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História,

Saúde
e Doença
no Nordeste do Brasil

Organizadores
Ricardo dos Santos Batista
Azemar dos Santos Soares Júnior
História,
Saúde
e Doença
no Nordeste do Brasil

Organizadores
Ricardo dos Santos Batista
Azemar dos Santos Soares Júnior

Natal, RN
2022
Reitor
José Daniel Diniz
Vice-reitor
Henio Ferreira de Miranda

Diretoria Administrativa da EDUFRN


Maria da Penha Casado Alves (Diretora)
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Conselho Editorial Izabel Souza do Nascimento


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Secretária Adjunta de Educação a Isabel Dillmann Nunes – IMD
Distância Ivan Max Freire de Lacerda – EAJ
Ione Rodrigues Diniz Moraes Jefferson Fernandes Alves – SEDIS
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Coordenadora de Produção de Materiais Lilian Giotto Zaros – CB
Didáticos Marcos Aurélio Felipe – SEDIS
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Gestão do Fluxo Editorial
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(Presidente) José Correia Torres Neto
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Antônio de Pádua dos Santos – CS Diagramação e Projeto gráfico
Célia Maria de Araújo – SEDIS Lucas Almeida Mendonça
Catalogação da publicação na fonte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Secretaria de Educação a Distância

História, Saúde e Doença no Nordeste do Brasil [recurso eletrônico] /


organizado por Ricardo dos Santos Batista e Azemar dos Santos Soares
Júnior. – 1. ed. – Natal: EDUFRN, 2022.
5000 KB; 1 PDF

ISBN nº 978-65-5569-249-5

1. Doenças – História. 2. Saúde – Nordeste Brasileiro. 3. Políticas


Públicas – Saúde. 4. Epidemia – História. 5. Epidemia – Saúde. I. Batista,
Ricardo dos Santos. II. Soares Júnior, Azemar dos Santos.

CDU 614 (812/813)


H673

Elaborada por Edineide da Silva Marques CRB-15/488.


Sumário
Apresentação........................................................ 7

PARTE 1....................................................... 8
Instituições, assistência à saúde,
PERSONAGENS e vetores

Capítulo 1...................................................................... 9
O FEROZ MOSQUITO AFRICANO,
ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE
Gabriel Lopes

Capítulo 2............................................................ 26
INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO
SOBRE A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)
Ricardo dos Santos Batista

Capítulo 3.............................................................44
Os Médicos versus os Mosquitos:
As ações e medidas da Comissão Rockefeller
em Fortaleza- Ceará no começo do XX
Ana Karine Martins Garcia

Capítulo 4............................................................ 62
A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS:
breve trajetória das Misericórdias e a construção
de um modelo assistencial em terras brasileiras
Agostinho Júnior Holanda Coe

Capítulo 5.............................................................87
ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)
Chacauana Araújo dos Santos
PARTE 2......................................................98
As Doenças Têm História

Capítulo 6.............................................................99
DA PESTE DE ATENAS À COVID-19:
TEMA, ABORDAGENS, NARRATIVAS E
FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS
Christiane Maria Cruz de Souza

Capítulo 7........................................................... 123


UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA
Azemar dos Santos Soares Júnior

Capítulo 8........................................................... 145


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”:
IMPRENSA LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)
Jucieldo Ferreira Alexandre

Capítulo 9........................................................... 173


Conselhos do Curandeiro Prático - Para o
Bem da Humanidade: a varíola na Província
da Parahyba nas Décadas de 1870-1890
Serioja R. C. Mariano

Capítulo 10.......................................................... 195


“UMA MÉDICA QUE SE CONTAMINOU PELA VIDA
QUANDO SE DEPAROU COM O HIV NOS CONSULTÓRIOS
E HOSPITAIS EM QUE ATUOU”: MARCIA RACHID E SUA
CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO COMBATE
A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)
Adolfo Veiller Souza Henriques
Eulina Souto Dias

Sobre os Autores.................................................216
Apresentação
O interesse pela saúde e pela doença, em perspectiva histórica, se
ampliou consideravelmente nos últimos quarenta anos. Esse campo,
explorado por historiadores, cientistas sociais, profissionais de saúde
foi alavancado a um lugar de visibilidade, mais recentemente, devido
à pandemia de Covid-19 que começou em janeiro de 2020.
Em meio à pandemia, o I Seminário de História da Saúde e
das Doenças no Nordeste do Brasil, realizado entre 28 e 30 de abril
de 2021, teve como objetivo reunir pesquisadores da área para
fomentar discussões sobre o papel dessa região geográfica nos
estudos brasileiros. Promovido pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, em parceria com a Universidade do Estado da
Bahia, o evento agregou estudantes de graduação, de mestrado
e de doutorado. Professores doutores integraram quatro mesas
de diálogos sobre diferentes temáticas, a partir de uma percep-
ção social das enfermidades. Essa experiência foi importante
porque contribuiu para estabelecer conexões entre pesquisado-
res que, muitas das vezes, tinham interesses em comum e não se
conheciam, ou mesmo não tiveram oportunidade de debater seus
objetos de pesquisa com seus pares.
Este livro é uma pequena contribuição à historiografia,
com versões resumidas de trabalhos apresentados no evento.
Convidamos leitores e leitoras a conhecerem aspectos de histórias
pouco conhecidas e que nos levam à reflexão sobre os caminhos
percorridos pela humanidade no controle de doenças endêmi-
cas e epidêmicas, assim como sobre as vidas de enfermos e dos
profissionais que tentaram amenizar suas dores. Além disso, refle-
te-se sobre o papel de vetores de transmissão de enfermidades
e a relação que estabelecemos com os outros seres que formam
aquilo que chamamos de natureza.
Salvador e Natal,
14 de fevereiro de 2022.
Os organizadores
PARTE 1
Instituições, assistência à saúde,
PERSONAGENS e vetores
Capítulo 1
O FEROZ MOSQUITO
AFRICANO, ARBOVIROSES
E O TEMPO PRESENTE
Gabriel Lopes

Durante essa semana de discussões no I Seminário de História


da Saúde e das Doenças no Nordeste do Brasil, tive o privilégio
de encontrar colegas e professores e um grupo bastante unido.
Fiquei animado pela qualidade das discussões e por ver um grande
avanço nos debates relacionadas aos espaços e à história. Para
mim, um bom indicativo que antecipa a qualidade da discussão
histórica em um encontro é a empolgação e a inquietação dos
participantes nas falas e nas perguntas, bem como a capacidade
de arguição positiva, que desafia e provoca de maneira sincera,
buscando o avanço dos tópicos.
Pretendo retomar algumas discussões sobre história da
saúde a partir de pesquisas e reflexões que realizei, trabalhos
parcialmente concluídos ou que estão tomando forma e que atra-
vessam as questões entre o local e o global. Trechos que acredito
serem úteis para dar continuidade aos debates desta semana e,
se possível, dar alguma contribuição para estudos futuros. Este
é o caso da chegada do mosquito Anopheles gambiae em Natal
no início dos anos de 1930, com o aumento da eficiência dos
transportes transatlânticos. A constatação de que as doenças
poderiam ser transmitidas por mosquitos no final do século XIX
O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

e início do século XX é, assim como a consolidação dos pressupos-


tos pasteurianos, um marco nas ciências biomédicas. Como parte
final dessas explorações, gostaria de abordar alguns elementos
históricos do Aedes aegypti e os desafios que o mesmo representa
enquanto objeto histórico do tempo presente.

Avisos, aviões e o feroz


mosquito africano

No ano de 1942 em suas Notas para a Epidemiologia de


Natal, Câmara Cascudo narrou “em traços gerais, as reportagens
fiéis das visitas que nos fez, atravez dos anos, sua magestade a
Morte soberana...”. Trata-se de uma retrospectiva dramática,
intercalada com passagens irônicas, sobre a marcha das epide-
mias e a recorrência das endemias em Natal. Apesar de seu texto
ser uma pequena coluna denominada Acta diurna, publicada no
jornal A República, Cascudo segue uma grande trilha de mortos.
O percurso das Notas tem início com a epidemia de varíola em
1809, passando pelo que ficou conhecido como o “ano do cólera”
(1856) que “ceifou duzentas mil vidas” e pela “influenza espanhola
em 1918”, que “abriu claros na população espavorida”. Cascudo
finaliza seu percurso com o “recente surto paludico, acrescido
pela presença do gambiae, mosquitinho bonito que saltou d ́Africa
para espalhar o desespero [...]” (CASCUDO, 1942, p. 13).
O caso do “mosquitinho bonito” mencionado por Cascudo
é exemplar para mostrar como o transporte transcontinental
moderno trouxe uma temida espécie de mosquito africano para
a capital do Rio Grande do Norte em 1930. Esse mosquito muito
provavelmente chegou por um aviso, um navio rápido que fazia a
travessia de Dacar, a capital do Senegal, para Natal. O serviço de

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

correio que fazia essa comunicação entre a Europa e a América


do Sul com os avisos foi inaugurado em 1928 e seu trajeto de
Dacar para Natal demorava cerca de quatro dias. Esses incremen-
tos, tanto nas novas rotas dos navios rápidos quanto na aviação,
abriram caminhos para a importação de mosquitos encontra-
dos em outros continentes. A iniciativa da Compagnie Géneréle
Aéropostale foi fundamental para estabelecer as novas rotas e,
em meados dos anos de 1920, uma missão francesa chegou ao
Brasil para estabelecer as rotas aéreas e instalar uma rede de
aeroportos. A primeira rota seria entre Rio de Janeiro e Buenos
Aires, e posteriormente entre Rio e Natal para, dessa forma, fazer
a ligação com uma rota já estabelecida entre Europa e África.
As primeiras décadas do século XX foram marcadas como
os anos iniciais da aviação de longa distância, a rota Natal-Dacar
passou a ser uma conexão fundamental nas rotas entre Europa
e América do Sul, via África. É importante destacar que o perigo
da importação transcontinental de vetores de doenças, espe-
cialmente para Natal, não passou desapercebido. Adolpho Lutz1,
do Instituto Oswaldo Cruz, visitou Natal em 1928 para fazer
orientações sobre a construção de um leprosário e comunicou
a Lamartine de Faria sua inquietação sobre a possível importa-
ção de vetores de doenças vindos da África (BRITTO et al, 1994;
BENCHIMOL; SÁ, 2006).

1 Adolpho Lutz (1855-1940). A partir de um convite formalizado pelo próprio


Oswaldo Cruz, em 1o de novembro de 1908, aos 53 anos, Adolpho Lutz
tornou-se chefe de serviço do Instituto Oswaldo Cruz, tendo permanecido na
instituição até o ano do seu falecimento. Lutz é reconhecido nos campos da
bacteriologia, parasitologia e epidemiologia, entre outros, e ganhou notorie-
dade pelos seus estudos de entomologia médica sendo considerado um dos
fundadores desse campo (BENCHIMOL, SÁ, 2006, p. 58).

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

Em 1928, ano em que Adolpho Lutz esteve em Natal,


Lamartine de Faria, provavelmente estimulado pelas expectati-
vas de desenvolvimento das rotas aéreas na cidade, fundou o
Aeroclube da capital do Rio Grande do Norte. Lamartine pode
ser descrito, como sugere a historiografia ligada à moderniza-
ção da cidade de Natal, como um “homem em harmonia com as
mudanças de seu tempo, vestia-se elegantemente, era amante
dos esportes, mostrava-se fascinado por aviação” (ANDRADE,
2009, p. 62-63).
A chegada do mosquito africano possibilitou a ida de César
Pinto para o Rio Grande do Norte. O cientista do Instituto Oswaldo
Cruz estabeleceu um laboratório em Natal na iniciativa do Serviço
de Obras Contra a Malária em 1939. Buscando rastrear os cami-
nhos percorridos pelo A. gambiae, Pinto apontou para o fato de
que o primeiro voo de ensaio da aviação francesa ligou Dacar a
Natal, foi realizado nos dias 12 e 13 de março de 1930 no hidroa-
vião Comte de la Vaux. Pilotado por Mermoz, Dabry e Gimié, o
voo durou aproximadamente vinte horas, saindo de São Luiz do
Senegal e chegando na cidade de Natal no estado do Rio Grande
do Norte (PINTO, 1939).
A chegada do A. gambiae está diretamente relacionada ao
desenvolvimento dos transportes transatlânticos e as hipóteses
sobre os condicionantes de sua chegada começaram a ser feitas
ainda em 1930. O governador Juvenal Lamartine de Faria, em seu
relato anual formal sobre o estado de saúde do Rio Grande do
Norte destinado ao governo federal, apontou a causa dos recen-
tes problemas de saúde da população de Natal, no ano de 1930,
a partir de um informe científico. No relato de Faria o aumento
dos casos de malária é objeto central das suas preocupações.
De maneira bastante específica, explorando aspectos técnicos
da entomologia médica, Faria coloca o mosquito vindo de Dacar

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

como o principal elemento da sua narrativa sobre a causa do


aumento dos casos de malária, e trabalha sobre dados de periódi-
cos científicos recentes, bem como aponta as vulnerabilidades da
localização da cidade de Natal em relação à chegada do mosquito
invasor (LOPES, 2019).
A malária transmitida pelo Anopheles gambiae atingiu Natal
com grande força. Segundo relatos de Juvenal Lamartine de Faria,
mesmo a malária já sendo endêmica na capital do Rio Grande
do Norte, o quadro de saúde pública com a chegada do mosqui-
to tinha “uma feição nova e alarmante, mesmo para os clínicos
mais antigos da nossa terra” (FARIA, 1930, p. 71). Com ajuda do
Serviço Cooperativo de Febre Amarela da Fundação Rockefeller, o
mosquito africano foi expulso de Natal em 1932. Porém, com falta
de atenção a esse vetor pelos poderes públicos e a priorização do
combate à febre amarela, o mesmo se espalhou pelos estados do
Rio Grande do Norte e Ceará. Esse alastramento silencioso levou
a uma grande epidemia de malária em 1938, que atingiu especial-
mente o Vale do Jaguaribe no Ceará. Após esforços do governo
brasileiro na instituição do Serviço de Malária do Nordeste em
conjunto com a Fundação Rockefeller, o Anopheles gambiae foi
exterminado do Brasil em 1940. Os diversos revezes e contro-
vérsias da operação de erradicação desse mosquito repercutem
até hoje, especialmente no que diz respeito à falta de atuação
dos poderes públicos sobre a presença deste mosquito em terri-
tório nacional e a institucionalização do Serviço de Malária do
Nordeste. A chegada desse mosquito também estimulou diversos
estudos sobre a questão do transporte de mosquitos na aviação
e impulsionou medidas a respeito da legislação sanitária de aero-
portos e nesse sentido, a modernização dos mesmos frente às
novas ameaças transcontinentais (LOPES, 2020).

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

O presente das arboviroses


e o Aedes aegypti

A presença do que é definido como febre amarela, uma


doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, está em regis-
tros históricos desde o século XVIII, porém essa doença apenas se
tornou um problema de saúde pública em meados do século XIX,
tornando-se uma grande questão sanitária nacional. É importante
observar que até o final do século XIX a febre amarela não estava
relacionada à atuação do mosquito, mas se pautava nos pres-
supostos miasmáticos, que estabeleciam uma relação bastante
forte com a noção de miasmas e lugares impuros. É importante
enfatizar que ideia de lugar corrompido pelos miasmas impul-
sionou a própria ideia de necessidade de saneamento e reforma
dos espaços urbanos a partir de novas sensibilidades sobre as
condições de vida da população. Ao final do século XVIII, com o
crescimento populacional das cidades, e os novos condicionantes
da vida urbana, os higienistas passaram a relacionar as doenças
diretamente a fatores do meio. Da mesma forma, também arti-
cularam sua ocorrência de doenças a determinados comporta-
mentos e práticas, que, por sua vez, deveriam ser regulamentados
pelo Estado. Esses regulamentos coletivos visavam a manutenção
da integridade do espaço público segundo as normas de higiene,
remetendo aos pressupostos do policiamento médico.
Com o início do século XX e a consolidação dos pressupostos
que afirmaram o papel fundamental do Aedes aegypti (inicialmente
denominado Stegomyia fasciata) como vetor de doenças, a histo-
riografia enquadrou essa espécie como um problema a partir das
enfermidades transmitidas e da gravidade das mesmas para a saúde
pública. Durante o século XX, já reconhecidamente um vetor para
a febre amarela, essa espécie ganhou grande visibilidade, uma vez

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

que, desde meados do século XIX, a febre amarela já era reconhe-


cidamente um problema de saúde pública no Brasil.
A estratégia geral para combater a contaminação pelos
mosquitos no início do século XX foi sintetizada em Prophylaxie du
paludisme, de Laveran (1903), que basicamente consistia em evitar
que o doente contaminasse o mosquito e que esse vetor, por sua
vez, transmitisse o parasita para as pessoas saudáveis. No entanto,
os princípios gerais consolidados nesse período foram adaptados
conforme as dificuldades locais de diversos episódios. Carlos Chagas
por exemplo, advogava “adaptar as regras profiláticas às condições
locais da experiência” (BENCHIMOL; SILVA, 2008, p. 728.)
A abordagem geral se dividia em “métodos defensivos”, que
consistiam em barreiras físicas contra a picada dos mosquitos com o
uso de telas, cortinados e diversas formas de proteção que visavam
impedir o contato direto entre o indivíduo e o vetor em poten-
cial. Os “métodos ofensivos” consideravam o ataque aos vetores,
buscando a eliminação dos mesmos em uma dada área, seja em
campo aberto ou nas habitações. O ataque aos mosquitos nas habi-
tações foi privilegiado nos métodos propostos por Carlos Chagas.
As doenças transmitidas por mosquitos tornaram-se
questões políticas centrais na história do Brasil, especialmente
na medida em que se colocaram como barreira em projetos de
integração nacional e desenvolvimento econômico. Um exem-
plo são os problemas enfrentados na construção da Hidrelétrica
de Itatinga, que apesar de ter sido concluída em 1910, teve suas
obras quase paralisadas e o trabalho de três mil trabalhadores
interrompidos devido à epidemia de malária. O caso de Itatinga
mostrou a Carlos Chagas a ineficiência do método defensivo indi-
vidual, sendo necessário recolher os trabalhadores ao final do dia,
isolando-os em barracas para evitar a exposição aos mosquitos em
seu período mais ativo. A abordagem de Chagas, bem-sucedida

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

devido à ocorrência de poucos casos ao final de 1905, também


contava com o controle das coleções de água e a administração
de quinino nos trabalhadores.
De maneira geral, o principal desafio encontrado foi de aden-
trar em regiões menos habitadas do Brasil para realizar trabalhos
na construção de estradas de ferro para a integração de regiões
remotas, como no caso da “Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”,
também chamada de “Ferrovia do Diabo”. A estratégia geral adota-
da por Carlos Chagas consistia especialmente no isolamento e quini-
nização, vinculada ao recebimento do salário e bonificações em
meses sem a ocorrência de malária entre os grupos de trabalho,
assim como uma bonificação para trabalhadores que se mantives-
sem saudáveis durante três meses. Havia um sistema organizado de
recompensas e punições associados aos métodos defensivos, tanto
coletivos quanto individuais (BENCHIMOL; SILVA, p. 747).
A aplicação de novos pressupostos frente às doenças,
transmitidas por mosquitos, não pode ser separada dos ideais de
progresso, civilização e modernidade. Os diversos desafios para
a constituição de práticas específicas, tanto ofensivas quanto
defensivas frente a ameaça dos vetores, bem como a engenhosidade
dos pesquisadores “cientistas-sanitaristas” brasileiros no âmbito da
entomologia médica devem ser reconhecidas.
Em meados do século XX, a centralidade e visibilidade do
Aedes aegypti como alvo de ações de saúde pública tornou-se sem
precedentes, pois os desdobramentos do combate à febre amare-
la encaminharam a tentativa de erradicação dessa espécie. Estas
ações resultaram no esforço internacional realizado na Campanha
Continental para a Erradicação do Aedes aegypti, promovida pela
Organização Sanitária Pan-Americana (OSP) em 1947, tendo sido
o papel do DDT fundamental na escala das operações. Em 1958, a
partir do esforço do Serviço Nacional de Febre Amarela, que deu

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

continuidade e aprimorou a eficiente estrutura de trabalho do


Serviço Cooperativo de Febre Amarela da Fundação Rockefeller,
o Aedes aegypti foi declarado erradicado do território nacional.
Aproximadamente uma década depois, reapareceu no Brasil (prova-
velmente reintroduzido por navios vindos da África e EUA), dessa vez
como protagonista da dengue, que se tornou endêmica em diversas
capitais do país (LOPES; SILVA, 2019). A recente notícia de transmis-
são tanto da zika quanto da chicungunya colocaram novamente o
Aedes aegypti como protagonista de problemas de saúde pública
controversos, com continuidades e rupturas na medida em que novos
entrelaçamentos entre os vírus e o vetor se articulam a processos
sócio-políticos em transformação (LOPES; REIS-CASTRO, 2019)
Se a história propõe suas problematizações a partir de ques-
tões atuais, em um diálogo com vestígios do passado, tal reflexão
não pode abandonar as discussões das ciências contemporâneas
ativas nos problemas da atualidade. Como propor a construção de
conhecimentos a partir de elementos do passado se não há um
empenho sobre as questões contemporâneas que são igualmente
exigentes ao trabalho do historiador? Tais questões não são menos
históricas devido a sua contemporaneidade, mas sim, exigem do
historiador uma postura cada vez mais dialógica e transdiscipli-
nar. Nesse sentido, a própria abordagem histórica não buscaria
um passado ultrapassado (como se houvesse algum), mas sim um
diálogo constante e não acabado com um passado que está presen-
te. Uma advertência de Marc Bloch sobre o ofício do historiador,
em sua Apologia da História, deve ser encarada sem reservas: se
“a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do
passado [...] talvez não seja menos vão esgotar-se em compreen-
der o passado se nada se sabe sobre do presente” (BLOCH, 2001,
p. 65). O raciocínio de Bloch pode ser alinhado com a proposta
de Michel Serres, na medida em que é importante considerar nas

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

nossas narrativas, os “saberes contemporâneos que contribuem


para modelar nosso mundo” (SERRES, 2007, p. 177).
Para retomar uma história recente e presente, no ano de
1950 o Serviço Nacional de Febre Amarela (1939), que conti-
nuou as ações do Serviço Cooperativo de Febre Amarela da
Fundação Rockefeller, erradicou o Aedes aegypti no Piauí, Rio
Grande do Norte, Ceará e Sergipe. O Serviço Nacional de Febre
Amarela, ligado ao Departamento Nacional de Saúde tinha em
seu Regulamento, desde 1942, a eliminação completa dessa espé-
cie como objetivo. No início dos anos de 1940, os estados do
Maranhão, Espírito Santo, Goiás, Pará, Santa Catarina, Distrito
Federal e Minas Gerais já tinham sido considerados livres do
Aedes aegypti (BENCHIMOL, 2011, p. 183). Em 1958, o Brasil foi
oficialmente declarado livre do Aedes aegypti, que era ligado de
sobremaneira ao problema de saúde pública representado pela
febre amarela desde o início do século XX.
Em 1967, o Aedes aegypti reapareceu no estado do Pará e
em 1968 também foi encontrado em São Luís (Maranhão). Com o
país despreparado para lidar com o reaparecimento do mosquito,
uma vez que a vigilância se tornou menos rigorosa e o sistema
implementado pela Fundação Rockefeller e mantido pelo Serviço
Nacional de Febre Amarela a partir de 1939, foi, aos poucos, rela-
xando. Em 1980, o Aedes aegypti já estava no Rio de Janeiro e em
Natal, e “estaria presente em 226 municípios seis anos depois, ao
irromper nas manchetes dos jornais como protagonista de um
‘novo’ tipo de epidemia urbana, o dengue” (BENCHIMOL, 2001, p.
380). As reinfestações foram estimuladas pelo crescimento urbano
desordenado, a rápida expansão das viagens nacionais e interna-
cionais, a resistência do mosquito ao DDT, e a lenta resposta ao
alastramento da espécie (BRATHWAITE-DICK et al, 2016).

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

Durante os anos de 1980, o crescimento dos casos de


dengue na América Latina demarcou tensões políticas, mas
também aproximações científicas, como no caso de Brasil e Cuba
no desenvolvimento propostas sanitárias, e discussões entre
especialistas sobre os estudos relacionados às arboviroses e medo
de um possível retorno da febre amarela urbana, as incertezas
em relação aos rumos da epidemia de dengue e possível medo
da febre amarela, também não pode ser separado do contexto
de redemocratização no Brasil, e do amplo debate sobre a imple-
mentação das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) (LOPES;
LARA, 2021). Entre 1980 e 2010 os casos de dengue aumentaram
dramaticamente não apenas no Brasil, mas em países como Costa
Rica, Paraguai, Bolívia, Argentina, México e Nicarágua.
O Aedes aegypti, cada vez mais adaptado às condições de
vida urbana, proliferou e se alastrou pelo Brasil. Em 2010, pela
primeira vez na história do país, o número de casos registrados
esteve acima de um milhão de acometidos. A proliferação do
Aedes aegypti permitiu que a dengue fosse estabelecida como
endemia em diversas capitais brasileiras, e a própria ecologia e
circulação desse mosquito pelas Américas possibilitou a introdu-
ção de doenças inéditas como a zika e a chicungunha.
Com a zika, tivemos pela primeira vez na história a confir-
mação da relação entre um vírus transmitido por uma (ou mais)
espécies mosquito e alterações orgânicas alarmantes: um conjun-
to de sinais e sintomas ainda não totalmente estudados que inclui
microcefalia, síndrome de Guillain-Barré, dilatação dos ventrículos
cerebrais, calcificações intracranianas, problemas visuais e audi-
tivos, atraso no desenvolvimento, crises epiléticas, alterações
musculares, contração das articulações, deformações das mãos,
punhos e joelhos e vários tipos de alterações cerebrais, entre
outras manifestações (LÖWY, 2019).

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O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

Passados não ultrapassados

Estamos falando aqui de passados não ultrapassados, ou


como pode ser dito seguindo uma das abordagens para a história
do tempo presente, “esse meio-termo entre o passado e presen-
te” ou da “contemporaneidade do não contemporâneo […] no
presente do passado incorporado” (DOSSE, 2012, p. 6-7). A atual
pandemia de covid-19 e sua coexistência com problemas sani-
tários e endemias já presentes, como a de dengue por exemplo,
mostra como estamos em meio a passados não ultrapassados,
em que a situação atual torna ainda mais visíveis.
O Aedes aegypti enquanto elemento sempre definido
pela historiografia das ciências e da saúde, pela sua importância
como vetor, merece ser objeto de uma abordagem histórica que
o compreenda não apenas dentro de uma narrativa das doenças,
mas como um objeto histórico autônomo, uma espécie que se
adaptou aos modos de vida urbanos e que, ao se associar a com
seres humanos e diferentes microrganismos, esteve e ainda está
no centro de diversas contingências históricas. Tal espécie está
especialmente enquadrada por problemas de saúde pública ligada
a precariedade de condições de vida, problemas de urbanização
e políticas públicas. Enquadrar historicamente a dinâmica dessa
espécie, sua relação com a entomologia médica e aspectos da
saúde pública é importante, uma vez que evidencia tanto sua
capacidade de adaptação aos modos de vida das populações atin-
gidas, bem como a observação da importância de ações de saúde
pública contínuas.
Na medida em que o Aedes aegypti se associa com dife-
rentes microrganismos e coexiste com seres humanos ao longo
da história, a expectativa do desenvolvimento de novas enfermi-
dades e até mesmo a circulação de novas doenças não se trata

Gabriel Lopes 20
O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

de uma expectativa ilusória. A associação dessa espécie a novas


enfermidades relevantes do ponto de vista da saúde pública,
como a zika e chicungunha, mostra que a historicidade dessa
espécie se entrelaça não apenas com a história da saúde pública,
mas também com a história política, história das ciências e histó-
ria ambiental – uma vez que a reprodução do Aedes aegypti está
irremediavelmente associada ao ritmo das chuvas e temperatu-
ra favorável. É fundamental, portanto, obter um aporte históri-
co que entenda não apenas o efeito final das relações entre as
populações e esse mosquito, que seriam as doenças registradas
pela história da saúde pública, mas também entender a própria
coexistência desse mosquito com os modos de vida das popula-
ções (LOPES; SILVA, 2019). Esses processos históricos não estão
separados de um entendimento mais amplo história da saúde, na
medida em que nos orientamos, em meio à emergência sanitária
atual, para o entendimento das formas pelas quais os modos de
consumo, políticas públicas e mudanças climáticas globais facili-
tam a proliferação de patógenos e vetores.
Em tempos recentes, a ameaça do transporte de vetores
transmissores de doenças, como é o caso do Anopheles stephensi,
um perigoso vetor da malária, chamou a atenção da Organização
Mundial da Saúde. Essa espécie, nativa do Oriente Médio, está se
tornando cada vez mais prevalente no leste africano, especialmen-
te na República do Djibouti, Etiópia e Sudão. Sua movimentação é
temida por ser uma espécie muito bem adaptada ao meio urbano,
o que pode causar grandes problemas à saúde pública da região
se conseguir se estabelecer definitivamente (SINKA et al, 2020)
Diversos passados não estão ultrapassados, e os historia-
dores que trabalham com o espaço estão em uma situação ainda
mais arriscada. Temos que lidar um terreno mais acidentado e
marcado, cheio de artefatos, caminhos, passagens e paisagens

Gabriel Lopes 21
O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

que não são facilmente domesticadas pela linha do tempo. Na


verdade, podemos falar com a historiadora Ewa Domanska, que
boa parte da relevância da história está na sua capacidade de
lidar com objetos desobedientes (DOMANSKA, 2013, p. 1-8),
superar o mundo “dos homens entre eles” e olhar para as coisas
do mundo. Objetos que conformam espaços que transbordam
fronteiras disciplinares e que para perseguí-las devemos assumir
o risco ocupacional das humanidades, que é a ousadia de não se
negar a falar dos objetos estranhos do mundo (HARMAN, 2005).

Gabriel Lopes 22
O FEROZ MOSQUITO AFRICANO, ARBOVIROSES E O TEMPO PRESENTE

Referências

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Gabriel Lopes 25
Capítulo 2
INTERAÇÕES MÉDICAS
E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA
BAHIA (1919-1921)
Ricardo dos Santos Batista

Este texto tem como objetivo analisar interações médicas que


precederam a Reforma Sanitária de 1925, na Bahia, e a atuação
mais intensiva da Fundação Rockefeller no controle da febre amare-
la. O estado solicitou auxílio da agência filantrópica internacional,
com o intuito de tentar obter os mesmos benefícios oferecidos à
Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (FMCSP), mas não
reunia as condições necessárias para o acordo. Logo em seguida,
o ex-bolsista da Fundação Rockefeller, Francisco Borges Vieira, foi
a Salvador com o intuito de confirmar a presença do leptospira
icteroides, defendido pelo bacteriologista japonês Hideyo Noguchi
como causador da febre amarela, mas não teve sucesso.
INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Aproximações

No início do século XX, o médico da Fundação Rockfeller2,


Joseph H. White,3 afirmava que a febre amarela foi trazida da
África para as Pequenas Antilhas pelos espanhóis, em 1547, e que
a doença alcançou Merida, capital de Yucantan, por volta de 1550.
De lá, percorreu gradualmente o Golfo do México e se estabele-
ceu permanentemente em Havana. Mais tarde, invadiu os Estados
Unidos, onde encontrou condições climáticas favoráveis para a
sua permanência em Nova Orleans. Seguindo a linha da conquista
espanhola, se estabeleceu na costa norte da América do Sul e
cruzou o Istmo do Panamá, atingindo a cidade de Guayaquil, no
Equador. Acreditava-se que ela havia chegado ao Brasil por meio
de um veleiro oriundo de Nova Orleans que aportou na Bahia em
1847. A doença também se estabeleceu em outros lugares como
Rio de Janeiro, Pernambuco, Pará e Manaus (WHITE, 1924, p. 1-2).
Entre 1849 e 1850, ocorreu a primeira epidemia de febre
amarela na Bahia, estado em que a amarílica se tornou pratica-
mente endêmica. Em seguida, outros eventos epidêmicos também
se manifestaram, como a varíola e o cólera-morbo. Essa última
epidemia causou medo e pânico na população entre 1855 e 1856,
desorganizou a economia, alterou as relações afetivas e modificou

2 A Fundação Rockefeller foi uma agência filantrópica internacional que agiu


significativamente no desenvolvimento da saúde internacional, especialmen-
te na formação de quadros profissionais e em campanhas de erradicação de
doenças. Cf. Farley (2004).
3 Segundo Magalhães (2016, p. 58), Joseph H. White foi membro do Serviço
de Saúde Pública dos Estados Unidos e, em 1905, foi responsável por uma
campanha bem sucedida de combate à febre amarela em Nova Orleans.

Ricardo dos Santos Batista 27


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

comportamentos seculares como, por exemplo, o enterro nas


igrejas que precisou ser abandonado (DAVID, 1996, p. 15).
Com o intuito de ampliar as ações do Estado no campo
da saúde, e conter eventos epidêmicos ao longo do período
Republicano, ações foram realizadas pelos governadores Severino
Vieira, José Joaquim Seabra e por Antônio Moniz Sodré de Aragão
que, em 1917, centralizou os serviços de saúde e criou a Diretoria
Geral de Saúde Pública da Bahia (DGSPB), subordinada à Secretaria
do Interior, Justiça e Instrução. Entre outras ações, Severino Vieira
instituiu o Regulamento do Serviço Sanitário, que amparava juri-
dicamente e efetivava a criação da Inspetoria Geral de Higiene e
da Seção Demógrafo-sanitária e Seabra reestruturou os serviços
de saúde visando o combate às epidemias: inaugurou o Instituto
Vacinogênico, Anti-rábico e Bacteriológico da Bahia (SOUZA, 2011).
Somente no governo de José Joaquim Seabra (1912-1916)
foi criado um serviço específico de profilaxia da febre amarela,
que inicialmente não tinha caráter permanente. Essa experiência
anterior garantiu autonomia a Bahia quando as comissões vincula-
das à Diretoria Geral de Saúde Pública, por meio do Ministério da
Justiça e Negócios Interiores, foram enviadas para gerir as ações
de controle da doença nos estados do Norte4, com o intuito de
erradicá-la. Na divisão das atribuições, a parte técnica e científica
ficou nas mãos do médico Francisco Soares de Senna, médico
subordinado à DGSPB que, naquele momento, exercia a chefia
do serviço no estado; e a administração esteve sob a responsa-
bilidade de um servidor federal, na época, o médico Curiacio de
Azevedo (BATISTA; SOUZA, 2020).
No ano de 1919, as quatro principais medidas adotadas para
o enfrentamento da amarílica foram o isolamento, o expurgo, a

4 Ao longo da década de 1920, o Nordeste era conhecido como Norte.

Ricardo dos Santos Batista 28


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

notificação realizada pela vigilância sanitária e a atuação da polícia


de foco. Foram notificados 218 casos de febre amarela na Bahia.
Desses, 186 foram isolados, 22 não necessitaram de isolamento,
pois foram informados após o período perigoso da moléstia, e 10
vieram a óbito (SENNA, 1920, p. 41). Em relação ao expurgo, era
considerado o principal meio de profilaxia da amarílica, sendo
que, a partir de 1914, os vapores de creolina foram substituídos
pelos sulfurosos, desenvolvidos com emprego dos vapores de
pyrethro (Figuras 1 e 2).5
A vigilância sanitária também tinha um papel relevante. Era
realizada pelos inspetores sanitários, dentro dos seus respectivos
distritos que, em Salvador, eram cinco. Porém, em 1919, foram
transformados em nove.

5 Esse tipo de inseticida era elaborado a partir de flores secas e possuía baixa
toxidade para os seres humanos.

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INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Figuras 1 e 2 – Expurgos.
Fonte: Senna (1920).

A polícia de focos (Figuras 3 e 4) realizava visitas em casas,


terrenos, valas e até mesmo no Porto de Salvador, que estava sob
a responsabilidade do Serviço Marítimo, coordenado naquele
momento pelo médico Fernando Soledade (SENNA, 1920, p. 43-44).

Ricardo dos Santos Batista 30


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Figuras 3 e 4 – Turmas da Polícia de Focos


Fonte: Senna (1920).

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INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Nas inspeções das residências, os guardas desse serviço


lavavam os cacos de plantas, pois, segundo Francisco Soares de
Senna, “[...] o largo uso entre nós, destes pequenos cacos com
água, como proteção ás plantas contra as formigas, representa
um dos empecilhos a se vencer no serviço, por isso que elles cons-
tituem a maioria dos fócos encontrados” (SENNA, 1920, p. 44). O
médico também se queixava da dificuldade dos funcionários do
Serviço da Febre Amarela em intimar proprietários e inquilinos
para a execução de quaisquer medidas, visto que a legislação
atribuía essa responsabilidade apenas aos inspetores; da exis-
tência de barris e tinas que serviam como reservatório de água
especialmente para a população mais pobre, cujas habitações não
eram servidas pelo abastecimento de água; e da falta de rede de
esgotos, o que estagnava as águas que corriam junto aos materiais
fecais em terrenos nos quais eram despejados.
O acúmulo de água era uma preocupação notável entre
médicos e guardas sanitários que tentavam erradicar o stegomy-
ia faciata, nome atribuído ao mosquito Aedes aegypti por algum
tempo.6 Eles identificavam os diferentes locais, dentro e fora das
habitações, em que os insetos podiam encontrar abrigo, embora
considerassem que as valas públicas não eram o seu local preferido,
pois eles teriam “hábitos caseiros”. Simultâneo à adoção dessas
medidas, as autoridades sanitárias da Bahia discutiam as condições
para firmar a sua primeira cooperação com a Fundação Rockefeller.
Antes que o IHB iniciasse suas atividades no Brasil, foram
estabelecidos acordos com os governos de alguns estados brasi-
leiros. Aqueles que desejassem realizar campanhas sanitárias
deveriam formalizar um convite à agência internacional. O acor-
do proposto para desenvolver pesquisas científicas e campanhas

6 Para mais informações, ver Ilana Löwy (2006, p. 34).

Ricardo dos Santos Batista 32


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

sanitárias no país deveria contar com, pelo menos, 25% das


despesas pagas pelo governo do estado contratante e o restan-
te seria de responsabilidade do IHB. Além disso, uma Comissão
Médica era enviada aos estados para coletar informações sobre
prevalência, distribuição, diagnóstico, tratamento e importância
econômica das doenças, assim como pessoal qualificado e equipa-
mentos científicos, instalação de postos de combate às endemias.
Finalmente, profissionais brasileiros eram treinados a partir dos
métodos desenvolvidos pela Fundação (FARIA, 1995, p. 119).
Em 7 de dezembro de 1918, o Dr. Gonçalo Moniz de Aragão,
Diretor de Saúde Pública do Governo de José Joaquim Seabra, enviou
uma correspondência para Wickliffe Rose e solicitou um acordo:

Conhecendo os nobres e humanitários intuitos da benemérita


“Fundação Rockefeller”, sob a vossa sabia direção, de entender
a outras localidades do Brasil o serviço de combate às vermi-
noses e outras medidas de saneamento rural, o qual [...] já foi
estabelecido no Rio de Janeiro, onde tem funcionado com
excelentes resultados, e desejando o Governo do Estado da
Bahia empreender no respectivo território a mesma campanha,
tenho a satisfação de convidar-vos a determinar a organização
aqui, do respectivo serviço, em condições análogas às dos quais
tendes instalado em outros lugares (ARAGÃO, 1918).

Gonçalo Moniz era professor da FMB e, naquele momento,


já gozava de prestígio entre as elites médicas baianas, reconhecido
como expoente na medicina baseada no conhecimento etiológico

Ricardo dos Santos Batista 33


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

de base experimental.7 Ele compreendia a importância que um


acordo dessa natureza poderia trazer para o estado, pela credi-
bilidade da instituição filantrópica, pelo investimento financeiro
que seria realizado e pela adoção de novas técnicas desenvolvidas
e divulgadas por norte-americanos.
Contudo, a Bahia foi assolada pela gripe “espanhola” e, logo
em seguida, pela varíola, entre 1918 e 1919, o que impossibili-
tou a oferta de uma contrapartida baiana imediata, no acordo
que se desejava realizar. As negociações continuaram e Lewis
Hackett,8 diretor associado regional da Fundação Rockefeller no
Brasil entre 1916 e 1923, enviou, ao escritório de Nova Iorque, o
convite para que o IHB organizasse o trabalho da febre amarela
na Bahia. Wickliffe Rose, no entanto, afirmou que as atividades só
poderiam ser iniciadas quando houvesse um homem do staff da
Rockefeller disponível para aquele projeto, protocolo que deve-
ria ser seguido também em outros acordos: “eu considero isso
um procedimento sólido, nos permite olhar para o futuro para
fazer planos definitivos” (ROSE, 1919). Dessa forma, a Fundação
Rockefeller só chegou à Bahia em outubro de 1920, para realizar
ações contra a ancilostomíase (PONTES, 2007, p. 83).

7 Gonçalo Moniz (1870-1939) ingressou como professor na Faculdade de


Medicina da Bahia em 1895, com uma tese de concurso intitulada Da imunidade
mórbida (Estudo Geral) e inaugurou carreira voltada para estudos no campo
da microbiologia. Em 1899, montou e dirigiu o gabinete de análises e Pesquisa
Bacteriológica da Bahia e ocupou a Secretaria do Interior, Justiça e Instrução
Pública de 1916 a 1920 (Souza, 2009, p. 127-128).
8 Lewis Hackett foi um dos principais oficiais de campo da IHD. Se formou na
Harvard School em 1912 e um ano depois tornou-se doutor em saúde pública.
Trabalhou na América Central antes de assumir o programa brasileiros em 1916
(Farley, 2004, p. 18).

Ricardo dos Santos Batista 34


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Interações médicas: São Paulo, Bahia


e o Leptospira Icteroides de Noguchi

Muitos casos de febre amarela ocorreram no Nordeste, no


início da década de 1920. Em abril de 1921, foram relatados na
Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Norte. No primeiro
estado, a cidade de Jequié foi investigada por um oficial federal
que diagnosticou seis casos. No segundo, Fred Soper relatou que
dois padres holandeses morreram em Porto Calvo e um terceiro
demonstrou sintomas da amarílica, mas, como não havia médi-
co, nenhum diagnóstico foi realizado. Além disso, havia muitos
mosquitos em Recife e, caso a doença fosse introduzida na cidade,
o médico afirmava que não haveria como detê-la. Já em Natal,
foram informados apenas dois casos (HACKETT, 1923).
Após a repercussão da incidência da amarílica pela impren-
sa soteropolitana, em uma denúncia de que havia cerca de 300 a
400 casos de doentes em pequenas cidades do interior, o médi-
co paulista Francisco Borges Vieira, ex-bolsista da Fundação
Rockefeller, foi convidado para visitar a Bahia. A sua formação
no exterior enquanto estudante foi marcada pela perspectiva da
Fundação Rockefeller, a partir do Relatório Flexner, que defen-
dia cursos de medicina com menor número de alunos nas salas
e uma formação em tempo integral, entre outros aspectos. Ele
chegou em Nova Iorque em 23 de março de 1918, aos 30 anos,
e seguiu para estudar na escola de Higiene e Saúde Pública de
Baltimore, com o intuito de retornar ao país e trabalhar com
Geraldo Horácio de Paula Souza no Departamento de Higiene da
FMCSP. Obteve avanço rápido nas primeiras atividades realizadas,
deixou Baltimore em junho de 1918 para estudar no Mt. Propest
Laboratory, no Brooklin, visitou uma série de outras instituições
de saúde pública nos e formou-se Doutor em Saúde Pública. No

Ricardo dos Santos Batista 35


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

verão de 1920, trabalhou com Hideyo Noguchi durante três meses


no Rockefeller Institute, na tentativa de isolar um organismo deno-
minado Lectospira Icteroides (BORGES VIEIRA, [19-].). Noguchi
considerava que aquele era o agente causador da febre amarela
e que o teria descoberto em uma viagem ao Equador, em 1918
(BENCHIMOL et al, 2009, p. 190-201).
De volta ao Brasil, Borges Vieira trouxe consigo tanto o soro
para o tratamento da doença quanto uma vacina para aplicação
profilática. Em 23 de abril de 1921, o médico Wilson Smillie, do
Instituto de Higiene de São Paulo (IHSP), escreveu para Wickliffe
Rose e informou que, diante da incidência de casos de febre
amarela na Bahia, a instituição recebeu um convite para enviar
Borges Vieira para desenvolver um estudo sobre a enfermidade.
Ele considerava que o ex-bolsista da Fundação Rockefeller poderia
realizar um grande serviço para os estudos sobre a febre amarela
no Brasil, que se somaria ao prestígio da instituição paulista. Para
isso, conseguiu dois meses de licença das atividades de Borges
Vieira na FMCSP, sendo que o médico, naquele momento, já esta-
va a caminho da Bahia (SMILIE, 1921).
O trabalho de pesquisa desenvolvido por Noguchi e a espi-
roqueta que afirmava ter encontrado eram objetos de expectativa
da Fundação Rockefeller. A comprovação da existência daquele
organismo, em um estado no qual a febre amarela era endêmica,
por um ex-bolsista da agência internacional que havia trabalhado
com o próprio japonês, funcionaria como uma evidência da exce-
lência do IHB no trabalho de pesquisa e erradicação da enfermi-
dade. Rose afirmava, além disso, que:

Na nossa luta contra a febre amarela, no entanto, nós depen-


demos da vacina para a proteção dos indivíduos expostos e
dependemos da luta dos mosquitos para o controle da infecção

Ricardo dos Santos Batista 36


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

em uma comunidade. Esta é uma oportunidade incomum para


o Doutor Borges e eu espero que ele consiga obter resultados
interessantes na Bahia (ROSE, 1921).

No mês de junho, no entanto, a Secretária do escritório da


Rockefeller em Nova Iorque, Miss Read, conferiu em seus regis-
tros e descobriu que uma pequena quantidade de vacina e de
soro, destinada apenas ao uso em laboratório, seguiu com Borges
Vieira. Em vista do grande número de casos de febre amarela na
Bahia, se comprometeu lhe enviar uma quantidade suficiente de
vacina (para 2500 pessoas) e de soro (para 100 pessoas).
A remessa foi enviada ao Diretor de Saúde da Bahia porque,
para a agência internacional, era habitual centralizar a distribui-
ção da vacina nos departamentos governamentais de saúde, com
o intuito de evitar favoritismos pessoais. Eles eram oficialmente
responsáveis pela distribuição e a quem também deveriam ser
feitos os pedidos de particulares e empresas. Junto com esse
material seguiu um formulário com espaços em branco nos quais
deveriam ser registradas informações que Noguchi desejava sobre
o caso de cada pessoa que recebia a vacina ou o soro (READ, 1921).
A ação desenvolvida pelo médico de São Paulo colocava
diferentes instituições e departamentos em conexão: o escritó-
rio da Fundação Rockefeller em Nova Iorque, o laboratório de
Noguchi no Rockefeller Institute, o IHSP e a DGSPB, em uma rede
de interação médica que se mobilizava para tentar isolar o agen-
te transmissor da febre amarela. Embora as providências para o
envio do material tivessem sido tomadas, Borges Vieira informou
que, ao chegar na Bahia, a epidemia estava praticamente no fim.
Além disso, dificuldades alfandegárias impediram que a remessa
chegasse a tempo com o material.

Ricardo dos Santos Batista 37


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Não serão retomados aqui os detalhes da investigação reali-


zada nessa viagem, devidamente estudada por Benchimol et al
(2009, p. 220-228). Interessa, no entanto, conhecer os motivos
expressados por Borges Vieira para aceitar esse convite. No rela-
tório de viagem enviado ao médico japonês, nos Estados Unidos,
o médico paulista afirmou que, com a presença da febre amarela
na Bahia entre 1919 e 1920, duas comissões do IOC visitaram o
estado e falharam no isolamento do suposto agente etiológico.
A última parte do trabalho dessas comissões foi realizado após a
publicação da técnica utilizada pelo bacteriologista na descoberta
do suposto agente etiológico da amarílica e dos métodos usados
na epidemia de Guayaquil, em 1918. Pelo fato de já ter trabalha-
do com culturas de leptospira no laboratório de Noguchi e com
novas informações científicas divulgadas sobre aquele organismo,
Borges Vieira considerava ser capaz de confirmar a descoberta
anunciada por Noguchi (VIEIRA, [19-], p. 1). Mas, embora tenha
levado consigo materiais, como pilhas secas, soluções animais,
artigos de vidro e um pequeno esterilizador a vapor, não conse-
guiu atingir o objetivo almejado após três meses de investigação.
Ainda assim, o Instituto de Higiene acreditava que o médi-
co poderia continuar o trabalho na Bahia e, para isso, diagnosti-
cou duas necessidades a serem atendidas: a primeira delas era o
recebimento de uma variedade de porcos da guiné dos Estados
Unidos, pois considerava que os porcos da guiné sul-americanos
eram resistentes ao “leptospira da febre amarela”, como Noguchi
também constatou no Peru. A segunda solicitação era relativa ao
recebimento de culturas de várias cepas de leptospira de febre
amarela e uma ou duas cepas de febre icterohemorrágica. Wilson
Smillie se propunha a escrever para Noguchi e solicitar esse mate-
rial, que deveria ser enviado pela primeira pessoa que partisse
dos Estados Unidos para o Brasil (SMILIE, [19-]).

Ricardo dos Santos Batista 38


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

Há indícios ainda de que, na viagem de Borges Vieira, a


interação entre baianos e paulistas não foi tranquila. Smillie escre-
veu para Rose, assim que o médico retornou para o IHSP, e fez
críticas ao governo local. Ao descrever o quadro epidêmico do
estado para o qual havia viajado, afirmou que o Governo “estava
extremamente ansioso para que a doença não fosse chamada de
febre amarela e a manteve escondida por mais de cinco meses,
quando um ou dois médicos da zona revoltaram-se e publica-
ram sua crença em um dos jornais da Bahia” (SMILIE, 1921). Além
disso, afirmou que Borges Vieira chegou no final da epidemia e
“encontrou autoridades não receptivas”.
É possível que, devido às implicações políticas, econômicas
e sociais provenientes de uma epidemia, as autoridades baianas
tivessem resistência em assumir que a febre amarela grassava
em seu território. Souza (2009, p. 91), por exemplo, apresentou
os conflitos presentes na imprensa soteropolitana, na epidemia
de gripe “espanhola”, pois os governistas e os jornais que os
defendiam buscavam convencer a opinião pública de que a Capital
estava livre da enfermidade.
Com a criação do Departamento Nacional de Saúde
Pública (DNSP) e os acordos que foram realizados com os esta-
dos, para cooperação técnica no enfrentamento de enfermidades
(HOCHMAN, 1993), resguardando os princípios do federalismo,
foi firmada uma parceria entre a Bahia e a União, em 15 de abril
de 1921, para a realização do saneamento rural, combate a sífilis
e doenças venéreas, luta antituberculosa e higiene infantil. Em 29
de fevereiro de 1924, o contrato foi renovado por mais cinco anos.
Até o final daquele ano, o custeio das atividades sanitárias no esta-
do foi realizado exclusivamente pelo Governo Federal e a Bahia
deveria amortizar o débito que havia contraído com a União em
dez prestações anuais (BARRETO, 1927, p. 175). O acordo precisou

Ricardo dos Santos Batista 39


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

ser revisto, em 21 de março de 1925, por um termo aditivo que,


entre outras questões, obrigava a Bahia a promover a aceitação,
por parte dos municípios, de todas as leis sanitárias, instruções
técnicas e administrativas e demais disposições do DNSP, referen-
tes aos serviços sanitários que fossem executados pelo período de
três anos, sem intervenção de qualquer autoridade estadual ou
municipal.9 O representante federal escolhido para coordenar os
serviços no estado foi o médico Sebastião Barroso que, especial-
mente a partir de 1923, teve problemas graves com a Fundação
Rockefeller e seus métodos de combate à febre amarela.10

9 A cláusula décima quinta definia que os serviços de Higiene Infantil e de


Profilaxia da Tuberculose seriam custeados integralmente pela União.
10 Para mais informações sobre a trajetória acadêmica, profissional e política
do médico, cf. Rocha (2017).

Ricardo dos Santos Batista 40


INTERAÇÕES MÉDICAS E CONHECIMENTO SOBRE
A FEBRE AMARELA NA BAHIA (1919-1921)

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Ricardo dos Santos Batista 43


Capítulo 3
Os Médicos versus os
Mosquitos: As ações e
medidas da Comissão
Rockefeller em Fortaleza-
Ceará no começo do XX
Ana Karine Martins Garcia

A cidade de Fortaleza, nos meados do século XIX e começo do XX,


constituiu-se num importante centro comercial de entrada e saída
de produtos para a Europa e outras cidades brasileiras, sobretudo
após a ascensão do algodão nos anos de 1870. De certa forma, esse
desenvolvimento comercial contribuiu para algumas das mudanças
ocorridas na estrutura física e social de Fortaleza neste período.
No final do século XIX e início do XX, Fortaleza passou por signifi-
cativas transformações na organização da saúde pública. Observou-se
que, apesar da intensa divulgação dos novos conceitos médicos de
tratamento desenvolvidos na Europa, houve a permanência de alguns
preceitos da ciência que vinham sendo usados ao longo do século XVIII
e XIX, assim como também os da medicina popular e da Igreja Católica
que também influenciavam no modo de ver e tratar as doenças.
Os estudos da microbiologia, desenvolvidos por Louis
Pasteur a partir da segunda metade do século XIX, possibilitaram
o aparecimento de novas formas de tratamentos para as doenças
e, sobretudo, um aprofundamento dos estudos científicos sobre
Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

o contágio e a transmissão das moléstias, uma vez que o desco-


nhecimento dos modos de contaminação levava a explicações
relacionadas ao castigo divino e à crença das alterações climáticas
e dos humores (BENCHIMOL; SILVA, 2008). O processo de desen-
volvimento da saúde pública no Brasil foi mais lento e diferencia-
do do ocorrido na França, Inglaterra, Alemanha e Estado Unidos,
uma vez que o contexto social, político e econômico desses países
estava bem mais adiantado, propiciando medidas e reformas mais
efetivas na organização da saúde pública.
Assim, nesse período, falar sobre saúde pública no Brasil
estava associado a implantar ações imediatas para tentar contro-
lar as epidemias e doenças como a varíola, febre amarela, peste
bubônica, sífilis, ancilostomose, malária (impaludismo) e outras.
É interessante mencionar que a atuação do Governo Federal se
tornou mais presente em alguns estados brasileiros a partir dos
anos de 1900, com a aplicação de algumas campanhas de preven-
ção das doenças e de incentivos às reformas sanitárias.
No final do século XIX e início do século XX os discursos e
ações relacionados ao combate aos mosquitos e moscas torna-
ram-se mais frequentes. As pesquisas médicas e as novas teorias
construídas com a microbiologia favoreceram para o fortalecimen-
to dessas questões. No entanto, esse era um campo novo para
os médicos em Fortaleza, uma vez que muitos desses métodos
de tratamento estavam ainda em processo de estudo e tinha-se
somente por base as pesquisas trazidas de outros estados e países.
Dentro dos relatórios dos inspetores da higiene do Ceará
notou-se que constantemente apareciam nas citações as formas
de lidar com os mosquitos e moscas. Esses insetos eram conside-
rados pelos médicos, na época, como vetores responsáveis pela
transmissão das doenças mais recorrentes e que traziam graves
prejuízos à cidade.

Ana Karine Martins Garcia 45


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

Entre nós os principaes fócos de mosquitos, verdadeiros viveiros


nos quintaes, são algumas cacimbas. Quando todas as cacimbas
da Fortaleza forem substituidas por um abastecimento de água
encanada ou por poços instantaneos, as condições de hygiene
da cidade serão sensivelmente melhores (Relatório da Inspetoria
de Higiene Pública do Estado do Ceará, 1 maio 1916, p. 19-20).

Desse modo, analisando alguns dos documentos referen-


tes à organização da saúde pública da cidade, como relatórios e
ofícios dos presidentes entre os anos de 1910 e 1920, observou-se
que grande parte dessas fontes atribuíam a proliferação desses
mosquitos e moscas à falta de esgotos, abastecimento de água e
à falta de higiene da população em Fortaleza. Questões estas que
nunca foram totalmente sanadas até hoje, século XXI, na cidade.

[...] oito mezes de tentativas energicas e tenazes vieram por fim


demonstrar que por maior que fosse a bôa vontade era baldado
todo esforço porquanto si os mosquitos desappareciam em uns
continuavam em outra ponto vizinho, vieram demonstrar, que
sem água encanada e esgoto é impossível um tal serviço porque
ou é completo extinguido de todo o mosquito ou não se faça
porque por menor que seja o numero dos restantes, não se
pode viver coberto da febre amarella (Relatório da Inspetoria
de Higiene Pública do Estado do Ceará, 30 abr. 1913, p. 100).

Nas palavras do Dr. Abdenago da Rocha Lima, consegue-se


perceber que resolver a questão do combate aos mosquitos não era
algo tão simples. E que encontrar a soluções para deter a prolife-
ração desses mosquitos não estava somente na construção de um
sistema de esgoto e abastecimento de água para Fortaleza como
ele acreditava, mas era necessário resolver outras problemáticas

Ana Karine Martins Garcia 46


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

que envolviam a estruturação e organização política, econômica e


social da cidade como saneamento, habitação, trabalho, pobreza...,
ou seja, atingiam outros interesses que não estavam relacionados
somente com o melhoramento da saúde e quando esse problema
não era resolvido abalava tanto a vida da população quanto os
setores econômicos responsáveis pelo desenvolvimento da cidade
como foi o caso do comércio de Fortaleza.
No entanto, essa tarefa, como já visto, não era algo tão
fácil, pois neste momento eram poucas as ações voltadas a deter
a proliferação dessas doenças, principalmente, por ser esse um
campo novo para os médicos cearenses. Assim, acredita-se que
as medidas voltadas aos tratamentos eram de responsabilidade
e geradas mais pelas iniciativas dos médicos ligados aos cargos
da saúde pública do que para os que trabalhavam nas clínicas e
hospitais em geral.
A classe médica em Fortaleza, no início do século XX, estava
aos poucos se organizando e suas atuações no campo da saúde
pública, a princípio, foram lentas. Ao analisar as fontes desta
pesquisa observou-se primeiramente que as ações de combate
aos mosquitos vão ser mais frequentes a partir dos anos de 1913,
uma vez que os casos de febre amarela e malária foram mais
recorrentes e os médicos ligados à higiene pública do Estado do
Ceará e ao Centro Médico Cearense11 passam a falar mais sobre
este assunto neste período e a participar mais ativamente das

11 O Centro Médico Cearense, foi fundado em Fortaleza no ano de 1913 e tinha


como unir os médicos, os farmacêuticos e os odontólogos com a finalidade de
desenvolver as pesquisas médico-cientificas, divulgar os projetos e experiências
no tratamento das doenças e buscar ter uma aceitabilidade e aproximação da
população local. Ver mais: Garcia (2011).

Ana Karine Martins Garcia 47


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

ações voltadas ao tratamento e prevenção das doenças transmi-


tidas pelos mosquitos.
Deve-se mencionar que estas medidas contra os mosquitos
e moscas não foram preocupações e atuações somente da inspe-
toria da saúde pública no Estado do Ceará, entretanto fez parte
de ações nacionais, no começo da República, em vários estados
brasileiros. Destaca-se aqui as campanhas tenazes realizadas pelo
médico e sanitarista Oswaldo Cruz a partir de 1900 no Rio de
Janeiro (BRITTO, 1995).
Vários fatores contribuíram, provavelmente, para que
a partir da década de 10 do século XX houvesse uma maior
preocupação com a prevenção e luta contra esses mosquitos.
É possível que o aumento das pesquisas e as descobertas de
novas teorias, os interesses econômicos, o aumento das doen-
ças na cidade e o início das campanhas do Governo Federal e da
Fundação Rockefeller tenham sido fatores importantes para que
esse assunto tivesse uma maior repercussão entre os médicos e
a administração pública de Fortaleza.
Além da apreensão com as doenças causadas pelos mosqui-
tos, apareceu também nos relatos dos inspetores de higiene públi-
ca a preocupação com o excessivo aparecimento das moscas, uma
vez que elas eram responsáveis por grande parte das infecções
intestinais que ocasionavam óbitos em muitos casos.

[...] Dar caça ás moscas por todos os meios, protegendo contra


ellas os alimentos, destruindo as existentes e evitando a sua
reprodução. As larvas das moscas, conhecidas pelo povo com
os nomes de “bicho” ou “tapuru” se desenvolvem em qualquer
sitio onde haja materia organica em decomposição, nas senti-
nas, no lixo, nas immundiceis, nas estrumeiras, nos chiqueiros,
nas vaccarias, nas estribarias, etc. Com a remoção destes focos

Ana Karine Martins Garcia 48


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

e asseio e desinfecção dos irremovíveis evita-se a reprodução


das moscas (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do
Estado do Ceará, 1 maio 1916, p. 11).

Nessa descrição observam-se pontos bastante relevan-


tes tanto das questões higiênicas para a prevenção de doenças
como também da estrutura da cidade. Nas palavras do Inspetor
e médico Carlos da Costa Ribeiro é mostrado o quanto era preo-
cupante para a saúde pública a presença desses insetos e que as
medidas necessárias para “caçar” as moscas dependiam também
das ações dos moradores, uma vez que os meios apontados por
ele para a reprodução dessas moscas faziam parte do convívio
desses habitantes e que as práticas higiênicas eram a solução
para esse problema.
Outro aspecto que se observou nos relatos do inspetor Dr.
Carlos Ribeiro foi a questão da contribuição da estrutura física
para o agravamento do aumento dessas moscas. É interessante
analisar que nesse momento predominava o discurso moderniza-
dor na cidade e que muitas vezes se encobria suas problemáticas,
mas através dessas fontes e dos relatos médicos pode-se descons-
truir essa ideia e ver que Fortaleza ainda enfrentava problemas
em sua organização e estrutura física e que isso contribuiu para
o aumento das doenças provocadas, sobretudo, pelos mosquitos.
Desse modo, é importante notar que a cidade ainda estava cerca-
da pelas práticas advindas do campo e que na visão médica isso
foi apontado como um dos grandes empecilhos para o melhora-
mento da saúde pública.
Nas páginas do relatório, o médico Carlos Ribeiro também
fez destaque aos procedimentos que a população deveria seguir.
Infelizmente, não se teve contato com as matérias publicadas
nos jornais locais e que tinham o intuito de alertar e orientar a

Ana Karine Martins Garcia 49


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

população para os cuidados a serem tomados contra os mosqui-


tos, pois já não há mais exemplares disponíveis nos locais de
pesquisas referentes aos periódicos dos primeiros anos do século
XX. No entanto, se pode comprovar a existência desses artigos
nestes jornais através dos indicativos e menções feitas em algu-
mas das publicações dos relatórios da Inspetoria de Saúde Pública
contidos também nas páginas da revista Ceará Médico.12

Em 1916, a comissão da Fundação Rockefeller encarregada de


estudar o problema da febre amarela na América Latina chega
ao Brasil. Durante sua estada aqui não ocorre nenhuma irrupção
de febre amarela. Eles afirmaram, entretanto, que a doença esta-
va presente na costa Norte, e propuseram a ajuda da Fundação
Rockefeller para eliminação da febre amarela no Brasil e para a
organização de campanhas contra outras doenças transmissíveis,
especialmente a ancilostomose (LÖWY, 2006, p. 134).

A chegada ao Brasil da Comissão da Fundação Rockefeller


teve a princípio, como já visto, um intuito informativo e de pesqui-
sas. Essa comissão vinha realizando diversas visitas e implantando
em alguns países seus métodos de tratamentos, sobretudo, contra
a febre amarela. No entanto, nem todos confiavam nesses obje-
tivos e como apontou a historiadora Ilana Löwy em seus estudos
sobre a febre amarela no Brasil, a população brasileira variava
entre a benevolência e a desconfiança com relação às intenções
dessa Comissão, já que existia a suspeita de que a filantropia

12 No dia 15 de abril de 1913 é publicado o primeiro número da revista, que ficou


conhecida inicialmente como “Norte Médico” e teve publicação bimestral. Essa
revista foi órgão oficial do Centro Médico Cearense e foi uma das principais respon-
sáveis pela propagação das atividades e produções cientificas desta associação.

Ana Karine Martins Garcia 50


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

norte-americana poderia abrir as portas para outros modos de


intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos do Brasil.

Mas que vergonha! Eles estão nos passando atestado de incom-


petência. Os recursos que estão nos propondo não são dinheiro,
mas atividade e eficiência. São os nossos ricos vizinhos, orgu-
lhosos, bem educados e cheios de compaixão, que batem à
nossa porta para pedir licença para limpar nossas casas das
pestilências que não conseguimos eliminar. Só temos que lhes
desejar boas-vindas e aplaudi-los, mas vendo que nosso país é
obrigado a admitir sua incapacidade de resolver seus problemas
administrativos, todavia tão poucos complicados, só nos resta
enrubescer de vergonha. Sentimo-nos mal em pensar que um
dia possam surgir outros guardiões de nossos negócios, mais
interessados e menos delicados, e não motivados pela gene-
rosidade e pelo amor à ciência. Suas ações também poderão
ser justificadas por nossa negligência, nossa ignorância, nossa
fraqueza, nossa falta de retidão moral (Jornal O Imparcial, 13
jan. 1916, apud LÖWY, 2006).

Nesse trecho, publicado no jornal Imparcial, do artigo intitu-


lado “A vergonha”, do Dr. Plácido Barbosa, notou-se os incômodos
e suspeitas ocasionados pela presença da Fundação Rockefeller
no Brasil. Além da preocupação com os possíveis interesses com
as questões internas do país, observa-se nas palavras irônicas do
Dr. Plácido que a presença de tal comissão era a mostra para ele
da incompetência administrativa em solucionar as questões da
saúde pública. Os discursos contra e a favor estiveram presentes
no decorrer da atuação da Rockefeller no Brasil e inclusive no
Ceará, entre os anos de 1923 a 1935, percebeu-se grandes dificul-
dades na aceitação dos métodos trazidos pelos norte-americanos.

Ana Karine Martins Garcia 51


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

A Comissão da Fundação Rockefeller teve o interesse no


período de 1916 a 1920 de conhecer mais especificamente algu-
mas das regiões do Brasil e observar as formas que vinham sendo
tratadas as doenças como a febre amarela e a ancilostomose. Para
esses especialistas foi surpresa a aplicação de alguns métodos,
sobretudo, no combate à febre amarela, mas não deixaram de ver
questões problemáticas e de fazer críticas quanto a organização
da saúde pública no país.
Outro fato bastante interessante é que apesar de a propos-
ta inicial estar voltada ao tratamento e à eliminação da febre
amarela, isso não ocorreu na prática, pois no Brasil a febre amare-
la durante os anos de 1916 a 1920 não apresentou grandes inci-
dências. Desse modo essa comissão deteve-se ao combate dos
vermes da ancilostomose que afetavam mais a vida da população
brasileira, sobretudo, do meio rural.
No início os estados brasileiros escolhidos para a realização
de seus projetos e planos foram São Paulo e o Rio Grande do Sul,
apesar da constatação da Comissão da Rockefeller de que nos
estados do norte havia uma maior recorrência dessas doenças.
De acordo com a historiadora Lina Faria, esses lugares tinham
a capacidade de melhor aproveitar os recursos investidos pela
Fundação Rockefeller (FARIA, 2007, p. 56). No entanto, posterior-
mente foram desenvolvidas ações que abrangiam outros estados,
principalmente, os da região Norte.
Efetivamente, somente vamos encontrar ações mais dire-
tas da Rockefeller no Ceará a partir de 1923 mediante acordo
firmado com o Governo Federal, uma vez que anteriormente as
obras de tratamento e combate a essas doenças estavam sob a
responsabilidade direta do governo estadual e somente a partir

Ana Karine Martins Garcia 52


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP)


em 1920 ampliou suas áreas de atuação.13

[...] assinado em 11 de setembro de 1923 e homologado pelo


decreto nº 16.300 do governo brasileiro em 31 de dezembro
de 1923, estipula que a Fundação Rockefeller, em colaboração
com o DNSP, se encarregaria da eliminação da febre amarela
no norte do Brasil por meio de destruição dos mosquitos (...).
O pessoal técnico e administrativo será recrutado pelo DNSP,
em acordo com a Fundação Rockefeller (LÖWY, 2006, p. 149).

13 A atuação mais direta nos outros estados brasileiros do Governo Federal


foi motivada sobretudo pela epidemia da gripe espanhola em 1918, que atin-
giu tanto a Capital Federal como outras cidades brasileiras e que demonstrou
a fragilidade e incompetência do Departamento Geral de Saúde pública. Até
aquele momento as questões de saúde pública ficavam sempre ao encargo
de seus estados que esses nos períodos de crise contavam com a determina-
da colaboração financeira do Governo Federal, contudo, as propagações de
epidemias fizeram com que se repensassem tais ações e assim fossem tomadas
medidas que atingissem aos estados geradores dessas epidemias mais recor-
rentes. Ver, por exemplo, Hochman (1998).

Ana Karine Martins Garcia 53


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

Essa foi a primeira campanha da Fundação Rockefeller no


Brasil e tinha como pretensão erradicar os mosquitos da febre
amarela do Nordeste14 brasileiro, uma vez que essa doença era
ameaça para a imigração e o comércio. No Ceará, os casos de febre
amarela eram muito insignificantes comparados a outras doenças
como a varíola, gripe e malária, no entanto, o acordo permitiu que
a Comissão Rockefeller passasse a atuar mais diretamente no Ceará
e em outros estados nordestinos com a finalidade de eliminar os
mosquitos responsáveis pela transmissão da febre amarela.
Observando os passos dado por essa Comissão no Ceará,
notou-se que as visitas anteriores ao acordo com o Governo
Federal em 1923 possibilitaram à Rockefeller conhecer mais as
ações e dificuldades do Estado para deter a febre amarela. E sua
presença foi percebida sob diversos aspectos, pois enquanto agra-
dava a alguns também era rejeitada por outros que não acredi-
tavam e criticavam sua atuação, principalmente, em Fortaleza.
Apesar das fontes pesquisadas não mostrarem diretamente
a visão discordante de alguns dos médicos cearenses sobre a
presença da Comissão Rockefeller, encontrou-se, primeiramen-
te, entre a documentação discordâncias do Diretor do Serviço de
Saúde do Estado do Ceará o Dr. Clovis Barbosa de Moura com rela-
ção à eficácia das técnicas usadas por essa Comissão e, em segun-
do, observou-se alguns artigos publicados nos jornais locais entre

14 Oficialmente a região Norte passa ser chamada Nordeste, a partir dos anos
1922, e de acordo com o historiador Durval Muniz “O termo Nordeste é usado
inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919.” Ou seja, a denominação Nordeste
foi dada para designar as áreas atingidas pela seca e somente a partir dos anos
de 1922 passou a definir uma determinada região que abrangia tanto as áreas
secas como outras. A esse respeito, ver Albuquerque Junior (2001).

Ana Karine Martins Garcia 54


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

os anos de 1928 a 1935 que criticavam a atuação da Comissão


Rockefeller e cujas assinaturas eram pseudônimos, possivelmente,
de médicos que não aprovavam o modo de atuação desse grupo.
Analisando as fontes percebe-se que as dificuldades e ações
da Rockefeller foram cercadas por problemas que impediam que
os resultados obtidos fossem mais duradouros e estavam ligadas
à falta de organização e estruturação física de Fortaleza.

As medidas, actualmente, executadas pela Rockfeller Foundation,


parece nos terem um caráter transitório. Uma vez cessado o
serviço de policia de focos o índice estegomyco, inevitavelmente,
subirá, uma vez que as causas primordiaes para o desenvolvimen-
to da estegomya persistem, a não ser que baixe a zero o índice
estegomyco, o que não é tarefa fácil (Relatório da Inspetoria de
Higiene Pública do Estado do Ceará, 25 maio 1924, p. 26).

O Dr. Barbosa de Moura em seu relatório apresentou algumas


das dificuldades que impedia, em sua opinião, a eficácia no combate
à febre amarela, sobretudo, em Fortaleza e afirmava que todas as
ações tomadas acabavam tendo um caráter temporário, já que não
resolvia o problema, somente o adormecia, e a doença acabava por
sempre atingir a cidade. Dentre as questões tratadas no relatório
destaca-se como uma das causas que atrapalhavam as ações da
Rockefeller a falta de um sistema de esgoto e de água regular.

[...] Sem um serviço regular de aguas e de esgotos da compe-


tencia do Estado, e sem que se lancem mão de medidas de
engenharia sanitaria, da competencia da Rockefeller, como
sejam nivelamentos de terrenos, drenagens, retificações dos
pequenos riachos que cruzam Fortaleza, como o Pajehú, o
Jacarecanga, etc. todo o serviço que se fizer de prophylaxia

Ana Karine Martins Garcia 55


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

da febre amarella, na capital ou no interior, terá sempre um


carater provisório (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública
do Estado do Ceará, 25 maio 1924, p. 26).

Ficou visível nas palavras do diretor da saúde pública que


a responsabilidade era do Estado, ou seja, estava em suas mãos
a resolução desses fatos e não dependia em geral da Comissão
Rockefeller, já que questões como drenagens, nivelamento de
terrenos, retificações de pequenos terrenos e regulamentação
dos serviços de água e esgoto não era encargo dessa Comissão.
Assim, essas problemáticas acabavam por afetar diretamente
as ações no campo da saúde pública, uma vez que contribuíam
para que as causas dessas doenças permanecessem. Mas, mesmo
diante de todo esse relato o Dr. Barbosa não deixou de apon-
tar também um dos grandes equívocos na atuação da Comissão
Rockefeller no Ceará.

Não nos parece medida de grande utilidade a criação de peixes,


nos reservatórios destinados á agua para beber. Os peixes, como
todos os animaes, se alimentam e, forçosamente, terão que se
desfazer de seus residuos alimentares o que não poderão fazer
senão poluindo os reservatorios que lhe derem para residencia.
Não é raro também serem encontrados mortos, putrefactos, os
peixes collocados nos reservatorios, tonando a agua não somente
impropria, como tambem perigosa á saúde (Relatório da Inspetoria
de Higiene Pública do Estado do Ceará, 25 maio 1924, p. 26).

Um dos métodos utilizados pela Comissão Rockefeller para


o combate às larvas dos mosquitos da febre amarela era a utiliza-
ção de peixes nos reservatórios de água existentes em cada casa
da cidade. Como apontou o Dr. Barbosa essa medida era ineficaz,

Ana Karine Martins Garcia 56


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

pois acabava trazendo prejuízos à higiene da população, uma vez


que os peixes morriam nesses reservatórios e eliminavam seus
resíduos na água que era utilizada para cozinhar e para beber. No
entanto, o chefe da Comissão Rockefeller no Ceará Lucian Smitih
rebateu as acusações afirmando que eram raros os casos em que
peixes morriam e apodreciam nesses tanques e que as inovações
técnicas que se utilizavam impediam essa poluição apontada pelo
Diretor do Serviço de Saúde do Estado do Ceará.

A cidade foi uma vez mapeada por conta dos orifícios, cuja
conta total desses apresentava 32. O resultado da inspeção foi
de 6 com larvas, 3 com depósitos de casulo de larvas e cerca
de 6 em que os mosquitos estavam voando. Dois dos buracos
encontrados com focos estavam situados, respectivamente,
próximo ao Hotel Bitu e ao Hotel de France, em ambos dos quais
casos de febre ocorreram na última epidemia. Estes depósitos
foram tratados com óleo. Bueiros do novo sistema de água –
73 ao todo – foram então examinados e um dos focos de larva
foram descobertos (RELATÓRIO DE LUCIAN SMITH A JOSEPH
WHITE, 31 dez. 1924, p. 4).

Havia-se constatado pela Comissão Rockefeller que as larvas


do mosquito da febre amarela também eram encontradas em buei-
ros ou buracos onde havia acúmulo de água. E observando que
na cidade havia grandes quantidades de orifícios nas ruas logo se
percebeu que ali era outro ponto de disseminação desses mosqui-
tos e que algumas providências precisavam ser tomadas, no entan-
to, eram temporárias, já que dependiam mais dos melhoramentos
públicos do que das ações da Rockefeller. Outro ponto que chama
atenção nessa fonte são as referências às proximidades desses
buracos com os hotéis Bitu e de France. Ambos deveriam receber

Ana Karine Martins Garcia 57


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

muitos estrangeiros, já que como apontou Smith houve diversos


casos naquela área durante a última epidemia de febre amarela.
Por isso, para eles era de extrema necessidade eliminar essas larvas,
principalmente nessas localidades. O método mais empregado era
o uso do óleo (petróleo), um dos causadores de grandes conflitos,
como se observou na documentação pesquisada.
A Comissão da Rockefeller ficou ativamente em Fortaleza
de 1923 até final do ano de 1927, uma vez que havia atingido suas
metas e acreditava que o trabalho havia sido concluído. No entan-
to, não foi o que ocorreu e em meados de 1928 retornaram suas
atividades em Fortaleza e atuaram durante o final da década de 20
e toda a década de 30 do século XX na prevenção e no tratamento
da febre amarela e da malária que passou a estar mais visível,
sobretudo no final dos anos 30 no interior do Estado do Ceará.

Agora que estamos a braços com o copioso inverno que nos


bate á porta, alagando as praças e ruas de maneira a deixa-
-las intransitaveis,é que bem avaliamos a falta dos relevantes
serviços da Rockefeller na obra do saneamento rural. As aguas
estagnadas que permanecem nas sargetas e nas depressões
do calçamento, após o desencadear das chuvas torrenciaes,
tornam-se o fóco dos mosquitos e carapanãs que já são vistos
a ensamear por sobre essas poças de lama, como uma amea-
ça terrível ao somno e a saúde dos habitantes desta capital.
Nas ruas que não são calçadas, esses insectos pullulam ainda
com mais facilidade, por quanto ahi se formam depressa
lodaçaes que somente após alguns dias de sol veem a seccar.
Urge, portanto sr. redactor que os srs.do saneamento urbano
desenvolvam a máxima actividade a cidade nesses casos, afim
de, dando vasão aos ajuntamentos dagua nas ruas, tenhamos
prevenido a saúde. Clarmeis, pois Sr. redactor pelas columnas

Ana Karine Martins Garcia 58


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

do “Povo” afim de que, sejamos attendidos pelas autoridades


competentes (Jornal O Povo, 9 mar. 1928, p. 6).

Além dos longos períodos de secas, muitas vezes, os inver-


nos também trouxeram consequências danosas à vida dos cearen-
ses, principalmente, àqueles que habitavam a cidade de Fortaleza.
Essa reclamação escrita ao jornal O Povo denunciava algumas
das problemáticas causadas pelas águas estagnadas das chuvas
que acabavam favorecendo ao aumento dos focos dos mosquitos
que ocasionavam tanto prejuízos ao sono como também geravam
o aumento de doenças por eles transmitidas. Este artigo teve
como título Terra de ninguém- A falta que nos faz a Rockefeller e
o pedido do autor desconhecido era que as autoridades respon-
sáveis pelos serviços tomassem as providências necessárias para
a solução dessas dificuldades. Porém, deve-se notar que de uma
maneira geral esse texto não deixa de ser uma crítica aos respon-
sáveis pela saúde pública e um comparativo entre a situação da
cidade naquele momento e anteriormente, com quando se tinha
a presença da Comissão Rockefeller.
A presença da Comissão Rockefeller em Fortaleza esteve
cercada de certa dualidade, pois ora foi vista como salvação ora
como empecilho. Apesar da ausência de informações mais detalha-
das sobre tal atuação, percebeu-se que esse grupo trouxe mudan-
ças no comportamento e estrutura da cidade. Saber se foi favorável
ou desfavorável não é o interesse dessa análise, mas perceber que
a população local e, sobretudo os médicos reagiram de diversas
formas aos métodos que estavam sendo aplicados por esse grupo.
É um assunto que merece ainda muitas análises sobre sua presença
tanto no Ceará como nas demais cidades brasileiras, já que quando
se fala de Comissão Rockefeller no Ceará somente se conhece sua
atuação no interior em 1939 no combate à malária.

Ana Karine Martins Garcia 59


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e


outras artes. São Paulo: Cortez, 2001.

BENCHIMOL, J. L.; SILVA, A. F. C. Ferrovias, doenças e medicina


tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 719-762, jul./set. 2008.

BRITTO, N. Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência


brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995.

CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte


Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

FARIA, L. R. de. Saúde e política: a Fundação Rockefeller e seus


parceiros em São Paulo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.

HOCHMAN, G. A era do saneamento. São Paulo: HUCITEC, 1998.

GARCIA, A. K. M. A ciência na saúde e na doença: atuação e prática


dos médicos em Fortaleza (1900-1935). 2011. 199 f. Tese (Doutorado
em História Social) – Programa de Pós-graduação em História,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.

Jornal “O Povo”. 9 mar. 1928. Acervo do setor de microfilmagem


da Biblioteca Pública do Estado do Ceará.

LÖWY, I. Vírus, mosquitos e modernidade: febre amarela no


Brasil entre ciência e política. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.

Ana Karine Martins Garcia 60


Os Médicos versus os Mosquitos: As ações e medidas
da Comissão Rockefeller em Fortaleza- Ceará no começo do XX

Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará


(1921 a 1924). Acervo do setor de obras raras da Biblioteca
Pública do Estado do Ceará. Ano 1924.

Relatório da Inspetoria de Higiene Pública de Fortaleza do


Estado do Ceará (1913-1919). Acervo do setor de obras raras da
Biblioteca Pública do Estado do Ceará. Ano 1916.

Relatório de Lucian Smith a Joseph White, 1924, RAC, RG 5,


série 2, caixa 24, (dossiês 144 e 147). Biblioteca de História da
Ciência e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz.

Ana Karine Martins Garcia 61


Capítulo 4
A EXPANSÃO DO IMPÉRIO
PORTUGUÊS: breve
trajetória das Misericórdias
e a construção de um
modelo assistencial em
terras brasileiras15
Agostinho Júnior Holanda Coe

No século XI, com o desenvolvimento das cidades, são lançadas


as bases para o advento das ordens mendicantes, notadamente o
franciscanismo. O ideário franciscano foi fundamental tanto para o
ensinamento do europeu, no que se refere a lidar com o excesso
de dinheiro, como para a instituição, no tocante à importância da

15 O texto é parte da minha tese de doutoramento, que tem como título A


assistência em crise: a Santa Casa da Misericórdia do Maranhão na segunda
metade do século XIX (1850-1890), defendida em 2015.
A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

caridade para com os pobres16, para a obtenção do perdão dos peca-


dos e da salvação divina. Com isso, “os eleitos” garantiriam o privilé-
gio da companhia de anjos e santos e a obtenção do paraíso celeste
após a morte. Logo, o pobre vai se transformando gradativamente
num veículo extremamente importante no que tange à salvação.
Novas formas de religiosidade vão surgindo, ao tempo em
que alguns preceitos católicos são retomados, para restabelecer a
prática cotidiana do cristão obediente. A ideia era que os indivíduos
crentes em Deus abandonassem uma suposta vida de pecado, reas-
sumindo a penitência como elemento primordial para a obtenção
da salvação divina. A prática penitencial precisava estar aliada à
tentativa de retorno a uma pobreza ascética, que tinha como parâ-
metro a imitação da vida de Cristo e o culto à virgem Maria.
Constituiu-se a partir de então uma preocupação maior
com a caridade aos pobres, como meio privilegiado para a obten-
ção das benesses celestiais em que a assistência e sustento de

16 Ao contrário da atualidade em que a categoria “pobre” assumiu um sentido


estritamente econômico, ao se definir a pobreza no início do mundo moder-
no além de questões econômicas, outros elementos assumem importância.
Segundo Isabel Guimarães, poderíamos definir o pobre no início do mundo
moderno: “num sentido espiritual (representava o estado de espírito daquele
que tem de sublimar a sua inferioridade perante Deus), e num sentido políti-
co-social (quando exprimia subalternidade em relação a alguém de estatuto
superior)”, além de questões meramente econômicas de privações das neces-
sidades básicas dos indivíduos pertencentes à sociedade. Conforme veremos
ao longo do texto, a formação da categoria de “pobres envergonhados”, indi-
víduos dependentes da caridade para manter um estatuto social, necessidade
que sobrepujava até mesmo a sua sobrevivência física, atesta a existência de
outros critérios, que não os estritamente econômicos, na atribuição de recursos
de caridade e de definição da pobreza a partir do século XVI. Ver: Sá (1997).

Agostinho Júnior Holanda Coe 63


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

mendigos, leprosos, mulheres desamparadas, tornam-se elemen-


to fundamental na construção de uma contabilidade do além,
que primava pela distribuição do excesso aos mais necessitados,
numa tentativa de construir o caminho supostamente necessá-
rio para garantir a salvação pós-morte e a companhia de anjos
e santos. Segundo Maria Marta Lobo de Araújo (2004, p. 238),

Embora vivendo uma situação ambígua, os pobres serviam os


ricos em dois planos essenciais: na salvação da alma e no exer-
cício do poder. Era por causa desta sua importância que as elites
mantinham com eles uma relação de aparente cumplicidade e
lhes davam esmolas quando os encontravam nas ruas, às suas
portas e os assistiam nas instituições de caridade.

As elites cuidavam para garantir certa distinção social, a


partir da distribuição da caridade, com o intuito de reproduzir
gestos de submissão e agradecimento praticados pelos indivíduos
em necessidade material. O pobre tornava-se um poderoso instru-
mento nas mãos dos mais abastados, contribuindo para justificar
o seu poder. O indivíduo que recebia patenteava uma situação de
expectativa e gratidão, enquanto o doador encontrava ocasião
singular para a exibição de poder, desprendimento e magnani-
midade (ARAÚJO, 2004, p. 240).
Todavia, com o aumento populacional proporcionado pelo
crescimento das cidades a partir do século XVI, a pobreza urbana
vai gradativamente deixando de ser algo suportável nas gran-
des concentrações citadinas. Com isso, os pobres passam a ser
encarados, a partir de então, com desconfiança e como possível
ameaça. No plano da caridade, torna-se necessário organizar as
categorias sociais merecedoras de auxílios, visto que o aumento
do número de pedintes nas cidades leva à impossibilidade de

Agostinho Júnior Holanda Coe 64


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

prestar assistência a todos que se sentissem excluídos da socie-


dade. A Idade Moderna assistiu a um crescimento do número
de mendigos e o seu deslocamento para as zonas urbanas, em
busca de esmolas mais promissoras. Era também nas cidades
que selocalizavam as principais instituições de assistência, que
residia uma burguesia enriquecida e que se localizava a maioria
dos conventos e alguns paços senhoriais, prometendo, por conse-
guinte, maior dádiva (SÁ, 1997, p. 199).
As Misericórdias surgem em Lisboa, no ano de 1498, com
objetivos de centralizar iniciativas individuais numa instituição que
pudesse decidir a quem deveria ser praticada a caridade. A ideia era
criar critérios claros de definição do “verdadeiro pobre”, selecionan-
do dentro de um contingente amplo de desamparados socialmente
quais deveriam ser os eleitos para receber a devida assistência. O
padrão instituído pelas Misericórdias obteve sucesso, pois se não
tinham o monopólio da assistência, gradativamente foram adqui-
rindo condições vantajosas para exercer o protagonismo do que
se entedia por caridade institucional. Era uma irmandade feita por
leigos e para leigos, com uma profunda inspiração religiosa, tendo a
Igreja apenas o papel de confirmar o papel da caridade como veículo
transformador do destino dos cristãos (FRANCO, 2011, p. 6). Segundo
Isabel dos Guimarães Sá (1997, p. 34):

Estes novos procedimentos concediam primazia à acumulação e


distribuição de recursos de caridade por entidades mediadoras
– as instituições -, que passavam a deter também a autoridade
para selecionar os pobres a contemplar. Por toda a Europa,
malgrado as diferenças confessionais, a crescente importância
da ingerência das instituições na ajuda aos pobres é um fato.

Agostinho Júnior Holanda Coe 65


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

Ao contrário das outras irmandades religiosas que destinavam


seu auxílio principalmente aos associados ou irmãos, as Misericórdias
assumiram funções bastante amplas, tais como: construção e admi-
nistração de hospitais, concessão de dotes a mulheres órfãs para a
realização do casamento, fornecimento de abrigo a crianças aban-
donadas ou órfãs, construção e administração de cemitérios, admi-
nistração de imóveis e capitais de crédito, comparecimento às festas,
enterros e peditórios organizados pela irmandade, o que distingue os
trabalhos desempenhados pelas Misericórdias em relação às outras
associações religiosas. Soma-se a isso, a prática corriqueira de visitar
presos, para fornecer auxílio espiritual, comida, aceleração de proces-
sos judiciais, além da visita aos doentes em seus domicílios. Muitas
associações religiosas buscaram equiparar-se ao protagonismo das
Misericórdias, muitas vezes, fazendo frente aos serviços praticados
pela entidade, entretanto:

[...] as Misericórdias tinham uma projeção local alargada a


toda a comunidade (mesmo que representassem apenas a sua
elite) enquanto as outras confrarias representavam apenas
os membros de determinada paróquia ou um grupo social
(mestres ou clérigos, por exemplo), ou seja, grupos geográfica,
social e politicamente menos representativos (SÁ, 1997, p. 61).

O Concílio de Trento é parte essencial no desenvolvimento


das práticas caritativas das Misericórdias. Foi a partir deste que
houve uma delimitação mais clara do ideário que definia essas
associações, pois não há bula papal de criação das Misericórdias,
sendo essas, antes de Trento, o resultado da iniciativa de leigos
para a caridade. Em 1563, as Misericórdias são definidas como
confrarias leigas, sob proteção régia; e, em 1564, incorporam
os hospitais, cuja criação e administração tornaram- se uma das

Agostinho Júnior Holanda Coe 66


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

principais peculiaridades dessas instituições em relação às outras


irmandades religiosas (SÁ, 1997, p. 97).
Segundo a historiadora portuguesa Laurinda Abreu (2001, p.
599), a explicação mais plausível para o sucesso das Misericórdias
foi principalmente a falta de capacidade política e econômica
do Estado português para concretizar uma política assistencial
estatal, dependendo excessivamente das Misericórdias e do seu
(suposto) autofinanciamento. Tal prática auxiliou Portugal deci-
sivamente na implementação de alguns serviços básicos para a
sociedade, inclusive em suas colônias.
O caráter amplo da assistência desempenhada pelas
Misericórdias não foi uma característica encontrada na instituição
desde os primórdios da sua existência. Quando do seu surgimento
em Lisboa no ano de 1498, as Misericórdias não assumiram logo
a administração de determinadas instituições, tais como hospi-
tais, cemitérios e recolhimentos. Somente no século XVI, há uma
expansão dos serviços prestados pelas Misericórdias, pois, até
então, os seus auxílios eram voltados para a ajuda aos pobres,
onde quer que estes se encontrassem, além da visita a doentes
em seus domicílios e a presos.
Quando comparada com outras irmandades religiosas e
as demais instituições administradas pela Igreja, as Misericórdias
estavam sob uma autoridade muito mais distante, porque o Rei
só podia intervir a partir de uma solicitação interna, ou quando
o grau de desordem era tamanho que obrigava algum tipo de
intervenção imediata (SÁ, 1997, p. 59). No que tange a relação
das Misericórdias com a Igreja Católica, se estas não dependiam
diretamente do clero local para desempenhar seus trabalhos,
dependiam, contudo, de uma boa relação com os membros da
Igreja, pois dela partia a autorização para consagrar um local de

Agostinho Júnior Holanda Coe 67


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

culto ou, até mesmo, para reduzir alguns encargos obrigatórios


(ABREU, 2003, p. 14-15). Para Isabel Guimarães Sá (1997, p. 257),

Embora os princípios da caridade fossem religiosos e as


Misericórdias organizassem os seus patrimônios em função de
doações a favor da alma e mantivessem estruturas de culto e
serviços religiosos consideráveis, a Igreja a nível local limitou-
-se a participar nas Misericórdias através dos seus membros
ingressados na irmandade, sem possuir a priori o seu controle.

Nos lugares em que houve a instituição de Misericórdias,


estas representaram para seus associados ainda uma das marcas
de identificação com seus pares de origem europeia, pois para as
minorias portuguesas, sobretudo no “Novo Mundo”, viver entre
povos de outras religiões e culturas tornava-se mais fácil a partir
do momento em que encontravam instituições capazes de reunir
indivíduos com origens e objetivos comuns (SÁ, 1997, p. 264).
Gradativamente, vai-se definindo também a quem deveria se
destinar a caridade, já que a insistência na inserção dos fisica-
mente capazes no mercado de trabalho torna-seuma caracterís-
tica que assume importância maior, sobretudo a partir do século
XVI. Dentro da lógica mercantilista e dos primeiros momentos de
formação de práticascapitalistas no mundo moderno, a valoriza-
ção do trabalho torna-se uma das prioridades para o desenvolvi-
mento das nações e uma das formas de explicação do progresso.
Uma nação rica economicamente precisaria ter indivíduos que
pudessem se manter sem auxílios do Estado e, assim, contribuir
para o crescimento de suas cidades.
Para o indivíduo praticante da caridade, o ato de partilhar
demonstrava bonança e sucesso material, pois era oportunida-
de de mostrar aos seus pares, a partir de práticas assistenciais,

Agostinho Júnior Holanda Coe 68


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

toda a sua capacidade e desapego às questões materiais, num


processo que também gerava autoafirmação social. Não bastava
o acúmulo pessoal, mas era necessário que essa riqueza fosse
percebida pela coletividade, a partir da retidão no seguimento dos
costumes cristãos, da distinção nas vestimentas e na sua relação
com os desprestigiados socialmente. Era preciso evitar iniciativas
individuais que pudessem contribuir para a perpetuação de alguns
vícios sociais, dos que supostamente não fizessem a sua parte na
construção de uma cidade capaz de se desenvolver a partir do
trabalho. O combate ao “ócio” e à “vagabundagem” tornava-se
cada vez mais evidente com o crescimento da população urba-
na. Surge, portanto, a necessidade de organizar instituições que
pudessem administrar tais práticas caritativas individuais em cate-
gorias consideradas realmente merecedoras, segundo os critérios
de seleção estabelecidos na época, ou seja, uma assistência buro-
craticamente regulamentada, capaz de auxiliar os indivíduos em
momentos de necessidade material momentânea e recolocá-los
a serviço do Estado, como trabalhadores capazes de contribuir
com a perpetuação da riqueza das nações.
As Misericórdias surgem com a função primordial de
direcionar iniciativas individuais aos “pobres merecedores”. A
compensação dos assistidos não era eminentemente financei-
ra, podendo ser a intercessão junto aos anjos e santos para
a salvação do benfeitor. Havia um elemento de dupla troca na
prática da caridade, pois o que doava não esperava necessaria-
mente um retorno dentro dos padrões da benfeitoria realizada,
estabelecendo-se um caráter simbólico na relação entre doador e
receptor, numa sociedade em que dar era um ato possível a todos,
e não envolvia somente bens materiais, mas sobretudo serviço.
Isabel Guimarães Sá (1997, p. 16), ao analisar a lógica das doações
despendidas em favor das Misericórdias, nos informa que:

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A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

[...] Dar era um ato acessível a todos, e não envolvia apenas


bens materiais mas sobretudo serviço. O ato de dar não se regia
por critérios econômicos uma vez que não era forçosamente
proporcional aos meios de fortuna do doador.

Apesar da peculiar regulamentação por parte da Coroa, as


Misericórdias se desenvolveram segundo lógicas de afirmação
local e não como parte de um planejamento régio, o que significou
certa liberdade de conformação dessas instituições a realidades
específicas, haja vista que só prestavam contas dos seus serviços
ao rei. Ao contrário de outras irmandades que tinham regula-
mentações locais e maior fiscalização por parte dos membros
da Igreja, as Misericórdias assumiram funções bastante amplas e
obtiveram uma ampla liberdade de atuação, o que proporcionou
várias fugas a modelos que deveriam ser seguidos por todas as
Misericórdias constituídas.
No que tange ao relacionamento com as outras institui-
ções religiosas, as Misericórdias se destacaram em determinadas
funções assistenciais, devido também à interdição da concorrência
em relação aos serviços praticados por outras associações religio-
sas. Quase sempre os pedidos de outras irmandades para parti-
ciparem da assistência já desempenhada pela Misericórdia eram
negados, com o intuito de resguardar os privilégios adquiridos pelos
irmãos da Irmandade da Misericórdia na prestação de alguns servi-
ços básicos para a sociedade. Para Isabel Guimarães Sá (1997, p. 66),

Mais importante do que criar condições favoráveis à ativida-


de das Misericórdias em certos setores da assistência, foi sem
dúvida o fato de a Coroa ter feito claramente a escolha de negar
às restantes confrarias a possibilidade de desenvolver funções
assistenciais significativas.

Agostinho Júnior Holanda Coe 70


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

Todavia, a existência de diversas confrarias tornava-se


fundamental para abarcar outras categorias sociais que não eram
contempladas pelas Misericórdias, havendo até certo incentivo
na constituição de novas irmandades religiosas que pudessem
desempenhar funções não pertencentes à alçada dos confrades
das Misericórdias (SÁ, 1997, p. 61-62).
Além disso, um dos principais serviços prestados pela Coroa
às Misericórdias, no aspecto econômico, foi criar-lhes privilégios
para que se transformassem nas principais beneficiárias dos legados
testamentários, proporcionando-lhes condições administrativas
para uma cobrança efetiva desses bens. Desde os primórdios de
seu funcionamento, as doações deixadas em vida ou em morte
em favor das obras da Irmandade constituem um dos principais
elementos de sustentação das Misericórdias, já que auxiliaram deci-
sivamente no poderio financeiro constituído pela instituição nos
lugares em que foram criadas. Para Leila Alves Rocha (2005, p. 31),

Esse modelo caritativo de assistência permitiu que os rendi-


mentos deixados pelos cristãos para a celebração de missas
para si e seus familiares fossem convertidos na construção de
hospitais e demais atividades caritativas, garantindo assim o
autofinanciamento dessas instituições. Nesse sentido, as Santas
Casas foram as principais gestoras dos bens do Purgatório. Além
de centralizarem as atividades caritativas e de administrarem
os legados e doações dos cristãos, as Misericórdias do ultramar
ganharam importância adicional para o Estado português.

Não havia grandes diferenças entre as contribuições reali-


zadas em vida ou no momento da morte, pois a caridade não fazia
distinções entre mortos e vivos: rezar pelos primeiros era uma
obra tão meritória como tratar dos corpos dos segundos, uma

Agostinho Júnior Holanda Coe 71


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

vez que os defuntos também tinham vinculado patrimônio para


a celebração de missas e de outras obras pias. A organização e
administração de cemitérios foi um dos serviços assumidos pelas
Misericórdias e uma das principais fontes de lucro da instituição.
Cabia à Misericórdia a realização, em seus recintos, do enterra-
mento de indivíduos pobres que não tinham condições de pagar
por uma sepultura dentro dos mínimos padrões cristãos. Mesmo
tendo a incumbência de administrar tais cemitérios, quase sempre
as Misericórdias reservavam espaços privilegiados, no seu templo
ou nos novos locais de sepultamento, construídos principalmente
a partir do século XIX, para o enterramento dos seus irmãos ou
aos que pudessem pagar por uma sepultura de maior prestígio.
Representadas pelas elites locais e excluindo de seus
quadros indivíduos com poucas posses materiais, a caridade aos
pobres ficava mais visível em duas instituições que ficaram sob a
alçada das Misericórdias: os hospitais e os cemitérios. Era pouco
comum que a Irmandade se negasse a enterrar os pobres nos
cemitérios administrados por ela, assim como a realizar o trata-
mento daqueles que precisavam dos seus hospitais. Entretanto,
conforme perceberemos ao longo do texto, gradativamente vão
surgindo espaços mais demarcados dentro de hospitais e cemi-
térios, para diferenciar os lugares reservados aos ricos daqueles
destinados aos pobres.
Com relação aos hospitais administrados pelas
Misericórdias, estes ficaram conhecidos por serem lugar de
tratamento dos menos favorecidos, já que, até aproximadamen-
te a primeira metade do século XIX, os indivíduos pertencentes
à elite preferiam realizar seu tratamento em domicílio, sendo os
hospitais utilizados para se ter uma morte digna, com o recebi-
mento dos últimos sufrágios. Quando alguém de estatuto social
privilegiado não tinha alternativa, a não ser o auxílio médico nos

Agostinho Júnior Holanda Coe 72


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

hospitais, quase sempre os lugares de tratamento entre pobres e


ricos eram notadamente demarcados e diferenciados.
No que tange à concessão de dotes a mulheres com idade
para casar, esta foi uma das práticas de caridade mais utilizadas
até o final do período moderno. A partir do século XVIII, esta
prática foi se tornando a mais frequente obra de caridade desem-
penhada pelas Misericórdias. Tais dotes quase sempre eram alvos
de polêmicas, devido à não publicização dos requisitos utilizados
para a escolha das contempladas, sobressaindo-se quase sempre
os critérios financeiros. Vale ressaltar ainda que:

O discurso tanto dos homens da Igreja Católica, como a socieda-


de em geral estabelecia a subordinação da mulher ao marido ou
ao pai e tanto homens como mulheres advogavam o casamento
como sendo o meio mais seguro para preservar a honra e as
virtudes femininas. Consideradas presas fáceis e incapazes de
sozinhas manterem as suas virtudes e desta forma caírem nas
“tentações do mundo”, as mulheres eram afastadas da corrup-
ção através do internamento em conventos ou recolhimentos,
onde lhes eram impostas normas severas que iam da oração
ao trabalho (SÁ, 1997, p. 3).

Havia recolhimentos para mulheres consideradas virtuosas,


destinados a preservar a sua honra. Estas eram mantidas em clau-
sura até se casarem ou atingirem o limite de idade, recolhimentos
de mulheres seculares que decidiam viver uma vida recolhida para
servir a Deus, recolhimentos para regenerar mulheres que tinham
manchado a sua honra, cometendo atos considerados pecamino-
sos, além de espaços destinados às mulheres viúvas. Nestes locais,

Agostinho Júnior Holanda Coe 73


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

[...] aprendiam a ser boas esposas, a fazer trabalhos manuais,


como bordados, costura e fiação e a viver para Deus. Em algu-
mas destas casas aprendiam também a ler e a escrever. Para,
além de serem sustentadas e dotadas, eram ainda auxiliadas
na doença e enterradas em caso de morte. As internadas eram
obrigadas a confessar-se e a comungar com regularidade, a
frequentar a missa, a fazer oração mental e outros exercícios
espirituais e a participar no coro. Com estas práticas, procura-
va-se que as jovens sedimentassem os valores morais e religio-
sos ao mesmo tempo que se incutiam regras para serem boas
esposas. Estavam ainda obrigadas, em algumas destas casas, a
fazer jejuns. (SÁ, 1997, p. 4).

Essa política de proteção das Santas Casas em relação às


mulheres, se por um lado contribuía para a preservação da honra
das jovens, por outro obedecia aos preceitos da Igreja Católica,
que determinava que as relações sexuais deviam acontecer
apenas dentro do casamento e com o objetivo da procriação.
Os benfeitores contemplavam, normalmente, os pobres nos
seus testamentos, mas geralmente não se esqueciam das órfãs.
Todavia, estabeleciam critérios claros em relação às mulheres
merecedoras da caridade: jovens órfãs, pobres, honestas e de
boa procedência (ARAÚJO, 2004, p. 3).
Outra assistência assumida pelas Misericórdias foi a cria-
ção dos expostos: crianças abandonadas, cujo ônus de os fazer
criar a instituição assumia. Esse parece ter sido um dos encar-
gos mais dispendiosos para as Misericórdias, pois o crescimento
contínuo do número de crianças abandonadas a partir do século
XVI fez dessa prática caritativa algo bastante problemático para
essas instituições, apesar de tal serviço ser responsabilidade das
Câmaras Municipais, o que levava à exigência do pagamento pelas

Agostinho Júnior Holanda Coe 74


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

administrações locais dos serviços prestados pelas Misericórdias.


Desde o início, essas instituições se propunham a tratar de crian-
ças desamparadas (de pais defuntos ou, se vivos, sem condições
para as criarem), mas cedo as distinguiram da grande quantidade
de expostos, em crescimento avassalador até meados do século
XIX. A Roda dos Expostos consistia,

[...] Numa roda giratória, cilíndrica, com uma única abertu-


ra; colocada numa abertura de janela, permitia abandonar a
criança sem ser identificado. Para além de proporcionar um
abandono anônimo, dava azo a outro fenômeno: o transporte
de crianças de zonas rurais para as grandes cidades onde eram
anonimamente abandonadas. Os contemporâneos justifica-
vam a existência da roda com o horror ao infanticídio, que na
sua opinião proliferava quando ela não existia; por outro lado,
aplicava-se uma lógica de “segunda oportunidade” à honra da
mulher solteira ameaçada por uma gravidez (SÁ, 1997, p. 167).

Além disso, a assistência à figura do “pobre envergonhado”


vai ganhando cada vez mais importância, indivíduos em neces-
sidade financeira momentânea e que não estavam dispostos a
descender socialmente, e muito menos demonstrar perante a
sociedade as suas carências econômicas. Tinham um nome a zelar
e comumente necessitavam de empréstimos a juro fornecidos
pela instituição, “caridade” realizada geralmente em domicílio,
para evitar grandes exposições. Para os indivíduos pertencentes
às categorias mais abastadas da sociedade, necessitar de caridade,
ou seja, não ter condições de viver as suas próprias custas, torna-
va-se extremamente humilhante, pois descender socialmente era
algo que não estava nos planos de quem já era reconhecido pelos
seus pares enquanto pertencente a uma linhagem distinta.

Agostinho Júnior Holanda Coe 75


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

Os pobres envergonhados escondiam as suas necessidades,


confessando-as apenas a um número limitado de pessoas, de
quem recebiam ajuda. Por trás deste comportamento, que os
remetia para suas casas, onde viviam as suas privações e com
saídas muito limitadas, normalmente para cumprirem preceitos
religiosos, estava um apurado sentimento social de pertença a um
grupo de poder e um apertado controle moral, que não permitiam
a exposição das carências experimentadas (SÁ, 1997, p. 26).

Em sociedades particularmente atentas à manutenção


do estatuto social, uma das grandes preocupações da caridade
era justamente amparar as pessoas que, apesar da sua condição
elevada, resvalavam para situações de pobreza, devido às mais
variadas adversidades. Tratava-se quase sempre de uma ajuda
em segredo, efetuada em domicílio, e que visava a evitar que
estes pobres atravessassem a fronteira entre os que deveriam
estar numa posição social superior e aqueles cuja pobreza era
publicamente reconhecida por estenderem a mão em público.
Como os empréstimos a juro eram despendidos a pessoas
influentes em suas localidades e que muitas vezes “esqueciam”
suas dívidas com a instituição, tais quantias quase nunca eram
pagas, logo as Misericórdias se viram frequentemente impossibili-
tadas de sanar suas dívidas. Até mesmo os mecanismos de cobran-
ça ficavam comprometidos, em virtude do grau de influência dos
assistidos perante as administrações locais.
Além dos indivíduos mal pagadores que ajudaram na derro-
cada de muitas Misericórdias, ao longo dos séculos XVIII e XIX, um
número excessivo de encargos instituídos absorveu parte consi-
derável das receitas dessas instituições. Uma das soluções encon-
tradas foi a criação de loterias com o intuito de sanar despesas,
contudo, estas não foram suficientes para tornar superavitárias as

Agostinho Júnior Holanda Coe 76


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

contas de várias Misericórdias. Uma outra atitude tomada para


conter crises financeiras foi a criação e ampliação de novos serviços,
quase sempre destinados ao alargamento dos hospitais, que vão
se tornando, ao longo dos séculos XVIII e XIX, uma das principais
instituições administradas pelas Misericórdias. Vale ressaltar ainda
que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, uma nobreza de sangue,
característica das primeiras Misericórdias, foi gradativamente se
afastando da Instituição. Isso não significou que outras elites não
foram incorporadas, haja vista que no século XIX vai se formando
toda uma parcela de indivíduos proprietários de terras e/ou enri-
quecidos no comércio, e que procurava distinção social e reconhe-
cimento entre seus pares com a participação na Misericórdia.
A característica proximidade das elites que formaram as
Misericórdias em relação aos indivíduos pertencentes às Câmaras
Municipais já foi algo ressaltado pelo historiador Charles Boxer
(2002, p. 286). Para Isabel Guimarães Sá (1997, p. 21), embora
Boxer tenha definido as Câmaras e as Misericórdias como pilares
dos poderes locais, isso não significou uma relação unívoca e sem
variações. Se em alguns casos o poder é essencialmente municipal
e os vereadores da Câmara coincidem com o cargo de mesários da
Misericórdia, em outros casos aparecem figuras de relevo perten-
centes às administrações eclesiásticas locais e que assumem rele-
vante projeção no direcionamento do trabalho das Misericórdias.
Em relação à participação feminina nos quadros da
Misericórdia, enquanto outras confrarias eclesiásticas admitiam
mulheres, quer associadas aos maridos na condição de casadas ou
até mesmo enquanto solteiras ou viúvas, as Misericórdias eram
exclusivamente formadas por homens, tendo seu caráter elitista
bastante evidente nos seus compromissos:

Agostinho Júnior Holanda Coe 77


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

As Misericórdias agregavam apenas membros das elites exis-


tentes a nível local: nobreza, clero (de preferência membros
dos cabidos episcopais ou colegiais e alto clero regular), profis-
sões liberais, negociantes de alto cabedal e mestres de ofici-
na ou do mar e lavradores proprietários. Operava-se também
uma distinção clara entre irmãos nobres – nobreza, clero e
profissões liberais – e irmãos mecânicos, constituídos pelas
restantes ocupações. Em consequência da vocação elitista das
Misericórdias, o número de confrades era reduzido quando
comparado com os das outras confrarias que podiam chegar
aos milhares de irmãos: 100 nas vilas e pequenas cidades até
um máximo de 600 nas cidades (SÁ, 1997, p. 223).

A historiadora portuguesa Maria Antônia Lopes (2000, p.


95), ao estudar o contexto das Misericórdias no século XIX, nos
aponta que gradativamente o conceito de caridade como algo
divino e necessário para a obtenção da salvação cristã vai dando
lugar, no período oitocentista, ao conceito de assistência como
direito dos homens. Não era mais, portanto, uma escolha dos
governantes patrocinarem ou não instituições mediadoras capa-
zes de canalizar espíritos caritativos de forma espontânea, mas sim
uma obrigação e um direito adquirido que indicava a existência
de práticas e instituições capazes de desempenharem uma assis-
tência aos desprestigiados socialmente. A categoria de “pobre
merecedor” adquire grande importância ao longo do processo
de conformação das Misericórdias em territórios fora do espaço
português, sendo os critérios para tais definições quase sempre
relacionados ao cumprimento dos principais preceitos cristãos.
No século XIX, cada vez mais ficarão evidentes distinções
entre o “pobre trabalhador”, e que ajuda no progresso das cida-
des, e o “vagabundo”, indivíduo ocioso e que não contribuiria,

Agostinho Júnior Holanda Coe 78


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

com o seu esforço, para o crescimento econômico da sua localida-


de. Essa última categoria era motivo de grande preocupação, pois
precisava ser banida das cidades para não influenciar indivíduos
trabalhadores e que não oneravam as nações em formação.
Laurinda Abreu (2001, p. 597), nos seus estudos sobre as
Misericórdias portuguesas, constata que, apesar de terem sido
criadas em tempos muito próximos, a sua implantação obede-
ceu a dois modelos distintos: o que foi seguido nas ilhas atlânti-
cas, Norte da África e Oriente, e o que foi posto em prática no
Brasil e outras localidades da costa africana. No primeiro caso, o
processo que levou à criação das Misericórdias é praticamente
concomitante ao seu aparecimento na metrópole ou, como no
caso da Índia, acompanhou a instalação dos portugueses nesses
espaços, ainda pouco dominados. No caso brasileiro, só depois de
os territórios terem sido valorizados e economicamente definidos
como rentáveis, com consequente implantação de uma estrutura
administrativa e institucional, é que se fundaram as Misericórdias.
Ainda segundo a autora,

Poucas confrarias tiveram estatutariamente as suas funções tão


bem definidas como as Misericórdias. Poucas foram, também,
aquelas que, privilegiando a assistência ao outro, mais do que
aos confrades e seus familiares, ambicionaram cuidar de todos
os que necessitassem de auxílio, incluindo-se aqui a ajuda espi-
ritual consubstanciada na celebração de missas que retirariam
as almas pecadoras do Purgatório.Todavia, por razões de natu-
reza econômica e política, a maior partedas Misericórdias
acabou por restringir o seu campo de intervençãoaos presos,
às mulheres que em situações tão diversas como a viuvez ou
a orfandade se encontravam desamparadas, aos doentes e, às
vezes,às crianças abandonadas (ABREU, 2001, p. 605).

Agostinho Júnior Holanda Coe 79


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

Para Laurinda Abreu (2001), a Coroa Portuguesa foi capaz


de impor regras a todo o território português, criando padrões
administrativos comuns, o que levou a certa uniformidade na
distribuição dos recursos caritativos. Isto revelou uma enorme
eficiência do poder central na transmissão dos seus objetivos e
na comunicação dos seus modelos assistenciais a outras regiões.
Segundo a autora, o sucesso das Misericórdias se deve ao fato
de o poder político ter conseguido envolver os diferentes grupos
sociais, disponibilizando-lhes um conjunto de benefícios que
tornaram atrativa sua participação na instituição.
Ainda segundo Laurinda Abreu (2001, p. 605), mesmo
concordando que o resultado final possa ter ficado aquém das
expectativas da Coroa, o sistema assistencial português promo-
vido pelas Misericórdias foi um dos mais eficientes da Europa,
tendo propiciado a exportação deste modelo para regiões fora do
território português, juntamente com o processo de colonização,
sem grandes alterações na sua estrutura administrativa.
Para Isabel Guimarães Sá (1997, p. 51), seria errôneo consi-
derar as Misericórdias como parte de um plano da Coroa, uma
vez que estas se desenvolveram segundo lógicas próprias de
afirmação local, adquirindo autonomia nas suas ações. Portanto,
devemos pensar que o modelo construído no século XV para as
Misericórdias foi rapidamente adaptado às peculiaridades das
regiões em que foram inseridas. Ainda na opinião da autora, tal
afirmação pode ser confirmada a partir da relação estreita entre
as Misericórdias e as elites locais, o que tornou estas institui-
ções muito mais dependentes das peculiaridades contextuais de
regiões específicas do que de um padrão constituído pela Coroa,
no que tange à prestação da assistência.
A partir destes dados, percebe-se que as Misericórdias
auxiliaram decisivamente na construção de serviços assistenciais

Agostinho Júnior Holanda Coe 80


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

fundamentais para as colônias portuguesas do além-mar e na


constituição da imagem do que representava o Império Português.
Esquecendo as peculiaridades resultantes das especificidades locais
a que cada uma teve que se adaptar, todas elas transportaram
consigo os ideais religiosos que legitimavam a colonização, repre-
sentados através das 14 obras de misericórdia (SÁ, 1997, p. 52).
Já em relação ao êxito da fundação das Misericórdias no
contexto brasileiro, o historiador Russel-Wood (1981, p.76), ressal-
ta que algumas condições especiais do Brasil, como o enterro de
escravos ou o pagamento de juros de empréstimos em forma de
mercadoria (a exemplo do açúcar), exigiam disposições especiais
nos estatutos das Misericórdias. Muitas vezes, a experiência diária
exigiu transformações ao Compromisso, sendo tais alterações
percebidas principalmente nos assuntos financeiros da instituição.
Tal assertiva demonstra a adaptabilidade das relações estabeleci-
das pelas Misericórdias brasileiras para sobreviverem a condições
adversas e reproduzirem o seu poderio em contextos específicos.
Essa capacidade de adaptação contribuiu decisivamente para a
configuração de seus modelos assistenciais e auxiliou no estrei-
tamento dos laços com as instâncias do poder local.
Diante de tais afirmações, o que se percebe é que em
alguns momentos temos maiores distanciamentos em relação aos
padrões instituídos pela Coroa Portuguesa para o funcionamento
das misericórdias brasileiras, noutros encontramos uma relação
mais próxima entre aquilo que era proposto pelas autoridades
portuguesas e o que foi implementado em territórios distantes
geograficamente de Portugal. Independente de maiores fidelida-
des a modelos constituídos, certo é que todas as Misericórdias
buscaram, na relação com as elites locais, a sustentação de suas
obras pias, o que proporcionou o crescimento da sua importância

Agostinho Júnior Holanda Coe 81


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

econômica e simbólica no plano local e a reprodução de modelos


que de alguma forma resistiram a diversas intempéries.
Algumas questões são recorrentes nos estudos das
Misericórdias: a ideia de que essas instituições precisavam ser
uma extensão do Império Português nos lugares que foram edifi-
cadas, ocupar espaços deixados pela Coroa e realizar trabalhos
assistenciais nos lugares mais distantes, espaços que os membros
da Coroa Portuguesa não queriam ou não podiam desempenhar,
tais como a administração de cemitérios, hospitais, Recolhimento
de mulheres, Roda dos Expostos. Para os portugueses recém-che-
gados a territórios dominados pelos lusitanos, as Misericórdias
significavam ainda um espaço de construção de identidades,
congregação com as elites locais e diferenciação social em rela-
ção aos pobres, escravos e mestiços, os marginalizados sociais à
época. Além disso definiu-se gradativamente a que categorias se
destinava a prestação da assistência pelos irmãos da Misericórdia.
A ideia do “pobre merecedor” vai se definindo também em terras
brasileiras, sob a perspectiva de que havia limites para a cari-
dade e que o “verdadeiro pobre” precisava ser identificado em
meio a uma cristandade desviada. Os padrões constituídos foram
se modificando de acordo com contextos específicos, todavia,
princípios básicos foram resguardados na tentativa de diferenciar
o papel da Misericórdia frente a outras associações religiosas e
definir o seu caráter elitista e excludente, característica essencial
dos que dela participavam.
O historiador Renato Franco, ao estabelecer comparações
entre a Misericórdia do Rio de Janeiro, a da Bahia e a de Vila Rica, na
América portuguesa, defende, por exemplo, que não havia uma ação
do Império capaz de garantir serviços mínimos em cada localidade
em que foram instituídas as Misericórdias, pois, mesmo nas principais
vilas e cidades brasileiras, essas irmandades muitas vezes tiveram

Agostinho Júnior Holanda Coe 82


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

uma presença assistencial muito precária. (FRANCO, 2011, p. 16).


Franco (2011, p. 64) afirma que a rede assistencial no Brasil colonial
era extremamente precária e a fundação de uma Misericórdia não
garantia a essas irmandades a primazia nas cidades e vilas em que
foram instituídas, pois a maioria das Misericórdias não conseguia
prestar com regularidade os serviços assistenciais a que se propunha
até, pelo menos, o início do século XVIII. Para Franco,

[...] rapidamente esse sistema daria sinais de problemas: a rede


assistencial constituída na colônia enfrentou sérias dificuldades
de sobrevivência com relatos constantes de fragilidade financei-
ra e institucional. Misericórdias desapareceram ou mantiveram-
-se figurativas, fragilizadas ainda por uma pequena quantidade
de congêneres, marcadamente pobres, e, por conseguinte, de
reduzido espectro assistencial. A possibilidade de a população
se valer de uma ou mais Santas Casas dentro de espaços rela-
tivamente próximos mostrava- se virtualmente insustentável
frente as enormes distâncias entre uma e outra irmandade. Do
ponto de vista assistencial, as Misericórdias amargaram uma
considerável redução de serviços, enfraquecendo a ideia de
que a criação por si só comprovava seu papel de protagonismo.
Na colônia, o século XVIII atestaria o ocaso de inúmeras congê-
neres, desestabilizadas pela falta de auxílio régio e o pouco
interesse dos locais em despenderem recursos regulares [...]
(FRANCO, 2011, p. 340).

Falando sobre o relativo sucesso das Misericórdias


brasileiras, o historiador Renato Franco (2011, p. 340) nos infor-
ma ainda que, mesmo com a constatação da fragilidade dessas
instituições, certo protagonismo poderia ser sentido no momento
de sua criação nos séculos XVI-XVII, sobretudo nas sedes de

Agostinho Júnior Holanda Coe 83


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

capitanias, onde as Misericórdias cumpriram o papel de construir


identidades entre as elites e estabelecer essas confrarias como
locais de continuidade junto com as Câmaras municipais. Diante
das pequenas vilas que iam se constituindo, as Santas Casas se
mostravam como um vantajoso investimento simbólico e político.
Diante do exposto, percebemos o padrão de assistência
construído pelas Misericórdias portuguesas e de que forma tal
herança chegou ao Brasil com o processo de colonização, ressal-
tando semelhanças e diferenças em relação às propostas de ação
formuladas pelas primeiras Misericórdias no final do século XV
em Portugal e as Misericórdias brasileiras, com destaque para o
debate feito pelas historiadoras portuguesas Isabel de Guimarães
Sá e Laurinda Faria dos Santos Abreu.

Agostinho Júnior Holanda Coe 84


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

REFERÊNCIAS

ABREU, L. Igreja, caridade e assistência na península Ibérica


(sécs. XVI-XVIII). Évora: Edições Colibri, 2003.

ABREU, L. O papel das misericórdias dos “lugares de além-mar”


na formação do império português. História, Ciências, Saúde -
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 591-611, 2001.

ARAÚJO, M. M. L. As Misericórdias das duas margens do


Atlântico: Portugal/Brasil (séculos XV-XX). Cuiabá: Carlini
e Caniato, 2004.

BOXER, C. O Império Marítimo Português 1415-1825.


São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

FRANCO, R. Pobreza e caridade leiga: as Santas Casas de


Misericórdia na América Portuguesa. 2011. 385 f. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.

LOPES, M. A. Pobreza, assistência e controle social em Coimbra


(1750 – 1850). Coimbra: Palimage Editores, 2000. v. I e II

ROCHA, L. A. Caridade e poder: a Irmandade da Santa Casa


de Misericórdia de Campinas (1871-1889). 2005. Dissertação
(Mestrado em História Econômica) – Instituto de Economia,
Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp), Campinas, 2005.

Agostinho Júnior Holanda Coe 85


A EXPANSÃO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS: breve trajetória
das Misericórdias e a construção de um modelo assistencial em terras brasileiras

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa


da Misericórdia da Bahia, 1550 – 1755. Tradução de Sérgio
Duarte. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.

SÁ, I. G. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade


e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão
Nacional para as comemorações dos descobrimentos
portugueses, 1997.

Agostinho Júnior Holanda Coe 86


Capítulo 5
ALGUMAS contribuições
de João Cesário de
Andrade para o campo
da Oftalmologia na
Bahia (1920-1940)
Chacauana Araújo dos Santos

“Tudo que a ciência puder pôr


em prática para proteger o
órgão vi- sual tem, pois, um
cunho de inestimável valor”.
João Cesário de Andrade (1944)

O objetivo deste texto é apresentar algumas contribuições de João


Cesário de Andrade para a construção da Cátedra de Oftalmologia
da Faculdade de Medicina da Bahia (FAMEB) enquanto campo
científico, e para o enfrentamento das doenças oculares no esta-
do. Por meio de escritos sobre enfermidades e tratamentos rela-
cionados à visão, o médico chamou a atenção da sociedade para
ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

o cuidado com os olhos, especialmente das crianças. Com isso,


ampliou e fortaleceu o campo da Oftalmologia na Bahia.17
O Professor João Cesário de Andrade era natural de
Fortaleza, Ceará, nasceu em 25 de fevereiro de 1887, estudou na
FAMEB e defendeu a tese intitulada Glaucoma primitivo, em 1913.
Tornou-se Docente Livre da Clínica Oftalmológica em 1914, e, nesse
mesmo ano, assumiu o cargo de Professor Extraordinário de Clínica
Oftalmológica. Entre 1915 e 1953 foi professor Catedrático. Ele
construiu uma importante carreira no âmbito nacional, foi presi-
dente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia e do 4º Congresso
Brasileiro de Oftalmologia, em 1941. No ano de 1949, se mudou
para o Rio de Janeiro e passou a exercer o cargo de Membro do
Conselho Nacional da Educação e Cultura (JACOBINA, 2013).
Na segunda metade do século XIX, ocorreu a reforma no
Ensino Médico do Brasil, que atingiu as Faculdades de Medicina do
Rio de Janeiro e da Bahia. Essa Reforma criou especialidades médi-
cas, o que alterou significativamente a forma como as atividades
de ensino eram desenvolvidas naquelas instituições. A legislação
que iniciou esse ciclo de mudanças foi o Decreto de nº 7.247, de
19 de abril de 1879, que tratou da Reforma do ensino primário e
secundário no município da corte e o superior em todo o Brasil
(BRASIL, 1879). Porém, foi com a Lei nº 3.141, de 30 de outubro de
1882 que foram criadas, inicialmente, sete cátedras. (BRASIL, 1882).
A cadeira de Clínica Oftalmológica da FAMEB foi regulamen-
tada em 1882, apesar dos diversos problemas como empecilhos

17 De acordo com Pierre Félix Bourdieu (1983), a construção do campo cien-


tífico não acontece desconectada do exterior, ou seja, a ciência é também um
campo social em que ocorrem lutas e concorrência pelo monopólio da auto-
ridade científica. O funcionamento do campo científico produz e supõe uma
forma específica de interesse.

Chacauana Araújo dos Santos 88


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

em concursos para novos professores, falta de material didáti-


co, falta de laboratórios, dentre outros. Com isso, as aulas de
oftalmologia somente começaram a ser ministradas no dia 5 de
setembro de 1881, por Francisco dos Santos Pereira, sem nenhu-
ma remuneração.
Ao ingressar como professor de medicina, Cesário de Andrade
buscou maneiras de desenvolver a parte prática do ensino, criando
a primeira enfermaria de oftalmologia do Hospital da Santa Casa
de Misericórdia da Bahia. Além disso, conseguiu instalar uma câma-
ra escura em um edifício anexo à FAMEB, gabinetes para exames
utilizando dois oftalmoscópios que já existiam na Faculdade, e um
consultório ao lado para atender os pacientes (FORTUNA, 2012).
Durante o período que esteve como catedrático da Clínica
de Oftalmologia da FAMEB, João Cesário de Andrade estudou
muitas doenças oculares que assolavam o povo baiano, com
destaque para o Tracoma. O médico mobilizou a sociedade em
torno das doenças que podiam causar cegueira e, com isso,
chamou a atenção para seu campo de atuação. Colocou essas
enfermidades como um grande problema que podia atingir a
população. Durante os anos em que esteve na FAMEB, produziu
um vasto material escrito que contribuiu para consolidar o campo
da Oftalmologia.

Escritos de um Médico Professor

Pesquisas que analisam trajetórias de indivíduos têm se


tornando cada vez mais comuns na historiografia brasileira.
Entre os muitos exemplos que poderiam ser citados, Batista e
Silva (2020) analisam um momento específico da trajetória do
pernambucano Antônio Luis Cavalcanti de Albuquerque de Barros

Chacauana Araújo dos Santos 89


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

Barreto, que migrou para a Bahia, em 1924, e atuou na Reforma


Sanitária da década de 1920. As suas ações foram orientadas
pelos pressupostos norte-americanos apreendidos como bolsis-
ta da Fundação Rockefeller e pela experiência como Inspetor do
DNSP, anteriores ao cargo de Subsecretário de Saúde e Assistência
Pública da Bahia, ocupado em 1925 (BATISTA, SILVA, 2020). Para
além de Barros Barreto, muitos outros médicos como José Silveira,
Martagão Gesteira, Octavio Torres, galgaram lugar de destaque
no campo científico baiano.
Pretendemos analisar, aqui, uma prática específica de João
Cesário de Andrade: a escrita. Utilizando a experiência adquirida
como catedrático e como participante da campanha de combate ao
Tracoma na Bahia na década de 1930, o médico construiu uma lite-
ratura em que chamava a atenção para os males – além da cegueira
– que as doenças oculares podiam causar. Cesário era um dos edito-
res da Gazeta Médica da Bahia, periódico médico criado pela Escola
Tropicalista da Bahia. Segundo Édler (2002, p. 361), “tal grupo ficou
conhecido, notabilizou-se por seus trabalhos sobre beribéri, ancilos-
tomíase, filariose e ainhum doenças associadas ao clima tropical”.
Em um dos seus artigos, datado de 1928, Andrade discu-
tiu o cuidado com a luz no momento da leitura. Com o título A
luz elétrica na Higiene da Leitura, o médico discutia os efeitos
da “radiação” e explicava os vários tipos de luz existentes para
compra da população naquele momento, deixando claro que o
cuidado e a prevenção eram os caminhos para ser ter uma boa
visão. Uma das suas principais preocupações era a visão infantil.
Nesse artigo, por exemplo, defendeu que os menores (crianças)
eram “muito mais desprotegidos do que o adulto contra a ação
nefasta da ação de certas radiações da luz artificial”, por isso a
necessidade de um cuidado maior (GAZETA, 1928, p. 56).

Chacauana Araújo dos Santos 90


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

Cesário estava sempre em busca de novos tratamentos


e aparelhos que pudessem auxiliar no tratamento das doenças
oculares. Em setembro de 1930, ele publicou um artigo intitu-
lado O valor da Retino-Photographia. O texto falava sobre um
aparelho que permitia fotografar o fundo olho, possibilitando,
assim, um estudo mais detalhado de possíveis lesões no órgão.
O aparelho era um Ophtalmoscopio e permita fazer uma Retino-
Photographia. Ele avaliava o aparelho como um avanço impor-
tante, mas também chamava a atenção para o fato de não ser
muito acessível, pois, para manusear, era preciso uma formação
especializada. Ainda assim, seu entusiasmo era visível com uma
tecnologia que podia contribuir para os diagnósticos, auxiliando
no Hospital, mas também na FAMEB durante as aulas (GAZETA
MÉDICA DA BAHIA, 1930).
Ao longo de toda a primeira metade do século XX, e mesmo
depois, a educação foi promovida como uma forma de efetivar
projetos nos quais se ensinava a higiene como forma de prevenir
doenças. Médicos, enfermeiras e professoras, eram, portanto,
agentes fundamentais para se lograr êxito. Em consonância com
essa perspectiva, no texto A proteção da visão dos escolares,
Cesário falou sobre a importância de um “oculista-pedagogo” e
de uma assistência médico-social nas escolas. O texto foi publi-
cado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, que contou
com a apresentação do então Ministro Gustavo Capanema. Mais
uma vez foi enfatizada a necessidade de um cuidado maior com
as crianças, e incentivado que as escolas ajudassem a cuidar do
órgão humano que o médico acreditava ser o mais importante.
Havia sempre uma discussão, por parte dele, sobre quais seriam as
ações a serem realizadas para melhorar a visão e sobre o cuidado
com os olhos nas escolas (ANDRADE, 1944).

Chacauana Araújo dos Santos 91


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

Além dos textos citados, Cesário escreveu artigos para os


Anais da Faculdade de Medicina, com os títulos A luz na patologia
ocular e na higiene da leitura, A inclusão dos cegos nas classes de
alunos videntes e Sobre uma nova Pedagogia. Uma questão impor-
tante, que também figurou em seus escritos, foi a situação dos
doentes no interior da Bahia. Ele se interessava pelas regiões onde
o Tracoma e outras doenças oculares estavam presentes assolando
a população, o que exigia ações urgentes por parte do Estado.
O artigo Ecos de uma campanha anti-tracomatosa no
Nordeste baiano, por exemplo, é fruto da participação de Cesário
na campanha contra o Tracoma. Nele, é apresentada a situação do
Tracoma na Bahia na década de 1930, com a lista dos lugares onde
a doença se apresentava. As cidades ficavam na região descrita
como “Nordeste Bahiano”: Cumbe, Banzaê, Antas, Mirandela,
Curral Falso, Pedras, Tamboril, Monte, Vila de Cipó e Pombal.
Algumas delas permanecem até os dias atuais com o mesmo
nome, porém, a maioria modificou a nomenclatura.
O texto descreve uma excursão feita pela Bahia, nas cida-
des onde o Tracoma estava presente de maneira endêmica, com a
participação do Interventor na Bahia, Landulfo Alves. São apresen-
tados detalhes da situação sanitária da região e sinalizadas algumas
possibilidades de solução a partir da criação de postos tracomato-
sos em locais estratégicos. A presença de Andrade nessa excursão
e, posteriormente, seus escritos e reflexões sobre o assunto lhe
renderam um documento do próprio Interventor sugerindo que
ele preparasse os médicos para atuar nas cidades citadas.
Em 1940, o médico publicou um livro intitulado
Oftalmologia Tropical (Sul Americana), pela Rodrigues e CIA, Jornal
do Comércio, no Rio de Janeiro. A obra foi pensada a partir do
que se discutia na época sobre Medicina Tropical, uma área que
surgiu no final do século XIX e analisava as doenças endêmicas

Chacauana Araújo dos Santos 92


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

disseminadas nas regiões Tropicais ou Subtropicais e transmitidas


por algum vetor.
Na divisão dos capítulos de Oftalmologia Tropical, Cesário
Andrade organizou as doenças em blocos definidos pelas suas
causas: protozoários, verminoses, bactérias, vírus e animais vene-
nosos. Na introdução do livro, ele discute sobre como é preciso
pensar a doença em cada local, pois as influências climáticas pode-
riam modificá-las. Além disso, deixou explícita a sua preocupação
com as enfermidades que assolavam as populações rurais, citou
os problemas sanitários que contribuíam para a proliferação das
doenças apresentadas por ele e alertou sobre como a higiene era
importante para diminuir esses problemas: “A poeira, o calor, a
humidade, as moscas e outros insetos, de par com a falta de rudi-
mentares preceitos de higiene, nas populações rurais do Nordeste
são provavelmente os melhores e mais eficientes elementos da
propagação do mal” (ANDRADE, 1940, p. 13).
O capítulo VI chama a atenção nesta obra. Com o título
Doenças de Etiologia incerta, é descrita, entre outras, uma enfer-
midade chamada de Sapiranga, descoberta de Andrade. De acor-
do com ele, a doença era muito parecida com o Tracoma e isso
atrapalhava o diagnóstico e o tratamento. Mas ele teria conse-
guido diferenciar as duas ainda na década de 1920.
Antes de publicar Oftalmologia Tropical, em 1940, ele já
havia escrito um artigo na Gazeta Médica para anunciar o seu
achado. Em julho de 1923, Cesário de Andrade apresentou o
artigo intitulado Sobre uma afecção ocular, endêmica no Brasil
ainda não identificada. Tratava-se da Sapiranga. A doença que
se parecia com Tracoma tinha sua descoberta graças aos postos
criados para tratar a doença, que se tornou endêmica e afeta-
va a mesma parcela da população que já sofria com o Tracoma
(GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1923). Em Oftalmologia Tropical,

Chacauana Araújo dos Santos 93


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

novos detalhes foram apresentados sobre a doença, inclusive com


imagens diferenciando a Sapiranga do Tracoma. A imagem abaixo
é uma ilustração de como as doenças atingiam as pálpebras.

Figura 01 – Imagem das pálpebras.


Fonte: Andrade (1940, p. 185).

O Reconhecimento

Com o passar dos anos, as atitudes e os escritos do médico


passaram a ser reconhecidos na Bahia e fora do estado também.
João Cesário ficou conhecido por ser um grande especialista em
doenças oculares. Vários profissionais tinham Cesário como refe-
rência. No livro O Cego, escrito por Alberto de Assis (Fundador do
Instituto dos Cegos da Bahia), o autor escreveu sobre a impor-
tância da pedagogia para os cegos. Ele citou Cesário de Andrade
como um “cientista da oftalmologia de importante reputação, no
conhecimento das moléstias oculares que assolam a população”.

Chacauana Araújo dos Santos 94


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

Assis o considerava um grande aliado na batalha contra as molés-


tias que causavam a cegueira (ASSIS, 1938).
Em um relatório do Serviço de Saúde endereçado ao
Secretário de Educação e Saúde da época, Isaías Alves, o Diretor
geral do departamento, Cesar Araújo, sugeria uma campanha
urgente para combater o Tracoma no Nordeste baiano. Para
chegar essa proposta, informou que contou com informações
colhidas por ele e por especialistas no assunto, entre os quais
destacou o “Professor Cesário de Andrade”. Além disso, o próprio
Interventor Landulpho Alves falou sobre a possibilidade de o
professor integrar algumas medidas que seriam iniciadas no
combate ao Tracoma.
Durante sua trajetória, os escritos deixados por Cesário
contribuíram para o conhecimento de várias doenças oculares
que maltratavam o povo baiano e tudo isso fortaleceu a cátedra
de oftalmologia, mostrando a importância de um professor que se
dedicava ao ensino, mas também à pesquisa e à escrita. O médi-
co e professor esteve à frente de discussões importantes sobre
doenças oculares. Buscou recursos e maneiras de contribuir para
o seu campo de conhecimento e para a sociedade. Assim, ia além
dos muros da Faculdade de Medicina. Durante sua trajetória de
vida esteve envolvido em companhas sanitárias, atendimentos
no hospital ligado à FAMEB, em que era professor catedrático, e
propagou seu conhecimento.

Chacauana Araújo dos Santos 95


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

REFERÊNCIAS

ANDRADE, C. Ecos de uma campanha anti-tracomatosa no


Nordeste bahiano. In: Anais da Faculdade de Medicina da
Bahia. Salvador: Ministério da Educação e Saúde. Bahia:
Imprensa Vitória, 1941. p. 169-180.

ANDRADE, J. C. A proteção da visão dos escolares. Revista


Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, p.
341-360, 1944.

ANDRADE, J. C. Oftalmologia Tropical (Sul Americana). Rio de


Janeiro: Rodrigues e CIA: Jornal do Comércio, 1940.

APB. Relatório do censo de tracomatosos no Nordeste da


Bahia. Caixa 4059, maço – 75. 1939.

ASSIS, A. O Cego: em face da Medicina, do Direito e da Pedagogia.


Salvador: Escola de Aprendizes e Artífices da Bahia, 1938.

BATISTA, R. S.; SILVA, M. E. L. N. A atuação de Antônio Luis


Cavalcanti de Albuquerque de Barros Barreto. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 40, n. 84. p. 313-337, 2020.

BOURDIEU, P. O campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.).


Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

Chacauana Araújo dos Santos 96


ALGUMAS contribuições de João Cesário de Andrade
para o campo da Oftalmologia na Bahia (1920-1940)

BRASIL. Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879. Reforma


do ensino primário e secundário no município e na corte e
o superior em todo o Império. Rio de Janeiro, RJ: Império do
Brasil, [1879]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/
fed/decret/1824-1899/decreto-7247-19-abril-1879-547933-
publicacaooriginal-62862-pe.html. Acesso em: 12 abr. 2022.

BRASIL. Lei nº 3.141, de 30 de outubro de 1882. Fixa a Despesa


Geral do Império para os exercícios de 1882 - 1883 e 1883 -
1884, e dá outras providencias. Rio de Janeiro, RJ: Império do
Brasil, [1882]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/
legin/fed/leimp/1824-1899/lei-3141-30-outubro-1882-544791-
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EDLER, F. C. A Escola Tropicalista Baiana: um mito de origem


da medicina Tropical no Brasil. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 357-85, maio/ago. 2002.

FORTUNA, C. M. M. Memórias Históricas da Faculdade de


Medicina da Bahia 1916-1923-1925-1941. Salvador: UFBA, 2012.

Gazeta Médica da Bahia. Salvador, n. 2, v. 9, ago. 1928.

Gazeta Médica da Bahia. Salvador, n. 1, v. 54, jul. 1923.

Gazeta Médica da Bahia. Salvador, n.3, v. 61, set. 1930.

JACOBINA, Ronaldo Ribeiro. Memória histórica do bicentenário da


Faculdade de Medicina da Bahia (2008): os Professores encantados,
a visibilidade dos Servidores e o protagonismo dos Estudantes da
FAMEB. Salvador: Faculdade de Medicina da Bahia, 2013. v. 3.

Chacauana Araújo dos Santos 97


PARTE 2
As Doenças Têm História
Capítulo 6
DA PESTE DE ATENAS
À COVID-19: TEMA,
ABORDAGENS, NARRATIVAS
E FONTES DA HISTÓRIA
DAS EPIDEMIAS
Christiane Maria Cruz de Souza

No decorrer deste texto, pretende-se discutir, de forma breve,


tópicos da história das doenças, especialmente, das epidemias
e pandemias: tema, narrativas, perspectivas historiográficas e
padrões repetitivos, historicamente vivenciados. Embora deman-
de muito trabalho e dedicação, investigar e escrever sobre uma
epidemia é bem mais fácil do que vivenciá-la. Enquanto se elabora
este capítulo, em junho de 2021, o mundo passa por uma crise
sanitária de graves proporções, provocada pela pandemia de
Covid-19. Os primeiros casos da doença foram registrados em
Wuhan, na China, no final de dezembro de 2019. Com a rápida
circulação de pessoas e interconexão de países verificada neste
milênio, logo a Covid-19 ultrapassou as fronteiras da China e vem
provocando um grande número de adoecimentos e mortes em
todos os continentes.
A violenta intervenção da pandemia na vida das pessoas
contribuiu para aumentar o interesse por temas relativos à histó-
ria da medicina, da saúde e das doenças, principalmente, por
DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

epidemias e pandemias do passado. Supõe-se que este interesse


crescente tenha sido motivado pela necessidade de compreen-
der e explicar as incertezas do presente. Apesar da característica
efemeridade de uma epidemia, o medo e a ansiedade gerados
por sua imprevisibilidade e pela intensificação das experiências
de morte, determinam a necessidade de entender o fenômeno.
Tradicionalmente, objeto de estudo de cientistas e profis-
sionais da saúde, as epidemias e pandemias tornaram-se, igual-
mente, importantes para historiadores e cientistas sociais. A crise
paradigmática da história e da historiografia, ocorrida no século
XX, e o advento da Escola dos Annales, abriu espaço para temas
até então desprezados pelos historiadores, mais inclinados a
investigar os supostos atos heroicos de personagens das elites,
as instituições fundadas e dominadas por estas elites e questões
relativas à economia, à política e às guerras. O diálogo da história
com as demais ciências, especialmente as humanas e sociais, dire-
cionou o olhar dos historiadores para a história dos humildes e do
coletivo (ARIÈS, 2011, p. 273). O quotidiano das pessoas comuns
tornou-se objeto da história que, em diálogo com a demografia, a
economia, a psicologia a sociologia, a antropologia e a medicina,
passou a investigar como se vive e se morre – o nascimento, as
crises de subsistência, a pobreza, a fome, as epidemias, a morta-
lidade. Assim, foram ganhando relevância temas como as repre-
sentações do corpo, a sexualidade, a infância, os antigos sistemas
de medicina e práticas de cura, a construção do corpo e seus
simbolismos, os aspectos sociais e institucionais da medicina e
suas relações com valores culturais e realidades socio estruturais.
Em certo momento, Jacques Le Goff (1985, p. 8), um dos
mais importantes e influentes historiadores da terceira gera-
ção dos Annales, anuncia – “A doença pertence à história”.
E acrescenta:

Christiane Maria Cruz de Souza 100


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

A doença pertence não só à História superficial dos progressos


científicos e tecnológicos como também à História profunda
dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às repre-
sentações, às mentalidades. Desde a Idade Média, o jogo da
doença e da saúde joga-se cada vez menos em casa do doente
e cada vez mais no palácio da doença, o hospital.

Existe uma história do sofrimento. Esta história das doenças


conhece a febre conjuntural das epidemias. E uma história
dramática que revela através dos tempos uma doença emble-
mática unindo o horror dos sintomas ao pavor de um sentimen-
to de culpabilidade individual e colectiva: lepra, peste, sífilis,
tísica, cancro e, num pequeno território fortemente simbólico,
a SIDA (LE GOFF, 1985, p. 8).

Nas últimas décadas do século XX, o interesse dos historia-


dores para temas relativos à história da saúde e das doenças se
intensificou. Vivia-se, então, um período marcado por sucessos da
medicina – como a erradicação da varíola – e de derrotas causadas
pela reemergência de doenças tidas como erradicadas e surgi-
mento de novas, como a AIDS. Nesse contexto, multiplicaram-se,
igualmente os trabalhos historiográficos sobre epidemias e pande-
mias. O Brasil tem seguido esta tendência, registrando-se uma
produção crescente de pesquisas sobre epidemias e pandemias do
passado, realizadas, sobretudo, nos programas de pós-graduação.
Além das teses de doutoramento e das dissertações de mestrado,
têm sido publicados livros, capítulos de livro e artigos científicos
sobre o assunto têm-se multiplicado na historiografia.
Frutos do um diálogo interdisciplinar inaugurado pela
Escola dos Annales, os trabalhos publicados dentro deste campo

Christiane Maria Cruz de Souza 101


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

têm seguido diferentes tendências interpretativas. Na abordagem


ecológica da história global, a doença assume o papel chave no
processo civilizatório, ressaltando-se as “rupturas do equilíbrio
biológico”, o “intercâmbio de patógenos” e a “unificação micro-
biana do mundo” ocorridos a partir das conquistas imperialis-
tas, dos processos de colonização, das diásporas e migrações.
Já a demográfica ressalta apresenta uma análise quantitativa do
evento epidêmico, relacionando a incidência de doenças, óbitos
e medidas de saúde pública às mudanças demográficas ocorridas
em determinado tempo e lugar.
Ressalta-se, igualmente, as abordagens que discutem
doenças e etiologias hipotéticas como rótulos de desvio, como
ferramentas de controle social e como base racional para a legi-
timação de poder e relações de classe, mediadas pelos médicos e
pela medicina. A história sociocultural da doença é outra tendên-
cia importante; abordagens dentro desta perspectiva sofrem a
influência da antropologia e dos estudos culturais, elegendo
temas como as representações do corpo, da saúde e da doença,
a doença sob a perspectiva do doente, as práticas de cura, o medo
do adoecimento e da morte.
Por fim, destaca-se a linha da história social da doença,
fruto do diálogo entre a história social e a biomedicina. Os traba-
lhos realizados nesta linha consideram a doença como um fenô-
meno complexo, biossocial, que não pode ser dissociado do seu
aspecto biológico primário, mas que, de certa forma, não exis-
te até que se reconheça a sua existência, atribuindo-se-lhe um
nome e reagindo-se a ela (ROSENBERG, 1992, p. 305). Para David
Arnold (1986, p. 151), “a doença só adquire significado e signifi-
cação dentro de um contexto humano, nos modos pelos quais se
infiltra nas vidas das pessoas, nas reações provoca, e na maneira
pela qual dá expressão a valores culturais e políticos”.

Christiane Maria Cruz de Souza 102


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

Rosenberg (1992, p. 305-318) elabora o conceito de


framing, segundo o qual as doenças “enquadram” e são “enqua-
dradas” pela sociedade em que irrompem. O processo de reco-
nhecimento e racionalização do fenômeno biológico reflete não
só as mudanças do conhecimento e das tecnologias médicas, mas
também influências mais amplas, tais como os valores sociais,
as concepções culturais e interesses dos atores sociais. Inclui
elementos cognitivos e disciplinares que estruturam o cuida-
do médico, assim como políticas públicas que regulamentam o
comportamento coletivo e individual. Assim, o esforço de cogni-
ção do processo saúde-doença tanto sofre influência do contexto
em que a enfermidade emerge, como pode provocar também
respostas políticas, científicas, tecnológicas, econômicas e socio-
culturais que interferem em tal contexto.

Histórias de peste – vividas e imaginadas

As doenças transmissíveis afligem os seres humanos desde


as suas origens no planeta. Resultam das crescentes intervenções
do homem no meio ambiente, do contato humano com animais
de criação, do manejo, consumo e condições de armazenamento
das provisões de água e de alimentos e propagam-se com as inte-
rações ocorridas entre os indivíduos. Quanto mais civilizados os
humanos se tornarem, construindo cidades, explorando o mundo,
movimentando-se entre diferentes territórios, forjando rotas
comerciais, travando guerras, maior a probabilidade de serem
afetados por epidemias e pandemias.
Denomina-se de epidemia quando a manifestação de uma
doença excede o número previsto de casos em uma coletividade
ou região. Torna-se uma pandemia quando a doença epidêmica

Christiane Maria Cruz de Souza 103


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

extrapola as fronteiras de um território, propagando-se por outros


países e continentes. As epidemias figuram entre os eventos mais
dramáticos que afligiram as sociedades humanas. Estes fenôme-
nos atraem a atenção e causam alarde por sua arbitrariedade,
alcance e alto grau de destrutividade. Não à toa, as epidemias são
comumente designadas como “peste”, termo que vem do latim
pestis, que significa “flagelo”, “calamidade” (SONTAG, 2007, p. 5).
A ideia de castigo coletivo também está associada às epidemias.
Para os gregos, a doença pode ser gratuita, resultado de causas
naturais, ou pode ser associada a um castigo sobrenatural, por
merecimento, por conta de uma falta pessoal, por uma transgres-
são coletiva ou crime cometido por um ancestral (SONTAG, 2007).
Em Édipo Rei, tragédia do teatro grego escrita por Sófocles
(496-406 a.C.), uma doença misteriosa irrompe e se propaga
por Tebas:

O Coro

Ai de nós, que sofremos dores sem conta! Todo o povo atingido

pelo contágio, sem que nos venha à mente recurso algum,


que nos possa valer! Fenecem os frutos da terra; as mães não
podem resistir às dores do parto; e as vítimas de tanta desgraça
atiram-se à região do deus das trevas.

Privada desses mortos inúmeros, a cidade perece, e, sem pieda-


de, sem uma só lágrima, jazem os corpos pelo chão, espalhan-
do o contágio terrível; as esposas, as mães idosas, com seus
cabelos brancos, nos degraus dos altares para onde correm de
todo os pontos, soltam gemidos pungentes, implorando o fim
de tanta desventura. E à lamúria dolorosa se juntam os sons

Christiane Maria Cruz de Souza 104


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

soturnos do péan. Dileta filha dourada de Júpiter, envia-nos,


sorridente, o teu socorro! (SÓFOCLES, 2021, p. 2).

O povo recorre aos deuses, através de ritos religiosos, para


lidar com uma ameaça desconhecida, defender-se do mal e aplacar
a morte – “Sente-se por toda a cidade, o incenso dos sacrifícios;
ouvem-se gemidos, e cânticos fúnebres” (SÓFOCLES, 2021, p. 1).
Édipo, então rei de Tebas, recorre ao oráculo em busca de expli-
cação para tal calamidade. O oráculo revela que a peste é uma
punição imposta por Apolo à cidade, pelos crimes cometidos por
Édipo, então rei de Tebas – parricídio seguido de incesto.18 A cidade,
enfim, pode conhecer o culpado pelo mal imposto pelos deuses.
Estima-se que a peça tenha sido escrita em de 227 a.C. e
supõe-se que, ao escrevê-la, Sófocles tenha sido influenciado por
uma epidemia se propagou em Atenas, entre os anos 430 e 426
a.C., descrita por Tucídides em A Guerra do Peloponeso. De forma
diversa, Tucídides não trata a peste como um castigo dos deuses
e sim como um evento que determinou o insucesso de Atenas na
guerra. Susan Sontag (2007) destaca que Tucídides atribuiu à peste
a desordem e a ilegalidade que se estabeleceu em Atenas. Segundo
ele, a epidemia contribuiu, inclusive, para a corrupção do idioma.
Para Tucídides, a peste não é uma doença misteriosa e
difusa, que ataca a cidade como a que se dissemina em Tebas,
na tragédia de Sófocles. O historiador aponta a origem da doen-
ça, descreve os seus sinais e sintomas, contabiliza os doentes e

18 Édipo é destinado ao sacrifício ao nascer, por causa da profecia de que


mataria o pai e casaria com a mãe. Poupado da morte e criado longe de Tebas,
sem conhecer a sua origem e quem eram seus pais, não consegue escapar ao
seu destino, matando Laos, o rei que governava a cidade antes dele e casan-
do-se com a mãe, com quem teve dois filhos e duas filhas.

Christiane Maria Cruz de Souza 105


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

mortos, destaca a impotência dos médicos, a ineficácia dos méto-


dos profiláticos e terapêuticos, especialmente, entre aqueles que,
ao se desesperarem, não lhe opunham resistência. Tucídides
declara que seu objetivo não é investigar as causas, mas descrever
a natureza da doença e estabelecer seus sintomas, de modo que
aquele que teve conhecimento prévio da doença não deixaria de
reconhecê-la caso ela atacasse novamente (LONGRIGG, 1992). A
descrição racional, cuidadosa e detalhada de Tucídides dos sinto-
mas de uma doença é, por sua vez, sem paralelo, fora dos escritos
do Corpus Hipocrático (LONGRIGG, 1992). A narrativa de Tucídides
sobre a peste de Atenas influenciou as representações literárias
de epidemias posteriores, elaboradas por escritores que o suce-
deram (SLACK, 1992).
No Decameron, obra escrita por Giovani Boccaccio, entre
1348 e 1353, em linha fronteiriça entre os valores medievais e o
renascimento do humanismo, persiste, contudo, a ideia da peste
como castigo divino pelas iniquidades praticadas pelos homens,
mas surge uma nova alternativa para o surgimento do mal – “a ação
dos corpos celestes” (BOCCACCIO, 2013, p. 27). A peste que irrom-
peu em Florença no ano de 1348, é identificada e nomeada pelos
sintomas e sinais apresentados pelos acometidos pela doença:

[...] começavam com o surgimento de certas tumefações na


virilha ou nas axilas de homens e mulheres, algumas das quais
atingiam o tamanho de uma maçã comum e outras o de um
ovo, umas mais e outras menos, e a elas o povo dava o nome
de bubões. E os referidos bubões mortíferos, não se limitando
às duas citadas partes do corpo, em breve espaço de tempo
começaram a nascer e a surgir indiferentemente em todas as
outras partes, após o que a qualidade da enfermidade começou
a mudar, passando a manchas negras ou lívidas, que em muitos

Christiane Maria Cruz de Souza 106


DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

surgiam nos braços, nas coxas e em qualquer outra parte do


corpo, umas grandes e ralas, outras diminutas e espessas. E,
tal como ocorrera e ainda ocorria com o bubão, tais manchas
eram indício inegável de morte próxima para todos aqueles em
quem aparecessem (BOCCACCIO, 2013, p. 28).

Na narrativa criada por Bocaccio (2013), a ineficácia da


medicina e das medidas sanitárias, as cenas macabras, o deses-
pero, a desordem, as tensões na cidade invadida pela peste, a
ameaça de contágio e o medo da morte iminente resultaram na
dissolução dos valores humanitários e das leis sociais, em esca-
pismo e na fuga da cidade infectada. Séculos depois, em 1772,
Daniel Defoe publicou um livro sobre a peste bubônica que asso-
lou Londres em 1665, intitulado Diário do ano da peste. O texto
é escrito em primeira pessoa, o autor relata os fatos como se
os tivesse testemunhado, buscando reconstitui-los somando
os dados disponíveis à liberdade criação de um bom ficcionis-
ta. Dentre as várias situações descritas no livro, o autor revela
quais as medidas foram tomadas pelas autoridades públicas para
gerenciar a crise e controlar o avanço da doença: foram nomeados
médicos e cirurgiões para socorrer os pobres e foram publicadas
orientações para obter remédios baratos para os pobres; deter-
minou-se a limpeza diária de casas e ruas, a interdição de casas
de espetáculo e de bebidas, a notificação obrigatória da doença,
a quarentena, a vigilância sanitária, o isolamento compulsório dos
casos suspeitos, dos doentes e suas famílias e estabeleceu-se um
serviço especial para o translado e enterramento das vítimas da
doença (DEFOE, 2020).
As medidas adotadas, contudo, não conseguiram obstar
a disseminação da peste na cidade, visto que, na época, não se
conhecia o agente etiológico da doença. A medicina falha, muitos

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DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

médicos junto com grande parte da população. Diante do agra-


vamento da epidemia, o personagem se viu diante de um grande
dilema – permanecer na cidade, para preservar os negócios, ou
fugir do ambiente empestado, para preservar a vida, como fez
boa parte da população. O dilema é resolvido, quando ele decide
ficar na cidade e registrar os fatos para alertar outras pessoas no
futuro. Na obra, Defoe contrapõe o medo da população diante
da rápida propagação da doença e do aumento do número de
mortes, à coragem, despreocupação e sentimento de gratidão
daqueles que escapam do destino funesto, e a vida vai se “norma-
lizando” com o declínio da epidemia.
Outro clássico é A peste de Albert Camus, publicado em
1947. Na obra de Camus a epidemia começa como um evento
discreto, mas de progressão contínua entre o incidente, a percep-
ção, a interpretação e a resposta. A epidemia começa com um fato
circunstancial – uma das personagens, o médico Bernard Rieux
tropeça, acidentalmente, em rato morto, mas naquele momento
não preta muita atenção ao fato (CAMUS, 2002). Tal passagem
simboliza e personifica a maneira pela qual as epidemias aparen-
temente começam com eventos súbitos e pouco notados quando
ocorrem, mas, muitas vezes, reveladores em retrospecto. O corpo
do rato atingido pela peste sugere também a maneira como o
homem está preso a uma teia de relações biológicas que não
é facilmente compreendida ou controlada (ROSENBERG, 1992).
Outras doenças epidêmicas serviram como cenário ou
irromperam em meio a narrativa de vários autores. A varíola se
propagou e matou os pobres nos livros Capitães da Areia e Teresa
Batista cansada de guerra, de Jorge Amado (2002, 1972). Em Amor
em Tempos do Cólera, de Gabriel Garcia Marques (1995), o sucesso
no combate ao cólera confere notoriedade ao médico sanitaris-
ta Juvenal Urbino e facilita seu casamento com Fermina Daza.

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NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

Além de serem representados na literatura, no teatro, no cinema,


nas artes visuais e em outras formas de expressão humana, a
intensidade e dramaticidade dos fatos vivenciados em períodos
de epidemia foram registrados em cartas, relatórios, memórias,
diários pessoais, entrevistas, periódicos, dentre outros. De forma
específica e em conformidade com o que suas especialidades
exigiam, cientistas e médicos debruçaram-se sobre o assunto,
relatando em cartas, boletins, relatórios, tratados, livros e em
periódicos especializados os estudos de caso, experimentos e
resultados de investigações realizadas no decorrer e após a eclo-
são de epidemias e pandemias.
Os jornais em circulação durante um evento epidêmico
costumam registrar os primeiros casos da doença, o número de
pessoas infectadas e/ou vítimas da enfermidade, informações
dos especialistas sobre a etiologia, a terapêutica e a profilaxia
adequadas, o posicionamento das autoridades públicas frente à
epidemia, as respostas das pessoas comuns, além de fornecer
subsídios preciosos sobre a conjuntura em que a doença emerge e
se propaga, bem como sobre o cotidiano da cidade doente, dentre
outras informações importantes para os leitores.
No caso da Bahia durante a pandemia de gripe espanhola,
verificou-se que havia um grande número de jornais em circula-
ção no estado – muitas cidades ou vilas do interior editavam pelo
menos um periódico, ainda que nem todos tenham sido conser-
vados ao longo do tempo (SOUZA, 2009). Se não todos, a maioria
destes periódicos atendiam aos interesses de uma classe social ou
econômica e não omitiam suas vinculações político-partidárias.
Portanto, é importante que, se possível, o investigador consulte
mais de um periódico e que estes sejam confrontados com outras
fontes: as mensagens e discursos de gestores públicos e políti-
cos, as publicações de médicos em periódicos especializados, em

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NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

relatórios, boletins, cartas, etc., as teses da Faculdade de Medicina


(no caso da Bahia), os livros de registros de entrada e saída de
pacientes nos hospitais, os livros de registro de óbito em cartórios
e cemitérios, a legislação em vigor, dentre outras que possibilitem
ao historiador se acercar do seu objeto de estudo.
Conforme afirmado anteriormente, uma epidemia é um
evento público extraordinário, de notável intensidade e drama,
que expõe a distância entre a experiência individual e social e a
maneira como é narrada. Tanto na ficção quanto na realidade, os
fatos são narrados sob o ponto de vista do indivíduo e em confor-
midade com os seus interesses e os objetivos. O historiador cuida-
doso vai atentar para “o lugar de fala” de cada fonte consultada.
Contudo, Richard Evans desejou saber se não haveria uma
‘dramaturgia’ comum para todas as epidemias, já que começam,
subitamente, em determinado momento no tempo, prosseguem
em um cenário limitado no espaço e na duração e, seguindo uma
trama de tensão crescente e reveladora, movem-se para uma crise
de caráter individual e coletivo, derivando então para o encer-
ramento (SLACK, 1992; ROSENBERG, 1992). Inspirado na obra A
Peste de Camus (2002), Rosenberg analisou a estrutura do fenô-
meno epidêmico com base em padrões repetitivos vivenciados
no passado. Segundo ele, uma epidemia clássica se desenvolve
à semelhança dos atos de uma peça: no primeiro ato, a doença
surge, subitamente, mas só se admite a sua existência quando isto
se torna inevitável, ou seja, após inexorável acúmulo de mortos e
doentes; no segundo ato, constrói-se uma base explicativa para
lidar com a sua arbitrariedade; no terceiro ato, a sociedade, final-
mente, responde à doença com a adoção de medidas embasadas
nas ferramentas intelectuais disponíveis em cada época e influen-
ciadas por valores socioculturais e interesses dos atores sociais; o

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quarto ato caracteriza-se pelo abrandamento paulatino do surto


e posterior fase de retrospecção (ROSENBERG, 1992).

Pontos divergentes e aproximações


em histórias vividas e contadas

Embora o presente motive a investigação do passado, não se


pode examiná-lo com um olhar anacrônico. Os agentes patogêni-
cos são diferentes, as doenças são diferentes e o contexto em que
emergem são igualmente diversos. Cada sociedade em particu-
lar constrói sua resposta a uma epidemia. De formas diversas, em
períodos históricos e espaços geográficos específicos, indivíduos e
grupos humanos utilizaram-se de signos, práticas e preceitos para
racionalizar, administrar e combater as doenças. Dessa maneira,
produziram seus próprios modos de definir a etiologia, a transmis-
são, a terapia apropriada e os significados de uma enfermidade,
utilizando-se, para tal, das ferramentas intelectuais de cada época
e lugar. Contudo, apesar das diferenças notáveis, alguns aspectos
em relação às doenças e às epidemias são recorrentes.
O processo de denominação e resposta ao fenômeno bioló-
gico exige negociação e consenso entre diferentes atores sociais
e sofre interferência de variáveis como teorias médico-científicas
e valores socioculturais. Muitas vezes, o nome atribuído a uma
doença relaciona-se aos sintomas ou sinais apresentados pelos
infectados, como é o caso da “peste bubônica” ou “peste negra”.
A peste é uma doença epidêmica altamente infecciosa causada pela
bactéria Yersinia pestis, transmitida pela picada de uma pulga infec-
tada. A doença ficou conhecida como peste bubônica por causa das
tumefações ganglionares, popularmente descritos como bubões,

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ou como peste negra pela coloração escura da pele no momento


terminal da doença, provocada por hemorragias subcutâneas.
Por vezes, a doença recebe o nome de um suposto local
de origem, como é o caso, por exemplo, da gripe espanhola, que
devastou o mundo entre 1918 e 1919. Quando a gripe irrompeu
na primavera do hemisfério norte, os médicos suspeitaram que se
tratava de uma doença nova devido à estação incomum que incidiu;
à grande virulência e grau de letalidade em curto espaço de tempo;
à reinfecção dos considerados curados; à diversidade dos sintomas;
à inconstância do bacilo de Pfeiffer, considerado até então o agente
etiológico da gripe; e por esta levar a óbito pessoas de uma faixa
etária incomum – adultos jovens (SOUZA, 2008). Muitos pacientes
eram vítimas da “tempestade de citocinas”, uma resposta imuno-
lógica excessiva, que causava graves danos ao corpo e deixava o
semblante arroxeado (SOUZA, 2008, p. 951-952). Por estes fatores, a
doença recebeu, inicialmente, diferentes denominações nos lugares
atingidos: entre os americanos ficou conhecida como febre dos três
dias ou morte púrpura; os franceses chamavam-na de bronquite
purulenta; os italianos se referiam a ela como a “febre das moscas
de areia”; os alemães como febre de Flandres ou Blitzkatarrh;
na Espanha, foi apelidada de “La dançarina” e em Portugal ficou
conhecida como “a pneumónica” (SOUZA, 2008, p. 953).
Todavia, na maior parte do mundo, inclusive no Brasil, a
doença passou a ser denominada gripe ou influenza espanho-
la, por se supor que a doença tivesse se originado naquele país.
Chegou-se a esta conclusão porque as autoridades espanholas
logo admitiram a existência da epidemia e a notícia foi fartamente
veiculada pela imprensa espanhola e mundial, enquanto que nos
países envolvidos na Primeira Guerra, os jornais, sob censura e
voltados para os assuntos da guerra, não divulgaram logo a ocor-
rência da doença (SOUZA, 2009). Até hoje os estudiosos discutem

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a provável origem da doença, havendo hipóteses de que possa


ter surgido no Estados Unidos ou em um dos países europeus
envolvidos no conflito bélico.
As denominações que se referem a um provável local de
origem de uma doença podem gerar reações preconceituosas e
xenofóbicas. Quando, em dezembro de 2019, uma enfermida-
de contagiosa, que atacava o sistema respiratório, se espalhou a
partir da região de Wuhan, na China, os especialistas trataram de
identificar o vírus e atribuir um nome à doença que fosse curto,
descritivo e não fizesse referência a nenhuma cultura, lugar, ativi-
dade ou setor da sociedade. O vírus foi designado como SARS-
CoV-2 pelo Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus e a OMS
recomendou o nome temporário 2019-nCoV para a doença. Este
nome incluía o ano em que a doença foi descoberta, “n” para
novo e “CoV” para coronavírus, porém esta denominação não
era fácil de ser pronunciada e não se popularizou (PORQUE o
coronavírus..., 2020). Em 11 de fevereiro de 2020, o diretor-ge-
ral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom
Ghebreyesus, finalmente anunciou que o nome oficial da doença
seria Covid-19 (PORQUE o coronavírus..., 2020). Este nome foi
criado a partir de um acrônimo em inglês, que significa doença
do coronavírus, acrescido do ano de seu surgimento. Evitou-se,
desta maneira, estabelecer uma relação com sua origem prová-
vel. Ainda assim, o então presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump, seus ministros, aliados e simpatizantes no Brasil se refe-
riram ao patógeno e à pandemia como “vírus chinês”, “vírus de
Wuhan”, “mal chinês”, “coronavírus chinês”, insinuando, inclusive,
que a doença havia sido fabricada e espalhada propositalmen-
te pela China (CORONAVÍRUS cria..., 2020). Tal comportamento
contribuiu para aumentar a tensão entre os países envolvidos e
estimular assédios e ataques violentos a pessoas com aparência

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supostamente semelhante à dos chineses, em alguns dos lugares


atingidos pela doença (CORONAVÍRUS cria..., 2020).
No caso de doenças que se propagam de pessoa para
pessoa pode ocorrer a eleição de culpados ou responsáveis pelo
seu surgimento e disseminação. Os “bodes expiatórios” são os
“outros”, os diferentes. Comumente, pessoas de condição social,
raça, etnia, religião, nacionalidade e gênero diversos dos de
quem os elege como culpados. A tensão desencadeada por uma
epidemia pode contribuir para polarizar os preconceitos sociais
e julgamentos morais, principalmente, nos casos de doenças
sexualmente transmissíveis. A AIDS, sigla para a Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida, é transmitida através de produtos
preparados com sangue contaminado ou do sangue ou dos fluidos
sexuais de pessoas infectadas. Quando a doença surgiu na década
de 1980, o grupo de risco mais atingido foram os homossexuais
masculinos (SONTAG, 2007). No século XXI, a AIDS continua a
contaminar pessoas de todos os sexos, gêneros, idades e classes
sociais. Ainda há muito preconceito em relação aos portadores
da doença, indivíduos e grupos de pessoas infectadas foram e
são estigmatizadas, sofreram e sofrem julgamentos morais por se
supor que se contaminaram voluntariamente, através de relações
sexuais promíscuas ou, no caso de usuários de drogas injetáveis,
por compartilhamento indevido de seringas contaminadas.
A memória ou a familiaridade em relação a uma doença
também podem afetar as respostas da sociedade. Quando a gripe
espanhola despontou, muitos julgaram que se tratasse da gripe
benigna e sazonal que atingia a Bahia periodicamente, sem causar
grandes transtornos. Devido à guerra mundial em curso naquele
período, havia maior preocupação com a erupção de uma pande-
mia de cólera, doença que atingira a Bahia de forma devastadora
em meados do século XIX. No século XXI, quando a COVID-19

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surgiu, gravidade da doença foi minimizada. Muitos acreditaram


tratar-se de simples resfriado, costumeiramente, provocado pelos
coronavírus. Sobre esta questão, em 9 de março de 2020, o presi-
dente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro declarou o seguinte: “[...]
no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor
desse vírus. Então talvez esteja sendo potencializado até por ques-
tão econômica, mas acredito que o Brasil, não é que vai dar certo,
já deu certo” (TODAS as vezes..., 2020).
Portanto, o reconhecimento público do fenômeno costu-
ma ser retardado, também, porque uma epidemia pode trazer
consequências negativas para a economia e colocar em xeque a
competência de gestores e autoridades sanitárias em impedir a
invasão da doença. Durante a pandemia de gripe espanhola, as
autoridades demoraram a admitir a existência de uma epidemia por
receio de Salvador ser declarado “porto sujo”, o que prejudicaria
a já combalida economia do estado. Na ocasião, Salvador não foi
declarado porto sujo, mas os grupos que exerciam oposição ao
governo do estado aproveitaram-se da eclosão da epidemia para
denunciar as precárias condições de vida da população e o grave
quadro sanitário da Bahia. Se de um lado, com críticas, denúncias
e acusações, a oposição pretendia desacreditar e desestabilizar
o grupo que detinha o poder, de outro lado, tal posicionamento
denotava a crescente percepção, entre as elites, da importância da
saúde no processo de civilização e progresso da sociedade baiana.
A OMS só reconheceu, publicamente, a existência da
pandemia de Covid-19 cerca de três meses depois que a notícia
dos primeiros casos veio à tona. O diretor-geral da OMS, Tedros
Adhanom Ghebreyesus, justificou a demora: “Pandemia não é
uma palavra para ser usada de maneira leviana ou descuidada. É
uma palavra que, se mal utilizada, pode causar medo irracional ou
aceitação injustificada de que a luta acabou, levando a sofrimento

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e morte desnecessários” (MOREIRA; PINHEIRO, 2020). Por sua vez,


autoridades de países como o Brasil e os Estados Unidos foram à
público para declarar que a doença em curso era banal, inofen-
siva, que em vez das medidas de isolamento social, consideradas
ineficientes e prejudiciais à economia, seria mais produtivo alcan-
çar a “imunidade de rebanho”. No início da pandemia no Brasil,
o presidente considerou que havia uma “histeria” em relação à
crise do coronavírus: “Esse vírus trouxe uma certa histeria. Tem
alguns governadores, no meu entender, posso até estar errado,
que estão tomando medidas que vão prejudicar e muito a nossa
economia” (TODAS as vezes..., 2020).
Além de serem instrumento de disputas políticas e ideoló-
gicas, as epidemias e pandemias revelam as fragilidades e mazelas
da sociedade. No caso da gripe espanhola, embora o vírus não
escolhesse suas vítimas, observou-se maior número de óbitos
entre aqueles cujo organismo se encontrava enfraquecido – fosse
por estado puerperal, doenças preexistentes ou crônicas, fosse
em razão das precárias condições materiais de existência. As
fontes revelam que os que viviam em total indigência ou subali-
mentados, extenuados por longas horas de trabalho, em péssimas
condições de moradia ou expostos às intempéries do tempo e às
bruscas mudanças climáticas, eram mais vulneráveis à doença.
As repostas a uma epidemia também sofrem influência da
capacidade de médicos e cientistas de identificar o patógeno e
estabelecer a etiologia da doença. Durante a pandemia de gripe
espanhola (1918-1919) as controvérsias em torno da etiologia da
doença e a dificuldade para estabelecer o agente etiológico retar-
daram a tomada de decisões. Cientistas do Brasil e do mundo se
preocuparam em isolar o patógeno a fim de prescrever remédios
certeiros e desenvolver a grande arma da bacteriologia – a vacina.
Contudo, por ser uma doença de grande virulência, a gripe se

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propagava em velocidade superior ao tempo necessário para se


desenvolver uma pesquisa de laboratório consistente. Para isolar
o patógeno e desenvolver uma vacina, o pesquisador precisaria
cumprir uma série de etapas e procedimentos protocolares que
demandavam tempo. Ademais, a tecnologia disponível não permi-
tiu visualizar nem isolar o vírus. Não havia, na época, equipamento
com potência suficiente para tal.
Entretanto, os médicos já sabiam que a gripe era uma
doença de grande contagiosidade, capacidade de propagação e
velocidade de transmissão. Um indivíduo infectado tornava-se um
agente disseminador da doença – ao falar, tossir ou espirrar, expe-
lia em seu ambiente esputos ou perdigotos contaminados, que
eram inalados pelos que se encontravam próximos. Assim, para
impedir a propagação da epidemia, foram implantadas medidas
de higiene coletiva – interdições de eventos que favorecessem
aglomerações, vigilância domiciliária e portuária, quarentena dos
navios, desinfecções dos locais públicos, isolamento dos infecta-
dos. Aconselhava-se, também, que fossem adotadas medidas de
higiene individual como lavar sempre as mãos e desinfetar as vias
respiratórias superiores. As relações sociais tornaram-se objeto
de recomendações médicas – as pessoas deveriam evitar visitas
a casas de amigos e parentes, abraços, beijos e apertos de mão.
Como não havia remédio específico para a gripe, os médicos
procuravam aliviar sintomas como a febre, dor no corpo, diarreia,
garganta inflamada, astenia, etc., ou tratar as complicações, nos casos
graves. Os remédios mais receitados eram os estimulantes combater
a astenia, os tônicos para fortificar e os purgativos para limpar o
corpo, os analgésicos e antipiréticos (SOUZA, 2009; BERTOLLI FILHO,
2003). Panaceia das doenças sem remédio, como a este se referia
o médico Acácio Pires em 1919, o quinino, alcaloide com proprie-
dades antitérmicas, antimaláricas e analgésica, foi considerado por

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muitos como remédio específico para a gripe (SOUZA, 2009). Durante


a pandemia de 1918, os purgativos e o quinino não só se mostram
ineficazes, como provocaram efeitos colaterais indesejados como
desidratação, no caso do primeiro, e intoxicação, no caso do segundo
(SOUZA, 2009; BERTOLLI FILHO, 2003).
Ao tempo em que as epidemias e pandemias revelam os
limites da ciência e da medicina, costumam, igualmente, estimular
e evidenciar os progressos técnicos e científicos. Logo no início da
pandemia, de COVID-19, identificou-se que o patógeno pertencia
a família dos coronavírus, seu genoma foi sequenciado e o novo
vírus recebeu o nome de Sars-Cov-2. Os avanços da tecnologia e
da biomedicina permitiram o rápido sequenciamento genético
do vírus e o desenvolvimento em tempo recorde de uma vacina.
Apesar de tais avanços, não foi possível desenvolver um remédio
específico para doença, sendo testadas várias substâncias para
prevenir, controlar a infecção, atenuar os sintomas e sequelas.
Muitos medicamentos recomendados como preventivos ou
terapêuticos têm-se mostrado ineficazes depois da realização
de estudos científicos desenvolvidos no desenrolar da pandemia
(BARIFOUSE, 2020). Em paralelo, as medidas clássicas de controle
de epidemias seguem sendo adotadas – quarentena, interdições,
isolamento do doente, vigilância sanitária, desinfecções, etc. –,
tendo se tornado mais severas conforme surgem variantes mais
contagiosas e letais do vírus e a vacinação ocorre em velocidade
inversamente proporcional ao avanço da pandemia.
A tensão desencadeada pela crise epidêmica tanto estimula
atitudes escapistas, negacionistas, fuga dos locais infectos, quebra
de valores humanitários, quanto podem estimular o cuidado, a
solidariedade e exacerbar as expressões de religiosidade. Os reli-
giosos parecem não temer o risco de contaminação nos espaços
sagrados, mesmo quando os rituais propiciam aglomerações,

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inclusive em locais fechados, desafiando as recomendações das


autoridades sanitárias. Outros buscam a proximidade com o plano
espiritual, não por desacreditarem na ciência ou por falta de aces-
so aos médicos, mas por esperar encontrar na religião explicação
e conforto para a dor provocada pelas perdas de entes queridos,
cura e proteção contra a doença e a ameaçada morte.

Considerações finais

Encerra-se, por fim, esta discussão ressaltando-se a impor-


tância dos estudos historiográficos das epidemias, pelo que estas
revelam das sociedades em que incidem. Uma doença, não apre-
senta, em si mesma, nenhum significado – trata-se de um evento
biológico que só adquire significado e significação dentro de um
contexto humano, nos diversos modos pelos quais se infiltra nas
vidas das pessoas, nas reações que provoca, e na maneira pela
qual dá expressão a valores sociais, culturais e políticos.
O medo, a ansiedade e a angústia gerados pela ameaça de
adoecimento e morte, pelas perdas de conhecidos, amigos e entes
queridos determinam a necessidade de entender o fenômeno, e
o caráter de espetáculo público de uma epidemia exige resposta
igualmente visível e imediata. Reitera-se, por fim, que, apesar das
diferenças entre doenças, patógenos e contextos, as epidemias e
pandemias revelam dilemas em comum para nomear e explicar as
doenças e responder a estas, observando-se, ao longo da história,
reações semelhantes diante do risco súbito de adoecimento e morte,
de possíveis perdas econômicas, de quebra de valores socioculturais,
enfim, da violenta interferência na normalidade da vida cotidiana.

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DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
NARRATIVAS E FONTES DA HISTÓRIA DAS EPIDEMIAS

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DA PESTE DE ATENAS À COVID-19: TEMA, ABORDAGENS,
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Christiane Maria Cruz de Souza 122


Capítulo 7
UM TUMOR QUE CRESCE
FEITO “CARRAPATEIRA
NOVA”: HISTÓRIAS DO
CÂNCER NA PARAÍBA
OITOCENTISTA
Azemar dos Santos Soares Júnior

“Tudo que irrita, corrói, corrompe ou consome, lentamente em segre-


do”. Com essa afirmativa, Susan Sontag (2007, p. 16) iniciou a defini-
ção sobre o câncer e seguiu afirmando que a mais antiga definição
literal dessa doença foi descrita como um inchaço, um caroço, ou
uma protuberância, e o nome da enfermidade possui o sentido de
caranguejo. Um mal da degeneração, pois faz com que os tecidos do
corpo se tornem algo duro, ou numa metáfora, “o corpo é invadido
por células alienígenas, que se multiplicam e causam uma atrofia,
um bloqueio das funções corporais”. Doença responsável por fazer
o corpo encolher, murchar, definhar. Mesmo podendo ser agressivo,
fulminante e letal, na maioria dos casos o câncer age devagar, de
forma traiçoeira. Na maioria dos registros obituários, num momento
em que ainda não se tinha muitas informações sobre essa acharque,
constava que o paciente morreu após longa enfermidade. A maioria
das narrativas encontradas sobre a doença a apresenta como lenta,
como uma doença do espaço que se espalha pelo corpo, se prolifera,
está em constante difusão até que o tumor seja extirpado, ou que
ele destrua a vida de seu portador.
UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

Na tessitura escrita acerca da História do cancro, Marie-José


Imbault-Huart (1985), contou que o câncer é uma doença conhe-
cida e estudada desde a alta antiguidade. Embora mais conheci-
da como cancro, essa doença não tinha uma história no sentido
social do termo, mas sim, uma história científica do cancro, do
seu conhecimento, do seu diagnóstico e de sua terapêutica. Esse
fato contribuiu para que a sociedade se mantivesse indiferente
ao morbo durante o decorrer dos séculos. Foi ainda na antigui-
dade, através dos escritos hipocráticos do século IV a. C., que foi
apresentado a primeira definição sob o nome de carcinoma ou
de cirro, que o latim traduziu em câncer (caranguejo). “Define-se
como um tumor duro, não inflamatório com tendência a recidiva
ou generalização” (IMBAULT-HUART, 1985, p. 176-177).
Em sua Doença como metáfora, Susan Sontag (2007, p.
16) afirmou que desde a antiguidade tardia o câncer foi descrito
como um processo em que o corpo é consumido, ou “uma afec-
ção melancólica que come as partes do corpo”. Para Marie-José
Imbault-Huart (1985), perdurou a ideia de que o cancro é uma
doença geral cujas manifestações apenas são locais. Até o século
XVIII prevalece, portanto, a ideia de que o cancro é uma doença
geral da qual apenas algumas manifestações locais podem ser,
em certos casos, passíveis de uma terapêutica. Esta terapêuti-
ca - médica ou cirúrgica – visa a destruição ou a extirpação do
tumor. A este tumor destrutivo e proliferante, que, diz Ambriose
Paré, tomou o nome de cancro por se parecer um caranguejo,
aplicam-se as drogas causticas destinadas a atacar ou erradicar
a besta destruidora.
Nesse sentido, o câncer passou a ser entendido como uma
doença que pode atingir qualquer órgão, cuja área de alcance
abrange o corpo inteiro. Ou como descreveu Susan Sontag (2007),
o câncer é uma enfermidade de crescimento, as vezes visível, mas

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

tipicamente interno, de um crescimento anormal e em última


instância letal, que é medido, incessante, pertinaz. Embora haja
períodos em que o crescimento do tumor seja contido, o câncer
não produz contrastes, como os oximoros de comportamento, ou
aquilo que chamamos de sintomas visíveis. No cancro, os sinto-
mas são tidos como tipicamente invisíveis. A doença geralmente
é descoberta num exame de rotina e pode já se encontrar num
estágio muito avançado sem ter apresentado qualquer sintoma
considerável. É nesse instante em que o corpo do paciente inicia
sua via crucis: o tumor cresce fogosamente, destrói a vitalidade
do corpo, amortece os desejos, transforma atividades cotidianas
numa provação. É o mal da degeneração, na qual os tecidos do
corpo se transformam em algo duro, pedra maligna e mortal.
É sobre o câncer, ou melhor, sobre casos dessa enfermidade
que volto meu olhar de historiador. Assim, afirmo que o objetivo
desse texto é analisar a história do câncer na Paraíba a partir da
história de sujeitos vitimados pelo câncer localizado temporal-
mente no oitocentos. É importante ressaltar que no século XIX, a
doença era pouco noticiada pela imprensa paraibana, e quando
mencionada, vinha com a alcunha de tumor ou cancro. Uma enfer-
midade que revelava, segundo Imbault-Huart (1985) o arquétipo
da nossa impotência no controle da doença e da morte.
Metodologicamente, analisei as notícias jornalísticas encon-
tradas sobre a doença a partir da proposta de uma ordem discursi-
va, como propôs Michel Foucault (2012). Após coletar e selecionar
intencionalmente as publicações, fiz leituras que me possibilitaram
reinventar aqueles escritos a partir de um imaginário elaborado,
para em seguida confeccionar uma interpretação em forma de
escrita, que chamo de História. Uma elaboração linguística feita
a partir do entendimento dos registros de um dado passado que
chegou em minhas mãos, e que, meticulosamente, pude espremer,

Azemar dos Santos Soares Júnior 125


UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

dissecar, virar ao avesso e transformar noutra ordem discursiva.


Esse texto que trata do câncer na Paraíba do século XIX, pode ser
visto como uma versão escrita sobre uma doença que a época
parecia possuir pouca incidência, mas que na maioria dos casos,
já era incurável. Um escrito que está organizado em duas partes: o
triste caso de Thomaz Camboia e as formas pelas quais a imprensa
noticiava casos de óbitos provocados por um tumor.

O triste caso de Thomaz Cirne Camboia

Dentre os poucos casos de câncer que mais chamaram aten-


ção, cito o episódio vivido por Thomaz Cirne da Costa Camboia,
portador de lipoma localizado na perna, no ano de 1877.
Era véspera de um dia qualquer no ano de 1877, quando
esbaforido pela pressa do ofício e com a testa retesa de suor, o
Sr. Tomaz Cirne da Costa Comboia, então enfermeiro do Hospital
Nossa Senhora das Neves, caminhava pelos corredores do velho
prédio tentando atender aqueles que mais necessitavam de sua
ajuda. O trabalho era tanto naquela instituição médica, que “[...]
não permitia sequer repouso áqueles que lidavam com os doen-
tes. Para elles o trabalho era excessivo e contínuo” (CASTRO, 1936,
p. 93). Algumas vezes, chegou a reclamar que todos os profis-
sionais tinham tempo para o lazer, para um bate papo sobre a
vida alheia na calçada ou mesmo para a leitura dos jornais que
circulavam com as notícias políticas dos conflitos entre os partidos
Conservador e Liberal; ou mesmo para encostar a cabeça numa
parede qualquer e tirar um cochilo que revigorava as forças para
enfrentar o restante do dia ou da noite.
Os dias se passavam e as demandas de atendimento no
hospital não parava de aumentar, seja para cuidar dos “[...] sezões,

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HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

moléstias interiores, espasmos, affecções pulmonares, marasmos,


etc.” (CASTRO, 19362, p. 93), seja devido a “[...] miséria que campea-
va e cidade que hospedava retirantes em consequência da seca”
(CASTRO, 1936, p. 93), ou mesmo devido aos casos de varíola e das
câmaras de sangue que aqui ou ali insistiam em aparecer. Essa situa-
ção, obrigou o enfermeiro chefe do Hospital Nossa Senhora das
Neves a preencher todos os seus dias de labuta a tarefa de cuidar,
de ofertar formas capazes de reduzir suas dores, de lhes dizer pala-
vras que afagassem a alma e lhes apresentasse uma esperança
de cura. Embebido da tarefa do cuidar, próprio da enfermagem,
acabou por viver “[...] atarefada com a azafama das suas enferma-
rias sem se lastimar da sorte” (CASTRO, 1936, p. 93-94).
Oscar Oliveira de Castro (1936, p. 94) descreveu o enfermei-
ro como um profissional que se destacava em seu ofício. Ou como
afirmou com suas palavras “[...] não era um homem qualquer,
com phisionomia qualquer. Não senhor! Ele se singularizava”.
Fisicamente era alto, magro, estrábico e excessivamente sanguí-
neo. Alguém que colecionava “boas referências”: era “[...] inteli-
gente e tinha um temperamento dynamico e empreendedor [...]
e se não fosse essas qualidades talvez não tivesse tanto prestígio
para o diretor do hospital – o Dr. Jerônymo Cabral e os Drs. Cruz
Cordeiro19 e Ernesto Feliciano, que de facto eram seus amigos”
(CASTRO, 1936, p. 94). Sua fama e competência corria a cidade da
Parahyba, rendendo-lhe ofertas de emprego em outras institui-
ções a exemplo da vaga na Commissão de Socorros Públicos, que
lhe pagaria um salário bem melhor que o que ganhava no hospital.

19 Antônio da Cruz Cordeiro nasceu em Guarabira-PB, em 28 de novembro de


1832 e formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia. Foi médico
da Santa Casa de Misericórdia. Atuou como cirurgião no hospital da capital parai-
bana. Foi deputado provincial por cinco anos (Cf.: MEDEIROS; LUCAS, 2014, p. 24).

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

Mesmo diante das atribulações do emprego que ocupava


no hospital e dos investimentos para ajudar na cura dos doen-
tes, Thomaz Camboia encontrava tempo para dedicar a sua vida
amorosa: estava naquele ano de casamento marcado com a
senhorita Laudice Pereira “[...] moça de origem estrangeira, orphã
de pae e mãe e que vivia na casa de um tio na rua do Carro” no
povoado de Livramento20 “[...] um dos pitorescos arrabaldes inte-
ressantes da nossa capital”. O matrimonio dos nubentes era visto
com alegria pelos seus amigos médicos que dentre um curativo e
outro comentavam sobre o gosto que faziam com aquela união.
Um homem dito bom e uma moça de família, educada, apta para
ser uma boa esposa, mãe e dona de casa.
Porém, em fins de setembro de 1877, Thomaz Camboia
passou a andar tristonho pelos corredores do velho hospital,
cabisbaixo, de poucas palavras e com sorriso apagado. A razão?
O surgimento de um tumor em sua perna, fato que “[...] consti-
tuía uma das suas grandes preocupações” (CASTRO, 1936, p. 94).
O crescimento do caroço passou a lhe incomodar não apenas
porque agredia sua saúde, mas também porque poderia exigir
uma pausa no trabalho e o adiamento do casamento. Assim,
tratou logo de mostrar o tumor ao Dr. Cruz Cordeiro que lhe deu
o seguinte diagnóstico: “[...] era um lipoma localisado na cavida-
de poplitéa, cuja cura dependia de uma intervenção cirúrgica”
(CASTRO, 1936, p. 95). O veredito médico soou como uma terrível
sentença, especialmente por ser enfermeiro e já ter acompanhado
a operação de retirada de um lipoma do Sr. Manuel dos Passos
que ficara inutilizado. Por outro lado, tinha uma esperança, pois
também havia assistido a cirurgia do Coronel Franca para a reti-
rada de um “grande lubim” no pescoço, e encontrava-se “[...] são

20 Atualmente, Livramento é um distrito no município de Santa Rita.

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e salvo [após] aquella horrível extração”. Assim, Thomaz Camboia


tinha ao longo de sua experiência profissional duas experiências:
uma boa, a do coronel Franca que lhe estimulava a se submeter
a intervenção cirúrgica; e uma ruim, a do Sr. Manuel dos Passos,
que lhe desanimava, impunha medo.
Assim, é possível imaginar as sensações que estavam
contidas na experiência vivida. Sentimentos opostos, antônimos
que geriam a história daquele enfermeiro: de um lado o medo,
do outro a esperança. Se as sensibilidades se apresentam como
operações imaginárias de sentido e representação do mundo,
que consegue tornar presente uma ausência e produzir pela força
do pensamento, uma experiência sensível do acontecido, como
defendeu Sandra Pesavento (2007), imagino as sensações vividas
por Thomaz Camboia que passou a ser movido pelo medo de
ficar inutilizado, ou mesmo da morte, pela esperança da cura,
pelo alivio da dor, pela repulsa em conter a marca da doença.
Sentimentos historicamente comuns aqueles que portavam
algum tipo de câncer. A história de Thomaz Camboia está povoa-
da de sensibilidades, daquelas que exprimem atos, ritos, pala-
vras, imagens. Sensibilidades que podem ser evocadas através
da imaginação, do sentir. Seus sonhos e medos, foram realidade
enquanto sentimentos, “mesmo que suas razões ou motivações,
no caso, não tenham consistência real” (PESAVENTO, 2007, p. 20).
As sensibilidades estão presentes na formulação imaginária do
mundo que os homens produzem em todos os tempos, assim, a
história de Thomaz Camboia é uma história das sensibilidades,
não apenas por voltar-se para o estudo do indivíduo e da subje-
tividade, das trajetórias de vida, mas também por lidar com a
vida privada e com as suas nuances e formas de exteriorizar ou
esconder os sentimentos.

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

Conforme percebo na descrição contida no documento


sobre Thomaz Camboia, existia uma preocupação maior por parte
do portador de câncer: perder suas habilidades, o medo de ficar
inútil. Imagino que outra questão lhe angustiava: a cirurgia. O
corte feito em sua perna, as dores cruciantes, o sangue derrama-
do, a febre traumática, os gritos urdidos. Não havia outro cami-
nho, precisava se submeter a mesa da ciência médica e ao bisturi
que amputaria o caroço maligno da doença. Sua situação precisa-
va ser resolvida, “[...] porque além do tumor está crescendo que
só ‘carrapateira nova’ já queria abrir ferida” (CASTRO, 1936, p. 95).
É importante ressaltar que a partir de 1860 já existiam técnicas
consideradas avançadas no sentido se serem mais invasivas para
a retirada de tumores: “a cirurgia passou a ser a especialidade
médica mais próxima do câncer. No final do século 19, a extirpa-
ção radical de tumores tornou-se a principal ação da medicina
frente a doença” (TEIXEIRA; PORTO; NORONHA, 2012, p. 21).
Após longa conversa com sua noiva, a senhorita Laudice
Pereira, resolveram adiar por algumas semanas o enlace matrimo-
nial, até que a cirurgia fosse realizada e Thomaz Camboia estivesse
recuperado. Estava também decidido a realizar a operação de
extração do tumor que deformava a geografia física de sua perna,
e a cartografia afetiva de suas emoções.
Nos primeiros dias do mês de novembro, nas primeiras
horas da manhã, reuniu-se, segundo Oscar Oliveira de Castro
(1936, p. 95) “[...] verdadeira junta médica” para discutir o caso
do enfermeiro. Naquela sessão, “[...] havia de ser resolvida a sorte
do Camboia”. Estavam presentes os médicos Ernesto Feliciano
e Jeronymo Cabral que haviam chegado mais cedo “[...] porque
eram mais pontuais”; Thomaz Camboia, aflito, despido dos pés à
cabeça. Estava deitado na mesa de operação “[...] em decúbito
ventral”, quando entrou na sala o Dr. Cruz Cordeiro, apressado e

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
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desculpando-se pelo atraso. Imagino que pela forte amizade, cari-


nho e respeito que Thomaz Camboia tinha pelo Dr. Cruz Cordeiro,
sua presença acabou por “[...] ser doce e sedativa para o doente”.
Em relatório escrito pelo Dr. Cruz Cordeiro, ao apalpar o tumor
que já tomava toda a cavidade poplitéa, percebeu que estava do
tamanho de uma laranja grande, avermelhado, envolvido por uma
pele fina como borracha esticada. Dessa forma, “[...] não havia
dúvidas, era um lipoma, disseram os três profissionais”. Naquela
situação, a “cirurgia deixava de ser uma loteria arriscada e se
transformava numa ciência segura e de base sólida” (FITZHARRIS,
2019, p. 254). Após intenso debate, marcaram a cirurgia para o
dia de Nossa Senhora da Conceição, 8 de dezembro. Seria o anún-
cio de boa ventura? O devoto fervoroso de Maria, mãe de Jesus,
acreditava que sim. Imagino quantas orações foram feitas pelo
doente e seus familiares para que tudo ocorresse bem de forma
a alcançar a graça da cura.
Ao encontrar com sua noiva, informou a data da interven-
ção cirúrgica, e o pedido de que ela estivesse presente no hospi-
tal dando-lhe forças, fazendo-lhe companhia em momento “[...]
de transe tão doloroso da vida” (CASTRO, 1936, p. 96). Laudice
Pereira, respondeu positivamente ao pedido de seu futuro mari-
do. Organizou-se com seu tio, e no oitavo dia do último mês de
1877, partiram de Livramento nos primeiros raios solares rumo a
capital paraibana. No dia anterior a operação, Thomaz Camboia
procurou um padre para se confessar e pedir a remissão de seus
pecados. No fim da tarde, ingeriu um purgante de jalapa, como
parte do preparo para a realização da cirurgia. Precisava estar
com o intestino vazio, limpo.
No dia 09 de dezembro, o jornal O Publicador tratou de
estampar em suas páginas a descrição da cirurgia de retirada
do lipoma da perna do Sr. Thomaz Camboia: “[...] foi realizada

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

hontem no Hospital Nossa Senhora das Neves, uma melindrosa


operação na pessôa do Sr. Thomaz Cirne da Costa Camboia” (O
PUBLICADOR, 9 dez. 1877). O periódico noticioso informou aos
leitores que o Dr. Cruz Cordeiro realizou a incisão para retirada
do tumor na presença do vice administrador do hospital, enfer-
meiros e pessoas da família do paciente. A cirurgia ocorreu bem,
“[...] havendo da parte do operado a maior coragem e da parte
do operador toda a calma e habilidade” (O PUBLICADOR, 9 dez.
1877). O caroço fora retirado da parte superior da perna direita,
cujo “[...] desenvolvimento tornava-se de tão grandes proporções
que lhe embaraçava a marcha, apresentando o volume de uma
grande laranja” (O PUBLICADOR, 9 dez. 1877).
Conforme a descrição do Dr. Cruz Cordeiro, o lipoma havia
crescido demais, havia inflamado e começava a tornar-se uma
ulcera quando foi realizado sua extração. Afirmou ainda que a
melindrosa cirurgia foi realizada sem emprego de clorofórmio,
fazendo-me imaginar sua dor. Com bisturi nas mãos, o médico fez
um corte de forma elíptica em toda a circunferência do tumor,
em seguida dissecou sua pele em ambos os lados até a sua larga
base que ocupava parte da região poplítea.
De acordo com Soares Júnior (2015) como vemos, não exis-
tia nas cirurgias uma preocupação com o asseio de quem opera,
muito menos do operado. A assepsia se restringia exclusivamente
a simples lavagem das mãos e de instrumentos com soluções feni-
cadas. Não se dispunha de luvas, nem de nenhum outro instru-
mento usado para assegurar a higiene dos corpos envolvidos. O
ofício de ser médico no século XIX envolvia dedicação, e, habili-
dade com os instrumentos necessários a medicalização. Foi nesse
cenário que nasceram as primeiras preocupações com a higiene
do corpo, dos procedimentos médicos e dos hospitais. Todas os
envolvidos no procedimento seja o paciente, sejam os médicos,

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ou mesmo aqueles que assistiam a operação estavam expostos


a contrair outras doenças.
A descrição do tumor e a afirmativa de sua extração, bem
como do elemento célulo-fibroso que o envolvia revela que o
saber médico, já na segunda metade do século XIX, sabia-se
que o câncer era uma doença que fazia as células proliferarem,
portanto, tudo que que estivesse ligado ao tumor precisaria ser
retirado. O caso do lipoma do enfermeiro revela que o câncer
“vai crescendo aos poucos: não se imagina que ele permaneça
em estado de latência por um período demorado [...] o câncer
avança através do corpo, viajando ou migrando por rotas previ-
síveis” (SONTAG, 2007, p. 94). O câncer é uma doença geográfica,
ele fogosamente se espalha pelo corpo, deforma suas curvas, ou
mesmo cria montanhas disformes. Num momento em que o único
tratamento possível era a cirurgia para a retirada do tumor, fazia-
-se necessário que ele fosse extraído por completo, especialmente
porque o câncer sempre foi uma doença que não deu margem
a uma idealização romântica ou sentimental, por ser associada
constantemente a morte.
Convencionalmente, imagina-se que o câncer é uma massa
de concreto, dura, rija, uma pedra. Nem sempre! O lipoma de
Thomaz Camboia possuía “uma substancia concreta branco mate,
de consistência mole, elástica, pastosa”, mas tão nociva e cruel
quanto um caroço necrosado. Por vezes, o câncer foi visto como a
própria traição do corpo. A criação de um feto maldito e indeseja-
do dentro de sua carne. Mas seja qual for o seu formato, os mais
diversos tipos de câncer acabam por apresentar uma variedade de
“sintomas que incapacitam, desfiguram, e humilham o paciente,
tornando-o cada vez mais fraco, indefeso e incapaz de contro-
lar suas funções e atender a suas próprias necessidades básicas”
(SONTAG, 2007, p. 93). Embora em grande parte dos casos a ação

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dessa doença seja maligna e destrua o corpo e a vida, esse não


foi de cara o destino do enfermeiro, que após a cirurgia “[...] vae
passando bem e somente com pequena febre traumática” (O
PUBLICADOR, 9 dez. 1877).
Vinte dias após a operação, o enfermeiro retornou as suas
atividades no Hospital Nossa Senhora das Neves. Contou Oscar
de Castro (1936, p. 97) que o Sr. Thomaz Camboia se sentia outro
homem, “[...] marchava melhor e sua perna fora aliviada de um
grande peso, seu coração batia com mais força e uma coisa bôa
lhe parecia invadir constantemente o corpo”. É possível que o
enfermeiro tenha sentido alívio em seu corpo devido a retirada do
tumor, mas que algo bom invadia seu corpo, não creio ser de todo
verdadeiro, pois uma nova desgraça se abateu sobre sua história,
indizível acabrunhamento, peça maldita pregada pela vida!
A edição após as festividades natalinas do jornal O
Publicador noticiou a seguinte chamada da sessão A Pedidos: “Um
ramo de cypestre sobre a campa de uma jovem parahybana”.
A notícia timbrada na segunda página trazia consigo a imagem
de uma cruz negra, simbolizando luto e tristeza, ou a notícia de
que “[...] um véu de luto cobre uma família inteira, uma mudança
notável e contristadora na animação que reinava no seio de uma
família feliz” (O PUBLICADOR, 26 dez. 1877). A publicação informa-
va as características de dor e tristeza que tomavam o semblante
desbotando a felicidade de seus parentes e amigos que choravam
a dor do “[...] passamento prematuro de uma jovem distincta [...]
que acaba de baixar ao túmulo” (O PUBLICADOR, 26 dez. 1877).
Era a anúncio da morte da senhorita Laudice Pereira, noiva do Sr.
Thomaz Camboia.
A última vez que a jovem moça havia saído de Livramento,
havia sido para atender o pedido de seu futuro esposo, e assistir a
retirada de um tumor de sua perna direita. De acordo com a notícia

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d’O Publicador, após assistir a operação, “[...] appareceu-lhe uma


febrícula que três dias depois de sérios cuidados de sua família,
tanto quanto mais as doses homeopáticas que lhe foram applica-
das não produziam o desejado effeito”. Diante de sua condição de
doente de febre e convencida de que se aproximava “[...] o termo
fatal de sua existência [...] com voz doce e suave como os sons
queixosos que o vento exthrai das citharas”, pediu a sua tia, a Sra.
Joaquina Pereira do Anjos que chamasse o seu noivo, o Sr. Thomaz
Cirne da Costa Camboia. Apesar de ter recebido a aviso de que sua
noiva padecia e queria um último encontro de despedida, alegou
não poder ir visitar Laudice Pereira, pois “[...] preso como esta-
va aquelle nosso amigo ao leito de dôr e sofrimento por se haver
submetido a uma intervenção cirurgica” (CASTRO, 1936, p. 98).
Apesar disso, solicitou aos médicos amigos que tratassem
de sua amada. Recorreu aos Drs. Cruz Cordeiro e Innocencio Poggi
que se “[...] empenharam em salval-a das garras da tyrana Parca,
desse inimigo assustador e formidável aos olhos da humana inte-
ligência” (CASTRO, 1936, p. 98). A medicina, ou o arrogante saber
médico, como definiu Michel Foucault (2009, p. 27), nada pode
fazer diante daquela “febre de mal caráter”. Laudice Pereira havia
contraído alguma enfermidade não diagnosticada na ocasião de
acompanhamento de seu noivo durante a retirada do câncer da
perna do enfermeiro.
A história de Laudice, denunciava os problemas de contá-
gio e até mesmo de higiene nos hospitais da capital paraibana na
segunda metade do oitocentos. O hospital era um espaço de cura,
mas também de contágio e de morte. Salvou a vida de Thomaz
Camboia, mas sentenciou a morte Laudice Pereira. Com a partida
dela, também quebrava o matrimonio que viria a ser selado. Nesse
caso, o câncer foi vencido pelo saber médico, mas contou com a

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
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ajuda de outras enfermidades para causar um dano a vida de sua


vítima, ceifando a vida de sua dita amada.
Essas histórias revelam ainda que ser médico na Paraíba do
século XIX era passear por todas as áreas da medicina, não exis-
tiam especialista em uma determinada área. Esses profissionais não
possuíam uma especialização, mas várias, mesmo quando alguns
deles não possuíam o diploma de médico. A higiene era outro fator
que passava a preocupar: os procedimentos médicos não esteriliza-
dos passava a ser assistido por diversas pessoas sem a preocupação
com o paciente, nem com o expectador. Como dito acima, o câncer
quando não vencia, tratava de enviar seus apoiadores: outras enfer-
midades traiçoeiras que possuíam o poder de matar com o mesmo
requinte de crueldade. Já que o câncer era uma acharque respon-
sável por levar o corpo do infectado a óbito na maioria dos casos,
passo a discutir as poucas notícias encontradas nos jornais sobre o
padecer do corpo provocado por tumores malignos.

Os obituários do câncer
ou a gravidez da morte

As notícias sobre o padecimento de vidas ao longo do oito-


centos paraibano ficou a cargo dos jornais de caráter literário e
noticioso. Era bastante comum que esses impressos publicassem na
coluna obituária informações contendo o quantitativo de mortes,
o nome dos finados, e a depender da importância social que a
família ocupava, recebiam como forma de condolência, os pêsa-
mes públicos grafados em palavras tingidas com tintas escuras. Na
toada da procura por vítimas de enfermos por câncer na Paraíba do
século XIX, cheguei aos obituários jornalísticos que permitiu fazer

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

o levantamento de alguns casos noticiados de mortes por câncer.


Para melhor compreensão, vejamos o quadro abaixo:

Quadro 1 – Mortes por câncer na Paraíba da segunda metade do século XIX


NOME IDADE CAUSA PUBLICAÇÃO DATA
Marcelina Maria
48 anos Um tumor O Publicador 10/02/1866
do Ó
Andreza Maria
50 anos Um tumor O Publicador 25/10/1866
da Penha
Bernardina 3 meses Um tumor O Publicador 18/09/1866
Antonio 15 dias Um tumor O Publicador 21/12/1867
Vicência Pereira
65 anos Um tumor O Publicador 01/12/1867
das Neves
Genoveva do
35 anos Um tumor O Publicador 01/05/1869
Espírito Santo
João Francisco
25 anos Um tumor O Publicador 26/07/1869
Lima
Felicidade Maria
32 anos Um tumor Diário da Paraíba 30/09/1884
do Amparo
Floriano 2 meses Um tumor Diário da Paraíba 17/10/1884

Fonte: Quadro elaborado pelo autor a partir de dados contidos nos jornais em
circulação na Paraíba ao longo do século XIX (2021).

Os dados acima foram coletados nos periódicos paraibanos


que publicava em forma de lista os dados sobre o fim da vida de
cidadão paraibanos. Foi possível fazer esse levantamento nas décadas
de 1860 e 1880, momento de circulação dos jornais acima listados.
Todos tinham em comum o fato de as indicações nominais dos fina-
dos virem acompanhado da causa morte. Assim, foi possível afir-
mar que o câncer enquanto doença, já ceifava vidas junto as demais
enfermidades consideradas mais frequentes nos registros de óbitos.

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UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

Verifiquei ainda que a doença era identificada com a particularidade


de sua propriedade física: um tumor. Embora seja possível encontrar
nos noticiários referência a palavra câncer como sendo a doença, era
a palavra tumor que imperava na anotação obituária.
Além do formato listado de mortos, os obituários ganhavam
outros contornos quando se levava em consideração o posto social
ocupado pelo morto e/ou sua família. Também foi possível encontrar
nas páginas amareladas dos impressos, escritos de pêsames em forma-
to de texto, acentuando a pretensa solidariedade e comoção. Isso fica-
va mais evidente quando a morte do indivíduo causava consternação
por sua importância na sociedade paraibana, a exemplo da morte dos
padres na freguesia do Pilar, publicado no jornal A Regeneração, em
sua edição de sexta-feira, 14 de março de 1862: “[...] há pouco faleceu
o vigário da freguesia do Pilar e agora acaba de sucumbir d’um tumor
sobre o peito o de Taipu, e visitador da Província. Ambos eram dois
sacerdotes bons e exemplares” (Grifo nosso).
Nesse caso, o câncer fez duas vítimas eclesiásticas. A notícia
indicava a morte provocada por “um tumor” localizado no peito.
A época, as especificações da doença não estavam diretamente
relacionadas aos órgãos, mas a parte em que a protuberância
disforme ganhava forma e espaço. Não era a época um câncer
de mama, mas um tumor no peito. Chamo atenção ainda para a
adjetivação contida na notícia: “[...] ambos eram dois sacerdotes
bons e exemplares”. Frases do tipo vinham apenas em situações
em que o defunto matinha a considerada relevância no meio em
que vivia. Foi o que aconteceu com o registo da morte de dona
Adelaide de Lima Novaes:

[...] a 27 do mez recentemente findo, falleceu no Engenho


Graça victima d’um tumor canceroso a Exm.ª Sr.ª D. Adelaide
de Lima Novaes, digna esposa do Sr. Dr. José Ferreira de

Azemar dos Santos Soares Júnior 138


UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

Novaes, lente do Lyceu Parahybano. Era uma senhora muito


nobre e dotada de sentimentos muito nobres a ilustre finada.
Nossas condolências ao Sr. Dr. Novaes e todos os parentes
(JORNAL DA PARAHYBA, 9 mar. 1889. Grifo nosso).

Em escritos mais extensos, o Jornal da Parahyba anunciou


o fim da vida da senhora Adelaide provocada por “um tumor
canceroso”. Foi a primeira vez que me deparei com essa expres-
são em um jornal paraibano da época. O corpo estava associado
a doença. O tumor era o que provocava o câncer. Não havia na
nota fúnebre a indicação de ter havido algum tipo de tratamento
ou mesmo o local do corpo em que o trombo necrosado havia
crescido. Reafirmo mais uma vez, o destaque atribuído a senhora
que deixara a vida: “[...] muito nobre e dotada de sentimentos
nobres a illustrada finada”. Portanto, uma das formas de consolar
a família enlutada pela ação danosa do câncer, era trata-las com
bons predicados ao tempo em que esteve viva. Nesse ritmo de
despedida conferida pela doença, ficava apenas o desejo de “[...]
a terra lhes seja leve” (A REGENERAÇÃO, 14 mar. 1862).
Ao longo da segunda metade do oitocentos, foi possível
encontrar notícias de falecimentos de homens, mulheres e crian-
ças vítimas de câncer, ou como timbrou-se nas publicações, de
tumor. São anotações fúnebres que ou eram apenas dados esta-
tísticos do obituário, ou menções de saudade, para aqueles mais
abastados. Afora isso, a palavra tumor ainda aparece nos jornais
atreladas ao uso de medicamentos que prometia curar o câncer,
ou mesmo o atendimento de algum médico a seus pacientes que
portavam “[...] cancro [que] já havia tomado grandes proporções”
(A UNIÃO, 7 dez. 1895). Histórias de doentes desse mal que preci-
sam ser melhor exploradas.

Azemar dos Santos Soares Júnior 139


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Considerações finais

O câncer era uma doença pouco registrada nos obituários


paraibanos, se comparada a outras enfermidades como a tuber-
culose e a sífilis. Mas, embora tenha possuído uma incidência
relativamente pequena, não é possível afirmar sua real dimensão
no quesito morte, pois os registros ao qual tive acesso, tratavam
de publicar apenas a morte de pessoas que eram sepultadas nos
cemitérios públicos da capital paraibana. Nesse sentido, não foi
possível verificar a incidência do câncer no interior da Província.
Outro fato que deve ser levado em consideração, era o acesso da
população aos médicos, bem como, o diagnóstico preciso, visto
que na maioria dos casos de câncer, o paciente sequer chegava
a possuir um veredito, pois os tumores podiam nascer e crescer
sem ao menos ser diagnosticado devido à ausência de exames de
imagem. Sendo assim, acredito ser possível inferir que o número
de vítimas dessa doença pode ter sido mais largo do que os dados
noticiosos supõem.
Quando o tumor era visível a olho nu ou perceptível ao
toque das mãos, o único tratamento indicado naquele momento
era a cirurgia e sua total extração. A depender do tipo de tumor,
grande parte das cirurgias não obtinham sucesso, pois quando
muito asseguravam uma sobrevida ao enfermo. Quanto aos medi-
camentos, esses pareciam servir apenas para tratar da cura das
chagas abertas pela operação de extração do tumor. A remissão,
ou o período de sobrevida, durava apenas enquanto o câncer
não migrasse para outras partes do corpo. Não existia medica-
mento ou tratamento capaz de impedir ou dificultar a circula-
ção das células chamadas de cancerígenas que geograficamente
migravam pelo corpo. Falo de um período em que os tratamentos

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HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

de quimioterapia e radioterapia só ganhariam as máquinas e os


corpos dos pacientes no vigésimo século.
O câncer ainda era a época uma doença que provocava
pavor, especialmente por ser vista como contagiosa. Em alguns
casos, suas características se assemelhavam a lepra, sendo assim
considerada um perigo. Embora os médicos já tivessem ciência
de que a doença tinha origem nas células que sofriam “processos
inflamatórios [responsáveis por] estimular a proliferação celular,
favorecendo o surgimento de células malignas que dariam origem
a outras células com as mesmas características” (ANDRADE;
ALFONSO-GOLDFARB; WAISSE, 2017, p. 155), a informação de que
o câncer não era contagioso acabava por não chegar as pessoas.
O que circulava nos impressos locais era de que o câncer matava,
como estava pontuado nos obituários.
As parcas informações sobre a doença colocadas em circu-
lação na imprensa noticiavam o caso da enfermidade em pessoas
conhecidas por seus serviços prestados, como foi o caso do Sr.
Thomaz Camboia, ou por ser ilustres, como os padres vitimados
pela doença; ou ainda, como dados anotados na contagem de
mortos que adentravam as covas dos cemitérios públicos na segun-
da metade do século XIX. É possível perceber ainda que a maior
parte das pessoas que foram acometidas pelo câncer na capital
paraibana pertenciam a uma pretensa elite. Essa afirmativa não é
de toda verdadeira, pois é preciso levar em consideração o fato de
que apenas essa elite ganhava espaço nas páginas dos jornais, tanto
por seu status político e social, quanto por seu poder aquisitivo.
Por fim, é importante afirmar que o registro dos mais diver-
sos tipos de câncer, anunciavam desde o oitocentos, que trata-
va-se de uma doença em expansão, reivindicando da medicina
e dos médicos sua atenção para formas de conter a doença, ou
mesmo de prevenir a população contra esse mal. Uma mazela que

Azemar dos Santos Soares Júnior 141


UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

sugeria uma atenção especializada no que diz respeito ao avanço


da medicina de imagem, das cirurgias mais profundas e de medi-
camentos mais potentes, capazes de combater uma doença dura
como uma rocha, um granito do finamento. Enquanto esse avanço
não chegava, os molestados pelo câncer continuavam grávidos
de sua própria morte.

Azemar dos Santos Soares Júnior 142


UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

Referências

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ANDRADE, R. O.; ALFONSO-GOLDFARB, A. M.; WAISSE, S. Os


estudos sobre o câncer no século XIX e sua construção como
um problema médico no início do século XX no Brasil. Revista
Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p.
154-168, jul./dez. 2017.

CASTRO, O. O. Medicina na Paraíba. João Pessoa: A União, 1945.

CASTRO, O. O. Subsídios a história da medicina. Revista de


Medicina, João Pessoa, n. 2-3, p. 93-99, 1936.

FALLECIMENTO. Jornal da Parahyba, Parahyba do Norte, 9 mar.


1889.

FALLECIMENTOS. A Regeneração, Parahyba do Norte, 14 mar. 1862.

FITZHARRIS, Lindsey. Medicina dos horrores. Rio de Janeiro:


Intrínseca, 2019.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2012.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2009.

IMBAULT-HUART, Marie-José. História do cancro. In: LE GOFF, J.


As doenças tem história. Lisboa: Terramar, 1985. p. 175-186.

MEDEIROS, J. E. M.; LUCAS, J. M. Dicionário biográfico dos


médicos da Paraíba. João Pessoa: Grafique, 2014.

Azemar dos Santos Soares Júnior 143


UM TUMOR QUE CRESCE FEITO “CARRAPATEIRA NOVA”:
HISTÓRIAS DO CÂNCER NA PARAÍBA OITOCENTISTA

MUKHERJEE, S. O imperador de todos os males: uma biografia


do câncer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

NOVO TRATAMENTO DO CANCRO. A União, Parahyba do Norte,


7 dez. 1895.

OBITUÁRIO. Diário da Manhã, Parahyba do Norte, 1884.

OBITUÁRIO. O Publicador, Parahyba do Norte, 1866-1869.

PESAVENTO, S. J. História e História Cultural. Belo Horizonte:


Autêntica, 2005.

PESAVENTO, S. J. Sensibilidades: escrita e leitura da alma.


In: PESAVENTO, S. J.; LANGUE, Frádérique. Sensibilidade na
história: memórias singulares e identidades sociais. Porto
Alegre: UFRGS, 2007. p. 9-22.

SOARES JÚNIOR, A. S. As metáforas do câncer e as ressonâncias


de um corpo deformado. História Revista, Goiânia, v. 24, n. 2, p.
258–276, 2020.

SOARES JÚNIOR, A. S. Corpos hígidos: o limpo e o sujo na


Paraíba (1912-1924). Rio de Janeiro: AMCGuedes, 2015.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora. São Paulo:


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TEIXEIRA, L. A.; PORTO, M. A.; NORONHA, C. O câncer no Brasil:


passado e presente. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012.

Azemar dos Santos Soares Júnior 144


Capítulo 8
“O TUTOR, O SALVADOR
DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO
CEARÁ (1862-1863)
Jucieldo Ferreira Alexandre

Introdução

Em 1862 o Ceará foi duramente atacado pelo cólera. Pela primeira


vez, ele adentrara o território da província, rapidamente espa-
lhando-se e deixando um saldo de aproximadamente doze mil
mortos. O estouro do cólera no Ceará coincidiu com a posse de
um novo presidente de província, José Bento da Cunha Figueiredo
Júnior (1833-1885).21 À época, a instabilidade política tomava o
governo imperial, decorrente de questões delineadas ao longo dos
anos 1850 e princípios de 1860, ligadas às reformas iniciadas no
Gabinete da Conciliação, do Marquês de Paraná, responsáveis por

21 Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife, era filho do Visconde de Bom


Conselho. Figueiredo Júnior governou as províncias do Rio Grande do Norte (1860
e 1861), Ceará (1862-1864), Alagoas (1868-1871) e Maranhão (1872). Como depu-
tado geral, por Pernambuco, seria eleito para duas legislaturas, em 1872-1875 e
1878, sendo a última dissolvida durante a primeira sessão (BLAKE, 1889, p. 337).
“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

uma recomposição do parlamento na Corte. A ascensão da “Liga


Progressista”22, em 1862, indiciava como a Câmara dos Deputados
estava cindida, ofertando pouca sustentação aos gabinetes. Ao
longo de 1862, três ministérios governaram o país: Marquês
de Caxias, Zacarias de Góis – cujo governo durou seis dias – e
Marquês de Olinda.

22 As reformas eleitorais iniciadas pelo Gabinete da Conciliação do Marquês


do Paraná causaram um aumento de políticos liberais no parlamento. No início
dos anos 1860 uma nova configuração da Câmara se desenhava e os gabinetes
encontravam dificuldade para sustentar-se. O senador Nabuco de Araújo – de
origem conservadora, mas que fez parte do Gabinete da Conciliação –, em
discurso de 1862, atribuiu a instabilidade dos governos ao “partido Conservador
puro”, cioso por dominar todas as posições oficiais: “Eu não sou liberal, mas
digo, que não é possível admitir essa perpétua exclusão dos brasileiros... É
condição da paz pública que uns respeitem as opiniões dos outros, pois este
Brasil é de todos os brasileiros” (NABUCO, 1997, p. 434). Bradava pela garantia
de representação das minorias como condição única para a paz pública e para
a civilização. Batizando um movimento político que marcaria os anos 1860,
convocava liberais e conservadores moderados a fazerem liga: “O que não
admito, e contra o que eu protesto em honra do Brasil, em honra da nossa
civilização, é que se não possa fazer uma liga com os liberais, porque em razão
do seu passado eles estão perpetuamente excomungados” (NABUCO, 1997, p.
433-434). Em 1862, a ideia da Liga foi ganhando forma: as quedas dos ministé-
rios Caxias e Zacarias demonstravam a aliança entre liberais e conservadores
moderados contra os seguimentos chamado de conservadores “emperrados”
ou “saquaremas”. A nomeação do Marquês de Olinda pelo Imperador para
compor o novo governo e a decisão por não dissolver a Câmara, o que levaria a
convocação de nova eleição, demonstrava o interesse do monarca em retornar
aos princípios da Conciliação dos anos 1850 (HOLANDA, 2012, p. 16-17).

Jucieldo Ferreira Alexandre 146


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

A instabilidade política era, assim, um elemento complica-


dor para o presidente Figueiredo Júnior, que fora nomeado pelo
Marquês de Caxias. Se a complexidade definia o cenário nacional,
o provincial também não era tranquilo. O presidente do Ceará
teve que entrar em contato com as disputas partidárias entre
“chimangos” e “carcarás” – como eram chamados os cearenses
liberais e conservadores, respectivamente–, buscando vislumbrar
as particularidades delas para definir as estratégias a adotar em
seu governo e para cumprir as determinações ministeriais recebi-
das. Desde a década de 1840, a política provincial era dominada
por uma hegemonia dos conservadores, a expurgar os liberais dos
cargos públicos mais proeminentes e, via fraude e violência nas
eleições, das boas colocações no legislativo provincial e nacional
(CORDEIRO, 2007, p. 145).
O cólera veio adicionar mais desafios à conjuntura. A mani-
festação espetacular da epidemia colocou o presidente no centro
das decisões e atenções. Vendo o drama da peste sobre a provín-
cia, e buscando ler as atitudes da presidência durante a quadra da
moléstia, os grupos políticos e sua imprensa acabaram tomando
a epidemia como mote para desestabilizar o presidente ou para
conseguir seu apoio, e, por conseguinte, usar o poder do chefe
do executivo para garantir benesses.
Nas páginas do jornal conservador Pedro II – propriedade
da família Fernandes Vieira, que dominava o Partido Conservador
na província –, o presidente Figueiredo Júnior encontrou quan-
tidade considerável de críticas às ações do governo provincial
na epidemia. A postura do jornal não deixava de ser delicada,
pois, em 1862, quando da chegada do cólera ao Ceará, a reda-
ção da folha estava a cargo de Manoel Franco Fernandes Vieira

Jucieldo Ferreira Alexandre 147


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

(1821-1880).23 O problema era que o redator ocupava um cargo


de peso na administração provincial: inspetor na Inspetoria do
Tesouro, chefiando o controle das finanças do Ceará. Além disso,
era vice-provedor da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza,
entidade também ligada ao governo provincial.
As recorrentes críticas do jornal à postura do governo provin-
cial na crise sanitária geraram forte celeuma entre Manoel Franco
e o presidente José Bento, resultando na demissão do primeiro
pelo segundo, bem como na quebra do contrato que fazia do jornal
conservador o espaço de publicação do expediente provincial. Se
o Pedro II já vinha atacando o chefe do executivo provincial, as
decisões do presidente fizeram com que a cobertura diária sobre o
cólera tomasse uma feição mais virulenta, na qual as mortes eram
apresentadas como consequências diretas da imprevidência gover-
namental: “questão vital para a província, o Sr. José Bento está
condenado no conceito de todos como inepto e imprevidente com
suas providências póstumas” (Pedro II, n. 151, 5 jul. 1862, p. 3).24
Enquanto o diário Pedro II, órgão conservador, dos “carca-
rás” Fernandes Vieira, tomou o cólera para opor-se a Figueiredo
Júnior, os jornais “chimangos”, O Cearense, Gazeta Official, O Sol e
O Araripe, trataram de escudar o presidente. Se na folha “carcará”,

23 Nascido em Maranguape, bacharelou-se pelo curso jurídico de Olinda na turma


de 1844. No mesmo ano, foi eleito deputado provincial. Entre 1856 e 1857, foi
presidente da Assembleia Legislativa do Ceará, o maior posto político conquistado
na carreira. Ao longo da vida, ocupou cargos na magistratura, como promotor
público de Quixeramobim, juiz municipal de Ipu e Sobral e juiz de direito em Sobral,
Viçosa e Cabrobó, esta última na província de Pernambuco (STUDART, 1913, p. 33).
24 Nesta e demais citações de fontes presentes no artigo optei por atualizar
a ortografia, mantendo a pontuação original, como forma de tornar a leitura
mais dinâmica e acessível aos leitores.

Jucieldo Ferreira Alexandre 148


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

Figueiredo Júnior era o culpado pelas cenas dramáticas da epide-


mia, por não enviar recursos antecipadamente, ou por encaminhar
parcos valores às localidades afetadas pelo cólera, nas gazetas libe-
rais, o presidente era um “salvador”, atuando com agilidade, não
negando recursos e, ao mesmo tempo, mantendo responsabilidade
sobre os gastos excessivos da fazenda pública, sendo a cobertura do
Pedro II classificada como fruto do ressentimento, devido à demis-
são do redator Manoel Franco Fernandes Vieira do posto ocupado
na Tesouraria Provincial. Tanto o Pedro II quanto os jornais liberais
embasavam seus textos numa conjecturada “opinião pública”25,
forma de justificar as posturas editoriais particulares, ancorando-as
na suposta aceitação geral dos cearenses.
É sobre como a imprensa liberal cearense tratou as ações
do presidente na conjuntura do cólera que tratarei nesse capítulo.

25 Segundo Marco Morel, há quem tome a expressão “opinião pública” de modo


literal, “como um personagem ou agente histórico dotado de vontade, tendência e
iniciativa próprias”. Fugindo da visão simplista, o historiador propôs ver a “opinião
pública”, antes de tudo, como “palavras”: “A expressão opinião pública é polissê-
mica – e também polêmica. Conhecer a trajetória dessa noção numa determina-
da sociedade, situada cronologicamente e geograficamente, pode permitir uma
aproximação da gênese da política moderna, isto é, pós-absolutista, cujos discursos
invocando a legitimidade desta opinião continuam a ter peso importante na atua-
lidade. Ou seja, a opinião pública era um recurso para legitimar posições políticas
e um instrumento simbólico que visava transformar algumas demandas setoriais
numa vontade geral” (MOREL, 2012, p. 33, grifos do autor).

Jucieldo Ferreira Alexandre 149


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

Jornais liberais e a defesa do governo


provincial durante o cólera

Empregando estratégia discursiva similar ao Pedro II, os


jornais liberais tomaram as ações de Figueiredo Júnior contra
a peste, como estratégia para as disputas do jogo político. Nos
artigos, também evocavam a pretensa opinião pública existente
no Ceará. A ideia de opinião pública era, assim, utilizada como
elemento de legitimação por tais impressos nos combates pela
hegemonia política e social entre as parcialidades cearenses.
Compartilhando ainda o discurso sobre o papel social que desem-
penharia a imprensa, o teor das posturas de Figueiredo Júnior
frente ao cólera era, todavia, apresentado de modo diametral-
mente oposto pela imprensa liberal ao exposto no Pedro II.
A postura da imprensa liberal cearense em relação a Figueiredo
Júnior foi sendo construída mais claramente ao longo do mês de junho
de 1862, quando o cólera parecia ganhar mais força e os textos do
Pedro II passaram a cobrar mais ações da presidência. Da mesma
forma, após a metade de junho, chegaram notícias das mudanças
ministeriais envolvendo a queda de Caxias, o curto governo de Zacarias
e a ascensão de Olinda, sem a dissolução da Câmara. Mesmo não
havendo clareza sobre o assunto, a formação da “Liga” foi saudada
com entusiasmo pelo O Cearense. A saída de Caxias do cargo foi vista
como uma mudança da “situação política do país”, pois o partido que
“há 14 anos no poder das posições oficiais”, perdia terreno, “um fato
imenso”, visível “em todo o país”, enquanto liberais e “conservadores
moderados” – agora “ligados” – ganhavam espaço. Sobre o gabinete
Olinda, apresentava-o como “composto de cidadãos que têm combati-
do a oligarquia, destacando os nomes dos ministros que “não poderão
deixar de considerar um partido em grande maioria por todo o país”
(O Cearense, n. 1520, 24 jun. 1862, p. 1).

Jucieldo Ferreira Alexandre 150


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

Neste cenário de recepção das notícias da Corte, O Cearense


reforçou o tom moderado na cobertura das ações de combate ao
cólera. Provavelmente, em seu cálculo político, a folha de Tomaz
Pompeu26 percebeu que não haveria mudança na presidência do
Ceará, ante a instalação do gabinete “ligueiro”. Por outro lado,
O Cearense reforçou as críticas à forma como o Pedro II tratava
o assunto. Para o jornal liberal, a demissão do correligionário e
redator da folha “carcará”, Manoel Franco Fernandes Vieira, do
cargo de inspetor do tesouro provincial, era o principal escopo
dos ataques a Figueiredo Júnior.
A 8 de julho de 1862, O Cearense imprimiu texto intitulado
“oposição”, comentando a postura adotada pelo Pedro II a partir
de 2 de julho, alusão à data de demissão de Manoel Franco. O
jornal conservador teria se tornado “oposicionista extremo à
administração, não só nos atos como à pessoa do presidente”.
O Cearense prosseguia dizendo respeitar as intenções do Pedro

26 Thomaz Pompeu, após a morte de José Martiniano de Alencar, em 1860,


ocupou o posto de líder máximo dos liberais no Ceará. Pompeu nasceu a 6 de julho
de 1818, em Santa Quitéria. Em Olinda, cursou o seminário e a academia de ciências
jurídicas, ordenando-se padre (1841) e formando-se bacharel em direito (1843)
(STUDART, 1915, p. 144). Em 1862, O Cearense Pompeu tornou-se um dos principais
defensores das ações do presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior frente
ao cólera, fazendo contraponto aos ataques lançados pelo diário Pedro II contra o
governo provincial. A conjuntura política nacional também influenciou a postura
d’O Cearense. A fortificação de propostas conciliadoras, via “Liga Progressista”, na
Corte, abriu brechas para o enfraquecimento dos conservadores no Ceará e para
possibilidades de ganhos políticos aos liberais. O agastamento das relações dos
Fernandes Vieira com o presidente Figueiredo Júnior acabou potencializando o
jogo dos liberais cearenses, fazendo de Thomaz Pompeu o maior beneficiado da
ocasião: acabou eleito senador em 1863, sendo nomeado em 1864 pelo Imperador.

Jucieldo Ferreira Alexandre 151


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

II. Malgrado tal “respeito”, as leituras sobre o assunto faziam a


folha liberal considerar “essa oposição tão inconveniente, como
injusta na presente quadra, quando devia, senão por outra razão,
ao menos pelas circunstâncias excepcionais em que estamos,
procurar dar todo apoio, e peso à autoridade” do presidente.
Prosseguia, aludindo: diante das circunstâncias delicadas ence-
tadas pelo cólera, o governo provincial seria “o tutor, o salvador
da sociedade”. Nesse sentido, era importante serem preservados
o prestígio e o respeito necessários à sua missão. A imprensa teria
então papel central nesse panorama, pois “convém que os órgãos
da opinião” não contradissessem tal respeitabilidade (O Cearense,
n. 1532, 8 jul. 1862, p. 2).
Provocativo, O Cearense expunha ter o Pedro II “motivos
pessoais para seu desgosto”. Apesar destas motivações, assevera-
va: “acima de nossa individualidade deve estar o bem da socieda-
de”. Com isso, a redação se autorrepresentava como promotora
do interesse público no contexto de calamidade, acima do parti-
darismo atroz, em detrimento dos supostos litígios individuais do
concorrente no campo da imprensa e política.
As críticas ao Pedro II se apropriavam, inclusive, dos dissen-
sos visíveis entre os membros do Partido Conservador no Ceará.
Em outubro de 1862, O Cearense repercutiu nota de felicitação
aprovada na Câmara Municipal de Crato – onde os conservado-
res eram maioria – ao presidente Figueiredo Júnior, pelos servi-
ços prestados quando do surto de cólera, que flagelou a cidade
entre abril e agosto. A nota de felicitação tinha sido, inclusive,
divulgada pela Gazeta do Cariry, órgão conservador de Crato. Ao
citar as feições partidárias da Câmara e do jornal cratense, uma
série de perguntas retóricas foram então pronunciadas pelo O
Cearense: “Poderá inda dizer o Pedro II que as populações dos
Cariris morreram ao abandono de providências?; Quem mentia

Jucieldo Ferreira Alexandre 152


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

a respeito dos atos de Figueiredo Júnior era “a redação do Pedro


II, ou a da Gazeta do Cariry?”; Poderia “o público crer no que diz
o Pedro II, quando é ele apanhado na mais flagrante mentira?” (O
Cearense, n. 1545, 7 out. 1862, p. 3).
A explicação para as “mentiras” do Pedro II era dada no
mesmo artigo de O Cearense a partir de elementos macro e micro,
que, na sua opinião, demonstravam a tacanhez dos responsáveis
pelo jornal opositor. Em primeiro plano estaria a inconformida-
de dos “homens do Pedro II” com a “Liga”, pois “não se querem
desenganar que longe vai a história de sua peregrina dominação;
imbecis, creem na restauração de uma política exclusivista que os
elevou ao poder, expelindo da gestão dos negócios públicos cará-
teres nobres, e distintos”. Acostumados com o domínio partidário
exclusivo, foram golpeados pela ação de “vultos proeminentes” de
ambas parcialidades que combatiam “nas câmaras temporária e
vitalícias os vícios do decrépito partido conservador que capricho-
samente não se dando por vencido, conspira-se contra a vontade
da nação, que o repele e condena”. Para O Cearense, o país vivia:

um pronunciamento espantoso em favor do partido progressis-


ta, ou ligueiro; acabando destarte com as dissidências, com os
ódios, com as paixões inveteradas, que tanto concorreram para
entorpecer a marcha do progresso moral, e material da nação,
trancando as partes ao mérito que transluzia em fileiras adver-
sas (O CEARENSE, n. 1545, 7 out., 1862, p. 3, grifos do autor).

Nestes termos, em vez de aderir ao progresso, o Pedro II,


mesquinho, se condoía pela perda de poder e pela demissão de
Manoel Franco no cargo da Tesouraria Provincial, enxovalhando
o nome do presidente no Ceará e em outras províncias:

Jucieldo Ferreira Alexandre 153


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

O Pedro II, porém, que por este prisma não lhe faz conta encavar
a marcha dos negócios públicos, nem lhe convém dizer a verda-
de a província, habituado a impor sua vontade alguma vezes ao
governo provincial, entendeu que o Exm. Sr. Dr. J. B. da Cunha
Figueiredo Júnior se amoldaria à ameaça de suas censuras, e que
de tal modo conseguiria sua camarilha governar a província a
seu bel talante. Frustrado seu plano, porque o Exm. Sr. Dr. José
Bento, moço de vontade própria, e de ilustração bastante puniu a
ousadia do empregado de confiança que veio à imprensa censu-
rar atos de um governo que, em circunstâncias tão apertadas,
só tinha motivos para ser louvado; ei-lo com linguagem ardente
e viperina a adulterar todos os fatos administrativos, a torcer a
verdade, a negar a justiça, com o fim de fazer impressão com
suas calúnias, não, no teatro dos acontecimentos, onde ninguém
se ilude; mas nas províncias por passando esse rebate falso (O
Cearense, n. 1545, 7 out. 1862, p. 2, grifos do autor).

Outro periódico a polemizar com o Pedro II foi O


Commercial, de Francisco Luiz de Vasconcelos.27 Ao tempo do
rompimento do contrato que fazia do Pedro II a folha oficial da
Província do Ceará, O Commercial assumiu a função, mudando
seu título para Gazeta Official. No primeiro número, a Gazeta
Official justificava, em editorial, a mudança do título do periódico,

27 Dono de tipografia onde jornais como O Cearense, O Sol, União Artística, O


Cirineu, Imparcial, O Saquarema, entre outros, foram impressos. Além de possuir
a tipografia, Francisco Luiz de Vasconcelos constantemente ganhava contratos
para construção de obras junto ao governo provincial. Faleceu em 1882, quando
ocupava o posto de capitão de polícia em Canindé. No necrológio impresso sobre
Vasconcelos, o jornal conservador A Constituição afirmou: “Era um cidadão estimá-
vel: contava mais de 70 anos, e aderia às ideias liberais” (A Constituição, 1882, p. 1).

Jucieldo Ferreira Alexandre 154


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

afirmando ser a decisão reflexo da compreensão do novo lugar


que passava a ter ao assumir a responsabilidade pela impressão
do expediente do governo provincial. Outros temas de interes-
se para a “prosperidade da província” - como o comércio e a
indústria -, afiançava, não seriam abandonados em suas colunas.
Todavia, em clara provocação ao Pedro II, comunicava o novo
órgão jamais admitir que a injúria e a calúnia substituíssem “o
raciocínio e a censura decente e comedida”. A Gazeta faria de
tudo para apresentar discursos polidos e, uma vez não alcançando
a postura desejada, cederia “o campo [a função de folha oficial] a
qualquer adversário”. Em contraposição aos “deploráveis abusos
da imprensa”, a animar “alguns”, o editorial afirmava: o “silêncio
que desdenha polêmicas indignas é um triunfo para o contendor
sensato”, visto que a “invocação prestigiosa da opinião pública”
serviria, não poucas vezes,

à triste origem de paixões ruins. Pusilânime para não expor sua


individualidade à franca apreensão dos ânimos esclarecidos e
justiceiros, o homem [da imprensa] dominado pelo despeito ou
interesse, procura de ordinário iludir alguns incautos, e sobre-
tudo fazer efeito ao longe, ocultando-se sob uma simulada
manifestação coletiva o verdadeiro móvel do seu procedimento
(Gazeta Official, n. 1, 16 jul. 1862, p. 2).

Em arremate, o texto asseverava: a “todo o escritor bem-in-


tencionado” caberia o dever de esclarecer os fatos, e não “concor-
rer de sua parte para que de qualquer modo se desvaire a opinião
pública”. Não por acaso, na sequência, reproduzia artigo publi-
cado no Correio Natalense, precedido de pequena sinopse, na
qual informava tratar-se da “folha conservadora do Rio Grande
do Norte”. O destaque nitidamente representava um reforço na

Jucieldo Ferreira Alexandre 155


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

estratégia de autorreferenciação28 da Gazeta e de desqualificação


da imprensa conservadora cearense, tendo em vista o conteúdo
do artigo em questão, favorável a Figueiredo Júnior, posto ter
presidido a província potiguar antes de assumir a do Ceará.
No texto, o jornal natalense criticava o Pedro II pelas censu-
ras tecidas à forma parcimoniosa como o presidente do Ceará
tratava a distribuição de socorros públicos e ao apelo do mesmo
à caridade particular no trato dos doentes. O órgão conserva-
dor potiguar enaltecia, na sequência, a postura “brilhante” do O
Commercial – agora, Gazeta Official – na defesa de José Bento,
por considerar que “boatos adrede espalhados” sobre a epidemia
não deveriam levar o governo a agir imprudentemente e sem
planejamento, como, por exemplo, não exigir a apresentação de
documentos comprobatórios das despesas dos comissionados e
contratados no socorro às localidades atingidas pela epidemia. O
Commercial, sublinhava ainda, repelira a “injúria feita aos cearen-
ses” pelo Pedro II, do povo ter recebido de mau humor ao convite
à caridade e à esmola na conjuntura pestilencial, pois “os fatos
provam o contrário”. O texto do Correio Natalense terminava

28 Marialva Barbosa indicou que a “autorreferenciação” era uma das caracte-


rísticas das gazetas do século XIX. A preocupação dos jornais em situar suas falas
diante de outros periódicos, simulando diálogos, como se fosse uma conversa
tornada pública, produz pistas sobre relações com as instâncias de poder e
apontam para o “circuito da comunicação”, ou seja: o que eram tais publica-
ções, quem nelas escrevia, para quem se dirigiam e, em alguns casos, quais
as interpretações engendradas por leitores anônimos ou ilustres, por meio
de artigos e cartas enviadas aos órgãos de imprensa. No diálogo polêmico ou
conciliador estabelecido, “esse regime de autorreferenciação produz também
distinção e torna os redatores, símbolos daquelas publicações, nomes perenes
na construção presente e futura dessa história” (BARBOSA, 2010, p. 53-54).

Jucieldo Ferreira Alexandre 156


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

reafirmando apoio ao presidente do Ceará: “Continue o Sr. José


Bento firme em seu posto de honra, que os homens sensatos
lhe farão a devida justiça” (CORREIO NATALENSE apud GAZETA
OFFICIAL, n. 1, 16 jul. 1862, p. 3). Portanto, no tabuleiro das dispu-
tas da imprensa cearense, a reprodução desse artigo por parte
da Gazeta Official buscava pôr em xeque os textos do Pedro II,
ao utilizar artigo de folha conservadora de outra província como
jogada tática no ataque de seu adversário conterrâneo.
Como folha oficial, a Gazeta reproduziu a correspondência
do presidente às autoridades das localidades afetadas pela epide-
mia, tratando da contratação de médicos, envio de remédios,
mantimentos para a alimentação dos doentes desvalidos etc. Desta
forma, buscava reforçar a impressão de que Figueiredo Júnior não
se omitia no socorro aos coléricos. A reprodução dos ofícios acaba-
va servindo para outros artigos centrados no elogio às decisões
do presidente e na crítica da postura do Pedro II em contestá-las.
Cartas remetidas do interior dirigidas à Gazeta Official
reforçavam a postura editorial. Em fins de agosto, texto assina-
do pelo codinome “Cidadão Independente” tratava das ações do
governo provincial no confronto ao cólera em Baturité. Principiava
afirmando serem as “censuras que constantemente [o Pedro II]
dirige à inteligente governança do Sr. José Bento Júnior” motivadas
pelo “desapontamento do seu redator pelo desgosto ou decep-
ção, porque passara com o ato de sua demissão”. Afirmando-
se testemunha ocular do zelo do presidente em seus esforços
para “salvar a população de Baturité”, o “Cidadão Independente”
punha-se na obrigação de “esclarecer o público da verdade, para
que a hipocrisia e a má fé não ganhem prosélitos em um país onde
há uma tendência irresistível para o descrédito do princípio de
autoridade”. Pontuava os atos demonstrativos da prontidão com
que os socorros teriam sido realizados em Baturité. Circunscrevia,

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“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

enfim, os motivos das acusações do Pedro II à demissão de Manoel


Franco, provocando-o com o resultado da sindicância realizada na
Tesouraria Provincial, a indicar problemas, pondo a honestidade
e competência do ex-tesoureiro em xeque:

Por que não nega essa soma enorme de faltas que deu, soma que
denuncia-o ao público, como empregado negligente, e portanto
incapaz de dirigir uma repartição fiscal, que é a chave da riqueza
provincial, faça isso que é seu dever, mas não mostre despeito por
um ato de justiça do governo do qual já o público está convencido
de sua precisão (Gazeta Official, n. 13, 27 ago. 1862, p. 3).

No mesmo dia, a Gazeta Official publicou carta vinda de


Quixeramobim, assinada pela “Sentinela do Deserto”. Todos os
habitantes, dizia a missiva, “bendizem dia e noite a marcha salva-
dora do Sr. José Bento”, a quem deviam “a salvação de tantas
vidas, pois a não serem tão prontas providências, necessariamen-
te teríamos perecido todos: nossas requisições foram de pronto
satisfeitas, dinheiro, medicamentos e médico chegaram a tempo,
multiplicou-se nossa coragem”. As acusações do Pedro II eram
assim postas no descrédito: “como acusar-se a um governo que
solícito, ativo e previdente tomou todas as medidas ao seu alcance
para debelar o mal? Como fazer ele responsável pelos caprichos
de uma epidemia? É muita fascinação, é muita intolerância, senão
muita cegueira” (Gazeta Official, n. 13, 27 ago. 1862, p. 4).
Na desqualificação das versões do Pedro II, os periódicos
liberais agiram em grupo, produzindo representações positivas
a respeito do assunto. Concomitantemente, as explicações para
diferentes interpretações eram imputadas ao partidarismo do
Pedro II, malgrado tal característica ser comum a todos os impres-
sos envolvidos nas disputas e polêmicas de 1862.

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“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

O jornal O Sol também alegava só ser explicada a oposi-


ção do Pedro II ao chefe do executivo cearense pela demissão
do ex-inspetor, pois, pouco tempo antes, esta folha “liberalizou
encômios à presidência”, todavia, “volta-se hoje” com um “desa-
brimento descomedido” contra ela. Para O Sol, a culpa da demis-
são era exclusivamente do ex-inspetor. Ele não soubera equilibrar
sua função no cargo público com a outra, de redator:

É verdade, que foi demitido o inspetor da tesouraria provincial,


mas este empregado que era redator do Pedro II, que sabia,
que a sua conservação no emprego dependia da confiança
do governo, e que a destituição lhe faria falta, se devia conter
prudentemente dentro dos limites de uma grave e decente
análise dos atos governamentais, quando não guardasse silên-
cio, deixando que outros menos dependentes dos empregos
tomassem a tarefa, que ele preferiu tomar, para agora estar a
lastimar a perda do pão, que lhe dava o cofre provincial (O SOL,
n. 283, 6 jul. 1862, p. 2, grifo do autor).

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“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

A 13 de julho, em texto de capa, com extensão de mais de


duas páginas, intitulado “OS SOCORROS PÚBLICOS”, a redação d’O
Sol, a cargo de Pedro Pereira da Silva Guimarães (1814-1876)29,
corroborava a defesa da administração de Figueiredo Júnior. Ao
fazê-la, afirmava não ter como escopo o “espírito de partido ou de
interesse pessoal feito ou por fazer”. Sua coesão com a “marcha
governativa”, desse modo, não devia ser “interpretada negativa-
mente”. Era, tão somente, “um sentimento inato” da redação em
não sofrer impassível com as hostilidades e linguagem carregada
de vitupérios com que os redatores do Pedro II tratavam o presi-
dente (O SOL, n. 284, 13 jul. 1862, p. 2).
Recusando as acusações de ser “oficioso”, O Sol afirmava
não cantar “hinos à administração” e que não deturparia a “tarefa
de escritor público, quando rendemos homenagem à verdade, e
profligamos vinganças do prelo”. Ao contrário dessa postura, o
Pedro II era acusado de “martirizar” o governo, imputando-o a
pecha de ser “imprevidente”, “moroso” e “mesquinho” na pres-
tação dos socorros às localidades empesteadas. Citando os textos
d’O Commercial, O Sol acusava a redação do Pedro II de se deixar

29 Formou-se em ciências jurídicas em 1837. Passou a compor o Partido


Conservador no Ceará, escrevendo no Dezesseis de Dezembro, iniciando profí-
cua carreira na imprensa. Na política, os maiores feitos foram as eleições para
cinco legislaturas na Assembleia Provincial e duas deputações gerais. Como
deputado na Corte, destacou-se por apresentar projeto, na legislatura de 1850-
1852, “de emancipação do ventre escravo, o qual foi rejeitado como uma extra-
vagância e que anos depois constituiu a lei Rio Branco” (BLAKE, 1902, p. 62).
No ano 1856, as relações de Pedro Pereira da Silva Guimarães com núcleo do
Partido Conservador no Ceará azedaram, ante o não apoio do partido à sua
candidatura à Câmara. A partir de então, Guimarães tornou-se opositor ferre-
nho dos Fernandes Vieira e do jornal Pedro II.

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“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

dominar por “paixões ardentes e desarrazoadas”. Fazia, então, um


apanhado das ações do governo provincial. Assumindo o posto
em meio ao ataque pestilencial, Figueiredo Júnior teria estudado
atentamente por alguns dias os negócios públicos, se inteirando
da situação na qual se achava a província, para não cometer erros
em sua missão, especialmente na gestão da receita provincial e
na sua destinação para medidas mais urgentes nas localidades
afetadas pela epidemia. Diante dessa contextualização, provoca-
va: como o Pedro II poderia ralhar com essa atitude do governo?

Acaso quereriam que S. Exc. mandasse logo ao chegar, pôr no meio


da praça o cofre da tesouraria aberto, para dele tirarem todos os
que quisessem a sua soma, ou a qualquer que tomado de um terror
pânico da peste; pedia excesso de socorros, lhes mandasse prestar
sem critério, e sem exame? (O SOL, n. 284, 13 jul. 1862, p. 2).

Para O Sol, durante a calamidade, a afligir a sociedade,


não deixam de surgir “gênios especuladores e monopolistas”,
que “sob a capa de interessados pelo bem público, a pretexto de
caridosos, o seu desejo é locupletarem-se e estacarem cada um
a fonte da qual correm os socorros”. Tomados pela voracidade,
por uma “gana insaciável de fazer fortuna”, muitas pessoas ofer-
tam uma “caridade de [São] Francisco de Paula”, e, no entanto,
brigam “como o lobo da fábula” em busca da presa (O SOL, n. 284,
13 jul. 1862, p. 2). Seria contra tal situação que as ações previ-
dentes de José Bento se elucidavam para O Sol. As acusações ao
redator do Pedro II foram repetidas nas páginas d’O Sol ao longo
de 1862, demonstrando defesa incondicional ao presidente da
província. O Sol chegou a republicar textos seus de 1857, com
críticas a Manoel Franco, nítida forma de reforçar a detração ao
opositor. Um dos artigos, intitulado, ironicamente, de “Franqueza

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“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

e desinteresse”30, mostrava quadro com “a progressão do orde-


nado que tem tido o inspetor da tesouraria provincial, o Sr. Dr.
Manoel Franco Fernandes Vieira nos três anos últimos”. Trazia,
ainda, os valores pagos pelo governo provincial ao Pedro II, “do
qual é colaborador o mesmo Sr. Franco”. Segundo O Sol, ao ser
nomeado inspetor, a 14 de maio de 1854, Manoel Franco rece-
bia como ordenado um conto de réis anual. O valor fora estabe-
lecido por lei da Assembleia Provincial de 1836. Todavia, uma
série de mudanças tinham sido aprovadas nos anos seguintes na
Assembleia: em 1855, o ordenado subiu para 1.400$00; em 1856,
foi para 1.500$000; já em 1857, alcançou 1.800$000. Evolução
parecida teria ocorrido nos valores aprovados na Assembleia para
pagamento ao Pedro II pelos serviços de folha oficial da província:
de 600$000 pagos em 1854, tinha alcançado 1.800$000 em 1857
(O SOL, n. 289, 17 ago. 1862, p. 2). Após exibir a variação nas cifras,
O Sol fazia ilação séria, afirmando terem os aumentos no orde-
nado do inspetor sido criados para atender questões pessoais,
estando articulados a situações da vida privada do funcionário:
“[...] o Sr. Dr. Franco para casar teve dotação 400$000 réis; pelo
nascimento do primeiro filho teve outra dotação de 100$000; e
agora para alimentos deste príncipe lhe foram dados pela deste
ano 300$000 réis. Que desinteresse não domina este senhor!” (O
SOL, n. 289, 17 ago. 1862, p. 2). A gravidade estava nas entrelinhas,
afinal, de 1856 a 1857, Manoel Franco tinha ocupado a presidência
da Assembleia Provincial (STUDART, 1913, p. 336), dando a enten-
der ter mobilizado o legislativo em benefício próprio.
Em 24 de agosto de 1862, o jornal publicou um soneto,
onde o narrador passava-se pelo próprio ex-inspetor, a lamentar

30 O texto original tinha foi publicado pelo O Sol, n. 58, 29 set. 1857, sendo
republicado na edição n. 289, 17 ago. 1862, 2.

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“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

a perda das vantagens e do emprego por ter, “por arte do demo”,


virado redator do Pedro II:

Enquanto no meu ócio de inspetor


Vivia venturoso, e sem cuidados,
Choviam cortesias, mil agrados,
E era um Nababo, um grão-senhor.

Fiz-me por arte do demo redator,


E para logo os tempos malfadados
Correram após mim despiedados,
E perdi o meu sólio de esplendor.

Hoje voltado estou ao que antes era,


Bacharel in minoribus sem nome,
A carpir minha sina dura e fera.

Do que me aconteceu exemplo tome,


O que for empregado nesta era,
Se não quiser por aí berrar com fome
(O SOL, n. 290, 24 ago. 1862, p. 2).31

Em setembro, O Sol publicou texto com título em caixa


alta, “PROTESTOS”. Nele, levantava-se contra as “alicantinas”
[velhacas] acusações do “Pedro II dirigidas ao atual administra-
dor da província por falta de providências na quadra epidêmica”.
Contra elas, dizia O Sol, se levantavam “não só todos os perió-
dicos da província, mas ainda outros de fora, informados como

31 Outros sonetos sobre o assunto foram publicados nas edições: O Sol, n.


287, 3 ago. 1862, p. 3 e O Sol, n. 288, 10 ago. 1862, p. 4;

Jucieldo Ferreira Alexandre 163


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estão convenientemente dos fatos”. A “gritaria” do Pedro II, seria


apenas fruto da exoneração de Manoel Franco, “demitido por
graves faltas de sua repartição” (O SOL n. 292, 7 set. 1862, p. 3). No
derradeiro número de 1862, quando a epidemia atuava de forma
mais leve no Ceará, O Sol não poupou adjetivos para justificar o
apoio voltado ao presidente:

Sem medo de sermos contraditados, o cavaleiro, que tem as


rédeas da governança atualmente, tem apresentado até hoje
tanta discrição na prática de seus atos governativos, tanta justi-
ça em suas decisões, tanta prudência em seus conselhos, tanta
energia e prontidão nas providências a tomar, tanto zelo pela
economia das rendas, tão bom desempenho em tudo o que é
concernente ao bem público, que nós que temos um natural
pendor para estarmos sempre em oposição e temo-la feito a
muitos de seus predecessores, não temos motivo algum que
nos haja dado S. Exc. para censurarmos sua administração. E
nem alvitrem os nossos contrários, que somos levados a não
censura, porque temos recebido graças do poder, porque não
apontam nenhuma (O SOL, n. 308, 28 dez. 1862, p. 2).

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Do sul do Ceará, na região do Cariri, também houve defe-


sa do presidente. Coube ao semanário O Araripe, impresso em
Crato, cumprir esse papel. Redigido por João Brígido dos Santos
(1829-1921)32, O Araripe foi duramente afetado pelo cólera em
1862: deixou de circular entre fins de abril e agosto, justamente
por conta do forte surto que atingiu a cidade de Crato. Passada
a epidemia, O Araripe, porta-voz dos “chimangos” no interior
cearense, entrou na contenda sobre a avaliação dos socorros
públicos encetados pela presidência da província.
Em uma espécie de editorial, de mais de uma página, reba-
tia críticas apregoadas no Pedro II, a respeito de Figueiredo Júnior.
Para a redação da folha cratense, os artigos estampados no jornal
conservador trariam “injustas acusações”, fazendo crer ao “país”
– em referência às autoridades do poder central, a quem cabia
nomear e destituir os chefes das províncias – que as milhares de
vidas ceifadas pelo cólera eram consequência de falta de “provi-
dências prontas e enérgicas” ou do “desacerto e inconveniência”
das medidas tomadas pelo governo cearense (O Araripe, n. 286, 30
ago. 1862, p. 1). Autopromulgando-se juiz imparcial, sem compro-
missos de ordem alguma com aquela administração ou relações
entretidas com o presidente, O Araripe dizia ter testemunhado o
“zelo, solicitude e prontidão” no auxílio das comarcas do Crato e
Jardim, de forma que protestava contra o que escreveu o Pedro

32 Considerado “uma das maiores expressões” do jornalismo cearense entre


a segunda metade do século XIX e o início do XX (NOBRE, 2006, p. 93). Aos 71
anos de vida, Brígido representou, assim, sua trajetória política: “Devo prevenir
ao público que fui sempre liberal. Assim como conservador vem a ser todo o
bicho humano, que subscreve os caprichos do seu tempo, liberal é todo aquele
que não se conforma com eles e dá-lhes pontapés, reclamando sempre cousa
melhor, à sua imagem ou fantasia” (BRÍGIDO apud CARVALHO, 1969, p. 44).

Jucieldo Ferreira Alexandre 165


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
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II, “sem dúvida, guiado por informações desleais ou inexatas.”


Por isso, como “acima de tudo está a religião do dever, e a verda-
de que deve caracterizar a pena do escritor público”, O Araripe
voltava a voz à província e ao país para pronunciar “aquilo que
verdadeiramente passou-se a nossos olhos” (O Araripe, n. 286, 30
ago. 1862, p. 1). Acrescentava, então, ter o envio, pela presidên-
cia, de um médico e de remédios à região antecedido à chegada
do cólera, malgrado as mais de cem léguas a separar o Cariri da
capital. Aliás, o médico enviado, Antônio Manoel de Medeiros,
por suas prescrições publicadas nos jornais de Crato (O Araripe
e a Gazeta do Cariri), teria habilitado diversos curandeiros, pres-
tando serviço considerável à população. A presidência também
emitira ordens à coletoria provincial e a particulares autorizando
o fornecimento do dinheiro necessário para garantir a dieta dos
desvalidos e outras precisões do momento. Destacava, ainda, o
fato de o executivo provincial ter enviado outros facultativos às
localidades afetadas, criado comissões de socorro público e libe-
rado a contratação de enfermeiros e curiosos e a instalação de
hospitais, como eram conhecidas as enfermarias de emergência.
Isentava o presidente, do mesmo modo, pelo não envio
de médicos para todos os pontos afetados, pois, argumentava,
o número dos profissionais não era suficiente para fazê-lo. Além
do mais, defendia que uma quantidade superior de médicos não
era garantia de menor ceifa de vidas, dando como exemplo fatos
ocorridos em outros lugares:

Não sabe porventura o colega do Pedro 2º os estragos que na


Bahia, Rio de Janeiro, Pará e Pernambuco produziu a primeira
invasão deste terrível hóspede? Pois bem; nós lhe dizemos: na
primeira e segunda destas províncias tinha o governo ao seu
dispor legiões de médicos, acadêmicos e boticários, empregou

Jucieldo Ferreira Alexandre 166


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

a todos, e todos não foram bastantes para as necessidades da


época (O ARARIPE, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1).

Concluía, comparando a cobertura a respeito do cóle-


ra feita pela imprensa das províncias citadas com a do Ceará: a
primeira “falava a verdade calma, e prudentemente”, enquanto
parte da segunda “fala pelo choque de pequeninos interesses
individuais” (O ARARIPE, n. 286, 30 ago. 1862, p. 1).
Após a publicação de defesa apaixonada da presidência,
apresentada, pela redação, como pautada em uma pretensa
verdade, O Araripe seguiu polemizando com o Pedro II, ao infor-
mar ter a Câmara do Crato, corporação “saquarema genuína” – ou
seja, conservadora –, dirigido a Figueiredo Júnior “um voto de
gratidão pelos serviços que prestou durante a epidemia”. Para o
semanário, o procedimento dos vereadores desmentia e desmo-
ralizava o que o jornal conservador da capital apregoava, apesar
de ambos pertencerem ao mesmo partido: “Agora ajustem suas
contas”, provocava (O ARARIPE, n. 287, 06 set. 1862, p. 1). De
modo similar à Câmara cratense, a de Barbalha também enviou
protesto de reconhecimento pelos serviços do presidente na
quadra epidêmica. Reproduzido no O Araripe, o protesto fazia
clara alusão às críticas tecidas pelo Pedro II:

É, pois, seu único fim, de presente, se dirigindo a V. Exc., fazer-


-lhe uma pública manifestação de seus sentimentos, e traduzir
a estima, em que o nome grato de V. Exc. é dito pela população
deste termo, depois da quadra de perigos porque passa, vendo-
-o acompanhar todas as suas atribuições, e prestar-lhe socorros
prontos e eficazes, sempre e constantemente, sem embargo da
distância e dos minguados recursos de que dispõe.

Jucieldo Ferreira Alexandre 167


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

Sirva este tributo de seu reconhecimento como de prova do


apreço em que tem os serviços de V. Exc. e como um protesto
que faz diante do país, de que não compartilha a ingratidão
daqueles, cujas paixões têm abafado o eco de sua consciência,
e ousam maldizer o que as bençãos da terra rememoram (O
ARARIPE, n. 288, 13 set. 1862, p. 2).

Para O Araripe, por trás de todas as críticas negati-


vas ao presidente do Ceará estava uma campanha do Partido
Conservador cearense, simbolizado no seu órgão de imprensa,
o Pedro II, para derrubar Figueiredo Júnior. Por conta disso, o
hebdomadário comemorou a confirmação da conservação da
autoridade no cargo. Segundo O Araripe, a resolução ministerial
representava uma derrota ao grupo político do Pedro II, sendo
sinal das mudanças promovidas pela Liga:

Cartas da Corte anunciam que foi resolvida definitivamente a


conservação do senhor José Bento na presidência do Ceará, moti-
vando esta resolução ministerial a viva oposição às instâncias que
faziam a gente do Pedro segundo pela sua demissão. Bem mudados
que se acham os tempos! (O ARARIPE, n. 293, 22 nov. 1862, p. 4).

Considerações finais

Ao longo do capítulo, demonstrei como, no jogo da polí-


tica cearense de 1862, as folhas liberais agiram conjuntamente
na busca do convencimento da opinião pública sobre os supos-
tos méritos da administração provincial de José Bento da Cunha
Figueiredo Júnior no tempo do cólera, em detrimento das versões

Jucieldo Ferreira Alexandre 168


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

proferidas pelo Pedro II. Importa informar: apoio entusiástico dos


liberais ao presidente não deixou de trazer vantagens. Devido a
fatores internos – como a indisposição do Pedro II com o presi-
dente da província, tendo o cólera como pano de fundo, rompen-
do relação privilegiada, responsável pelo sucesso eleitoral dos
conservadores no Ceará – e a externos – a fortificação da “Liga
Progressista” e a correlata elevação dos liberais e conservadores
menos “emperrados” nas casas legislativas da Corte –, no final
do governo de Figueiredo Júnior, a política provincial do Ceará
apresentava outra faceta.
Simbolicamente, os segmentos políticos a tomarem a defe-
sa da presidência do Ceará, durante o cólera de 1862, gozavam
os louros da vitória, enquanto aos “carcarás” do Pedro II resta-
va esperar que as viradas constantes promovidas pelo Poder
Moderador não tardassem. Exemplo maior da virada liberal
no Ceará foi a nomeação do padre Pompeu, proprietário de O
Cearense para o Senado, em 1864.
A título de conclusão, posso afirmar que a epidemia do
cólera não poderia estar sob o controle de um grupo social espe-
cífico do Ceará de 1862. Suas cenas dramáticas não tinham um
diretor. A doença performou de modo relativamente autônomo,
coadjuvada pelas mazelas sociais dos lugares por onde passou,
agindo com força e deixando um rastro de morte. Todavia, não
faltou quem tentasse se apropriar do fenômeno natural e histó-
rico da epidemia. Diferentes grupos e indivíduos usaram o cólera
em seus discursos, especialmente na imprensa, no ataque a adver-
sários ou na busca de benesses pessoais e políticas.

Jucieldo Ferreira Alexandre 169


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

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Jucieldo Ferreira Alexandre 170


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NABUCO, J. Um estadista do Império. 5. ed. Rio de Janeiro:


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O SOL, Fortaleza, n. 284, 13 jul. 1862.

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O SOL, Fortaleza, n. 290, 24 ago. 1862

Jucieldo Ferreira Alexandre 171


“O TUTOR, O SALVADOR DA SOCIEDADE”: IMPRENSA
LIBERAL E CÓLERA NO CEARÁ (1862-1863)

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STUDART, G. Dicionário Bio-bibliográfico cearense. Fortaleza:


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Jucieldo Ferreira Alexandre 172


Capítulo 9
Conselhos do Curandeiro
Prático - Para o Bem da
Humanidade: a varíola na
Província da Parahyba nas
Décadas de 1870-1890
Serioja R. C. Mariano

Introdução

Na Parahyba, o flagelo da varíola já vinha causando estragos desde


o período colonial. Frei Vicente Salvador (2010 [1627], p.104), na
sua História do Brasil, nos diz que em dezembro de 1597 a tropa
do governador, o capitão-mor Feliciano Coelho, teria sido acome-
tida pela bexiga, “a peste do Brasil”, que matava sem distinção,
de dez a doze pessoas por dia, e como não havia médicos, as
pessoas iam buscar ajuda na fé católica e nos “santos milagrosos”.
Os surtos epidêmicos continuaram matando e, no início do século
XIX, com o temor da doença que grassava por várias localidades,
a população corria léguas de um bexiguento. É nesse contexto,
mais especificamente em 1802, que encontramos as primeiras
informações sobre o processo de inoculação na Capitania.
Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

Não há nesta Capitania casa de expostos, onde primeiramente se


poderia estabelecer a prática da inoculação das bexigas e no que diz
respeito aos índios, negros e meninos dos particulares são a maioria
deles moradores dos matos e em diversas distancias, aonde jamais
são tratados os enfermos por Professores ou supostos que nesta
cidade existia um médico e dois cirurgiões, estes mesmos poucas
vezes são chamados em razão da paga que poucos podem dar,
curando-se todos ou a maior parte por pessoas curiosas, que por
meio da experiência tem adquirido o uso de tratar dessas enfermi-
dades, especialmente das bexigas (PINTO, 1908, p. 228).

É um ofício do governador Luiz da Mota Feo, em resposta


ao Rei. Conjecturamos, a partir do que está posto no documento
oficial, a possibilidade de que as ordens vindas de Portugal eram
para que o governador começasse a organizar a inoculação das
bexigas nos mais pobres, estes representados por aqueles que
estavam “na casa de expostos, os índios e os negros”. Inclusive
Mota Feo justifica as dificuldades em inocular, especificamente
esses grupos, tendo em vista que “a maioria morava nos matos”,
ou até porque já se tratavam com pessoas curiosas experientes
no trato das bexigas.
Mas ao que parece, o pus vacínico só foi utilizado na
Parahyba dois anos depois, em 1804, pelo próprio governador
que teria, juntamente com os seus filhos, feito a inoculação para
dar o exemplo de que o processo era seguro e não havia nenhum
perigo, isto porque as pessoas temiam o desconhecido e fugiam,
acreditando que poderiam ser contaminadas e morrer. As ordens
eram para que a vacinação se espalhasse por toda a Capitania,
mas o resultado foi que apenas vinte pessoas atenderam ao
chamado, diz o governador (PINTO, 1908, p. 232).

Serioja R. C. Mariano 174


Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

A prática de inoculação do pus variólico, segundo Sidney


Chalhoub (1996, p. 102), “originou-se provavelmente da crença,
presente em tradições da medicina popular em várias partes do
mundo (...)”. A ideia era de que, para prevenir a doença, aplicava-se
matéria similar à moléstia. Essa matéria similar é o cowpox, vírus
que atingia o gado e deixava as vacas com bolhas nas tetas. Foi em
1796 que o médico britânico Edward Jenner percebeu que algumas
mulheres ao fazer a ordenha “entravam em contato com as bolhas
e também passavam a ter bolhas. O vírus era transmitido em forma
de bolhas, que rompiam e cicatrizavam. A infecção não causava
maiores transtornos”. Ou seja, as mulheres em contato com cowpox
criaram anticorpos contra a varíola, e o médico começou a fazer
experiência inoculando “o conteúdo das bolhas do úbere das vacas
nos braços das pessoas” (UJVARI, 2015 [2008], p. 138).

Com o material coletado dessas lesões, Jenner obteve um


produto denominado vacina (‘da vaca’) que, ao ser inoculado
no homem, fazia surgir erupções semelhantes às da varíola.
Destas, retirava-se a ‘linfa’ ou ‘pus’, utilizado para novas inocu-
lações, estabelecendo uma cadeia de imunização [...] O proces-
so de imunização provinha do pus produzido pelas ulcerações
dos úberes das vacas (SOUSA, 2011, p. 244).

O processo era bem difícil, tinha que coletar o material,


preparar e imunizar. O tratamento era feito da seguinte maneira:
os pacientes eram inoculados e teriam que voltar após oito dias.
Esse retorno era importante porque o fluído produzido após a
inoculação seria retirado do seu braço, então, esse “pus extraído
de sua pústula era utilizado na vacina de outras pessoas” (SOUSA,
2011, p. 244). Porém, muitos não voltavam para terminar o trata-
mento, pois temiam ser contaminados, e o pus se estragava. Essa

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

situação fez o cirurgião João José Inocêncio Poggi, em 1845, sugerir


à Câmara Municipal da cidade da Parahyba uma punição, na forma
de multa, para aquelas pessoas que não retornassem (PROVÍNCIA
DA PARAHYBA DO NORTE, 1845). Anny Jackeline Torres Silveira
(2013, p. 62) chama a atenção para as dificuldades enfrentadas
pelo estado imperial na organização do processo de vacinação, e
um dos problemas enfrentados era manter a conservação da linfa.
Mas as pessoas recorriam a outros tipos de prevenção e
tratamento, como as práticas de cura consideradas populares.
É o que observamos no ano de 1896 na matéria publicada na
primeira página do jornal A União, órgão oficial do Governo,
em um longo texto intitulado “Tratamento da Varíola – A BEM
DA HUMANIDADE”, de autoria de alguém que assinava como
“Curandeiro Prático”. No momento em que a doença se alastra-
va, era essencial divulgar os tratamentos para evitar uma maior
proliferação da varíola, um argumento que ganhava o apoio dos
poderes públicos. Nos conselhos do “Curandeiro Prático”, havia
indicações de dietas com receitas de mingaus, proibição de deter-
minados alimentos, como a carne de porco e orientação para o
tratamento do “enfermo bexiguento”. Na terapêutica, são indi-
cadas, a partir da idade do doente, misturas como a tintura de
acônito, sulfato de quinino, entre outros. É mister sinalizar que,
naquele momento, final dos anos oitocentos, os jornais abriram
espaço de divulgação do trabalho de alguém que se autodeno-
minava de “Curandeiro Prático”, possibilitando uma maior circu-
lação das informações, no domínio público, acerca dos possíveis
tratamentos contra a varíola. Isso ocorria, principalmente, em um
momento em que a institucionalização do saber médico ganhava
cada vez mais espaço. Mesmo em uma sociedade em que a maio-
ria da população era de analfabetos, a notícia corria de boca em
boca, chegando a lugares mais distantes, e o “Curandeiro Prático”,

Serioja R. C. Mariano 176


Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

com os seus conselhos, ganhou destaque na primeira página do


jornal oficial do Governo.
O presente capítulo tem, portanto, por objetivo analisar as
práticas de prevenção e combate à varíola, entre os anos de 1870
e 1890, bem como a vacinação e outras terapêuticas consideradas
populares, tendo em vista os surtos epidêmicos que se alastravam
nesse período na Parahyba. Trata-se, pois, de uma discussão feita
a partir das análises dos Relatórios de Presidente Província, da
Inspetoria de Saúde Pública e de alguns jornais que circulavam a
época, dialogando com a história da saúde e das doenças.
Nas últimas décadas, vem aumentando o número de traba-
lhos sobre a história da varíola no Brasil. São pesquisadores (as)
preocupados (as) em compreender as questões relacionadas à
história da varíola no século XIX (SILVEIRA, 2013); à doença e erra-
dicação, apontando a importância das práticas de imunização e a
trajetória da vacina antivariólica (FERNANDES, 2004; FERNANDES,
CHAGAS, 2018); sobre a construção das imagens dos corpos doentes
e a campanha de vacinação durante a Guerra do Paraguai (SOUSA,
2011, 2018); bem como os surtos epidêmicos e suas especificida-
des nas Províncias (FRANCO, 2016), entre outras temáticas que são
relevantes para um melhor entendimento da história da varíola
no Brasil, notadamente no século XIX. Com relação à produção
na Parahyba, ainda é uma temática lacunar, que vem sendo aos
poucos abordada. O tema aparece, mas ainda de maneira secun-
dária na literatura (PINTO, 1908; CASTRO, 1945; ALMEIDA, 1997;
VIERA, 2015). Quando nos debruçamos na documentação, porém
observamos a recorrência com que a varíola aparece. É uma história
constante e, ainda, uma historiografia ausente.

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

A Epidemia que mais reina


nesta Província é a varíola

Ao longo do século XIX, a população da Parahyba foi acome-


tida por vários tipos de doenças, como a cólera, febre amarela, a
sífilis, varíola, entre outras. Na documentação consultada, perce-
be-se que havia uma preocupação, por parte das autoridades,
com a bexiga, como era mais conhecida, que grassava desde o
período colonial. A varíola se alastrava por várias localidades,
atacando, principalmente, segundo o discurso médico, “quase
todos da classe baixa do povo”, que se recusavam a receber a
vacina, já considerada pelos poderes públicos como “o meio mais
eficaz de prevenção”. Os administradores acreditavam que os
pobres eram responsáveis pela disseminação das doenças, tendo
em mente as péssimas condições de salubridade nas suas mora-
dias, era o que acreditavam os médicos higienistas. Sabemos, no
entanto, que a doença atingia as pessoas independentemente da
categoria social ou da idade.
Na década de 1870, a Província atravessava uma difícil
situação, uma crise gerada pela seca e os surtos epidêmicos que
só pioravam com o crescente número de pessoas vindas do inte-
rior para a capital. Em um contexto de desorganização social, o
Governo criou medidas emergenciais para evitar a proliferação
das doenças e atender à população “faminta e doente que se
amontoava pelas ruas da Cidade da Parahyba”. Entre as medidas
emergenciais e de socorro público, estava a criação de Colônias
pelo interior para atender aos retirantes. A varíola estava reinan-
do há mais de um ano na Província e roubando vidas, principal-
mente daqueles que não acreditam na eficácia da vacina, ainda
havia resistência das pessoas “de todas as classes”. Os jornais
continuavam mostrando a importância da vacinação, inclusive

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

havia solicitações do envio de ambulâncias de medicamentos e


o pus vacínico para as Colônias. A situação era grave e o Inspetor
de Saúde ordenou que fossem encaminhadas, para a região
de Piancó, “lâminas do pus vacínico” e uma cartela homeopá-
tica “contendo medicamentos apropriados ao tratamento da
varíola que estava grassando por todo o sertão” (O LIBERAL
PARAHYBANO, 14 ago. 1879, p. 2).
Os migrantes estavam passando fome, “perambulavam e
se deslocando para a cidade da Parahyba”, era uma aglomeração
que causava o medo da desordem nos governantes. Para “conter
a turba” e mantê-la ativa, o Governo criou frentes de trabalhos
em construção de açudes, cadeias, estrada, etc. e instalou essas
pessoas nas chamadas Colônias. A Tesouraria da Fazenda já
havia liberado uma verba no valor de 5:000$000 para as despe-
sas, porém esse valor subiu para 12:000$000 réis. As pessoas
vinham para a capital na esperança de dias melhores, além de
faminto, estavam doentes. Temos o caso de uma família, de sete
pessoas, vinda do Sertão, que apresentava os sintomas da varíola.
Imediatamente, o Inspetor de Saúde Pública encaminhou a família
para uma casa alugada, longe das ruas, com direito a tratamento
médico e uma dieta adequada, tendo em vista que,

a varíola desenvolveu-se este anno com mais força do que de


costume em quase todas as Comarcas da província. Por toda
parte donde me chegaram reclamações de socorros, enviei não
só remédios para debelar o mal, como lympha vaccinica para
previni-lo (PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE, 1877, p. 37).

O medo das autoridades públicas se dava, uma vez que o


número de mortos com a doença, 74 vítimas em seis meses, só
na capital, era considerado alto, pois, segundo consta, a maioria

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

era de pessoas vindas de fora que não foram vacinadas. Diante


da situação emergencial e com o aumento de migrantes na cida-
de da Parahyba, foram criados dois hospitais: o dos Variolosos
(1877) e o Hospital Santa Isabel (1878). O Hospital dos Variolosos
ou Enfermaria da Cruz do Peixe, como era conhecido à época, foi
um espaço pensado eminentemente para doentes contagiosos,33
foi fundado no prédio do antigo Colégio de Educando e Artífices,
no sítio Cruz do Peixe, distante mais de um quilômetro do centro
da cidade e era administrado pelo major Carlos Ribeiro Pessoa de
Lacerda, sob a responsabilidade do médico Abdon Felinto Milanez.
De maio a setembro de 1878, deram entrada no hospital 1.248
enfermos, dos quais 637 saíram curados, 61 permaneceram em
tratamento e 550 faleceram (RELATÓRIO, 1879, p. 10).
A ideia era isolar os pacientes, afastando-os do centro da cida-
de para evitar o contágio. O Dicionário de Medicina Popular, do médi-
co Pedro Luiz Napoleão Chernoviz (1890), define isolamento como:

[...] separação dos doentes acommettidos de affecções conta-


giosas, d’aquelles cujas afecções não são transmissíveis. O
isolamento é indispensável para todos os doentes acometi-
dos de sarampo, varíola, escarlatina, difteria, typho, cholera,
febre amarella, erysipela, febre puerperal, etc. evitar o menor
contacto entre esses doentes e os indivíduos sãos que deve-
ria ser reconhecida de todos; a apllicação d’esta medida devia
ser severa especialmente nos hospitais das crianças onde o
contagio parece grassar com maior força que nos adultos [...]
(CHERNOVIZ, 1890, p. 247, grifo nosso).

33 Na documentação, encontramos informações relatando a construção de dois


hospitais para o tratamento dos variolosos no interior, em Santa Rita, e o Hospital
São Pedro, em Mamanguape (O LIBERAL PARAHYBANO, 14 ago. 1879, p. 1).

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

Separar os doentes afetados pela cólera, sarampo, varíola,


febre amarela, entre outras affecções contagiosas, por isso era
primordial isolar, segregar os enfermos em hospitais distantes
dos centros urbanos, “o isolamento consuma-se assim em exclu-
são de si mesmo” (REVEL; PETER, 1976, p. 148). Os doentes eram
levados em redes, no trajeto passavam por algumas ruas da capi-
tal até chegar à localidade Cruz do Peixe, o que causava medo
nas pessoas que fugiam quando “viam um bexiguento”, e clama-
vam ao inspetor que tomasse as devidas providências, por isso
se pensou em criar um hospital específico para os bexiguentos.
Mas havia outro problema: para enterrar no cemitério, teriam que
cruzar pelas ruas do centro da cidade, uma situação perigosa que
poderia “contaminar os ares”, segundo acreditavam os defensores
da teoria miasmática.34 A solução mais rápida era construir um
cemitério ao lado do Hospital dos Variolosos.
O cemitério começou a ser construído no ano de 1879. Por
questões de segurança, segundo os médicos da época, o cemi-
tério deveria ficar perto do Hospital dos Variolosos para “evitar
o transporte dos cadáveres víctimas dessa terrível enfermidade
pelo centro da Cidade”, segundo o Inspetor de Saúde Pública, o
Dr. Abdon Felinto Milanez. Por ser uma doença contagiosa, havia
recomendações nas Posturas Municipais que os cadáveres deve-
riam ficar em caixões de zinco, mas na capital não havia depósito

34 No século XIX, os médicos acreditavam que esses miasmas se espalhavam


pelo ambiente e proporcionavam o desenvolvimento das doenças. As condições
climáticas e o “ar corrompido”, devido à putrefação de matérias orgânicas, seriam
responsáveis por muitas doenças. Esses miasmas estariam em vários ambientes. Ao
lado da hipótese do contágio, muitos médicos defendiam a teoria dos miasmas, e
essa ideia representou um poderoso incentivo à criação de cemitérios e ao abando-
no da prática secular de sepultar os mortos nas igrejas (MARIANO, 2015, p.80-81).

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

desse material em quantidade suficiente para a construção dos


caixões. Segundo o inspetor, todas as medidas de segurança, de
acordo com os higienistas, já estavam sendo tomadas, pois o
hospital e o cemitério ficavam fora da cidade. Eram recomenda-
ções que ainda estavam na ordem do dia nos anos de 1880, uma
preocupação com o isolamento, pois, dessa maneira, se evita-
ria “que os ventos reinantes conduzão pra ellas os miasmas” (O
LIBERAL PARAHYBANO, 27 fev. 1883, p. 4).
Nesse contexto, a documentação aponta, pelo menos no
discurso, uma preocupação com a propagação de um número
cada vez maior de pessoas imunizadas. Nos mapas de vacinação,
todavia, o número ainda era notadamente bem pequeno e para
tentar melhorar, uma das soluções seria, por exemplo, que os vaci-
nadores fizessem visitas domiciliares para tentar vencer “a repug-
nância de muitos em serem vacinados” (DIÁRIO DA PARAHYBA, 1
fev. 1885, p. 2-3). Outra estratégia utilizada na prevenção e indi-
cações de terapêuticas para os acometidos da varíola era a divul-
gação nos jornais, os quais serviram como um poderoso meio de
“instrução” para a população em geral. Foi o que observamos na
matéria no jornal A União, no ano de 1896, no qual foi publicado
um manual trazendo indicações de como prevenir, tratar e curar
dos males da bexiga em suas diversas fases.35

35 Segundo Jorge Prata de Sousa (2011, p. 240), os sintomas da varíola são


“febre, dores nas costas e cefaleia, os quais se agravam do sétimo ao décimo
dia, e o vírus se estabelece na garganta e nas fossas nasais, quando a enfermi-
dade assume sua forma mais violenta, começando a aparecer erupções aver-
melhadas, que se manifestam na garganta, boca, rosto e, depois, espalham-se
pelo corpo inteiro. Com o tempo, tais lesões evoluem e transformam-se em
pústulas, que provocam coceira e intensa dor, podendo levar o paciente a
infeccionar os olhos por causa do hábito de se coçar”.

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Conselhos do Curandeiro Prático - Para o Bem da Humanidade:
a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

Para o Bem da Humanidade:


Fala o Curandeiro Prático

Era o ano de 1896, no dia 18 de outubro, e a Parahyba sofria


com os casos de varíola que se alastravam pela Província. Nesse
dia, os habitantes da capital foram aconselhados pelo “Curandeiro
Prático”, caso estivessem enfermos, que não deveriam comer
carne de porco e ovos, pois esses alimentos só piorariam a saúde
dos acometidos pela doença. Nos conselhos do “Curandeiro”,
havia, ainda, indicações de dietas com receitas de mingaus que
poderiam e deveriam ser consumidas. Interessante, essas dietas
são encontradas em outros documentos de médicos quando se
reportavam à epidemia do cólera de 1862, por exemplo.36
Essas dietas aparecem na primeira página do jornal A
União em um artigo intitulado “Tratamento da Varíola – A BEM
DA HUMANIDADE”, de autoria de alguém que assina como
“Curandeiro Prático”. Segundo o “Curandeiro”, as suas receitas
são as melhores, “até hoje conhecidas para o tratamento da varío-
la ou bexiga”. Estampado na primeira página do jornal, o artigo
traz à tona, naquele momento, a preocupação do Governo com
a proliferação da doença que há muito tempo já preocupava as
autoridades. Ao longo do século XIX, a varíola acometeu um maior
número de pessoas causando “uma desorganização na organiza-
ção social” (FRANCO, 2016, p. 248), uma situação que nos leva
a compreender o alerta do artigo para o Bem da Humanidade,

36 Em 1862, o médico Antônio da Cruz Cordeiro publicou um livro intitulado


Instruções Sanitárias Populares - Acompanhadas de prescrições médicas para o caso
de manifestar-se entre nós a epidemia de Cólera-morbus. Na prática terapêutica, além
da ingestão de remédios, havia também a preocupação com a dieta do paciente.

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a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

que apresenta, inclusive, quase um manual do tratamento, dos


sintomas e das fases da doença.
“Curandeiro” também direcionava as suas orientações para
a terapêutica de crianças. Por exemplo, uma criança de três anos
ou mais, que estivesse com febre, deveria tomar uma mistura37
e caso a doença piorasse, aparecendo sintomas na pele, o remé-
dio seria “um cachet de sulfato de quinino (20 centigramas) pela
manhã e à noite, enquanto durar a febre (...)”. Encontramos nos
óbitos, para a década de 1890, um maior número de crianças,
talvez por isso a preocupação do “Curandeiro”.
Com a confirmação de que o enfermo estava acometido
pela varíola, o paciente deveria tomar, também, sulfureto de
cálcio, de hora em hora, isso enquanto o bexiguento estiver na
fase de invasão e erupção. Em seguida, passando à outra fase, “a
supuração e dissecação”, segundo o “Curandeiro Prático”,

Logo que supure qualquer bexiga, imediatamente passará


sobre ella duas vezes ao dia, com uma pena de galinha, - o óleo
sulfuroso contra as varíolas – MORNO. Que se vende Pharmacia
Conceição, observando-se as prescrições constantes dos rótu-
los, que leva o frasco. Não tomará banho morno enquanto não
caírem todas as cascas (assim chamadas vulgarmente) das bexi-
gas (A UNIÃ, 18 out. 1896, p. 1, grifo nosso).

37 O Curandeiro Prático diz o seguinte sobre o conteúdo da mistura: “Mistura 1 (início


do tratamento) Tintura de acônito....5 gotas; Dita de belladona...5 gotas; Dita de bryo-
nia...5 gotas; Água, 15 colheres das de sopa – misture”. E a segunda, mistura era para
ser usada quando a doença já havia avançado, então deveria se tomar: “Tintura de
quina...5 gotas; Água, 8 colheres das de sopa – misture” (A UNIÃO, 18 out. 1896, p. 1).

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a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

Observa-se, no discurso, que há uma preocupação com as


prescrições que constam nos rótulos dos remédios. O Curandeiro
continua mostrando as vantagens desse tratamento que, se for
feito da maneira correta, poderia trazer vários benefícios. O ideal
seria manter a regularidade da temperatura do corpo, pois, dessa
maneira, se perceberia a “ausência quase completa de ardor,
prurido, inflamação da garganta, etc.”. Seguindo todas as prescri-
ções, alertava o Curandeiro, a doença teria um tempo mais breve.
Havia também indicações para evitar as cicatrizes da bexiga: o
conselho era para não se esquecer de passar o óleo, a tintura
de quina. Outra recomendação que aparece no texto com letras
garrafais, era de que durante a erupção, o enfermo não poderia
deixar de tomar o remédio, nos horários indicados.
Caso o doente fizesse tudo como manda o tratamento, “os
casos fatais seriam insignificantes”. O texto termina alertando os
leitores para o caso de enfermo com “varíola arroxeada”,

de mao caracter dolorosa, faça-se uma maceração de fumo


de corda com aguardente, na qual se ateará fogo, com um
phosphoro, mexendo-se; e logo que amortecer a inflamação
da aguardente, apaga-se com o restante assim preparada
chapêa-se a bexiga maligna, duas vezes por dia, até apresentar
bom aspecto. Quem quiser adote, dando grande satisfação ao
CURANDEIRO PRÁTICO (A UNIÃO, 18 out. 1896, p. 1).

É relevante conceber os jornais como espaço de divul-


gação do trabalho do “Curandeiro Prático”, possibilitando uma
maior circulação das informações, “no domínio público”, acerca
dos possíveis tratamentos contra a varíola. No momento em que
a doença se alastrava, era crucial divulgar os tratamentos para
evitar uma maior proliferação da varíola, um argumento que

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a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

ganhava o apoio dos poderes públicos. Mesmo em uma sociedade


em que a maioria da população era de analfabetos, a notícia corria
de boca em boca, chegando a lugares mais distantes. Por essa
razão, o “Curandeiro Prático”, com o seu texto, ganha destaque
na primeira página do jornal A União.
Havia, ainda, tratamentos presumidos como sendo um
“atraso popular”. Nos Contos Populares do Brasil, Sílvio Romero
(1897, p. 9) aponta as indicações de “remédios”, considerados
superstições para curar a varíola, a exemplo da utilização de excre-
mentos de animais como o do cachorro, conhecido como o jasmim
do campo. Uma variedade de métodos terapêuticos que já eram
utilizados pelos antigos egípcios, na crença da cura, e que, muitas
vezes, provocaram mais males do que benefícios (STROUHAL,
2007). Horácio de Almeida, no volume 2 do livro História da
Paraíba (1997, [1968]) apresenta uma descrição de “tratamentos
populares” e que eram muito aceitos pela população da Parahyba.
Havia indicações de salsaparrilha para tratar as moléstias vené-
reas, ou ainda excremento de cavalo para curar a ferida, sem
contar o de “chá de grilo” para “liberar a voz”, ou seja, para fazer
a criança falar (ALMEIDA, 1997, p. 157-160). Também utilizavam
práticas de cura como as sangrias, o uso das sanguessugas, entre
outras, no sentido de “expulsar do corpo” os horrores provocados
pelo mal da bexiga. Encontramos nos jornais da Província muitos
anúncios da utilização da “Sanguessuga de Hamburgo, a melhor
de todas” que poderia ser encontrada na Rua Conde D’Eu, no nº
112, na cidade da Parahyba. Os elixires eram usados para tratar a
varíola, como pode ser visto nos anúncios a seguir: O Elixir “Anti-
febril Cardozo”, “este medicamento aplicado nas febres, ainda as
mais perigosas e nas varíolas, de conformidade com o projeto que
acompanha cada frasco tem produzido assombrosos resultados”
(O ESTADO DA PARAHYBA, 20 dez. 1890, p. 4, grifo nosso).

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a varíola na Província da Parahyba nas Décadas de 1870-1890

Nos relatórios dos presidentes de Província, escritos a partir


dos mapas e relatos do cirurgião-mor responsável pela vacinação
da Província, encontramos reclamações mostrando as dificuldades
enfrentadas por esses funcionários, tanto no sentido de uma resis-
tência da população, por falta de conhecimento, como também
sobre os parcos recursos destinados, pelos poderes públicos, ao
combate da varíola.38 Inclusive, alguns presidentes pediam dire-
tamente ao Ministro do Império, um maior empenho no envio
das lâminas com o pus, que já estavam em falta. Outro problema
era a falta de pessoas para atuar como vacinadores, portanto, foi
criada uma verba de incentivo, mesmo assim, o Inspetor de Saúde
Pública solicitava que professores, padres, juízes, entre outras
autoridades ajudassem nesse processo. E para garantir bons resul-
tados com a vacinação, havia ainda instruções informando acerca
dos cuidados que a população deveria ter:

1º - Não banhar os lugares onde se fizeram as puncturas senão


no 3º dia da vacina com água quente, depois que ella se apre-
senta no vaccinado, anunciando-se por pontos inflamados;

2º - Cobrir a parte vaccinada com flanela ou pano de lã, para


que o calor dê a pústula a vitalidade indispensável ao seu
desenvolvimento;

38 Desde a Lei Provincial de 10 de junho de 1835, o cirurgião-mor encarregado da


vacina recebia como ordenado e gratificação o valor mensal de 600$00, equivalia
à época ao valor do salário do secretário provincial ou de um aluguel de casa no
centro da cidade. “Relatorio que á Assembléa Legislativa da Parahyba do Norte
apresentou na sessão ordinaria de 1844 o excellentissimo presidente da mesma
provincia, Agostinho da Silva Neves. Pernambuco, Typ. de M.F. de Faria, 1844”.

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3º - Impedir que o vaccinado por qualquer meio, obste o desen-


volvimento da pústula;

4º - Não expor o vaccinado, quando no período febril, às alter-


nativas do tempo;

5º - Observar quanto a dieta, o regimem seguido comumen-


te nos casos das febres eruptivas, prescrevendo-lhe canjas de
galinha, leite, pão torrado, ovos quentes, mingá de maisena,
de farinha de milho, etc;

6º - Manter o asseio indispensável;

7º - Usar no 3º ao 5º dia, caso se note certo retardamento no


desenvolvimento da pústula, de alguma infusão diaforética,
como chá de sabugueiro, de violetas, etc;

8º - Depois do 8º dia se a pústula interromper a sua evolução


por uma causa qualquer, o vaccinado ou responsável por elle
deverá recorrer aos cuidados profissionais do médico, o qual
por sua vez comunicará ao inspector de hygienne as particu-
laridades que notar a respeito, para as devidas observações;

9º - O vaccinado é obrigado no 8º dia a comparecer na inspec-


toria de hygienne (A UNIÃO, 20 mar. 1894, p. 2).

As instruções que vêm com a assinatura do Dr. Alfredo de


Araújo Rego, responsável pela Inspetoria de Higiene, eram divul-
gadas na imprensa e, dessa maneira, teriam uma maior circulação
entre as pessoas. No texto, há uma preocupação com os cuidados
após a vacinação: não lavar o braço que recebeu a vacina; no caso

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de sentir sintomas febris, não sair à rua, para evitar as intem-


péries do tempo; a questão da limpeza permanece como sendo
indispensável; a dieta deve constar de indicações bem de acordo
com a sugestão do Curandeiro Prático; bem como a questão da
obrigatoriedade do retorno com oito dias.

Considerações Finais

Retratada na documentação como a “epidemia que mais


frequentemente reina”, a varíola aparece na literatura matando
pessoas no Brasil, notadamente na Parahyba, desde o período colo-
nial. Observamos que no início dos oitocentos, o processo de imuni-
zação começa a ser utilizado, em um primeiro momento, em alguns
grupos considerados responsáveis pela proliferação da doença, como
negros, indígenas e a população pobre em geral. Em seguida, a vacina
antivariólica é indicada para toda a população como medida preven-
tiva e obrigatória, e os poderes públicos imbuídos de um discurso
higienista, civilizador, se apropriaram das doenças para criar espaços
de cura, mas também de exclusão, de isolamento e segregação.
No discurso dos administradores era importante desen-
volver políticas públicas para estabilizar o meio social que se
encontrava “em desordem”, diante do avanço da varíola, pois já
havia casos da bexiga nos lugares mais distantes da capital, e a
Inspetoria de Saúde Pública atuava na tentativa de identificar os
fatores responsáveis pela proliferação de doenças: a questão da
insalubridade pública, da higiene, do clima, entre outros moti-
vos que, segundo este órgão, disseminavam as enfermidades.
Portanto, era imprescindível haver um reordenamento do espa-
ço urbano, aplicar algumas medidas preventivas como a limpeza
e manutenção das ruas, das cadeias e residências; construção

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de hospitais e cemitérios. As doenças alteravam o cotidiano das


pessoas, e o processo de prevenção da varíola era um desses
elementos: a ação causava medo e desconfiança na população
que, muitas vezes, ia buscar soluções nas práticas de cura consi-
deradas tradicionais ou, ainda, na religião a busca da prevenção
ou cura das moléstias.
Havia também outras artes de curar que relacionavam e
conviviam com o dito saber médico, científico. Cabe ressaltar que
a imprensa publicava a matéria porque havia pessoas na sociedade
interessadas em outros tipos de práticas de cura com opiniões dife-
rentes e não só as consideradas práticas advindas de um saber médi-
co, instituído, como, pode ter sido, o caso do “Curandeiro Prático”.
Interessante perceber os discursos do “Curandeiro Prático”
na primeira página do jornal oficial do Governo, no final dos anos
oitocentos, trazendo indicações de tratamentos com práticas de
cura consideradas “populares e tradicionais”, principalmente no
contexto de desenvolvimento da dita medicina científica. O autor
do artigo assina como “Curandeiro Prático”, o que já denota, pelo
menos hipoteticamente, que essa prática continuava determinante
no seio da sociedade parahybana, quiçá do Brasil. Temos que levar
em conta que algumas autoridades públicas condenavam o curan-
deirismo relacionando essas práticas ao charlatanismo, pelo menos
oficialmente. Encontramos referências aos curandeiros vistos como
“charlatães”39 ou até mesmo alguns medicamentos, sendo conside-
rados e divulgados na imprensa como “charlatanismo”.

39 No dicionário de Raphael Bluteau, encontramos o significado de charlatão


como sendo, entre outras definições, aqueles “[...] vadios que de cidade em
cidade andão vendendo triaga & outras drogas & unguentos [...] encarecendo
ao povo a virtude de seos remédios [...] persuadem a gente e muitas vezes a
enganam [...]” (1728, p. 277).

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content/brazil/pari.htm. Acesso em: 3 abr. 2021.

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sessão ordinaria de 1844 o excellentissimo presidente da
mesma província, Agostinho da Silva Neves. Pernambuco, Typ.
de M. F. de Faria, 1844. Disponível em: www.crl.edu/content/
brazil/pari.htm. Acesso em: 1 abr. 2021.

Serioja R. C. Mariano 192


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PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE. Relatorio recém-


montado na Assembléia Legislativa da Província da Parahyba
do Norte pelo presidente, exm. sr. Ulisses Machado Pereira
Viana, em 20 de fevereiro de 1879. Disponível em: www.crl.
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PROVÍNCIA DA PARAHYBA DO NORTE. Relatorio recém-


montado na Assembléia Legislativa da Província da Parahyba
do Norte pelo presidente, exm. sr. doutor Esmerino Gomes
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deletérios. João Pessoa: Ideia, 2015.

Serioja R. C. Mariano 194


Capítulo 10
“UMA MÉDICA QUE SE
CONTAMINOU PELA VIDA
QUANDO SE DEPAROU COM
O HIV NOS CONSULTÓRIOS E
HOSPITAIS EM QUE ATUOU”:
MARCIA RACHID E SUA
CONTRIBUIÇÃO MÉDICO-
DISCURSIVA NO COMBATE
A AIDS NO JORNAL NÓS
POR EXEMPLO (1991-1995)
Adolfo Veiller Souza Henriques
Eulina Souto Dias

Os dias avançavam devagar. O mês de dezembro tardou a chegar e,


num dia desconhecido da primeira semana de dezembro de 1995,
finalmente mais uma edição do impresso Nós Por Exemplo estava
concluída. Geralmente, essa atividade era realizada pelos coorde-
nadores editoriais Sylvio de Oliveira e Paulo Henrique Longo, que
tomavam de empréstimos as dependências físicas do Núcleo de
“UMA MÉDICA QUE SE CONTAMINOU PELA VIDA QUANDO SE DEPAROU
COM O HIV NOS CONSULTÓRIOS E HOSPITAIS EM QUE ATUOU”:
MARCIA RACHID E SUA CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO
COMBATE A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)

Orientação em Saúde Social (NOSS)40 na execução do trabalho. Nos


mais distantes rincões do Brasil, os leitores do impresso esperavam
o próximo número. Esperavam aprender um pouco mais sobre a
aids41– com informações consideradas dignas de seu interesse;
esperavam a coragem de ir à banca de jornais adquiri-los. Ansiavam
com o dia, quem sabe, escrever para o impresso. Aguardavam ainda
as palavras sobre si, as palavras de si, as palavras a dizer-lhes, as
palavras a confortá-los, as palavras a educá-los.
Em sua décima oitava edição, o impresso Nós Por Exemplo,
chegava aos seus leitores reforçando o esforço mundial da luta
com uma edição alusiva ao dia 1ª de dezembro – Dia Mundial
de Luta contra a aids. Naquela edição, a médica imunologista
e articulista do impresso, Marcia Rachid42 era a entrevistada na
seção intitulada Entre Nós. Márcia Rachid que, segundo o jorna-
lista Mauro Ferreira (2020), era a cara vitoriosa da aids no Brasil,

40 O Núcleo de Orientação em Saúde Social (NOSS) era uma organização não gover-
namental que desenvolvia trabalhos nas áreas da saúde e de direitos humanos com
ênfase em trabalhos de prevenção à Aids e as outras doenças sexualmente trans-
missíveis em áreas de prostituição, presídios, etc., na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
41 Encontramos na escrita de Pelúcio e Miskolsi, uma reflexão acerca do
uso da sigla em minúsculo: Usamos a sigla “aids” em minúscula seguindo as
orientações de Castilho (1997 apud SILVA, 1999). Ele argumenta que nomes de
doenças são substantivos comuns, grafados com minúscula. Além disso, aqui
o uso em minúsculas se deve a uma perspectiva crítica em relação ao pânico
sexual criado em torno da aids. Como não há uma uniformidade na forma de
grafar a referida palavra, nas citações reproduzidas ao longo deste trabalho
respeitaremos a forma escolhida por cada autor. (2009 p. 127). Em nosso caso,
fizemos uma escolha, como já está justificada no próprio texto.
42 Marcia Rachid era médica do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle e
membra da Comissão Técnica de Aids do CREMERJ.

Eulina Souto Dias 196


“UMA MÉDICA QUE SE CONTAMINOU PELA VIDA QUANDO SE DEPAROU
COM O HIV NOS CONSULTÓRIOS E HOSPITAIS EM QUE ATUOU”:
MARCIA RACHID E SUA CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO
COMBATE A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)

por ser referência nacional no combate aos efeitos da epidemia


mundial surgida na década de 1980. Ainda segundo o jornalista
Mauro Ferreira (2020), essa médica, logo se “[...] contaminou pela
vida quando se deparou com o HIV43 nos consultórios e hospitais
em que atuou há mais de trinta anos na cidade do Rio de Janeiro
com reconhecida obstinação pela vida” (FERREIRA, 2020, p. 9).
O jornalista Mauro Ferreira (2020) também afirma que
Márcia Rachid não se intimidou com os efeitos do HIV na fase
inicial da epidemia de aids – potencializados pelos preconceitos
suscitados por uma doença associada ao prazer do sexo, pois a
médica desde sempre foi à luta, driblando infecções e rejeições
para salvar a vida de pacientes, muitos deles jovens, no auge da
existência. Na entrevista concedida ao impresso, Márcia Rachid
falou um pouco de sua vida pessoal, de sua relação com a comu-
nidade gay e de sua relação com o amor, com o afeto e com a
cumplicidade em relação aos seus pacientes. Aos nos depararmos
com os discursos produzidos por ela – entrevistas, cartas de seus
pacientes, cartas pessoais e artigos sobre a Aids, publicados nas
páginas do impresso Nós Por Exemplo, começamos a pensar sobre
os discursos médico-pedagógicos acerca da doença e os interesses
em desenvolver nos leitores do impresso um cuidado de si.

43 Destacamos aqui que HIV e aids não são sinônimos. Uma pessoa, após ter
sido infectada pelo vírus HIV, pode permanecer muitos anos sem desenvolver
nenhum sintoma. Nesse caso, dizemos que a pessoa está vivendo com HIV. A
aids, contudo, é o estágio mais avançado da infecção pelo HIV e surge quando
a pessoa apresenta infecções oportunistas. No contexto de surgimento do HIV
as pessoas muito comumente associavam o vírus do HIV à doença aids. Desse
modo, entre os estigmas que afetavam os corpos que viviam com HIV, estava
também a compreensão distorcida que aqueles corpos teriam aids.

Eulina Souto Dias 197


“UMA MÉDICA QUE SE CONTAMINOU PELA VIDA QUANDO SE DEPAROU
COM O HIV NOS CONSULTÓRIOS E HOSPITAIS EM QUE ATUOU”:
MARCIA RACHID E SUA CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO
COMBATE A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)

Compreendemos que tais discursos se configuravam como


práticas educativas a partir do momento que buscavam promover
hábitos higiênicos pautados pelo saber médico a respeito do sexo
seguro, nos leitores do Nós Por Exemplo. Deste modo, problema-
tizamos esses discursos a partir da análise do discurso proposta
por Michel Foucault (2014). Nessa metodologia, a produção de
enunciados foi chamada de arquivo, ou seja, a lei daquilo que pode
ser dito, o sistema que rege o aparecimento de enunciados como
acontecimentos singulares. Ou, nas palavras do próprio Michel
Foucault (2010, p. 147), o arquivo não é o que protege, apesar de
sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva,
para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que na
própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo que se dá,
define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. Aquilo que
foi produzido num dado momento e que permite ao historiador
perceber em tais enunciados uma dada versão discursiva, sobre ele
lançar suas questões e produzir outros enunciados. A partir dessa
perspectiva, nos apropriamos da análise do discurso como possibi-
lidade sobre os arquivos produzidos acerca de um acontecimento,
nesse caso a produção de enunciados, operar uma técnica capaz
de produzir outros discursos que chamamos de história.
Lançado no ano de 1991 pelo Núcleo de Orientação em
Saúde Social (NOSS), o jornal Nós Por Exemplo foi um impresso
direcionado a comunidade gay que circulou nacionalmente em
24 edições até o ano de 1995, tendo a aids e a homossexualidade
entre as suas preocupações. Para isto, deixava claro que “[...] a
busca do conhecimento era indispensável” (NÓS POR EXEMPLO,
jan. 1991). O impresso, como bem lembra Arlete Farge (2009, p.
13), “é um texto dirigindo intencionalmente ao público. É orga-
nizado para ser lido e compreendido por um grande número de
pessoas; busca divulgar e criar um pensamento, modificar um

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estado de coisas a partir de uma história ou de uma reflexão”.


E que, “independentemente da aparência que assuma, ele exis-
te para convencer e transformar a ordem dos acontecimentos”
(FARGE, 2009, p. 13).
Este impresso, ao informar o público homossexual sobre saúde
e prevenção, mas também sobre cultura, arte e entretenimento, com
discursos sensíveis, era o conforto e a força necessária para que
seus leitores pudessem entender melhor variados aspectos ligados
a doença. De forma paralela, seus textos também preenchiam uma
lacuna afetiva que muitos homossexuais sofriam naquele momento.
Com a ascensão do estigma no surgimento da aids, o processo de
aceitação da sexualidade se complicava à medida em que um dos
postulados colocados contra a homossexualidade era de que se sofria
um castigo divino por desviar dos bons costumes.
Nesse cenário, observamos que a aids, assim como a sífilis,
foi compreendida como o resultado de questões sexuais. Assim,
tornou-se constante a propagação de discursos moralizantes nos
quais a aids aparecia como uma punição a comportamentos consi-
derados deturpados e imorais, colocando em discussão a pauta da
liberdade sexual. Portanto, aqueles que contraiam o vírus eram
vítimas não apenas da doença, mas dos discursos que fabricavam
a epidemia como a “peste gay”, como aquele que viria para punir
os portadores de desejos desviantes, anormais.
Assumir publicamente estar com o vírus do HIV era também
assumir que rompeu com os códigos sociais dominantes. Para a
autora Susan Sontag (2007), ter HIV ou aids representava a invasão
do público no privado, e, após o seu aparecimento, as estigmati-
zações em torno das identidades homossexuais ganharam maior
visibilidade. A autora também destaca que a aids causou uma
calamidade coletiva havendo uma ideia de que, além de punir os
“transgressores”, ela poderia afetar os “não transgressores”. Ou

Eulina Souto Dias 199


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seja, a aids, entendida como uma peste, seria ao mesmo tempo um


“castigo merecido” e uma doença em potencial que poderia afetar
qualquer um. Isso foi decisivo para que ela se tornasse um meio
simbólico de controle do comportamento sexual da sociedade.
O Nós Por Exemplo possui grande relevância, quando pensa-
mos em um impresso que estimulou mudanças nas maneiras de
lidar com a homossexualidade e com o HIV/aids. É importante
lembrar que, entre os anos oitenta e noventa, ser alguém que
vivia com aids – “aidético” nos termos da época – era sintetizar
em seu corpo vários estigmas negativos. Aquele era um contexto
de desinformação generalizada acerca da doença e das formas de
transmissão e prevenção, portanto um espaço viável culpabilizar
grupos que possuíam uma sexualidade considerada por muitos
como marginal e de conduta social reprovada. Foi nesse contexto
que o periódico surgiu.
Direcionado, primordialmente, para o público gay, o Nós
Por Exemplo oportunizou o fortalecimento de grupos que atua-
vam de forma isolada no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro,
preenchendo lacunas, haja vista que os discursos disseminados
nos demais veículos de comunicação da época estavam, predo-
minantemente, permeados pelo cunho moralista e pelo viés
preconceituoso. Contudo, na contramão desses discursos, o Nós
Por Exemplo garantia o apoio e a propagação de práticas que
educavam para o cuidado de si, nas páginas em que ele trazia à
cena – com cuidado estético – os temas sexo, doença e morte.

Eulina Souto Dias 200


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Quando pensamos nos primeiros anos da disseminação do


HIV é importante entendermos que ele provocou grande devas-
44

tação na condição física e psicológica de uma geração. Entre os


acontecimentos que nos fazem pensar sobre a epidemia está a
constatação dos primeiros casos em homens gays, contribuin-
do significativamente para a estigmatização das pessoas com a
síndrome. Outro aspecto a ser destacado é a ruptura comporta-
mental que o surgimento do vírus ocasionou, provocando medo e
aflição – muitos receios ganharam espaço no imaginário sociocul-
tural. O pânico penetrou os comportamentos sexuais conduzindo
os sujeitos a terem medo do contato: o suor, o abraço, a saliva, o
aperto de mão, poderiam transmitir o vírus?
Em uma carta à sua amiga Lucienne Samôr, em fevereiro
de 1995, o escritor Caio Fernando Abreu diz: “não tenho pena de
mim, mas por vezes sinto falta de amor. Fico sempre muito só.
[...] Virei uma figura pública desumanizada – todos-o-admiram-
-mas-ninguém-o-convida-para-dançar-porque-é-perigoso, você
conhece esse filme, não?” (ABREU, 2002, p. 327). No trecho acima,

44 A aids é o estágio mais avançado da doença que ataca o sistema imunológico.


A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, como também é chamada, é causada
pelo HIV. Como esse vírus ataca as células de defesa do nosso corpo, o organismo
fica mais vulnerável a diversas doenças, de um simples resfriado a infecções mais
graves como tuberculose ou câncer. O próprio tratamento dessas doenças fica
prejudicado. Há alguns anos, receber o diagnóstico de aids era uma sentença de
morte. Mas, hoje em dia, é possível ser soropositivo e viver com qualidade de
vida. Basta tomar os medicamentos indicados e seguir corretamente as recomen-
dações médicas. Saber precocemente da doença é fundamental para aumentar
ainda mais a sobrevida da pessoa. Por isso, o Ministério da Saúde recomenda
fazer o teste sempre que passar por alguma situação de risco e usar sempre o
preservativo. - http://portalsaude.saude.gov.br/

Eulina Souto Dias 201


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podemos observar que aparecem temas como solidão e melan-


colia vivenciado por aqueles que, com o diagnóstico em mãos,
temiam não só pelos males físicos que seriam experienciados ao
desenvolverem a aids, mas também pelo distanciamento oriundo
do estigma que acompanhava a doença.
Isto posto, este texto, trata-se de uma história que visa
perceber as contribuições medico-discursivas da médica imuno-
logista e articulista do impresso Nós Por Exemplo, Márcia Rachid.
Destacamos discursos capazes de romperem com o protocolo
adotado pela maioria dos esculápios à época. Discursos que reve-
lam um acompanhamento mais humano, cúmplice, afetuoso e
solidário de uma médica para com seus pacientes. É sobre esses
discursos produzidos que construímos essa narrativa.

“Dor de amor quando não passa,


é porque o amor valeu”: Sobre
afetividades ditas e escritas nas
páginas do impresso Nós Por Exemplo

[...] você foi embora, mas deixa em mim e em tantos outros a certe-
za de que valeu muito ter vivido e nos ter dado a alegria de ter
convivido com você, ter trocado aquela tão falada energia que nós
sentíamos fluir ...” (NÓS POR EXEMPLO, maio-jun., 1994, p. 18).

A narrativa acima, retirada de uma carta pessoal escrita


pela imunologista e articulista do impresso Nós Por Exemplo,
Márcia Rachid, está publicada na seção Agaivê-hoje da edição de
maio/junho no ano de 1994, com o seguinte título Dor de amor
quando não passa, é porque o amor valeu (NÓS POR EXEMPLO,

Eulina Souto Dias 202


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mai.-jun., 1994, p. 18). Ela narra aos leitores mais uma perda, para
a aids, de um paciente especial. Se sentia impotente diante do
momento tão irreversível em que se encontrava. Seu paciente,
José Carlos, “[...] que tantas vezes [lhe] disse que era o seu pacien-
te predileto e que queria contribuir com [o seu] bem-estar, foi
embora” (NÓS POR EXEMPLO, maio-jun., 1994, p. 18).
Márcia Rachid pertencia à Comissão Técnica de Aids do
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro
(CREMERJ), com atuação no Hospital Universitário Gaffrée e Guinle,
afirmava que desejava ver o seu paciente José Carlos vivo, “[...] mas
que queria [vê-lo] sorrindo e não sofrendo, por isso [sabia] que foi
melhor ter partido.” (NÓS POR EXEMPLO, maio/jun., 1994, p. 18).
A imunologista narra, ainda que, certa vez, o paciente José Carlos
lhe escreveu um cartão dizendo-lhe que lutava muito para ficar
entre os fortes e que às vezes não conseguia, chegando ao cúmulo
de lhe pedir desculpas e prometer que continuaria lutando. Certa
vez, ele afirmou: “[...] que o sentido da vida estava na própria vida,
na mente no corpo” (NÓS POR EXEMPLO, mai/jun., 1994, p. 18).
A médica afirma ter aprendido muito com José Carlos. Ele
teria sido um forte, todo o tempo e para sempre; E que queria
deixar registrada naquela carta: “[...] não a sua dor. Mas a sua certe-
za de que amar valeu e isto bastava para dizer que viver valeu” (NÓS
POR EXEMPLO, maio-jun., 1994, p. 18). Uma história repleta de
sensibilidade, que “se traduz em sensações e emoções, na reação
dos sentidos afetados por fenômenos físicos ou psíquicos, uma vez
entrado em contato com a realidade” (PESAVENTO, 2007, p. 10).
A historiadora Sandra Pesavento (2007) nos ensina a escre-
ver uma história das sensibilidades, preocupada em trazer para
o presente a complexidade da experiência humana no passado.
Para esta autora seria somente “[...] pelo esforço da imagina-
ção, pela educação e pelo adestramento do olhar, recolhendo

Eulina Souto Dias 203


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sinais, indícios, tecendo correlações, estabelecendo nexos entre


as marcas deixadas [...]” (PESAVENTO, 2007, p. 20), que tornaria
possível ao historiador restituir a complexidade da experiência
passada em seu relato. Dessa maneira, as sensibilidades podem
remeter ao real e ao não-real, ao mundo do imaginário, e mesmo
que essas representações sensíveis se referissem a algo que “não
tenha existência real ou comprovada, o que se coloca na pauta
de análise é a realidade do sentimento, a experiência sensível
de viver e enfrentar aquela situação” (PESAVENTO, 2007, p. 20).
Ainda conforme os ensinamentos da autora Sandra
Pesavento (2007, p. 25) “a História constrói um discurso imagi-
nário e aproximativo sobre aquilo que teria ocorrido um dia, o
que implica fazer uso da ficção”, mas a narrativa histórica não
se sustenta em si mesma, uma vez que “ela guarda marcas de
historicidade – as fontes, os documentos que deram margem à
elaboração do texto” (PESAVENTO, 2007, p. 25). Em vista disso,
o historiador pode fazer uso de sua capacidade imaginativa, se
valendo dos indícios e sinais, as “marcas” timbradas no documen-
to, para tentar traduzir a experiência de outros homens e mulhe-
res numa temporalidade já passada. Acreditamos que Márcia
Rachid, ao tornar público sua carta no impresso, buscava levar a
conhecimento dos seus leitores as histórias de vida, de luta contra
a doença e da busca por tratamentos, embora, também é possível
inferir que essa visibilidade poderia também funcionar como uma
forma de autopromoção da sua imagem.
Afora isso, destacamos aqui o enunciado de uma médi-
ca, com uma postura capaz de romper com o protocolo adota-
do por muitos esculápios a época: um acompanhamento mais
humano, cúmplice, afetuoso e solidário com os seus pacientes.
São emoções como cuidado, carinho, compaixão, alteridade, soli-
dariedade e medo. Medo de perdê-los, de assistir seus pacientes

Eulina Souto Dias 204


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desistirem de lutar pela vida, dos tratamentos diante das dificulda-


des impostas, não só pela doença, mas também pelo preconceito
e pela discriminação, tão fortes naquela época.
Márcia Rachid afirmava, no artigo intitulado Relações,
publicado na coluna Agaivê-Hoje (edição de novembro de 1994)
que tinha vivido bem perto dos limites, seus e dos outros: “[...]
tentando equilibrar o racional e as emoções, vividas e mais inten-
samente possíveis, ainda que passageiras” (NÓS POR EXEMPLO,
jul. 1994, p. 18) e que ainda se surpreendia com as diferentes
formas das pessoas lidarem com as dificuldades, momentos
inesperados, perdas, impotência e até mesmo com prazer. Para
Rachid, perder doía tanto que o “[...] o ideal seria não sentir”. Para
ela “[...] quem não perde é porque não ganhou nada” (NÓS POR
EXEMPLO, jul. 1994, p. 18).
Todavia, ela acreditava que a maioria das pessoas valorizava
o duradouro, o que era consistente, o que “[...] deveria ficar para
sempre” (NÓS POR EXEMPLO, jul. 1994, p. 18). Mas aí vieram o HIV
e a aids, “[...] para jogar teorias ‘por água abaixo’, para questionar
conceitos e preconceitos, para expor sentimentos e emoções, para
pôr à prova a afetividade e a confiança entre parceiros, familiares
e amigos...” (NÓS POR EXEMPLO, jul. 1994, p. 18).
Diante das dificuldades impostas pela doença, a médica afirma
que poderia conhecer o outro, “[...] que vai embora ou fica perto
verdadeiramente” (NÓS POR EXEMPLO, jul. 1994, p. 18). Para ela,
fingir ou fugir nunca poderia ser a solução, pois quem não aprendesse
a lidar com limites impostos pela doença ou, “quem acreditasse no
eterno não conseguia perceber o instante...” (NÓS POR EXEMPLO, jul.
1994, p. 18). Márcia Rachid, afirma que era evidente a diferença entre
pacientes que descobrissem o valor do momento, do aqui e do agora,
modificando a sua qualidade de vida. Pois eles “[...] decidiram VIVER,
literalmente, no equilíbrio das perdas e ganhos, diante de dúvidas e

Eulina Souto Dias 205


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do inesperado, convivendo com limitações, com diversas maneiras de


descobrir o prazer, com alegrias e tristezas, ou seja, vivendo enquanto
estão vivos!” (NÓS POR EXEMPLO, jul. 1994, p. 18).
Ao que os discursos indicam, nas últimas décadas do vigési-
mo século, muitos soropositivos para HIV sofreram as mais diversas
barreiras: preconceitos e discriminações, desinformações e insensi-
bilidades por parte dos planos de saúde e de familiares, empresas,
médicos e judiciário. As penitências que passaram os portadores
do vírus HIV nesse período e as insensibilidades gestadas em torno
destes episódios permitem uma ilustração a respeito dos estigmas
que permeavam a sociedade naquele momento e que serviam de
principais obstáculos para prevenção, tratamento, cuidado em rela-
ção ao HIV e possível agravamento do caso para aids.
São enunciados que refletiam como as pessoas que contraiam
o HIV carregavam consigo os estigmas construídos em torno da aids,
que acabaram repercutindo sobre a sua identidade e sua história de
vida. Acreditamos que o medo do estigma e dos preconceitos podem
também ter desencorajado diversas pessoas a revelar sua sorologia
até mesmo para os familiares e parceiros sexuais, além de prejudicar
o acesso a tratamento e aquisição de medicamentos.
As doenças passam a surgir, a alterar o roteiro das vidas, bem
como, exigir uma reorganização das formas de curar e de prevenir e,
com a aids não foi diferente. O historiador francês Jacques Le Goff
(1985, p. 9) afirmou, por exemplo, que a “doença pertence à histó-
ria, em primeiro lugar, porque não é mais que uma ideia e porque
as doenças são mortais”. E continuando questionou: “Onde estão
as febres terçãs e quartãs dos nossos antepassados?”. Ele defende
que a “doença pertence não só à história superficial dos progressos
científicos e tecnológicos como também à história profunda dos
saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, às instituições,
às representações, às mentalidades” (LE GOFF, 1985, p. 9).

Eulina Souto Dias 206


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Deste modo, assim como a história, a doença como fenômeno


social também é uma construção. Ademais, “diferentes grupos de
cada época, dão significado e sentido específicos à entidade fisio-
patológica chamada doença” (NASCIMENTO; CARVALHO, 2004, p.
13). O que possibilita ao historiador o conhecimento de estruturas e
mudanças sociais, reações societárias, constituição do Estado e de
identidades nacionais, emergência e distribuição de doenças, proces-
sos de construção de identidade individuais, constituição de campos
de saber e de disciplinas” (NASCIMENTO; CARVALHO, 2004, p. 13).
Para a autora Dilene Raimundo do Nascimento (2005, p.
132), “a doença, ao revelar uma condição estigmatizante, confirma
ao mesmo tempo uma identidade”. Em vista disso, os primeiros
casos de Aids entre homossexuais masculinos, nos anos iniciais da
década de 1980, revelaram uma “condição socialmente estigma-
tizada, mas, por outro lado, acabou por gerar movimentos asso-
ciativos que, ao irem de encontro ao estigma, teriam por objetivo
afirmar uma identidade pela proteção mútua contra o isolamen-
to e a exposição dos doentes a discriminações e perseguições”
(NASCIMENTO, 2005, p. 132).
O estigma, que, segundo o sociólogo norte-americano
Erving Goffman (2013), é uma característica que faz referência
a um atributo profundamente depreciativo, “estigmatiza alguém
para confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em
si mesmo, nem horroroso nem desonroso” (GOFFMAN, 2013, p.
6), pode ser classificado, ao menos, em três tipos:

Em primeiro lugar, há as abominações do corpo – as várias defor-


midades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual,
percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não natu-
rais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas
a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental,

Eulina Souto Dias 207


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prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tenta-


tivas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente,
há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser
transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos
os membros de uma família (GOFFMAN, 2013, p. 7).

Todos os três tipos de estigma possuem um ponto em


comum: um sujeito que sofre uma exclusão social por alguma
característica pessoal considerada inadequada pela maioria da
sociedade e que sofre as consequências disso no seu desenvolvi-
mento enquanto cidadão. O termo leva ainda a duas perspectivas:

[...] assume o estigmatizado que a sua característica distintiva


já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela
não é nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente
perceptível por eles? No primeiro caso, está-se lidando com a
condição do desacreditado, no segundo com a do desacreditá-
vel. Esta é uma diferença importante, mesmo que um indivíduo
estigmatizado em particular tenha, provavelmente, experimen-
tado ambas as situações (GOFFMAN, 2006, p. 7).

Fernando Henrique Rodrigues de Lima (2014) revela que,


quando a aids surgiu, realizou-se uma “caça às bruxas” na impren-
sa nacional a fim de descobrir quem tinha ou não a doença.
Vários artistas vieram a público desmentir que estavam doentes.
Ainda segundo o autor, para a vida de algumas pessoas públicas,
emagrecer, perder cabelo, cancelar show ou passar mal durante
alguma apresentação já era motivo suficiente para especulações
nos tabloides. Algumas características evidenciadas como marcas
‘duvidosas’ de aids, tais como o indivíduo que perdera peso em
pouquíssimo tempo, com a pele anêmica, com as maçãs do rosto

Eulina Souto Dias 208


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pouco ou quase não acentuadas, a apresentação de aspecto cada-


vérico e a escassez de cabelo já levantavam suspeitas da presença
da aids. Caracterizavam-se assim os desacreditados.
Talvez o caso mais famoso da associação entre magreza
e aids no país tenha sido o da edição 1.077 da revista Veja, de
26 de abril de 1989, que estampou uma foto irreconhecível do
artista Cazuza com os dizeres “Uma vítima da AIDS agoniza em
praça pública”. Era esse o estigma construído à época; era essa a
imagem que se tinha do sujeito doente de aids. Além de Cazuza,
Lauro Corona, Freddie Mercury, Rock Hudson e Thales Pan Chacon
foram alguns dos artistas, conhecidamente homossexuais, que
tiveram sua vida esmiuçadas após a morte relacionada à aids.
Casos posteriores receberam melhor tratamento da imprensa,
como o de Sandra Bréa, atriz que divulgou sua soropositividade
ainda em vida, no ano de 1993, e se tornou sinônimo de luta; e
o de Renato Russo, que mesmo não declarando publicamente
sua soropositividade, teve seu talento realçado pela imprensa, ao
morrer em 1996, e a sua ausência no cenário artístico em detri-
mento da aids como causadora de sua morte – sinal de que o
sensacionalismo havia perdido a sua força.
Atualmente, com a profilaxia, muitos soropositivos levam
uma vida saudável e regulada, porém o estigma ainda está enrai-
zado, pois continuam em posição social suscetível a preconceitos.
Mesmo com toda a evolução do tratamento e com os medica-
mentos, o estigma permanece, não mais relacionado à imagem
corporal, mas à do tratamento dado àqueles que estão positiva-
dos para o vírus do HIV.
Quando a aids surgiu, nos anos iniciais da década de 1980,
era uma doença que estigmatizava, que colocava o doente na condi-
ção de ser apontado, anotado pelas agruras da ignorância, vítima
de um discurso extremamente cruel. Se o câncer era uma doença

Eulina Souto Dias 209


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da traição do corpo, o “câncer gay” funcionava como uma traição


do corpo que desejava o sexo e que, por isso, permitia a entrada de
vírus e bactérias. Portanto, um câncer “provocado pelo pecado” e
que, como castigo, colocava o doente na condição de fragilidade,
de merecedor de desdém, de desafetos e de insensibilidades.

Conclusão

Quando nos propomos a pensar historicamente o HIV e a


aids, alguns temas – como os que foram abordados ao longo desse
texto – são imprescindíveis. Pois, ao analisarmos os discursos cons-
truídos acerca do vírus e da doença, sobretudo nas décadas de
oitenta e noventa, logo percebemos a produção de estigmas em
torno da doença e dos doentes. Destarte, descobrir a soroposi-
tividade era saber que seria relegado ao grupo dos “diferentes”,
daqueles estariam fora da normalidade, da moralidade ou da lega-
lidade. Em consequência disso, foram produzidas muitas barreiras
que dificultaram os processos de prevenção, tratamento e demais
cuidados em relação ao HIV nas primeiras décadas, pois as pessoas
temiam procurar ajuda e ter sua soropositividade exposta.
Diante desse cenário, em que vigorava a desinformação,
discriminação e insensibilidade, analisar a atuação da médica
Márcia Rachid é falar sobre o poder dos afetos. Ela não apenas
rompeu com o protocolo adotado por muitos médicos da época,
mas também acompanhou seus pacientes de maneira mais huma-
na, sensível e afetuosa. Construiu uma rede de apoio e afeto com
as pessoas que se encontravam em vulnerabilidade, e, muitas
vezes, encontravam dificuldades em revelar sua sorologia até
mesmo para os familiares e parceiros sexuais – dificultando o
acesso ao tratamento e aquisição de medicamentos. Esses

Eulina Souto Dias 210


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COMBATE A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)

pacientes encontravam na médica alguém com quem poderiam


partilhar suas inquietações, incertezas e angústias, sem temer o
peso de um julgamento moral.
Ao lançarmos o olhar para o fazer médico de Márcia Rachid,
adentramos em um universo das sensibilidades, e, sensibilidade, de
acordo com Sandra Pesavento (2004), seria percepção e tradução
da experiência humana no mundo. As sensibilidades lidam com o
emocional, com as subjetividades, com as sensações que vêm do
íntimo de cada indivíduo. Portanto, são experiências muito singu-
lares que nós, historiadores culturais, temos nos empenhado em
buscar nos arquivos, nos relatos orais, na literatura, em tudo aquilo
que nos permita uma imersão nas práticas culturais do sensível.
A atuação médico-discursiva, da imunologista e articulista
do impresso Nós Por Exemplo, Márcia Rachid, oportunizou muitas
contribuições, principalmente, se observarmos como ela levou
ao público leitor do Nós Por Exemplo histórias de vida, de luta
contra a doença e da busca por tratamento. Esse trabalho, passeia
pela compreensão de que a vida é experimentada com o corpo e
no corpo. Ele é lugar de experimentações e sensibilidades, como
ressalta a historiadora Izilda Matos (2006): o corpo é nossa âncora
de emoções, nele se manifestam - amor, esperança, dor, solidão. E
a atuação dessa médica, para com esses corpos, de indivíduos viti-
mizados pelo preconceito, possivelmente, provocou neles novas
experiências consigo e com a doença.
Jorge Larrosa (2016) nos conduz a pensar o sentir como
experiência. Pois, a experiência é quando algo nos transpassa, ou
seja, não está externo ao indivíduo, mas é aquilo que lhe passa
além, é o que o atravessa, o que afeta, o que toca. É o encontro. E,
a partir da fala do jornalista Mauro Ferreira (2020), já apresentada,
essa médica teria se contaminado pela vida, quando se deparou
com o HIV nos consultórios e hospitais em que atuou.

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“UMA MÉDICA QUE SE CONTAMINOU PELA VIDA QUANDO SE DEPAROU
COM O HIV NOS CONSULTÓRIOS E HOSPITAIS EM QUE ATUOU”:
MARCIA RACHID E SUA CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO
COMBATE A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)

Em diálogo com Márcio Silva (2010), entendemos que as


coisas do mundo são cheias de afetos e se definem pela capa-
cidade de afetar e ser afetado. Assim, quando a médica Márcia
Rachid narra aos leitores do impresso, que mais uma vez teve
que suportar a perda de um paciente tão especial para aids, e,
que se sentia impotente diante daquele momento, ela provoca
em seus leitores a compreensão de que estaria no lugar de sujei-
to da experiência, daquele que se permite ser tocado, afetado,
contaminado – para usar as palavras Mauro Ferreira (2020) – e
transformado pelo encontro.
Esse texto, que discutiu sobre corpos, estigma, doença e
sensibilidades, buscou evidenciar a atuação da médica Márcia
Rachid, enquanto alguém que agiu na contramão das ações e
discursos médicos predominantes nas primeiras décadas após a
descoberta do HIV e da aids. Ressaltamos, contudo, que indepen-
dente dos interesses motivadores para a atuação dessa médica,
seu trabalho foi importante no fortalecimento de grupos que
estavam em condições de vulnerabilidade, possibilitando a esses
indivíduos – que liam seus escritos ou eram atendidos por ela – o
novo olhar sobre si e sobre a própria existência.

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“UMA MÉDICA QUE SE CONTAMINOU PELA VIDA QUANDO SE DEPAROU
COM O HIV NOS CONSULTÓRIOS E HOSPITAIS EM QUE ATUOU”:
MARCIA RACHID E SUA CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO
COMBATE A AIDS NO JORNAL NÓS POR EXEMPLO (1991-1995)

Referências

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Horizonte: Autêntica, 2016.

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Eulina Souto Dias 214


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MARCIA RACHID E SUA CONTRIBUIÇÃO MÉDICO- DISCURSIVA NO
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SONTAG, S. Doença como metáfora: AIDS e suas metáforas.


Tradução de Paulo Henriques Britto e Rubens Figueiredo. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

Eulina Souto Dias 215


Sobre os Autores

Adolfo Veiller Souza Henriques

Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação


em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGEd/UFRN). Integrante da Linha de Pesquisa “Educação,
Estudos Sócio-Históricos e Filosóficos”, na qual desenvolve a
pesquisa “Uma Campanha Sanitária aos Grupos de Risco: os discur-
sos médico-pedagógicos sobre a Aids na Paraíba (1985-2000)”.

Agostinho Júnior Holanda Coe

Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa


de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz-RJ). Professor Adjunto III da
Universidade Federal do Piauí (Campus Senador Helvídio Nunes de
Barros - Picos/PI). Coordenador do Projeto de Pesquisa “Práticas
de Cura e institucionalização de saberes médicos no Maranhão e
Piauí - séculos XIX e XX”.

Ana Karine Martins Garcia

Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica


de São Paulo. Coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa da História
das Práticas da Saúde e das Doenças vinculado ao CNPq pela
Universidade Federal do Pará e pesquisadora do Laboratório de
Ensino e Aprendizagem em História da Universidade Federal do
Ceará (UFCE).

216
Azemar dos Santos Soares Júnior

Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação


em Educação da universidade Federal da Paraíba (PPGE/UFPB).
Estágio de Pós-Doutorado em História pela Universidade
Federal de Campina Grande. Atualmente é Professor Adjunto
do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo, na área
de Didática e Ensino de História da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (DPEC/UFRN), Campus Natal.

Chacauana Araújo dos Santos

Doutoranda em História das Ciências e da Saúde pela Casa


de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz-RJ), onde desenvolve pesquisa
sobre a oftalmologia e o tracoma na Bahia. Professora de História
na Secretaria de Educação do Estado da Bahia.

Christiane Maria Cruz de Souza

Doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa


de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz-RJ). Professora aposentada do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA),
vinculada ao Núcleo de Tecnologia em Saúde. Coordenadora do
Grupo de Trabalho História da Saúde, da Associação Nacional de
História, seção Bahia).

217
Eulina Souto Dias

Mestra em História pela Universidade Federal de Campina


Grande (UFCG). Professora da Educação Básica na rede privada
de ensino. Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa História das
Práticas da Saúde e da Doença (UFPA).

Gabriel Lopes

Doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa


de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz-RJ), com período de doutorado
sanduíche no Department of the History of Medicine na Johns
Hopkins University (2014/2015). Pesquisador em estágio pós-dou-
toral na Casa de Oswaldo Cruz.

Jucieldo Ferreira Alexandre

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


Professor Adjunto I da Universidade Federal do Cariri. Pesquisador da
História da Saúde e das Doenças, com ênfase no Nordeste.

Ricardo dos Santos Batista

Doutor em História Social pela Universidade Federal da


Bahia. Professor do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Estado da Bahia (PPGH/UNEB), campis II, Alagoinhas.

218
Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano

Doutora em História pela Universidade Federal de


Pernambuco (UFPE). Professora Associada III do Departamento
de História e do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba. Possui estágio de Pós-doutorado
pela Universidade Federal de Minas Gerais/PROCAD.

219
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

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