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ALFABETIZACAO: EM BUSCA DE UM METODO? * RESUMO. ‘0 método foi, durante d&cadas, © problema central da al- fabetizagao. Atualmente, porém, como consequencia de os- tudos e pesquisas no quadro da psicogénese da Iingua eseri- a, € freqiiente uma severa critica a utilizagao de métodos, no processo de ensino/aprendizagem da lingua cscrita, Entre- tanto, 2 natureza teleoldgica da escola impoe a busca de pia- radigmas metodoligicos, que nao conflitam com a teoria p: ‘cogenética da aprendizagem da escrita, desde que se enten- da de forma nao estereotipada 0 coneeito de método de alae betizagao. Descritores de assunto: alfabetizacao: paradigmas meto- dolgicos - construtivismo * Conferéncia ita no XXII semindrio Brasileiro de ‘eenologia Educacio- tal, Rio de Janeio, 25 de sete de 1799. * Professora dt Faceldade de Uducasio da URMG, “4 Mayda Becker Soares** ABSTRACT For the last decades, method has been the central problems ‘on how to teach children to read and write, Nowadays, as a consequence of studies and research under a psychogenetic perspective of literacy development, the use of methods to teach reading and writing has been severely criticized, However, the teleological nature of schoo! imposes the search for methodo- logical paradigns, which in reality do rot conflict with the psy- chogenetic theory of literacy development, provided the concept of method of teaching reading and writing is not an stereoty- ped one. Key words: literacy development - writing and reading: methodological paradigms - constructivism, Educ. Rev, Belo Horizonte (12): 44-50, dez. 1990 ‘Come¢o por analisar o tema que me foi proposto para esla exposigdo, ¢ promoto que terminarci por tentar, corajo- samente, oferecer uma resposta 8 pergunta que ele formula. Pois o tema é uma porgunta - Alfabetizagdo: em busca de ‘um método? Seria, apenas, uma pergunta retorica? Isto é, se- ria uma daquelas perguntas que ndo esperam resposta, que sio feitas com o objetivo de apontar uma questo, um pro- blema ainda de dificil ou imposstvel solugio? Numa perspectiva histérica, a pergunta surpreende: hé no mais que poucos anos, essa pergunta néo teria sentido. E que 0 que hoje é proposto sob a forma de pergunta foi, du- rante décadas, uma decidida afirmagao - Alfabetizagio; cm busca de um método. Porque, durante décadas, andamos, afirmativamente, ansiosamente, cm busca, sim, de um méto- do: silabico? global? fonico? ou, quem sabe, eclético? Mas busedvamos um método. Durante décadas, esse parecia ser 0 problema crucial ds alfabetizagao: um método. Pesquisa sobre a produgo académica ¢ cientifica a res- Peito da alfabetizagao, nas tiltimas quatro décadas (SOA RES, 1989) mostra a predomindncia do tema _método 1 so- bre qualquer outra faccta do processo de aquisigao da ingua escrita, mos anos 50 ¢ 60: TABELA I Tems METODO na produgio sobre alfabetizacéo, no Brasil, por década 1980-1986 DECADA_| 80-8 | @-@ | WP | _W-8 | TOTAL TEMA we a ee Pe Meropo— a sea ea ‘OUTROS a, | 975 56 6 | ys 96 ToTAC [1 oo) 12 Woo) a2 To) | aot too | 0 T0o FONTE: SOARES, Tos, A tabela evidencia que a questo do método ¢ objeto de estudos € pesqiuisas em todas as décadas, mas sua prosenca 36 ¢significativa nos anos 50 € 60: 0 tema ocupa um tergo da produgio 10s anos $0, ¢ um quarto da produgéo 0s anos 60, Nos anos 70 e, sobretudo, nas anos 80, essa produgao de- cresce acentuadamente: nao mais que 14% da produgao aca- démica e cientifica sobre alfabetizagio voltam-se para a questo do método, na década de 70, © apenas 4%, na rmeira metade dos anos 80. 10 termo mélodo fo wilzado, na pesquisa mencionada no parégrafo, em sentido resto isto 6, foram englobados, seb « denominagi de metodo, ‘apenas os paraéigmas diaiios tradiionalointe considevados ma feoria © na pritic da alfebetizagio: os chamados "métodos anaitico” « métodos sinticos" em sues diversas modalidades (méiedo fOnico, sisbco,palara- ‘to, método global, método exktico,cte).Cr.,adiante, a proposta de ums ‘outta coneepgio de método. Educ. Rev., Belo Horizonte (12): 44-50, dez. 1990 Pode-se afirmar,com base nesses dados sobre a produgao académica e cientfica a respeito da alfabetizagéo, que, nas décadas de 50 e 60, aquilo que, hoje, se formula como per- ‘gunta, cra uma afirmagio: a alfabetizacao estava, sim, em busca de um método, Também na prética escolar, essa busca esteve, sem duvida, intensamente presente nas décadas de 50 © 60, €, certamente, persistiu nos anos 70 ( 0 desprestigio da questio do método de alfabetizagdo atingiu a érea cientiica anos antes de chegar & escola, as salas de aula em que se al- fabetiza - ou se tenta alfabetizar).. Por isso 6 que afirmei numa perspectiva histérica, a pergunta - Alfabetizagao: em busca de um método? - sur- preende, Nao surpreende hoje, neste momento educacional ue estamos vivendo, na area da alfabetizagao. Por que, hoje, a questo da procura de um método de al- fabetizagao tornou-se, de afirmagao, em pergunta? (Nao me vou deter numa discussdo, que seria interessan- te, € mesmo pertinente a respeito de para quem essa ques- tao se fez pergunta. Acredito que nos iludimos, quando jul- gamos que muitos estejam seinterrogando sobre a relevin- cia da busca de um método de alfabetizagao: talvez a grande maioria daqueles que esto envolvidos na pritica escolar co- tidiana da alfabetizacao continuem afiemando a busca de um metédo - a perguata que fazem, que continuam sc fazendo 6, certamente, qual é o método: fénico? global? sildbico? E: ttetanto, néo me vou deter nesta questo, porque meu objet vo, aqui, 6 discutir a busca de um método de alfabetizagio sob a forma da pergunta em que se transformou essa afirma- Go, para alguns - para muitos?) ‘io € dificil explicar por que a afirmagao - em busca de tum método - tornou-se interrogagio - em busca de um méto- do? Certamente isso ocorreu em virtude de uma radical mu- danga de paradigma, nos titimos anos, nos estudos ¢ pesai sas sobre alfabetizagio, mudanga que se vem refletindo na rética da alfabetizacao. ‘A pesquisa jé mencionada (SOARES, 1989) sobre a pro- dugao académica e cientifica a respeito da alfabetizagio, nas “iltimas quatro décadas, mostra a nitida predominancia da 45 Psicologia, como referencial tebrico dessa produgio ( quase metade: 40% da producio) - confirma-se, assim, a tradicio- nal tendéncia a privilegiar, na andlise do processo de alfabe- tizagio, a sua faceta psicoloaica, Entretanto, sto va x05 epistemol6gicos subjacentes as concepcées ‘que informam estudos e pesquisas sobre a alfabetizaca analisar esses eixos, numa perspectiva histor ‘a, por um lado, a persisténcia do Associacionismo, a0 tongo do tempo, também se constata uma prescnga forte da Psico- logia Genética nos anos 80; ‘TABELA I + Tendéncias do referencia tedrco Psiologis na produgio sobre alfabeti- acho no Brasil, por década - 1950-1985 DECADA_| 30-5) | 0 -@ | W-% | W-5 | TOTAL TENDEN T a AS. ms [a |e Sine %| ot ASSOGAC| 6 0 |S eS a7 fa aps 8 PSCOGEN| = - 1 2 |e a CURA), es SS ToraL [12 _10_|@ 10) | 22 100] $5 10| 97 100 FONTE SOARES, 1988 Observa-se que o Associacionismo & a tendéncia predo- minante nas décadas de 50, 60 e, sobretudo, na década de 70, ‘quando a vertente skinneriana dessa tendéncia exercia gran- de influéncia no ensino brasileiro, refletindo-se fortemente na alfabetizagio; entretanto, embora a presenga do Associa- smo, nes primeiros seis anos dos anos 80, continue sen- do muito significativa, decresce nitidamente, em relagio as décadas anteriores, € € superada, nesse perfodo, apesar de por pequena diferenga, pela tendéncia psicogenttica, cuja predominancia nos anos 80 reflete a tardia mas forte influén- ia de Piaget na reflexao sobre alfabetizago, no Brasil E essa influéncia que representa aquilo que denominei tuma radical mudanga de paradigma, n0s ditimos anos, nos estudlos € pesquisas sobre alfabetizagao e, conseqiientemen- tc, também na pratica da alfabetizagdo. Essa mudanca se re- flete com clareza na questio do método de alfabetizacao. Na perspectiva associacionista, 0 método € fator essencial do processo de aprendizagem; da lingua escrita, porque € considerado determinante dessa aprendizagem comprova- ‘gdo disso € que, ao longo dos anos, a presenga significativa da questéo do método na produgéo académica e cientifica sobre alfuhotizacao (Cf. Tabela 1) € contemporsinea de uma presenga também signficativa do Associacionismo, como referencial te6rico de analise da alfabetizagio (Cf. Tabela m. A Psicogenética, deslocando o eixo de compreensio ¢ in- terpretagao do processo pelo qual a crianga aprende a ler ca escrever, trouxe uma severa critica a importincia que vinha sendo atribuida ao método de alfabetizacao. 46 E que a psicogenética alterou profudamente a concepgao do processo de aquisigio da lingua escrita, em aspectos fun- damentais: a crianga, de aprendiz. dependente de estimulos ‘externos para produzir respostas que, reforcadas, conduzi- riam & aquisigao da lingua escrita - concepgio bisiea dos métodos tradicionais de alfabetizagio - passa a su capaz de construir 0 conhecimento da lingua cscrita, intera- gindo com exse objeto de conhecimento; os chamados “p Fequisitos” para a aprendizagem da escrita, que caracteriza- riam a crianga “pronta” ou “madura” para ser alfabetizada - pressuposto dos métodos tradicionais de alfabetizagio - s40 rnegados por uma visio interacionista, que rejeita uma ord hierarquica de habilidades, afirmando que a aprendizagem se da por uma progressiva construgao de estruturas cogni vvas, na relagéo da erianga com o objeto “Wagua eserita”; as dificuldades da crianca, no processo de aprendizagem da lingua escrita - consideradas’‘deficiéncias” ou “disfungoes”, na perspectiva dos métodos tradicionais - passat a sor vistas como “ erros construtives”, resultado de constantes reostru- turages, no processa de construgao do conecimento da lin- gua escrita E cm decorréncia dessas mudangas conceituais que 0 método passa a ser questionado: na verdade, sio concepgoes diametralmente diferentes, ¢ até conflitantes, do processo de aquisigao da lingua escrita que estdo em jogo. Uma concep- ‘go associacionista do processo de aquisigao da eserita con- sidera o método fator determinante da aprendizagem, ja que seria através da exercitagao de habilidades hicrarquicamente ordenadas que a crianga aprenderia a ler ¢ a cscrever; una concepgio psicogenctica, ao contrério, considera ser 0 aprendiz 0 centro do processo, pois 0 vé como sujeito ative que define seus préprios problemas ¢ constréi cle mesmo hi poteses © estratégias para resolvé-los, Nesta segunda pers- peetiva, o método de ensinojem sua concepgao tradicional, pode mesmo ser prejudicial, a medida que bloqueie ou difi- culte os processos de aprendizagem da crianga. Portanto: transformar a afirmagio da busca de um méto- do de alfabetizagao - alfabetizagdo: em busca de um método Educ. Rev., Belo Horizonte (12): 44-50, dez. 1990 ~ ¢m interrogagito - alfabetizagao: em busca de um método? - exprssa, como afirmei, uma radical mudanca de paradigma, 1a concepeio do processo de alfabetizacao. Entretanto, € muito significativo verificar que a afirma- io se fez interrogagio, ¢ ndo exclamagio, A exclamacio - alfabetizagio: em busca de um método! - expressaria estra- nheza diante de uma preocupagio com © método, na alfabe- tizagéo, traria em si idéia de que ndo seria nem mesmo ad- ‘issivel a busca de um método de alfabetizagao. Ao contra- rio da exclamagao, a interrogacdo permite a divida: estamos ‘em busca de um método de alfabetizasao? E preciso buscar tum método de alfabetizagao? Por quc a dévida? Se af esté a Psicogenética, a demons- trar que a crianga € que aprende a ler e escrever, nao é 0 mé- todo que ensina a ler e escrever? Por que nao reagir, pois, com uma exclamagao de perplexa surpresa & busca de um método de alfabetizacao? Em outras palavras: por que ndo ime propuseram, como tema para esta exposicio, a erftiea & busca de um método de alfabetizagao, o que significaria uma atiwude “ exclamativa ” diante dessa busea, em vez de me so- licitarem a discussao (a resposta?) de uma pergunta sobre a pertinéncia, a necessidade, a possibilidade de buscar um mé- todo de alfsbetizacao? Actedito que, neste momento de provaléncia conceitual a Psicogénese, a razio de estarmos nos perguntando a res- peito de tim método de alfabetizagao, em ver de estarmos re- jeitando métodos de alfabetizagdo, esté na teleologia que a escola €, conseqlientemente, a pratica pedagégica nos impé- fem. A escola & essencialmente teleolbgica: por delegaga da sociedade, ¢ com a sangdo dela, a fungio da escola & levar as novas geragies & apropriagio da cultura considerada “legit ma”, cultura de que um dos componentes primeiros é a Iin- ‘gua esctita (€ adjetivo “primeiros” & aqui usado em seus dois sentidos: 0 eronolégico, que indica a posigao da apren- dizagem da lingua escrita na seqiiéncia dos contetidos cultu- rais a serem adquiridos, ¢ 0 valorative, que indica o prestigio dessa aprendizagem, no conjunto dos conteiidos a que essa aprondizagom visa). Educ. Rev, Belo Horizonte (12): 44-50, dez, 190 Embora sendo apenas uma instincia, entre as muitas que inculcam a cultura “legitima” (ou ideologicarnente logti- mada) As novas geragGes, a escola se diferencia dessas outras, instancias pela organicidade e sistematicidade de sua agao, organicidade c sistematicidade que Ihe so impostas por seu cariter teleolégico: a escola delimita 05 contetidos culturais a serom transmitidos, realizando recortes que selecionam de- terminados componentes culturais, excluindo, correlativa: ‘mente, outros; a escola homogenciza, sitematiza e codifica os, contedidos culturais que selecionou; a escola fixa a duracio do tempo em que deve ocorrer a apropriagéo de cada um desses conteddos selecionados (0 bimestre, 0 semestre, 0 ano letivo, a série, 0 grau de ensino); a escola avalia 0 nivel de realizagio dessa apropriagdo em momentos pré-estabele- cidos, intra-escolares e extra-escolarcs. E ainda em virtude do caréter teleologico que a sociedade Ihe atribui, a escola se vé obrigada a essa selegio dos conteddos culturais que trans- mite, 4 homogencizagio, sistematizagao e codificagio deles, A marcagao e seccionamento do tempo de sua distribuigéo, & avaliagio periédica do nivel de apropiagéo deles, ndo em funcao dos interesses do sujeito aprendiz, de suas caracteris- ticas, de seu ritmo, das peculiaridades de seu processo parti- ‘cular de sucessivas reconstrugées do conhecimento, mas em fungdo de determinados resultados que devem ser obtidos fem grau considerado aceitével, ao fim de um perfodo de tempo pré-fixado. Essa sd0 as condigies objetivas a que a escola estd sub- metida, ¢ que se explicam pela destinacao historicamente ateibuida, pela sociedade, a essa instdncia educativa - quan- do falo dela, portanto, estou falando daquilo que ela é , nio daquilo que cla deveria ser, ou poderia ser, ou eu gostaria que fosse. ‘Como conciliar os principios de uma perspectiva psicoge- nética da aprendizagem da leitura ¢ da escrita com essas condigées institucionais de ortodoxia da escola? Como per- mitie a crianga interagio livre ¢ prolongada com a escrita, fa- cultando-Ihe progressivas ¢ no previsiveis nem programa- veis construgées ¢ reconstrugdes de estruturas cognitivas, ex: ploracao das hipdteses que vai levantando, experimentagio das estratégias que vai descobrindo, se ha determinadas ha- bilidades cujo dominio deve ser demonstrado, em nivel pré- estabelecido, e em tempo pré-fixado? ‘A necessidade, associada a dificuldade dessa conciliagao € que nao nos permite a ingenuidade de rejeitar, sem 0 se ‘mento da dvida, a busca de um método de alfabetizacao;, por isso é que nao exclamamos, com perplexa surpresa - al- fabetizagao: em busca um método! - mas perguntamos, com ansiosa expectativa - alfabetizagao: em busca de um método? Essa ansiosa expectativa” por uma resposta metodol6- sgica para o problema de ensinar a erianga a ler © a escrever ‘esté comprovada nos dados obtidos na pesquisa, j4 mencio- nada, sobre 2 produgdo académica e cientifica a respeito da alfabetizagio, no Brasil, nas Gltimas quatro décadas (SOA- RES, 1989). A Tabela I mostrou a predomindncia do tema a7 método (denominagao atribuida, para fins da pesquisa, avs paradigmas didéticos tradicionais - CF. nota 1) nos anos 50 ¢ 60, ¢ seu progressivo e acentuado decréscimo, nos anos 70 € 80. Ora, nesses anos 70 c, sobretudo, 80, cresce significativa- ‘mente a produgéo sobre o tema proposta didstiea (denomi- nagao atribuida, para fins da pesquisa, a novos paradigmas didaticos que rejeitam ou buseam superar os modelos meto- dolégicos tradicionais). A Tabela II amplia a Tabela I, com- provando essa afirmacao: ‘TABELA I ‘Temas METODO ¢ PROFOSTA DIDATICA na produto sobre lle {eagzo no Bra, por dada 19501986 “9 0-0 | WP 186 %_[e ea % METODO, es pe 4 FRorDID_|i 6 | [410 2 ‘ovtroe(3) | 799] 978976 76 18 tceal Too | #2 Yoo | 4200 io 17230 100 FONTE SOARES a9, ‘A tabela evidencia que a produgio sobre o tema propos- {a didstica, quase ausente: nos anos 50, 60 70 - perfodo em que nao se cogitava de outras alternativas metodol6gicas, na rea da alfabetizacao, além dos tradicionais métodos analit cas ¢ sintéticos - tem presenga marcante. nos anos 80, repre- sentando um quinto da producéo total sobre alfabetizagio, nesses anos: a jé discutida mudanga radical de paradigma conceitual ocorrida, nos iltimos anos, na drea da alfabetiz- sd0 (CE-Tabela 11), rejeitando a dicotomia andlise/sintese como explicativa do processo de aprendizagem da lingua es- rita, rejita também, cocrentemente, os métodas de alfabe- tizagao fundamentados nessa dicotomia. Mas busca outros paradigmas metodolégicos, o que justfica a pergunta que € ‘© tema desta exposigao - alfabetizagi: em busea de um mé- todo? E que resposta dar, entao, a essa pergunta? Corajosa- ‘mente, como anuncici no inicio desta exposigio, atrevo-me a responder que sim, que estamos, sim, em busca de um méto- do de alfabetizacao: rejcitamos, nio ha dévida, os tradicio- nais métodos de alfabetizacao, ja ndo podemos aceité-los, ‘mas a tarefa de conciliar nossa nova comprecnsio do proces so pelo qual a crianga aprende a ler © a escrever com as con- diges objetivas de possibilidade da escola impde-nos a bus- cca de diretivas que no s6 nos salvem do espontancism0, a que pode levar uma interpretagao equivocada e ingénua da perspectiva psicogenética, mas sobretudo que nos proteja da ambighidade conceitual, a que pode levar a ortodoxia da es- cola £ preciso, porém, comegar por eselarecer o que estou entendendo por“método”, quando afirmo que estamos, sim, em busea de um método. A discussio sobre método de alfabetizacio € hoje, dificil, porque se apresenta sempre contaminada por duas questées: em primeiro lugar, o fato de que o problema da aprendiza- ‘gem da leitura © da escrita tenha sido considerado, no qua- dro dos paradigmas conccitusis tradicionais, como um pro- blema sobretudo metodol6gico tem levado a que se rejcitem métodos de alfabetizagao ao mesmo tempo em que se rejei- tam esses paradigmas que ja ndo mais sao aceitos; em segun- do lugar, c em cstrcita relagdo com a questo anterior, “mé- todo”, na érea da alfabetizagao, tornou-se um conccito este- reotipado: quando se fala em “método” de alfabctizagio, identifica-se, imediatamente, “método” com os tipos tradi cionais de métodos - sintéticas e analticos (fonico, sitabico, global.etc.), como se esses tipos esgotassem todas as allerna- livas metodolégicas na aprendizagem da leitura ¢ da escrita, € mais: como se “método” fosse sindnimo de manual, de conjunto pedagogico que tudo prevé e que transforma 0 en: sino em uma aplicagdo rotineira de procedimentos e técni- Ora, método, na dra do ensino, é um eonceito genérico, sob o qual podem-se abrigar tantas alternativas quantos qua- ros conceituais existirem ou vierem a existir, Particularmen- te no campo do ensino das linguas (materna ou estrangeira, oral ou escrita), um “método” € a soma de agies bascadas num conjunto cocrente de principios ou de hipdteses psico- logicas, ligisticas, pedagégicas, que respondem 2 objetivos determinados. Um método de alfabetizagio ser4, pois, 0 sultado da determinagao dos objetivos a atingir (que con tos, habilidades, atitudes caracterizarao a pessoa alfabetiza- da2), da opgio por certos paradigmas conceituais (psicol6 Lzico, ligiistico , pedagégico), da definigao, enfim, de agies, rocedimentos técnicas compativcis com 03 objetivos vise dos © as opgdes tebricas assumides. ‘No quadro dessa concepgao de “método”, € evidente q nao sio incompativeis um paradigma conceitual psicogencti- co € método de alfabetizacio. Emilia Ferreiro ¢ Ana Tebe- rosky, quando criticam, em Psicogénese da lingua eserita (FERREIRO & TEBEROSKY, 1985), métodos de alfabeti- Educ. Rev,, Belo Horizonte (12): 44-50, dez. 1990 zagio, referem-se a0s “métodos tradicionais” (terminologia, ‘que utilizam vérias vezes, e que aparece, mesmo, como subli tulo de uma das partes do capitulo 1), rejeitam as “proposi- ‘ges metodolégicas tributdrias de concepgées empiristas da aprendizagem” (p.277), mas no negam a possibilidade do método.“No que diz respeito i discussio sobre os métodos”, afirmam, "j4 assinalamos (..) que essa querela & insolivel, a ‘menos que conhecamos quais so 0s processes de aprendi- zagem do sujeito, processos que tal ou qual metodologia pode favorecer, estimular ou bloquear.” (p. 26) A locuggo repositiva “a menos que” deixa claro que apenas em deter- ‘minadas condighes a querela sobre métodos de alfabetizagio ¢ insoldvel: quando nao se tomam como quadro de referén- cia os processos de aprendizagem do sujeito; e a citagdo dei- xa também claro que, se uma metodologia pode bloquear es- ses processos, pode também favorecé-t, estimulé-los. ‘Também Kenneth Goodman, outro importante investiga- dor dos processos de aprendizagem da escrita, pela crianga, no quadro de um referencial psicogenético, nao rejeita a dis. ‘cussao motodol6gica; partindo de uma teoria da aprendiza- ‘gem © de uma teoria da linguagem, sobre as quais constrdi uma concepcéo do ensino, do curriculo e da aula de lingua, propée “um caminho” para a aprendizagem da keitura c da escrita, a que denomina “linguagem integral” (whole langua- £€), ctjos principios sistematiza, indicando atividades e ma- teriais didaticos com eles compativeis. Um “ caminho” que 6, pois, uma proposta metodol6gica, tanto assim que jé se en- ‘contra, na bibliografia recente, a proposta de um “método integral de alfabetizagio” (Ct. FREEMAN, 1988). Alls, no so poucas as propostas metodolégicas que ‘tém surgido, sugerindo orientagso pedag6gica cocrente com © paradigma conceitual da psicogénese, O livro Os filhos do analfabetismo, em, que Emilia Ferreiro apresenta os resulta- dos de um encontro latino-americano realizado no México ‘om 1987 (FERREIRO, 1990), é todo ele, uma apresentagéo € diseussao de “propostas” para a alfabetizacio (o subtitulo do livro expressa, com clareza, 0 objetivo do encontro ¢ do livro: propostas para alfabetizagao escolar nu América Lati- na). ‘Ana Teberosky publicou, recentemente, uma Psicopeda- sgogia da linguagem escrita, em que apresenta “ uma séric de ropostas de situagdes de ensino-aprendizagem da_ lingua gem escrita para criangas de cinco a oitos anos”, propostas {que se voltam para 0 objetivo de“ conjugar as idéias das criangas com 05 requisitos do ensino”, entendidos estes como“ 6 imperative do professor para fazer as criangas avangarem "(TEBEROSKY, 1989 p. 13). A mesma Ana Te- berosky, juntamente com Beatriz Cardoso, organiza e publi- ‘a relatos de experiéncias de professoras de uma escola, que desenvolvem sua pratica de ensino da leitura e da escrita ‘muma perspectiva psicogenética, descrevendo ¢ analisando uma propasta de atuagao conjunta entre professores e for- mador de professores”, com “ 0 objetivo de pramover uma situagio que fornecesse a formagio do professorado ¢ orien- Educ. Rev., Belo Horizonte (12): 44-50, dez. 1990 tasse o trabalho pedagogico dentro da sla de aula” (TEBE- ROSKY & CARDOSO, 1989 P. 10). Também pesquisadores € professores brasileiros vém apresentando proposigées me- todolégicas para uma prética pedagégica informada pelo pa- radigma psicogenético: a Tabela ITT mostrou grande ni- mero de textos cujo tema é uma proposta diditica, na pro- dugio académica e cientiica sobre alfabetizagdo, nos anos 80- so, em sua grande maioria, ou defesa de um paradigma psicogenético para a alfabetizagio, ou relatos de experién- cias bem sucedidas de ensino da leitura e escrita fundamen- tadas nesse paradigma. E é preciso nao esquecer a obra pur blicada recentemente por Esther Grossi, Didatica da alfabe- tizagio (GROSSI, 1990), contituida de trés volumes corajo- samente intitulados DIDATICA do nivel pré-silébico (v.1), DIDATICA do nivel sitébico (v2) e DIDATICA do nivel ak fabético (¥.3), nos quais pretende extrair “ aplicagées didati as das descobertas cognitivas” (GROSSI,1990 v.2.p.12). E interessante notar como, om toda essa bibliografia preocupada om em apresentar orientagbes pedagdgicas, pro- posigdes metodolégicas para o ensino da leitura e da escrita, ‘numa perspectiva psicogenética, procura-se evitat 0 termo " método’, substituindo-o por "proposta’. E preciso, porém, advertir: trata-se nao mais do que de uma mera” substituigdo " de termos apenas se se atribui a" método " o sentido que propus: soma de agdes baseadas num conjunto cocrente de Principios ou de hipdtesess psicolégicas, lingifsticas, peda- ‘g6gicas, que respondem a objetivos determinados; se se atri- Dui a "método" o conceito estereotipado que esse termo ad- quiriu - método de alfabetizacio identificado com os tipos tradicionais de métodos - analiticas( fonico,silé- bico, global, etc,), e se se confunde método com manual, conjunto de prescrigbes gera de uma pratica rotineira, no serd apenas uma substituigéo de termos, mas uma radical ‘mudanga conceitual. Neste caso, a diferenga entre método proposta sera aquela que Margarita Gémez Palacio aponta, em Os filhos do analfabetisme:" a diferenca entre método © roposta reside no fato de que o primeiro esté centrado no processo que o professor® deve seguir € a proposta de aprendizagem, no processo que a crianca realiza" (FERREI- RO, 1990 p. 100). Mas € preciso néo ter medo do método; diante do assus- tador fracasso escolar, na area da alfabetizagao, ¢ conside- rando as condigbes atuais de formagio do professor alfabeti- zador, em nosso pais, estamos sim, em busea de um método, tenhamos a coragem de afirmé-lo, Mas de um método no conceito verdadeiro desse termo: método que seja 0 resulta- do da determinagao clara de objetives definidores dos con- ceitos, habilidades, atitudes que caracterizam a pessoa alfa- betizada, numa perspectiva psicologica, lingtistica, ¢ tam- bém (¢ talvez sobretudo) social e politica; que seja ainda, 0 resultado da opcéo pelos paradigmas conceituais (psicol6- 000, lingiistico, pedagégico) que trouxeram uma nova con- cepgio dos processos de aprendizagem da lingua escrita pela crianca, compreendendo-a como sujeito ativo que constréi 0 49 conhecimento, ¢ nfo ser passivo que responde a estimulos cexternos; que seja, enfim, 0 resultado da definigao de agées, rocedimentos, téenicas compatfveis com esses objetivos € ‘com essa op¢io te6rica, Som proposicées metodolégicas cla- ras, estamos correndo o risco de ampliar o fracasso escolar, ou porque rejeitamos os tradicionais métodos, em nome de ‘uma nova concepgio da aprendizagem da escrita ¢ da lcitu +a, sem orientar 0s professores na” tradugo” dos resultados gerados pelas pesquisas em uma pritica renovada na sala de aula, ou porque nao saberemos resolver o conflito entre uma concepgio construtivista da alfabetizagao ¢ a ortodoxia da escola, ou, Finalmente, porque podemos incorrer no esponta- nefsmo, considerando, por falta de suficiente formagao te ca, qualquer atividade como atividade intelectual, ¢ qual quer conflito como conflito cognitivo. E. nio temos 0 direito de submeter, mais uma vez, as criancas brasileiras a tentati- vas fracassadas de thes dar acesso ao mundo da escrita ¢ da leitura. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS FERREIRO.Enilia, TEBEROSKY, Ana. Psicogénese da lingua escrita. Trad, Diana Myriam Lichtenstein, Liana Di Marco ¢ Mério Corso, Porto Alegre: Artes Médicas, 1985. FERREIRO, Emilia, (org.) Os filhos do analfabetismo: pro- postas para a alfabetizagao escolar na América Latina. ‘Trad. Maria Luiza Marques Abaurre. Porto Alegre: Ar- tes Médicas, 1990. FREEMAN, Yvonne 8, Métodos de Jectura en espaol reflejan nuestro conocimiento actual del proceso de lectura? Lectura y Vida, Buenos Aires, ¥9,n3,p.20-27, set. 1988. GOODMAN, Kenneth. El lenguaje integral: um camino facil ppara el desarrollo del Lenguaje Lectura y Vida, Buenos Aires, v.11, 1.2 5-13, jun.1990. GROSSI, Esther Pillar. Didética da alfabetizagao, Rio de Janciro: Paz ¢ Terra, 1990.3. SOARES, Magda Becker. Alfabetizagéo no Brasil: 0 estado o conhecimento. 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