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il Vs Francisco conheceu a v5 Berna, quando ela passava para lavar roupas na bica. Ia sempre cantando paixo, com um cesto enorme na cabega. Aquela ale- gria serena o contagiava e o trabalho na marcenaria rendia ainda mais. Era tanto encanto que uma dezena de Bernas coloridas dancavam e cantavam na cabeca dovv6. As maos formigavam e cle sentia uma vontade de criar coisas diferentes dos méveis bonitos de todo dia, Ele queria materializar na madeira, objeto cheio de vida, a vivacidade de Berna, seu enredo maior de Alegria, Foi assim que v6 Francisco comegou a escul pir, para devolver o sol a vo Berna. Ele contou que se sentia terra adubada, de onde brotavam s6 criatividade e beleza. O mogo triste ¢ calado desaparecia e, do ventre dele, passando pelas maos, yinha um outro Francisco, nascido no oficio de esculpir. Eram ideias e lembrangas sem conta de tempos desconhecidos. Ele trazia tudo para a madeira, ao troncos de arvore, para os galhos secos, para os Tetalhos dos méveis. Tudo, tudo o v6 aproveitava ¢ ia deza e precisao para os e cadeiras plindos, construiu uma serie de escudos com uma impressionante de particularidades, adquiri- 3 um empresario da ilha de Kuanza, em Ango- 38, esculpiu as guerras de libertacao dos paises nos no seculo XX. Quando o comprador, ex- indagou porque ele nao esculpia guerras ét- periodos pré-coloniais, sagas epicas de reis, e guerreiros — havia tanta storia f —, YO Francisco mergulhou no es éemaos, mas nao mudava de donos. africanos também mereceram atena% futu Son que obr: log ne m as peculiaridades das imagens huma- “ni ‘também as diferengas entre as obras do vo © as representagdes dos loruba, tio comuns no Brasil. V6 \ Francisco caprichava no desenho das maos dos deuses Os e explicava que elas davam vida as palavras. O v6 pa- da recia um rio largo e profundo, como o Congo, cujo a nascedouro é singelo e escondido na floresta densa. 6 Embora trabalhasse todas as esculturas com igual dedicagao, os barcos ¢ os pentes eram os predi- letos do vé. Os barcos foram apresentados a ele pelo = Zazinho. O primo insistia em que 0 v6 conhecesse I as embarcagoes do povo Songai, grandes navegadores Bs africanos. Desde os doze, treze anos, Zazinho impri- es mia imagens de barcos e plantas de carpintaria naval ip para o vO, que os estudava e recriava. Eram bons par- t- ceiros aqueles dois. Nao é a toa que a tia Neusa deu 5, ao Zazinho a responsabilidade de iniciar o desenho a dos programas de computador para os visitantes do | O futuro museu refazerem as rotas de navegacio dos | a Songai, dentro dos barcos construidos pelo v6. A tia | a quer construir um museu comunitario para abrigar a 4 obra do v6 Francisco e, determinada como é, logo, pronto. tes de dentes contadores de historias 0 ara a gente, os nove netos. Nio poderia . tear, eles'n10s jpanham. V6 Francis. eentinow a Luciana, a prima primeira a usa-los. Ela tentou ensinar a Ana Lucia que nunca quis aprender, depois ensinou ao Zazinho, bom aluno, ele me ensi- nou ¢ eu fui professora dos menores todos. As historias dos pentes dormitavam na parte or- namental e na magia de pentear os cabelos, desembaraga-los, tran ¢d-los novamente, sentados entre as pernas das tranga deiras, tias Neusa ou Dinda, e vo Berna. O v6 mantinha- -se sempre atento aos de- senhos que iam surgin- do ¢ a nés que iamos aprendendo a trangar. So imagens felizes da nossa infancia. Juntos, desenrolavamos os en- redos. Histérias conta- das pelos mais velhos, outras inventadas por nds, as criangas, a par- tir de brincadeiras e memorias, ancestrais, 8 nov der ao: palavra € dele, le de cad. teve te nossa, | Cc gente, vez no a vara melhe dele, vans de vo open nifica pois hora ems pela Aba teza dele, legou-nos um pente enroscado na lenda pessoal de cada um de nds. Sem nos dizer tudo, porque nao teve tempo ou porque nao quis, afinal, se a historia ¢ nossa, cabe a nés construi-la. O vé sabia disso. Certo mesmo é que ele vinha se despedindo da gente, a cada tarde, um pouquinho. So da primeira yez nos chamou, nos dias seguintes famos todos para a varanda na hora certa, 4 tarde quando ele respirava melhor e parecia se cansar menos. Sentavamos 4 volta dele, em banquinhos iguais aquele no qual repousa- yam seus pés inchados. Ele contava uma historia cheia de yoltas e segredos e no final entregava a um de nos © pente-presente. O pente era portador de varios sig- nificados, principalmente para quem 0 recebia. De- pois era acompanhar o entardecer adorado pelo v6, a hora do sol ir embora. Momento de beber o mistério, em siléncio. Duas vezes ele contou a historia do amor dele pela v6 Berna, antes de entregar 0 pente do amor ao Abayomi, e o pente da alegria a Lira, aquela cuja tris- a ninguém decifrava. Ele repetia tudo, tintim por co antes do almogo, ja com a rou- com o mesmo cesto na cabega, o fe bal hando de suor e cantava o canto da ida. Ele um sorriso, ela correspondia. Ele almogava, depois trabalhava contente © resto da tarde. A noite as mai entalhava de amor a madeira, sonhava com sua Ber- manje na enquanto esperava 0 novo dia, s6 para vé-la pas- nhar. sar. Um dia, com 0 peito estufado de coragem, pediu to de para acompanha-la pela vida inteira, ela aceitou e eles a comegaram a nossa familia. ~~ Vo Berna vem da cozinha e interrompe nossa a a viagem. “Por hoje chega, meninada. Francisco precisa ste descansar”, ela diz. “Preciso nada, Bernardina, terei espel tanto tempo para descansar”, 0 v6 responde masti- voB gando as palavras. “Nao seja teimoso, Francisco, ama- enfei nha vocé continua.” Assunto encerrado, sabiamos que licen era a yO quem mandava e nao cogitavamos ficar quan- toso do ela avisava para ir. lomavamos a béngao e cada um Colt seguia para casa. Exceto cu, pois minha casa era a casa bam deles. mais de p zinh 10 nhas. Nao quis comer, apenas pediu um cha de faijediaa bem forte. Vo Berna foi até a horta apa- nhar. Os pés desinchados 0 deixaram disposto a pon- to de ele se encaminhar para o roseiral, como nao fazia havia muito tempo. Conversou com as roseiras, suas companheiras de tantos anos. Ele plantava uma no nascimento de cada tio, eram cinco. Depois, quan- do as roseiras e os filhos iam crescendo, ele fazia en- xertos com as mudas, com os tios, € ficavam todos esperando para saber a cor das rosas novas, inclusive a yo Berna. Ele nunca colhia as flores, o lugar delas era enfeitando o jardim, entretanto, naquele dia pediu licenga a roseira amarela e quebrou o galho mais vis- toso, tirou todos os espinhos ¢ 0 ofereceu a vo Berna Colheu também trés galhos de pitanga, trés ramos de bambu e trés de alfazema. Eu coloquei tudo no vaso mais bonito da casa, a pedido dele, proximo 4 cadeira de praia, onde ele se sentava. O v6 se cansou e foi dormir, nem viu quando Za- zinho chegou, 0 primeiro primo depois do nascimento it HW e o e Ana Lucia no seguin. o mesmo més e dia. O Zazinho de- um pouco mais, chegou quatro anos depois da 1 Litcia. Sao filhos da tia Dinda, os da tia Neusa, Lira e Abayomi, sao ainda criancas. Tia Neusa passou muitos anos estudando fora do Brasil e, embora seja aprimeira filha da familia, teve os primos mais velha, A Lira chegou primeiro, missica para a vida da tia, menos de um ano depois, veio 0 Abayomi, “meu pre- sente”, como foi batizado. Eles sao amados de manei- ra especial pelos Quintiliano, pois vieram de familias diferentes da nossa, nas quais 0 amor cra inv isivel V6 Francisco dormiu 0 resto da manha, um pou- co agitado. Zazinho ficou um tempao na beirada da cama, observando. Depois foi para a oficina e mexeu nas pegas, na colecao de barcos, a favorita. O primo chegou a trabalhar na oficina com 0 v6, “uma promessa de artista”, dizia ele. Alimentou duvidas entre cursar Direito ou Artes Plasticas. Seguindo os conselhos da parte mais previdente da familia, vo Berna e os tios Ainan e Aganju, Zazinho prestou vestibular para Di- Teito, foi aprovado e, como prémio, recebeu do vo, um formao, um martelo ¢ trés faquinhas de entalh¢ Deu a hora do almogo ¢ vé Francisco nao sala da cama. Vé Berna tinha feito salada de alface co™ 12: corpo. ( muita fe ainda m 08 prate para dei ponsabi Q tava toe cadeira quande encost ajuda-| tavam \ senton ninas, arrepi da fle crian aum las. A traba 0 off om 0s pratos enquanto conversava conosco € aproveitou da mais ac . O v6 comeu pouco, mas elogiou para deixar o pente da Ana Lucia, um baoba, sob res- ponsabilidade do Zazinho. Quando 0 celular marcou dezesscis horas ja es- tava todo mundo sentado nos banquinhos 4 volta da cadeira de praia 4 espera do vo: Lira, desde ontem, quando recebeu o pente da alegria, mais risonha; eu, encostada 4 parede, com Melissa entre as pernas, para ajuda-laa se equilibrar; Ayana e Abayomi tambem es- tavam la. V6 Francisco chegou amparado por Zazinho, sentou-se, olhou nos olhos do Abayomi e das me- ninas, da v6 Berna, também nos meus e eu senti 0 arrepio da despedida. Sem demora contou a historia da flor amarela: “Uma vez, em tempo remoto, uma crianga de planeta vizinho a Terra, resolyeu se juntar a um grupo de adultos para conceber flores amare las. A mestra perguntou por que ela, crianga, queria trabalhar ao invés de brincar, explicou também que 0 oficio de arquiteta floral exigia determinagao, pois © mundo tinha muitos apelos ¢ a cada distragao da -_, : Peg elncharis”"Edal?, ame intou. “Dai sera necessario comegar tudo * nefado, tudinho, mestra” “Tudo, tudinho, contra ve7. minha menina.” A aspirante 4 florista cogou a cabe- ga, acariciando um pensamento dubio, mas resolveu encarar 0 desafio. V6 Francisco bebeu um pouco de “Pelas regras do super- agua e continuou a historia. conhecido DID — dispositivo interno de decisio —a menina poderia desistir a q qualquer momento, embora soubesse da torcida da mestra para isso nao acontecer.” Ah..., 0 v6 esquece- ra de dizer, a flor deveria ter cinco pétalas arredondadas e acor amarela do sol “No primeiro dia, hora determinada, a menina comegou a empreitada com o grupo e, depois de By muitas tentativas, con- seguiu encontrar uma textura palida, distante do amarelo vibrante do sol. Era um trabalho mo ndtono ¢ ela ensaiou dat meia volta. Achou que ° momento | para nao d naquela ma e debalde, o que é de “Debalde é do uma ce no fim da obrigada, | Continua? ao da Lir sorriso gr: “No rista, mes hora de te de cores. de tal jei amarela panheiro © que ¢ debalde?”, a prima Lira perguntou curiosa. “Debalde ¢ em vao, prima. Mesmo a pessoa queren- do uma coisa com forga, nao adiantou querer, pois no fim das contas nao conseguiu alcangé-la.” “Ah... obrigada, primo-diciondrio-ambulante. Desculpa, v6. Continua.” Todo mundo se alegrou com a participa- gao da Lira, principalmente o v6, com direito a um sorriso grande e uma piscadela para a prima. “No dia seguinte cla retomou o oficio de flo- rista, mesmo triste e frustrada. Depois da primeira hora de tentativas, cansou-se ¢ estacou diante do pote de cores. Um colibri beijador das flores la de fora, moveu-se até o ouvido dela, 14 dentro, ¢ cantarolou a cangao do trabalho sem alegria que nao tem serven- tia. Ela absorveu o canto e se iluminou, mesmo sem conseguir encontrar a cor desejada. Quando logrou se aproximar do amarelo do sol, ficou tao feliz, feliz de tal jeito, que um raio a impulsionou a contar a novidade para o beija-flor. Quando voltou, tremenda decepgao, tudo estava como antes, adeus cor quase ‘ Nessa hora, bem do seu lado, alguns com- ja haviam encontrado 0 amarelo, outros a5 P aela, 4 menina, a mais ninguém. . Finalmente a menina conseguiu encontrar 9 amarelo do sol para sua flor amarela e resolveu (por uns momentos, movida pela ligao anterior) guardar a felicidade dentro de si, para nao dispersar energia. A alegria foi suficiente para anima-la a enfrentar a du- reza dos outros dias, entretanto, quando alcangou a primeira pétala, desesperou-se, pois ficara quadrada, E 0 que aconteceu?”, perguntou o vo Francisco para ouvir uma yoz diferente da propria ¢ acordar a si mes- mo. “A flor se desmanchou, porque a menina desviou aatencao do trabalho”, respondeu Melissa, matandoa charada. “E ela foi tentando, tentando...”, continuou 0 yo Francisco. “Por quanto tempo, v6? Assim essa menina chega a adolescéncia ¢ nao termina de fazer a flor.”“Ela tentou por eras, a flor amarela, a flor ama- Tela...” “V6, o senhor parece cansado, Descanse um pouco”, sugeriu Lira. “Nao minha filha, mais tarde eu descanso.,” Ele disse isso, mas fechou os olhos, rindo leve, sonhador. 16 quesa amare cinco) també 0 pai, outro parent ele re do cri ar fam quem viu ur trela \ da po ponta lelo d desver nino-¢ fez sin zz ua da. ara 1es~ iou loa you essa era ma- eeu indo I Francisco chegou em uma terra verde-tur- quesa da cor dos olhos da sereia Janaina, onde a flor amarela da menina o recepcionou, prontinha, com cinco pétalas arredondadas, da cor do sol. Estavam la também, muito contentes com a visita do v6, a mae, © pai, o irm&o mais jovem, morto por tuberculose, 0 outro que explodira com a caldeira da fabrica, tantos parentes, amigos e conhecidos do passado. Alguém bateu em suas pernas com insisténcia e ele Be. cachorro do meu pai, quan- do crianga.| Esta ‘4 acompanhado por uma cadela de ar familiar, no entanto insuficiente para o v6 recordar quem era. Atento aos latidos 0 v6 olhou para o alto e viu um menino trotando cavalinhos de pau numa es- trela vermelha. Loguinho o menino langou uma teia da ponta da quinta ponta da estrela vermelha para a ponta da terceira ponta da estrela amarela, no para- lelo de Greenwich. Ao reconhecer o menino, 0 vd desvendou o mistério de Shitara, a cachorra do Me- nino-aranha, amigo desaparecido da Lira. O menino inal de positivo e gritou la de cima, “Beleza, seu ( i Menind a chamou a cacharl dinho, Como?, Shitara expressa adi, ts wan eédigo canino. “Ainda nao me deram asas”, é dw npleta. O menino entende a mensagem, € usando os olka Ber repursos de Aranha langa teias diversas e forma mao de uma catapulta para arremessar Shitara as estrelas, 4 laxou o cachorra se agarra ao primeiro astro disponivel, de. respings sajeitada, e o garoto da outra ordem. “Shitara, chega dela de Aranha por hoje, pega o Tornado, ou o Corcel Ne- 7 = BA le uma gro, pode escolher, e vamos embora: aid00000000 va Ae Silver!” Resignada, Shitara observa o nascer da uae 635 4g nela as sombras de Rin-tin-tin e Lassie, Bernardo desenie Bianca e ainda Corcel Negro ¢ Tornado, brincando tauawen bs soltos. “Ui, paciéncia!” Era Shitara liberando um sus- de pret piro canino e cavalgando a propria estrela em diregao -manga ao amigo inseparavel. disso, Essa foi a historia contada pelo vé ao yoltar do borrao, sonho, antes de sorrir, abrir os olhos assustados € meio segurar firme a mao de vé Berna. Ela apertou a dele Fs a com esperanga, desejando uma recuperagao mila- a grosa. Porém, foi o vento quem veio assobiando & ntrou pelo alto da cabega do v6, como se conhe- cesse bem a casa e 0 caminho. Vé Francisco treme! Badoio orpo, respirou forte e soltou o vento pela e resposta a um ecida, A essa altu- ra nds todos j4 nos abragavamos e choravamos. Ele semicerrou ido os olhos, desprendeu-se da ma mao de yo Berna e re- A laxou 0 corpo, ja com ae respingos do choro oa dela. 1 Aquela tarde foi es de uma tristeza imen- po sa.|As arvores de fru- ae tas do quintal nao mais pe desenharam a_ silhue- do ta verde sombreada 1s- de preto no amarelo- ‘ao -manga do céusao invés disso, formayvam um a borrao, meio chumbo, ae . meio fumaga. V6 Francisco ja nao estava conosco. Eu i . a coloquei eae vo Berna e 0 vo e fechei os olhos ele com um beijo. la- pe 1e- eu ela Melissa sorriu quando viu a madrinha do carro. Ligou o motor do banquinho zoador diregao. Buscou alguma alegria ninhou em sua o olhar dela, algo diferente da tristeza de todos da ‘casa. Disse 4 madrinha: “Hoje t chorando porque © y6 morreu”, e olhou lo ajuda. Quis rir, mas nao sabia se podia, nao 4 todo mundo triste e para 0 chao, procurand: sabia de nada, nem tinha animo para contar suas novi- dades de crianga. Era tudo esquisito, doido como nao saber aonde ia dar 0 infinito. A madrinha, por fim, tirou Melissa do banquinho zoador ¢ a carregou no abrago. Melissa suspirou, de novo apareceu o medo de rir fora de hora, foi abatida pela tristeza. A madrinha segre dou no ouvido dela: “Eu nao vou mentir para voce, mi- nha afilhadinha, estou triste, muito triste, como todo mundo, mas se yocé me contar as tiltimas novidades de menina sapeca do banquinho zoador, de rodas, brages € motor, posso me alegrar um pouco.” A prima final mente sorriu 0 sorriso-senha de tudo contar. Quase a0 mesmo tempo chegou aqui em © tio Aroni, compadre dos velhos e melhor amig? 20 Deram atenciose abragarat muitos al ram vo | o tio pes goes do] pertenci quando‘ pre conc Ay de aguay de-vaca e Anaua das folh branco « © quart para ac porta. 1 maquin agua. oO dade de miradoi ridos ni no calor daquela amizade de tomaram @ péncao e abraga- 5 Berna também. Depois dos cumprimentos, 0 tio pediu licenga para preparar © corpo & instru- ges do local onde deveria fazé-lo. O vo eo tio Aroni especie de irmandade masculina, € aR pertenciam auma ag r quando um integrante morria, havia esse ritual, sem- > pre conduzido pelo tio. 80 ‘A passagem dos trés homens deixou um rastro novi- de aguapé, alecrim € alfazema. Umas folhas de pata- 0 nao de-vaca ¢ amoreira cafram do saco de pano. Ajaguna tirou e Anau, os filhos da mata, nomeados pelo espirito yracgo. das folhas,|cobriram corpo do vé com um tecido r fora branco cheiroso e o tiraram da cadeira de praia para segre- © quarto indicado por v6 Berna Joao Candido pediu ie para acompanha-los, eles permitiram, mas so até a é, mi- y todo Hee Tio Aroni, por sua vez, j4 estava na cozinha fea —€ os segredos dele entre ervas, folhas : pragos ie 0 i . aos poucos foi chegando. Uma infini- dade . _ los, amigos, conhecidos, parentes, ad- n res. Ih rs i, Bere OSsos avOs eram muito antigos e que- © que ajudaram a construir. V6 Berna 2 ferro na corrente elétrica para pass: nho ¢ a bata de cambraia brancos, cosidos: lembrou-se do primeiro passeio de trem feito pelos dois. Quantos vagdes, quantos trilhos, quanta carga, quantos viajantes e ferros de passar passaram por sua vida, toda vivida ao lado de v6 Francisco. Enquan- didos amassadinhos da roupa, idos por ela, to tirava os mais escon recordou o ferro de passar alimentado por brasas, 0 motor a lenha da maria-fumaca, as roupas da juventu- de passadas pelo ferro antigo, as conquistas da fami- lia, a consagracao de v6 Francisco como artista, a vida simples e feliz que os inscrevera no mundo. Como seria, agora, a vida sem ele? epeitsoiconforto das lembrancas, vo Ber- na nao viu que Ayana e Joao Candido a esperavam. Quando se apercebeu, exclamou com seu jeito brin- calhao: “Os menino, cés tao ai, na espreita, acocora- do feito dois calango véio?”. O primo Joao Candido tentou sorrir, mas 0 choro o fez correr para abracar@ Vo. Ele fora a tinica das Criangas ausente no moment? da Passagem do avd. A prima Ayana abragou 0 abrag? dos dois e choraram juntos, 22 coisa de hor alto, do lad de doze ar hora.” Noss beu que 0 | para que o vejo uma b foi interro: Ayana’, ele de gente q estou 1a, te sando ea | Joao chor mais. “Cor Vo, € tao « tao pequer VOR achava um lidade de | que ela ne Ss vivos: Quando « vida omo Ber- vam. prin- sora- \dido gar a yentO orag° /acompanhar o ritual 0. ‘Berna explicou tratar-se de 4 “Eu também sou homem!”, ele falou alto, do lado de fora a gente ouviu. “Um homenzinho de doze anos”, vo Berna 0 consolou. “Ainda nao ¢ hora” Nossa vo olhou-o na menina dos olhos e perce- beu que © primo estava abafado. Estendeu 0 epraae para que o Joao se abrisse no colo dela. “Ai, vO, sO da”, ele comegou a falar, mas C?” “Na praia, vejo uma baleia encalha foi interrompido por Ayana. “Aonde, J Ayana”, ele respondeu impaciente. “E tem um monte de gente querendo desencalhar a baleia. Eu também estou ld, tento, tento ¢ nao consigo. O tempo Vai pas sando e a baleia vai morrer se nao voltar ao mar.” O Joao chorou, calado. Vo Berna o incentivou a falar mais, “Continua meu filho, liberta sua baleia.” “Ah... vO, é tao dificil. A baleia é pesada, enorme e cu sou tao pequeno. Ela vai morrer.” V6 Berna ao relembrar a conversa com 0 Joao achaya um jeito de falar conosco sobre a impossibi lidade de evitar a morte e também sobre os recados que: os Nos trazia. “A morte, Joao, chega para todos on vivos: animais, plantas, gente, até para a agua. Quando ela alcanga alguém proximo e querido, _, 23 mpo de melhor-viver. Se as estradas Patmos estao feias e nubladas, sujas e es. sas, ¢ hora de mudar de lugar, procurar o sol, qualq Pepeaearos, as flores. Mas se estao bonitas, floridas, ensolaradas, além de permanecer nelas e desfrutar de todas as belezas e cores, devemos convidar mais ” “Mas ea gente para fazer o caminho ao nosso lado: baleia, v6? Vou deixar ela morrer?”, 0 Joao pergun- ta angustiado. “Existem coisas, meu pequenino Joao, mais fortes do que a nossa compreensao ¢ as nossas por Fi forgas. Elas acontecem, simplesmente. O sofrimento nino, : da baleia é o maior de todos, a dor fisica, a falta de calhar ar € agua, a preocupagao com as baleinhas desampa telefor radas no mar. Uma dor enorme, quase do tamanho avozin dela, deve produzir aqueles roncos de desespero no pente, sidade estomago da coitadinha, ¢ cla, neste momento, nao passa de um peixao sozinho ¢ indefeso.” “Oh vo, € tinhale : f i este a a baleia, ela também pensa na vida dela quando esta 4 toria de morrendo?”“Talvez, Ayana, o que vocé acha?” “Ah vo, v z contava durante aquele tempo sem conta, ela deve pensar e® ; : aos deu todas as atitudes baleisticas da pessoa dela: o sust? « dado nos humanos, mesmo sem querer; os cardume nao é yi devorad svoraddos por pura gula, aproveitando-se da sof 24 falsas esperangas a um grupo Isto deve ser uma lembranga qualquer baleia pensativa”. "i Berna se alegrou com o entendimento do ciclo da vida demonstrado por seu neto destemido is e por Ayana, sua flor mais bela. “Isso mesmo, crian- e Gas, vocés estao compreendendo o sentido da morte a para quem fica, a necessidade de ressignificar o viver. >; Aproveito para entregar a vocés os pentes deixados As por Francisco para cada um. Jodo Candido, meu me- oO nino, seu av6 sabia que mesmo sem conseguir desen- le calhar a baleia, vocé nao desistiria de tentar, talvez até - telefonasse para o corpo de bombeiros”, brinca nossa iS avozinha matreira. “Por isso, ele destinou a vocé este is pente, simbolo de duas coisas principais, a genero- sidade e a solidariedade. Para vocé, Ayana, nossa ne- E tinha de satide mais frdgil quando nasceu, ele deixou 7 este aqui, o pente da perseveranga. Lembra-se da his- 4 tria da flor amarela de cinco pétalas da cor do sol? Ele . contava para acalentar seu sono enquanto pediamos a0s deuses infantis para nao levarem vocé da gente.” “Que fofo era o v6. Os pentes se completam, nao é vo? O pente do JC também poderia se chamar Se a8 25 1 mor o pelo inicio das coisas.” " Vé Berna se emocionow novamente com a saga. ~ cidade dos primos, mas interrompeu as lagrimas para dar uma ordem — Joao deveria levar a roupa passada m os homens, com ab até a porta do quarto onde estava: cuidado, para nao amassar. oa ele: tud ou ral. das pai que gent ja sa a ge 26 jeu pai chegou a nossa casa esbaforido. Deixou a bolsa na varanda e se dirigiu 4 sala onde 0 corpo do v6é era velado. Parou na porta, nao conseguiu entrar. Tio Ainan, 0 irmao mais proximo, chegou perto e © abragou. Papai baixou as armas e escudos, chorou um choro guardado ha seculos. Tio Aganju se juntou a eles e os acompanhou terreiro afora. Eu estava louca para abraga-lo, mas fiquei esperando o tempo dele para aterrissar. Papai fez as perguntas do estrangeiro, quis saber como foi, se 0 v6 sofreu, como estava a vo, quis saber tudo o que a distancia nao lhe permitira saber. Os tios © tranquilizaram, e abracados seguiram para o rosei ral, Eu os acompanhei a distancia. Ao cheirar as rosas das matrizes, tocar as petalas das flores enxertadas, na companhia dos irmaos, pa- pai voltou a infancia e rememorou coisas engragadas que ele nunca me contou: “Lembram-se de quando a gente cismava de comer barro, telha ¢ tijolo? O pai ja sabia, era lombriga, bicha, e dava vermifugo para a gente. Explicava logo, lombriga nao era minhoca, , era boa para as rosciras, isd _Lombriga, nao, ia comen. fe eente por dentro, deixava um 0co tao grande -dava vontade de comer barro, molhado ou seco, P para tapar os rombos e construir uma Coisa mais s6]j- da dentro da barriga. No inverno tinha dleo de figado de bacalhau para todo mundo. Lembram? Antes do almogo era como no quartel, uma fileira, do maior para o menor, de prontidio para beber o purgante, Os mais velhos tinham a obrigacao de demonstrar coragem, Neusa, Dinda ¢ eu. Ele pegava uma colher de sopa, enchia ¢ despejava na boca da Neusa, Enchia de novo ¢ colocava na boca da Dinda, na minha, a se- guirna do Ainan, e por ultimo voce, Aganju, o cacula, com direito a aviaozinho, E nao havia explicagio so- bre complemento alimentar capaz de sobrepor aque- le gosto ruim. Embora a gente comesse com vontade para tirar aquele paladar horrivel da boca.” Os tios concordaram © riram abracados, Eu aproveitei para me anunciar: “Pai, que saudade!” Abracei meu pai querido. Ele também me abragou & abriu a boca novamente. Os tios se afastaram para nos deixar d vontade. “Bonito, o papo de vocés”, eu conti- nuei. “Vocé ouviu, Barbinha?”. “Ouvi, pai. Nao devia! Tava esperando per vocé.”“Podia sim, minha filhot® 28 me der un Tiso de rec avé vai faz filhos, ele gui. Quanc 20, eu nao nem de vo para eles. } © melhor | nio foi, | sei, pai. Ei se € isso 0. saber. Os chamam di morar cot de velhinh agora s6 ci Compreent colha, em sua falta. que vocé a vida toda da, esperan para Woo er a? lita as s para mim.” “Que coisas?” “Nada, © voc’ esta linda, crescida, Daqui a pouco, se me der uma rasteira, eu caio.” Sorrimos os dois, um riso de reconhecimento de terreno. “Sabe, filha, seu avo vai fazer muita falta. Além de ter educado cinco filhos, ele ainda assumiu vocé, porque eu nao conse gui. Quando sua mae foi embora e deixou vocé comi- go, eu nao dei conta de mim, nem de vocé e te entreguci para eles. Me pareceu ser © melhor para vocé. Foi, nao foi, Barbinha?” “Nao sei, pai. Eu sou feliz aqui, s¢ & isso 0 que vocé quer saber. Os primos me chamam de sortuda por morar com esse casal de yelhinhos nota dez, agora so com a vo, né? Compreendo sua _cs- colha, embora sinta sua falta. S6 espero que yocé nao fique a vida toda na estra- da, esperando carona para Woodstok.” 2 De onde vocé tirou isso? Quan. ‘de Woodstok?” “A tia Dinda & quem fala: ‘0 Oniré ‘est4 parado na estrada, esperando ca. rona ‘para Woodstok.” “Bla tem razao, infelizmente”, concluiu meu pai, derrotado. Mas tratei logo de ani- mé-lo, “Eiiii nao fique triste, na0. Eu te amo ¢ vocé é lindo. legal ter um pai descolado como voce, os pais das minhas amigas pararam no tempo. Sem essa vé ¢ por isso deixar de de nao conseguir ser igual a0 ser voce mesmo, cu tenho orgulho de vocé e dele, cada um no seu quadrado.” “Ai Barbinha, s6 vocé me entende.” Eu ri olhando para o meu pai meninao. O vo podia ter deixado um pente-presente para ele, talvez © ajudasse a achar um caminho. ia Neusa e tia Dinda na volta da ceriménia . cremagao sugeriram a v6 um banho e descanso, Aquele mesmo sol dos tempos da mocidade dela prilhava. Vo Berna aceitou o conselho ¢ as duas tias, por sua vez, agradeceram 0 suco oferecido por ela e foram toma-lo embaixo da mangueira. Enquanto pbrincayam no balango e sentiam a brisa no rosto, eu me aproximei ¢ elas nao se importaram, Tia Dinda perguntou como estavam as crian¢as. “Bem”, respon- deu tia Neusa. “Contudo, o proceso de adaptacio € dificil. As lembrangas do orfanato, o vazio de solidao € rejeicao dentro de cada uma, ¢ aquela tristeza da Lira... s6 o pente do papai para dar jeito.” As duas riram ¢ eu me lembrei que o pente ja vinha fazendo efeito. Todos nos reparamos a participagio ¢ a alegria da Lira na histéria da flor amarela, a ultima contada Pelo v6. Tia Dinda, sempre ponderada, acalentou tia Neusa. “Imagino, é dificil mesmo, embora voce faca © que pode, Tens consciéncia disto, nao ¢ mana? s importante elas tém, seu amor incondicio- mor de toda a nossa familia. Tém referéncias , papai, 08 tios, 0 Zaz) responsavel por elas © bem mais proximo “de idade.” “Sim, Dinda, tens razao, decerto voce me entende, também é mae, sabe como a gente se pre. ocupa.” “Quem diria, Nené, nunca pensei ouvir essq frase da sua boca.” “Pois é, 0 mundo gira ¢ a gente muda. Mana, os pentes deixados pelo papai aos meus filhos, o da alegria, para Lira, i (| o do amor, para 0 Abayomi, NEY DA & Y Eng)» y ye NG G m we farao muito bem a eles, sabe? E incrivel como ele conhecia a alma dos ne tos e deixou um pente- SK -presente para cada um, como uma car lerio em d 7X eo >) mentos da vida.” “Sem duvida, e vocé nao sabe da maior! A Luciana vai convida-los para ser madrinha e padri- nho do bebé, meu prt meiro netinho.” Nao posso_ negat que fui surpreendida pela Noticia e senti uma pon- 32 Muito sensivel. Tia Din- }» © convite ainda seria formalizado. na nao via motivo para formalizagées, duas as. Se fosse alguém mais maduro, como cu... E pensar que o pente da generosidade foi rece- bido pelo Joao Candido, fico curiosa para saber qual foi o pente da Luciana”, arrematou tia Neusa. Eu en- trei na conversa respondendo que era um pente-pei- xe, e como no fim da gestagao a Luciana so pensava em comida, estava em divida se o faria grelhado ou cozido. As tias acharam graga ¢ encerraram o papo dizendo que nossa familia era de luz, com direito a apagdes, de vez em quando. Jié e encontramos v6 Berna 0 colo, triste e chorosa. ers para 0 ate! com um barco inacabado m1 Tia Dinda a abragou. “Nao vai ser facil, mamae, mas 4 - uce ‘i ae 7 nés vamos conseguir.” “Sim, querida, nds vamos. Fo. ram quase cinquenta anos juntos, minha vida inteira”, disse enxugando os olhos. “F como se me faltasse um pedaco” As tias nada dlisseram, nem eu, a conversa era de adultas. Com o folego recuperado, vo Berna continuou: “O Francisco era um homem de tanta co- ragem ¢ responsabilidade, s6 depois da aposentadoria e de encaminhar toda a familia permitiu-se dedicagio exclusiva 4 arte. Ele poderia ter criado ainda mais” ran aap Pa, Sera, mamiae?”, perguntou tia Dinda. “A arte pre- cisa de tempo para amadurecer dentro do artista e © amadurecimento nao acontece s6 na materializa- gao da obra, mas em toda experiéncia acumulada. O tempo é 0 senhor do destino, nao é a senhora mesma quem diz? O papai produziu no tempo dele e tudo 0 oo Francisco Quintiliano viveu serviu como prepa Ta¢ao para a obra de Francisco Ayra.” “A Dinda tem 34 criar io ou, no minimo, um instituto , minucioso, mas compativel com a beleza e a plexidade da obra de Francisco Ayra, um grande “artista e, para sorte dos Quintiliano, patriarca desta familia. E um conceito novo de agao afirmativa que quero apresentar as empresas no Brasil. Vi varias des- sas experiéncias quando morei nos Estados Unidos. Muitos museus foram concebidos nos anos 60, em bairros muito pobres, onde a populacao negra vivia e ainda hoje vive.” “Que interessante, Nené. Ja li algo sobre um museu chamado Anacostia, em Washington, a capital dos Estados Unidos. E um museu comuni- tario, nao ¢?”“Isso mesmo, Dinda, cle ¢ um dos mais Tepresentativos.” A “Poderemos ter programas de computador, ani ‘Tnacdes com os pentes relacionando-os 4 diversidade : de penteados utilizados por etnias distintas no con- te africano. Pequenos documentarios poderao 'similaridades entre as mascaras do papai, as 35 onito, eo viagem pelas aguas, raios ¢ trovoa- vida artistica de Francisco Ayra, projetada pelo neto, Um profissional experiente podera a ne 9 Zazinho no desenvolvimento técnico da ideia. Tanta coisa € possivel fazer, além de promover espaco de exposigao para os artistas locais.” Os olhos de v6 Berna cintilavam. Ela pergunta 4 tia Neusa se acha mesmo possivel construir um abri- go daquela grandeza para a obra de v6 Francisco. Tia Neusa, empolgada, como sempre ficava ao comentar seus projetos criativos completou: “Sim, mamie, va- mos trabalhar muito para isso. Uma pessoa cuja per- Cepgao artistica é desenvolvida tem mais habilidade para lidar com as adversidades do mundo, vamos in- vestir nessa ideia e planté-la para frutificar aqui, no Jardim dos Ibiscos, bairro periférico onde Francisco Ayra viveu e construiu sua obra.” Meu coracao saltitava de alegria: um museu . peta a us) do meu ayé! Imaginem sé, um lugar para i ; imortalizar o trabalho dele. Precisava contar a novi ao i Sod Pessoal da Capoeira, quem sabe nao fariamos 36 eleza”, concluiu Neusa, sua fi numero da por algum tempo no atelié, alar- jo com a beleza das obras e 0 apuro da 6 Francisco, matutando sobre os pentes. m sobre os filhos € mais ainda sobre o filho na, primeiro bisneto da v6 Berna, primeiro la tia Dinda, prestes a nascer. ——- Uuvi tio Aganju comentando com tio Ainan “sobre mais uma “saia justa” em que a prima Melissa um daqueles infindaveis jogos de tre os dois, dessa vez, baseado © colocou. Foi em perguntas c respostas en! nas dividas deixadas pelo pente-passarinho, heranga do vé Francisco para ela. Melissa ¢ muito esperta, mas é uma menininha de seis anos, ainda nao com- preende muitas coisas, E ha tantas por compreender, principalmente o fato de nao poder andar, enquanto todos os primos, todas as criangas a sua volta andam, correm, sobem em arvores. Por enquanto ela convi- yeu apenas com a familia e amigos, mas agora come- gara a frequentar a escola e tio Aganju esta seriamente preocupado com as reagoes dela. Tio Ainan procurou tranquiliza-lo ao falar sobre o significado de liberdade do pente-passarinho, dos sonhos possiveis a partir do banquinho zoador, O conselho foi uma estrela nova no céu fechado do tio Aganju ¢ ele se sentiu forte para retomar 0 papo com a filha. “Melissinha, estive pensando sobre nossa con versa de uns dias atras, sobre o pente-presente que 38 1s sonhos, sobre a lyri ‘que ir para ser mais feliz. Voc poderia me ; a onde essa luz te leva ou é segredo?” “Ng, nao é segredo, s6 & muito dificil ”“Ah, . me a quem sabe o paizao pode te ajudar.”“E diffcil con- seguir ajuda para o meu problema, pai, eu queria ser de bailarina, mas vivendo presa no lo banquinho zoador, nao da.” ga Aquilo deve ter sido a, um tiro no peito do tio n- Aganju. Ele deve ter feito rr, um esforco sobre-humano to para nao chorar, mas, ain n, da assim, encontrou forgas ri- para continuar a conver e- sa com Melissa. “Olha so, te princesa mais querida do 7 Papai...” “Mais querida, Je pai? Como assim? Vocé lo $6 tem eu de filha...” re “E uma verdade sem fe importancia, _prince- Sa. Vocé sera sempre a @ mais querida, so nao a : Pode contar para seus . ‘. yeu ain- | , ser a tinica oces...” 08 dois riram, cumplices. do a dica de tio Ainan, tio Aganju conver- RP elit cobra ideia de liberiade trazida pelo passaro. Para ele, a liberdade € justamente 0 caminho escolhido por uma pessoa para voar, para eupstar eo pro- prias limitagdes. Melissa poderia ser uma peau se quisesse. Entretanto tudo 0 que queremos ser, da oe balho, as vezes muito trabalho. Melissa, confusa, dis- se no entender aquilo, como poderia dangar se nao conseguia ficar de pé? Tio Aganju falou da existéncia de bailarinas e bailarinos que dancam sentados, cada um no seu banquinho zoador. Prometeu leva-la a um espetaculo dangado por bailarinos cadeirantes, palavra usada pelos adultos para nomear os usuarios de ban- quinhos zoadores. Os dois conversaram sobre os bra- gos dos dangantes que se estendem ao infinito, como o Maskara, sobre as pernas que descansam nos banquinhos, mas parecem se prolongar no ar, como perfume. Melissa nao se convenceu, continua olhando o tio com cara duvidosa, quando o assunto é dangar em cima de uma cadeira de rodas, mas desde entio, a prima se agarrou ao pente-passarinho e 0 colocou embaixo do travesseiro para aumentar o tamanho das asas dos sonhos, enquanto dorme. ontei a mochila, me despedi da vé e fui para eino de capoeira. Nunca joguei tanto como na- dia, s6 na mandinga, lembrando do meu ayé, “Iécee!” Nossa mestra encerrou a roda e comegou a desarmar o Gunga, enquanto a turma assentava em circulo, enxugando o suor. “A roda de hoje”, cla disse, “foi dedicada ao seu Francisco Ayra, amigo do grupo, Oficineiro nas horas vagas e avé da Barbara. Ja manda- mos nosso recado com o canto, quem quiser mandar mais um Ngunzo para ele, usando a palavra, fique a yontade”, “Eu quero”, levantei a mao. “Pois fale, Bar- bara, queremos ouvir.” “Sao tantas as coisas para falar sobre o meu avo, um sujeito especial, yocés sabem. Nao estou me ga- bando por ser neta dele, nao. Era um cara admira- do por todos, muito sabio ¢ justo. Engragado, eu me __ lembrei agora dos meus sete anos, quando o v6 foi chamado a escola porque dei uns tapas pum garoto. _ O pirralho me chamou de macaca. Meu av6 foi la satisfagGes e mastigava doze zangoes, daqueles ouvia a diretora, ne como mM yenenoso, mas xem, pois, além de bater, nino, nao era atitude ade- ocinha. Ela punha a mao nas minhas 4s soltas de mocinha e depois passava na saia, limpé-las de mim, Ele viu, ouviu, pediu descul- pas, prometeu me corrigir € ao mesmo tempo recla- mou porque “a neta estava sendo molestada na esco- la”, “Nao, seu Francisco, o senhor nao entendeu, ela agrediu um menino.” “E]a se defendeu, dona Eliane.” O tempo fechou para o lado da diretora, meu avd continuou. “Gostaria de saber se a senhora convocou os pais do garoto para uma conversa franca, como fez comigo, ¢ cu lhe agradego. Nao esta certo bater, mas ofensas e humilhagoes também estao erradas, e aqui € uma escola, nao é dona Eliane? Precisa ensinar 0 certo, indistintamente.” Eu adorava quando meu ayé usaya as palavras sonoras do repertorio dele. “E foi sorte deste garoto ter apanhado da minha neta, tio pequena ¢ levezinha. Ja pensou se um menino grande pega ele de jeito? Faria um estrago. Eu vou conversar com a Barbara, agora, a senhora faga a gentileza de encaminhar junto aos pais, a corre¢ao do garoto. Pas sar bem, dona Eliane.” O v6 estendeu a mio para ela ¢ saimos da sala da diretora, eu, vingada e meu avd, sério, silencios 42 ela vo ou fez 1as ui vo oi ayos eu tinha aprendido aquilo? “Ah, durou pouco, ele se deg n para me encher de per do por ter sabido do Ocorrido tora, eu devia ter contado acl ‘cio era aquele de sair batendo nos ou conectou do guntas: estaya pelo chamado le. E que negé- tros? Com quais «V6, ele me ba teu primeiro!”, eu disse, defensiva. Meu av6, coitado, crispou o rosto de dor quando ouviu isso, deve ter-se lembrado do quanto tinha apanhado e visto bater da quele jeito ao longo da vida Ele me deu o pente da admiragao, dias antes de morrer e eu quero com- partilha-lo com o grupo € com nossa mestra. A admiracao € um jeito de respeitar e louvar o que é do outro, sem in vejar, sem querer tomar Meu avo nos ensi para s nou a admirar 0 que csta fora da gente € © bonito, sempre com respeito © uma distancia reverente, 43 ece, n Choro de saudade, mas me alegro r- percebo todos os ensinamentos deixados por cele, toda a delicadeza de ensinar jogando 0 jogo. E isso também aprendo aqui, todos os dias, dentro e fora da roda, por isso entrego 0 pente da admiragao a vocts. Cada um conte sua historia a0 recebé-lo.” «Gee! Gira a roca do mundo, Muito bem. Obri- gada seu Francisco, agora também somos scus netos, ganhamos um pente ¢ um av6-ancestral.” a casa de tia Dinda, ao mesmo tempo que Za- pho destrancava 0 cabelo com o pente herdado do y6, pesquisava o significado da tartaruga esculpida em seu pente. Lembrava-se também das nossas brin- cadeiras com os outros pentes, quando criancas, do y6 dizendo que menino tambem poderia trancar 0 cabelo, pois era muito bonito, um trabalho de arte ~ na cabeca € que “guerreiros de varias etnias africanas usavam trangas, sim senhor, e feitas por eles mesmos ou por outros homens, ou achavamos que as esposas as guerreiras tinham tempo de sobra para se dedicar 4s trangas dbs rapazes?”. O Zazinho fez as primeiras trangas aos nove anos, com a ajuda da Luciana, que tinha treze € muita pratica. Quando chegou trancado 4 escola, foi aquela gozagao, ‘tranga era coisa de menina naquela €poca, mas 4 em ‘casa todo mundo apoiou. Hoje o Zazinho se orgulha de rr sido © primeiro a usar trangas no bairro, € se orgu- Mais ainda por ser um habilidoso trangador. Uma informagao corrente sobre a tartaruga, ja i é imais mais 0 j4 dominava, ela € um dos animais 45 ; Prelonaitls, terrestres, © 08 capa. os, Nas pardbolas africanas as tartarugas ‘esto sempre relacionados aos ancifos ¢ 4 sabedoria Ojebuti Ppetinente, é animal de N’Zazi, N’kice banto, ae do som do trovao e da luz do raio, ao mesmo tempo. i Enquanto desmancha as trangas, Zazinho vai sentindo 0 cabelo avolumar-se nas maos ¢ imagina os fios soltos como pensamentos desenrolados, antenas conectadas ao universo. Brinca de olhar-se no espe- lho da tela do computador e ri de sua semelhanga com um dos personagens de Conan, 0 Barbaro, pois parte do cabelo esta solta e ericada, em uma lateral da cabega, ¢ 0 restante esta ainda trangado. Ana Liicia abre a porta do quarto dispara a falar. “Incomodo, Zazinho?” “Nao incomodaria se aprendesse a bater na porta, querida irma.”“Ah... Za- zinho, desculpe, vocé é tao comportado, eu nunca te pegaria fazendo algo errado” “Porta fechada é para ga- rantir privacidade, nao para acobertar erros, maninha.” “Ai, Zazinho, relaxa, La vem voce com seus discursos pedantes.”“Esta bem, Ana Liicia, eo que a senhorita veio fazer no pedantismo do meu reservado? Posso __ saber?” “Nada, s6 vim bisbilhotar, Vejo que esta des- manchando as trancas. Vocé vai mesmo fazer dreads?” mas quero curtir 6 cabelo black Por un: anto isso ele cresce mais, dA : » da para tramar uns maiores € mais bonitos.” “Vocé - “Voce sabe a mi minha 10, nao &?” “Sei, nio pedi, mas sei” “Nao se} : ae seja , Zazinho. Dread € coisa de maloqueiro, nao ce 10 combina com um estudante de Direito sério, futu- Bey eto de sucesso, como voct.”“Maninha, nao ai you discutir. Mais alguma coisa?” “Nada, jé fea 86 Ds estive pensando, o v6 Fran- “i cisco era mesmo esqui- a sito, com tantas obras a de arte valiosas para is nos deixar como he- al ranga, deixou csses inteis pedacos de ma- a deira.” e A Ana Licia sa- 1 bia mesmo como ie irritar o irmao. - Onde ja se viu? "d Presente do vd ds cra presente de a afeto, nao cra Oo Pega para ganhar dinheiro. 0. pri- ‘™o também pe- 47 de uma tecnologia de escova jetada por todos os felinos asidticos idos. Acabou com a empafia dela. Eu gostei. A Ang Lucia nao gosta das minhas roupas, da capocira, dos "meus amigos, do meu sonho de ser DJ ¢ fala mal do meu pai e da minha mie. Ja me chamou de pivete ¢ de menor abandonada. Eu nao ligo, mas nao gosto dela. O primo interrompeu a discussdo, lembrando- se do pacto firmado com os pais e a prima Luciana, irma mais velha dos dois, ter paciéncia com a Ana _Lucia. O temperamento dela era mesmo dificil para interagir com as pessoas. Debochava das “ma- nifestagdes extremadas” de negritude, como cha- mava os futuros dreads do Zazinho; criticava a pri- ma Luciana por estar gravida e nao se casar com ° namorado, Nao tinha amigos, nao namorava e era pouco amavel com a familia. A tia Dinda, coitada, insistia para que ela aceitasse ajuda especializada, _ uma terapia, qualquer coisa vinda de fora, mas nun- a conseguiu nada, Porque para a Ana Lucia estava do bem. Por fim, 0 primo tirou o pente-baoba da gave- vaninha construfda pelo v6 © entregou a que Ana Lucia demorar4 a entender alguma Francisco, “o tempo perginted : ‘ tempo que o tempo tem”, & cada seu tempo, nao adianta apressar, ee f. meio da tarde e a casa estava uma confusao s0. O primo Joao Candido evocava seu posto de pri- mo mais proximo do padrinho ausente, o Abayomi, como condigao para acompanhar o parto. Tia Neu- sa, segura, lembra a ele que é homem, nao pode, sé abririam excecao para o pai da crianga. Boa lembran ¢a, precisavam avisa-lo. “Droga”, o Jodo resmungou. “Para umas coisas nao sirvo porque ainda nao sou ho- mem 0 suficiente e para outras também nao, porque sou homem demais.”Todo mundo riu muito, o Jodo Candido era bizarro com as vontades dele de ser ho- mem antes do tempo. A bolsa da Luciana rompeu enquanto apanhava amoras e, desnorteada, ela andava de um lado para o outro, com a bacia de frutinhas numa mao e a outra embaixo da barriga, até engolir o susto e gritar para a casa: “Gente, meu menino vai nascer.” Foi aquele deus-nos-acuda, gente mandando ela sentar, ficar calma, respirar e, por fim, quase a amarraram, porque ela so queria andar, andar e co- _meramora. Vo Berna ria, “minha filha, nunca vi isso, problema para mi- nha resolugao, obvio, Antes de alguém Pegar 0 carro, peguei a bicicleta e avisei que ia buscar a Parteira, trés tuas abaixo da nossa casa. Cheguei ansiosa ¢ gritei para dona Anésia, a eterna ruminante do tempo na janela:“Oi dona Ané- sia, o menino da Luciana t4 nascendo, a Black”... ela nem me deixou terminar e avisou que ja sabia, v6 Berna tinha telefonado. D.Anésia me mandou entrar. Segui os movimentos de Black ‘Thousand, enquanto esperava a finalizagao dos preparativos. As contas de Kissimbi postas no pescoco, o boné branco, as chaves da moto tiradas da mesa de som... Acordei com o Susto do capacete jogado no meu colo, “Vamos Barbi- nha, sobe ai, depois vocé vem buscar a bicicleta.” Eu 80 esperava © convite. Agarrei-me a cintura de Black ©Nos trés minutos de trajeto entre uma casa e outra eitei para perguntar sobre a festa dos 21 ae ledés no més seguinte. Soube que Black iia Robin, Batwoman e Batgirl. Black nao respondeu a principio, insisti. Fla me lembrou dos meus dezesseis anos, ainda nao tinha idade para varar madrugadas na rua. Minhas pretens6es receberam um balde de gelo, me senti exatamente como o primo Joao Candido. Luciana, desde que conseguiram fazé-la parar de andar, seguiu as instrugGes do treinamento de parto ensaiadas com a Black, manteve-se de cdco- ras e isso aumentou a dilatagao e diminuiu as dores. O parto transcorreu tranquilo. O bebé nasceu pelas maos habeis e precisas de Black Thousand, avisou ao mundo da sua chegada com um choro forte. Luciana qui- sito de amora passada. Cheia de remorsos, crivou as provou o leite do priminho e sentiu um sabor tias de perguntas sobre uma possivel dor de barriga do garoto. Tao novinho e ja ia sentir dor, gritar e nag deixa-la dormir, também. Daniel, 0 pai do menino, chorava como um desamparado, dividia as atencdes com o bebé. Luciana foi Paciente no principio, depois estressou com o namorado, mandou-o calar a boca. Acho que ele atrapalhava os pensamentos dela. O que ninguém esperava foi o pedido de casamento feito na- quela hora. Siléncio geral, todo mundo aguardando @ Teacao da prima. Ela olhou para o Daniel com um ae oa prima parecia relaxar, o priminho ¢. Alguém, parece que foi tia Dinda, 0 colo. lado dela, rosto com rosto, O bichinho sentin cheiro da mae ¢ parou de chorar. Incrivel! Mexia 9 nariz como um coelho, porém mais lento, e fazia movimentos com a boca, parecidos com beijinhos, v6 Berna se desligou da fungao de expectadora do filme de amor entre filho e mie e compreendeu ~ que ele queria mamar. Levou-o até 0 peito da Luciana uao € ele sugou bastante, como todo pequeno mamifero jana faz. De novo, ficou todo mundo mudo, observando a qui- primeira mamada. u as Quando, enfim, o priminho se cansou de beber riga Teite, v6 Berna o tirou da cama e deu uns tapinhas nas nao Costas dele para completar a digestao, depois o devol- ino, veu sonolento a mie. Luciana dormiu com 0 filho do Ges lado, sonhando com os significados do pente-peixe pois deixado pelo v6 Francisco ¢ com as palavras de Black . "80 cortar o cordio: “Este menino trara abundancia Aue a sua familia, é ano de Mutalambé!”. io Eu me lembrava de uma musica do meu poeta so me intrigava desde “Morrer deve querido, o Gil. Um ver: do © ouvi pela primeira vez: oO tempo Kl. horario predileto de yé Francisco, 0 entardecer, tio Aganju, acompanhado por tio Ainan ¢, desta vez, pelo pri mo Joao Candido, deposita aurna com as cinzas na pe dra mais alta da cachoeira das andorinhas. O vento € a agua se encarregardo de semear Francisco Ayra pelos quatro cantos do mundo. Feliz, por ter conseguido participar daquele ritual, Joao Candido abre o peito © pergunta: “Sabem 0 nome do mais novo membro da familia, 0 afilhado da Lira e do ' Abayomi? Kitemboooo! Sibila 0 yento!”.

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