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Vigilancia, controle e atencao: a desinformacao como estratégia Surveillance, control and attention: disinformation as a strategy Vigilancia, control y atencidn: la desinformacion como estrategia 9 Ana Regina Régo + Tem pés-doutorado em Comunicacdo e Cultura pela Escola de Comunicagao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRU). Doutora em Pracessos Comunicacionais pela Universidade Metodista de Sao Paulo (Umesp) Mestra em Comunicagao e Cultura pela ECO-UFRU. Bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal do Piaui (UFPI). Professora do Programa de Pés Graduagao da UFPI. Coordenadora da Rede Nacional de Combate & Desinformagao (RNCD-Brasil). E-mail: anareginarego@gmail.com Resumo Este ensaio de cunho tedrico foi construido no intuito de tensionar o debate sobre a desinformagao procurando trazer para a visibilidade aspectos mais amplos e que se inserem silenciosamente em nosso contexto social nos dias atuais. Partimos de uma visada situada entre Foucault e Deleuze sobre vigilancia e controle, passamos rapidamente pela economia da atencaoe problematizamos as reacdes que podem irromper a partir da sinergia entre acdes despertadas por uma consciénci PALAVRAS.CHAVE: VIGILANCIA + CONTROLE + RESISTENCIA + DESINFORMAGAO « RNCD. Abstract Our theoretical essay aims at tensioning the debate about disinformation, seeking to give visibility wider aspects that are silently inserted in our social context. We started from a view located between Foucault and Deleuze on surveillance and control, then quickly went through the economy of attention and problematized the reactions that can emerge from the syneray among actions awakened by a historical conscience. KEYWORDS: SURVEILLANCE + CONTROL + RESISTANCE + DISINFORMATION « RNCD. Resumen Este ensayo tedrico tuvo como objetivo debatir sobre la desinformacién, buscando sacar a la luz aspectos mas amplios que se insertan silenciosamente en nuestro contexto social actual. Partimos de la perspectiva entre Foucault y Deleuze sobre Vigilancia y control, pasamas brevemente por la economia de la atencién y problematizamos las reacciones que pueden surgir de la sinergia entre acotones despertadas por una conciencia histérica, PALABRAS CLAVE: VIGILANCIA + CONTROL « RESISTENCIA « DESINFORMACION + RNCD. (ORCANCOM- ANO 7» NUMERO4+ SETEMERO OEZEMERO 2020 ANAREGINARESO-P. 53 INTRODUCAO (OPansptico naa é uma prisao.€ um principio geral de construcao, o dispositive pativalente da vsitancia,a maquina 6ptica universal das concentractes humanas, Jeremy Bentham, 2019, p89. desinformacao tem dominado o debate neste 2020 conturbado e marcado pela pandemia da Covid-I9 que, nos tiltimos, dias de outubro, momento em que escrevo o presente texto, ultrapassa a casa de I milhao e duzentos mil mortos em ‘todo.0 mundo. Nesse caos desinformativo.a polémica situa-se em tornado confronto entre as conceituagées plausiveis e capazes de conformar 0 fendmeno, que em si ea partir da visada fenomenoldgica que adotamos, seria principalmente o lado oposto da informacao e que por esta se faz passar de forma contumaz. ‘Adesinfopandemia (Bontcheva; Posetti, 2020) ouinfopandemia tem sido apontada comoa grande causadora da instalagao da cultura do ddio nas sociedades contemporaneas, do desentendimento politico na maiaria dos paises ocidentais, pelo medo, pela angiistia, como ainda pela propagacao de uma fé fundamentalista. Qambiente politica também tem sido agente e vitima ‘da pandemia da desinformacao.e, por tiltimo, a prépria pandemia da Covid-19 tem se tornada terreno fértil para oincremento produtivo das fébricas de desinformagao, mas também para produgao ecirculagao de narrativas desinformacionais a partir de ~ambientes sociais engajados como a classe médica, em que alguns atores se colocam em canfronto coma ciéncia, expondo tensoes entre os regimes de verdade de experiéncia e evidéncia (Régo: Leal, 2020). Todavia, ha que se ponderar que a desinformacao potencializada atualmente pela sociedade tecnolégica que nos permite e nos exige uma biosvirtual (Sadré, 2002), tem provocado o incremento de um fendmeno social de grandes dimensies, que apesar de holistico, ¢, principalmente, uma estratégia! que envalve fendmenos bem mais complexos que hoje nos perpassam silenciosamente e que, sem nos darmos conta, jd estao nos controtando por diversos meios. ‘Comoro cenariode um magico em umaapresentacao piiblica, tudo que é preparado paraa visibilidade se coloca sobreos holofotes e tem a intencionalidade de ocultar 0 que ocorre atras das cortinas. A desinformacao que concorre com sua parte essencial, aiinformagéo, surge neste contexto, como sombrae luz, ra enganando, ora sendo revelada, ands cumprir com seus objetivos. Asestruturasde poder - neste momento histérico com preponderdncia das estruturas de poder econémico sobre as de poder politico—criam estratégias e distragdes com potencial duplamente lucrativo, cujos meandros finais sao permeados por carinhos dispares que envolvem desregulamentacao do direito universal, aliancas entre tecnologia e psicologia, modelos de negécios que visam monopélios, tornando a livre-concorréncia tao somente uma velha e esquecida retdrica vendida pelo liberalismo e por ‘sua verso mais perversa, oneoliberalismo. O mercado da desinformagdo ou, como denominamos em outro estudo, o mercado da construgao intencional da ignorancia é tao somente uma das estratégias, mas € forte o suficiente para inspirar a sociedade a entrar no jogo de construgao didria de desinformagao, conformando, como dito, um fendmeno social de grandes dimensdes. Neste texto, trabalhamos um pouco no revelar de outros fendmenos que permitem que a desinformacao, enquanto fendmeno coletivo vinculado & informagao, exista e persista no seio de nossa sociedade, para tanto, retornamos a Foucault, Deleuze, T Esratéaia,naconcepgdo de Hamel Franala (985) em que uma intengao estratgica desenvolvdaa partir de competencies essence inseiga em uma arqutetra ‘estrategca de modo sinergica, termina pr guar as agbes das empresas um a futur das organaagtes Veremos que dentro das grandes empresas gas tal conceto {oi adaptado ao madelo de negocios que prev crescimento constant nintercupt, mas que dem sempre preze peta elca empresa (ORCANCOM - AO IT» NUMERO4+ SETEMBRO/ OEZEMBRO2020~ ANA REGINA REGD-P. 86 ‘Simon e Bourdieu com 0 intuito de problematizar 0 contexto e situar, ao final, os movimentos de resisténcia ao fendmeno por nés aqui privilegiado. A VIGILANCIA, 0 CONTROLE E 0 JULGAMENTO Nas sociedades disciplinares detalhadas por Foucault? (1999, 2002) a vigilancia é mimeética e simbolicamente representada pela projecio do pandptico de Bentham, que, conforme o proprio Bentham, no trecho que abre o presente ensaio, extrapola © edificio e se constitui como um dispositive onipresente que permite ao poder disciplinar tornar-se sistémico e integrado, interligando o dispositive de vigilancia as intengGes do mercado em que o mesmo estava instaledo. COrganiza-se assim como.um poder miltiplo, automatico e andnimo:pois, se é verdade que avigilancia repousa sobreos individuos, seu funcionamento é de uma rede de relagdes de alto a baixo, mas também até certo ponta de baixa para cima e lateralmente: essa rede “sustenta" o conjunto, ¢ 0 perpassa de efeitos de poder que se apolam uns sobre os outros: fiscals permanentemente fiscalizados. (Foucault, 2008, p.148) Foucault alerta para o fato de que a hierarquizagao da vigilancia termina por se constituir como uma maquina, fazendo com que oaparelho de vigilancia inteiro produza maise mais poder, distribuindo os individuos pelo sistema de modo permanente. A vigiléncia tornava 0 poder disciplinar, ao mesmo tempo, indiscreto jd que se colocava como ubiquo e alerta procurando ‘controlar individuos e fiscais do sistema, mas também discreto, visto que funcionava silenciosamente. ParaFoucault, adisciplina enquanto parte do sistema de poder colacava em funcionamento um tipo de poder relacional que teria uma sustentabilidade prépria, calcada na fiscalizacao permanente entre os membros vigiados e vigilantes. “Gragas 8s técnicas de vigilancia, a “fisica" do poder, o dominio sobre o corpo se efetua segundo as leis da ética e da mec&nica, segundo tum jogo de espagos, de linhas, de telas, de feixes, de graus e sem recurso, pelo menos em principio, ao excesso, & forga, violencia” (Foucault, 2002, p.148). A vigiléncia na sociedade disciplinar, tanto quanto na posterior e diversa Sociedade do controle, tem o intuito de produzir informagoes sobre os vigiados. Como nas diz Foucault ao tratar do pangptismo, a vigiténcia tem como vinculos de apoio um sistema de registro permanente de informagées, relatérios que circulam entre as instancias de poder social e politico no ccontexto da modernidade. Os espagos de vigiléncia tornam-se crescentes e se inserem diretamente nos aparelhos do poder ‘que perpassam estruturas de dominacao, para além das prisdes, dos manicémios, das universidades, os aparelhos passam a controlar sociedade a partir de seus registros de nascimento e morte, cadastros de contribuintes, informagdes financeiras ete. A representagao do pandptico permite visualizar a estruturagio da vigiténcia de modo real e metaférico, como permeada por um espaco {Lfechado,recortato, vgiatoem tados os seus pontos, onde as indivduos esto inseridos num Lugar ix, onde os menores movimentos ‘so controladas, nde todos osacontecimentos 30 registrados, onde um trabalho ininterrupto de esritaseligaao centro eperiferia, onde ‘opoder éexercido sem divsio, segundo uma figura hierérquica continua, onde cada indivduo éconstantementelocalizado, examinadoe istribuido entre os vvos,os doentese os ortos, isso tudo consttuiummodelocompactodadispesitivodisciptinar. Foucault,2002, p163) 1m vigiare pani (2002), Foucault, ao trtar da sociedad e do poder isciplnar da Maderidade, apresentas dlspositvs e mecanismos de iglanca, (ORGANCOM- AO IT» NUMERO4+ SETEMERO/ DEZEMERO2070~ ANA REGINA RESO-P. 5 0 panoptismoe seu dispositiva de vigiténcia maxima, 0 panéptico, se configuram como representagées importantes na andlise foucaultiana da sociedade e do poder disciplinar, uma vez que permitem automatizare pluralizar o poder. Situando avigilancia © 0 poder, nao em um ser individual, mas em uma rede de distribuigao que se compée de corpos, luzes, olhares, aparelhos etc. "Ha uma maquinaria que assegura a dissimetria, 0 desequilibrio, adiferenca. Pouca importa, consequentemente, quem exerce 0 poder”. A ideia do Pandptico parece assim, para Foucault, um dispositivo espléndido que, "[..] a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogéneos de poder” (Foucault, 2002, p.167) Na sociedade disciplinar instalada no regime de historicidade da modernidade, a informacao ganha importancia com 0 avancar das tecnologias da comunicagao e informagao e, partanto, passa a ocupar papel centralna ordem e disciplina, Logo, a vigiléncia permanente que permite também a coleta de informacdes torna-se parceira constante, Distintas, miiltiplas € entrecruzadas formas de vigiléncia convivem e se alternam no contexto social, mas dependem de uma hierarquizacao entre 0s individues que possa defini vigilantes e vigiados, sendo os vigilantes, em algum grau, também vigiados, conformando um modelo piramidal que permite a estruturagdo de uma grande rede de poder com o intuito de controlar e manter 0 exercicio {do poder que, na visao foucaultiana, nao se detém nem se transfere, mas tao somente se exerce a partir das estruturacoes tensionais que se estabelecem no contexto social. Veremos que, conforme Deleuze (1992), sociedade disciplinar termina por ceder lugar uma sociedade do controle, contudo, vale ponderar que algummas das revelacdes feitas por Foucault e por nés apontadas acima podem também nos permitir uma visada mais ampla sobre os fendmenos que hoje vivenciamas. ‘Segundo Bruno (2008, p.167-170),a vigilancia digital ja esta inserida entre nds ha algumas décadas e se concentra em filtrar trés principais agentes constitutivos e interagentes no cendrio econdmico, que seriam: informagdes, dados e perfis, através de um monitoramento sistematico de nossas atividades no mundo virtual. A vigilncia digital permanente garimpa nossos dados e constréi infinitos bancos de dados, e, por ultimo, os perfis computacionais que possibilitam a transformacao dos dados em conhecimento, trabalhando pracessos de individualizacao. Para Abramovay (2019), a vigiléncia digital ¢ a principal caracteristica da sociedade atual, tendo se transformado em uma decisiva estratégia que interfere em nossas sociabilidades e afetividades, visto que a manipulagao psicoldgica que sofremos nos agrupa em bolhas de pensamentos similares e nos faz rejeitar pensamentos opostos aosnossos, fomentando em muitos ‘casos 0 dio e instalando 0 medo. Para este professor da Universidade de Sao Paulo a vigiténcia acupa hoje o core business das plataformas digitais e nao se restringe a garimpagem que realizam nos dispositivos que atuam sobre nds e nossas vidas, mas, como pontuamos acima, influi diretamente na interferéncia psicalégica das redes em nossas vidas. “Compartithamento” é a forma adocicada de sus apresentacio publica, Os 610 mil comentérios e as 136 mil fotos postadas no Facebook por minuto,as 40 mil buscas no Google por segundo (1,2 trilhao em 2018) ou os 60 mithdes de fotos que sobem ao Instagram ‘todos os dias nos perfis de seus 500 mithdes de usuarios dries s80 a matéria-prima da maisimportante novagao tecnolégica do século XXI:a inteligéncia artificial, (Abramovay, 2019) De acordo com Tristan Harris, ex-especialista em ética do design do Google, no documentério da Netflix 0 dilema das redes (Orlowsky, 2020}, as gigantes da tecnologia digital nao utilizar a vigiléncia somente para garimpar informagdes e vendé-las ‘208 anunciantes, o que também é feito, mas fazem experimentos didrios e constantes, situando seus usudrios em uma matrix ‘em que, aos modos das irmas Wachowsky (1999), inspiradas por Baudrillard (2014), realizam experimentos psicolégicos como intuito de promover mudangas comportamentais que possam favorecer seus negdcios e seus lucros, através de parceriasentre uma tecnologia persuasiva e uma psicologia doreforgo intermitente positivo, estimulados internamente dentro das empresas de tecnologia por um modelo de gestao conhecido como growth hacking, que se pautano crescimento constantee ininterrupto. (ORGANCOM AO IT» NUMERO4+ SETEMERO/DEZEMERO2070~ ANA REGINA RESO-P. 8 Em Deleuze, a sociedade do controle teria nascido nas tltimas décadas do século XX e seria marcada por uma crescente intromissao das instituigdes estruturais da sociedade na vida cotidiana dos cidadaos. Uma sociedade sem limites definidos, ‘composta por redes que se interconectam de forma crescente e possuidora de uma potencial centralidade na vida das pessoas, passa a regular as camadas sociais a partir do Estado ou do mercado. Deleuze (1990, 1992) nos apresenta a0 navo fenémeno social, a sociedade do controle, que teria manifestado mecanismos de vigilancia e controle que extrapolariam o escopo das sociedades disciplinares como analisadas por Foucault. A sociedade do controle seria produto de uma transposigéo do mundo moderno como vivenciado nos tiltimos séculos e suas crises externadas nas ultimas décadas do século XX. Uma de suas principals caracteristicas seria a invasdo permanente dos mecanismos do Estado e do mercado na vida privada dos cidadaos. Na sociedade do controle as redes potencializam-se, interconectando mundo real e virtual numa simbiose indistinta e com capacidade para envolver os usudrios de forma ubiqua tornando cada um de nds refém de seus mecanismos (Barbosa;R8go, 2020) Nas sociedades do controle a senha passaaa ser 0 passaporte e aidentidade de cada pessoa para o mercado informacional e, como afirmam Régo e Barbosa (2020), essa nova conformagao social estruturada em um poder ubiquo esilencioso, que se pe como gratuito e permite que se realizem indmeras coisas boas para o conjunto da humanidade, é marcada, sobretudo, pela desconstrugdo do sujeito esua mutago para a formato de dados, facilmente transformavel em produto na e-commerce, Nesse interim, vigiléncia e controle se aliam ao julgamento, fazendo dos usuarios das redes sociais, jé vigiados e vigilantes, ‘também julgados e juizes, como parte essencial da manutencao do sistema mercadolégico em que nos inserimos como produtores voluntarios e produtos pluridimensionais. A sociedade do julgamento encontra-se nesse proceso incrementada em relagao ao ambiente analisado por Bourdieu (2008), 0 julgar enquanto atividade do espirito (Arendt, 2016) foi rebaixado ‘a.um comando mercadoldgico em busca de credibilidade para marcas pessoais que somos e que julgam e sao julgadas por marcas empresariais, Julgamos 0 atendimento ea comida dos restaurantes, comestrelasnos aplicativos, que nos oferecem a oportunidade de ganhar pontos junto aos nossos seguidores e também frente & empresa que estamos credibilizando. Julgamos 0 motorista do Uber. Julgamos a foto dos amigos e dos inimigos, com curtidas ou com siléncio, porque assim, aparecemos mais e nos colacamos disponiveis pars o julgamento coletivo. Em geral, julgamos positivamente para que assim sejamos julgados. Vale ponderar que essa sociedade do julgamento, cujas caracteristicas foram apropriadas e potencializadas pelo mercado, sobretudo pelas plataformas digitais e empresas do e-commerce, ganhou ja ha alguns anos um grande aliado, o algoritmo, cuja funcionalidade guiar nosso olhar e direcionar tanto experiéncias que nos sejam mais favordvels, quanto produtos. Se ha cerca de dez anos as empresas de publicidade comecaram a perceber que a visibilidade de seus clientes tinha sido reduzida a 10% da capacidade potencial que as redes sociais ofereciam antes, determinando a via do pagamento como 0 principal caminho para a projegao e reflexividade no ambiente virtual, para o caminho da visibilidade; inclusive, com formas ‘de pagamento variadas e casadas entre si, com a concretizacao de relagées comerciais, interesses em bancos de dados e pagamento em cash. Mais recentemente, a economia virtual do algoritmo tem mudado o dia a dia da linha do tempo dos nossos perfis nas redes sociais, pracuranda oferecer uma experiéncia agradvel, eliminando, por exemplo, as diferencas de opiniso e ideotsgicas. Algoritmos sao grupos de dados concatenados em normas organizacionais de informagdes sobre os usuarios da internet, colhidos em diversas plataformas e a cada passo que damos no ambiente virtual. Esses dados com informagées pessoais, mas também como perfil dos nossos gostos, preferéncias, ideologias, praticas poiticas, militancias sociais etc. séoutilizadas pelas plataformas digitais. (ORCANCOM - AMO IT» NUMERO4+ SETEMBRO/ DEZEMERO2020~ ANA REGINA RESO -P. 5 0 fenémeno entao se revela como agradivel ao usuario e facilitador de nossas vidas, pois nos oferece o livro ou a roupa ‘que desejamos adauirir, ou nos mostra um artigo de alguém que pensa de forma parecida com a nossa. Todavia, nos impde uma vida on-line permanente, onde nos mostramos e abrimos mao de nosso direito & privacidade, fornecendo nao apenas dados pessoais e bancérios, mas também nos revelamos em esséncia, como pessoas voltadas para determinadas causas estruturadas em determinados pensamentos. Contudo, essa facilitagao das vidas e esse ganho em visibilidade nos transforma em trabalhadores constantes no espago mididtico, Nos obriga a julgar os autros para sermos julgados positivamente e assim nos mantermos visiveis, pois somente desse modo nossa existéncia ganha em sentido. 0 objetivo das empresas além dos ganhos financeiros através das relacdes de poder no mercado miditico on-line e empresarial, é fazer com que continuemos a fornecer nosso tempo gratuitamente alimentando de informagoes de modo incessante as estruturas mididticas que disponibilizam em “nosso favor". Quanto mais tempo ficamos on-line e quanto mais trabalhamos de graga, mais contetido produzimos e mais informagoes pessoais disponibilizamos e estas sao armazenadas, analisadas e circulam e, principalmente, so negociadas. (0 mercado virtual ganha triplamente, enquanto nés, escravos de nossa vaidade, seguidores de Narciso, seguimosiinertes Tumo ao Lugar do nao pensamento. Nossa experiéncia que se torna positiva e agradavel é, em verdade, um grande viés para a lucratividade mercadolégica e tem como pressuposto o julgamento ea fidelidade. Para ser visivel e bem julgado preciso me manter ativo postando, curtindo e compartilhando, enfim, somente sendo fiel poderei vira ser, teoricamente, bem recompensado, Mas 0 algoritmo que compée o centro da vigiténcia, do controle edo julgamento também provoca o apartheid social em outro patamar, 0 damanipulagdo dos pensamentos, visto que passamos a receber somente informagdes e pensamentos ideol6gicos ‘que so préximos aos nossos e que vao sendo aprofundados a cadanova mensagem recebida, tentando nos convencer a cada nova informacao, sobre um modelo de vida e de estado das coisas que passamos a concordar, sobretudo, porque nao temos acesso as panderagées e apinides contrérias, Enessecontexto que o algoritmo também se mostra primordial para o prdximo fenémeno aqui abordado, a monetizagao da atengao. ECONOMIA DA ATENCAO (0 pensamento de Siman (1979) da final da década de 1970 parece ser 0 ponto inicial para a compreensio de um processo econdmico que se potencializaria a posteriori, coma venda da atencao das audiéncias. Para Simon, a abundancia de informacoes, ‘sua super oferta, provacaria a escassez de algo no tao valorizado até entao, que seria exatamente a possibilidade de sua cconcretizacao existencial, apartir de um consumo final, somente operado pela atengao do cidadao que necessite dainformacao, ‘ou que por ela se interesse. “Assim, uma riqueza de informagao cria uma pobreza de atencdo e a necessidade de alocar a atenco eficientemente entre uma superabundancia de fontes de informagao que pode consumi-ta” (Simon,1979, p.498}.. Nocontexto supra descrita, os grandes cnglomerados digitais disputam de um Lado o mercado de anunciantes publicitari ‘que compdem intimeros mercados tangiveis e intangiveis, mas com intuito de vender o sucesso para seus anunciantes, e disputam um outro mercado que é 0 da atengao de seus usuarios, vendidos duplamente como produtos, como dito. De um lado, pelo despertar e pela manutencao permanente da atencao através das estratégias acima mencionadas, que passam pela mudanga comportamental dos usudrios e pelo dominio completo de nossa percepgdo por parte das empresas que, deste modo, comandam nossa atengaio. Em outra visada, também somos vendidos como dados informacionais, nao somente financeiros, mas também psicolégicos e, por fim, somos consumidores viciadas deum sistema que termina decidindo por nds. (ORCANCOM- ANO IT» NUMERO4+ SETEMERO OEZEMBRO 2070~ ANAREGINARESO-P. 85 Conforme relatam Tristan Harris, ex-executivo da Google, Alex Roetter, ex-vice presidente do Twitter, Chamath Palihapitiva, ‘excdiretor de crescimento do Facebook, Tim Kendall, ex-diretar de monetizacao do Facebook, Guillaume Chaslot, diretor de algoritmos do YouTube, todos no documentério Odilema das redes, em distintas palavras, mas de um modo convergente: as plataformas digitais que nos permitem uma biosvitualholistica trabatham diuturnamente disputando entre si, nossa tengo, que é também, como dito acima, o principal produto vendido a seus clientes, os anunciantes. A.criacao de algoritmos especificos para cada produto a nds ofertado tem nao somente a intencionalidade de nos vender tais produtos que podem ser criagées das préprias plataformas oferecidos aos usudrios gratuitamente, mas, principalmente, de prender nossa atencao para garantir a venda dos produtos dos anunciantes, Para Foer (2018) esse projeto mercadolégico monopolistados pontos de vista econémico, politico eda atencao, esconde também um projeto ainda maior de dominacao da humanidade a partir dos ideais megalomaniacos dos criadores e proprietérios das gigantes da tecnologia digital, tais como Larry Page, do Google, que pretende criar maquinas que no somente repliquem 0 cérebro humano, mas que o ultrapassem, e Mark Zuckerberg, que segundo Foer trabalha arduamente para intervir no ivre- arbitrio dos usuarios de suas redes sociais.. Sobre o Google, Foer (2018, p.43) firma “O Google usa algoritmos treinados para pensar como nds, humanos. Para realizar uma tarefa tao assombrosa, a empresa precisa entender as intengdes por trés de nossas pesquisas [.’. J4 acerca do Facebook, Foer é bem direto ‘Avverdade ¢ que 0 Facebook é um emaranhado de regras e procedimentos para selecionar informagdes e essas regras so desenvolvidas pela empresa, para beneficio final da empresa. Ela estdo tempo todo vigiando os usuérios, sempre auaitando o que esto fazendo e usando-os como ratos de laboratério em seus experimentos comportamentais. Embora dé a impresséo de que oferece escola, o Facebook de forma paternalista empurra os usurios na direc3o que considera melhor para eles, que ndo por ‘casa costuma sera diregio que os toma completamente dependentes, (Foer, 2018, p.59-60) 0 fato & que no escopo extenso das estratégias de manipulago e mutacao comportamental, assim como de manutencao da ~atengao dos usuarios, pela vigtancia permanente, pelo contralee pelo ulgamento, as narrativas desinformacionais terminaram sendo beneficiadas pelos algoritmos que se guiam para os modelos de negécios das gigantes virtuais que trabalham em seu préprio beneficio, epara tanto, também necessitam atender aos anseios de seus anunciantes, em uma visada éticabem complexa. Nesse contexto, a desinformagio favorece a monetizacio ¢ a lucratividade das plataformas digitais, ao tempo em que beneficiam seus produtores com audiéncia evisibilidade e em muitos casos com lucratividade que tanto pode ser econdmica, ‘como acontece em intimeros sites, canais e perfis que tratam de negacionismos historicos e cientificos, ‘tenga e desinformagao se aliam na conformagao da vigilancia, do contrate e do julgamento. CONSIDERAGOES FINAIS: ENTRE A DESINFORMACAO E RESISTENCIA Em suma, percebemos até aqui que o fendmeno ao qual nos referimos é muito mais complexo que as simples fake news com as quais nos deparamos diariamente. Compde um escopo que recebe informagdes de um sistema de vigilancia, controle e julgamentos permanentes, e est sempre preparado para atuar dentro de uma economia da atengSo, através dos inimeros mecanismos de manutengao do foco dos usuarios em suas redes e produtos especificos, assim como nos produtos mercadoldgicos que pagam pela nossa atengao. Agora transformada em produto muito bem avatiado no mercado virtual. (ORCANCOM - ANO IT» NUMERO4+ SETEMBEO/ OEZEMERO2020~ ANA REGINA RESD-P. 5 Por outro lado, vale pensar na maxima exposta em 0 dilema das redes, ou seja, se vocé nao é anunciante, se vooé nao est ppagando, voce é o produto, Um produto que se coloca como cobaia para experimentos que possam manté-lo dentro de um vicio recorrente de conexao permanente, visados pelos sistemas de vigiléncia, controle e mecanismos de atengo, que é a ‘conexao ininterrupta. A desconexao gera prejuizos para rede, visto que seu modelo de monetizacao ébaseado na visibilidade ‘que vende e assegura 0 sucesso a seus anunciantes. Deacordo com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts em pesquisa divulgada em 2018, as narrativas desinformacionais possuem alcance infinitamente maior dentro das redes sociais, padendo alcancar um niimero seis vezes superior aode uma de noticia didria. Esses dados so confirmados de modo informal ao longo do documentério aqui jé mencionado, quando os excprofissionais de varias gigantes tecnoldgicase que abrangem Google, Facebook. Instagram, Twitter, dentre outras, declaram ‘que 0 modelo de negécios distribui algoritmos que supervalorizam a desinformagdo em detrimento da informacao, tendo em vista 0 potencial da primeira para. lucratividade dos clientes anunciantes e das préprias plataformas. Nesse contexto, se a desinformacao? enquanto produto é formatada com a intencionalidade de manipular em favor de interesses politicos que, em suma e no escopo geral acima descrito, é também mercadalégico, por outro lado ela também é uma estratégia, portanto, vale pensar em modos de combaté-la em meio a esse cendrio complexo e desfavordvel. Mas a desinformacao éainda e, principalmente, um fendmeno que tem, em sua ertente mercadolégica, um braco; entretanto, ‘também se estrutura por outras vias, nem sempre intencionais, contudo, enquanto componente da esséncia da informacao, ‘como seu outro lado, termina por se estruturar no contexto social como um fendmeno de grandes dimensdes que tem provocado situagdes complexas, prejuizos e até comprometido a satide das populacdes. Nesse cendirio desolador, temos presenciado o nascer de intimeras iniciativas em todo o mundo que se estruturam em torno da construgao de informacies responsdveis e confidveis e que extrapolam o campo da comunicagao, mas se localizam em intimeros campos do conhecimento, assim como estdo dentro das Universidades, sobretudo nas puiblicas, mas também nas privadas e confessionais, e ainda estao no mercado, nas instituigdes do terceiro setor/sociedade civil e congregam pesquisadores, cientistas, jornalistas, filésofos, médicos, farmacéuticos, historiadores, antropdlogos, dentre iniimeros outros profissionais que poderiamos mencionar aqui. Foi, portanto, dentro de uma conjuntura de grande potencializagao da produgaoe circutagao de narrativas desinformacionais durante a pandemia da Covid-19, quando segundo a Organizagao das Nacdes Unidas (ONU), a Organizacao das Nagdes Unidas para a Educagao, aCiéncia ea Cultura (Unesco) ea Organizacao Mundial de Satide (OMS), o fendmenoda desinformacao se tornou ‘também uma pandemia, que procuramos criar uma organizacéi virtual informal sem fins lucrativos que denominamos de Rede Nacional de Combate & Desinformagao (RNCD), lancada no final de setembro de 2020 e que, ands um més de seu langamento, {8 congrega mais 70 parceiros entre instituigoes, coletivos, redes, projetos de divulgacao cientifica, projetos de comunicagao ‘educativa, projetos de fact-checking, projetos socials, observatérios, projetos de inteligéncia artificial aplicativos de dentincia de fake news, laboratérios, ncleos de pesquisa, museus, dentre outros. A nossa intengao foi somar forcas com vistas a compor uma onda sinérgica e positiva que possa confrontar, aos poucos, o mar que conforma o fenémeno desinformacional. ‘Anosso vera resistencia passa, sobretudo, pela capacidade de compreensao do outro edo seu despertar para acriticidadea partir do desenvolvimento de uma consciéncia histérica numa visada de Ricoeur (2010). Esse encontro, no entanto, pressupde uma abertura para o didlogo que pode se dar a partir de uma escuta atenta aos anselos da populacao, sendo que tal escuta pode revelar ainda seus valores ecrengas,apartir dos quais podemos promover um encontro, despertando afetividades possiveise sociabilidades maisamplas. {Wardle Derahshan 2018) trabalham o que denominam de cas desinfrmacionala partidos concetos de misfrmation dsinformationema- information. (ORGANCOM- ANO IT» NUMERO4+ SETEMERO OEZEMBRO 2020 ANARESINARESO-P. 20, REFERENCIAS ABRAMOVAY, Ricardo. A sociedade da vigiléncia em rede. Revista Quatro Cinco Um, Sa0 Paulo. 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