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COURO IMPERIAL RAGA, GENERO E SEXUALIDADE NO EMBATE COLONIAL Vs "i ry a4 cAnne McClintock 5 O império do sabonete Racismo mercantil e propaganda imperial Sabao € civilizasto, Slogan da Unilever Mestre: Nossa, est tio limpo. ‘Zangado: Ha trabalho sujo em agfo. Branca de Neve ¢ os sete andes SABAO E CIVILIZAGAO No comrgo do século XIX, 0 sabiio era um item escasso ¢ monétono, ¢ 0 ato de lavar, na melhor das hipéteses, superficial. Poucas décadas de~ pois, a manufatura do sabao tinha-se expandido num comércio imperial: 0s rituais vitorianos de limpeza eram anunciados globalmente como 0 sinal divino da superioridade evolutiva da Gra-Bretanha, ¢ 0 sabio era investido de magicos poderes de fetiche. A saga do sabio,capturou a afinidade oculta entre domesticidade ¢ império,e incorporava uma crise triangulada no valor: a subestimagao do trabalho feminino no dominio doméstico, a superestimagao da mercadoria no mercado industrial ¢ a nnegagao das economias colonizadas na arena do império. O sabao entrou no reino do fetichismo vitoriano com efeito espetacular, nao obstante 0 fato de que os homens vitorianos promoviam o sabio como icone da racionalidade nao fetichista ‘Tanto o culto da domesticidade quanto o novo imperialismo encon- traram no sabio uma forma mediadora exemplar. Os valores emergentes da classe média — monogamia (sexo “limpo”, que tem valor), capital industrial (dinheiro “limpo”, que tem valor), cristandade (“ser lavado no sangue do cordeiro") ¢ a missio civilizadora imperial (“lavar e vestir 0 selvagem") — podem ser todos maravilhosamente incorporados numa \ \Wea Coure imperial tinica mercadoria doméstica. A propaganda do sabio, em particular a campanha do sabiio Pears, assumit. sua posicfo na vanguarda da nova cultura mercantil da Gri-Bretanha e de sua missio civilizadora. No século XVIII, a mercadoria era pouco mais que um objeto mun- dano a ser comprado ¢ usado — nas palavras de Marx, “uma coisa tri- vial”, Ao final do século XIX, porém, a mercadoria tinha assumido seu lugar privilegiado no s6 como forma fundamental da nova economia industrial, mas também como forma fundamental de um novo sistema cultural de representagao do valor social", Surgiram bancos ¢ bolsas de valores para administrar as benesses do capital imperial. Surgiram pro- fissdes para administrar os bens que despencavam febrilmente das ma~ rnufaruras. O espago doméstico da classe média estava abarrotado como nunca de méveis, relégios, espelhos, quadros, animais empalhados, or- namentos, armas e uma mirfade de bugigangas. Os novelistas vitorian« davam testemunko da estranha proliferagao de mercadorias que pare- ciam ter vida propria, e navios enormes catregados de ninharias e ber- Joques faziam seu comércio entre 0s marcados coloniais da Africa, do Oriente e das Américas. ‘A nova economia criow um alvorogo nio s6 das coisas, mas também (ee signos. Como afirmou Thomas Richards, se todas essas novas mer- cadorias tinham de ser administradas, seria preciso encontrar um.siste- ma unificado de representagao cultural. Richards mostra como, em 185t, la Grande Exposigao no Palacio de Cristal serviu como monumento @ Juma nova forma de consumo: “O que a primeira exposigio anunciava com tamanha intimidade era a completa transformagao da vida coletiva Je privada num espago para a exibigio espetacular das mercadorias™. Karl Marx, "Commodity Fetisism® in Capital (Nova York: Vintage Books, 1977 vo P63, Vera excelente andlise de Thomas Richards, The Cammadity Culture of Vicorian Brits avertving and Specie sr-1org (Londres: Verso, 190), expesalmente a Tntrodusto o capitulo Vera anilise de David Simpson sobre ofetichismo os romances em Feisism and Ima ination Dicken, Metele, Conrad (Baltimore: Johas Hopkins University Pres, 98). Richards, The Commodity Culture... 72 (0 impéri do sabonete ~ Racismo mercantile propaganda imperial ‘Como um “laboratério semiético da teoria do valor trabalho}, a Expo- sigio Mundial mostrou de uma vez por todas que o sistema capitalista nfo s6 tinha criado uma forma dominante de troca, mas também estava no processo de criar uma forma dominante de representagfo que & acompanhasse: 0 panorama voyeurista do excedente como-espeticulo, Ao exibir mercadorias nio s6 como coisas, mas também como sistema organizado de imagens,.a Exposisio Mundial ajudava a dar forma “a uma nova espécie de ser, o consumidor, ¢ a uma nova espécie de ideo- logia, o consumismo", Nascia o consumo em massa do espeticulo da mercadoria, ‘A propaganda vitoriana revela, porém, um paradaxo, pois, como for~ rma cultural a quem fora atribuida a defesa e marketing exterior dessas distingées Fundadoras da classe média — entre privado e pablico, taba Iho pago endo pago —,a propaganda desde a saida também comepou a confundir essas distingdes. A propaganda trouxe os signos intimos da domesticidade (criangas no banho, homens se barbeando, mulheres em corpetes, empregadas levando drinque da noite) para o dominio pa- blico, colando cenas de domesticidade em muros, énibus,vitrines e qua~ dros de antincios. Ao mesmo tempo, levava cenas do império a cada canto do lar, imprimindo imagens da conquista colonial em caixas de sabao, caixas de fésforos, latas de biscoitos, garrafas de uwisque, latas de ché e barras de chocolate {Traficando promiscuamente através dos fimiares do pablico e do privado, a propaganda comesou a subverter lama das distingdes fundamentais do capital mercantil, ainda que este apenas comegasse a exist ‘Desde o principio, além disso, a propaganda vitoriana tomou forma cexplicita em tomo da reinvengao da diferenga racial. O kitseb mercantil tomou possivel, como nunca antes, o marketing de massa do império como sistema organizado de imagens e atitudes. O sabo florescia ni sé porque criara e preenchera umn vazio espetacular no mercado dome tico, mas também porque, como mercadoria doméstica barata e portitl, 5. Wdemnop.citsp.s (Couro imperial nodia persuasivamente mediar a poética vitoriana da higiene racial e do ogresso imperial acismo mercantil se distinguiu do racismo cientifico por sua ca~ ie de expandir-se para além da elite letrada ¢ proprietéria através P \ do marketing do espeticulo da mercadoria. Se, desde os anos 1850, 0 12 cismo cientifico saturou as revistas antropolégicas, cientificas ¢ médicas, 0s livros de viagens e romances, essas formas culturais eram ainda limi- tadas por classe e inacessiveis & maioria dos vitorianos, que ndo tinham ‘os meios nem a educagio para ler tal material. itsch imperial como espeticulo do consumidor, em contraste, podia empacotas, mercadejar € distribuir o racismo evolucionista numa escala até entio inimagin: Nenhuma forma preexistente de racismo organizado fora capaz de al- > cancar massa tio grande ¢ diferenciada do povo. Assim, enquanto as mercadorias domésticas eram mercadejadas através de um apelo a0 ja- cobinismo imperial, o proprio jacobinismo mercantil ajudou a reinven- tar e manter a unidade nacional britanica em face da crescente compe~ ‘igo imperial e da resisténcia colonial. O culto da domesticidade passou ser indispensivel para a consolidacao da identidade nacional britanica, eno centro do culta daméstico estava a simples barra de sabao", ‘No entanto, o sabiio nio tem histéria social. Como ele pertence pro- positadamente ao reino feminino da domesticidade, o sabio é visto ‘como além da histéria e além da politica propriamente dita’. Iniciar uma hist6ria social do sabio, entio, é recusar-se, em parte, a aceitar 0 apa- gamento do valor doméstico das mulheres sob o capitalismo imperial [Em ato, um anincio do subao Sunlight mostrava a figura feminizada do nacionaismo btinic, Brianna, sobre wana colina eexibindo a PT. Barnumo famosa administrador ccempresri do ico do espeticulo mercanti uma enorme fibrica de sbi Sunligbrque fe estendia frente deles. Orgulhosamente, Britannia proclama que a manufarura do ‘bio Suniigh éO maior espeticulo da'Terr’. Vera excelente anise de Jenifer Wicke sole PT. Barnum em Advertsing Picton: Literare, Advertvement and Socal Reading (Nova York: Columbia University Press, 1988), ‘Ver Timothy Burke, “Nyamarira That I Loved’: Commoditization, Consumption and the Socal History of Soup in- Zimbabwe", The Soir of Souther Aficn inthe rg ond so! Contariee: Collected Seminar Paper, 0°42, vol 17 (Londtes: Institute of Common Sadie, 192), pp. 195-316 O império do sabonete = Rgcisma mercantile propaganda imperial Nio se pode esquecer,além disso, que a histéria das tentativas europeias de impor uma economia mercantil as culturas africanas € também a histéria das diversas tentativas africanas de recusar ou de transformar o fetichismo mercantil europeu de modo a satisfazer suas necessidades. ‘A histéria do sabio revela que o fetichismo, longe de ser uma propensio quintessencial africana, como afirmava a antropologia do século XIX, ‘era central para a modernidade industrial, habitando e mediando as incertas zonas liminares entre domesticidade e industria, metrépole € \império. Feheiwe © weleite SABAO E 0 ESPETACULO MERCANTIL Antes do fim do século XIX, a lavagem das roupas de vestir e de cama era feita na maior parte dos lares apenas uma ou duas vezes por ano em grandes reunides comunais, usualmente em piiblico em regatos ou rios* Quanto a lavar 0 corpo, pouco tinha mudado desde os tempos em que a Rainha Elizabeth I se distinguia pela frequéncia com que se lavavas “re- gularmente a cada més, precisasse ou nao”. Nos anos 1890, porém, as vendas de sabao estouraram, os vitorianos consumiam 260 mil toneladas por ano, a propaganda surgira como forma cultural central do capitalismo mercantil® ‘Antes de 18sr, a propaganda praticamente nfo existia. Como forma comercial, era em geral vista como confissio de fraqueza, uma espécie de lamentiveliltimo recurso. A maioria dos antincios se limitava a peque- ‘nos avisos nos jomnais, panfletos baratos ¢ cartazes. Em meados do sécu: Leonore Davidoff ¢ Catherine Hill, Family Fortunes Men and Women of the English Middle Glass (Londces: Routledge, 1992). Seoffrey C. Bamber, Soap-Maing. Pst and Present, 1876-1996: rs Lad, 198), p34 >, Idem, op et, p. 38 Quio profundamente a relagdo entre sabio e propaganda acabou. rmistorada na meméria popula se vé em expressées como “soap opera” [equivalente nosis novelas de ridio ou TV]. Para histrias de propaganda, ver também Blanche B Elion, 4 Hisory of English Advertsing (Londres: Business Publications Led, 1962); TTR. Newt, Advertsing in Britain: A History (Londres: Heinemann, 1982). Coure imperial o, entretanto, os fabricantes de sabio foram pioneiros no uso da propa~ ganda ilustrada como parte central da politica do negécio. O impeto inicial para a propaganda do sabao veio do lado do impé: rio. Com o florescimento do algodao imperial nas plantagdes escravistas, vio o excedente de pegas baratas de algodio, ao lado do crescente poder de compra de uma classe média que pela primeira vez podia consumir tais bens em grandes quantidades. De modo semelhante, as fontes ba- ratas de éleo de palma, coco e sementes de algodiio se multiplicavam nas plantagées imperiais da Africa Ocidental, da Malisia, Ceildo, Fiji ¢ Nova Guiné. A medida que répidas mudangas na tecnologia de fabrica io do sabio aconteciam na Gri-Bretanha depois do meio do século, surgia a perspectiva de um grande mercado doméstico de sabonetes, que até entao tinham sido um luxo s6 acessivel a classe mais alta ‘A competigio econdmica com os Estados Unidos e com a Alemanha criou a necessidade de uma promogio mais agressiva dos produtos bri- tiinicos e levou 4s primeiras inovagdes na propaganda, Em 1884, ano da Conferéncia de Berlim, foi vendido o primeiro sabonete embalado sob ‘uma marca. Esse pequeno evento significou uma grande transformagio no capitalismo, quando a competigao imperial fez surgir os monopslios. Dai em diante, itens anteriormente indistinguiveis entre si (sabao ver dido simplesmente como sabio) passariam a ser comercializados por sua ‘marca corporativa (Pears, Monkey Brand etc.). O sabfio veio a ser uma das primeiras mercadorias a registrar a mudanga hist6rica de miriades de pequenas companhias aos grandes monopélios imperiais. Nos anos 18po, centenas de pequenas fibricas de sabio comercializavam 0 novo negécio da higiene, mas no fim do século, o comércio era monopolizado por dez grandes companbias. ‘A fim de administrar 0 grande show do sabio, surgiu uma nova expé- cie de publicitérios agressivamente empreendedores, dedicados a bene- ficiar cada produto caseiro com um halo radiante de encanto imperial e de poténcia racial. O agente de propaganda, como o burocrata, desem- penhava um papel vital na expansio imperial do comércio exterior. Os propagandistas chamavam a si mesmos de “construtores do império” ¢ se exaltavam com “a responsabilidade da missio histérica imperial”. O impérie de saboncte ~ Rgcisma mercantile propaganda imperial Disse um: “Ainda mais que o sentimento, 0 comércio une as porgdes separadas no oceano do império. Quem quer que aumente os interesses comerciais reforga todo 0 tecido do império™. O sabio foi creditado nao s6 pela salvagio moral ¢ econémica da “grande sujeira” britinica, mas também pela encamacio mégica do ingrediente espiritual da prépria io imperial, Num antincio do sabao Pears, por exemplo, um negro varredor de carvio e implicitamente racializado segura nas mios um objeto oculto, que britha. Luminosa por sua propria radiagZo interna, a simples barra de sabio brilha como um fetiche, pulsando magicamente com ilumina- io espiritual e grandeza imperial, prometendo aquecer as mios ¢ os coragées dos trabalhadores em todo o globo®. A marca Pears, em parti- cular, veio a ser intimamente associada com uma natureza purificada magicamente limpa da indistria poluente (gatinhos saltitantes, cachor~ ros figis,criangas enfeitadas de flores) e uma classe trabalhadora purifi- cada magicamente limpa do trabalho poluente (empregadas sorridentes em engomados aventais brancos, meninas de rostos rosados ajudantes de cozinha esfregados). De qualquer maneira, a obsessio vitoriana com o algodio e a limpe- za nao era simplesmente um reflexo mecénico do excedente econmico. Se o imperialismo extrafa grande quantidade de algodio barato ¢ éleos para sabio do trabalho colonial forgado, o fascinio da classe média vito- lana com corpos limpos ¢ brancos e roupas limpas e brancas derivava nao s6 da exploracao desenfreada da economia imperial, mas também os dominios do ritual e do fetiche. O sabéo nio floresceu quando a efervescéncia imperial estava no pico. Ele surgiu comercialmente numa era de crise iminente e calamida- de social, servindo para preservar, através do ritual fetichista, as frontei- Apu Diana e Geoffrey Hindley, Aeertsng in Victorian England, 187-1901 (Londes Wayland, 2972) pony, Mike Dempeey (org.), Bubbler Barly Advertising Art fom Pears Lid. (Londres: Fontana, 9) Laurel Bradley, "From Eden to Empire: John Everest Mills’ Cherry Ripe’, Pictorian Studies 342 (998), pp.179-203. Ver também Michael Dempsey, Buble Coure imperial ras incertas de identidade de classe, género e raga numa ordem social que se sentia ameacada pelos fétidos eflivios dos cortigos, a fumaga das industrias, a agitacZo social, sublevaso econdmica, competicio imperial ¢ resisténcia anticolonial. O sabao prometia a salvagdo e a regeneracio espiritual através do consumo de mercadorias, um regime de higiene doméstica que poderia restaurar a poténcia ameagada do corpo politico da raga imperiais. A CAMPANHA DA PEARS Em 1789, Andrew Pears, filho de fazendeiro, deixou sua aldeia de Meva- gissey, em Cornish, para abrir uma barbearia em Londres, seguindo a tendéncia de migraso demogréfica do campo para a cidade eo movi- ‘mento econdmico da terra para 0 comércio, Em sua loja, Pears fazia e vendia os pés, cremes e dentifricios usados pelos ricos para assegurar a pureza alabastrina de sua aparéncia. Para a elite, uma pele queimada de sol por trabalho manual era o estigma visivel nfio sé da classe obrigada a trabalhar a intempérie para ganhar a vida, mas também de ragas remotas, marcadas pelo desfavor divino. Desde o inicio, o sablo tomou forma como tecnologia de purificagao social, inextricavelmente ligado & semi6- tica do racismo imperial ¢ enegrecimento da classe. Em 1838, Andrew Pears se aposentou e deixou a firma nas mios de seu neto, Francis. A seu tempo, a filha de Francis, Mary, casou-se com ‘Thomas J. Barratt, que se tornou sécio de Francis e assumiu 0 jogo de modelar um mercado de classe média para o sabonete transparente. Barratt revolucionou a Pears planejando uma série de brilhantes cam- panhas de propaganda. Inaugurando uma nova era da propaganda, ele ganhou fama duradoura, na iconografia familiar da descendéncia mas- culina, como “pai da propaganda’. sabo encontrou, assim, seu destino industrial pela mediacéo do parentesco doméstico e a preocupacio pe- culiarmente vitoriana com o patriménio. Através de uma série de expedientes e inovagées que situaram a Pear no centro da culturg mercantil britanica que surgia, Barratt mostrou ur perfeito entendimento do fetichismo que estrutura toda propaganda. O impévia do sabo ismo mercantile propaganda imperial Importando um quarto de milho de moedas de céntimo francesas, Barratt as fez. estampar com 0 nome Pears ¢ as pos em circulagio — {gesto que ligava maravilhosamente o valor de troca com 0 nome da marca corporativa. O expediente funcionou admiravelmente, trazendo muita publicidade para o Pears e tal alarde publico que um Ato do Par- Jamento foi passado declarando ilegais todas as moedas estrangeiras. As fronteiras da moeda nacional se fechavam em tomo da doméstica barra de sabao. Georg Lukacs observa que a mercadoria esta no limiar entre cultura € comércio, confundindo as fronteiras supostamente sacrossantas entre estética e economia, dinheiro e arte. Em meados dos anos 1880, Barratt Projetou uma peca de impressionante transgressio cultural que exem- plifica 0 insight de Lukes e fixou a fama do Pears. Barratt comprou 0 quadro Bubbles [Bolhas] (otiginalmente intitulado A Child’ World [O mundo de uma crianga)), de Sir John Everett Millais,einseriu nele uma barra de sabio gravada com a totémica palavra Pears. De um s6 golpe, ele transformou a obra de arte do pintor mais conhecido da Gri-Breta~ nha numa mercadoria produzida em massa associada na visio do pi- blico ao Pears. Ao mesmo tempo, reproduzindo em massa o quadro como cartaz, Barratt tirou a arte do dominio da propriedade privada da elite e a levou para o dominio de massas do espeticulo mercantil Na propaganda, o eixo da posse se desloca para o eixo do espeticulo. A principal contribuigio da propaganda para a cultura da modernidade foi a descoberta de que, manipulando o espago semiético em torno da mercadoria, o inconsciente de um espago pablico também podia ser ma- nipulado, A grande inovagao de Barratt foi investi enormes somas de dinheiro na criagio de um espago estético em torno de uma mercadoria, O desenvolvimento da tecnologia do cartaz e da impressio tornou pos- Barratt gastou 2200 libras no quadto e 30 mil bres na produgio em massa de miles le eprodugdesindividuais do quadro. Nos anos 180, Pers gastava entre 300 mil © 400 bras 6 em propaganda Furioso com a polusso do sacrossanto reino da arte pela economia, o mundo da arte stacou Mills (publicamente endo em privado) por traficar no sérddo mundo doo (Coure imperial sivel a reprodugo em massa de tal espago em torno da imagem de uma mercadoria’® Na propaganda, aquilo que € rejeitado pela racionalidade industrial (ambivaléncia, sensualidade, azar, causalidade imprevisivel, tempo mii tiplo) é projetado no espago da imagem como repositério do proibido 'A propaganda se funda em fluxos subterrineos de desejo ¢ tabu, mani- pulando o investimento do dinheiro excedente. A distingao da Pears rapidamente emulada por virias outras fabricantes de sabao, inclusive ‘Monkey Brand e Sunlight, e por incontéveis anunciantes, era investir 0 expago estético em tomo da mercadoria doméstica do culto comercial do império. 0 IMPERIO DO LAR A racializagao da domesticidade O sabao Quatro fetiches aparecem ritualmente na propaganda do sabio: 0 pr: prio sablo, roupas brancas (especialmente aventais), espelhos ¢ macacos. ‘Um antincio tipico do Pears mostra uma erianga negra ¢ uma branca juntas no banheiro (Figura 52). O banheiro vitoriano é o santudrio mais {ntimo da higiene doméstica e, por extensio, o templo privado da rege~ neracio pablica O sacramento do sabio oferece uma alegoria de refor- ia, pela qual a purificasio do corpo doméstico vira uma metifora da regeneragio do corpo politico. Nesse antincio particular, menino negro esti sentado no banho, com os olhos esbugalhados para a agua como se fosse um elemento estranho. O menino branco, com um avental branco— fetiche familiar de pureza doméstica — se inclina benevolen- te sobre seu irmao “inferior”, abengoando-o com o precioso talisma do progresso racial. O magico fetiche do sabio promete que a mercadoria pode regenerar a Familia do Homem lavando da pele o estigma da de- sgeneragiio racial e de classe. 16. Ver Jennifer Wicke, Advertsing Fiction. P70 316 0 império do sabonete ~‘Racismo mercantile propaganda imperial Figura 5.2~ Rasa e culo da domestcidade. A propaganda de sabio oferece uma alegoria do progresso imperial como espeticulo. Nesse aniincio, o lugar imperial que chamo de tempo panéptico (0 progresso consumido como espeticulo a partir de um ponto de invisibilidade privilegiada) entra no dominio da mercadoria. No segundo quadro, logo abaixo, 0 menino negro saiu do banho menino branco mostra-lhe seu olhar surpreendido no espelho. O corpo do menino negro se tornou magicamente branco, mas seu rosto — para os vitorianos o lugar da individualidade e da autoconsciéncia ra~ cional — continua teimosamente negro. © menino branco aparece, assim, como agente da hist6ria e o herdeiro masculino do progresso, mostrando o reflexo de seu irmao “inferior” no espelho curopeu da au- toconsciéncia. No espelho vitoriano, 0 menino negro testemunha seu stino predeterminado de metamorfose imperial, mas continua um ido racial passivo, parte branco, parte negro, levado a beira da ci lizagao pelos fetiches mercantis gémeos do sabio e do espelho. O Nincio exibe um elemento crucial da cultura mercantil vitoriana tardia: a transformacao metaférica do fempo imperial em (Coure imperial consumo — o progresso imperial consumido num relance como espe- siculo doméstico, O macaco ‘A metamorfose do tempo imperial em espago doméstico é captada da maneira mais vivida pela campanha de propaganda do subio Monkey Brand. Durante 08 anos 1880, paisagem urbana da Gri-Bretanha vito riana estava abarrotada da imagem do macaco fetiche desse sabio. O ‘macaco com sta frigideira e uma barra de sabio estava pendurado em toda parte, em tapumes e énibus, em muros e vitrines, promovendo 0 sabio que prometia eliminar magicamente o trabalho doméstico: “Sem 1p6, sem sujeira, sem trabalho". O sabaio Monkey Brand prometia no s6 regenerar a raga, mas também apagar magicamente o espetéculo impré: prio do trabalho manual das mulheres. Figura 5.2 ~ 0 exparo anaerénic:Himiar de demesicidade e mera, 0 império do sabonete~ Racisme mercantile propaganda imperial Num aniincio exemplar, o macaco fetiche do sabio senta-se de per- nas cruzadas na soleira de uma porta, limiar entre a domesticidade p vada e 0 comércio ptiblico — a encarnagio do espago anacrénico (| gura 5.2). Vestido como um ajudante de realejo num esfarrapado terno, camisa branca e gravata, mas com improvaveis mios e pés humanos, 0 macaco estende uma frigideira para receber a esmola dos passantes. No capacho a sua frente, aparece uma grande barra de sabio, acompanhada de um placar onde se lé: “Meu proprio trabalho”. Sob todos os aspectos, ‘© macaco é um hibrido: no inteiramente macaco, nio inteiramente humano; parte pedinte, parte cavalheiro; parte artista, parte publicit rio. A criatura habita a fronteira ambivalente entre sclva e cidade, pri- vado ¢ ptiblico, 0 doméstico ¢ 0 comercial, ¢ oferece como seu trabalho manual um fetiche que é tanto arte quanto mercadoria. Os macacos habitam o discurso ocidental nos extremos do limite social, marcando o lugar de uma contradicéo do valor social. Como ar~ gumentou Donna Haraway: “o corpo primata, como parte do corpo da atureza, pode ser lido como um mapa do poder”. A primatologia, insiste Haraway, é um discurso ocidental [...] uma ordem politica que funciona pela negociacio dos limites alcangados pelo ordenamento das diferengas”*, Na iconografia vitoriana, a recorréncia ritual da figura do macaco € eloquente de uma crise no valor, donde a ansiedade com 2 possivel ruptura das fronteiras. O corpo primata se tornou um espago simbélico de reordenamento e policiamento dos limites entre os hu- manos ¢ a natureza, mulheres e homens, familia e politica, império ¢ metrépole. (O imperialismo simio também se ocupa do problema da representa- io da mudanga social. Projetando a histéria (¢ nao o destino, ou a von de de Deus) sobre o teatro da natureza,a primatologia fez da natureza libi da violéncia politica e pos nas maos da “ciéncia racional” a auto- Donna Haraway, Primate Visions: Gender, Race and Nature in the Wb of Medern Scien res: Routledge, 1985), p10 Coure imperial ridade para sancionar € legitimar a mudanga social. Aqui, “a cena das origens”, argumenta Haraway, “nao € o berso da civilizagio, mas o bergo da cultura [..] a origem mesma do social, especialmente no icone carre~ gado de sentido da familia”. A primatologia surge como um teatro para negociar os perigosos limites entre a familia (enquanto natural ¢ femi- nina) ¢ o poder (enquanto politico e masculino). (© aparecimento de macacos na propaganda de sabio assinala um dilema: coma representar a domesticidade sem representar mulheres no tra albo, A casa vitoriana de classe média se estruturava em torno da con: tradigéo fundamental entre trabalho doméstico pago e o nio pago das mulheres. Como as mulheres eram afastadas do trabalho pago em mi- nas, fibricas, lojas e negécios para o trabalho nao pago no lar, o trabalho doméstico se tornou economicamente subestimado, e a definigio de média sobre a feminilidade figurava a mulher “apropriada” como a que nao trabalhava por ganhos. Ao mesmo tempo, um cordio de iso lamento de degeneragio racial era langado em torno daquelas mulheres que trabalhavam piiblica¢ visivelmente por dinheiro. que nao podia ser incorporado na formacio industrial (0 valor econémico doméstico das mulheres) era relegado para o dominio inventado do primitivo, ¢ assim, disciplinado ¢ contido. Os macacos, em particular, eram utilizados para legitimar os limites sociais como éditos da natureza. Fetiches divididos entre a natureza ¢ a cultura, os macacos eram vistos como aliados das classes perigosas: 08 pobres andarilhos, os famintos irlandeses, os judeus, as prostitutas, os negtos empobrecidos, a classe trabalhadora, os criminosos, 0s insanos, as mineiras e empregadas domésticas, todos “simiescos”, que eram vistos coletivamente como habitando o limiar da degenerasao racial. Quando Charles Kingsley visitou a Irlanda, por exemplo, lamentou: “Estou as- sombrado pelos chimpanzés que vi ao longo de centenas de milhas de ‘um campo horrivel [..] Mas ver chimpanzés brancos é terrivel; se fos- em, op. cit, p10" © imperis do rabonete ~Racisma mercantile propaganda imperial sem negros, nfo se sentiria tanto, mas suas peles, exceto onde queimadas pela exposigiio, eram tio brancas como as nossas”™, No antincio da Monkey Brand, a assinatura do macaco no trabalho (Meu préprio trabalho”) assinala uma dupla negagio. O sabio é mas- culinizado, figurado como produto masculino, enquanto o trabalho (em sua maioria feminino) dos trabalhadores nas enormes fabricas insalu- bres ¢ negado. Ao mesmo tempo, o trabalho de transformagio social na limpeza e esfrega de pias, panelas e pratos, de pisos e corredores do es~ Pago domeéstico vitoriano desaparece — redefinido como espago ana~ crOnico, primitivo € bestial. As criadas desaparecem e no lugar delas aparece um hibrido masculino fantasma. Assim, a domesticidade — vista como a esfera mais afastada do mercado e do tumulto masculino do império — toma forma em torno das ideias inventadas do primitivo edo fetiche da mercadoria. Na cultura vitoriana, o macaco era um icone da metamorfose, servin- do perfeitamente ao papel liminar do sabio em mediar as transforma- es da natureza (sujeira,lixo e desordem) em cultura (limpeza, raciona~ lidade ¢ inclistra). Como todos os fetiches, 0 macaco é uma imagem contradit6ria, encamando a esperanga do progresso imperial pelo co- mércio ¢ ao mesmo tempo fazendo visiveis os profundos temores vi- ‘orianos em relaglo a militincia urbana e a desordem colonial. O sabao- macaco tomou-se emblema do progresso industrial e da evolugdo mperial, encarando a dupla promessa de que a natureza podia ser nida pelo capital consumidor e que 0 capital consumidor podia ser garantido pela lei natural. Ao mesmo tempo, porém, 0 sabio-macaco era eloquente do grau em que o fetichismo estrutura a racionalidade industrial (Charles Kingsley, carta sun mulher, de julhoy 860, in Carer Kingsley: His Letters and Memories of His Life Francis E. Kingsley org) (Londces: Henry S. King 8 Co, 87 7. Ver também Richard Keamey (org), Te Irish Mind (Dublin: Wolfhoud 8); LP. Cutis Jes Anglo-Saxons and Celt d Study of Anitrsh Prjuale in Vieorion 4 (Bridgeport: Conference on British Studies of University of Bridgeport, 68), ad Searnus Deane, Civilians and Barbarians” Ireland’ Feld Day >, 1985) pps. Coure imperia Ocspelbo Na maioria dos antincios da Monkey Brand, o macaco segura uma frigi- deira, que é também um espelho, Num anincio semelhante do sabio Brooke, uma beleza feminina clissica esté de pé com os brancos bragos & ‘mostra e vestida de branco, sua pele e roupas como epitomes do valor de exibigdo da pureza sexual e do lazer doméstico, enquanto da comnucépia que ela segura flui um grotesco eflivio de anjinhos fantasmas. Cada tiche hibrido encarna a dupla imagem vitoriana da mulher como “anjo na sala, macaca no quarto”, bem como da iconografia racial do progresso evolutivo de macaco a anjo. O tempo hist6rico, novamente, é captado como espeticulo doméstico, misteriosamente refletido no fetiche da fri- gideira/espetho. Nesse antincio, 0 sabio Brooke oferece uma alquimia do progresso econdmico, prometendo fazer “cobre parecer ouro”. Ao mesmo tempo, a ideia iluminista de um tempo linear e racional que leva a perfeigio an- gélica encontra uma antitese no outro tempo do trabalho doméstico, regido pelos mistérios da sujeira, da desordem e do tempo nio progres~ sivo do fetiche. Irrompendo nas margens da moldura racional,o antincio exibe as consequéncias irracionais da ideia de progresso. O espelho/fri- gideira, como todos os fetiches, expressa visivelmente uma crise no valor, ‘mas niio pode resolvé-Ia. Pode apenas encarnar a contradigo, congelada como espeticulo mercantil, atraindo o espectador cada vez mais para 0 consumismo, Os espelhos brilham ¢ cintilam na propaganda de sabio, como em geral na cultura do Aitsch imperial. Nos lares da classe média vitoriana, as ctiadas lustravam e poliam cada superficie de metal e de madeira até © brilho de um espelho. Trincos, suportes de limpadas, corrimios, me- sas e cadeiras, espelhos e relogios, facas e garfos, chaleiras e panclas, sa~ patos ¢ botas, tudo era polido até brilhar, refletindo em sua superficie outros objetos-espelho, uma infinidade de cristalinos espelhos dentro de espelhos, até que o interior da casa fosse todo composto de superficies brilhantes, um labirinto de reflexos. © espelho virou a epitome do feti~ chismo da mereadoria: apagando tanto os signos do trabalho doméstico O império de saboncte ~ Racisme mercantile propaganda imperial quanto as origens industriais das mercadorias domésticas, No mundo doméstico dos espelhos, os objetos se multiplicam sem intervencao hu- mana aparente numa promiscua economia de autogerasao. Por que a atengio a superficie e ao reflexo? O polimento era dedica: do, em parte, a0 policiamento dos limites entre o privado e o paiblico, removendo qualquer trago do trabalho, substituindo a evidéncia desor- denada das trabalhadoras pela substituigao da superficie como verniz, 0 espeticulo da mercadoria como superficie, a casa arrumada como teatco de limpas superficies para exibigao de mercadorias. © espelho/merca doria devolve o valor do objeto como exibigao, espeticulo a ser consu ‘ido, admirado e exposto por sua capacidade de encamar um duplo valor: 0 valor de mercado do homem e o status de exibigio da mulher. A casa existia para exibir a feminilidade como portadora apenas de valor de exibigao, além do mercado e, portanto, por decreto natural, além do poder politico. Um aniincio do creme para méveis Stepbenson mostra uma eriada impecével, de quatro, sorrindo de um cho to limpo que espelha seu reflexo. O creme garante “nio exibir marcas de dedos’. Um sabiio supe- ‘ior nfo deve deixar manchas denunciadoras, nenhuma impressio de trabalho feminino. Enquanto as criadas vitorianas perdiam a indivi-

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