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Fractal: Revista de Psicologia, 32,m cep, p. 185-189, jun. 2020, doi: hps://dolorg/10.22409/1984.0292)v32_-esp/38850 Dossé 0 profesor sem vor: ems na escola contemporiea edesatos para a. piclozia A autoridade do professor na sociedade escolarizada Elizabeth Tunes,® ** Zoia Prestes® " "Universidade de Brasilia e Centro Universitario de Brasilia, Brasilia, DF, Brasil “Universidade Federal Fluminense, Niteréi, RJ, Brasit Resume (© presente artigo tem como finalidade examinar como a consolidagde da mentalideie escolarizada articula-se ao fracasso da escola Parte-se de uma breve earacterizagdo do momento histévico de nascimento da escola. hd apreximadamente oltocentos ‘anos, até chegar-se 4 era da indusrializagao, hd cerca de duzentos anos, quo comega a desenvolver-se o que se denomina, na literatura, de mentalidade escolarizada. 4pés caracterizar, brevemente, e880 mentalidade, sdo apresentados argumentos visanda demonstrar de que modo isso contribuiu para o racasso da escola, minando a autoridade do professor e gerando a possibilidade de emergéncia da excola militarizada. Conclu-se que a perseveranga no mito da escolarizagdo por meio da difsdo da ideia de que acrise da educasdo ¢ de carter técnico conduc a inictativa de intnsficagao de formas de avaliagao do processo de ensino- “aprendizagem ¢ é miltarizagdo das escolas como forma de conter a violencia. O mito da escolartzagao é um aliado importante do idea! de conivole social da aprendizagem. Palavras-chave: educagdo; autortdade; escolarizagao. Teacher authority in schooling society Abstract Jin this article we aim to examine how schooling, a kind of mental space, ss related tothe failure of school. We begin presenting brief characterization ofthe historical moment of school’ birth about eight hundred years ago. Then we move to the industrial- ‘zation era which began approsimately two hundred years ago and in which was born a Kind of mentality called schooling. After 4 brief characterization of schooling mentality: we present arguments i order to demonstrate how it contributed to school failure by collapsing teacher s authority. The death of teacher 8 authority in its turn, creates the possiblity of emergence of militarized school. tis concluded that perseverance in the myth of schooling, carried out by spreading the idea thatthe education crisis i of a technical nature, leads to tatiatives to taensi forms of evaluation of the teacking-learning process and the militarization of schools as aveay to contain violence. The myth of schooling is an important ally ofthe ideal of social control of learning. Keywords: education: authority: schooling. Introducio centes cujo os (sic) exames apontarem 0 uso de entor- pecentes e substincias psicoativas ficario impedidos de lecionar até @ realizagio de proximo examie que ateste Saue preside as decades de que a teenoiogi éma # tseucia destas mesmmas substéncias”. Seus salétios Jorga.a seu serge e ndo wna forga avasatadora, seTiam descontados e, se reincidentes acima de um teto, ‘omou-se hoje inprescindvel deermar a informa- _ Setiam, entio, exonerados, Para que ocidacko possa ser persuadido de que é ele ‘quem controla 0 seu préprio destino, de que a moral ‘co. idea! de formar o piblico oisubstituido pela De acordo com 0 reporter, houve alguma reagdo 30 tenttiva de convenceressepiblica de que as ayées @_projeto. Opositores afirmaram sua inconstitucionalidade. ele impostas sao, na realdade.agaes deseiadas. Outros enxergaram nisso uma légica moralista de asso- ‘Ivan Illich (1975, p. 14-15) cia 0 docente ao drogado, desmoralizando os profissio- nas da educagio. Ainda outros, aturalizandoo episod, argumentaram que 0 referido projeto nao deverd ser aprovado, que seu autor estara apenas buscando obter alguma noteriedade ‘De todo modo, seja la o que vier a acontecer coma im- sitada proposta, o fato que nos parece importante realgar & cue idea fi apresentaca ejusfcada, aie est posta, ela existe. Isso ¢ por si s6 muito assustador, Nao bastassem apenas as iniciativas para se tentar exercer controle abso- Ito sobre o pensamentoe a agdes dos dacentes tl como a proposta veiculada pelo programa Escola sem Partido, ‘surge agora a assombrosa intencdo de se fazer também 0 controle de seus compos. Ea propria existncia da idein 0 Sto dificeis os tempos hoje vividos, especialmente no campo da Educagio. A reportagem apresentada a seguir ilustra, sem qualquer divida, a natureza do mal que nos atinge. Ela foi publicada pelo O Globo. no dia 1/10/2019, eassinada por Bruno Alfano (2019). Segundo a noticia, tum deputado estadual do PSL, no Rio de Janeiro, Ale- xandre Knoploch, protocolou projeto de Ici instaurando 2 obrigatoriedade para docentes da rede piiblica e priva- da se submeterem a exame foxicol6gico “especifico para substincias psicoativasilicitas que causem dependéncia ou, comprovadamente, comprometam a eapacidade inte- lectual ede raciocinio”. A Secretaria de Estado de Educa- a0 concentraria o resultado dos exames, publicando-os Sin seu sitio eletonico oficial, prevendosse que “os de. ®comfecimento avillante. Por que se deseja com tamanbia Folecg:pan saramoincy Unremice i Dena Corpus aos ene SViKCZ 0 controle das mentes ¢ dos corpos dos professo- ASENORIE CEP 0000000-Brauha DS” Brant Emu hantne's res? O que motiva ou de onde surge esse desejo aparente- geal mepreran cot mente intempestvo? E tendéncia nova que esté a emergir? se taal et eid com na Lena enti Conan Aton 4 trina License Pease demo s8 -Elzabeth Tunes; Zoia Preses Que intengao esse desiderato encobre? No presente ensaio, temas como objetivo destacar pontos que merecem refle- xiloa respeito dessas questies apresentadas, surgimento da instituigao escolar e a escolarizagao da sociedade [nr] nos paises com deficiéncia de escotas, onde 0 vrédio de pilha ja chegou a todas as aldetas, jamais deveriamos subestimar a fieigae educacional dos grandes disidentes carismaticos, como Dom Hiél- der Céimara, no Brasil, Camilo Torres, na Colsin= bia, Castro qualifcava seus primeiras discursos carisméticos de “sessbes pedagégicas. O espirito ‘escolarizado vé nesses processos apenas a douiri- nagao politica, passardo-the despercebulo 0 seu ‘objetivo educacional an Mich (1975, p.97) ‘Acescala que conhecemos hoje é institiglo de mmita idade — tem cerca de oitocentos anos. Ela surgin com a escoberta da tecnologia do alfabeto, a partir do século XII, criando a possibilidade da emergéneia do texto livres- 0, que, por sua vez, legitimou a perpetuagio das institui- cgdes escolisticas ocidentais. Viveu-se, naquele momento histérico de transigao da era da leirura monéstica para a cera da leitura escolistica, uma verdadeira revolugio cul- tural, e, como diz Illich (2002, p. 7), a “cultura livresca ‘universal converteu-se em micleo da religido secular do Ocidente e a escolarizacio, em sua Tereja”. O autor des- creve com maestria e profundidade a transformaglo no ‘modo de leitura, na passagem da era mondstica para aes- colistica, destacando um breve momento, ainda que mui- to importante, ds histéria do alfabeto. A pégina do livro, que até entao “era uma partitura para beatos bisbilhantes, twansformou-se. de repente, em um texto organizado oti- ccamente para pensadores légicos” (ILLICH, 2002, p. 8) Foi com essa organizagao e estrutura que 0 texto livresco cconstituiu-se na “metafora raiz” de uma época. Daquele momento em diante, as instituigdes educa- tivas secularizaram-se © multiplicaram-se. Contudo, 20 Jongo do tempo, desenraizaram-se cada vez mais do tex- to livresco, dando inicio, ha aproximadamente duzentos anos, a0 que Illich (1975) chama de “era da escolariza- G40", Hoje, € possivel afitmar que o livro texto foi prati- camente substituido pela tela, pelos meios de difusio de informaglo, pelas imagens téenicas. Curiosamente. a es- colarizagiio ou mentalidade escolarizada parece estar ain- dda mais fortemente presente na vida social do que esteve anteriormente. A mentalidade escolarizada, em sua es- séneia, é a que confunde “processo com substincia” (ver ILLICH, 1979), admitindo-se, por exemplo, que, quanto ‘ais longo o tempo de frequéncia & escola, melhores se- ro 0s resultados de aprendizagem: que obtengio de di- ploma ow titulo universitirio é sinénimo de obtencio de competéncia; que a quantidade de artigos cientificos pu- blicados por um professor universitirio atesta sua capaci- dade de dizer algo novo; que cuidar da sate é o mesmo que fazer tratamento médico; que seguranca piiblica ¢ ‘© mesmo que proteedo policial: e seguranga nacional, a existéncia de aparato militar. 186 Muitos acteditaram, ¢ talvez ainda acreditem, que Ivan Illich propgnava que a escola fosse abolida da so- ciedade.! Ele atribuiu essa interpretagdo equivocada a0 titulo escothido pelo editor de seu livro (De-schooling Soctety), que traia o seu pensamento. O que auspiciava na obra era, na verdade, a desinstitucionalizagto da esco- Ia, ideia que, mais tarde, ele proprio crticon por enten- der que “a altemativa a escolarizacao nao devia consistir em um tipo diferente de instituigao educativa, ou em um projeto que inserise a instrugo em todos os aspectos da existencia, mas em uma sociedade que promovesse uma catitude diferente das pessoas em relacdo aos instrumen- tas” (ILLICH, 1990, p. 15, grifos nossos). Em sintese, em 1990 Illich mantinha a eritica a ide ologia da escolarizayao on & mentalidade escolatizada, ou seja, era contumaz. Em 1968 jé a tecia, analisando especialmente 0 seu significado nos Estados Unidos znos paises da América Latina, aos quais sc impunham os modelos estadunidenses, especialmente por meio do pro- arama Alianga para o Progresso. Alguns desses textos fo- ram reunidos cm coletinea, publicada pela primeira vez em 1969. Na obra, indica ser seu objetivo “questionar a natureza de algo supostamente certo” (ILLICH, 1975, p. 9), criticar as insituig6es, pois estas “criam certezas e, se tomadas a sério, as certezas entorpecem os animos € algemam a imaginagio” (ILLICH, 1975, p. 9). Por iss, diz com ironia, no preficio: "Cada um deles servin para invitar um burocrata bem instalado, no momento em que este encontrava dificuldade em racionalizar uma posigao consagrada” (ILLICH, 1975, p.9) (0 processo de escolarizagdo produz muitas certezas ‘Uma delas, por exemplo, éa de que a frequencia & esco- la € indispensivel para que umn individuo se tonne til & sociedade, e tanto mais itil sera quanto mais tempo fre- quentar a escola, Essa é uma certeza que nao se ancora ‘nos fatos, portanto ndo passa de ideologia, Se observar- mos 0 nosso entomo imediato, veremos que a grande miaioria das pessoas que presta servico das mais variadas naturezas (domésticos, comerciais, de construgdo, impe- za e manutencao de espacos piiblicos), portanto pessoas que, indubitavelmente, seriam chamadas de tteis & s0- ciedade, no so as que usufrviram de maior tempo de frequéncia a escola. Outra certeza é a de que edcacao, necessariamiente, implica anos de frequéncia a escola € a de que uma sociedade seré tio mais civilizada quanto iaior foro miimero de cidadios que frequentaram ou fre- quentam as carteiras de uma sala de aula, Bsquecem-se do ensinamento de Paulo Freire (1979, p. 35): ‘Uma eduoagao que procura desenvolver a tomada de cons ‘iencia ea atitude euitca, gragas A qual o homem escolhe e decide, lberta-o em lugar de submeté-to, de domesticé-o, adapti-o, como faz com muita frequéncia a educapao em ‘vigor num grande nimero de paises do rmindo, edueagto ‘que tende a ajustar o individu & sociedade, em lugar de ‘promové-lo em sua propria linba, ‘Eis ma tosouse anda ae foe 9 Beal devdo 2 wadupo ala ‘iat mniguats do tle dz cha em povtgut. Sociedad acne oy Fractal, Rev, Psicel, ¥. 32 — a. exp. p. 185-189, 2020 ‘A ideologia a que nos referimos propugna que € pela Educagao — vale destacar, escolar — que uma nagao resolve, se nio todos, pelo menos os seus mais impor- tantes problemas, Essa ¢ a ideologia da educagio como panaceia universal que, como bem sabemos, nao resiste minimamente a0 exame historico. Essas e muitas outras certezas que sio afirmadas em relagio escola e suas relagdes com a educagao nfo passam de quimeras, de {fantasias que encobrem a realidade dos fatos e sto propa- gadas como dogmas da escola, a igreja oficial dos tempos seculares, tal como a denomina Illich (1975, p. 102-103), para quem o impulso para a escolarizacio universal, sur- ido ha dois séculos, sempre teve como objetivo: J incorporar todos os individuos ao Estado industrial, Ni mettépole industrial, a escola foi a instituigao integradora. "Nas coldnias, ela inculeou nas classes dominantes es valo- 185 do poder imperial ¢ confirmou nas massas 0 seatimen- 10 de inferioridade diante dessa elite escolarizads. Tanto @ nagio como a indistria da era pré-cibemética seriam in- ‘coneebiveis sem o batismo universal conferido pela escola Nesta era, o individuo que allo completa os seus estudos corresponde ao marrano relapso da Espanha, no século XI. © ocaso da autoridade se, pois, que a ideia de escolarizacdo universal tem sentido bem estabelecido: a instilagao de valores para a domesticacio de corpos ¢ mentes. Para isso, contudo, seria necessério insttuir, por meio das priticas escola- 13, 0 controle social da aprendizagem, isto €,o controle sobre o que seria aprendido, acontecimento tomado pos- sivel por constrangimentos e imposicdes feitas ao ato de ensinar, portanto, aos professores. Programas curricula res, métedos ¢ téenicas de ensinar, formas de avaliacao, adocio e formatagio de livros didéticos e agées congé- neres foram desenvolvidos com requinte detalhe, ge- rando uma tal padronizagio ¢ uniformizagio do ensino que, nos dias de hoje, chega-se sugerir a professores| © tom de voz e 0 modo de falar que deve adotar para dirigirse a seus alunos. Em sintese, visa-se & criagio do automato professor para gatantir a ctiagao de automatos; alunos. Vé-se, assim, que a realizagdo do controle social da aprendizagem por meio do controle da acd docente fere, necessariamente, a autonomia do professor, enfia- quecendo até a destrui¢to a autoridade do professor. Desde 0 inicio da era escolistica o mestre usuttuia de autoridade diante dos estudantes. Anteriormente, no petiodo mondstico, 2 autoridade era conferida aos textos sagrados que narravam a historia da criagio do mundo. ‘A propria estrutura do texto atesta esse fato. Elesinicia- ‘vain-se sem titulo, com uma frase inicial - incipit — que dava o tom da narrativa. O ineipit era umn aucroritas, isto 6, algo que vale a pena ser repetido, conservado (ver ILLICH, 2002), Por exemplo, no século XII, no livto de Hugo de Sio Vitor (2001, p. 47), que marca a traasicio dda era mondstica para a escolistica, 0 incipit — “De to- das as coisas a serem buscadas, a primeira € a Sapiéncia, na qual reside a forma do bem perfeito” — inseria a obra smuma tradigdo didascélica, isto €, dos assuntos relativos| a instrugto. Essa tradigao remontava & Varron, que foi Fractal, Rev. Psicol, v. 32 — m. esp, p. 188-189, 2020 ‘A sufordade do professor na sociedad excolrizads bibliotecério de César e Augusto ¢ autor da primeira gra- miética normativa do latim. © tempo de Hugo foi o séenlo XIL, 0 século bergo da revolugdo cultural que trouxe a transformagio na estrutura do texto, nas formas de leitu- 1a, € geston a ideia de autor. Surgia o periodo escoléstico, ‘que deu lugar & secularizagdo do ensino e da aprendi zagem. Nos breves momentos da era que se iniciava, a atutoridade transferiu-se do texto para o autor, que, muitas| ‘vezes, eram os proprios mestres. As palavras autor e autoridade sto de origem latina Derivamse do verbo augere, que significa fazer ctes- cet. Diz respeito a atividade de jogar sementes para que ccrescam, Tém origem no mito da fundacao de Roma por Romulo, que “plantou a raiz sobre a qual a cidade as- senta, ¢ da qual sorve a selva que faz com que cresca © se tome o império do mundo”: para que possa vingar, & nevessério que a cidade permanega sempre ligada a0 seu autor (FLUSSER, 2008, p. 102). ligagio cidade-finda- dor seria permanentemente feita pelas antoridades, 0 mi cleo da reptiblica romana, Tal ligagao ere realizada pelos construtores de pontes ~ pontifices -, cuja fungao era re- ligiosa, e pelos administradores, como os denomina Flus- ser, que propulsionariam (rradive) a seiva, a mensagem ddo autor, em diregao ao futuro civilizatério. O primeiro tipo de autoridade era 0 maior (magister), ¢ 0 segundo, ‘0 menor (ninister). A noo de autoridade liga-se, pois, a religito © tradigao. A autoridade requer, sem diivida assento no passedo, Contudo, para Arendt (2005) ¢ também para Fiusser (2008), a autoridade desapareceu do mundo modemo, dado que “niio mais podemos recorrer a experiéncias au- ‘enticas e incontestes commins a todos” (ARENDT 2005, p. 127), Para ela, a morte da autoridade ¢ fase final, de- cisiva de um processo de enfraquecimento continuo, por séculos, da religido da tradicdo. O enfiaquecimento da tradicdo nfo equivale, conforme entende, & perda do ppassado, pois que diz respeito a0 fio que guia os seres Ihumanos com seguranca pelos vastos dominios do passa- do, Significa, entretanto, que a dimensto do passado en- ccontra-se em risco. Ou seja, 0 esquecimento ronda-nos. ameagando-nos da privagao da “dimensdo de profundi dade na existéncia humana” (ARENDT, 2005, p. 131). ‘uma vez que esta nio pode ser alcancada a nio ser pela recordacio, Algo similar acontece 4 religiao, na medida em que a f foi posta em diivida e ameagada pela crise da religio institucional. A ideia de autoridade deve ser distinguida de poder. violencia e perstasto. Por requerer obedincia, autor dade é, muitas vezes, equivocadamente confiundida com autoritarismo, que implica alguma forma de violencia ‘ou coeredo pela forga. Ela € reconhecida, mas no im- pposta pela forca. Na verdade, quando “a forca é usada a autoridade em si mesma fracassou” (ARENDT, 2005. . 129), Deve também ser diferenciada da persuasio por angumentos que pressupéem simetria entre os envolvidos, € opera mediante um proceso de argumentacao. A no- ‘elo de autoridade implica, pois, assimetria nas relagdes €, portanto, a ideia de hierarquia 187 -Elzabeth Tunes; Zoia Preses Aassimetria¢ propria da relacdo mestre-discipulo, por cexemplo, na qual o discipulo submete sua vontade a0 mes- tre, mas no sua inteligéncia, conforme bem examina Ran- ciére (2004). Voluntariamente, o estudante deixa-se guiar ‘pelo mestre sem, contud, abrir mao de seu préprio poder de pensar. Essa &a pedagogia da emaneipagio que se opde 4 do embrutecimento, Nesta, ainteligéncia do aluno sub- ‘mete-Se é do mestre: naquela, a ineligencia do aluno “nao obedece seno a ela mesma, ainda que a [sua] vontade dobedega @ uma outra vontade”, a do mestre (RANCIERE, 2004, p. 32). E, portanto, no ambito da vontade que a assi- ‘metria se configura, e nto no da intligéncia, Contudo, a escola que se forjon ha aproximadamente dluzentos anos nao ¢ a que adota a pedagogia da emancipa- io, O exame critico do métode de Jacotet feito por Ran- ciére, para apresentar apenas um exemplo, demonstra isso. Ao final do século XVII, Jacotot jd tecia citicas & men- talidade escolarizada por cntendé-la como a infantlizagio seneralizada dos individuos (RANCIERE, 2004). Ao final das contas, essa infantilizagao esté embutida na mentalida- de escolarizada que serve ao controle social da aprendiza- gem dos alunos, exercendo-se o controle das atividades do professor, que, assim, também ¢ tratado de modo infanti- lizado. Entio, impde-se a relagdo professor-aluno uma as- simetria, nfo da vontade, mas da inteligéncia, e 20 mesmo tempo solapa-se a possibilidade de exercicio da inteligén- cia do professor, ditando-Ihe desde métodos de ensino até formas de se comportar diante dos altanos. ‘No mundo atual, a educagdo passa por uma crise que, embora possa manifestar-se com peculiaridades em cada pais, & geral, e seu cariter & fandamentalmente politico. Trata-se da crise de autoridade que, de maneira global, atinge as sociedades dos tempos modemnos. Costuma-se acreditar que a crise da educacdo diz respeito, em sua essencia, a aspectos téenicos ligados ao insueesso da ins- tituigdo escolar para promover a aprendizagem dos estu- dantes, isto 6, que ela resume-se ao fato de “Jodozinho nao aprender a ler”, expressio empregada por Arendt (2005, p. 222). Contudo, dada a sua eavergadura, essa crise 6, sem civida, de caréter eminentemente politico, Annillitarizagao da escola Nunca se deve colocar armas wa maos do pov. Todo aguele que poe armas nas mos do povo faz obra de destruicdo, 4s armas colocadas nas mos io povo serdo sempre usaas contra o préprio poo. As armas aniguilam 0 pobre que as ecebe. Somente ‘apedrae o pau que @ homem apanha em sua célera serdo capazes de ndo desanré-o como home. Francisco Julio (ILLICH, 1975, p.23) ato de educar implica, necessariamente, 0 exerci- cio da autoridade. tal como esta & referida no mito da fundagao de Roma, £ forgosamente necessivia a liga- fo eatre o mundo velbo no qual aportam as criancas 2 o.novo que esti por vir e de cuja construcio elas ir8o participa E preciso propulsionar a seiva em diregdo a0 novo mundo que surgirs, O mestre possibilta essa pro- pulsto e, desse modo, o sto de educar ancora-se no pas- 188 sado e projeta-se no futuro num constante movimento de renavacio. Portanto, o mestre é autoridade, s0- mente como tal Ihe € possivel realizar o ato educativ. ‘Aldeia que se desenvolveu com forca na era industrial de que € possivel o conttole social da aprendizagem por meio do controle das agdes de quem ensina, entretanto, conforme jé se apontou,estracalhou a autoridade do pro- fessor, inviabilizando a possbilidade do acontecimento da verdadeira ago educativa, Privado de sua autoridade, 0 professor viu-se diante de criancas e jovens deixados a si mesmos, isto &, nesta circunstaneia, emancipados da autoridade do adulto. Jogades a si mesmos, acabam por entregar-se& tania do proprio grupo e sua reaco “teade a ser ou: 0 conformisino ou a delinguéncia juvenile fie- quentemente ¢ uma mistura de ambos” (ARENDT, 2005, p. 231). Eis, entfo, que recrudesce o fendmeno da vio~ Jencia escolar que, nas duas tiltimas décadeas, tem levado estudiosos a buscarem por suas causas ¢ por modes de stenné-la (ver RISTUM, 2001, 2010), Entretanto, tenciona-se, por todos os meios, preser- ‘var 0 mito da escolarizagao, propagando-se a ilsio de que a crise da educagio € de cariter téenico, bastando encontrar meias de combater a ineficiéncia da escola ‘para produzir bons resultados de aprendizagem dos al nos € a violéncia que brota no interior das escolas. No ambito das tentativas de melhorar a aprendizagem dos estudantes, multiplicam-se, indefinidamente, as formas de avaliacao que nao resultam, contudo, em quaisquer politicas de reestrururacao, reformulagao e transforma to da estrutura da insttuigdo escolar, mas apenas rever- beram no fortalecimento do ideal social mertocratico do ~salventse 08 melhores”, sejam alunos ou instituigdes. No que tange violEncia escola, 0 Estado reivindica, no momento atual,a implantacdo da militarizacdo das esco- las, projeo jd iniciado em algumas cidades do pais. Em Brasilia a capital federal, esse projeto recebev o ardiloso nome de Escola de Gestto Compartlhada, que, comfor- ime 0 artigo 1°, visa & “colaboragao entre a Secretaria de Estado de Educagio ¢ a Secretaria de Estado de Segu- ranca Piilica, por intermédio de aces conjuntas a fim de proporcionar uma educagto de qualidade, bem como constrir estratégias voltadas ao policiamento comunité- tio e 20 enfientamento da violencia no ambiente esco- Jar, para a promogao de uma cultura de paz © o pleno exervicio da cidadania” (SECRETARIA DE ESTADO, DE EDUCACAO DO DISTRITO FEDERAL. 2019. p. 3), Ua ripida inspes2o0 no organograma da Escola pro- posta permite verifcar que nfo ha entre as duas gestées qualquer coordenaclo de ages, de tal sorte que a palavra compartilhada é emprezada no sentido de dividir, sepe- za, compartimentar,¢ nio no sen sentido mais usual no campo da educacao, o de arcar, juntamente. Retoma-se aqui. frase final da epigrafeinicial: “O ideal de informar 6 piibico foi substituido pela tentativa de convencer esse piiblico de que as agdes @ ele impostas sto, na reaidade agdes deseindas” (ILLICH, 1975, p. 14-18). Encerramos com © mesmo auior, que em 1968, em tom profético,afirmava Fractal, Rev, Psicel, ¥. 32 — a. exp. p. 185-189, 2020 Finalmente, o culto da escolarizacdo levaté& violéncia, tl ‘como sempre aconteceu com a implantagao de “qualquer” religiao, Se for permitda a difusao do evangelho da eseo- lasizagdo na América Latina, os coutingeates militares de tinados a reprimir a rebeliao terao que de ser eumentados. Somente a forya podera controlar a insurreigao insufiada pelas expectativas frustradas,eriadas pela propagagao do ito da escola. A manutengo do atual sistema eseolar pode ‘ira constituir um importante degrau no camino do fasis- ‘mo, na América Latina, Somenteo fanatismo inspirado pela ‘dolatria de um sistema pode chegar aracionalizar a maciga liseriminardo que resultara fatalmente de mais vinte anos ‘ranscorrdos a classificar, por meio de notasescolares, um sociedade carente de capitis (ILLICH, 1975, p. 97) Informagies sobre as autora @ hitps:/orcid.org/0000-0002-6884-8521 © hnp:/Tares.eupg bri03842081 7289616 Pose graduglo cm Psicologia pela Univendade de Bras rer douteado em Pstologia ela Universidade de S40 Paulo, Atialmente, € pequsidor awociado da Univeridade de rasa profnsra do Cento Universiti de Brava. Sa axvidade de pesquisa featiza,prinepalment, os sepunts teres onlesmentocentifiooecotesiment excl, rela profesor shoo, aprendizagem e deenvolvinete, devevolinento Pricogiosipico e defciénia mental, procesos de excolarizio €o signiicado social de excl, Zoia Pretes, © ate: orid.og 000.0002-1347-3198 © hip atex np 192 78003S8488148 Sou a Profesor Zoia Pree, Exou ¢ sempre edarei ao ldo daguces que lutam pela jostga sosial uo Bras eno mundo. Soo aunizadra de Palo Free, Darcy Ribenoc Aso Teixeira, oem de Lev Vigo, € claro. Admivo a ate, gost, em emesis, de tinea ed cantar, prinepelente a mince internacional. Soa lb cL Carlos Prats de Mata Prester, Durante a ditdur liter 0c se atau no Bra a paride 1964, vvieuaacom mews pais JH Unite Sovitica, «foils em Mescou, que me gradu cme toe ‘esteem Pedagepa ¢Pricclogia Pré-Eacolar pela Uniersiade Esatal de Pedagegia de Mosoo. Tome?-me Dottors em Eicaglo pls Universidade de Bria, renads pela Profesor Elzabcth Tunes, que hoje € una grande anion, Tabuho como pofetors 1m Fooldae Ge Edveapio da Universidade Feder Funinense come profesor eelaboradra no cuno de Pérgeadagio em Paeologla do Cento Univesiio de Brasilia. Empesndo erforgor pare desemvlver pesuias ma ica de Faucago, Priclogin Deseavolvinneno de rang com tse na era histrco-ulal “raduz do ruso para 0 portguts ej publique no Brasil alguns liros texts qe so oresutado dese trabalho. Conteibuigdes das autoras: [As autoas colaboraram 20 longo do process, desde aelaboracio Sts revisto final da manuscrita, Ambes aprovaram o manuserito final para publicagao, (Como citar este artigo: ARNT ‘TUNES, Elizabeth; PRESTES, Zoia, A autoridade do professor ma soviedade escolarizada, Fractal» Revista de Prcologia, Nt, ¥ 32m. espe p. 188-189, un. 2020, huips//do\org/10.22409/1984- (0292/v82_|-esp/38850 Fractal, Rev. Psicol, v. 32 — nm. esp, p. 188-189, 2020 ‘A sufordade do professor na sociedad excolrizads APA, ‘Tunes, E, & Prestes,Z. (2020, Junho), sutoridade do professor na sociedadeexcolarizada, Fractal: Revista de Psicologia, 3268p.) 185-188. do: htps:/dl.org/10-22400/1980292/¥32-esp/38850 Copyright: Copyright © 2020 Tunes, E, & Pests, Z. Ete € um artigo en sccrto abort dsribuiso aos tennos da Lisenga Creative Comione “Atrbaig que permite oro mest, ditmigao erepodugto et ‘qualquer meio desde que o atgo original sea devidamente eta, ‘Copyright © 2020 Tunes, E, & Prestes, Z This is an Open Access ‘article istbuted under theterms ofthe Cresive Commons Atbusion ‘License, which pent unesicted se, diution, and reproduction inany medium, provided the original ate i prope cited. Referéncias ALFANO, Bruno, Deputado do Rio quer testar se professor usa “drogasicitas a cada trés meses. O Globo [online 1 out. 2019. 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