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PACTO E LINGUAGEM NAS MEMORIAS DE JOKO MIRAMAR ABSTRACT: The 1924 Memérias sentimentais de Jodo Miramar (The Sentimental Memoirs of Jodo Miramar) is generally considered Oswald de Andrade’s most experimental work in the field of fiction. Though it incorporates the futurier ideas the author came into contact with on his first tip to Paris, it is unclassifiable in terms of literary genre. Even with such an extensive bibliography: devoted to it ite at and unity remain a challenge to the critic. This essay’ aims to analyze the language of this book as "8 living portrait of our social machine” — in the words of the conservative Machado Penumbra, author of the supposed preface ~ and proposes parataxe as a key to understand Miramar's stile. Kenwords: Memérias sentimentais de Joao Miramar: Oswald de Andrade: Brazilian modemism: parataxe; hybrid genres; Brazilian fiction, RESUMO: Memérias sentimentais de Jodo Miramar, de 1924. costuma ser Propoe @ parataxe como elemento chave para entender o estilo miramariney Palavras-chave: Memérias sentimentais de Joiio Miramar; Oswald de Andrade; modemismo brasileiro; parataxe: géneros hibridos: prosa brasileira, 1. Linguagem e destruigao “O livro saiu a mais alegre das destruigdes™ (Batista, Lopez e Lima 219). Foi Com essa denominagdo certeira e aguda que Mario de Andrade acolheu Memdérias sentimentais de Jodo Miramar (1924), recém publicado por Oswald de Andrade. Era {al a experimentagdo presente nesse livro que somente pela qualificacao de sua radical Regatividade seria possivel dar conta do desconcerto promovido pelo amigo. Dois ais apd 0 estardalhapo da Semana de Arte Moderna e o surgimento das primeiras diferensas ¢ rusgas entre alguns de seus partieipantes, Oswald deliberadamerne propés asi mesmo o trabalho fino de destruir a tradicional prosa brasileira, Nessa altura. ele ja havia publicado seu primeito romance. Os condenados (1922), ‘no qual exercitara uma técnica de natrativa préxima da linguagem cinematogréfica, Planos répidos e objetivos contam a histéria da prostituta Alma e de um ambiente crepuscular, bem distante do imagindnio romantico. A triste realidade de Fe Forme anctidos em jogos amorosos contrasta com a energia da cidade, captada de forma cologuial ¢ direta. Segundo Roger Bastide. trta-se de con nna que mostra 0 fim de certa concepsaio de amor (106) Mas € com Memédrias Sentimentais de Jodo Miramar que a arte oswaldiana revela explicita adesio ao experimentalismo, Nele, 0 auror ineorpora uma série de subversdes literérias influenciado pelos ventos vanguardistas vinde da Europa - que Conhecera na primeira viagem a Paris. em 1912. Contagiado de ini pelo Manifesto Furutista (1909), de Filippo Tommaso Marine. Oswald decidiu desde code tomar 0 Bartido da renovacao destruidora. Por mais de uma década, esereveu intmrerce trechos das mem6rias sentimentais e publicou alguns deles em jomnais e revistes, A verso final. concebida um ano antes da publicagdo, levou a uma intensa cneen) SOD 08 escritos originals. Em esséncia, o autor cortou adjetivos ¢ evitnens wleaaticn fesetisto (Fonseca 117). Surge dai uma linguagem propositalmente ‘elegrifica, entrecortada e com forte componente associativo'e sabconveiens, Pode-se aes tmat que o longo tempo de maturagio desse trabalho coincide cons twajetoria de aproximagio de Oswald ao idedrio cubo-futurista, conforme alardeado nos anos de 1910, Durante seu casamento com Tarsila do Amaral, ambos realizaram algumas viagens @ Europa, onde conviveram na capital francesa com alguns dee principais artistas ligados as vanguardas, Mantiveram contato estreito com Jean Cocteau, Blaise Cendrars. Femand Léger, Max Jacob, Valery Larbaud, Igor Stravinsky e outros. No staan a pa ecus4 radical da rima ¢ da métrica, o poeta modemista reesbe, ipfluéneia de Paul Fort © de Marinetti—cujo manifesto tivera uma precose tradugao no Brasil logo apés 0 lancamento, em jornal do Rio Grande do Norte € depois da Bahia, mas sem grande repercussdo (Saraiva 146), Foi Pincipalmente com Oswald que 0 futurismo encontrou no Brasil wm adepto @ altura de suas intengaes destruidoras, Ja em 1916 foram publicados ne jomal O Pirraiho alguns fragmentos iniciais das memérias miramarinas, em versdes que foram depois totalmente rescrtas. Fato que nos leva a um questionarmento nararah Em Ae medida essa obra se apronima dos preceitos de Marinett? Questio importante bata Se refletr. pois permite compreender o imagindrio de Oswald durante seus Brimeiros anos de eriaedo © a mancira como contribuiu para a estética modsminn daquele periodo Antes de qualquer conclusdo, porém., seré necessério retomar as linhas gerais que marcam 0 memorialismo desse livro, Prosa poética composta de uma série de fragmentos curtos, assemelha-se a um amplo tabuleiro de memérias em que cada wecho também guarda um sentido de unidade, inclusive com titulo auténomo, Apostando na mistura de géneros, a trajetdria do protagonista emerge indiretamente por meio de uma diversidade de registros textuais superpostos. tanto na forma de anotagdo pessoal como também de poemas, poemas em prosa, didlogos. cartas. bilhetes. trechos de discursos e outros artficios lea sugetida ainda uma sutilarticulagio entre as partes no que se refere a alguns fats © personagens que ceream Joiio Miramar. Ao todo. 163 textos compem o puzzle. De inicio. Joao Miramar evoca momentos da infincia e 0 despertar de sensagdes em meio aos eventos familiares. Sao os anos das primeiras andangas ¢ paisagens. a baliza dos papéis em sociedade rivalizando com a sensualidade. Tudo sugerido de forma breve, sutil. em que as circunstancias se veem recuperadas de tnaneira aleatéria. O leitor se depara. na yerdade, com um acimulo de imagens flagradas em estado de colagem, como se percebe nesta frase do segmento 10 (“Derrapage”) tomada ao acaso: “A vitiva envelhecida era um peito de tébuas. E num canto Mad6 chorava o destino das Madalenas” (Memdrias sentimentais de Joao Miramar 48). Mas. ja a partir do fragmento 43 (“Veneza”). 0 protagonista empreende uma vlagem 4 Europa que o tire dos bragos de mamie eo langa no campo do cosmopolitismo. Tais descobertas ~ que sto culturais ¢ afetivas ao mesmo tempo — esto mareadas por uma forte visualidade. conforme se pode apreciar nesta referéncia a Veneza: Cristais joias couros lavrados marfins caiam com xales italianos de cores vivas nos canais de égua suja. Gondolamos graciosameme na Ponte de Rialto e suspiramos na outra, Mas Sao Marcos era uma luz elétrica noturna de banho. turco num disparate de mundiai: elegancias aviadoras rodeando concertos servidos com sorvetes (Memérias sentimentais de Jodo Miramar 38), Em tomo a algumas palavras associadas cidade forma-se uma constelagdo de qualidades transfiguradas no entrechoque de elementos visuais. Depois do fragmento 56 (“Orfa0"). Joo Miramar volta a Sao Paulo e procura adaptarse & vida de homem adulto (Jackson 51). O livro passa ent@o a ser ocupado também por outros personagens ¢ discursos. presentes na forma de cartas e discursos que entremeiam os capitulos do protagonista. Deparamos com uma série de situagdes evocadas em estado onirico, de multiplas ¢ arbitrérias associacdes. Ainda assim. delineiam-se alguns fatos objetivos e biogréficos -- como o casamento com Célia, que depois resultou em doenga e separagfo. ou as tentativas profissionais com o cinema ¢ outras atividades -- em que o protagonista acaba malsucedido. E de tal ordem a justaposigao de fatos. imagens e entrechos que termina por dar realce ao contetido critico e satirico com que se apresenta, Como no caso das referéncias sensuais ou amorosas de Maria da Gloria, que ele caracteriza com algun distanciamento no texto 6 (“Maria da Gléria”): Preta pequenina do peso das cadeias. Cabelos brancos ¢ um guarda-chuva, mecanismo das pernas sob a saia centendria desenrolava-se da casa lenta & escola pela manha branca ¢ de tarde azul Ia na frente bamboleando maleta pelas portas lampides eu menino (Memorias sentimentais de Jodo Miramar 46). Qu ainda quando se refere ao proprio casamento, no texto 62 (-Comprometimento”), sem perder 0 viés mordaz: O Ford levou-nos para igreja ¢ notdrio entre matos derrubados ¢ vasta promessa das primeiras culturas Jogaram-nos flores como béngos e sinos tilintintaram. A Tua substituiu 0 sol na guarita do mundo mas o dia continuou tendo havido entre nés apenas uma sepatacdo precavida de bens (Memorias sentimentais de Jodo Miramar 64). Em outras passagens. contudo. sobressaem distintas propriedades da linguagem, tais como: o lirismo - “Montanhas espetavam tetas para a sede azul do seu.” fragmento 45 (“Aix”) ~: a livre associagdo - “Matematicos garupas midinettes de pemas ao léu sobre peixes circulares num oceano aéreo de gaitas,” fragmento $1 (14 de julho") ~ ow a eriae#o de neologismos ~ “Fordes quilometraram agafides de geaso.” fragmento $8 (“Nova Lombardia”) (Memdrias sentimentais de Jodo Miramar 59, 60. 63). Destaca-se ainda o recurso frequente de metalinguagem, presente no inicio do livro por meio de um suposto preficio creditado a Machado Penumbra — escritor “a antiga © também personagem, que se mostra condescendente com os experimentalismos do colega literato. Mesclados tantos estimulos literarios. a sintese resultante assemelha-se a uma rede de associagdes eujo denominador comum esté anunciado desde o titulo: memdrias sentimentais. Ao que parece, 0 qualificativo funciona nessa expresso como lum argumento justificativo para a vertigem de tantos elementos e torgdes de Unguagem. Na medida em que as evocagies sio mobilizadas pelo sentimento, torna-se possivel romper com as categorias de espago e tempo ou recorrer livremente a cortes abruptos. alusdes ou choque de referéncias. Antonio Candido propde uma chave para o entendimento desse proceso ao afirmar que 0 livro se oferece como obra aberta, qualidade que promave tanto o livre entrelagamento de evocagdes e registros estilisticos como também a mistura de planos de percepgio. Segundo ele. Memérias sentimentais de Jodo Miramar pressupde “tanto © elemento ausente quanto o presente. tanto o implicito quanto o explicito” (78). Vem dai sua completa recusa a0 sentido literal das frases © 0 gosto pelas imagens sobrepostas, configurando um “cinematismo continuo” (Candido 51) Haroldo de Campos. por sua vez. estabelece lagos entre 03 estilos de Oswald e de James Joyce, chegando a afirmar que “Miramar é um Ulisses ingénuo™ (Memdrias sentimentais de Jodo Miramar 20), mas com igual poder inventivo na criagdo de uma “acelerada imagistica sonoro-visual” ( Memérias sentimentais de Jodo Miramar 20). As definigdes semelhantes de ambos os eriticos. embora de filiagdes tedricas distintas, coincidem no argumento de reconhecer a vivacidade imagética e o vangurardismo do livro, No entanto. sabe-se que a adesio de Oswald ao idedtio de Marinetti transformou-se ao longo dos anos. A rigor. o futurismo que estava na mente de Oswald, por ocasiao da reescritura das Memdrias sentimentais de Jodo Miramar, ja nio era o mesmo de anos anteriores. Estava agora associado a um sentido “largo e universal que abrangia toda a revolugdo modema das artes" (cit. Coutinho 251), conforme ele mesmo admitiu em declaragao feita na época. Nas rememorages de Joao Miramar. pode-se encontrat eco de Ardengo Soffici, dissidente futurista, defensor da ideia de que a arte deve comprometer-se com a distragdo, Em sua visio. a ironia tinha mais valor que as doutrinas. Espirito compartilhado também por Max Jacob e Valery Larbaud, escritores que 0 modernista brasileiro conhecera em Paris e de quem se tornara admirador. Aos poucos. 0 fascinio inicial pelos jogos de desconstrugao literatia foi sendo substituido pela necessidade de buscar um viés wpiniquim para o movimento modemista. Fato que se evidencia pela publicago em pagina de jornal, no mesmo ano. do seu bombastico Manifesto da Poesia Paw-Brasil (1924). em que deixa clara a sua posigdo: Nao ha luta na terra de vocagdes académicas. Ha s6 fardas. Os futuristas e os outros. Uma tinica luta ~ a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importagdo. E a Poesia Pau-Brasil. de exportago ( Do Pau-Brasil é antropofagia e as utopias 6-7). Ou, ainda, quando afirma em seguida: O trabalho da geragao futurista foi império da literatura nacional. Realizada essa etapa. 0 problema é outro. Ser regional e puro em sua época (Do Pau-Brasil @ anropofagia e as utopias 8). lopico. Acertar o relégio A distancia frente a0 movimento de Marinenti se vé compensada pelo elemento nacional enquanto saida para o impasse. As técnicas de desconstrugao da linguagem ¢ram incorporadas sim, mas com base em um material linguistico ¢ social que fosse marcadamente brasileiro. Faltava ao futurismo o sal da terra e isso fazia toda a diferenga. E nas memérias sentimentais, a questio nacionalista aparece desde o inicio, na voz da artificiosa apresentagdo de Machado Penumbra. que diz aprovar a “glotica” do amigo ¢ se pergunta: “Serd esse 0 Brasileiro do Século XI? Foi o que ¢le [Joao Miramar] a justificou. ante minhas reticéncias criticas.” (Memérias sentimentais de Jodo Miramar 26). Mario de Andrade repisa 0 argumento. em seu artigo sobre o livro (Batiste, Lopez ¢ Lima 222), a0 justificar a desconstrugéo de Oswald com 0 propésito de capturar uma lingua brasileira em formagdo. Dai a utilidade, inclusive, dos “crros” Curiosamente, porém, a regressdo a um estado primitive da linguagem tem como Propésito central justamente ironizar 0 modo de vida e de pensar tipicos da aristocracia paulistana Nesse sentido. verifica-se uma real integragiio entre contetido ¢ forma, com vistas a sugerir a dinémica perversa em que esto envolvidos os personagens principais ¢ seu grupo social. A fragmentagao acentua o espirito zombador dos textos ¢ salta aos olhos @ artificialidade implicada nos rituais sociais e na linguagem que os acompanha. Exemplos disso podem ser encontrados em muitas paginas da obra, mas vamos citar apenas a separacio do protagonista, apresentada no fragmento 52 (Indiferenga”) da seguinte maneira: “E meu divércio recrudesceu por sentenga regular com Celiazinha homologada a mie em sete anos e mais rombos no meu patrio poder por maravilhosa graca do imenso jurisconsulto dos Jucés ¢ Totés” (Memérias Sentimentais de Jodo Miramar 61). Bem se pereebe como 0 uso do diminutivo, a presenga materna e os rombos brescritos pelo jurisconsulto ~ tudo em uma s6 frase — contribuem para acionar 0 gro de ironia no interior da situago sugerida. Jo%o Miramar nao poupa nem a si mesmo no jogo de sarcasmo e de critica social e. no limite, resgata um sentido de unidade desconhecido a primeira vista. Observada em retrospectiva. a acumulagdo de tantas sircunstincias e fragmentos termina por sugerir uma trajetdtia de vida — e sinaliza uma positividade para o livro. ao final das contas. Encontra-se ai um claro desvio em relagio ao espitito programitico de Marinetti, somado a outros aspectos que ganham realce e se afastam da doutrina importada; por exemplo. no que se refere & completa supresso do “eu” e de todo trago psicoldgico a ele associado. Ora. a criagdo de Oswald aponta para o sentido oposto. O mosaico das Memédrias sentimentais de Jodo Miramar configura uma vivéncia enirecortada, dispersa em mil e um detalhes ¢ situagdes, mas que de antemAo supde a centralidade do sujeito. Jé ao longo das primeiras paginas o leitor percebe essa dinamica ¢, com 0 andar do livro, passa a aceitar 0 procedimento proposto. A sobreposigao alucinada das imagens evidencia a linha condutora do imagindrio, ao mesmo tempo que reforga 0 experimentalismo do texto. Ainda por conta da figura de Joao Miramar, ficam rebaixadas algumas caracteristicas caras ao futurismo, como 0 culto alucinado da velocidade e da técnica, Claro que Oswald esté atento 4 modernizacto de Sao Paulo, presente em tantas Passagens evocadas no livzo. prineipalmente com o sentido de contrasté-la com o modo tradicional de pensar e agir. Interessa mais apontar o entrechoque de elementos gue o culto absoluto da maquina, Em alguns trechos, predomina até mesmo certo toque de lirismo, que pouco se enquadra nos ditames do movimento. Ao misturar as memérias com discursos correntes da vida cotidiana — como 0 bilhete, o didlogo. a anotagao intima -. 0 esforgo deliberado de Oswald esta voltado para criar um formato novo, estranho aos habitos literarios da época. Logo, também no que se refere ao género literdrio, a destruigdo promovida na linguagem resulta num livro de carver inclassificavel. em sintonia com o seu projeto demolidor, O proprio autor teve muitas diividas sobre como apresentar aquelas paginas a0 piblico. Um ano antes de sua publicagdo. a questo veio a berlinda com preméncia, a ponto de deixar rasiros nos manuseritos. Quem descobriu a pista foi Maria Augusta Fonseca. que teve acesso as trés versdes originais da obra e fez um cotejamento criterioso entre elas. Vale a pena transcrever a descrigdo que ela faz da pagina inicial do segundo manuscrito. em caderno datado de 1923 (Fonseca 45-46): Na parte superior direita grava-se do punho do autor: Oswald de Andrade. Seis linhas abaixo, OA indica o titulo da obra, grafando-o em letras de forma: MEMORIAS SENTIMENTAES. Duas linhas abaixo. o subtitulo — escrito a lépis em letras maiiisculas ¢ sublinhado: FORMA EM ROMANCE DE POEMA. Uma linha pulada e uma explicagio escrita em letra cursiva, mindscula, a tinta azul, depois rasurada a lapis. Sob o risco € possivel ler: poema mysterioso e ryth mado de Jo8o Miramar co mo se fosse antigo Os subtitulos artolados sao bastante significativos da oseilagio vivida pelo criador ao tentar definir a propria criagdo. Ao mesmo tempo. configuram uma fuga deliberada a0 horizonte dos géneros tradicionais. Nesse sentido. é curiosa desconcertante a caracterizagio do livro como um “poema misteryoso e rythmado {..] como se fosse antigo.” Palavras que revelam 0 avesso do que realizam e ampliam a sétira com o inusitado corte de versos. Ao cabo. temos um terceto torcido, Mais criativa ainda ¢ a expresso “forma em romance de poema.” jé por si postica e que remete ao principio geral da composigdo. A primeira parte do enuneiado, “forma em romance.” configura de pronto uma inversio dos termos naturais, de modo a afirmar a énfase formal da proposta. Mas também a segunda parte ~ apresentando-se como um “romance de poema” ~ pode ser entendida como maneira de fechar em circulo a interdependéncia entre o todo (romance) e 0 particular (poema), Inevitavel ainda considerar a hipétese do poema em prosa. tanto pela solugao visual de textos curtos € autdnomos como pela composicio répida e Agil dos andamentos. Por certo, muitos dos 163 fragmentos que compdem a obra podem ser compreendidos no ambito desse género. tal é © emprego inventivo das palavras a0 caracterizar as imagens. Apresentam uma dindmica imaginaria que bem se enquadra na classica definigio de Suzanne Bernard (14-15) em que qualifica essa forma de escrita como marcada pelos tragos de unidade organica, gratuidade e brevidade, ‘Tendo em vista que os fragmentos dessa natureza constituem maioria, poder- se-ia defender a ideia de que o livro se estrutura a partir desse género. No entanto, ha um argumento contrério que talvez prevalega, Afinal. a0 tomarmos a escrita das Memérias sentimentais de Jodo Miraniar como uma rede de Poemas em prosa, esse entendimento acabaria por reduzir 0 largo horizonte de sentidos apontados na obra, conforme apresentado até aqui. E ainda que esse género seja predominante no conjunto, ha de se considerar a inter-relagao entre os prdprios textos. dado que introduz um elemento novo a dinémica. Ao final, depois de muitas duvidas. Oswald Passou um risco sobre as alternativas concebidas inicialmente e preferiu se restringir ao titulo principal, A “forma em romance de poema" desapareceu como proposta explicita, mas permanece como boa sintese para tesumir a impossibilidade de classificar tal obra. Na versio derradeira, antes de ir ao prelo, o autor optou ainda por acrescentar as palavras do pseudo prefaciador Machado Penumbra . servindo como uma espécie de adverténcia ao leitor quanto a “alegre destruigdio” que se segue. 2. Entre meméria e sitira: 0 pacto A soma de todos os elementos expostos até agui converge para uma composicao radical. & beira da ilegibilidade, mas que mantém um fio de narratividade muito propria, proxima da extravagincia. Ou seja: subsiste & destrui¢do da linguagem um rastro ficcional que permeia os recursos formais e cria uma obra sui generis. Nesse sentido, chama a ateng%o que a verve miramarina aparega (des)articulada em soltos fragmentos, recolhidos pelo arbitrio da meméria e desobedientes da sintexe e da pontuagdo: sem conseguir, no entanto, apagar o entrecho autobiogratico articulado pelo conjunto do livro. O narrador coloca em cena conteiidos ¢ discursos diversos ¢ dispersos que, no entanto, acabam por compor uma constelagtio sugestiva. Fragmento apés fragmento. delineia-se a figura de um homem que recorda 0 passado e ja n&io mais se reconhece nele. tetomando-se sob uma dtica distanciada e consciente das circunstancias. Por conta disso, torna-se atento a bizarrice provineiana. A estrita cronologi dos eventos cede vez a uma bricolage de imagens mentais, em consondncia com uma apreensdo fragmentéria ¢ involuntaria dos acontecimentos. Resulta. assim, uma trajetéria conturbada, decadente. cujo desenho do rosto se compée do entrecruzamento de dois tempos: passado e presente. De um lado. a rememoragao promove a retentiva de cenas e contetidos ligados aos anos de outrora: de outro. a natureza das lembrangas ¢ das associagdes esta ligada a uma operagao realizada a posteriori — fixada no momento da escrita Trata-se. pois. de uma visdo acumulativa de duas dimensées temporais, entrelagadas num 6 discurso. criando uma terceira margem para representar o percurso biogrifico, Ao modo de um centro magnético. que atrai a convulsio andrquica das imagens. 0 “eu” resiste enquanto fio condutor. cuja identidade se desvela aos poucos. Chama a atengdo. alids, a alta recorréncia de frases articuladas em torno a primeira pessoa, como um clo a subsistit em meio a dispersto de imagens. Entendido pela otica da linguistica, 0 “eu” resultante de um texto ~produz algo muito singular. que é exclusivamente linguistico: 0 “eu’ se refere ao ato de discurso individual no qual ¢ promunciado. ¢ Ihe designa o locutor” (Benveniste 289). Sob esse ponto de vista, subjetividade e linguagem se equivalem e tornam-se presentes ao leitor pelo ato mesmo das palavras. No caso de Joao Miramar, no entanto, a explosdio dos sentidos é de tal ordem que suscita uma diivida quanto a qualidade do sujeito que emerge das tais memérias. Se. conforme afirma Benveniste (289), “o discurso provoca a emergéncia da subjetividade”. 0 jogo polifonmico das imagens recortadas por Joao Miramar fixa entéo uma identidade desconcertante. que se dé a conhecer aos poucos. Ao rememorar. pergunta-se pela propria identidade e entrega-se a0 método menos cientifico de fazé-lo. memérias que revisitam com frescor a trajetéria percorrida, Para entender melhor esse mecanismo. sera util recorrer as ideias de Henri Bergson em torno do tema, Em seu livro Matéria e memoria, de 1939, apresenta uma sofisticada abordagem filos6fica. inspirada no cientificismo do seu tempo, cujo mérito esté em compreender 0 ato mneménico enquanto um complexo processo de apropriagao do passado e que envolve mediagdes. Ao lado da memoria primeira. voltada para o registro linear dos fatos cotidianos — e submetida. portanto, a cronologia —. 0 fildsofo francés caracteriza outra espécie de reminiscéncia, em que se leva em conta o percurso temporal, mas com o sentido de perceber nele os contrapontos. as variantes ¢ as semelhangas. Nesse caso. o pensamento do presente & que passeia pelo passado e recolhe dele as imagens-lembrangas significativas do vivido, Forma-se assim uma teia de elementos pretéritos, relacionada ao aqui e agora de quem se iembra. Bergson considera ainda que essa scgunda memoragao “nao representa mais 0 nosso passado, mas joga com ele: ¢ se ela merece ainda 0 nome de meméria, no é mais porque conserva as imagens antigas, mas sim porque ela prolonga o seu efeito itil até 0 momento presente” (Bergson 87). E quando a recordagao se toma vizinha da imaginagdo. visto que o ato de rememorar esté intimamente associado ao momento presente, que resgata os contelidos passados. Conforme muda o instante presente, pode haver alteragdo nas lembrangas. Cada imagem, quando isolada. guarda uma intensidade proxima a um ‘clarao” (Bergson 89) e se articula discursivamente com as outras. despertando conexdes novas. associagao de ideias. Bergson enfatiza que esse espirito livre de rememorar. quando ocorre. tem a ver com o estranhamento frente ao caréter pritico da vida. Desperta uma intensidade propria, que repercute a subjetividade vigente no momento da anamnese, Por meio de imagens e fragmentos. o ato mneménico representa uma visdo que envolve nogdes do particular ¢ da totalidade. em simultdneo. (Ora, ao voltarmos a atencdo para a aventura literdria de Oswald, parece-nos que as peripécias de linguagem das Memdrias sentimentais de Jodo Miramar em muito se aproximam da operagio relacionada ao segundo tipo de memoria. A natureza desse fenémeno ajuda a compreender 0 mecanismo encontrado no viés oswaldiano, que apresenta uma imaginagao projetada em dois tempos, Enquanto o passado serve de area de onde séo recolhidas as imagens Jembrangas, o tempo do discurso reorganiza os sinais e formula uma dimensio nova. Dessa maneira. pode incorporar os vineulos esquecidos ou marginais: quanto maior é © estranhamento das associagdes feitas, maior seré a énfase no ato da eserita, como acontece no texto 55 (“Fio de luzes): O vento batia a madrugada como um marido, Mas ela perserutava © escuro teimoso. Uma longe claridade borrou a esquerda na evidéncia lenta de uma linha longa (Memdrias sentimentais de Joao Miramar 62). Entregue ao fluxo de imagens e recordagdes. 0 texto chama a atengo para sie, a0 cabo. expressa_a (in)consciéncia de uma identidade que se di a conhecer — em flagrante delito. Deparamos. portanto. com um Jodo Miramar que tem existéncia predominante no chamado tempo linguistico - ou tempo do discurso, como preferem alguns eriticos. Os simulacros do passado no respondem mais por seu tempo e contexto, tornam presente uma persona resultante de toda aquela trama de acontecimentos ¢ alumbramentos pretéritos. Portanto. ao deixar em aberto o vinculo dos diferentes elementos que aproxima. a linguagem expressa uma vivéncia transcorrida no plano emocional ¢ acena com um memaorialismo de tipo modemo. vale dizer, de escavagéio. O conceito de escavacao esté aqui empregado no sentido proposto por Walter Benjamin num dos fragmentos curtos incluidos no ciclo “Imagens do pensamento™ Sob 0 titulo “Escavando ¢ recordando™. o filésofo sugere que o ato de rememorar niio serve de instrumento para explorar o passado, mas ¢ igual a um “meio onde se deu a vivéncia, assim como a terra ¢ o meio no qual as antigas cidades esto soterradas” (Benjamin 239). Ao escavar reminiscengas por debaixo dos fatos. o sujeito também descobre “as imagens que. desprendidas de todas as conexdes mais primitivas, ficam como preciosidades nos s6brios aposentos de nosso entendimento tardio. igual a bustos na galeria do colecionador™ (Benjamin 239), A metafora dos bustos bem serve ao périplo da criagao oswaldiana. que apresenta uma autobiografia escavada de modo sentimental e recolhe fragmentos de bustos caidos no chao. Para dar vida a esse jogo. Memsrias sentimentais de Jodo Miramar usa e abusa da parataxe, figura de linguagem que permite justapor elementos diversos pot meio de conjungdes ou nfo. sem 0 apoio da subordinagao. Tal expediente intensifica os textos com uma multiplicidade de sentidos. ao mesmo tempo que da forma a uma operacdo 10 errante da rememoragio. Por meio da parataxe. alteram-se os valores dos acontecimentos © desaparece a hierarquia entre os fatos ou entre as coisas, abrindo espago para uma imaginago sem limites. O notivel, porém. € que esse procedimento acaba por configurar uma unidade de tom ¢ de perspectiva pessoal ao conjunto. O efeito acumulativo de elementos ocorre tanto no plano da frase como no andamento de cada entrecho, também agregador de diferengas. Aos poucos. o estranhamento toma-se familiar c a prosa cede vez & poesia. Por certo encontramos nesse livro uma posigao contra o lirismo convencional, avesso as metéforas conhecidas. Oswald esté deliberadamente interessado em obter 0 efeito estético perturbador e, com esse intento. utiliza-se da parataxe para intensificar a sinestesia das imagens. No por acaso, boa parte das frases se entremostra longa ¢ intrineada, quase ilegivel: sfo compostas. porém, da conjungao de pequenas imagens- lembrangas que instauram 0 ritmo da frase e a aura textual. Como aparece. por exemplo, no fragmento 12 (“Cidade de Rimbaud”): “Mamie queria que eu fosse o melhor dos alunos mas na abertura esplanada onde os outros bolavam caia vida do tinir das forjas ¢ dos bondes no recorte de apitos ¢ pregdes” (Memsrias sentimentais de Jodo Miramar 48). A coordenagao discursiva, finalizada com a conjuncao copulativa “e” faz com que elementos distintos do tempo e do espago encontrem um nexo instanténeo, Muitas vezes. 0 texto est composto de uma série de frases em paralelo, resultando numa espiral de significados. Fica o dito pelo no ditto -- como no fragmento 115 (“Glossario brasilico”). que se inicia de maneira estonteante: “O em vez ¢ 0 éramos em cinco do Conde contradangavam com a cintura de charmeuse da Nair pedidora de citronadas, concordando ambos em que mancava 0 Pantico para a alegria ser universal” (Memérias sentimentais de Jodo Miramar 86). Apesat de tratar- se de um rol alucinado de referéncias. sobressai 0 elemento afetivo da incorporagio, proporcionado pelo uso frequente das conjungdes e seus derivativos. Até mesmo os neologismos ajudam a reforgar o impulso gregério da linguagem, como no fragmento 43 (“Aix”): “Albomoz e cafetds de pele ctiprica lureavam no expresso internacional guardanapando suores velhos” (Memdrias sentimentais de Joéo Miramar $9). O estranhamento do adjetivo (turco) ¢ do objeto (guardanapo) transformados em verbo sugerem um desdobramento da atmosfera onirica em que transcorre a meméria, Os elos de associagdo se concebem livres a ponto de se sobreporem as regras da gramdtica e & prépria realidade. O critico alemao Eric Auerbach, em ensaio sobre 0 poema Cangdo de Rolando, formula um raciocinio til para entender a questo. Ele associa o uso da sintaxe paratatica a efeitos de natureza plastica, pois esse recurso dilui uma cena em uma série de pequenas parcelas acidentais e. desse modo, affouxa a relacdo esplicativa entre os “quadros estéticos”. Auerbach ainda sugere que o emprego dessa linguagem esta mais associado ao carater cémico-realista, 20 promover um estilo “que n@o descansa na periodicidade nem nas figuras de tal linguagem. mas no impeto criar de blocos de discurso, independentes e justapostos” (Auerbach 95). Curiosamente. sdo reflexdes i que se aplicam ao experimento de Oswald. Logo, podemos concluir de modo mais incisivo: o livto oswaldiano propde a0 leitor uma espécie de pacto paratdtico no que se refere a linguagem e ao imaginario do protagonista. Coerente com essa proposta. sua escrita nao deseja a dita comunicagdo ¢ sim uma expressdo pura, associativa. a ser complementada durante a Ieitura com a ateng&o ¢ vivéncia de quem 1&. pois muitos sfo os vazios que permanecem em meio a0 correr das palavras. Além disso, a parataxe também promove a simbiose do popular e do erudito, do baixo € do elevado, produzindo uma terceira possibilidade com esse encontro, como aparece no fragmento 41 (“Vaticano”): “Raffaello Sanzio d’ Urbino / Ventania / Muitos lengdes / E rabanadas esportivas de profetas” (Memérias sentimentais de Joao Miramar 41). Versos tipicos da surpresa oswaldiana. Com vistas a superar a hierarquia social das referéncias. a oralidade conjuntiva contamina boa parte das frases e dos textos. transformando-se no fluxo dominante, A visdo miramaring procura igualmente atenuar 0 contraste das imagens referéncias, & medida que o texto as encadeia com naturalidade. Quando faz uso da conversa das ruas e dos saldes. no o faz por fidelidade & fala, mas para acentuar, por via do cémico. 0s maneirismos de outros tempos. A exemplo do que aparece no fragmento 72 (“Sossegadas carambolas”): “O Dr. Pilatos com ohs e ahs emitira a Célia entre duas bananinhas uma opiniao a meu respeito” (Memdrias sentimentais de Jodo Miramar 68). Trata-se, por assim dizer, de uma oralidade que vem acompanhada de maleabilidade e surpresa O mesmo pacto linguistico contribui para evidenciar o espirito distanciado com que Joo Miramar enxerga o passado. Estabelecido no tempo presente. ele dispde de toda a liberdade formal para sugerir ou parodiar o ridiculo de certas situagdes e personagens de outrora. As cenas vividas sio referidas por meio do pretérito simples, mas com maior frequéncia em verbos conjugados no pretérito imperfeito — trago de estilo bastante sintomatico. © protagonista ndo sc furta em revelar a vida pregressa ao sabor dos ventos ¢ transtomos. pois sabe que cresceu em meio 4 trama de habitos e compromissos de uma sociedade provinciana em transformacdo. Transcorridos os anos, ele se pergunta por sua trajetéria e 0 espelho fragmentario da memoria the devolve um retrato complexo, multifacetado e com retoques de sdtira. com énfase na glosa de si mesmo e do meio que o cireunda Esse efeito geral estaria também relacionado & parataxe, se levarmos em conta as consideragoes do critico David Hayman (147) sobre 0 assunto. Em sua opiniao, durante o perfodo inicial da modernidade literria. muitas obras adotaram essa figura de Tinguagem inspiradas por uma “gramatica da insubordinagao”. Tal recurso transparece no Ambito da frase ¢ pode influir na estrutura textual, ao promover a confluéncia de diferentes discursos Em sua opiniao. o emprego desse recurso estaria associado, desde entéo, a uma tendéncia pela descontinuidade e pelo choque irreverente (Hayman 148). O estilo gil da conjungao seria, inclusive, recorrente sobretudo quando se explora o clima farsesco 12 de uma histéria, De certa mancira. é como se o emprego da parataxe tornasse mais, aceilével ao leitor a incorporacdo de passagens incdmodas ou repugnantes. Hayman lembra ainda que nao poucas vezes 0 narrador desse tipo de histéri assume ares de clown, o que Ihe permite a liberdade de embaralhar coisas distintas ou mesmo indigestas. cabendo ao leitor preencher os vazios da narrativa. Ao adotar 0 espirito farsesco, o nerrador faz com que @ sua dose de veneno critico a sociedade circundante se torne igualmente aceitével. E curioso como as conclusdes do critico norte-americano ~ estudioso da obre de James Joyce — igualmente se aplicam ao experimento do escritor brasileiro atestam a sua sintonia vanguardista. Mais curioso ainda se observarmos que Mario de Andrade emprega imagem semelhante ao comentar a aventura do parceiro modernista Antes de caracterizar a alegre destruig4o promovida por Jo’o Miramar, inicia seu artigo com uma confissao: Uma das faculdades que mais admiro em Osvaldo ¢ esse poder certeiro de interessar e divertir. E no claunismo do criador do mito futurista brasileiro hé uma qualidade ainda por destacar: nfo € clown de profissdo, A raridade do bom palhago vem disso. (Batista. Lopez e Lima 219) Com esse comentario, 0 autor de Macunaima queria também ressaltar 0 relativismo moral ¢ social que permeia o livro, submetido a uma vocago clownesca ¢ 36 assim capaz de confrontar a literatice nacional da época. Sob esse Angulo, desarma- se qualquer possibilidade de autobiografia edificante. Como se fosse um boneco de veniriloquo. 0 protagonista deixa registrado um percurso sentimental da cena autobiogrdfica e carrega nas tintas da satira A resultante final, por sua vez. desemboca no riso critico, fator que desestabiliza @ hierarquia de valores, como se viu antes. Riso ~ assunto caro 20 nosso autor. que ja havia experimentado o humor corrosive em Pau Brasil. E agora o faz com a prose, de comicidade evidente e explosiva. a ponto de se tornar uma marca forte da sua personalidade literdria, Ao tratar do assunto, em conferéneia bem posterior. de 1945. Oswald resume sua visio, que talvez seja esclarecedora na caracterizactio final do Joo Miramar que aqui se desenha. Diz ele: “Os fildsofos procuram entio dar a isso [0 riso] um sentido. Dizem que ¢ um complexo de inferioridade que se vinga, O riso se produz diante da pose que fracassa. Schopenhauer diz que o riso sai do contraditério” (Boletim Bibliografico da Biblioteca Publica Municipal de $a0 Paulo 40) Essas afirmagbes serviriam bem para resumir a sagacidade da figura trégico- comica de Jodo Miramar, personagem que um dia teve pose e a foi perdendo aos poucos. ao sabor das pequenas derrotas que surgiram. Mas. essa seria apenas uma hipétese e talvez pessimista demais, sem levar em conta o relativismo do pacto que envolve o estilo miramarino. Na contramio desse juizo. igualmente se pode imaginar o livro sob inspiragio de outro trecho da mesma conferéncia: “A sétira € sempre a defesa individual ou 13 social contra a opressto, o enfatuamento ¢ as usurpagdes de qualquer espécie’ (Boletim Bibliogrifico da Biblioteca Publica Municipal de Sao Paulo 50). Viés possivel de defender. se pensarmos que o espirito satirico do protagonista, pautado pelo fluxo da parataxe ¢ empresta uma vitalidade e inteligéneia extras para retratar a decadéncia de certa sociedade. Qual das duas leituras estaré com a razao? Bem, neste caso. 0 melhor a fazer & seguir o exemplo de Oswald: deixar a questao em aberto... Obras citadas Andrade, Mario de. “Osvaldo de Andrade.” In: Batista, Maria Rossetti; Lopez, Telé Porto Ancona; Lima, Yone Soares de (Org.). Brasil, !° tempo modernista ~ 1917-29, documentagdéo. So Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Sio Paulo (IEB-USP), 1972. [Publicagdo original: Revista do Brasil 27.105 (1924): 26- 32) Andrade, Oswald de. “A sétira na literatura brasileira.” Boletim Bibliogréfico da Biblioteca Publica Municipal de Séo Paula 7 (1945): 39-52. . “Manifesto da poesia Pau-Brasil”. Do Pau-Brasil & antropofagia e as utopias. Rio de janeiro: Civilizagao brasileira. p. 3-10. . Memérias sentimentais de Joao Miramar. Sio Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990, [1* ed,: Sao Paulo: Independéncia, 1924} Auerbach, Eric. “A nomeagao de Rolando como chefe de retaguarda do exército ", Mimesis. Tradugdo de George B. 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