Vol. 45 N° 2019 de outubro de 2023
EXTRA
A Bussola do Luto
Judith Butler escreve sobre violéncia e
a condenacao da violéncia
AS QUESTOES QUE MAIS NECESSITAM de discussio paiblica, as que mais urgentemente
necessitam de ser discutidas, so aquelas que sto dificeis de discutir nos
‘enquadramentos agora disponiveis para nés. Embora desejemos ir diretamente ao
assunto em questo, esbarramos nos limites de uma estrutura que torna quase impossivel
‘co que se tem a dizer. Quero falar sobre a violéncia, a violéncia atual, a historia da violéncia e as
‘suas muitas formas. Mas se quisermos documentar a violéncia, o que significa compreender os
bombardeamentos massivos ¢ as matancas em Israel pelo Hamas como parte dessa histéria,
podemos ser acusados de “relativizar” ou “contextualizar”, Devemos condenar ou aprovar, €
isso faz sentido, mas sera isso tudo o que nos ¢ eticamente exigido? Na verdade, condeno sem
reservas a violéncia cometida pelo Hamas. Este foi um massacre terrivel e revoltante. Essa foi
‘minha reagdo principal e perdura. Mas também existem outras reagdes.
jizer
Quase imediatamente, as pessoas querem saber de que “lado” voce esta, ¢ claramente a tinica
resposta possivel a tais assassinatos é a condenagio inequivoca. Mas por que razio pensamos
por vezes que perguntar se estamos a usar a linguagem correcta ou se temos uma boa
compreensio da situagio hist6rica seria um obstaculo a uma forte condenago moral? Sera
realmente relativizador perguntar 0 que exatamente estamos condenando, qual deveria ser 0
alcance dessa condenagiio e qual a melhor forma de descrever a formagio ou formagdes
politicas as quais nos opomos? Seria estranho opor-se a algo sem compreendé-lo ou sem
descrevé-lo bem. Seria especialmente estranho acreditar que a condenagao exija uma recusa em
compreender, por medo de que o conhecimento possa apenas servir uma funcio relativizadora
e minar a nossa capacidade de jugar. E se for moralmente imperativo alargar a nossa
condenagio a crimes tao terriveis como os repetidamente divulgados pelos meios de
comunicagdo social? Quando e onde comeca e termina a nossa condenaca0? Nao necessitamos
de uma avaliagdo critica e informada da situagdo para acompanhar a condenago moral e
politica, sem temer que o conhecimento nos transforme, aos olhos dos outros, em fracassos
morais, ctimplices de crimes hediondos?
Ha quem utilize a hist6ria da violéncia israelita na regio para exonerar 0 Hamas, mas utilizam
‘uma forma corrupta de raciocinio moral para atingir esse objectivo. Sejamos claros: a violencia
israelita contra os palestinianos é avassaladora: bombardeamentos implacaveis, matanga de
pessoas de todas as idades nas suas casas e nas ruas, tortura nas suas prisdes, técnicas de fome
em Gaza e desapropriacdo de casas. E esta violencia, nas suas muitas formas, é travada contra
‘um povo que esta sujeito as regras do apartheid, ao dominio colonial e & apatridia. Contudo,quando o Comité de Solidariedade a Palestina de Harvard emite uma declaracio afirmando que
“o regime do apartheid ¢ o tinico culpado” pelos ataques mortais do Hamas contra alvos
israelitas, comete um erro. £ errado atribuir responsabilidades desta forma e nada deverd
exonerar 0 Hamas da responsabilidade pelos hediondos assassinatos que cometeu. Ao mesmo
tempo, este grupo e os sets membros nao merecem ser colocados na lista negra ou ameacados.
Eles tém certamente razdo em apontar para a historia de violéncia na regiao: “Desde apreensdes
de terras sistematizadas a ataques aéreos de rotina, de detengdes arbitrarias a postos de
controlo militares, e de separagdes familiares forgadas a assassinatos selectivos, os
palestinianos foram forcados a viver num estado de morte, lento e repentino.
Esta é uma descrigo precisa, e deve ser dita, mas nio significa que a violéncia do Hamas seja
apenas violencia israelita com outro nome. £ verdade que deverfamos desenvolver alguma
compreensio da razio pela qual grupos como o Hamas ganharam forga 4 luz das promessas
quebradas de Oslo e do “estado de morte, tanto lenta como repentina” que descreve a existéncia
vivida de muitos palestinianos que vivem sob ocupacio, quer o vigilancia constante e ameaga de
detencao administrativa sem o devido processo, ou o cerco cada vez mais intenso que nega
medicamentos, alimentos e gua aos habitantes de Gaza. Contudo, no obtemos uma
justificagio moral ou politica para as acces do Hamas através da referéncia & sua historia. Se
formos solicitados a entender a violencia palestiniana como uma continuagao da violencia
israelita, como o Comité de Solidariedade a Palestina de Harvard nos pede, ento existe apenas
‘uma fonte de culpabilidade moral, e mesmo os palestinianos no reconhecem os seus actos
violentos como se fossem seus. Esta no é a forma de reconhecer a autonomia da acgio
palestina. A necessidade de separar a compreensio da violencia generalizada e implacavel do
Estado israelita de qualquer justificacdo da violencia é crucial se quisermos considerar que
outras formas existem para acabar com 0 dominio colonial, acabar com as prises arbitrarias e
a tortura nas prisdes istaelitas e trazer o fim do cerco a Gaza, onde a agua e os alimentos so
racionados pelo Estado-nacio que controla as suas fronteiras. Por outras palavras, a questo de
saber que mundo ainda ¢ possivel para todos os habitantes daquela regido depende das formas
de acabar com 0 dominio colonial. O Hamas tem uma resposta assustadora e tertivel para essa
pergunta, mas ha muitas outras. Se, no entanto, formos proibidos de nos referirmos &
“ocupacao” (que faz parte da Denkverbot alema contemporanea ), se no conseguirmos sequer
encenat o debate sobre se o regime militar israelita na regio ¢ apartheid racial ou colonialismo,
entZo nao temos esperanga de compreender o pasado, o presente ou 0 futuro. Muitas pessoas
que assistem a carnificina através da mfdia se sentem desesperadas. Mas uma razao pela qual
esto desesperados é precisamente o facto de estarem a assistir através dos meios de
comunicagio social, vivendo num mundo sensacional e transitério de indignacio moral sem
esperanca. Uma moralidade politica diferente leva tempo, uma forma paciente e corajosa de
aprender e nomear, para que possamos acompanhar a condenagio moral com visio moral.
Oponho-me violencia infligida pelo Hamas e no tenho nenhum Alibi para oferecer. Quando
digo isso, estou deixando clara uma posicao moral e politica. Nao me engano quando reflito
sobre o que essa condenagio pressupde e implica. Qualquer pessoa que se junte a mim nesta
condenagio podera querer perguntar se a condenagao moral deveria ser baseada em alguma
compreensio daquilo que esta sendo combatido, Poderiamos dizer que nao, no preciso saber
nada sobre a Palestina ou 0 Hamas para saber que o que eles fizeram ¢ errado e para condend-
lo, E se pararmos por ai, confiando nas representagdes mediaticas contemporaneas, sem nunca
hos perguntarmos se so realmente certas e titeis, se permitem que as historias sejam contadas,
entao aceitamos uma certa ignorancia ¢ confiamos no enquadramento apresentado. Afinal,
estamos todos ocupados e no podemos ser todos historiadores ou sociélogos. Essa é uma
maneira possivel de pensar e viver, e pessoas bem-intencionadas vivem assim. Mas a que custo?E se a nossa moralidade e a nossa politica nao terminassem com 0 ato de condenacio? E se
insistissemos em perguntar que forma de vida libertaria a regio de uma violéncia como esta? E
se, além de condenar crimes arbitrarios, quiséssemos criar um futuro em que violéncia deste
tipo acabasse? Essa é uma aspirago normativa que vai além da condenacao momentnea. Para
6 conseguir, temos de conhecer a histéria da situagdo, o crescimento do Hamas como grupo
millitante na devastaco do momento pés-Oslo para aqueles em Gaza a quem as promessas de
autogovernacio munca foram cumpridas; a formacio de outros grupos de palestinos com outras
taticas e objetivos; e a historia do povo palestiniano eas suas aspiragoes & liberdade e ao direito
& autodeterminagio politica, & libertacio do dominio colonial e da violéncia militar e carceraria
generalizada. Ento poderiamos fazer parte da luta por uma Palestina livre, na qual o Hamas
seria dissolvido ou substituido por grupos com aspiracdes nao violentas de coabitagao.
For those whose moral position is restricted to condemnation alone, understanding the
situation is not the goal. Moral outrage of this sort is arguably both anti-intellectual and
presentist. Yet outrage could also drive a person to the history books to find out how events
such as these could happen and whether conditions might change such that a future of violence
isn'tall that is possible. It should not be the case that ‘contextualisation’ is considered a morally
problematic activity, even though there are forms of contextualisation that can be used to shift
the blame or to exonerate. Can we distinguish between those two forms of contextualisation?
Just because some think that contextualising hideous violence deflects from or, worse,
rationalises the violence, that doesn’t mean we should capitulate to the claim that all forms of
contextualisation are morally relativising in that way. When the Harvard Palestine Solidarity
Committee claims that ‘the apartheid regime is the only one to blame’ for the attacks by
Hamas, itis subscribing to an unacceptable version of moral accountability. It seems that to
understand how an event has come about, or what meaning it has, we have to learn some
history. That means we have to widen the lens beyond the appalling present moment, without
denying its horror, at the same time as refusing to let that horror represent all the hortor there
is to represent, to know, and to oppose. The contemporary media, for the most part, does not
detail the horrors that Palestinian people have lived through for decades in the form of
bombings, arbitrary attacks, arrests and killings. If the horrors of the last days assume a greater
moral importance for the media than the horrors of the last seventy years, then the moral
response of the moment threatens to eclipse an understanding of the radical injustices endured
by occupied Palestine and forcibly displaced Palestinians ~ as well as the humanitarian disaster
and loss of life happening at this moment in Gaza.
Some people justifiably fear that any contextualisation of the violent acts committed by Hamas
will be used to exonerate Hamas, or that the contextualisation will take attention away from the
horror of what they did. But what ifitis the horror itself that leads us to contextualise? Where
does this horror begin, and where does it end? When the press talks about a ‘war’ between
Hamas and Israel, it offers a framework for understanding the situation. It has, in effect,
understood the situation in advance. If Gaza is understood as under occupation, or ifit is
referred to as an ‘open-air prison’, then a different interpretation is conveyed. It seems like a
description, but the language constricts or facilitates what we can say, how we can describe and
what can be known. Yes, the language can describe, but it gains the power to do so only ifit
conforms to the limits imposed on what is sayable. Ifit is decided that we don't need to know
how many Palestinian children and adolescents have been killed in both the West Bank and in
Gaza this year or over the years of occupation, that this information is not important for
knowing or assessing the attacks on Israel and the killings of Israelis, then we have decided that
we do not want to know the history of violence, mourning and outrage as it is lived by
Palestinians. We only want to know the history of violence, mourning and outrage ast is livedby Israelis. An Israeli friend, a self-described ‘anti-Zionist’, writes online that she is terrified for
her family and friends, that she has lost people. And our hearts should go out to her, as mine
surely does. It is unequivocally terrible. And yet, is there no moment where her own experience
of horror and loss over her friends and family is imagined to be what a Palestinian might be
feeling on the other side, or has felt after the years of bombardment, incarceration and military
violence? I am also a Jew who lives with transgenerational trauma in the wake of atrocities
committed against people like me. But they were also committed against people not like me. I
do not have to identify with this face or that name in order to name the atrocity I see. Or, at
least, I struggle not to.
In the end, though, the problem is not simply a failure of empathy. For empathy mainly takes
form within a framework that allows for identification to be accomplished, or for a translation
between another's experience and my own. And if the dominant frame considers some lives to
be more grievable than others, then it follows that one set of losses is more horrifying than
another set of losses. The question of whose lives are worth grieving is an integral part of the
question of whose lives are worth valuing. And here racism enters in a decisive way. If
Palestinians are ‘animals’, as Israel's defence minister insists, and if Israelis now represent ‘the
Jewish people’ as Biden insists (collapsing the Jewish diaspora into Israel, as reactionaries
demand), then the only grievable people in the scene, the only ones who present as eligible for
grief, are the Israelis, for the scene of war’ is now staged between the Jewish people and the
animals who seek to kill them. This is surely not the first time that a group of people seeking
release from colonial shackles has been figured as animals by the coloniser. Are the Israel
‘animals’ when they kill? This racist framing of contemporary violence recapitulates the colonial
opposition between the ‘civilised ones’ and the ‘animals’ who must be routed or destroyed so as.
to preserve ‘civilisation’. If we adopt this framework in the course of declaring our moral
opposition, we find ourselves implicated in a form of racism that extends beyond the utterance
to the structure of everyday life in Palestine. And for that a radical reparation is surely in order.
Ifwe think that moral condemnation must be a clear, punctual act without reference to any
context or knowledge, then we inevitably accept the term:
the stage on which the alternatives are orchestrated. In this most recent context, to accept those
terms means recapitulating forms of colonial racism which are part of the structural problem to
be solved, the abiding injustice to be overcome. Thus, we cannot afford to look away from the
history of injustice in the name of moral certitude, for that is to risk committing further
injustice, and at some point our certitude will falter on that less than firm ground. Why can't we
condemn morally heinous acts without losing our powers to think, to know and to judge? Surely
we can, and must, do both.
in which that condemnation is made,
‘The acts of violence we are witnessing in the media are horrible. And in this moment of
heightened media attention, the violence that we see is the only violence we know. To repeat: we
are right to deplore that violence and to express our horror. I have been sick to my stomach for
days. Everyone I know lives in fear of what the Israeli military machine will do next, whether
Netanyahu’s genocidal rhetoric will materialise in the mass killing of Palestinians. ask myself
whether we can mourn, without qualification, for the lives lost in Tel Aviv as well as those lost in
Gaza without getting bogged down in debates about relativism and equivalence. Perhaps the
wider compass of mourning serves a more substantial ideal of equality, one that acknowledges
the equal grievability of lives, and gives rise to an outrage that these lives should not have been
lost, that the dead deserved more life and equal recognition for their lives. How can we even
imagine a future equality of the living without knowing, as the United Nations Office for the
Coordination of Humanitarian Affairs has documented, that Israeli forces and settlers hadkilled nearly 3800 Palestinian civilians since 2008 in the West Bank and Gaza even before the
current actions began. Where is the world's mourning for them? Hundreds of Palestinian
children have died since Israel began its ‘revenge’ military actions against Hamas, and many
more will die in the days and weeks to come.
Itneed not threaten our moral positions to take some time to learn about the history of colonial
violence and to examine the language, narratives and frameworks now operating to report and
explain —and interpret in advance — what is happening in this region. That kind of knowledge is
critical, but not for the purposes of rationalising existing violence or authorising further
violence. Its aim is to furnish a truer understanding of the situation than an uncontested
framing of the present alone can provide. Indeed, there may be further positions of moral
opposition to add to the ones we have already accepted, including an opposition to military and
police violence saturating Palestinian lives in the region, taking away their rights to mourn, to
know and express their outrage and solidarity, and to find their own way towards a future of
freedom.
Pessoalmente, defendo uma polit
como um principio absoluto a ser aplicado em todas as ocasies. Afirmo que as lutas de
libertagdo que praticam a ndo-violéncia ajudam a criar o mundo nao-violento em que todos
queremos viver. Deploro inequivocamente a violéncia, ao mesmo tempo que eu, como tantos
outros, quero fazer parte da imaginacio e da luta pela verdadeira igualdade e justica na regio,
do tipo que obrigaria grupos como o Hamas a desaparecer, a ocupaciio a acabar, e novas formas
de liberdade politica ejustica florescerem. Sem igualdade e justica, sem um fim a violéncia
estatal conduzida por um Estado, Israel, que foi ele proprio fundado na violéncia, nenhum
futuro pode ser imaginado, nenhum futuro de verdadeira paz — isto é, nao a “paz” como um
eufemismo para normaliza¢ao, 0 que significa manter estruturas de desigualdade, de privacio
de direitos e de racismo. Mas tal futuro nfo pode acontecer sem permanecermos livres para
nomear, descrever e opor-nos a toda a violéncia, incluindo a violéncia do Estado israelita em
ica de nao-violéncia, sabendo que ela nao pode funcionar
todas as suas formas, e fazé
acusado de anti-semitismo. O mundo que desejo é um mundo que se oponha a normalizagio
do dominio colonial e apoie a autodeterminagio e a liberdade palestina, um mundo que, de
facto, realize os desejos mais profundos de todos os habitantes dessas terras de viverem juntos
em liberdade, nao- violencia, igualdade e justica. Esta esperanga parece, sem diivida, ingénua,
ou mesmo impossivel, para muitos. No entanto, alguns de nés devem apegar-se a ela de forma
bastante selvagem, recusando-se a acreditar que as estruturas que existem agora existitdo para
sempre. Para isso, precisamos dos nossos poetas e dos nossos sonhadores, dos tolos
indoméveis, daqueles que sabem organizar.
lo sem receio de censura, criminalizagao ou de ser maliciosamente
13 de outubro de 2023