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NM O SENTIDO DA LIBERDADE Metropolitan State College, Denver 15 de fevereiro de 2008 Como o tema desta conferéncia marca os duzentos anos da abolicao do trafi- co de pessoas escravizadas em 1808, decidi falar sobre o sentido da liberdade. O tema da conferéncia salienta os duzentos anos de liberdade. O que essa liberdade significou para as pessoas de ascendéncia africana? O que essa liber- dade significou para o mundo negro? E qual tem sido a relago com comu- nidades que, embora diferentemente racializadas, mesmo assim sofrem sob os ciclos de opressao? Presumo que bem poucas pessoas pensem sobre o fato de que @ instituicéo da prisio afirmou seu lugar no centro da hist6ria negra, principalmente desde a aboligio da escravatura. Esse tem sido um tema constante na vida coletiva da populagao negra deste pais. Também tem sido um tema constante na vida coletiva da populagio chicana. E é um aspecto cada vez mais importante da vida de pessoas racialmente oprimidas na Europa, bem como na América Latina, quando se olha para o continente afticano, vé-se facilmente em que medida a instituigao prisional de fato esté comegando a substituir instituigdes de edu- casio e satde. Quando Carter G. Woodson propés, em 1926, que a nagéo reservasse anualmente uma semana para a celebragao da Semana da Histéria Negra, ele estava confrontando uma cultura dominante que relegou quase completamen- te A margem as realizac6es negras, ¢ era importante transmitir a mensagem de que éramos capazes de muito mais do que a sociedade supremacista branca atribufa as comunidades negras. Entio, é claro, meio século depois, a celebragio foi ampliada para o més todo. Fevereiro nos oferece uma espécie de microcosmo da histéria do mundo negro. Fevereiro € 0 més, no que diz respeito aos Estados Unidos, em que a 15+ emenda autorizou o suftégio masculino negro. Scanned with CamScanner 108 Anceta Davis Fevereiro também é significativo para a histéria negra por muitos outros motivos. A Freedmen’s Aid Society foi fundada em fevereiro. W. E. B. Du Bois nasceu em 23 de fevereiro de 1868; ¢ foi em 23 de feverciro de 1972 que eu fui libertada sob fianca. Mas foi também durante 0 més de fevereiro que W. E. B. Du Bois convocou 0 primeito Congresso Pan-Afticano, em 1919, para exortaras pessoas de ascendéncia africana em todo o mundoa se unir para enfrentar o imperialismo europeu. Fevereiro também foi o més em que a Conferéncia da Lideranga Crista do Sul, organizagao de Martin Luther King, foi estabelecida e que estudantes realizaram protestos ocupando balcées das lanchonetes de Greensboro, na Carolina do Norte. Isso aconteceu em feverei- ro de 1960. Na verdade, poderfamos continuar a dar todo um panorama da historia negra olhando para os principais fatos ocortidos em fevereiro. O que eu gostaria de dizer agora é que o Més da Histéria Negra parece ter se tornado uma ocasiéo para gerar lucro. Se acessarem o site da Walmart — que a maior corporagéo do mundo -, vero que ela incentiva a celebrar a historia negra comprando seus produtos. A Walmart, como maior corporacio do mundo, demonstra o impacto que o capitalismo global teve em nossa vida € nas condigées do neoliberalismo sob o qual vivemos e pensamos. Através da aco da Walmart percebemos como o capitalismo se insinuou em nossos de- sejos, nossos sonhos e nossas formas de pensar em nés mesmos. Nés nos convertemos em mercadorias quando falamos sobre como vamos nos promover no mercado. Entéo, tenham isso em mente enquanto olhamos para o pasado ¢ analisamos alguns aspectos da historia negra. Na maioria das vezes celebramos 0 Més da Histéria Negra evocando uma série de narrativas sobre individuos negros que conseguiram superar as barrei- ras ctiadas pelo racismo do pasado, ao passo que deveriamos ter uma concep- 40 mais ampla do que significa celebrar os legados da histéria negra, ¢ esses legados nao devem limitar-se apenas a pessoas de ascendéncia afticana, Estou pensando em alguém como Yuri Kochiyama, mulher nipo-estadunidense que durante a maior parte da vida — ela est4 com 82 anos agora ~ trabalhou no movimento ‘pelos direitos civis, trabalhou para libertar pessoas encarceradas por motivos politicos. Ela estava com Malcolm X quando ele foi assassinado, ¢ hd uma foto em que ela embala a cabeca dele, que estava morrendo, Nem sempre incluimos Yuri Kochiyama em nossas celebrag6es do Més da Histéria Negra. Ou Elizabeth “Betita” Martinez, uma das ativistas mais incriveis do infcio do movimento pelos direitos civis. Scanned with CamScanner Osexripo pa uinerpape 109 Celebramos individuos, mas também evocamos as vitérias legislativas ¢ judiciais que ajudaram a produzit um sujeito negro que supostamente goza de igualdade perante a lei. Por isso, é justificado celebrarmos a aboligio do tréfico de pessoas escravizadas, em 1808, ¢ também a 13* emenda, que, acreditamos, aboliu a escravatura, ¢ celebramos a Lei dos Direitos Civis, de 1964, que um dos candidatos insistiu que s6 poderia ser obra de um presidente, € a Lei de Direito a0 Voto, de 1965. Muitos desses momentos legislativos foram tentati- vas de enfrentar erradicar os vestigios da escravizagao. Creio que todos nés, independentemente da origem racial ou étnica, sen- timos certo alivio por nio precisarmos mais lidar com o racismo eo machismo associados ao sistema escravista. Mas tratamos a histéria da escravizagio da mesma forma que tratamos a colonizagéo genocida dos povos indigenas na América do Norte: como se ndo fossem téo importantes ou, pior, como se nunca tivessem realmente acontecido. Pensamos nelas como uma espécie de pesadelo. E, como muitas vezes acontece com pesadelos, tentamos néo pensar a respeito, exceto em termos abstratos, supondo que assim eles acabam. Uma das incriveis contribuicées de um grupo de escritoras negras, comegando, di- gamos, nos anos 1980, foi pensar a escravizagao e imaginar as subjetividades das pessoas que foram escravizadas, impedindo que continudssemos pensando em categorias abstratas. A instituigao da priséo nos diz que o pesadelo da escravizagio continua a nos assombrar. Se realmente aprendermos a reconhecer as formas de racismo machismo que esto no cerne estrutural do sistema prisional, teremos de elaborar uma ideia muito diferente sobre a condigao da democracia nos Estados Unidos, em particular no que diz respeito a suas vitérias sobre 0 racismo e 0 machismo, Ouvimos o governo Bush constantemente evocar 0 movimento pelos direitos civis como uma realizagéo da democracia dos Estados Unidos, da democracia estadunidense. O tema deste encontro é como acabar com os ciclos de opressio. Gostaria de falar sobre isso fazendo a conexio entre a escravizagio € o sistema prisio- nal contempordneo. Em primeiro lugar, quero dizer que a emancipagio que aguardava as pessoas escravizadas em 1863, pessoas cuja histéria sob a escra- vatura tinha sido principalmente uma historia de luta pela liberdade, foi uma emancipagio limitada. O alegre som da liberdade a que se refere W. E. B. Du Bois em Black Reconstruction teve de repelit as formas de privacao de liberda- de que se aferravam persistentemente & emancipacio oferecida & populacio Scanned with CamScanner 110 ANceta Davis escravizada. O que significava ser uma pessoa ex-escravizada e livre? O que significava essa liberdade? Du Bois fala sobre as dimensdes espetaculares dessa liberdade recém-descoberta, e houve dimensées espetaculares, porque 0 povo negro pela primeira vez teve liberdade para aprender, liberdade para tentar se eduear, liberdade para fundar escolas, com os escassos recursos disponiveis, liberdade para, pela primeira vez, viajar. Mas, é claro, essa era uma liberdade ipalmente homens negros que podiam mediada pelo género, porque eram pri aproveitar a liberdade de viajar. {As pessoas negras também obtiveram a liberdade de escolher parceiros se- xuais, algo que podemos minimizar hoje, mas, considerando que havia muitas outras dimensées da liberdade que nao estavam disponiveis para as pessoas escravizadas que foram “libertadas”, essa liberdade sexual se tornou téo impor- tante que foi o tema principal do primeiro estilo de miisica popular produzido apés a escravatura: o blues. A liberdade sexual torna-se, na época, uma metéfora para outros tipos de liberdade, para a liberdade politica, para a liberdade econdmica. Mas essas formas de liberdade estavam envoltas em no liberdade. Os escravizadores cuja atividade foi abolida pela Proclamagio da Emancipacio e depois pela emenda constitucional nao se renderam tio facilmente ds palavras. Parece-me bastante estranho que, ao longo das décadas, tenhamos considerado possivel abolir a escravatura simplesmente por uma proclamagéo, algumas palavras, ¢ por uma cléusula na Constituigao, sendo que essa proclamacio e essa emenda constitu- cional nunca detalharam 0 que se entendia por escravatura. Portanto, nem sequer sabemos com clareza o que deveria ser abolido. Era a posse de pessoas escravizadas como bens méveis? Era tratar os seres humanos como propriedade? Os seres humanos ainda séo comprados e vendidos e ainda sio tratados como propriedade, incluindo pessoas como Shaquille O'Neal, que acabou de ser vendido, nao é Era o trabalho forgado? Sabemos que hd muito trabalho forcado e, observando o tratamento dado a imigrantes sem documen- tos, vemos um modo de trabalho muito semelhante. Portanto, nao creio que a Constituigéo dos Estados Unidos tenha sido bem-sucedida ao abolir o tra- balho coercitivo, E quanto a toda a estrutura ideol6gica racista necessdria para manter um povo inteiro escravizado? Foi abolida? Entio, por que presumimos que a escravatura foi abolida? A escravatura fazia parte da urdidura e da tessitura da vida estadunidense, especialmente no Sul, mas também no Norte. E as palavras por si s6s ndo foram Scanned with CamScanner Osenripo pa uinerpape 111 suficientes para fazé-la desaparecer, Se a escravatura foi declarada morta, foi, a0 mesmo tempo, ressuscitada por meio de novas instituig6es, novas priticas, novas ideologias. Podemos pensar no modo como as instituigées de punicao serviram de recepticulos para as estruturas ¢ as ideologias de escravizagéo que foram traduzidas em termos de liberdade — escravizagao traduzida em termos de liberdade. O que essa produgio de “liberdade” significou desde a aprovacio da 13* emenda? Tanto a priséo quanto o destino das pessoas antes escravizadas ficariam indissociavelmente ligados & luta pela democracia neste pais. Por isso, quando falamos sobre a relagéo entre escravizacao e priséo, também estamos falando sobre a natureza da democracia ou 0 que hd sob a rubrica de democra- cia neste pais. A prisdo continua a refletir o fechamento das portas da democracia para grandes setores da populagio estadunidense. Podemos dizer que um dos prin- cipais aspectos da escravizagio era a morte social. O que também incluiu a morte civil. E significava que pessoas escravizadas néo podiam participar da arena politica nem da vida civil. Entao, o que dizer hoje da privagao do direi- to a0 voto para pessoas que cometeram crimes? E do fato de que hé 2,2 milhdes de pessoas atrés das grades todos os dias? As estatisticas podem ser enganadoras. Muitos de nés conhecemos esse numero, 2,2 milhdes, mas isso reflete apenas uma pesquisa do censo: trata-se do ntimero médio de pessoas que estio na prisio todos os dias. Se vocé olhar para o ntimero de pessoas que entram e saem da prisdo e do sistema penitenciério ao longo de um ano, serio aproximada- mente 13 milhées de pessoas. Entdo, esse ntimero é muito maior do que nos acostumamos a imaginar. ‘A grande maioria desses milhées de pessoas vem de comunidades de mino- rias étnicas € raciais. Isso tem a ver com a natureza cada vez mais restritiva € repressiva da sociedade estadunidense. Ha uma maioria de pessoas negras presas em todo o pais, mas, se voce olhar para meu estado, Califérnia, a maio- ria da populagao é latina e chicana. O RACISMO ESTRUTURAL DA PRISAD O interessante é que as pessoas nao so mais condenadas por serem negras ou chicanas, Mas existem estruturas de racismo que tornam a questéo da raga importante por determinar quem vai para a priséo, em especial quem vai para a priséo ¢ quem vai para as universidades. Como podemos refletir sobre esse Scanned with CamScanner 112. Anceta Davis racismo estrutural? Qual é a relagéo entre o racismo estrutural do sistema es- cravista e 0 racismo que se inscreve nos processos que levam inevitavelmente a0 encarceramento ou ao ensino superior? © tacismo estrutural da prisio também pode ser responsabilizado pela persisténcia do racismo no chamado mundo livre. Somos incitados a pensar a igualdade racial como procluzida pela adogao de posturas de neutralidade racial, certo? Dizem que sb precisamos deixar de enxergar a raga, que o racismo de- saparecers. Portanto, hd um tipo de ignorancia aprendida, pois podemos en- xergar a raga, mas sabemos que ndo devemos enxergé-la. Humpa de repressio que muitas vezes produ essas muitas expressées explosivas de racs- “imo. Lembro-me de Michael Richards dizendo: “Nao sou racista. 1. Nem sei de onde veio isso”. £0 que as pessoas dizem com uma frequéncia cada vez maior. Elas néo conseguem entender como uma observagio racista escapa de seus labios. Hé todo um reservatério psiquico de racismo neste pais. O racismo est presente nas estruturas, est4 em nossa psique coletiva. Todos somos afetados_ por ele. Nao estou falando apenas de pessoas brancas como conduto} racismo, Estou falando de ideologias ¢ ldgicas que influenciam a maneira como todos nés nos relacionamos com o mundo, ‘As pris6es, é claro, se alimentam das desigualdades de classe, das desigual- dades raciais, das desigualdades de género, Elas produzem e reproduzem essas desigualdades, porque segregam e isolam os individuos que punem. As prises ocultam as desigualdades que reproduzem. O perigo oculto de confiar no encarceramento como a principal solucéo para comportamentos que, muitas veres, sao subprodutos da pobreza é que a solugao reproduz 0 problema que pretende resolver. Desse modo, podemos comesar a compreender por que a populacdo carcerdria aumenta constantemente nao apenas em niimeros absolutos, mas também em termos proporcionais. Isso nao tem relagao com 0 1 que a taxa de criminalidade. diminui, as populacées carcerarias Obviamente, as pris6es reproduzem esses problemas porque os recursos aumento das estatisticas de crimes. A_m quase sempre migram da educagéo, da habitagao e da satide para as chamadas instituig6es correcionais. Portanto, uma criacao gera outra. A taxa de crimina-_ Jidade caiu, mas a taxa de encarceramento aumentou. Nos Estados Unidos, & claro, uma sentenga de prisio por crime é uma sentenga de prisdo perpétua, nao importa de quantos anos seja a pena. E uma sentenca de prisao perpétua devido a0 que Mare Mauer chama de “consequéncias colaterais” - a8 Scanned with CamScanner O sexripo pa userpape 113 consequéncias colaterais da priséo que levam & morte social, 2 privagio do direito 20 voto, Nao terfamos precisado lidar com o governo Bush nos tiltimos “sete anos néo fosse 0 fato de que, devido a privagéo de direitos, mais de 600 mil pessoas nfo puderam votar na Flérida. Nas eleigées de 2000, houve uma diferenga de apenas 537 votos. Portanto, se uma pequena minoria dessas 600 mil pessoas pudesse votar, poderfamos ter seguido um curso histérico completamente diverso. Se.a priséo é apresentada como solugao para problemas sociais, outras pos- sibilidades se excluem. O governador Schwarzenegger, que governa 0 estado onde moro, mudou o nome do Departamento de Corregées da California para Departamento de Reabilitago e Corregoes da California. Se queremos real-_ mente a reabilitagao, precisamos comegar a falar sobre o fim do encarceramen- ». Como € possivel reabilicar em condigées de confinamento total? Como & quando as pessoas néo podem exercer suas liberdades? Na ponto principal da prisio como punicdo: ela priva vocé de Aireitos ¢ liberdades. E por isso que a prisio € uma punigio peculiarmente ‘oposto de tudo aquilo que constitui o conceito de democracia burguesa. Em nossa sociedade, supée-se que, se voce é de determinada comunidade racializada, j4 teve algum contato com o sistema prisional. Um estudo interes- sante foi conduzido por um sociélogo que combinou duplas de pessoas negras ¢ brancas que se candidataram a empregos. Algumas delas informavam que tiveram uma condenagio criminal e outras nao. O interessante foi que as pes- soas brancas que tinham uma condenagéo criminal foram chamadas para novas, entrevistas na mesma proporgdo que as pessoas negras que tinham as mesmas credenciais, mas no tinham antecedentes criminais. Q que Marc Mauer faz.é mostrar que, basicamente, os homens negros nascem com o estigma social equivalente_a.uma-condenag4o criminal. Portanto, estamos falando de uma instituigéo que nao afeta apenas as pessoas que mantém encarceradas; a prisio exerce influéncia sobre comunidades inteiras. O problema nio se limita aos homens negtos. As mulheres constituem, € consticuiram por algum tempo, a parcela da populagao encarcerada que mais cresce. Fas mulheres de minorias étnicas e raciais, é claro, constituem 0 maior grupo de mulheres presas, aquele que mais cresce dentro de toda a populagio carceréria. Isso nao é vilido apenas para os Estados Unidos. E valido para o Canadé, é vilido cada vez mais na Europa e também é vilido em outros paises. Scanned with CamScanner 114. Aveta Davis Se olharmos para quem est na prisio e por que, fica evidente que raca e_ _classe esto muito mais associadas & superlotacio das instituig6es prisionais que_ _Aexisténcia de crime. Depois que jé esto hé algum tempo na priséo, as pessoas sio assombradas para sempre pela condigéo de prisioneiras. Sao assombradas para sempre pela morte civil. Si excluidas para sempre de certos aspectos da participagio democritica na sociedade, Essa ¢ uma maneira de compreender por que pessoas negras ¢ latinas sao tao facilmente rotuladas de criminosas, tio | facilmente identificadas como ameagas & lei € 4 ordem, € isso nos ajuda a en- tender por que as pessoas dessas comunidades costumam ver suas prdprias irmis € seus irmaos como criminosos, como os perigos ¢ as ameacas. Um imigrante, por exemplo, ¢ um bode expiatério. O imigrante sem documento & visto como o inimigo. E hd uma racializagio da imigragio. A imigracao pés-colonial, pés-soviética € pés-socialista para este pais envolve pessoas que chegam aqui vindas do mundo todo, especialmente da Riissia. Mas seré que alguma vez pensamos em imigrantes sem documentos como de origem russa? Alguma vez racializa- mos imigrantes brancos? Dessa forma, comegamos a compreender como a ideologia do racismo de fato contamina a prépria légica de nosso pensamen- to € nossas relagbes sociais. —4s Gostaria de falar um pouco sobre como esse processo de criminalizagio, principalmente no que diz respeito A populagio negra, estd ancorado na escra-_ ‘vizagio, E quero estabelecer uma relagio entre a democracia que imaginamos ter agora e a democracia que foi oferecida & populagio afrodescendente apés a escravatura. Mesmo durante a escravatura havia uma contradigéo na forma como se pensaya na populacdo negra. Temos a tendéncia de pensar que a es- cravatura significava que pessoas negras eram tratadas como propriedade, néo & Trata-se da posse de pessoas escravizadas como bens méveis. Mas as pessoas negras eram punidas, consideradas culpadas de crimes. Um bem mével pode set responsabilizado? Uma propriedade pode ser considerada culpada? Havia algo de errado nisso. De fato, pode-se dizer que, embora as pessoas negras nao fossem reconhecidas como personalidades juridicas na maioria dos sentidos do termo, quando cometiam um crime, eram responsabilizadas perante a lei e af recebiam tal reconhecimento. Essa afirmago negativa da personalidade juridica da pessoa negra prevale- ce até hoje. Pode-se dizer que a prova da participacio das pessoas negras na democracia estadunidense é justamente o fato de terem recebido 0 devido Scanned with CamScanner Ossexmipo pa unerpape 115, processo legal antes de serem condenadas de forma to desproporcional & pri- séo. E justamente por se apresentarem perante a lei como sujeitos iguais que recebem o devido processo legal, justamente por serem consideradas respon- siveis ou culpadas — isso faz sentido? £ pela culpa que clas participam do processo democritico. Esse fato reflete a contradigo da escravizacao e, acredi- to, indica uma das maneiras como a escravizagéo continua a nos assombrar. Antes de concluir minha fala, tenho de dizer algo sobre a globalizagio cor- porativa neoliberal. Tenho de dizer que a globaliza¢éo corporativa neoliberal se ‘tomnou a maior ameaca a d icia no mundo. Mas o problema é que 0 ca- pitalismo se apresenta como sindnimo de democracia. E disso que George Bush esté falando quando clama pela defesa da democracia contra o terror. Essa é a democracia que as Forgas Armadas dos Estados Unidos lutam para proteger em lugares como Iraque ¢ Afeganistio. Nao é a democracia, é 0 capitalismo, ou é uma democracia que usa 0 capitalismo como modelo, que vé o livre mercado como paradigma da liberdade e vé a competi¢ao como paradigma da liberdade. As corporagées estéo ligadas & comercializagéo global do encarceramento. Elas obtém lucros enormes com esse setor — prises & custa de moradia, sauide, educacao e outros servigos sociais. Na verdade, a concepeio neoliberal de liber- dade econdmica exige que o governo se retire de praticamente todos os servicos _ | | . O mercado deve determinar tudor ‘A lberdado urge porque o mercado determinard a distribuigéo da educacio, a distribuigao dos servigos de satide, E "de acordo com pessoas como os Chicago Boys e Milton Friedman, a liberdade encontrard seu equilibrio. Acho que eles ainda acreditam que, gragas & “mao invisivel” de Adam Smith, de uma forma ou de outra a liberdade se revelard. Mas quando olhamos para paises do Sul Global — um pais como a Africa do Sul, que ainda é, suponho, nossa esperanga dé um pais nao racista e nao machista e de uma sociedade nao homofébica -, vemos em que medida foram devastados pelo rolo compressor da privatizagéo. Vemos que estio enfrentando enormes problemas precisamente como resultado da privatizacao, que € exigi- da pelo Fundo Monetério Internacional e outras organizagées financeiras in- ternacionais como medida a ser adotada pelos paises que desejam obter empréstimos internacionais, E assustador. Vemos esse tipo de ajuste estrutural acontecer aqui. E por isso que enfren- tamos a atual crise dos servicos de satide e é também por isso que a saiide foi totalmente privatizada desde a década de 1980. Houve uma tentativa de pri- vatizar por completo o sistema prisional. Funcionou em alguns lugares, nao Scanned with CamScanner 116 Anceta Davis em outros. Mas vemos as corporagées privadas entrarem sutilmente no sistema prisional em todo o pais. Eu me pergunto por que nio consideramos vergonhoso que seja possivel hoje visitar paises do Sul Global e descobrir que, embora seus sistemas educa- cionais e subsidios de moradia e empregos tenham se deteriorado ao longo do Ultimo quarto de século sob o impacto da globalizagéo, muitas vezes se pode encontrar uma prisio nova em folha, a ponto de levar uma pessoa a acreditar que foi teletransportada de volta para o Colorado ou a California. E claro que uusamos 0 termo|“complexo industrial-prisional”) para apontar que existe essa proliferacao global de prisées, prisioneiros e prisioneiras que est4 mais clara- mente ligada a estruturas e ideologias econdmicas e politicas do que & condu- ta criminosa individual e aos esforcos para coibir o crime. Eu queria dizer algumas palavras sobre o complexo industrial-prisional, que tem esse lugar cada vez mais privilegiado na economia global, e sobre a manei- ra como ele serve para apoiar a persisténcia do racismo, mas também sobre como se tornou um aparato de género. Acho que nao pensamos no fato de que existem prises para homens e pris6es para mulheres. E quanto as pessoas _género-dissidentes? Pois imagino que aprendemos com o tempo que existem mais de dois géneros. Entéo, 0 que acontece com as pessoas género-dissidentes? Para onde vao? Para onde uma mulher transgénero é enviada ou um homem transgénero é enviado ou alguém que nao necessariamente se identifica como homem ou mulher? £ claro que as pris6es se baseiam nas velhas nogées da biologia, que a biologia tem as respostas para tudo, e assim so inspecionados 08 genitais das pessoas. E com base na genitélia que elas tém o género deter- minado e sao enviadas para determinadas prisdes. Entio, é Sbvio que ha problemas de violéncia, As pessoas costumam argu- mentar que, se uma mulher transgénero for colocada em pris6es masculinas por ter genitdlia masculina, ela estard sujeita a estupro — porque achamos que sabemos que estupro é algo que homens detentos comecam a cometer quando vao para a priséo. Nao nos perguntamos por que, de onde vem isso? Nao nos perguntamos até que ponto a prépria institui¢ao promove essa violéncia, pre- cisa dessa violéncia, gera essa violéncia sexual para que o sistema funcione. Vimos acontecer em Abu Ghraib, vimos acontecer em Guanténamo e expres- samos grande espanto — nio é assim que os Estados Unidos devem atuar. No entanto, se olharmos para o que acontece diariamente nas prisdes internas do pais, veremos coercao e violéncia semelhantes. Scanned with CamScanner O senmipo pa uisenpave 117 £ claro que as mulheres foram especialmente prejudicadas por esses processos. O complexo industrial-prisional absorveu um nimero desproporcional de mulheres do Sul Global e mulheres indigenas. Se for para a Austrélia, quem vocé imagina que encontrard em nuimeros desproporcionais nas prisées locais, especialmente nas pris6es femininas? O complexo industrial-prisional tornou-se téo grande e poderoso que tra- balha para se perpetuar, Trata-se de uma autoperpetuacéo. As matérias-primas sio a juventude imigrante ¢ a juventude de minorias étnicas e raciais em todo “omundo. Entéo, quem visita uma prisio na Austrdlia, na Franga, na Holanda, na Itélia ou na Suécia vé jovens que vém de comunidades que nés nos Estados Unidos designamos como comunidades de minorias étnicas e raciais e de povos origindrios. A raga continua muito relevante hoje, no mundo todo. Eis algo que os Estados Unidos ofereceram: maneira de administrar os problemas sociais recusando-se a enfrenté-los. Em vez de resolver problemas, o sistema coloca as pessoas atras das grades. Nao podemos negar que hé pes- soas na priséo que fizeram coisas horriveis, dolorosas. Mas elas nao séo a maioria da populagio carcerdria. E h4 muitas pessoas livres no mundo que fizeram coisas horriveis e dolorosas. Hé diversas razées pelas quais as pessoas se envolvem em violéncia, as vezes por maldade, as vezes por transtornos mentais, as vezes por autodefesa. Muitas mulheres que estéo na prisio por cometer atos violentos mataram por desespero, para se livrar de um relacio- namento intimo violento, Independentemente do motivo pelo qual alguém foi condenado, faz sentido abrigar centenas, 3s vezes milhares de pessoas juntas, ou em celas de isolamento, privé-las do contato com a familia, privé-las de educagio e depois supor que isso vai possibilitar sua reabilitagao e ajudé-las a ser integrantes saudaveis da sociedade? Eu gostaria de terminar com perguntas. Como imaginamos e lutamos por uma democracia que nao produza formas de terror, que néo produza guerra, que nao precise de inimigos para se sustentar? Apontar as pessoas que estéo na prisio como inimigas é uma das maneiras de nos definirmos como livres - olhando para nossos opostos. Como imaginamos uma democracia que nao se alimente desse racismo, que ndo se alimente da homofobia, que nao se baseie nos direitos das corporagées capitalistas de saquear os ambientes econdmicos, sociais e fisicos do mundo? Varia Sugiro que usemos nossa imaginagao para tentar chegar a versbes de demo- cracia em que, por exemplo, a pritica do Isla nao sirva de pretexto para Scanned with CamScanner T1O ANGELA Davis encarceramento em um centro de detengdo de imigrantes ou em uma prisio militar; em que a tortura e a coercéo sexual nfo sejam consideradas tratamen- tos apropriados. Precisamos usar nossa imaginagio para vislumbrar verses de democracia que possibilitem muitas coisas: o direito a um emprego adequado ¢ satisfatério com um salério digno; o direito & educagéo de qualidade; o di- reito de viver em um mundo em que a educagéo nao seja mercadoria, ¢ sim uma disciplina criativa que nos permita compreender todos os mundos que habitamos, humanos e nao humanos, 0 tipo de educagao que nos faga trans- cender os limites do patriotismo nacionalista para nos imaginarmos como ci- dadaos e cidadas do globo. a PERGUNTA DO POBLICO Qual é sua opiniéo sobre a eleigéo presidencial e Obama? Nao sou democrata e nunca fui filiada a nenhum dos dois principais partidos. Fui filiada ao Partido Comunista, fui filiada ao Partido Paz e Liberdade e ago- ra sou filiada ao Partido Verde. Durante as primérias, votei em Cynthia McKinney, porque sou membra do Partido Verde. Achei muito curioso que os meios de comunicagao tenham ignorado completamente a cobertura dos par- tidos independentes, eles ignoram partidos politicos, exceto o Republicano o Democrata. O que eu acho das eleigdes? Acho que é absolutamente incrivel que haja tanto interesse. E um momento realmente emocionante neste pais; é emocio- nante ver a juventude — que foi descrita como apética — envolver-se profunda- mente. Somos geragées de eleitores apdticos, € 0 que nos dizem. Chegamos a descobrir que as pessoas estavam apiticas porque nao havia ninguém interes- sante em quem votar ou apoiar. ‘Mas sou sempre muito cautelosa quando se trata de politica eleitoral. Acho que, em especial neste pais, temos a tendéncia de investir nosso préprio poder coletivo em individuos. Temos o que chamo, as vezes, de complexo de messias. E por isso que, quando pensamos no movimento pelos direitos civis, pensamos em Martin Luther King. Nao podemos imaginar que esse movimento poss ter sido criado por um grande niimero de pessoas cujos nomes nem conhecemos. Nao conseguimos imaginar isso. Costumo enfatizar que 0 boicote aos énibus de Montgomery, que pata muitas pessoas foi um momento decisivo do movimento pelos direitos civis, Scanned with CamScanner ‘ O sENTIDO DA LIBERDADE 119 nao teria sido possivel sem as trabalhadoras domésticas negras. Essas s4o as ‘pessoas em quem nunca pensamos. Elas so totalmente invisiveis, invisiveis na histéria, mas sao as mulheres que se recusaram a viajar de énibus. As pessoas negras que estavam no énibus porque estavam indo de comunidades negras para comunidades brancas, porque estavam limpando as casas de pessoas bran- cas e cozinhando sua comida e lavando suas roupas. Mas nao conseguimos imagind-las como agentes da histéria que nos deram esse incrfvel movimento pelos direitos civis. Tudo isso para dizer que esse entusiasmo, esse entusiasmo incrfvel que foi produzido nos tiltimos tempos e que foi chamado de movimento — e Obama referiu-se especificamente ao que est4 acontecendo em torno de sua campanha como um movimento —, para ser um movimento, deve exigir muito mais que a eleicao de um Unico individuo, nao importa o que ele possa representar. Em certo sentido, acredito que Obama é uma tela na qual mt “nossos-dese}03) nossqs-sonhode nossaf ésperangasslsso pode ser bom se com- preendermos que é 0 que estamos fazendo, e se entendermos que fazer isso no_ basta, e se entendermos que, mesmo que ele seja eleito, ou que Hillary seja ‘eleita, se qualquer um dos dois for eleito, temos que continuar pressionando, sem esperar que eles facam todo o trabalho que deveriamos fazer por nés mesmos. Scanned with CamScanner

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