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Principios de biomecanica aplicados a odontologia Marina Guimaraes Roscoe, Rafael Yague Ballester e Josete Barbosa Cruz Meira 1 Introdugao: Entende-se por biomecanica a ciéncia que estuda: as forgas que atuam sobre estruturas biolégicas, drteses e préteses; os efeitos produzidos por essas forgas, com finalidades variadas (reabilitagao, esporte, robética, etc.) e 0 mecanismo de agao dos movimentos nos seres vivos. No campo da Odontologia, 0 aparelho responsavel por realizar os movimentos funcionais como fala, degluticao e mastigacao dos alimentos ¢ 0 aparetho estomatogndtico. Este € constituido por quatro unidades fisiolégicas basicas: sistema neuromuscular, articulagdes temporomandibulares (ATMs), dentes e periodonto. Estas unidades sAo interdependentes e a manutengZo do equilibrio do conjunto é fundamental para preservar a qualidade funcional do apareiho. Dentre os constituintes do aparelho estomatognatico, o sistema neuromuscular constitui o elemento ativo, visto que os musculos, ativados pelo sistema nervoso, geram as forgas necessarias @ realizacdo dos movimentos funcionais. As demais estruturas (ATM, dentes, osso e periodonto) representam elementos passivos, encarregados de receber e transmitir as forgas. 2 Mandibula: uma alavanca biolégica © principal sistema de transmissdo e modificagao de forgas nas estruturas biolégicas ¢ a alavanea. Este sistema consiste em uma barra rigida que ¢ livre para girar ao redor de um ponto fixo chamado fulcro (F), sob a ago de duas ou mais forgas denominadas como poténcia (P) e resistencia (R). Conforme a posigao do fulcro, poténcia e resisténcia, o sistema de alavanca pode ser dividido em trés tipos (Figura 1): * Classe | ou interfixa: fulero entre a poténcia e a resisténcia. Exemplos: balanga romana, tesoura, gangorra. * Classe II ou inter-resistente: fulcro em um extremo, poténcia no outro e resisténcia entre ambos. Exemplo: carrinho de mao utilizado por pedreiros * Classe III ou interpotente: fulcro em um extremo, resisténcia em outro e poténcia entre ambos. Ex: brago humano; usando 0 cotovelo como fulero, a resisténcia é a carga sustentada pela mao, e a poténcia, o esforgo realizado pela contragao do muisculo biceps. NTE RESISTENTES wnrenrveas " inrenporenres - ‘ee . ee f ¢ lei ws ee Figura 1 ~ Componentes da alavanca (fuer, poténcia @ resisténcia)« tipos de alavanca (interfina inter-rasistente © interpotente) Todos os tipos de alavancas seguem a lei expressa pela equagao abaixo: PxBP=RXxBR Onde BP € o brago de poténcia, que corresponde @ distancia entre o ponto de aplicagao da forga potente e 0 fulcro e BR é 0 brago de resisténcia, que corresponde & distancia entre a forga resistente 0 fulcro (Figura 2). E possivel deduzir desta equag3o que a vantagem mecanica de uma alavanca (R/P) ser maior quanto maior for a razdo BPIBR. ‘Vantagem mecanica = BP/BR Figura 2~ Sistema d lavanea: brago de poténcia¢ brago de resetncia, Amandibula normaimente funciona como uma alavanea inter-potente ou de classe Ill, sendo que, 0 fulcro localiza-se no céndilo, a poténcia é dada pela forga imposta pelos misculos masseteres e pterigdideos mediais, e a resisténcia é dada pela forca de contato entre os dentes antagonistas ou pela forga de mordida contra um alimento interposto entre os dentes (Figura 3). Em concordancia com a lei das alavancas, quanto mais para posterior, maior a vantagem mecdnica da mandibula, pois 0 brago de resisténcia fica cada vez mais curto, enquanto o brago de poténcia permanece o mesmo. Assim, a forga de mordida ¢ maior em dentes posteriores. Este € um dos motivos pelos quais € mais facil quebrar alimentos mais duro na regiao de molar. Figura 3. Sistema de alavanca inter-potente (classe Il!) exstente na mandibula, Imagem retirada de pégina da internet ~ httpi//biologosueg2014 blogspot.dk/2013/09/ae-slavancas-do-corpo-humano.htm| Ainda como consequéncia desta diferenga de forga de mordida ao longo da arcada dentéria, a solicitagao mecanica de um material restaurador em um dente posterior é geralmente maior do que em um dente anterior. Assim, muitas vezes um material apresenta bom desempenho em dentes anteriores e desempenho ruim em dentes posteriores. Este aspecto ¢ especialmente critico em restauracées indiretas. 3 Forgas que atuam na cavidade oral Para fins didaticos, classificaremos as forgas que atuam na cavidade bucal em forgas oclusais e n&o oclusais. Enquanto o equilibrio destas forgas mantém a estabilidade do posicionamento e a integridade dos dentes, 0 desequilibrio pode gerar problemas nao apenas nos dentes, mas em todo o sistema estomatognatico. 3.1 Forgas oclusais: As forcas oclusais aparecem exclusivamente nos contatos entre os dentes antagonistas e surgem devido a acao dos musculos elevadores da mandibula. As variagdes anatomicas entre os grupos de dentes, os complexos movimentos mandibulares e os pontos de contato em posigées diferentes em um mesmo dente podem gerar vetores de forca altamente complexos durante o “simples” ato de mastigar. Distribuida x concentrada Em uma oclusao equilibrada todos os dentes entram em contato quando estéo em maxima intercuspidagdo, ou seja, a fora de mordida esta distribuida ao longo de todo 0 arco dental, nos pontos de contato oclusal. Em casos em que ha auséncia de varios dentes, prematuridade ou interferéncia oclusal, a forga fica concentrada em poucos pontos. Nestes casos, o risco de danos aos dentes ou aos tecidos de suporte é maior. © ligamento periodontal favorece um maior numero de contatos oclusais, pois funciona como um coxim, 0 que ¢ capaz de amortecer uma eventual sobrecarga nos primeiros dentes a entrar em contato. Além disso, no ligamento periodontal existem receptores nervosos que promovem um relaxamento dos miusculos elevadores da mandibula em casos de sobrecarga acidental (ex. pedra no feijao). Assim, em casos de dentes anquilosados ou de implantes dentarios (nos quais 0 ligamento periodontal esta ausente), 0 risco de sobrecarga oclusal é maior. Axial x ndo axial O carregamento € considerado axial quando a resultante das forgas que atuam sobre 0 dente é paralela ao longo eixo do mesmo e alinhada com o seu centro de resisténcia (Figura 4). Este tipo de carregamento tende a intruir o dente no alvéolo. Em dentes posteriores a carga oclusal fisiologica é predominantemente axial Quando o carregamento foge do caso acima, ou seja, a resultante nao é paralela ao longo eixo dos dentes ou ndo esta alinhada com o seu centro de resisténcia, considerado nao axial. Neste caso havera um momento (torque), que tende a girar 0 dente. Em dentes anteriores, a carga oclusal é predominantemente nao axial. "controde resisténcla Centro de resistencia Figura 4 Eequema de um carregamento axial e outro nfo axial. Na Odontologia ¢ comum encontrar o termo “carga obliqua” para contrapor com a “carga axial’. Aqui o termo n&o axial foi utilizado porque uma carga longitudinal também pode gerar um momento, se nao estiver alinhada com 0 centro de resisténcia do dente 3.2 Forgas no oclusais: Chamaremos de forgas nao oclusais, todas as forgas aplicadas nos dentes e que nao se encaixam no conceito de forcas oclusais. Exemplos de forgas ndo-oclusais: * forgas que surgem pela ago direta de mUisculos sobre os dentes (como misculos dos labios, lingua e bochechas) durante os movimentos funcionais do sistema estomatognatico (fala, degluticao e mastigacao). * forgas que surgem pelo contato entre dentes adjacentes (contato proximal). * forgas provocadas por objetos colocados na boca (como instrumentos de sopro, chupeta, mamadeira etc...) Os musculos envolvidos nas atividades de mastigagao, degluticao e respiragao promovem forgas capazes de alterar ou manter o posicionamento dos dentes, atuando diretamente sobre eles ou sobre 0 seu suporte ésseo. A frequéncia e duracdo total da contragéo muscular é importante, sendo que as contragdes repetitivas e duradouras geram efeitos mais importantes sobre dentes e ossos do que as contragdes transitérias e pouco frequentes. O ténus dos labios, por exemplo, é importante para a manuten¢ao do posicionamento dos dentes anteriores. Assim, pacientes com hipotonia dos labios podem apresentar vestibularizagéo dos incisivos superiores. De modo semelhante, a interposigao da lingua entre os dentes anteriores também pode ser considerado fator importante para 0 desequilibrio da oclusao. Apesar da variedade de forgas que atuam sobre os dentes, com diregdes, magnitudes e duragées diferentes, de modo geral os dentes permanecem relativamente estaveis, jd que estas forcas normalmente se encontram razoavelmente equilibradas. 4 Excessos e desequilibrios das forcas: causas e consequéncias A tabela abaixo apresenta, de forma resumida, alguns fatores causais do desequilibrio de forgas na cavidade oral e suas consequéncias. ‘Tabela 1 Examplos de 1usas @ consequancias de excessos e des ullibrios da foreas que atuam na cavidade oral. Causas Consequéncias " Habitos parafuncionais: por aumento da frequéncia, duraclo e/ou intensidade das forcas aplicadas. © bruxismo (hébito de ranger os dentes) © briquismo (habito de apertar os dentes). © outros habitos como, por exemplo, interposicgao da lingua, succio de chupeta ou dedo, instrumento musical, ete desgaste exagerado dos dentes (mais associado ao bruxismo) disfuncdes da ATM maior risco de fratura e desgaste de restauracies. mau posicionamento dos dentes e deformaco do ésseomaxilar ou mandibular (mais associados a outros habitos) = Hipotonia dos labios vestibularizacdo dos dentes anteriores, * Perda de um elemento dental. Nem sempre a perda de um elemento dental se constitui um problema (ex: dentigSo mista) mesializacdo, distalizaglo ou extrusio dos dentes préximos & perda. = Contato prematuro. e _ interferéncias oclusais: geram sobrecarga no dente afetado. inflamacao necrose. maior risco de lesdes cervicais n3o Inflamacéo no periodonto > mobilidade dental pulpar, podendo levar & iosas. 5 Principios biomecanicos nas especialidades odontolégicas. A biomecanica é um tema importante em diversas areas da odontologia. Para fins didaticos, os principios biomecanicos serio exemplificados por algumas aplicagées a apenas duas especialidades odontolégicas: ortodontia e dentistica. A abordagem dada neste capitulo € compativel com nivel de conhecimento do aluno da disciplina de ODM- 400 - Materiais para Uso Direto. 5.1. Ortodontia O tratamento ortodéntico possibilita corrigir 0 posicionamento de dentes em casos de apinhamento dental ou falta de alinhamento ou nivelamento dos dentes 5.1.1. Fundamentos da movimentagao dentaria ortodéntica A forga gerada pelos aparelhos ortodénticos tem sua origem na recuperagao da deformacao elastica dos fios. Os aparelhos ortodénticos sao desenhados para que esta forga atue no dente e seja transmitida aos tecidos de suporte, desencadeando uma cascata de eventos fisiolégicos que resultam na movimentagao do dente. Existem diferentes teorias para explicar 0 mecanismo pelo qual estimulo mecénico ¢ traduzido em uma resposta biolégica. De modo geral, todas elas concordam em que a reagdo biolégica depende do tipo e da intensidade da tensdo provocada (compress&o ou traco), e em que o ligamento periodontal desempenha um papel importante no processo. De modo resumido, nos locais do dente onde predominam tensdes de compressao ha sinalizagao celular para que ocorra reabsoreao éssea, e nas areas de predominio de tensdes de tragdo ha sinalizago para aposi¢ao dssea. Esta concomitancia entre diferentes regides de reabsoreao e aposi¢ao ossea é responsavel por promover a movimentaco ortodéntica. 5.1.2. Reabsorgao radicular inflamatoria induzida ortodonticamente (RRIIO) O desafio do ortodontista ¢ produzir um sistema de forcas eficiente, que realize a movimentacdo desejada da forma o mais rapida possivel, com 0 minimo de efeitos colaterais. Um dos principais efeitos colaterais do tratamento ortodéntico é a reabsorgao radicular (RRIIO), que esta diretamente relacionada ao uso de forgas muito intensas durante 0 tratamento. Quando o ligamento periodontal ¢ submetido a excesso de compresso, ocorre um bloqueio da circulagao sanguinea que, por sua vez, provoca necrose localizada do cemento. Esta necrose desencadeia uma cascata de reagdes biolégicas semelhantes aquelas que ocorrem na reabsorgao éssea, s6 que, neste caso, as células clasticas reabsorvem a superficie radicular ao invés do osso. 5.2 Dentistica restauradora 5.2.1. Lesdes cervicais nao cariosas (LCNC): Considera-se lesdo no cariosa a regiéo do dente exposta ao meio externo em que se perdeu estrutura dental (esmalte e/ou dentina) sem a necessidade da intervengao de microorganismos. Estas lesdes tém normalmente etiologia multifatorial, mas, em alguns casos, pode existir a predominancia de um dos seguintes fenomenos: erosdo (relacionada a presenga de acidos, endégenos ou exdgenos), abrasdo (relacionada a escovacéo com dentifricio abrasive e forga excessiva, ou mastigagao de alimentos abrasives), atrigao (habito de ranger os dentes) e concentragao de tensdes. Quando esta perda ocorre na regio cervical, € denominada lesdo cervical nao cariosa (LCNC). As LCNC em forma de cunha, com bordas bem definidas, estéo frequentemente associadas @ concentragdo de tensdo gerada por uma sobrecarga oclusal. © mecanismo pelo qual esta sobrecarga oclusal promove a formagao de lesdes ainda é um ponto controverso. Por muito tempo, a teoria da abfragao (entendida como microfraturas provocadas pela concentragdo de tensdes em lugares distantes do ponto de aplicagao da carga) foi bastante aceita, mas, atualmente, algumas incoeréncias tém colocado em xeque a validade desta teoria. No entanto, parece claro que, quando a sobrecarga € provocada por prematuridades ou interferéncias oclusais, corrigir estes problemas torna-se um fator decisivo para diminuir o progresso da lesao e obter sucesso no tratamento. Conscientizar 0 paciente da necessidade de consultas de controle periédicas (semestrais ou anuais) também é importante para garantir a manutengao do equilibrio oclusal 5.2.2 Selecdo dos materiais restauradores A indicagao do material envolve consideragdes biolégicas, mecdnicas, estéticas e finaneeiras especificas para cada situagao clinica. O dentista deseja que o material restaurador consiga restabelecer a forma, fungao e estética das estruturas dentais perdidas pelo maior tempo possivel. Apesar do grande desenvolvimento ocorrido nos ltimos anos na area de materiais restauradores odontolégicos, nenhum material consegue substituir esmalte e dentina de forma eficiente e duradoura em todos os casos Do ponto de vista mecanico, a os critérios para escolha do material dependera de uma combinagao de fatores como: (a) formato, extensao e localizagao da restauracao; (b) quantidade e qualidade da estrutura dentaria remanescente;(c) magnitude e modo de aplicagao da carga Em casos de cargas baixas ou periodos de tempo reduzidos que no exponham o material a fadiga (baixa solicitagéo mecanica), as propriedades mecanicas do material nao precisam ser téo altas e um material menos resistente pode ser utilizado, especialmente se apresentar alguma vantagem biolégica ou financeira. E o que acontece, por exemplo, com algumas restauragdes provisorias, em que podem ser utilizados cimentos de iondmero de vidro e cimentos de oxido de zinco e eugenol Aproveita-se assim a vantagem da ago anticariogénica do cimento de ionémero de vidro ou da ago anddina do cimento de oxido de zinco, associadas a facilidade de manipulagao e de remocao destes cimentos sem maiores inconvenientes relacionados com a resisténcia mecanica. Outras situagées tipicas de baixa solicitagao mecanica sao as cavidades de classe V ou as cavidades em dentes deciduos. Nestes casos, especialmente quando o paciente apresenta um alto risco de carie, a ago anticariogéncia do cimento de ionémero de vidro pode apresentar vantagem em relagdo aos materiais restauradores diretos “definitivos” {resina composta ou amélgama), sem prejuizo da longevidade motivado pelo desempenho mecanico. Quando a solicitagao mecanica é um fator importante, a resina composta e 0 amalgama s&o os materiais de escolha para restaurag6es diretas, enquanto as ceramicas e os metais so os materiais mais indicados para restauragdes indiretas. O limite entre a indicag&o de uma restauragao direta ou de uma restauragdo indireta também dependera quantidade e qualidade da estrutura dentaria remanescente, além da magnitude e modo de aplicagao da carga, mas isto 6 um assunto mais complexo e nao sera abordado neste momento do curso. REFERENCIAS: « Anusavice K, Philips. Materiais Dentarios, 10. Ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1998. * Craig RG, Powers JM. Materiais Dentarios Restauradores, Santos Editora, 2004.

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