideais das Luzes e os fatos observados. Nem se pode considerar que a
“reativação” seja sinônimo de herança, recepção, leitura ou interpretação das Luzes,
pois essas são noções demasiado “passivas”: para reativar as Luzes, revitalizá-las,
é indispensável um profundo envolvimento na luta. Pode-se afirmar, então, que
Castro Alves se apossou do pensamento das Luzes (de que pensamento, aliás?) na
sua luta pela abolição da escravatura? Ou será que a valorização, no seu drama,
de vários ideais iluministas não passa de um processo de sublimação romântica,
de exaltação, de reencantamento?
Numa obra intitulada Pourquoi se référer au passé?, Claudia Moatti e Michèle
Riot-Sarcey3 observam quatro modalidades de referência a um passado histórico:
o exemplo ou “modelo”; o modo genealógico (a inscrição numa tradição); a legiti-
mação simbólica da ação pela instrumentalização e/ou manipulação do passado
com fins de propaganda ou desinformação; e, enfim, o modo referencial. Nessa
última modalidade, as noções de origem e gérmen exprimem uma relação dinâ-
mica com o passado, “um passado sempre inacabado, dotado de uma possibilidade

2 Em uma palestra na Université Paul-Valéry–Montpellier 3, em 15 de março de 2018.


3 MOATTI, Claudia; RIOT-SARCEY, Michèle (dir.). Pourquoi se référer au passé. Ivry-sur-Seyne: Les Editions de l’Atelier, 2018,
p. 11.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 285

infinda de atualização, e que constitui, no presente, uma fonte de ação”.4 Para lá


da realidade histórica, essas duas noções de “gérmen” e de “origem” permitem
pensar a forma como o passado pode acontecer no presente, fora do conceito de
continuidade histórica. A referência permite reatualizar o passado, sem interrogar
as suas manifestações mais recorrentes, sem exigir identidade dos acontecimentos
nem interpretação racional, mas, sim, acender “faísca das experiências inacabadas
ou esquecidas”.5
Será que o projeto dramático de Castro Alves se pode categorizar como
“referência” ao passado, como capaz de avivar essa “faísca das experiências inaca-
badas”? Na verdade, começar com perguntas já é encetar um caminho em direção
a uma resposta delineada a priori, ainda que confusamente. Antes de formular tantas
interrogações, será preciso começar pela análise da peça e dos dados relacionáveis
com as Luzes, se ainda existem no texto. Uma contextualização da peça e uma
rápida descrição dela permitirão salientar quais são os temas fulcrais que alicerçam
o drama: a independência da nação brasileira e a abolição da escravatura. Por mais
ilustrativos que sejam do pensamento iluminista, poder-se-á concluir que Castro
Alves os reativou no seu drama como “referências”?
Do ponto de vista da estrutura dramática, a peça em quatro atos afasta-se
dos modelos teatrais setecentistas clássicos. O respeito aristotélico pelas unidades
de tempo, lugar e ação é aqui uma teoria dramática ultrapassada. Os aconte-
cimentos de uma duração de três anos (1789-1792) têm lugar em dois espaços
distintos, Minas e Rio de Janeiro, e nutrem uma ação complexa, com esquema
actancial intricado.
A peça foi escrita na altura do novo liberalismo da década de 1860 e publica-
da em 1867, quando o Brasil estava envolvido na Guerra do Paraguai (1865-1870),
ou seja, num século que viu a subida dos nacionalismos. Na altura,

4 Ibidem (tradução nossa).


5 Ibidem, p. 14 (tradução nossa). Desenvolvendo essa ideia, as autoras acrescentam: “Si les promesses avaient autrefois éveillé les espoirs,
ces espoirs non réalisés sont restés captifs des souvenirs reconstruits. Ils subsistent dans les mémoires souterraines d’un ‘collectif’, à la
fois rêvés et perdus. […] Si l’analyste est attentif aux références d’‘hier’, lesquelles se glissent en incise dans l’actualité, il découvre alors
les possibles, masqués jusque-là par les interprétations rationnelles. […] La référence ne suppose ni une identité, ni une analogie entre
passé et présent; elle résulte d’une association libre, évidente entre le présent et le passé, appréhendé à rebours et toujours fragmentaire;
elle ne s’inscrit pas non plus dans un processus continu mais surgit dans le présent de l’événement”. Ibidem, p. 14-15.
286 A globalização das luzes

o romantismo brasileiro previa o que havia de mais particular a cada nação,


[…] construindo uma identidade em oposição à metrópole. […] [N]o Brasil, o
romantismo não foi apenas um projeto estético, mas antes um movimento cultural
e político, profundamente ligado ao nacionalismo, ao desejo de independência
cultural e à monarquia.6

Com a exuberância dos seus 20 anos,7 Castro Alves mescla os dois temas
acima citados, a independência e a abolição da escravatura, ambas intimamente
ligadas a um forte patriotismo, com um terceiro, a história de amor infeliz entre
Gonzaga e Marília, mergulhando o conjunto numa atmosfera eminentemente
religiosa. A vertente cristã da peça8 evidencia a dicotomia maniqueísta entre os
maus e os virtuosos: os primeiros são escravocratas, corruptos, reles, enquanto os
segundos exibem uma integridade moral inquestionável (sejam escravos ou membros
da elite aristocrática), lembrando uma postura crítica.
Quais são as referências explícitas às Luzes nesta peça? Na verdade, muito
poucas. Não passam de alusões que até se poderiam considerar como clichês. A
primeira é a fala do padre Carlos:
PADRE CARLOS: Meus senhores, nós chegamos à grande época da regeneração
e da liberdade. Além do Atlântico há um povo livre, grande pela força, sublime
pelo pensamento, divino pela liberdade, que, através dos mares, nos estende a
mão. É a França. A Revolução Francesa protege a revolução de Minas, esta é
filha daquela, ou antes, ambas são filhas de Deus. Quando um povo levanta-se
do cativeiro, Deus do topo dos Alpes ou do cimo dos Andes empresta-lhe uma
espada, como dava as leis no cimo do Sinai. Pois bem, peçamos a este povo irmão
auxílio e caminhemos.

GONZAGA: Ainda bem. No exterior temos a França e a União Americana, elas


nos protegerão, ou pelo menos esta ideia dará forças aos nossos companheiros.9

A segunda referência tênue às Luzes francesas aparece no fim de uma tirada


em que Gonzaga evoca o calvário do Cristo, terminando assim:

6 SCHWARCZ, Lilia; STARLING, Heloísa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 283 e 288.
7 Carta de Machado de Assis a José de Alencar: “Esta exuberância, que V. Ex. com justa razão atribui à idade, concordo que o poeta
há-de reprimi-la com os anos. Então, conseguirá separar completamente a língua lírica da língua dramática”. ALVES, Castro. Gonzaga
ou a Revolução de Minas. Rio de Janeiro: Livraria Cruz Coutinho, 1875, p. XV.
8 GALINDO, Cláudia Sabbag Ozawa. Análise do drama romântico “Gonzaga ou a Revolução de Minas”, de Castro Alves. Revista
Mulheres e Literatura, v. 10, 2006.
9 ALVES, 2008, ato I, cena 2, p. 398.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 287

GONZAGA: Mas quando o último hálito do Deus vivo rasgou a cortina do


templo, quando na luz de seus olhos eclipsou-se o sol do universo, então o anjo da
igualdade, agitando as asas, ensopadas em sangue, sacudiu o verbo da liberdade
aos quatro ventos do céu.10

Com toda a probabilidade, Castro Alves tem em mente a divisa republicana


da França: “Liberté, Egalité, Fraternité”. Mas não só apenas dois desses termos
estão aqui referenciados, como estão inseridos num contexto religioso que pouco
tem a ver com a simbólica laica que lhes é acostumadamente atribuída, de forma
que até se pode dizer que, se não há incompreensão, pelo menos há adulteração
desses conceitos.
A terceira referência à França e ao contexto revolucionário é uma alusão à
Marselhesa, o hino nacional francês, composto por Rouget de l’Isle:
TIRADENTES: Bem; mas a nossa verdadeira noiva, Cláudio, é esta pobre terra,
que é nossa Pátria.

CLÁUDIO: Não implica! O coração a uma, à outra o abraço. É puro Rouget de


l’Isle, meus senhores, pura Marselhesa…11

Castro Alves não desenvolve essas poucas referências que já, na altura, pa-
recem ser lugares-comuns. O dramaturgo, na verdade, não domina a história da
Revolução Francesa, pois comete o anacronismo de dar existência à Marselhesa em
1789, enquanto foi criada em 1792 e só adotada como hino nacional em 1795. Além
disso, já sabemos que foi a revolução americana e não a francesa que motivou os
conjurados mineiros, em 1788, antes mesmo da tomada da Bastilha. Atestam-no
as cartas de Vendek a Jefferson:
Sou brasileiro e sabeis que a minha desgraçada pátria geme em atroz escravidão,
que se torna todos os dias mais insuportável depois da vossa gloriosa independência,
pois que os bárbaros portugueses nada poupam para tornar-nos desgraçados com
medo que vos sigamos as pisadas, e como sabemos que estes usurpadores, contra
a lei da natureza e da humanidade, não cuidam senão de oprimir-nos, estamos
decididos a seguir o admirável exemplo que acabais de dar-nos e, por conseguinte,

10 Ibidem, ato 1, cena 3, p. 402-403.


11 Ibidem, ato II, cena 1, p. 417.
288 A globalização das luzes

quebrar as nossas cadeias e fazer reviver a nossa liberdade, que está de todo morta
e oprimida pela força, que é o único direito que os europeus têm sobre a América.12

Além dessas referências, nas raríssimas vezes em que surge a questão da


“razão” iluminista como motor de progresso e de ação, ela fica logo mergulhada
num oceano de sentimentalismo que lhe invalida a força:
GONZAGA (Adiantando-se):— Um momento, senhores, não se dirá que os homens
da razão entregaram-se ao deus do acaso. Ah! meus amigos, quando há famílias
que gemem, interesses que clamam, dores que podemos curar, lágrimas que pode-
mos enxugar, e tudo isto com uma escolha refletida, com um pensamento nobre,
iremos arriscar na cegueira de um papel como pródigos, responsabilidades que nos
pertencem, mas como ladrões, dores que não são nossas?13

O herói romântico, na realidade, encontra-se submergido nos afetos, na


percepção física da dor e do sofrimento alheio. Luta com o coração para tentar
aliviar as amarguras e misérias humanas, não filosófica, mas sentimentalmente,
compartilhando as angústias e tormentos dos seus conterrâneos. Luís, o escravo
forro, que se juntou à conspiração, resume muito bem a forma como a ideologia é
condicionada pelo pathos: “E nós também somos brasileiros, e nós também somos
revolucionários, nós também somos mártires”.14
O ritmo ternário e a anáfora desta frase pesam de forma particular na última
palavra. O sentimento de nacionalidade implica a revolta contra o sistema colonial
que, por sua vez, implica o sacrifício crístico.
Para apreciar as referências a noções diretamente ligadas às Luzes, a conta-
gem rápida de certas ocorrências lexicais permite avaliar os conceitos trabalhados
por Castro Alves. Relativamente às noções políticas, considerando o seguinte dia-
grama, repara-se, na escolha lexical do dramaturgo, que a sua obsessão é a ideia
de liberdade (40 ocorrências) que se obtém pela luta, pela revolução.

12 Segunda Carta de José Joaquim da Maia (Vendek) a Thomas Jefferson, Montpellier, França, 21-11-1786. Disponível em: http://
www.iheal.univ-paris3.fr/sites/www.iheal.univ-paris3.fr/files/S2%20DOC1%20-%20Correspondance%20Maia-Jefferson,%20
1786-1787.pdf.
13 ALVES, 2008, ato III, cena 12, p. 456.
14 Ibidem, p. 463.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 289

Gráfico 1 - Ocorrências Léxico Liberdade/Despotismo

Mas a liberdade está raramente associada à noção de independência


(quatro ocorrências). De fato, é realçada aqui a finalidade humanista (a liberdade
individual dos homens), motor da revolução, enquanto o léxico político específico
(tirania, despotismo…) parece menos familiar ao poeta, possivelmente porque, em
1867, a independência nacional já é uma realidade, um dado integrado pela nação
brasileira, sendo assim ultrapassado o debate sobre a questão. Aliás, já no final
do século XVIII, a concepção de um Brasil desligado politicamente da metrópole
parecia uma evidência natural, confirmada, por exemplo, na troca de correspon-
dência entre Jefferson e José Joaquim Maia e Barbalho, natural do Rio de Janeiro:
Os portugueses no Brasil são pouco numerosos, em sua maior parte casados ali e
esquecidos de sua mãe-pátria… e então dispostos a se tornar independentes (…). Há
20 mil homens nas tropas regulares; originalmente eles eram portugueses, que já
morreram e foram substituídos por nativos que constituem, presentemente, o grosso
das forças e ficarão do lado do país em que nasceram. […] Os [homens] de letras
são os mais inclinados à revolução […]. Na verdade, em se tratando de revolução
há um só pensamento no país.15

Essa mesma imprecisão no uso do vocabulário aparece quando se trata de


qualificar o território como entidade política, como se depara nesse diagrama:

15 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978, p. 100.
290 A globalização das luzes

Gráfico 2 - Ocorrências Léxico Pátria/Colônia

A noção de “pátria” (ligada ao afeto)16 é, de longe, a mais utilizada. A


referência à “terra brasileira”, menos ativa do que a “pátria”, pode indicar que é
dado mais valor ao sentimento de pertença a uma comunidade do que à própria
comunidade. De novo, os termos “políticos”, providos de menor carga sentimental
(nação, república, país), obtêm um resultado muito mais fraco.

Em relação à expressão do sentimento, é de salientar o resultado importante


da noção de desgraça, ligada a uma espécie de fatalidade (palavra encontrada três
vezes no texto).

Gráfico 3 - Ocorrências Léxico Sentimentos

16 Definição da palavra “pátria” no dicionário Aulete Digital: “Nação em relação à qual se desenvolve sentimento de pertencimento
e ligação afetiva”.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 291

O adjetivo “pobre” é regularmente usado como um sinônimo eufemizado


de “desgraçado”, que se distingue do significado de “desesperado” pela sua pas-
sividade. O desesperado observa ativamente a sua situação, mas considera-a sem
solução; o desgraçado lamenta-se da fatalidade que o atinge e contra a qual não
tem poder nenhum. E essa postura acarreta um estado de doença psíquica. Aliás, é
de sublinhar as numerosas ocorrências do campo lexical ligado ao adjetivo “louco”.
Esses estados de espírito associam a busca da liberdade à vingança, uma
reação humana que, longe de ser fria e calmamente pensada, também é do do-
mínio do instinto.
Quanto ao léxico ligado a categorias humanas, as ocorrências relativas à
escravidão são, evidentemente, as mais numerosas:

Gráfico 4 - Ocorrências Léxico Categorias humanas

Como se deduz dessas poucas ocorrências lexicais, Castro Alves não se po-
siciona como pensador da Inconfidência e até parece que poucos conhecimentos
precisos tem da conjuração e das suas fontes teóricas e ideológicas, o que não chega
a surpreender, porque à época começavam a ser publicados na imprensa docu-
mentos sobre o movimento. O seu interesse é o homem, o homem cativo, o homem
do povo perseguido por um poder ilegítimo porque não “natural”, e que deveria
usufruir uma total liberdade, tanto em nível pessoal como em nível do território
em que vive. Assim, parece exprimir-se Castro Alves pela boca de Cláudio Manuel
da Costa, frisando que a independência é da ordem da natureza:
292 A globalização das luzes

Ah, senhores da metrópole, ides enfim saber que este chão é nosso, que a América
é dos Americanos, como o céu é da ave, como a espingarda é da pólvora.17

Podemos, com certeza, ligar essa constatação à filosofia rousseauista, em


particular à obra Le contrat social, mas, se é provável que Castro Alves a tenha lido,
nenhuma referência explícita a essa obra nem ao seu autor aparece no texto. A
Revolução, que serve de ideal às suas personagens, enraíza-se no dogma cristão,
assim como o sublinha o padre Carlos: “Eu vim quebrar os ferros a todos os cativos
e eles serão quebrados”.18 Mais uma vez se pode reparar que a independência é
tida como “natural”, porque ditada por uma afirmação que tem ênfase bíblica.
Esse breve – e com certeza incompleto – panorama de certas ocorrências
lexicais revela, de fato, que, se Castro Alves não pretende reativar o pensamento
iluminista, pelo menos já o integrou como “referência” no próprio pensamento.
À maneira de Victor Hugo, que admirava, utiliza-se de um evento e de noções
filosóficas familiares como também de acontecimentos ou referências históricas,
adaptando-as às suas próprias motivações político-sociais, perante as realidades do
seu tempo. Assim, a questão da defesa da nação contra a metrópole está claramente
verbalizada pelos inconfidentes:
CLÁUDIO: Eu creio que só temos a atacar. Já basta de ver cortadas todas as aspira-
ções dos Brasileiros. Cada um tem uma ofensa a vingar. Onde vedes, meus senhores,
eu tenho assistido a mil desgraças em minha família. Quando o coração de um
Brasileiro bate, há uma mão de ferro que lhe estanca as pulsações — é a metrópole.

ALVARENGA: Quando um braço Brasileiro vai pegar o fruto de seu trabalho, há


uma voz que lhe diz: — é meu. É ainda a metrópole.

PADRE CARLOS: Quando a plebe brasileira quer empolgar um punhado de


instrução, há um sopro mau que lhe apaga a luz. — É a metrópole.

GONZAGA: Sim! Quando o escravo quer ser livre, quando o trabalhador quer
ser proprietário, quando o colono quer ter direitos, quando a cabeça quer pensar,
quando o coração quer sentir, quando o povo quer ter vontade, há um fantasma que
lhe diz: Loucura, mil vezes loucura! O escravo tem o azorrague, o trabalhador o

17 ALVES, 2008, ato I, cena 2, p. 396.


18 Ibidem.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 293

imposto, o colono a lei, a inteligência, o silêncio, o coração a morte, e o povo trevas.


É a Metrópole! É sempre a Metrópole. E agora, senhores, é preciso que isto acabe.19

O vocabulário associa noções de filosofia iluminista (liberdade, direitos


humanos, pensamento, razão) com a ultrassensibilidade romântica (o coração, a
piedade, a morte…), ou seja, ideias objetivas associadas a julgamentos de valores,
considerando que o sistema colonial (a metrópole), tal como funciona, emperra o
progresso, a liberdade dos povos. Na realidade, o anticolonialismo não foi unani-
memente partilhado pelos filósofos das Luzes,20 mas sabe-se que a Histoire des deux
Indes [A História Filosófica e Política dos Estabelecimentos e do Comércio Europeus nas Duas
Índias] do abade Raynal, em particular na sua terceira versão, consideravelmente
corrigida e ampliada por Diderot, circulou no Brasil, talvez até mais que a Enci-
clopédia, produzindo decerto tomadas de consciência entre os letrados. 21 De fato,
não se faz nenhuma alusão direta a essa obra na peça; contudo, a independência,
tal como a dos Estados Unidos, é tida como sinônimo de progresso, pois, como
afirma Gonzaga: “É horrível o domínio de um povo sobre outro”.22 Note-se de
novo a associação entre um julgamento de valor moral (“horrível”) e a noção de
domínio, ligada a um conceito político e filosófico, ou seja, a associação do senti-
mento e da objetividade conceitual. Também em filigrana evidencia-se a dicotomia
natural entre o povo brasileiro e o português; portanto, a inconveniência natural
da dominação deste sobre aquele. Aliás, o texto da Histoire des deux Indes não deixa
sombra de dúvida a esse respeito: “La nature parle plus haut que la philosophie et
que l’intérêt. […] Partout on bénira le nom du héros qui aura rétabli les droits de
l’espèce humaine”.23

19 Ibidem, ato 1, cena 2, p. 397.


20 ROSAT, Jean-Jacques. Quand les Lumières radicales appelaient à la révolte anticoloniale. Diderot et l’Histoire des deux Indes. Agone,
2017, v. 61, n. 1, 2017, p. 45.
21 O abade de Raynal terá sido muito conciliador com a escravatura no Brasil. “Não se trata de mero acaso, o fato de terem sido
as páginas consagradas aos Estado Unidos, e não as sobre a América portuguesa, as que apareceram identificadas nas bibliotecas dos
inconfidentes e imputados conspiradores brasílicos do final do século XVIII...”. FURTADO, Júnia Ferreira; MONTEIRO, Nuno
Gonçalo. Os Brasis na Histoire des Deux Indes do abade Raynal. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, set./dez. 2016, p. 773.
22 ALVES, 2008, ato 1, cena 2, p. 397.
23 Apud ROSAT, op. cit., p. 46.
294 A globalização das luzes

Esta reflexão permite abordar o aspecto mais importante da peça de Castro


Alves: a luta pela abolição.24 O “grupo eclético”25 que fomentou a Conjuração de
Minas e representado na peça com personagens de diversas categorias sociais,
condições de vida, profissões e posses, tinha motivações ambíguas relativamente
à escravatura,26 como explica o professor Villalta; além disso: “Perto da virada
do século XVIII para o XIX, a Inconfidência Mineira trazia o cheiro dos velhos
motins”,27 mais voltados contra a tirania econômica portuguesa do que contra o
domínio político português. Assim, como salienta Kenneth Maxwell, “A ênfase
fortemente regionalista dos inconfidentes inclinava-se, às vezes, para o nacionalismo
econômico”,28 em particular nos pronunciamentos de Tiradentes, o que confirma
seu papel de menor relevo na peça: Castro Alves não faz dele um herói descabe-
lado, barbudo e mártir, tal como será depois mitificado pela historiografia, mas
um defensor dos interesses econômicos de Minas. Profundamente republicano e
afastado da elite intelectual do Rio de Janeiro, Castro Alves promove a Inconfidên-
cia Mineira como um verdadeiro movimento de subversão, propulsor dos ideais
republicanos, desprovendo as suas personagens de valores de classe e atribuindo-lhes
preocupações ligadas à condição das camadas populares que, na realidade, não
motivaram, na maior parte dos casos, a rebelião. A exaltação ultrarromântica de
Castro Alves faz com que seus conjurados estejam totalmente isentos de qualquer
culpa de delito, só demonstrando motivações sublimadas.
Para tratar da questão abolicionista, Castro Alves introduz no elenco a
personagem heroica do escravo de porte e conduta nobre, movido pelos mais ele-
vados sentimentos humanos, capaz de entregar a própria vida por amor à filha29 e

24 “Primeiramente, temos o fio do tramar da Inconfidência. Já Prado (1996) descrevia esse fio como o mais frágil dos três. A conju-
ração mineira é delineada como um movimento romanesco e idealista, sem pontos de apoio com a realidade.” BOTTON, Flávio. A
Inconfidência Mineira: literatura e história em dois tempos. Anuário de Literatura, v. 14, n. 1, 2009, p. 40.
25 SCHWARCZ; STARLING, op. cit., p. 142.
26 “A maior parte dos conjurados mineiros encontrava-se enredada de algum modo com o contrabando de ouro e dos diamantes,
burlava o fisco e zombava da autoridade dos funcionários do governador. […] Mas quem se envolveu com a Conjuração Mineira
também punha ênfase na diversificação das atividades econômicas e considerava a possibilidade de autossuficiência de Minas.”. Ibidem.
27 VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasis. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 54.
28 MAXWELL, op. cit., p. 153.
29 “Luís: Oh, Santo Deus! Ter uma criancinha, pequena, risonha, gordinha, que chora tanto, que faz a gente rir, que nos trepa nos
joelhos, que nos puxa a barba, que corre nuazinha para nos tomar a enxada com que não pode, que nos conta mil tolices, que ri, que
salta até fazer brotar a alegria na cara e a felicidade na lama… para um dia o senhor arrebatá-la, arrancá-la do meio das veias do
coração…”. ALVES, 2008, p. 393-394.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 295

à pátria, manifestando honestidade e fidelidade sacrificial,30 ultrapassando até as


qualidades naturais do dono.31 Assim, no desenlace da peça:
GONZAGA — Não, espera-me aqui o amor de Maria, além a glória e o céu... Luiz,
meu velho amigo, adeus!... venha o último abraço, meu companheiro de infância...
meu companheiro de desgraça... Adeus!...

LUIZ — Não, senhor, a ordem deve ser para todos os presos... Eu que o apanhei
no berço, só o largarei no túmulo... Minha senhora, ele terá um amigo junto do seu
leito de agonia, ou ao pé de seu cadafalso. Adeus... minha senhora.32

Machado de Assis sublinha a “auréola do martírio” que Castro Alves ex-


plorou para estimular a piedade do leitor e o valor dessa luta pela liberdade, que
a justiça histórica reabilitou. Numa carta em resposta a José de Alencar, depois
de dedicar algumas palavras de louvor a todas as personagens, acaba com um
comentário de grande justeza e humanidade, relativo ao escravo Luís, que José de
Alencar não comentou:
Eu não podia, por exemplo, deixar de mencionar aqui a figura do preto Luís. Em
uma conspiração para a liberdade, era justo aventar a ideia da abolição. Luís repre-
senta o elemento escravo. Contudo o Sr. Castro Alves não lhe deu exclusivamente
a paixão da liberdade. Achou mais dramático pôr naquele coração os desesperos
do amor paterno. Quis tornar mais odiosa a situação do escravo pela luta entre a
natureza e o fato social, entre a lei e o coração. Luís espera da revolução, antes da
liberdade, a restituição da filha; é a primeira afirmação da personalidade humana.33

Castro Alves pode ter herdado a sua fibra abolicionista através dos textos
de Victor Hugo, grande leitor de Montesquieu, Diderot, Condorcet e muitos
outros pensadores das Luzes, que permitiram uma tomada de consciência do
valor humano na América então colonial: “là comme ailleurs les Lumières ont
bien été libératrices”.34 Em meados do século XIX, é já quase clichê reconhecer
o princípio fundamental da igualdade entre os homens, princípio eminentemente

30 GALINDO, op. cit.


31 Tema já conhecido desde Beaumarchais, Le barbier de Séville (ato 1, cena 2): “Aux vertus qu’on exige dans un domestique, votre
excellente connaît-elle beaucoup de maîtres qui fusent dignes d’être valets?”.
32 ALVES, 2008, ato IV, cena 13, p. 493.
33 Carta do Ilm. Sr. Machado de Assis, em resposta ao Exm. Sr. Conselheiro José de Alencar. ALVES, 1875, p. XVIII.
34 ERHARD, Jean. Lumières et esclavage: l’esclavage colonial et l’opinion publique en France au XVIIIe siècle. Bruxelles: André
Versaille, 2008.
296 A globalização das luzes

desenvolvido durante as Luzes, como, por exemplo, no artigo “Esclavage”, redigido


por Jaucourt, na Enciclopédia de Diderot e d’Alembert:
Les puissances chrétiennes ayant fait des conquêtes dans ces pays où elles ont cru
qu’il leur était avantageux d’avoir des esclaves, ont permis d’en acheter et d’en
vendre, et ont oublié les principes de la Nature et du Christianisme, qui rendent
tous les hommes égaux.35

A demonstração de Jaucourt sobre a escravatura carece, no entanto, de


humanidade, ao contrário da expressividade romântica de Castro Alves. Jaucourt
observa friamente, demonstra e comprova a irrelevância da escravidão com os
argumentos da razão, do direito, da lógica, da lei, limitando palavras de compai-
xão. Numa tendência rigorosamente oposta a essa do ponto de vista do tom, mas
próxima do ideal exprimido, a fala do escravo Luís, de acentos patéticos, proclama
que a colonização levou à aculturação e que, assim sendo, o homem já perdeu a
sua humanidade. Um homem de pele preta é, diz ele, “alguma coisa que está entre
o cão e o cavalo”:36
LUÍS: Eu não sei o que custei; sinto o bem que vossemecê me deu; quem é branco,
quem é feliz, não pode compreender esta palavra – liberdade. Não passa de uma
bonita coisa, mas para nós, não. Sabeis o que ela é para o pobre cativo? É ouvir
pela madrugada o canto dos passarinhos de Deus sem o canto do chicote do fei-
tor – é, quando o Sol tine no pino do meio-dia, não sentir o fogo lavrar a pele nos
canaviais, é à noite, em vez da aguardente, que mata a vergonha, beber o ar puro
da família, que mata o vício.37

O discurso é destinado a atingir o coração do receptor graças a ingredientes


eficazes: uma retórica metaforizante (“o canto do chicote”, “o ar puro da família
que mata o vício”), uma construção anafórica (“quem é”, “É ouvir…”), o uso de
um léxico que junta a abstração à trivialidade…
Mas essa louvável intenção encontra-se limitada por uma tomada de
consciência ainda incompleta, a nosso ver. Na primeira cena da peça, a tática
de Gonzaga para fazer de Luís um aliado à causa da revolução acarreta uma

35 JAUCOURT, Louis de. Esclavage. In: DIDEROT, Denis; ALEMBERT, Jean le Rond d’ (éds.). Encyclopédie, ou, Dictionnaire raisonné
des sciences, des arts et des métiers, t. V. Paris: Briasson; David; Le Breton; Durand, 1755, p. 936. Disponível em: http://enccre.academie-
-sciences.fr/encyclopedie/article/v5-1910-0/. Acesso em: 18 jun. 2018.
36 ALVES, 2008, ato I, cena 3, p. 400.
37 Ibidem, ato I, cena 1, p. 392.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 297

leitura dupla: por um lado, é a exaltação positiva da revolução que se destaca; por
outro, a série de perguntas orientadas que Gonzaga lhe faz tem muito a ver com
manipulação e manobra para fazer do negro o eterno devedor do branco. Aliás,
esse intercâmbio conclui-se com a frase de Gonzaga: “Pois bem Luís, em nome
da revolução, tua cabeça é minha”.38 Parece que Castro Alves não pode escapar
ao condicionamento do seu tempo. Na verdade, como o analisou Léon-François
Hoffmann, em Le nègre romantique, o escravo negro trabalhado pela literatura é:
Personnage, certes, mais personnage encore très “littéraire”, illustration vivante
d’un problème de morale. Au nom des droits naturels, pour des raisons religieuses,
par sensibilité, les plus grands esprits du siècle déplorent l’esclavage et demandent
son abolition. Ce qui ne veut aucunement dire qu’ils considéraient les Noirs comme
leurs égaux, loin de là. Tout le monde semble à peu près d’accord: le Noir est un
inférieur, un cannibale, un vendeur d’hommes, un être lubrique et fort laid, ignorant
l’ABC de la civilisation et de la bonne philosophie. Bon sauvage arraché au paradis
terrestre? Oui, pour les besoins de la poésie didactique et comme symbole attendris-
sant. Mais personne ne risque de prendre cette métaphore pour la réalité. Homme
à peine mais homme quand même, on réclame pour lui un minimum de bien-être.
Et le bel optimisme du siècle espère qu’à force de patience et de bonnes leçons, le
Noir un jour – un jour lointain, s’entend – prendra sa place parmi les civilisés. En
attendant, bien des plaidoyers en faveur des Nègres rappellent désagréablement les
histoires d’animaux fidèles et malheureux que la Société Protectrice des Animaux
distribue aux enfants pour leur inculquer l’amour des bêtes.39

Dessa forma, mesmo que inconscientemente, parece-nos confirmar-se o


sentimento de que, quanto mais branco, melhor. O traidor Silvério assim apresenta
ao governador a Carlota, filha de Luís, a quem manipula para mantê-la sob obe-
diência: “Ela é bela como uma serpente […]; no mais bonita e quase tão branca
como qualquer um de nós…”.40 Por seu lado, Gonzaga sabe que o ex-escravo,
como boa personagem romântica, lhe será fiel.41 Essa postura lembra a passagem
de Condorcet, imaginando um futuro pós-escravatura:

38 Ibidem, ato I, cena 1, p. 394.


39 HOFFMAN, Léon-François. Le nègre romantique: personnage littéraire et obsession collective. Paris: Payot, 1973, p. 139-140.
40 ALVES, 2008, ato III, cena 1, p. 441.
41 Esta ideia está profundamente arraigada na mentalidade europeia: os negros só se revoltam contra os donos quando levados aos
extremos: “Le deuxième thème que traitent les œuvres de théâtre est que les Nègres ne se révoltent que lorsqu'ils sont poussés à bout
par les abus des colons. Bien traités, ils sont au contraire d'une fidélité à toute épreuve et ne demandent qu'à servir et à admirer les
Blancs”. HOFFMAN, op. cit., p. 158-159.
298 A globalização das luzes

Les vices des esclaves disparaîtraient avec ceux du maître; bientôt il se trouverait
au milieu d’amis attachés à lui jusqu’à la passion, fidèles jusqu’à l’héroïsme. […] Le
sentiment de l’honnêteté, l’amour de la vertu, l’amitié, la tendresse maternelle ou
filiale, tous les sentiments doux, tendres ou généreux qui viendraient charmer ou
embellir l’âme de ces infortunés, ou plutôt leur âme entière serait son ouvrage, et
au lieu d’être riche du malheur de ses esclaves, il serait heureux de leur bonheur.42

Mas se Condorcet evita o tom sentimentalista, Castro Alves abusa do patético


e das referências religiosas:
LUÍS: Ah! É que foi loucura do triste escravo querer ter um leito abençoado por
Deus, querer que a mulher que amou, no momento de receber o primeiro beijo,
fosse bendita pelos anjos e chamada pelo santo nome de esposa!... Mas, ah! Que
quereis? Aos desgraçados só resta o amor e eu dizia então comigo: amemo-nos
infelizes, amemo-nos cativos.43

Não obstante a nobreza do sentimento, assim como o observa Hoffmann:


Ces poètes blancs traitent pour des lecteurs blancs un problème qui met en question
l’image que le Blanc se fait de lui-même. Il ne saurait certes en être autrement ; ce
que je veux dire, c’est que le Noir n’est vu que comme une victime, n’est déterminé
qu’en fonction des abus dont il souffre. Et c’est l’abus qui est le sujet du poème, non
pas la victime. Aussi ne faut-il pas s’attendre à découvrir ici une image nouvelle
du Noir, une intuition de ce qui pourrait le rendre différent d’un Européen par sa
manière de voir le monde, par exemple, ou de concevoir les rapports affectifs ou
de se définir face à la nature. Aucun des poètes – des rimailleurs, plutôt – qui ont
traité le sujet n’a célébré la “négritude”. Les victimes noires dont ils décrivent les
souffrances sont de purs Bons Sauvages, créés de toutes pièces par la sentimentalité
généreuse et quelque peu naïve du XVIIIe siècle. Bons pères et bons époux, mères
affectueuses et amantes dévouées, les Nègres du concours raisonnent en Européens
lettrés. De noir ils n’ont que la peau, d’Africain que le regret d’une nature généreuse
où l’homme peut vivre dans la vertu. 44

Assim o ressalta Luiz Carlos Villalta, no mundo luso-brasileiro, os ilustrados


cultivaram a utopia da constituição de um “império florente” no Brasil. Tal ideia
era associada por alguns à edenização […]. A laicização da ideia de um império
luso-brasileiro centrado no Brasil, originalmente milenarista, e sua remissão residual

42 CONDORCET, Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de. Réflexions sur l’esclavage des nègres et autres textes abolitionnistes. Présen-
tation de David Williams. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 51.
43 ALVES, 2008, ato I, cena 1, p. 393.
44 HOFFMAN, op. cit., p. 224.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 299

a topos edênicos revelam que o Reformismo ilustrado português articulou as Luzes


com um substrato cultural anterior. 45

Esse posicionamento ideológico aparece na fala de Gonzaga exaltado, de-


sejando o regresso a uma liberdade primitiva, totalmente fantasiada:
Em breve, sob estas selvas gigantescas da América, a família brasileira se assentará
como nos dias primitivos... Não mais escravos! Não mais senhores. Todas as frontes
livres poderão mergulhar o pensamento nos infinitos azulados, todos os braços
livres hão de sulcar o seio da terra brasileira. […] Sim: liberdade a todos os braços!
Liberdade a todas as cabeças.46

No ato III, a cena XV é a mais supostamente comovedora, pois os heróis se


preparam para morrer, com a esperança de alcançar um estatuto de herói (graças
à glória, à honra, ao perdão etc.); mas a última palavra é para o escravo Luís, cujo
grito é mais uma vez a declaração da igualdade entre os homens:
(Ouve-se mais próximo o toque das cornetas)

TIRADENTES — É o rebate da glória, meus amigos!

CLÁUDIO — É a alvorada da eternidade!

LUIZ — É o dobre de tua morte, minha filha!

CARLOTA — É o perdão de meus crimes, meu pai!

LUIZ (Aperta o coração desesperado, depois olhando o céu) — É a vida que foge,
mas é a honra que vem.

CLÁUDIO — Todos ao banquete da morte, revolucionários!

TIRADENTES — Ao pedestal da liberdade, brasileiros. (Todos vão entrando).

LUIZ — E nós também somos brasileiros, e nós também somos revolucionários, e


nós também somos mártires! Carlota, ao banquete da morte! porque o sangue dos
escravos dos homens é irmão do sangue dos escravos dos povos, ambos caem na
face dos algozes, ambos clamam vingança ao braço do futuro.

(Todos saem).47

45 VILLALTA, op. cit., p. 34-35.


46 ALVES, 2008, ato I, cena 3, p. 403-404.
47 Ibidem, ato IV, cena 15, p. 463.
300 A globalização das luzes

Que concluir desses dados expostos? Na sua tragédia, Castro Alves utiliza-se
da História (algo que já aconteceu) para dar conta de algo que está a acontecer:
o processo da luta pela abolição. Não escreve a história, mas sobre a história. O
tema da abolição não é novo no teatro brasileiro, e a leitura das numerosas peças
relativas à libertação dos escravos no decurso do século permite verificar o interesse
da sociedade brasileira pelo assunto:
Através das obras teatrais podemos acompanhar as mudanças do pensamento
dos brasileiros a respeito da escravidão. O principal valor dessa fonte rica e
isolada das chamadas fontes históricas é a análise do discurso e suas tendências
na época. Mesmo não sendo uma história vista de baixo, é possível notar, na
reconstrução das tendências do discurso, que o negro lentamente passa de mero
figurante para antagonista e depois para protagonista, até se apresentar com
falas abolicionistas.48

As suas ferramentas, a sensibilidade, a piedade, a paixão, pertencem a um


ideário que pouco espaço deixa à razão iluminista. O anseio de libertação dos
escravos mantém-se quase como uma noção abstrata, desligada de uma reflexão
sobre o futuro material deles: “Inflamado defensor da abolição da escravatura,
o poeta quis demonstrar, na peça, sua fundamental necessidade histórica como
complemento da história”,49 mas não dá indicações de uma eventual visão político-
-econômica consecutiva à emancipação dos negros.
Esta peça é uma “Recriação ficcionada de sucessos e personagens reais
transportados para o plano mítico da fábula”.50 A história é, portanto, ficcionada,
mas até certo ponto, pois, nesse teatro histórico do século XIX, a história é, como
já frisamos, tanto o relato de uma coisa que aconteceu como a narração de algo
que está a acontecer. Gonzaga concentra em poucas palavras fortes os três eixos
da intriga: “Porque eu sofro... Vejo nossa pátria escravizada, nossos irmãos cativos

48 SILVA, Emerson de Paula. Dramaturgia e memória: breve histórico do negro no espaço teatral. Cadernos Letra e Arte, v. 3, n. 3,
2013, p. 72.
49 CACCIAGLIA, Mário. Pequena história do teatro no Brasil. São Paulo: Edusp; T. A. Queiroz, 1986, p. 52 apud CRUZ, Duarte Ivo
(org.). Teatro romântico brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 21.
50 REBELLO, Luiz Francisco (org.). O teatro romântico português: o drama histórico. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007,
p. 39.
Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 301

e tu, Maria, e tu, sempre arrancada de meus braços... por esse poder estúpido da
Metrópole”.51
A paixão amorosa serve para sensibilizar o espectador à questão aboli-
cionista, que é, por sua vez, diretamente associada ao poder colonial. Castro
Alves não procura aqui representar a realidade histórica, mas servir-se dela para
desenvolver os temas que lhe são queridos. A história é um pano de fundo que
sustenta um propósito ideológico. Mas uma ideologia fundada no pensamento das
Luzes? Não basta sublinhar que a peça se alicerça nos ideais da descolonização e
da abolição – temas das Luzes, como já vimos – para concluir que Castro Alves
reativa as posições dos enciclopedistas. Ele valeu-se eventualmente desses ideais,
aplicou-lhes uma simbólica forte, humanística, profundamente arraigada na noção
de liberdade individual e nacional. Moldou simbólica e emocionalmente os valores
iluministas, trabalhados como anedotas, num período traumático do país (luta
abolicionista, guerra do Paraguai). As poucas alusões à Revolução Francesa – se
ainda podem ser consideradas como referências às Luzes – servem um propósito
destinado a comover, muito mais do que a incentivar uma reflexão. Num processo
de “reencantamento” de certos ideais, Castro Alves não discute nem reativa, de
fato, as teses setecentistas; faz “referência” a elas, no sentido indicado em preâmbulo
deste estudo, como “associação livre, evidente entre passado e presente”, mas sem
analogia entre esses dois espaços temporais.
Hors de toute continuité historique, elle se dérobe à la construction d’un récit linéai-
re fondé sur les rapports de causalité ou sur les grandes généalogies, et s’écarte de
toute signification close sur elle-même. Interprétée différemment selon les collectifs
et les individus, elle est mouvante et singulière à chaque instant historique qu’elle
mobilise. Enfin, son interprétation même dans le moment de son surgissement peut
être contradictoire et en débat.52

Um artigo de Carta Capital, de 5 de março de 2018, intitulado “Cada vez


mais para trás”, posicionado contra a política do presidente Temer, opta por esse
mesmo reencantamento das Luzes, de forma um tanto cândida e, às vezes, histo-
ricamente errônea, mas com um lirismo destinado a enlevar o coração do leitor:
E dizer que na segunda metade do século XVIII o iluminismo chegara a Minas. […]

51 ALVES, 2008, ato I, cena 10, p. 413.


52 MOATTI; RIOT-SARCEY, op. cit., p. 16.
302 A globalização das luzes

[P]enso no esplendor de Minas do século XVIII, ciente da vida no século das luzes
e a acendê-las no recôncavo abençoado. Sempre lamentei a ausência de um histo-
riador disposto a contar o milagre mineiro e de colher-lhe as razões.
Aleijadinho é representativo de um período de arte deslumbrante, de bela música,
de poesia, de grandes esperanças, e de arquitetura sublime que criou tesouros como
Ouro Preto, Congonhas do Campo, Mariana e outros tão únicos quanto encantadores.
É a Inconfidência, surpreendentemente informada a respeito das ideias destinadas a
mudar a Europa e o mundo. Deste enredo brotaria mais tarde a figura de José Boni-
fácio de Andrada, cavalheiro internacional com aprendizado civilizatório na França.

Predada pelos portugueses, que com as riquezas mineiras reconstruíram Lisboa


arrasada pelo terremoto de meados dos 1700, a Minas da Inconfidência foi a resposta
à dominação. Se o Brasil tivesse seguido por aquela rota, seria outro país, livre das
quadrilhas que hoje o condenam.53

Os momentos de crise política são, de fato, propícios ao romantismo.

R eferências bibliográficas

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18 jun. 2018.

53 CARTA, Mino. Cada vez mais para trás. Carta Capital, n. 993, 05 mar. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
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Luzes e heróis românticos em Gonzaga, ou a Revolução de Minas (1867), de Castro Alves 303

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VILLALTA, Luiz Carlos. 1789-1808: o império luso-brasileiro e os brasis. São Paulo:


Companhia das Letras, 2008.
Sobre os autores

Alexandre Mansur Barata


Doutor em História. Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Membro da Cátedra-UNESCO/DRI “Territorialidades e Humanidades: a
Globalização das Luzes”.
E-mail: alexandre.barata@ufjf.br

Álvaro de Araujo Antunes


Doutor em História. Professor da Universidade Federal de Ouro Preto. Mem-
bro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humanidades:
a Globalização das Luzes”
E-mail: alvaro.antunes@ufop.edu.br

Andréa Lisly Gonçalves


Doutora em História Social. Professora da Universidade Federal de Ouro Preto.
Bolsista de Produtividade do CNPq. Pesquisadora contemplada com recursos
do Edital Universal da FAPEMIG. Membro da Cátedra UNESCO-UFMG/
DRI “Territorialidades e Humanidades: a Globalização das Luzes”.
E-mail: andrea.lisly.goncalves@gmail.com
Antonio Cesar de Almeida Santos
Doutor em História. Professor da Universidade Federal do Paraná. Co-líder do
Grupo de Pesquisa (CNPq) Cultura e educação nos impérios ibéricos.
E-mail: acasantos1954@gmail.com

Christianni Cardoso Morais


Doutora em História. Professora da Universidade Federal de São João del-Rei.
Membro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humani-
dades: a Globalização das Luzes”.
E-mail: tiannimorais@gmail.com

Franck Salaün
Doutor em Filosofia. Professor da Université Paul-Valéry/Montpellier 3. Mem-
bro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humanidades:
a Globalização das Luzes”.
E-mail: franck.salaun@univ-montp3.fr

Igor Tadeu Camilo Rocha


Doutor em História. Pós-doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais.
Membro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humani-
dades: a Globalização das Luzes”
E-mail: igortcr@gmail.com

Jean-Pierre Schandeler
Doutor em Filosofia. Pesquisador do CNRS – Institut de Recherche sur la
Renaissance, L’âge Classique et les Lumières (UMR 5186 du CNRS) CNRS,
Université Paul-Valéry, Montpellier. Membro da Cátedra-UNESCO/DRI
“Territorialidades e Humanidades: a Globalização das Luzes”
E-mail: jean-pierre.schandeler@cnrs.fr
Luciano Mendes de Faria Filho
Doutor em Educação. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Membro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humani-
dades: a Globalização das Luzes”
E-mail: lucianomff@uol.com.br

Luiz Carlos Villalta


Doutor em História Social. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Bolsista de Produtividade do CNPq. Pesquisador Mineiro da FAPEMIG. Ti-
tular da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humanidades:
a Globalização das Luzes”.
E-mail: luizvillalta@ufmg.br

Marie-Noëlle Ciccia
Doutora em Literatura. Professora da Université Paul-Valéry/Montpellier 3.
Membro da Cátedra-UNESCO-UFMG/DRI “Territorialidades e Humani-
dades: a Globalização das Luzes”.
E-mail: marienoelle.ciccia@gmail.com

Thais Nívia de Lima e Fonseca


Doutora em História. Professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
Pesquisadora do CNPq e da FAPEMIG. Líder do Grupo Cultura e Educação
nos Impérios Ibéricos – CEIbero.
E-mail: thaisn@fae.ufmg.br

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