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CAF Servigo piblico: 0 cemitério da motivagao? Em defesa de um choque de humanizagio na administragio piiblica brasileira HAMILTON COIMBRA CARVALHO Bacharel em Administragao pela Fundagio Getulio Vargas — FGV-SP e mestre em Administragio pela Universidade de Sio Paulo — USP. Servidor ptiblico estadual « ctiador do site Procurando Respostas (www. procurandorespostas.com), dedicado a temas sociais e de gestéo. Digitized »Google votes Google SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? INTRODUCAO Na minha experiéncia de 15 anos no setor publico (federal, estadual e municipal), assisto com frequéncia a uma conhecida sequéncia de eventos, a cada ingresso de servidores por meio de concurso. Muitos dos ingressantes tém um ine- gavel brilho nos olhos, uma vontade de dar um algo a mais, que se perde depois de alguns anos. O que faz com que isso aconteca? Antes de oferecer uma resposta, todavia, vamos considerar 0 que se tem exigido do setor publico no Brasil e no mundo. Em diagnéstico publicado em 2012, 0 governo britanico constatou que seu servicgo publico é focado em meios e nao em resultados e que sua cultura tende a ser burocratica, hierarquica € resistente 4 mudanga (HM GOVERNMENT, 2012). Na ad- ministracdo publica, diz o relatério, ha poucos incentivos para que os servidores busquem melhorias ¢ inovagées, ¢ aqueles que o fazem colocam sua carreira em risco. Assim, 0 caminho natural para os servidores é a acomodacao ao status quo. Esse diagnéstico do governo britanico é aplicavel ao servico publico de outros paises e, evidentemente, ao brasileiro. A proposicao é torte, mas inescapavel: a burocracia que orienta oat DESEMPENHO E RESULTADOS. o funcionamento dos governos asfixia a iniciativa, a inovac4o, a motivacdo e, por consequéncia, o desenvolvimento do capital humano nela empregado. O resultado disso é que a geracao de valor para a sociedade tende a ficar, em diversos graus (depen- dendo do pais e do érgi0), aquém do seu potencial. O setor piiblico ser4 cada vez mais cobrado por resultados melhores. E necessdrio desenvolver uma gest4o mais eficiente e eficaz, sem diivida, mas somente um “choque de humanizacao” € capaz de ativar o recurso mais abundante, mas também o mais subaproveitado nas organizagGes, como afirma Dee Hock (2005), fundador da Visa: o talento humano. Esse precioso recurso sé pode ser ativado se as necessidades humanas inatas tiverem espaco para expresso — algo que o sistema burocratico brasileiro nao favorece, como serd visto. COBRANCA POR MELHORES RESULTADOS. E O CREMATORIO DA MOTIVACAO Ha pouco tempo, o economista canadense Don Drummond listou uma série de recomendagées para 0 servico publico da provincia de Ontario (BRENT, 2012). Entre essas recomendagées, cortes agressivos de servicos. O objetivo das recomendag6es era tornar o servico ptiblico canadense financei- ramente sustentavel ¢ com o mesmo padrao de competitividade do setor privado. Tanto naquele pais quanto no Brasil, daqui a menos de duas décadas, uma populacao mais idosa vai depender cada vez mais dos servicos ptiblicos. Mas serd que é possivel obter eficiéncia ¢ eficacia no servico puiblico comparaveis a0 que se obtém no setor privado? a SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? Em primeiro lugar, é preciso ressalvar que comparacoes com o setor privado frequentemente s4o imperfeitas, pois con- sideram apenas praticas de uma pequena amostra de empresas bem-sucedidas, ignorando-se a maioria de empresas com desem- penho e priticas inferiores. Quem nunca sofreu com os servigos de uma empresa de telefonia? Feita essa ressalva, € necessdrio, todavia, dar raz4o as demandas sociais por maior competitividade e maior agregacao de valor no setor ptiblico. O mesmo artigo de jornal que trouxe a recomendacao de Drummond trouxe a resposta do executivo publico Peter Nicholson. Segundo ele, 0 servico puiblico nao esta preparado c/ou nao é motivado a inovar como o setor privado e, além disso, ‘os governos, tradicionalmente, nunca demandam inovacao de seus servidores. Nicholson acrescentou que a inova¢do ou o au- mento de produtividade sao mais dificeis no setor puiblico, pois os servicos nesse setor sao dificeis de ser medidos e nao sofrem a pressao competitiva do mercado. A solucdo, para o executivo, é fazer como os governos de outros paises, ¢ buscar medidas titeis de resultado do esforco governamental. Nicholson, em seu diagnéstico, identifica pontos que também s4o comuns ao setor ptiblico brasileiro. A énfase na busca de indicadores de impacto e de produto é necessaria, nao obstante 0 risco de adogao de solugées ruins que favorecam 0 gaming — isto é, aadogao de comportamentos ruins para a organizagao, apenas para favorecer os indicadores (RADNOR, 2008) e a ocorréncia de efeitos diferentes dos pretendidos. Porém, hd um elemento central na geracdo de valor do servico puiblico, que parece ser apenas tangenciado em modelos mais recentes de administrag4o publica (por exemplo, MINISTERIO DO PLANEJAMENTO, ex! DESEMPENHO E RESULTADOS. 2008): o elemento humano. A concepgao de motivacdo que em- basa modelos que tém sido aplicados no Brasil e em outros paises tem origem na velha previsao comportamental associada com 0 homo economicus (que supunha-se enterrado apés 0 advento da economia comportamental): ajustem-se os incentivos, e 0 com- portamento desejado acontecera. Medidas como o oferecimento de bénus por desempenho sao, porém, insuficientes (quando nao inadequadas — ver CARVALHO, 2012) para estimular 0 comprometimento verdadeiro dos profissionais. O que falta? O setor publico brasileiro precisa lidar com um parado- xo. De um lado, seu funcionamento é guiado pelo tradicional modelo burocratico weberiano, que lhe garante uniformidade de procedimentos, padronizac4o de regras, previsibilidade e estruturas hierdrquicas rigidas. De outro lado, nas ultimas décadas, a gestao ptiblica sofre cada vez mais pressdo para en- tregar melhores resultados e responder com agilidade As justas e crescentes demandas da sociedade. Cobra-se inovagao do setor ptiblico, cobra-se a adogao de modelos e sistemas com origem na administragao privada. O paradoxo surge na medida em que as caracteristicas do modelo weberiano nao permitem atender as demandas por agilidade, inovac4o e maior eficiéncia — 0 que resulta, com frequéncia, na gestao apenas simbélica de signos tipicos do mundo empresarial. Orgios ptiblicos adotam painéis de indicadores, afirmam ser geridos por resultados ¢ assim por diante. Porém, 0 cerne do paradoxo geralmente permanece debaixo do tapete. Esse cerne é, enfim, a incom- patibilidade do modelo burocratico adotado no Brasil com as condigées que favorecem a auténtica motivagéo humana no trabalho de forma permanente e sustentavel. 134 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? Tem-se, assim, quase uma tempestade perfeita para solapar a motivacao dos servidores publicos: pressées externas crescentes, geralmente legitimas, para maior competitividade do governo, traduzidas em solugées gerenciais ruins ou que no criam raizes; peso esmagador da inércia nos processos e produtos existentes; culturas organizacionais fechadas e resistentes 4 mudanga; sistemas de incentivos implicitos que “premiam’” o desempenho fraco; e predominancia de mode- los mentais que atribuem a culpa pela ineficiéncia do Estado aos servidores, replicando o fendmeno do “erro fundamental de atribuicéo”, conhecido pela Psicologia Social hé algumas décadas. A consequéncia é 0 baixo aproveitamento do capital humano existente, levando os servidores, em muitos casos, a apatia, ao desligamento emocional do trabalho, ao baixo comprometimento e ao desempenho abaixo do desejavel. Cria-se, assim, uma multidao de zumbis, que trabalham no piloto automatico e reproduzem o fendmeno da desespe- ranca aprendida (/earned helplessness), em que, apds certo tempo lidando com condigées que parecem incontroldveis, a conformidade é a regra (ABRAMSON et al., 1978). Nao € exagero, assim, batizar o servigo puiblico como o cemitério da motivacao, tendo em vista o desperdicio de um oceano de talentos e potencialidades. Onde buscar modelos pata motivar servidores ptiblicos? As empresas ainda hoje nao sabem motivar profissionais do co- nhecimento. O percentual de profissionais que se declaram moti- vados em diversas pesquisas, tanto no mercado norte-americano quanto no brasileiro, é baixo, girando em torno de 20% a 30% (por exemplo, GALLUP, 2013). A matriz de modelos gerenciais Google a DESEMPENHO E RESULTADOS. de motivac4o sao os Estados Unidos, um pais profundamente marcado pelo valor da autonomia individual e por alto escore na dimensao cultural de individualismo proposta por Hofstede et al. (1991). A motivagao na maioria das empresas norte-americanas ainda parece fortemente centrada na sua faceta extrinseca (re- munerac4o). Como afirma Amabile (2011), 0 trabalho deveria enobrecer (¢ néo matar) 0 espirito humano, mas a maioria dos gestores de empresas (norte-americanas, no caso) nao consegue identificar quais s4o os fatores que propiciam o étimo desem- penho de trabalhadores do conhecimento. Por sua vez, 0 conceito de profissional integrante das culturas organizacionais piblicas brasileiras parece ser aquele da antiga Teoria X (McGREGOR, 1960). De acordo com essa visdo, o trabalho é aversivo, as pessoas precisam ser controladas e nao querem assumir maiores responsabilidades. Dependendo do érgao puiblico, esse elemento de sua cultura se manifesta com maior ou menor forga, mas sua presenga ¢ facilmente discernivel. O servidor deve ser objeto de desconfianga sempre: por exemplo, se vai a um congresso, pode-se mandar uma lista de ponto para o local para comprovar que ele nao gazeteou; se precisa utilizar um taxi a trabalho, poderd ser exigida a indicagao do trajeto e o nome do motorista no recibo — caso contrario, o gasto corre 0 risco de nao ser ressarcido. Os exemplos encheriam diversas paginas. A regra parece ser a desconfianga praticamente absolu- ta, em nome de um pretenso controle total e do atendimento de um principio nao escrito de exclusao de responsabilidade profissional de quem controla. Tudo precisa ser regulado. Esse elemento cultural ganha ainda mais for¢a no Brasil por conta de seu perfil, um tema a que voltaremos adiante. 136 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? A concepgio de ser humano nas culturas organizacionais publicas alimenta, por sua vez, 0 conhecido e comprovado efeito Pigmaliéo: 0 comportamento organizacional passa a ser reflexo das expectativas embutidas na cultura. Como observou Cialdini (1996), sistemas de controle e vigilincia comunicam automa- ticamente aos empregados que eles nao sao objeto de confian- ¢a. Quando as pessoas se sentem coagidas a adotar determinado comportamento, elas podem burlar esse comportamento quando acreditam que o controle é imperfeito e que podem escapar impu- nes. Por causa do fendmeno psicolégico conhecido como reactance (reagao automatica a tentativas de controle), mesmo empregados honestos podem burlar ou sabotar sistemas de monitoramento. TRABALHO, NECESSIDADES INTRINSECAS E CULTURA Em sua concep¢4o moderna, 0 trabalho é central na ex- periéncia humana. Ele estrutura a passagem do tempo, permite a satisfacao de necessidades sociais e psicolégicas, cia identidade e dé significado a vida. Mas, para que o desempenho humano seja otimizado no trabalho ou em qualquer contexto, diversas necessidades devem ser atendidas simultaneamente. A medida que as organizacées publicas se tornam um ambiente hostil ao atendimento dessas necessidades, nao hé sistema de gesto que consiga favorecer 0 comprometimento efetivo e o desempenho 6timo dos servidores. Uma amostra representativa dessas necessidades (aplica- das ao trabalho) é listada a seguir (baseada em BAUMEISTER; LEARY, 1995; DECI; RYAN, 2002; GREENBERG, 1987; oan DESEMPENHO E RESULTADOS. LOEWENSTEIN, 2009; MOLLER et al., 2006; OLIVER, 2009; RYAN; DECI, 2000; SELIGMAN, 2011; STEGER, 2009; VIGNOLES, 2009; WRIGHT, 1994). Os profissionais: * Querem se sentir ouvidos. Querem sentir que sdo respei- tados, que sua opinido é levada em conta, que existem canais imparciais para a tomada de decis4o e que esta ocorre baseada em informacées objetivas (e contestaveis) e principios coerentes. © Querem perceber justica no relacionamento com o empre- gador e com os lideres, em suas diversas facetas (transparéncia e justi¢a nos procedimentos, na distribuigdo de recursos e informacées, no tratamento interpessoal). * Precisam sentir progresso nas dimensées importantes do relacionamento com seu empregador (por exemplo, avanco na carreira e indicadores de progresso no trabalho). © Querem se sentir parte de algo maior, sentir que seu tra- balho tem um propésito nobre. * Querem espago para se desenvolver, para aprender ¢ en- frentar desafios. * Querem manter um estado de humor positivo e, quando possivel, se divertir. * Querem se conectar com outras pessoas e desenvolver relacionamentos sociais saudaveis. * Querem conveniéncia e facilidade no seu cotidiano de trabalho, por meio de processos de trabalho bem desenhados, entre outros pontos. * Querem ter autonomia e controle sobre seus atos, ndo se sentindo controlados em excesso por outras pessoas. Porém, o sistema burocratico tradicional, de inspiracao weberiana e focado em cargos, linhas de comando ¢ estruturas 138 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? hierarquicas rigidas é, por si sé, um terreno 4rido para o aten- dimento dessas necessidades, dificultando, assim, 0 alcance pleno dos objetivos dos érgaos governamentais. Além disso, no Brasil (e possivelmente em paises latinos que tenham um perfil cultural similar), 0 sistema burocrdtico tende a ser mais disfuncional. Que perfil cultural é esse? Basicamente duas das di- mensdes de Hofstede et al. (1991) vém ao caso: intolerancia a incerteza e distancia do poder. Quando a primeira é baixa, como no caso brasileiro, a tendéncia é a producao em excesso de normas. Como no se consegue conviver com a incerteza ea ambiguidade, tudo — absolutamente tudo — precisa ser regulado por normas estatais (exemplos banais: obrigar comerciantes a exibir 0 Cédigo de Defesa do Consumidor; obrigar, por decre- to, os secretarios de Estado a utilizarem o transporte coletivo). Com isso, é gerada uma avalanche de normas que, muitas vezes, desdéguam no nao cumprimento e no descrédito — gerando a necessidade de novas normas. J4 no caso da dimensio cultural “distancia do poder” com alto escore (como no Brasil), relacées hierdrquicas s4o muito valorizadas e nao podem ser quebradas: “manda quem pode, obedece quem tem juizo”. Com isso, existe a tendéncia de criacao de um ambiente de trabalho autoritario, injusto e hostil 4 motivagao e ao comprometimento. Como consequéncia de um sistema de organizagio do governo (burocracia weberiana) que tende a levar a arquite- turas e culturas organizacionais rigidas, com efeitos negativos potencializados pela expansio irrefreada de normas (inclusive as intraorganizacionais) e por relacdes de poder autoritarias, nao € surpresa que tenhamos organizag6es publicas que geram oan DESEMPENHO E RESULTADOS. baixo valor ao cidadao, que tém fortissimo “sistema imuno- légico” contra a mudanga ¢ a inovacao € que sejam fabricas de desmotivago em série. O setor puiblico, além disso, tende a gerar o que se conhece na literatura de psicologia como foco egulatério (crénico) de prevengio (HIGGINS, 1998), no qual o objetivo implicito no ambiente de trabalho é cumprir estritamente as regras ¢ evitar qualquer problema possivel. Com isso, a inovac4o ea exposicao ao risco (tipicas do foco regulatério oposto, o de promogao) nao s4o incentivadas. Além disso, nem mesmo o setor publico estd imune a um macroambiente cada vez mais mutdvel e dinamico. A realidade com que qualquer organizagdo se depara, interna e externamente, é multifacetada e exige do gestor uma pre- paragdo para superar a natural tendéncia humana a buscar e aceitar solugoes faceis, prontas e frequentemente ruins. Toda organiza¢ao lida com diversos paradoxos, cujo enfrentamento requer a superagdo de tendéncias individuais automaticas e incrustadas (como o dogmatismo). Esse é um perfil que se exige cada vez mais dos gestores e lfderes: a aceitacdo e a gestao de situacées ambiguas, que carregam frequentemente pontos de vista contraditérios. Enfrentar os paradoxos organizacionais envolve ainda 0 desenvolvimento de determinadas competéncias organizacionais, como a tolerancia ao risco — hé caminhos conhecidos para isso, como os comités de risco para o desenvolvimento de inovagées. Mas tanto as competéncias individuais quanto as organizacio- nais desejaveis tendem a ser sufocadas em uma cultura como a brasileira, com baixissima tolerancia 4 ambiguidade e relagoes de poder bastante assimétricas. 140 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? FALTA DE CONTROLE E DE MECANISMOS DE PARTICIPAGAO: OS EFEITOS NA SAUDE O terreno drido para a satisfacao das necessidades hu- manas inatas, representado pelo ambiente que se encontra nas repartig6es ptblicas brasileiras, nao tem efeito apenas na baixa geracdo de valor do setor publico. O epidemiologista britani- co Michael Marmot, professor na area de satide publica em Harvard, estudou por varias décadas os funcionarios do servico publico inglés. Marmot (2005) resume as descobertas de sua pesquisa cientifica e as de varios outros autores compreenden- do o estudo de populagées de paises como Japao, Inglaterra, Estados Unidos e Finlandia. Os achados tém profundas im- plicagdes para polfticas sociais e para o mundo do trabalho, mas as evidéncias trazidas pelo seu trabalho ainda sio pouco conhecidas no mundo corporativo norte-americano e brasileiro. E, por isso, essas implicag6es ainda nao fazem parte do radar dos administradores publicos no Brasil. Marmot, em sua longa carreira de pesquisas, produziu e reuniu um grande conjunto de evidéncias que comprovam que, quanto mais controle temos sobre o trabalho ¢ os outros aspectos da vida e quanto mais participacdo temos nas diversas esferas da nossa vida social, maior a nossa longevidade e menor a incidéncia de doengas graves, como as cardiovasculares ¢ 0 cancer. A dife- renga torna-se brutal conforme se avanga na hierarquia social, e nao é explicada por habitos de vida. Isto é, habitos alimentares, tabagismo, estilo de vida e acesso a um bom sistema de satide tém influéncia sobre a incidéncia de doengas e a mortalidade, mas 0 efeito é pequeno quando comparado a auséncia desses fatores 141 DESEMPENHO E RESULTADOS. psicossociais (autonomia e participacao social). Baixos niveis de autonomia e participacao social levam, comprovadamente, a incidéncia de estresse crénico entre os individuos. Por isso, Marmot classifica os problemas decorrentes da auséncia desses fatores como sindrome. Mais ainda, trata-se de um gradiente, de modo que 0 segundo grupo de pessoas com melhor posigao social vive menos do que o primeiro grupo ¢, assim, sucessivamente, até 0 grupo mais baixo na hierarquia social. Evidentemente, todas as sociedades tm um gradiente na hierarquia social e nao ha como abolir isso. O que se pode fazer é diminui-lo, ¢ hd meios praticos para isso. A pesquisa de Marmot mostra que, em se tratando de trabalho, é importante: 1. O balancgo entre demandas feitas ao individuo e o controle que ele tem sobre seus recursos (tem- po, autonomia para decis6es) para atender essas demandas. A medida pratica € 0 incremento da autonomia dos funciondrios — lembrando que autonomia nao é independéncia: requer regras claras, estrutura e oportunidade de escolha, e nao € compativel com um erro comum dos gestores, que é 0 microgerenciamento. 2. As oportunidades para engajamento existentes — es- pago para participag4o social, como voz na tomada de decisées que impactam sua vida, ¢ para desenvol- vimento pessoal e profissional. 3. O balango entre esforgo e recompensas — n4o apenas recompensas monetérias, mas também as sociais, como autoestima e recompensas relacionadas as oportunidades de carreira. re Google SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? As evidéncias reunidas por Marmot mostram o efeito devastador de ambientes sociais que nao dao espaco para a satis- facdo das necessidades psicolégicas inatas dos individuos. CHOQUE DE HUMANIZACAO E CAMINHOS POSSIVEIS O problema enfrentado pelo setor publico brasileiro no tocante a baixa geracao de valor decorrente do baixo aproveita- mento de seu capital humano é, enfim, 0 que se chama de um problema hipercomplexo (wicked problem) — com diversas facetas e com solucoes abertas. As solugées terao de ser construidas e testadas sob uma abordagem de gerenciamento por descobertas (KLEIN, 2009): mudangas introduzidas aos poucos, em um processo de continua experimentacdo e aprendizagem, sem saber exatamente onde se vai chegar, mas sabendo a direco a segui Como afirma Marmot (2005), no conceito tradicional de trabalho — ¢ isso parece ainda mais verdadeiro no setor puibli- co brasileiro —, as pessoas (em especial as que ocupam posicdes inferiores na hierarquia) morrem um pouco todos os dias: ha pequeno uso de suas habilidades e conhecimentos, as tarefas s4o completamente determinadas por outras pessoas e hd pouca ou nenhuma recompensa em termos financeiros, de autodesenvol- vimento ou em clevagao da posigao social. Apresentamos, a seguir, algumas abordagens que parecem. promissoras para enfrentar os problemas delineados neste capitulo e que se adéquam a um conceito que nomeamos como “choque de humanizag4o”, em referéncia aos “choques de gestéo” comu- mente apregoados como solug6es para a administragao publica. 143 DESEMPENHO E RESULTADOS. O caminho para superar os desafios aqui apresentados parece ser a flexibilizaco do modelo burocratico, buscando-se ar- quiteturas organizacionais focadas na busca de resultados claros, organizadas em toro do eixo propésito-principios-pessoas e com um novo balango na relagio de poder entre chefes e subordinados — ou lideres e seguidores —, em uma nomenclatura mais adequada aum momento histérico em que as relacdes de poder precisam ser cada vez menos assimétricas para que os relacionamentos produzam melhores resultados (KELLERMAN, 2012). Ha limites claros, como os principios do direito administrativo (que provavelmente também precisam ser flexibilizados), ¢ ha requisitos necessérios, como aexisténcia de métricas de impacto minimamente adequadas. Uma proposta promissora vem do que Kotter (2012) chama de sistemas operacionais duplos: a existéncia de uma hierarquia tradicional para cuidar dos processos operacionais tradicionais, associada a um pool de voluntarios, que compoem outra estrutura, informal, para cuidar da resposta estratégica da organiza¢4o em face das ameacas e oportunidades do macroam- biente. Essa estrutura informal permite “montar” e “desmontar”, de forma dgil, equipes de trabalho temporarias. Como Kotter reconhece, os sistemas hierérquicos presentes nas empresas nao tém agilidade suficiente para enfrentar esses desafios e nao favo- recem 0 vital questionamento do status quo. Entendemos que 0 conccito de pool poderia ser apli- cado no servigo publico de forma ainda mais interessante. E aqui fazemos mais uma proposicdo: mudangas em arquiteturas organizacionais e em processos de trabalho s4o condi¢ao ne- cess4ria para contornar o enorme obstdculo 4 motivagio dos servidores representado pelas relagdes hierdrquicas autoritarias 144 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? que sao tipicas da cultura brasileira. O senso comum indicaria uma outra soluc4o, o investimento na formagao de liderangas. Mas, de acordo com a professora de lideranca de Harvard, Bar- bara Kellerman, hé escassas evidéncias de que a industria da lideranga (com seus cursos, semindrios etc.), que se desenvolveu enormemente nas tiltimas décadas, entrega 0 que promete. Isto é no apenas nao hé evidéncias convincentes de que é possivel formar bons lideres pelo caminho educacional, como também essa industria nao consegue atender dois objetivos que deveriam ser primordiais. Esses objetivos sao evitar a ascensao de lideres ruins e desenvolver seguidores, superando o conceito passivo usualmente atribuido a quem deveria estar “subordinado” aos lideres (KELLERMAN, 2012). Hierarquias sao inevitaveis, mas é preciso buscar dese- nhos de organizac4o que possibilitem aos profissionais de todos os niveis mais envolvimento nos processos de trabalho e menos sentimento de serem totalmente controlados por outras pessoas. Nesse sentido, 0 conceito de pool de profissionais poderia ser desenvolvido mesmo para atividades operacionais, dependendo da organizacao. Isso permitiria, por um lado, o estabelecimento de uma nova relacao de poder, centrada na entrega dos resultados pactuados e na relativa autonomia, mas exigiria, de outro lado, o trabalho gerencial de definicao dos resultados esperados, prio- rizagao de atividades, comunicagao ¢ avaliacao. Nese conccito, os profissionais poderiam ser facilmente alocados em nticleos geradores de trabalho de acordo com sua escolha e desempenho prévio, compondo seu cardapio de atividades de acordo com seu perfil e com as demandas operacionais e estratégicas do nticleo de trabalho e da organizacao. O conceito exige a avaliagao de 145 DESEMPENHO E RESULTADOS. desempenho. Ao mesmo tempo, favorece a satisfacao das neces- sidades humanas inatas ao lidar com a confianga e ao exigir a entrega de resultados claramente definidos. Em uma arquitetura organizacional flexivel também nao hd empecilho para que atividades que hoje sio separadas por barreiras geograficas sejam distribufdas e realizadas isolada ou conjuntamente por profissionais que facam parte da mesma rede de atuacao (no conceito de comunidade de pratica, descrito adiante), ainda que separados por centenas de quilémetros. Isso envolve a redefini¢ao de processos e estruturas organizacionais e a institucionalizagao do conceito de redesenho do trabalho (job crafting), mas é possivel. Outros aspectos além da redefinicao do trabalho e das estruturas organizacionais precisam ser enfrentados em um cho- que de humanizacao. Para que os profissionais percebam um tratamento justo por parte de chefes e da organizac4o, é necessdrio reestruturar processos de decisao e de trabalho para que os requisitos da justiga organizacional (GREENBERG, 1987) sejam atendidos. Avaliacao de chefes e pesquisas periédicas de satisfagao no trabalho (€ seus determinantes) também sao recomendaveis. Nao se trata apenas de medir felicidade ou emogées positivas no trabalho. E preciso considerar as demais vertentes de uma vida plena (SELIGMAN, 2011), como oportunidades para construgdo de relacionamentos sociais significativos e realiza¢ao profissional, entre outras, além de haver mecanismos para agir sobre os fatores insuficientes. A pesquisa de Marmot (2005) mostrou que uma rede forte de relacées sociais protege a satide e previne doengas. Nesse sentido, quanto mais saudaveis € produtivos os relacionamentos 146 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? no trabalho, melhor. Um conceito que tem muito espaco para desenvolvimento no servico puiblico € 0 de comunidades de pratica (PERKINS, 2009). Trata-se de um conceito com origem no campo da educac4o e que requer redes horizontais de comu- nicago e colaboragao, que tendem a ser possiveis na medida em que o profissional possua um grau adequado de controle em seu ambiente de trabalho. O conceito também tende a ter bastante aderéncia em arquiteturas organizacionais flexiveis. Em um choque de humanizacio, é preciso reconhecer ainda que o profissional de qualquer organizacao, publica ou privada, desempenha outros papéis em sua vida. As pessoas so filhos, pais, irm4os, condéminos, consumidores, estudantes, pacientes. O conceito tradicional de trabalho é ancorado em uma premissa bastante questiondvel: a de que a presenga fisica significa desempenho. Mas a miriade de papéis que os indivi- duos tém em sua vida nao desaparece quando se cruza a porta de entrada da organizacdo. Pelo contrario, eles tendem a gerar ansiedade, auséncia mental do trabalho e outras consequéncias negativas, especialmente quando ha pouco ou nenhum espa- ¢0 no cotidiano profissional para atendimento das inevitaveis demandas decorrentes desses papéis. Nesse sentido, é preciso estimular mecanismos que reconhecam essa realidade e permitam seu enfrentamento eficaz, como horarios flexiveis e ambientes de trabalho focados cxclusivamente em resultados (Results Only Work Environment— ROWE) (RESSLER; THOMPSON, 2010), que eliminem a natureza paternalista da relacdo entre chefes e subordinados, comum no paradigma tradicional, e tratem os profissionais como adultos.’ 1 Para saber mais sobre o conceito de ROWE, ver Ressler ¢ Thompson, 2010. Google 147 DESEMPENHO E RESULTADOS. Buscar novos caminhos envolve, todavia, um grande desconforto. Qualquer solugao de gestéo de pessoas no ser- vico ptiblico precisa atender bem, e simultaneamente, a trés ptiblicos: os profissionais, as préprias organizagées e a socieda- de. Um exemplo simples, que tende a gerar desconforto: por que recompensar, em sistemas de promocao de carreira, por capacidade (como cursos feitos), assiduidade ou antiguidade, em vez de recompensar por contribuicdo ao propésito da or- ganizacao? Além disso, medir produtividade de trabalhado- res do conhecimento nao € facil e preciso. Grandes empresas cometem erros banais e, por vezes, de grandes consequéncias negativas (KNOWLEDGE AT WHARTON, 2013). Esse é um desafio que organizagées privadas e puiblicas comparti- Iham. Para lidar com ele, nao ha solugées prontas e simples. Mas hd caminhos que podem servir de inspirac4o: s4o solugées gerenciais baseadas no atendimento das necessidades humanas inatas, como o bem-sucedido exemplo do sistema educacional finlandés (SAHLBERG, 2011). Talvez o setor publico seja sempre hostil, em algum grau, & motivacdo. Utilizando a interessante metéfora de uma horta (TREMBLAY, 1999), em um terreno fértil a maioria das plantas vai atingir seu potencial de florescimento — 0 mais importante € seu gendtipo. Mas em um terreno rido, poucas plantas ten- derao a florescer, ¢ 0 que faz a diferenga nao é 0 genétipo, mas os cuidados, como o fornecimento de agua e nutrientes. Se a administra¢ao publica brasileira pode ser comparada de alguma forma a um terreno drido, é importante, ent4o, que sejam bus- cadas as condigées de nutricao e desenvolvimento da motivacao humana para que 0 enorme potencial existente seja efetivamente 148 SERVICO PUBLICO: © CEMITERIO DA MOTIVACAO? aproveitado. Quem sabe, assim, os servidores consigam recuperar 0 brilho nos olhos. Quem ganha é a sociedade. BIBLIOGRAFIA ABRAMSON, L. Y. et al. Learned helplessness in hu- mans: critique and reformulation. Journal of Abnormal Psy- chology, v. 87, n. 1, 1978. AMABILE, T. M. Do happier people work harder? The New York Times, 3 set. 2011. Disponivel em: . Acesso em: 30 abr. 2013. BAUMEISTER, R. FE; LEARY, M. R. The need to be- long: desire for interpersonal attachments as a fundamental human motivation. Psychological Bulletin, v. 117, n. 3, 1995. BRENT, P. The public service: fewer people, more efficiencies. Globe Advisor, 26 abr. 2012. Disponivel em: . Acesso em: 27 abr. 2013. CARVALHO, H. C. Bénus no servico publico: muito mais problema do que solucdo. Procurando respostas, 2012. Disponfvel em: . Acesso cm: 30 abr. 2013. CIALDINI, R. B. Social influence and the triple tumor structure of organizational dishonesty. In: MESSICK, D. M.; TENBRUNSEL, A. E. (Orgs.). 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